Desenvolvimentos técnicos, \"técnica\" e status da \"Mecânica\" no contexto histórico de emergência da explicação mecanista na Ciência dos sec. XII-XV (Anais do 15. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, ano 2016)

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15 SNHCT_caderno trabalhos completos terÿÿa-feira, 18 de outubro de 2016 23:33:03

Ficha catalográfica elaborada pela biblioteca do MAST

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Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (15. : 2016: Florianópolis - SC) Anais do 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia / organização: Maria Fernanda Vásquez, Sandra Caponi, Márcia Regina Barros da Silva.-- Rio de Janeiro : Sociedade Brasileira de História da Ciência : Universidade Federal de Santa Catarina, 2016. Não paginado. Contém: 302 trabalhos.

Acesso em: http://www.15snhct.sbhc.org.br/site/anaiscomplementares ISBN: 978-85-93331-00-8 1. Ciência - História. 2. Tecnologia – História. I. Vásquez, Maria Fernanda. II. Caponi, Sandra. III. Silva, Márcia Regina Barros da. IV. Título. CDU: 5(091)

Desenvolvimentos técnicos, “técnica” e status da “Mecânica” no contexto histórico de emergência da explicação mecanista na Ciência dos séc. XII-XV Prof. Ms. Miguel Ângelo Flach [email protected] RESUMO É até comum nos depararmos com a ilustração de René Descartes (1596-1650) como „o pai‟ do racionalismo e do mecanicismo Moderno como se ele tivesse simplesmente fecundado uma História que, passiva, recebeu a intuição do cogito –, como uma espécie de „esperma‟ que faltava para “bem conduzir a razão a verdade nas ciências”. E, assim, subitamente teria se dado o “nascimento da Modernidade”. No entanto, desde Pierre Duhem (1861-1916) e depois, nas décadas de 1940-50 o legado dos estudos galileanos, de Alexandre Koyré (1892-1964), as histórias da ciência, de Alistair C. Crombie (1915-1996) e de Stephen F. Mason (1923-2007) e outros, enfim, nos recomendam considerar a história mais de perto. Ao analisar o desenvolvimento de teorias, técnicas ou práticas científicas no bojo da história, o observador deve reportarse a elas buscando captar o “espírito da época” pelo que este também se reflete no objeto de investigação. No presente artigo, é feita uma incursão histórica que percorre os desenvolvimentos e aperfeiçoamentos técnicos, a partir do qual pode-se conjecturar uma concepção de “técnica” e, posteriormente, debruçando-nos sobre as principais contribuições dos personagens Jordanus Nemorarius e Leonardo Da Vinci, debruço-me captar o status da “Mecânica” e da artes a fim de reconstituir o contexto que precedeu a explicação “mecanista” cartesiana e galileana. “A história não opera através de saltos bruscos” (KOYRÉ, 2011, p. 7) e o movimento do pensamento Moderno que valorizará a experimentação empírica como um critério de prova, tal movimento é gradual e inseparável do contexto cultural que o legitima e estabelece. Sob pena de compreendermos apenas parcialmente a explicação “mecanista”, não se pode restringila a análise histórico-independente como teoria resultante de um mero insight de “ideias claras e distintas”. PALAVRAS-CHAVE: técnica; Mecânica; cultura; explicação “mecanista”. 1. Introdução Ainda que possamos rejeitar qualquer pretensão desmedida, é inegável que algumas ideias de filósofos não apenas traduziram valores partilhados culturalmente como, também, moldaram formas de ser, pensar e agir. Por exemplo, em relação à visão de ciência no contexto dos séc. XVI e XVII, Francis Bacon (1561-1626) foi quem vislumbrou o valor basilar que, desde a forma de vida Moderna aos dias atuais, assimila “ciência” sob a égide “saber é poder”. As regras metodológicas “para bem conduzir a razão a verdade nas ciências”, tal como René Descartes (1596-1650) concebeu, não são realmente experimentais. Mas, o valor que ele atribuiu para “o” método que seguiu aliado a algumas experiências de dissecações acabou por encontrar eco junto ao propósito de fortalecer uma “filosofia experimental” tal como Isaac Newton (16421727) se referiu, nos Principia Mathematica, à Física e, de forma geral, à ciência

experimental. Esta última, em suas origens, adotou a explicação “mecanista” que vinculou o funcionamento dos corpos orgânicos às leis da mecânica – atingindo seu ápice com a mecânica newtoniana –, e foi impulsionada pelo legado de Descartes e Galileu-Galilei (1564-1642). Por certo, a “história não opera através de saltos bruscos” (KOYRÉ, 2011, p. 7). Definitivamente, é preciso ir além do lugar comum de considerar Descartes „“o pai”‟ do racionalismo e do mecanicismo Moderno como se ele tivesse simplesmente fecundado uma História que, passiva, recebeu a intuição do cogito como um “„esperma‟” que faltava para “bem conduzir a razão a verdade nas ciências”. E, assim, subitamente teria se dado o „nascimento da Modernidade‟. No presente trabalho, pretendo considerar a história mais de perto tendo como objeto de análise a tradição empírica ou artesanal com seus desenvolvimentos e aperfeiçoamentos técnicos, para então depreender uma visão medieval sobre “técnica” e o status da “Mecânica” (sob o “M” maiúsculo, o corpus de conteúdos técnicos que gradualmente a estabilizou como disciplina), a fim de remontar o espírito da época e compreender o contexto histórico de emergência da explicação mecanista na Ciência dos séc. XII-XV. 2. Desenvolvimentos técnicos e “técnica” Inicialmente, adotamos “mecanista1” como a filosofia da natureza segundo a qual o universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem ser explicados de acordo com leis mecânicas do movimento de matéria gerado por causa eficiente. Em seus primórdios, tal explicação não foi em si mesma uma teoria científica (no sentido forte que usualmente tem se atribuído a “teoria”), mas forma de explicação por causas eficientes e que pretendeu-se afastar da consideração de causas finais, de intencionalidade e ou telos ao conceber a natureza, os seres e o mundo. De fato, atingiu amplo alcance filosófico e científico apenas na Modernidade guiada a emancipar a explicação do mundo das físicas animistas, qualitativas e finalistas. Para compreender a emergência de tal forma de explicação irei pressupô-la como visão de mundo em desenvolvimento, rastreável desde o surgimento histórico e aperfeiçoamento de implementos técnicos a registros das diversas artes práticas. 1

