Desenvolvimento da“sensibilidade” intercultural na formação inicial de psicólogos – discussão de uma experiência

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Barca, A., Peralbo, M., Porto, A., Duarte da Silva, B. e Almeida, L. (Eds.) (2007). Libro de Actas do Congreso Internacional Galego-Portugués de Psicopedagoxía. A.Coruña/Universidade da Coruña: Revista Galego-Portuguesa de Psicoloxía e Educación. ISSN: 1138-1663.

Desenvolvimento da“sensibilidade” intercultural na formação inicial de psicólogos – discussão de uma experiência

Ana Barbeiro ISEIT/Viseu – Instituto Piaget e CIPsi – Universidade do Minho, Portugal [email protected]

Resumo: A sensibilização para a interculturalidade tem ganho crescente importância nos países europeus, cada vez mais multiculturais. Considera-se, neste trabalho, que também na formação dos psicólogos é importante o desenvolvimento de competências para lidar com este fenómeno. Assim, apresenta-se e discutese uma experiência de seis anos no âmbito da educação intercultural, integrada no curriculo de formação inicial de psicólogos no Instituto Piaget (ISEIT/Viseu), realizada a partir da da disciplina de“psicologia intercultural”. Verificou-se, desde o início, que uma prática baseada apenas no ensino/aprendizagem de teorias, modelos de intervenção e investigação nesta área, não era uma metodologia adequada, ou suficiente, para o desenvolvimento de uma “sensibilidade” intercultural junto dos alunos. Assim, procurou-se tornar as estratégias pedagógicas cada vez mais participativas, incluindo discussões sobre temas sociais relacionados com a interculturalidade e a realização de trabalhos em diversos contextos multiculturais. A eficácia destas estratégias foi avaliada através dos discursos dos alunos, patentes nos trabalhos escritos e nas respostas a uma questão aberta, apresentada no âmbito da avaliação final da disciplina. A “sensibilidade” intercultural revelou-se na expressão da compreensão dos problemas específicos do contacto de indivíduos de culturas diferentes e num discurso progressivamente “etno-descentrado”. Apresentam-se ainda algumas dificuldades encontradas e propõem-se soluções de aprofundamento desta intervenção. Palavras-chave: sensibilidade intercultural, formação de psicólogos, ensino superior

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Desenvolvimento da“sensibilidade” intercultural na formação inicial de psicólogos – discussão de uma experiência

Introdução O interesse da psicologia pela cultura é antigo, datando dos primórdios desta disciplina como ciência. Wundt considerava que os processos psicológicos são condicionados pela história da comunidade a que os indivíduos pertencem, defendendo a necessidade da utilização de métodos históricos e evolutivos para a compreensão dos processos mentais “superiores” (Cole, 1999). Ao longo da história da psicologia diversos investigadores e teóricos desta disciplina procuraram formas de conceptualizar a relação entre a mente e a cultura ( para uma revisão destas abordagens, cf. Valsiner, 2000, ou Valsiner & Van der Veer, 2000). Porém, o projecto da psicologia encaminhou-se para uma concepção do psiquismo arredada deste caminho, e a ideia de uma psicologia cultural é recente. A este respeito pode colocar-se a questão do etnocentrismo da psicologia. Sendo o etnocentrismo um fenómeno universal, a psicologia, como ciência desenvolvida numa sociedade particular, corre também o risco de ser etnocêntrica (Dazen, 1993, cit. Guerraoui & Troadec, 2000). Desta forma, o universalismo das teorias da psicologia não será mais do que um enviezamento etnocentrado. Para ultrapassar este viés é necessária uma descentração, uma tentativa de compreender o ponto de vista do outro, através de um confronto com a alteridade. Assim, diversos quadrantes da psicologia têm dado uma atenção crescente aos aspectos ligados à cultura. Na década passada foram publicados diversos manuais e sínteses de trabalhos em que se procurava analisar as condições de existência de uma área da psicologia que tivesse como enfoque central a relação psiquismo-cultura (e.g., Berry, Poortinga, Segall & Dasen, 1992; Berry, Poortinga, Pandey, Dasen, Saraswathi, Segall & Kagitçibasi, 1997; Camilleri & Vinsonneu, 1996; Cole, 1999; Guerraoui & Troadec, 2000; Segall, Dasen, Berry, & Poortinga, 1999). Os vários autores constataram uma diversidade de abordagens e mesmo de designações, procurando sistematizá-las e salientar as suas diferenças e os seus pontos de encontro no que se refere aos seus princípios conceptuais, aos objectos de estudo e aos métodos. Berry, investigador norte-americano, define a área de estudo da relação psiquismo-cultura da seguinte forma: “(...) o estudo sistemático das relações entre os contextos culturais do desenvolvimento humano e os comportamentos que se actualizam progressivamente no repertório dos indivíduos que se desenvolvem numa cultura particular. O campo é diverso: alguns psicólogos trabalham profundamente sobre uma cultura (psicologia cultural), outros comparam diversas culturas (cross-cultural psychology) e outros trabalham com grupos étnicos no seio de sociedades multiculturais (psicologia intercultural); todos ambicionam