O sufixo “ismo”, de “mecanicismo”, indica o alcance da investigação iniciada por Descartes que se tornou programática e se elevou a modus operandi da experimentação cientifica de tal modo que atingiu amplo espectro com Galileu e a mecânica de Newton. A fim de compreender como se constituiu na história e as características do seu corpus teórico, adotaremos a nomenclatura “mecanista” bastante conhecida, sem o sufixo “ismo” a fim de distingui-la do que, apenas posteriormente à segunda metade do séc. XVII, se estabeleceu como “mecanicismo” enquanto viés investigativo da filosofia e orientação programática da ciência.

Na Europa, a tradição artesanal da Idade Média é grande devedora das inovações técnicas do Oriente. Para Stephen. F. Mason (1923-2007), mais especificamente a China concentrou tais inovações desde a Idade do Bronze, por volta de 1.500 a.C., até os primórdios da Modernidade. Vejamos brevemente. Para o professor de Química que se tornou conhecido historiador das ciências britânico, originalmente devidas aos chineses, tivemos a descoberta do efeito orientador do imã (no ano 100 a.C., aproximadamente); a invenção do papel, em 105 d.C., uma técnica que os árabes aprenderam dos chineses no séc. VIII e transmitiram ao Ocidente, isto é, à Espanha, por volta de 1100, e à França, em 1189, onde foi montada a primeira fábrica de papel da Europa Setentrional; prosseguindo, também tivemos a invenção da roda hidráulica horizontal (para fazer funcionar um forno de fundição de ferro, conforme registro do ano 31 d. C.); em 290, a criação da roda hidráulica vertical e com ela um pilão movido à água, um almofariz acionado por um martelo de retouça (tal martelo acionado por rodas hidráulicas, na Europa da segunda metade do séc. XII, foi introduzido no fulling, um processo que envolvia as etapas de lavagem e espessamento do tecido para aumentar a densidade e durabilidade do pano. Aponte-se aqui, Mason não menciona como tal processo pode ter chegado ao Continente Europeu); no séc. V, inventaram o carrinho de mão (e este, assim como a fundição do ferro, surgiu na Europa apenas por volta do séc. XIII. Embora em ambos casos “é provável que tenha havido uma evolução autônoma”, registre-se o pioneirismo chinês); no séc. VII, barcos movidos por rodas providas de pás e acionadas como as rodas dos moinhos impulsionados com os pés, tais embarcações possuíam anteparos à prova d‟água e um leme com cadaste (por sua vez, o leme ajustado ao cadaste na popa de navios “apareceu” na Europa no séc. XIII, ainda que o historiador britânico nem conjecture de onde veio a aparecer tal instrumento); datado de 868, temos Sutra do Diamante como o mais antigo livro que utiliza técnica de impressão tabular do qual se tem conhecimento; já nos séc. X e XI, foi desenvolvida na China a produção da pólvora e, mais especificamente em registro do ano 1040 d.C., foi detalhado o emprego da pólvora em foguetes incendiários (ao passo que, na Europa, sua primeira menção constou em carta escrita por Roger Bacon, em 1249); desde 1086, segundo Mason, consta identificado o uso de um “meio mágico de orientação” – a bússola – que, por volta do ano 1150, já tinha uso constante nas viagens marítimas e terrestres (e, no entanto, com surgimento na Europa apenas no séc. XIII); de 1259, temos a primeira referência a armas de fogo que projetavam balas, mas, desde os ataques mongóis que subjugaram a dinastia chinesa dos

Sung e, em 1214, a captura de uma fábrica de munições naquele país –, “é possível” que a pólvora e as armas de fogo tenham penetrado o Velho Mundo através dos mongóis na campanha europeia iniciada em 1235. O canhão foi citado pela primeira vez em 1325 e ilustrado, em 1327, atirando um projétil com uma ponta de flecha. Ainda a este respeito, enquanto os mais antigos canhões com cilindro e bala de ferro são chineses de 1354, 1357 e 1377, os primeiros europeus de data determinável são de 1380, 1395 e 1410. Com os mongóis, que assimilaram a civilização da China, utilizaram a administração de eruditos já existente (e inclusive a compuseram com árabes do Ocidente em um observatório que instalaram em Pequim), estrangeiros como Marco Polo (1254-1324) tornaram a relação entre Oriente e Ocidente, gradualmente, mais aberta (cf. MASON, 1964 [1962], pp. 53-84). Apesar do leque de invenções práticas, como em outras civilizações que, diferentemente da Grécia antiga e da Europa renascentista, tinham um caráter eminentemente agrícola –, na China, havia culturalmente a distinção entre a tradição teórica (erudita) e a empírica ou experimental. Eis, para Mason (1964, p. 65), (...) o que há de melhor na Ciência chinesa: a especulação combinada com uma certa agudeza de observação. Os chineses nunca ultrapassaram esse ponto. Não conseguiram ajustar teoria com experimentação, pois seus sábios consideravam degradante o trabalho prático.

Ademais, segundo o autor, mesmo após a chegada dos europeus a China “os astrônomos chineses não demonstraram muito interesse pela controvérsia

entre

Copérnico,

Ptolomeu e Tycho Brahe, a eles exposta pelos jesuítas, nos séc. XVI e XVII” (MASON, 1964, p. 66). A este respeito parece-me razoável ponderar, da excelência presumida (pelos eruditos) da atividade especulativa teórica em relação ao trabalho prático, podese inferir apenas que a investigação experimental estivesse disposta a considerar os fatos nos ofícios técnicos e nas respectivas invenções ou descobertas, pois, em si, tal investigação pressupõe uma certa tecno-logos. Acima, quando feita a menção que “havia culturamente a distinção entre...”, ela se refere a registros dos anais da dinastia chinesa dos Tang (618-907) com juízo pejorativo sobre os “charlatães” – como eram descritos pelas „pessoas cultas‟ – os matemáticos, os agrimensores, médicos e mágicos. Na Europa Medieval, o povo germano ocidental dos “bárbaros” teutônicos que invadiram o Império Romano já em queda na primeira metade do séc. V, trouxeram, segundo Mason (1964, p. 79),

O uso de calças ao invés de toga, o consumo de manteiga, em lugar do azeite de oliva, aperfeiçoaram métodos de fabrico do feltro, o esqui e a manufatura de barris e tinas. Mais importante foi a introdução, pelos bárbaros, do cultivo do centeio, da aveia, de uma variedade de trigo, e do lúpulo, do uso do estribo para andar a cavalo e, sobretudo do pesado arado de rodas, que possibilitou o desenvolvimento do sistema dos três campos de cultura sobre o qual se basearia a vida do solar medieval.

No cultivo da terra, o novo arado possibilitava sulcos profundos e regulares, mas, sendo ainda mais pesado que o antigo (não suspenso por rodas) requereu a tração bovina. Predominantemente no decorrer dos séc. X e XI, se tornou comum a tração equina. Outro implemento técnico relevante foi a roda hidráulica vertical (que surgiu, na Europa, em 16 a.C., época semelhante a que ocorreu na China, embora o autor não explique o que teria gerado tal coincidência histórica) e a roda hidráulica horizontal. Então, desde a queda do Império Romano, difundiram-se os moinhos com emprego da pedra para moer e triturar os cereais (a “mó”) impulsionada por força hidráulica. Ainda, de 1180, na Normandia, é datado o primeiro moinho de vento com um eixo propulsor horizontal e pás verticais, “sendo provavelmente uma invenção independente em relação aos moinhos de vento orientais, do séc. X, portadores de eixos propulsores verticais” (MASON, 1964, p. 81). Note-se, o novo arado com tração animal é ilustrado “poupando (...) as energias do lavrador”, assim como a roda hidráulica aplicada a moagem de cereais “poupou esforço humano”. “Essas diversas inovações tiveram como consequência o fato de que a maioria dos homens ficou então aliviada de certa parcela do rude trabalho físico que lhe fora exigido na antiguidade” (MASON, 1964, p. 80; 81). Poder-se-ia acrescentar a Mason, de forma geral, tais inventos foram reelaborando as noções de eficácia e eficiência na cultura, neste caso, principalmente, do camponês Medieval. O sistema dos “três campos de cultura” mencionado pela primeira vez em 765 d.C., gerou produção de grãos e de mantimentos excedente nos feudos que permitiu o desenvolvimento das cidades e do comércio artesanal de tais produtos e proporcionou, entre os séc. XI e XIII, a riqueza necessária as Cruzadas, a construção das catedrais e a fundação das universidades. Desde a cruzada ocidental contra os muçulmanos da Espanha que resultou na conquista de Toledo, em 1085, e da Sicília, em 1091, ambas pelos cristãos, foi se engendrando o que Edward Grant (1996, p. 23) chamou de “A grande idade da tradução” com as versões árabes dos trabalhos filosófico-científicos dos gregos, especialmente de 1125 a 1280. Outra consequência das inovações e aperfeiçoamentos técnicos introduzidos no modo de produção agrícola e no desenvolvimento já acentuado do comércio foi o