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fornecer uma compreensão das relações cultura-comportamento” (Berry & col., 1997, vol.1, p.X). É neste âmbito disciplinar que a presente experiência se enquadra. A importância do estudo da relação psiquismo-cultura tem sido evidenciada, no Instituto Piaget, pela inclusão de disciplina de “psicologia intercultural” no terceiro ano da licenciatura em psicologia. Trata-se de um disciplina anual, com uma carga horária de 80 horas e de cariz teorico-pratico, leccionada pela autora deste trabalho desde 20011. Os conteúdos programáticos da disciplina procuram abranger o seu carácter interdisciplinar (bebendo contributos de diversas áreas das ciências sociais e humanas), e foram divididos em três partes genéricas. Na primeira parte aborda-se o campo epistemológico do estudo da relação psiquismo-cultura. A segunda parte está dedicada aos processos e dinâmicas psicossociais, e a terceira parte à psicologia cultural aplicada (cf. Quadro 1). Psicologia intercultural – conteúdos programáticos genéricos Primeira parte Evolução histórica e paradigmática da compreensão da relação psiquismo-cultura e das perspectivas teóricas a ela associadas As abordagens contemporâneas da relação psiquismo-cultura: métodos, teorias e conceitos Segunda parte Cultura e ciclo vital - Psicologia cultural e desenvolvimento Cultura, relações interindividuais e intergrupais Terceira parte Psicologia cultural aplicada: contributos na área da educação, dos comportamentos desviantes, das organizações e do trabalho, da psicologia clínica e da saúde.

Quadro 1 – Conteúdos programáticos Sendo uma disciplina de cariz teorico-pratico, desde o início se procurou que os conteúdos “teóricos” fossem acompanhados por métodos activos de pesquisa e experimentação por parte dos educandos. No entanto, verificou-se a necessidade de trabalhar aspectos atitudinais e competências interculturais, cujo desenvolvimento não se afigurava possível apenas através de uma formação académica tradicional.

1. Do ensino da psicologia intercultural à sensibilização e construção de competências interculturais Com efeito, a importância da cultura para a construção do psiquismo, podendo ser considerada como um aspecto teórico central no âmbito da psicologia (cf. Bruner, 1997; 2000; Cole, 1999), não se esgota no campo conceptual. A intervenção psicológica em contextos multiculturais, para além de um saber teórico