“deslocamento dos centros de civilização, do Mediterrâneo para a Europa Setentrional”. No séc. XIII, na esteira da expansão do comércio, o leme ajustado ao cadaste na popa – mencionado antes – e ainda o “gurupés”, um mastro na extremidade da proa do navio que possibilitava a navegação mediante bordejo contra o vento2 e, enfim, a bússola, foram dispositivos mediantes os quais se ampliou o alcance (e até a segurança) do transporte marítimo de produtos. É claro, também contribuíram para diminuir o esforço do trabalho manual, mas, a governantes e seus oficiais, a comandantes e operários tal aparato técnico agregou eficiência para dirigir navios, o que tornou possíveis as grandes navegações europeias. Nas atividades artesanais ligadas ao comércio também houve progressos técnicos. Na arte têxtil, com a “roca” de fiar aperfeiçoada no decorrer do século XIII e a aplicação da força hidráulica ao fulling aumentou o rendimento da fabricação e da exportação de peças de pano e lã. Então, com Hauser (1951, p. 285), os operários têxteis tornam-se um “elo numa complexa engrenagem de investimentos, de rendas financeiras, de riscos de lucros e perdas, de capitais e obrigações”. À parte aqui a “Revolução Industrial”3 da medievalidade, Esse processo [a aplicação da força hidráulica ao fulling] era executado, primeiramente, a mão; na segunda metade do século XII, porém, foram introduzidos martelos de retouça acionados por rodas hidráulicas para o dito efeito. Pouco depois, engenho mecânico idêntico, igualmente movimentado pela água, foi usado para esmagar o anil dos tintureiros e a casca de tanino dos curtidores. (...) No século XIII a mesma força [hidráulica] foi aplicada a serrarias e aos foles das forjas de ferreiros; no século XIV, aos malhos das forjas e às mós, e no século XV às bombas para drenagem de minas (MASON, 1964, p. 82-83).

Na Europa dos séc. XII e XIII, as invenções técnicas estão na esteira do desenvolvimento de uma artesanal mecanização, tal como podemos classificar, voltada 1. à implementos para otimização do trabalho e da produção4; 2. à instrumentos de guerra, dominação e defesa, enfim; 3. à exploração da terra e dos mares quase desconhecidos. Por ora, prossigamos com o mais notável implemento técnico aperfeiçoado no contexto de emergência da explicação “mecanista”.

2

Tal “gurupé”, em sua modalidade mais primitiva, segundo Mason, remonta a “vela latina”, também uma invenção não europeia que o autor não indica o período histórico do primeiro registro, apenas que “foi pela primeira vez pintada em um mural encontrado numa igreja pré-muçulmana da Palestina Meridional e, mais tarde, em uma miniatura bizantina do séc. IX. 3 A este respeito, cf. GIMPEL, J. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. 4 E é razoável incluir, aperfeiçoamentos técnicos conduziram a uma progressiva fragmentação dos ofícios. Por exemplo, aponta Mason (1964, p. 84), “os engenheiros e fabricantes de instrumentos separaram-se dos maquinistas de moinhos e ferreiros; os escultores e artistas, dos pedreiros e decoradores”.

Relógios a água, como a clepsidra, usados desde o Egito antigo, foram melhorados pelos gregos com dispositivos para indicar horas por um ponteiro em uma escala para regular o movimento. Tais relógios, ainda explica o historiador das ciências australiano Alistair C. Crombie (1915-1996), eram trabalhados por uma boia suspensa num recipiente enchido e esvaziado por um mecanismo regulador, e o movimento da boia era transmitido ao indicador, um fantoche – dispositivo inserido por árabes e cristãos latinos medievais –, por meio de cordas e polias (Crombie, 1953 [1952]). Os relógios mecânicos usados em edifícios públicos, mosteiros e catedrais, nos remetem ao séc. XIII, com o registro da construção de 39 deles, entre o período de 1232 a 1370, porém, ainda sem medir o tempo com base no isocronismo do pêndulo – introduzido em 1657 por Christiaan Huygens (1629-1695). Na passagem dos séc. XI-XII, sustenta o medievalista Jacques Le Goff (1924-2014), ao “tempo da Igreja” – pertencente a Deus, eterno, um tempo teológico, escatológico sobremodo ao telos de completar o que Cristo principiou, e linear por direcionar o cristão a Salvação –, contrapôs-se o “tempo do mercador”. Este último, semelhante ao camponês, Le Goff caracteriza pela submissão “durante muito tempo” da atividade profissional “ao tempo meteorológico, ao ciclo das estações, a imprevisibilidade das intempéries e dos cataclismos naturais”, em suma, a ordem da natureza e de Deus. Posteriormente, “quando se organiza uma rede comercial, o tempo torna-se objeto de medida” e de “regulamentação” seja para “o problema dos preços” (quando subir ou descer, aumentando ou diminuindo lucros); para “a duração do trabalho artesanal ou operário”; para a crescente monetarização das relações comerciais (LE GOFF, 1979 [1977], p. 51); para o domínio do câmbio, prefigurando o tempo da Bolsa, e; para o estatuto burocrático das corporações (p. 52). Este tempo do mercador é “mensurável, quer dizer, orientado e previsível, (...) começa a racionalizarse [e] laiciza-se” (p. 52), é “utilizável para as tarefas profanas e laicas” (p. 53), em pleno séc. XIII, é “mecanizado até” (p. 54), é o “tempo dos relógios” (p. 53), nele agem “a inteligência, a habilidade, a experiência e a manha do mercador” (p. 54). Para Le Goff, a Igreja irá, com os Escolásticos, “abrir os caminhos para uma unificação da consciência a este mercador” (p. 56) de que o tempo prático-funcional e o tempo da salvação reúnemse na unidade da sua vida individual e coletiva. Por certo, afirma, “para o mercador, o meio tecnológico sobrepõe um tempo novo” (LE GOFF, 1979, p. 52). No entanto, não há exegese se inferirmos, mais amplamente, está a se sobrepor para toda uma sociedade o tempo vivido a partir do modo de produção, das interações e comportamentos sociais forjados naquele contexto do capitalismo nascente.

Para o estudioso australiano, desde o final do séc. XIII, As mãos que traduziram o tempo em unidades de espaço no mostrador, completavam a substituição do tempo „orgânico‟, crescente e irreversível como experimentado pelo tempo abstrato e matemático de unidades em uma escala, pertencente ao mundo da ciência (CROMBIE, 1953, p.150-151).

Houve, portanto, o que podemos chamar uma gradual dessacralização do tempo desencadeada pelo homem que passou a regulá-lo pelo ritmo do arranjo técnico de pesos, contrapesos, um trem de rodas engrenadas e um mecanismo de escape oscilatório5. A partir do séc. XIV, os relógios, sustentados ou por duas placas ou paletes e uma haste, tiveram sua regulagem por um escapamento tipo vergê com um balanço foliot, além de componentes como a roda tipo coroa dentada e o trem de rodas terminando com o eixo que carregava os ponteiros. Por esta época, a divisão da hora em 60 minutos e do minuto em 60 segundos, tornou-se comum, inclusive a regular o tempo das igrejas, inicialmente as de Paris (Crombie, 1953). E desde o ano 1351, pode nos lembrar a historiadora italiana Chiara Frugoni (2007 [2001]), acoplado ao relógio da catedral de Orvieto, na Itália, temos um autômato – de nome “Maurízio” – em formato de corpo humano acionado pelo mecanismo para bater um sino. Na segunda metade do séc. XVI, artesãos relojoeiros se defrontoram com a necessidade de determinar a longitude, por exemplo, em relação a Greenwich, o que tornou-se possível com a introdução do pêndulo ao relógio: uma sugestão de Galileu em 1582, e mais tarde desenvolvida por Huygens (Crombie, 1953). Por John Harrison, em 1760, que aperfeiçoou o cronômetro de navio, a longitude seria mensurada com precisão (Mumford, 1955 [1934]; Mcclellan & Dorn, 2006). Com Mumford (1955, p. 41), desde o séc. XV, entendo que “o aumento no número e tipos de máquinas, moinhos, armas, relógios e autômatos realistas deve ter sugerido atributos mecânicos para o homem e as analogias do mecanismo ao mais sutil e complexo fato orgânico” – a vida. Neste sentido, em O Mundo ou Tratado da Luz (1629-1633), nos Princípios da Filosofia (1644) e sobremodo no Tratado sobre o Homem (1648), o protótipo do relógio ou do autômato como metáfora da explicação mecanista não é simplesmente criação de Descartes, mas é abstraída por ele a partir da emergente visão do mundo físico no qual podemos intervir tecnicamente e que devemos apreender racionalmente. De fato, 5

Embora o historiador norte americano Lewis Mumford (1934), Crombie (1952) e Mason (1962) não o façam, com James Edward Mcclellan e Harold Dorn (2006, p. 133), mencione-se que “em 725 um artesão-engenheiro chinês, Liang Ling-Tsan, inventou o escapamento mecânico, o dispositivo chave de regulação em todos os relógios mecânicos”.

Descartes é mais medieval do que usualmente atribuem

Bertrand Russel (1912; 1945),

A. N. Whitehead (1929) e muitos historiadores da Filosofia que operam um corte histórico exageradamente emancipador de Descartes do seu tempo e retratam “o fundador” ou “o pai” da filosofia moderna de uma forma excessivamente secularista6. 6