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adequado, implica também o desenvolvimento de uma sensibilidade pessoal e de competências profissionais específicas. E tendo em conta fenómenos sociais como a globalização, a construção de um Espaço Europeu de Ensino Superior, a circulação de profissionais na União Europeia e os movimentos migratórios actuais, a preparação dos psicólogos para lidar com a interculturalidade afigura-se de grande relevância. Deste modo, procurou-se construir, ao longo do sucessivos anos lectivos, uma “educação intecultural para futuros psicólogos”, posta em prática na leccionação da disciplina de “psicologia intercultural”. De acordo com Camilleri (1992), a educação intercultural não envolve apenas o respeito pelas diferenças interculturais, mas também implica proporcionar condições para que os parceiros sociais compreendam a sua cultura como legítima e digna de reconhecimento, e para a emergência de um sentimento de liberdade relativamente a essa cultura, legitimando posições de inovação e de composição da sua própria cultura pessoal a partir de diferentes sistemas de referência. Em suma, a educação intercultural visa evitar a reificação dos sistemas culturais, de forma a possibilitar a comunicação e as trocas culturais. Trata-se, assim, de um princípio de trabalho para lidar com as diferenças (Leonetti, 1992). A educação para a interculturalidade passa por um desenvolvimento da sensibilidade intercultural dos educandos; este desenvolvimento traduz-se num processo contínuo, do etnocentrismo ao etnorelativismo (Bennett, 1986). Este processo é facilitado pelas experiências pessoais da diferença cultural; à medida que estas se tornam mais complexas e sofisticadas, as competências de relacionamento intercultural aumentam (id). Para pôr em prática estes princípios começou-se por procurar compreender as próprias vivências interculturais dos educandos. Viseu, cidade em que se realizou esta experiência pedagógica, é um contexto de imigração recente. Nos últimos anos assistiu-se a um aumento da presença de imigrantes, com um crescimento progressivo dos estrangeiros residentes (de 1313 em 1999 a 2079 em 2005)2 e dos imigrantes ilegais. Mas a tradição de emigração é mais antiga; desde os anos 60 do século passado muitos trabalhadores portugueses emigraram para países europeus, movimento que ainda hoje é significativo. E diversos alunos do Instituto Piaget vivem ainda essa experiência: sendo filhos de pais emigrantes, e tendo passado a infância no estrangeiro, vêm agora realizar os seus estudos no Ensino Superior em Portugal. Assim, uma das primeiras démarches pedagógicas foi a de incentivar, através de debates alargados na turma, as vivências interculturais de cada um. Depois procurou-se intencionalizar, na realização das aulas práticas, a elaboração de trabalhos de pesquisa, em pequenos grupos, sobre diversos aspectos da presença de relações interculturais nos contextos de vida e na sociedade portuguesa, incentivando, sempre que possível, o contacto com a “diferença cultural”. 2. Caracterização do programa pedagógico adoptado para o desenvolvimento da sensibilidade intercultural O programa de desenvolvimento da sensibilidade intercultural que a seguir se apresenta não é um modelo acabado, e foi construído ao longo dos últimos anos, numa processo de experimentação pedagógica.

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Trata-se mais de traduzir esquematicamente o que foi conseguido até agora, do que de sistematizar um instrumento pedagógico acabado. Assim, tendo como princípio de trabalho a promoção de posicionamentos progressivamente “etno-descentrados”, em ordem a um desenvolvimento das competências de comunicação intercultural, procurou-se envolver os alunos em actividades significativas de exploração da própria cultura e de culturas diferentes. Procurou-se também promover o contacto com as riquezas e os problemas próprios da interculturalidade e com formas de intervenção psicossocial relativos a contextos multiculturais. A implementação destas actividades aconteceu de forma transversal à abordagem dos conteúdos programáticos da disciplina (nas “aulas teóricas”, com uma carga horária de 60 horas), nas “aulas práticas” (20 horas, lideradas em forma de tutoria) e através da realização de trabalho autónomo por parte dos alunos fora do horário lectivo (pesquisa “de terreno”). a) Objectivos do programa Os objectivos deste programa de desenvolvimento da sensibilidade intercultural com alunos de psicologia centravam-se, genericamente, na promoção de: - oportunidades de exploração de diversos aspectos da própria cultura - reconhecimento do papel da cultura no comportamento humano e no processo de construção de significados sobre o mundo - reconhecimento do papel da cultura nos comportamentos e significações construídas quotidianamente - competências de comunicação com o “outro” cultural - descentração cultural e competências de tomada da perspectiva do “outro” cultural - contacto com instituições e projectos relacionados com situações de interculturalidade - reconhecimento e sensibilização relativos às especificidades e problemas psicossociais do contacto intercultural b) Metodologia A metodologia adoptada na liderança do processo pautou-se por uma ênfase num modelo de facilitação pedagógica, promovendo-se a participação, a discussão e o confronto de ideias. Incentivou-se também a procura de consensos, a responsabilização e autonomização dos alunos, o trabalho em equipa e o desenvolvimento da criatividade. Os debates realizavam-se em grande grupo, em forma de assembleia moderada pela docente. Alguns dos temas incontornáveis foram o etnocentrismo, os fenómenos ligados à imigração, os aspectos culturais da construção do género e a religião. Outros temas da actualidade social foram surgindo espontaneamente, por vezes propostos pelos alunos, como a condição das mulheres trazida a público durante a guerra do Afganistão, as condições de trabalho dos imigrantes em Portugal, a interdição do uso de símbolos religiosos

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nas escolas públicas francesas, o trabalho infantil, etc. Nestes debates incentivava-se o confronto de ideias e procurava-se que cada um sentisse um clima de aceitação das suas perspectivas. No entanto, procurou-se que a moderação das discussões se pautasse por um relativismo moderado, e por uma sustentação científica dos argumentos, para além do seu aspecto vivencial. A necessidade de adaptar os princípios relativistas ao contexto da educação intercultural na sala de aula é salientada por Camilleri (1992). Se, por um lado, a posição do professor é discutível, por outro lado é importante não perder de vista a promoção da unidade do grupo, em torno aspectos consensuais mínimos. E, no caso específico, importava ir lembrando aos alunos que havia princípios básicos ligados às tarefas do grupo: a promoção de competências de comunicação intercultural e a valorização e o respeito pela diversidade. Os trabalhos práticos em pequenos grupos eram orientados semanalmente, na sala de aula: formados os pequenos grupos, a docente discutia o andamento do trabalho com cada um. Os grupos traziam o seu material de trabalho e estavam autorizados a ausentar-se para ir à biblioteca ou para realizar qualquer outra tarefa relacionada com o trabalho, desde que isso fosse devidamente programado. Em diversos momentos os diferentes grupos eram convidados a dar conta aos colegas das actividades que se encontravam a realizar (pesquisa bibliográfica, recolha de dados). Cada trabalho tinha um momento formal de apresentação, que depois era discutido em grande grupo e pela docente. As apresentações socorriam-se habitualmente de recursos audivisuais como filmes, apresentações em power-point e fotografias. Era solicitado aos alunos que apresentassem o seu “trabalho em progresso”, aproveitando posteriormente os comentários da docente e dos colegas para a elaboração do relatório final. Procurou-se a diversidade e o incentivo da criatividade na escolha dos temas e dos métodos de trabalho. Para esta escolha a docente apresentava uma lista de possibilidades, incluindo instituições a visitar (estas relações institucionais foram sendo construídas ao longo dos anos), filmes a analisar ou temas de pesquisa qualitativa. Os alunos podiam também consultar os trabalhos realizados nos anos anteriores, e sugerir o seu próprio tema e método de trabalho. As limitações a estas escolhas prendiam-se com a sua ligação aos objectivos do programa pedagógico e com as condicionates espacio-temporais para a sua exequibilidade. Assim, ao longo dos anos foram realizados trabalhos que se podem tipificar resumidamente nos seguintes: - observação em diversos contextos multiculturais (e.g., zonas urbanas e mesmo rurais com pequenas comunidades migrantes ou ciganas) - observação em instituições e projectos relacionados com situações de interculturalidade (e.g., apoio a imigrantes, intervenção psicossocial em comunidades com população cigana) - análise de media (publicidade, filmes, documentários, notícias, contos infantis) - realização de histórias de vida de migrantes, através de entrevistas qualitativas - observação de fenómenos sociais minoritários e realização de entrevistas com os actores sociais neles implicados (práticas medicinais alternativas, culturas juvenis, comportamentos desviantes, etc.)