Consideramos John Cottingham (2008) mais prudente ao referir-se a Descartes não com o artigo definido “o” para “fundador” ou “pai”, mas como “um dos inauguradores da ciência moderna” (grifo nosso). Logo adiante, conclui ele deixando-nos uma advertência sutil: “a visão pode não ser tão „Moderna‟ como seria de esperar de um pensador que é muitas vezes chamado o pai da modernidade; mas permanece, apesar de tudo, uma visão inspiradora do que um sistema filosófico, fundamentado na crença religiosa, pode aspirar a articular” (Cf. COTTINGHAM, 2008, p. 300). A imagem cartesiana do mundo é inconcebível – tal como se propõe ao filosofar – sem um “apelo a Deus” (COTTINGHAM, 2008, p. 289). Sob diferentes ângulos, John Cottingham (2008) e Ferdinand Alquié (1987; 2011) já alertaram que as imagens do Descartes “arquétipo do metafísico racionalista”, “epistemólogo” ou uma espécie de „protocientista‟, com frequência, tem produzido interpretações excessivamente secularistas. Cottingham (2008, p. 289) chama a atenção que “a natureza e a existência da Divindade é algo que está no coração de todo o seu sistema filosófico - algo sem o qual seria totalmente irreconhecível”. Por sua vez, Alquié (2011, p. 61) chamou a atenção para o dogmatismo histórico ou científico – de “historiadores da filosofia”, como diz – que reduz a metafísica a um fim exterior a si mesma de ser “evidência superior” por um “suposto desejo de Descartes justificar o seu sistema científico”. Desde 1987, o francês já argumentara na mesma direção. Resumidamente, afirmou, “o conhecimento de Deus não é, porém, em Descartes, um fim em si mesmo. Ele é o fundamento da ciência. Eis porque, depois de haver alcançado Deus, a metafísica cartesiana cuida de retornar ao mundo” (ALQUIÉ, 1987, p. 42). Apenas para citar as obras científicas que versam mais detidamente (digo “mais detidamente” porque mesmo no Discurso do Método e nas Meditações há a metáfora do mundo e dos corpos animais como um autômato ou máquina) sobre o mundo físico “mecânico”, a posição fundamental que Descartes atribui a Deus também consta em O Mundo ou Tratado da Luz (1909 [1629-1633]). Nesta obra, Descartes (1909, AT XI, p. 38) propõe suas leis do movimento “segundo a qual se deve pensar que Deus faz atuar a natureza neste mundo novo” (grifo nosso). Este Deus – “primeiro motor imóvel” é o Senhor do “tempo da Igreja” medieval de que nos fala Le Goff – criou a matéria, e apenas desde que ela começou a se mover, o universo corpuscular constituiu mudanças e a diversidade de seus movimentos pelo atrito de partículas. E parece-me que, à medida que mergulhamos na obra de Descartes e nos afastamos de sua poluição por interpretações excessivamente secularistas, não conseguimos destilar cristalinamente a ciência cartesiana do legado da Escolástica. Em relação a A. C. Crombie, o “mais eloquente e absoluto defensor” da concepção de continuidade histórica contrária a interpretação de seus períodos por divisões “categóricas e radicais” –, o historiador da ciência Alexandre Koyré (1892-1964) considera que “não se deve (...) abusar do argumento da continuidade” (KOYRÉ, 2011 [1973] p. 7) ao analisar a relação entre a ciência medieval dos séc. XIII e XIV e a ciência Moderna do séc. XVII. Embora elogie a “brilhante” – para mencionar um entre os adjetivos de Koyré – contribuição de Crombie ao conhecimento da história e do pensamento medievais, para o estudioso francês de origem russa, a ciência de Galileu e de Descartes “não é o produto de engenheiros ou de artesãos, mas de homens cuja obra raramente ultrapassou o domínio da teoria” (p. 166), ainda que tenha sido “extremamente importante para o engenheiro e o técnico”, ao passo que “ela provocou uma revolução técnica” (p. 166 n.6). Entretanto, reconhece Koyré, “é verdade que os artistas, engenheiros, arquitetos etc. da Renascença desempenharam um papel importante na luta contra a tradição aristotélica, e que alguns deles – como Leonardo Da Vinci e Benedeti – procuraram até desenvolver uma dinâmica nova, antiaristotélica” (p. 166-67 n.7). E ainda, “seguramente, é verdade que uma tradição ininterrupta se faz presente desde as obras dos nominalistas parisienses [do séc. XIV] até às de Benedeti, Bruno, Galileu e Descartes” (p. 171-72). Porém, contra o que conclui Duhem em seu texto de 1959, Koyré afirma que a ciência moderna “não segue a inspiração dos „precursores parisienses de Galileu‟”, pois, desde a segunda metade do séc. XVI, “o verdadeiro precursor da física moderna” foi Arquimedes (p. 172). Inequivocamente, e até Koyré um reticente com os defensores da continuidade na evolução da ciência Medieval à Moderna e que tem minimizado ou negado o caráter revolucionário da última, concordaria –, com base nas obras científicas, da tradição artesanal, Descartes estima com valor a experimentação e a técnica necessárias nos procedimentos de dissecação e vivissecção seja na Medicina e na Fisiologia. Explicitamente, no seu Tratado sobre o Homem as descrições de Descartes recorrem a Alquimia medieval de viés teleológico que extrapolam suas leis da mecânica, o que também deve alertar historiadores para outro aspecto: o “mecanismo” cartesiano não é tão materialista quanto reivindica ser.

Considerando a prioridade dada até o momento aos desenvolvimentos técnicos do medievo, o que podemos reter por uma noção de “técnica”? Muito depois da China e dos “bárbaros” mongóis e árabes –, a crescente mecanização desencadeava, na Europa Setentrional, uma mudança de percepção sobre a “techne” advinda da Antiguidade. Gradualmente, transformar-se-ia o modo de produção ao se desenvolverem habilidades tecnológicas – agora não mais estritas a atividades práticas, mas, também intelectuais – incorporadas ao manuseio de tais invenções. Com o professor de Filosofia norteamericano, Val Dusek (2006, p. 84), não desejo incorrer em um “determinismo tecnológico” (“puro”), para o qual “tecnologias causam ou determinam a estrutura do resto da sociedade e da cultura”. Diversas passagens dos textos de Carus-Wilson (1941), Lennard (1951), White (1962), e outros, reproduzem tal forma de determinismo. A guisa de exemplo, segue o excerto abaixo: Na Inglaterra, durante o século XIII o fulling mecânico do tecido, em vez do método mais antigo de fulling com a mão ou o pé, foi decisivo para mudar o centro de produção têxtil da região sudeste para a noroeste onde a força hidráulica era mais facilmente disponível (WHITE, 1962, p. 89).

Claramente, perceba o leitor, neste exemplo, o desenvolvimento técnico é ilustrado independentemente da tessitura histórico-cultural da sociedade enquanto “decisivo para mudar o centro de produção...”, i. e., como “a” causa da alteração no arranjo produtivo sem nem mencionar o último como um aspecto da cultura. Para avaliar a relação entre tecnologia e cultura no medievo, afirma Dusek, Devemos aplicar o determinismo tecnológico e o determinismo cultural, sob uma base caso-a-caso. Em algumas situações, as técnicas e aspectos físicos da tecnologia propagam grandes mudanças na cultura. Em outras situações, as orientações culturais e valores de sociedade direcionam e selecionam o desenvolvimento de tecnologias. Na maioria dos casos, existe um feedback inextrincável da tecnologia para a cultura e da cultura para a tecnologia (DUSEK, 2006, p. 85).