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Os temas teóricos destes trabalhos apoiaram-se nos conteúdos programáticos da disciplina, centrados nas relações cultura-psiquismo-comportamento. c) Avaliação Para a avaliação do trabalho realizado, importa, em primeiro lugar, fazer a distinção entre avaliação da qualidade científica dos trabalhos apresentados pelos alunos e a avaliação do desenvolvimento da sensibilidade intercultural. Sendo este o objectivo do programa aqui discutido, ficarão de fora as considerações acerca do “nível científico” atingido pelos alunos e do seu domínio dos conteúdos programáticos. A avaliação centra-se, assim, no desenvolvimento do processo pedagógico (visto na perspectiva da docente) e nos discursos dos alunos, no que se refere à apreensão da “sua sensibilidade intercultural”, ou da sua “etno-descentração”. A adesão às actividades pode ser pensada a vários níveis. No que se refere aos debates alargados à turma, havia, evidentemente, alunos mais participativos do que outros. Mas quando se começou a trabalhar com turmas com menos alunos (no último ano, cerca de 40 inscritos e uma média de 25 a participar assiduamente nas aulas “teóricas”) gerou-se mais proximidade no grupo e a participação dos intervenientes alargou-se. Relativamente ao trabalho prático, se bem que quase todos os grupos o tenham realizado, ao longo dos anos em que foi proposto, isso não significa uma motivação intrínseca, já que se trata de uma tarefa obrigatória para a realização da cadeira com sucesso. Quanto a uma adesão de motivação mais intrínseca, pode considerar-se que o envolvimento dos alunos foi variável. Não era sempre fácil demonstrar a relevância deste tipo de actividades, que implicam envolvimento pessoal, para a aprendizagem universitária, tradicionalmente mais distante. Os obstáculos principais prenderam-se com as resistências pessoais dos alunos, mas também com aspectos organizacionais ligados à Universidade e às concepções que os diferentes actores têm sobre os papéis sociais neste contexto. O número de alunos por turma, os horários e a calendarização lectiva, bem como o regulamento de avaliação vigente para o curso de psicologia, também se constituíram, por vezes, como condicionantes do modelo pedagógico a implementar. No entanto, a colaboração institucional, a prática continuada que facilitou a antecipação e prevenção de alguns problemas, e a crescente adesão dos alunos, distribuídos em turmas mais pequenas, permitiram que o sentido destas actividades fosse cada vez mais partilhado pelos actores envolvidos. Este sentido pôde ser mais objectivamente apreendido através dos discursos dos alunos, patentes nos trabalhos escritos e nas respostas a uma questão aberta, apresentada no âmbito da avaliação final da disciplina. Nos relatórios escritos deu-se especial atenção à análise de formulações discursivas que exprimissem estereótipos relativos a culturas diferentes (e.g., “nós” e “eles”) e às interpretações etnocêntricas dos aspectos culturais discutidos nos trabalhos. Se bem que estas formulações surgissem pontualmente, verificou-se em

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muitos dos casos uma “correcção” dos discursos depois de os trabalhos terem sido debatidos com a turma. Pode argumentar-se que que esta mudança de discurso não reflecte uma mudança interna, mas há ainda outros indicadores. Por exemplo, foram muitos os grupos que, ao escreverem a conclusão do relatório, se referiram às aprendizagens que tinham realizado ao contactar com os diferentes contextos em que tinham realizado o trabalho de terreno. Neste sentido, a experiência da diferença cultural foi vista como enriquecedora, ao mesmo tempo que o contacto com os actores sociais permitiu aos alunos verificar que, para além das diferenças, era possível a comunicação e a compreensão mútua. Quanto às respostas à questão aberta apresentada no âmbito do exame de avaliação dos alunos, tratava-se de uma “questão de desenvolvimento”, à qual os alunos podiam optar por responder, ou escolher outra, de cariz menos “pessoal”. Ao longo dos anos foram colocadas questões ligeiramente diferentes, mas, genericamente, era pedido ao aluno que discutisse uma aprendizagem realizada no âmbito da disciplina que considerasse relevante para a sua formação como futuro psicólogo. Muitos dos educandos que optaram por desenvolver este tema referiram-se ao estudo (teórico ou empírico) das subculturas, dos fenómenos ligados à emigração e das comunidades minoritárias. Os métodos de trabalho referidos mais positivamente foram aqueles que implicavam um contacto directo com as populações e instituições ligadas à interculturalidade: visitas a instituições, realização de entrevistas, observação participante. Este tipo de trabalho parece ter proporcionado experiências como “conhecer uma realidade diferente”, “deixar de ter medo dos ciganos”, “compreender as dificuldades dos imigrantes”, “perceber que o hip-hop não é só uma música de gangs, mas uma manifestação das culturas juvenis”. Para relacionar estes dados com a avaliação do desenvolvimento da sensiblidade intercultural, tomese como referência o modelo de Bennett (1986), que considera seis estádios sucessivos neste processo, três caracterizados pelo etnocentrismo e três pelo etnorelativismo. Sugere-se que, de forma geral, este programa permitiu um trabalho ao nível do primeiro estádio do etnorelativismo, a “aceitação da diferença cultural”. Esta refere-se à experienciação da própria cultura como uma entre outras, ainda que estas possam ser julgadas menos positivas. Os indivíduos caracterizados por uma postura de aceitação são habitualmente curiosos sobre as diferenças culturais, respeitando-as (id). Relativamente aos outros níveis da aprendizagem intercultural propostos pelo investigador, a adaptação e a integração, isso implicaria um trabalho continuado no tempo, com outras condições que não a integração curricular de uma programa deste cariz. Em suma, não se pretendendo inflaccionar a apresentação dos resultados positivos desta experiência, pois a avaliação que aqui se faz é precisamente experiencial, carecendo de um trabalho mais sistemático, saliente-se aqui também o gosto e a motivação pessoal neste trabalho construído com os alunos. Conclusão A implementação de um programa para o desenvolvimento da sensibilidade intercultural no Ensino Superior reveste-se de algumas dificuldades ligadas à natureza das instituições e das suas estratégias