Em outras palavras, “cultura” (o contexto histórico no qual ela se desdobra) e tecnologia estão em uma relação mútua e horizontal. O “feedback inextrincável” a que se refere Duzek, provavelmente, foi adotado de Joseph C. Pitt (2000). Pitt parte da definição “tecnologia é a humanidade em trabalho” e contextualiza-a conduzindo a um modelo de tecnologia como um processo de transformação de input / output de “primeira ordem” e

de “segunda ordem”7, distingue “processos mecânicos, sociais e de tomada de decisão” e completa seu “modelo” com um “terceiro ingrediente” que é o “feedback de avaliação” (PITT, 2000, pp. 13-14). Para ele, a “avaliação tecnológica” é um tipo de tomada de decisão no qual os efeitos da implementação das decisões de “primeira ordem” são iluminados por meio de um mecanismo de feedback que torna possível melhorar (ou atualizar) a base de conhecimento para tomada de decisão adicional (PITT, 2000, p. 15). Voltando-nos ao excerto de Duzek (acima), para avaliar a relação entre tecnologia e cultura no medievo, em alguns contextos, será acertado o enfoque segundo o qual o(s) implemento(s) e ou dispositivo(s) técnico(s) transforma até o modo de produção de sociedades8, em outros, será útil uma abordagem voltada as demandas contextual e socialmente reconhecidas tal como desafiam à criação de solução tecnológica e sua “seleção” / adoção social. Então, se tomamos Pitt, a meu ver, o crescimento da inventividade técnica na Idade Média ao tornar latente a substituição da força braçal por formas de energia (por exemplo, animal e hidráulica) atenuando o esforço humano; ao potencializar a capacidade humana de dominar e defender territórios, e; ao tornar mais precisa a „visão‟ exploradora de homens em terras e mares, entre outros, tais efeitos se retroalimentavam pelo feedback de avaliação da cultura que, por sua vez, estabilizou “a máquina”, pois, uma vez moldadas, as máquinas transformavam a forma de vida no campo, nos reinos e nas cidades. Com Mumford (1955, p. 12), a máquina “irá abarcar o conhecimento, as habilidades e artes derivadas da indústria ou implicadas nas novas técnicas, e incluirá várias formas de ferramenta, instrumento, aparelhos e utilidades, bem como máquinas propriamente”. Sem aqui mitificar “a máquina”, esta noção de Mumford pode ser útil como correlato para o produto do trabalho humano que não tinha como finalidade a subsistência, mas, sim, servir e potencializar a capacidade transformadora do homem. E ainda, a “arte Mecânica” e ou “técnica” envolve a habilidade para a forja da matéria em objeto útil e esta, cada vez mais, é indissociável do conhecimento e aplicação prática da arte (“liberal”) de calcular por parte de artesãos. Prosseguindo, no ano de 1276 a fabricação do papel chegou à Itália, em 1391, à Alemanha e, em 1494, à Inglaterra. E a imprensa, “é provável que os mongóis dela 7

Sendo que, o conhecimento é parte do input e alcançar um resultado prático é o output. “Decisões” ou “deliberações” usando um conhecimento já estabelecido são transformações de primeira ordem, “dispositivo(s) construído(s)” ou “máquinas” são transformação de segunda ordem. 8 Dusek (2006) destaca, por exemplo, o prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859) de Karl Marx e ainda outras passagens nas quais é possível constatar o seu determinismo tecnológico.

trouxessem descrições e talvez amostras de impressão chinesa para a Europa”. Mais assertivamente, diz-nos o autor, Johannes Gutenberg (1398-1468), “aperfeiçoou o primeiro método moderno de impressão, entre 1436 e 1450” (MASON, 1964, p. 83). Claro, trata como aperfeiçoamento por ela ser indissociável de um processo histórico que remonta a primeira escrita impressa com blocos de madeira, efetuada em Ravena, em 1289, e a passagem para o tipo móvel e metálico a qual foram encontrados exemplares em Limoges, em 1381, Antuérpia, em 1417, e Haarlem, em 1435. O impacto cultural do método moderno de impressão esteve em disseminar as literaturas em línguas vernáculas (principalmente o latim), bem como as referentes às práticas, às técnicas e à investigação experimental, registrando e valorizando a experiência da tradição artesanal. Neste ponto, a partir das próprias palavras de Mason (1964), podemos questioná-lo criticamente: se “o reflorescimento da cultura, na Idade Média, foi contemporâneo aos outros notáveis progressos dos séc. XI e XII” (p. 87), tal re-florescimento não é indicativo de que a tradição erudita não permaneceu “em grande parte isolada da tradição artesanal durante toda a Idade Média”? (p. 92). Com Crombie, considero que, de fato, ciência e técnica “não estiveram em nenhum período totalmente divorciadas e sua associação se tornou mais íntima com o passar do tempo” (1953, p. 143, grifo nosso). Tal afirmação sustenta-se sob a constatação da longa série de trabalhos médicos, incluindo-se a prática de dissecação para autópsias e estudos de Anatomia, que foram escritos desde os primeiros monastérios beneditinos, no séc. VI, sem interrupção até o séc. XVI e a Modernidade9; tratados sobre astronomia, desde o séc. VII, com Bede, a determinar a data da Páscoa, a consertar a latitude e mostrar como determinar a direção Norte e contar o tempo com um astrolábio (este, por sua vez, mereceu um tratado prático feito por Geoffrey Chaucer, no séc. XIV); uma outra série de trabalhos sobre a preparação de pigmentos outras substâncias químicas que incluíram no séc. VIII Compositiones ad Tigenda e Mappa Clavicula, dos quais, Adelardo de Bath mais tarde produziu uma edição, no séc. XII, o Schedula Diversarum Artium de Teófilo “o Presbítero”, o Liber de Compositione Alchemiae, traduzido por Robert de Chester e a partir do qual a alquimia Árabe começou a entrar na Europa ocidental, no período tardio do séc. XIII, Liber de Coloribus Faciendis por Peter de Saint Omer, e no começo do séc. XV, tratados de Cennino Cennini e John Alcherius (CROMBIE, 1953). 9