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pedagógicas habituais, aos papéis esperados dos diferentes intervenientes, e ao próprio papel socialmente atribuído às universidades. Se bem que a experiência apresentada diga respeito à licenciatura em psicologia, a sensibilidade intercultural pode ser considerada como uma competência importante no Espaço Europeu de Ensino Superior e nas áreas profissionais crecentemente internacionalizadas, qualquer que seja a área de formação académica. Ao mesmo tempo, as directivas do Processo de Bolonha relativamente ao Ensino Superior referem-se explicitamente à aquisição de competências (vs conhecimentos), à autonomização dos educandos e à importância da circulação de estudantes e profissionais no espaço europeu – ou seja, da comunicação intercultural. Deste modo, este tipo de programas poderá vir a ganhar uma relevância crescente, ao mesmo tempo que, se implementado de acordo com o seu “espírito” inicial, o Acordo de Bolonha poderá facilitar a transformação do Ensino Superior de forma a que as condições de acolhimento e desenvolvimento da educação intercultural sejam optimizadas. Este tipo de experiências poderá, em alguns casos, ter uma integração curricular, ou então fazer parte de “disciplinas opcionais”, ou mesmo de programas de cariz menos formal, mas acessíveis aos alunos do ensino superior. É nesta esperança que reside a razão de ser da apresentação desta experiência, ainda com muito caminho a fazer.

Referências bibliográficas Bennett, M. J. (1986). A developmental approach to training for intercultural sensitivity. International Journal of Intercultural Relations, 10 (2), 179-196. Berry, J.; Poortinga, Y.; Segall, M. & Dasen, P. (1992). Cross-cultural psychology: research and applications. Boston: Allyn and Bacon. Berry, J.; Poortinga, Y.; Pandey, J; Dasen, P.; Saraswathi, T. Segall, M. & Kagitçibasi, C. (Eds.) (1997). Handbook of cross-cultural psychology (Vols. 1-3). Boston: Allyn and Bacon. Bruner, J. (1997). Actos de significado. Lisboa: Edições 70. Bruner, J. (2000). Cultura da educação. Lisboa: Edições 70. Camilleri, C. (1992). From multicultural to intercultural: how to move from one to the other. In J. Lynch, C. Modgil & S. Modgil (eds.), Cultural diversity and the schools: Vol. 1. Education for cultural diversity: convergence and divergence, pp. 141-151. London: The Falmer Press. Camilleri, C. & Vinsonneu, G. (Eds.) (1996). Psychologie et culture: concepts et méthodes. Paris: Armand Colin. Cole, M. (1999). Psicologia cultural. Madrid : Ediciones Morata. Guerraoui, Z. & Troadec, B. (2000). Psychologie interculturelle. Paris: Armand Colin. Leonetti, I. T. (1992). From multicultural to intercultural: is it necessary to move from one to the other. In J. Lynch, C. Modgil & S. Modgil (eds.), Cultural diversity and the schools: Vol. 1. Education for cultural diversity: convergence and divergence, pp. 153-162. London: The Falmer Press.

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Ao longo dos primeiros anos de leccionação, a colaboração, no âmbito desta disciplina, com as Professoras Célia Ramitos e Brigitte Lecat (como regentes da cadeira) foi uma importante fonte de aprendizagem. A elas, um agradecimento. 2 Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (2007). Estatísticas – residentes por distrito. Consultado online em http://www.sef.pt/portal/V10/PT/aspx/estatisticas/index.aspx?id_linha=4224&menu_position=4142#0

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