Para Crombie (1953, p. 144), este “é um dos melhores exemplos de uma tradição na qual observações empíricas foram aumentando combinadas com tentativas de explicação racional e teórica com o resultado de que problemas médicos e cirúrgicos definidos, foram resolvidos”. Sobre o breve, mas rico e instigante, relato concernente à história da Medicina no Ocidente a partir do séc. XI, ver Crombie, 1953, p. 197-211.

Claramente, tais tratados técnicos estiveram baseados em observações, descobertas a partir de experimentação manual e, de acordo com Crombie (1953, p. 144), foram “os primeiros a serem traduzidos do árabe e grego para o latim”. Resumidamente, em relação a tais traduções, Mason (1964, p. 87-88) destaca o Almagesto, de Ptolomeu, em 1175; a partir dos laços comerciais entre Sicília e África Setentrional, os escritos matemáticos de Leonardo Fibonacci (1170-1250) que publicou, em 1202, o seu Liber Abaci; dos trabalhos sobre a Biologia de Aristóteles, estes traduzidos em 1220 pelo escocês Michael Scot (1175-1232) e, posteriormente, todas as obras do filósofo grego; e ainda, os escritos árabes sobre a Alquimia e as obras de Medicina traduzidas por Constantino “o africano” (a saber, menciona Crombie, Ars Medicine e Therapeutics). Ao leitor, no desenrolar das narrativas históricas de Mason e Crombie a partir da entrada de invenções e aperfeiçoamentos técnicos chineses e árabes na Europa Ocidental, comparada a de Mason (1964), a reconstrução de Crombie (1953) é mais rica em detalhes. Tal constatação se estende a atenção dada pelo estudioso australiano às diversas artes (ciências) que, sobremodo a partir do séc. XII, tiveram obras traduzidas. Já percorremos a esteira dos desenvolvimentos técnicos e a noção de “técnica” em relação à cultura na medievalidade. Agora, uma breve incursão sobre o status quo da Mecânica no período dos séc. XII-XV, pode ser útil, se não tanto como sabidamente a tivemos como disciplina aristotélica, mas, sim, enquanto gradualmente foi se estabelecendo como imagem do mundo.

3. Dois personagens: Jordanus Nemorarius e Leonardo Da Vinci Da Antiguidade grega até o séc. XIII, o corpus da Mecânica esteve baseado sobretudo na Física de Aristóteles, pelas conhecidas “teoria do movimento” (“local”) e “teoria da queda dos corpos”, e na obra Mecânica, atribuída a este autor no medievo, mas, atualmente, não reconhecida como tal. Também Arquimedes tornou-se conhecido. “No séc. XIII”, afirma Crombie (1953, p. 83), “não foi a Dinâmica, mas a Estática e em alguma extensão a Cinemática, isto é, o estudo das taxas de movimento, que realizou os desenvolvimentos mais marcantes”10, particularmente com a escola de Jordanus Nemorarius (1197-1237). No seu Elementa Super Demonstrationem Ponderum,

10

Embora Crombie aponte, as ideias da Dinâmica e Estática não estavam claramente separadas à época.

o

matemático tentou justificar os axiomas usados por Aristóteles11 para provar a “Lei da Alavanca”, segundo a qual “pesos iguais a distâncias iguais do fulcro estavam em equilíbrio” (CROMBIE, 1953, p. 84-5). Para tanto, ele fez uso de um novo axioma que, devido à originalidade destacada por Pierre Duhem (1905), tornou-se conhecido sob a alcunha „axioma de Jordanus‟: “tudo que pode elevar um dado peso a uma dada altura pode também elevar um peso k vezes mais pesado a uma altura k vezes menor” (DUHEM, 1905, p. 358). Em Estática, “este é o germe”, afirma Crombie (1953) que adota o relato duhemiano, do “princípio de deslocamentos virtuais”. Com a aplicação da ideia aristotélica (contida na Mecânica) de “composição dos movimentos” para o movimento de um corpo em queda ao longo de uma trajetória oblíqua, Jordanus mostrou que a força pela qual o corpo foi movido a qualquer momento dado poderia ser dissociada em duas, a da natural gravidade em direção ao centro da terra e a da violenta força horizontal de projeção. Mostrou também que quanto mais oblíqua a trajetória, esta é mais próxima em relação à horizontal, e menor é a “gravidade relativa a posição”. Em De Ratione Ponderis, atribuída a um discípulo de Jordanus a quem Duhem chamou “Precursor de Leonardo”, as ideias do primeiro foram aplicadas ao problema da alavanca angular12 e dos corpos em planos inclinados. Então, de fato bem antes de Simon Stevin (1548-1620) e Galileu, já a escola de Jordanus concluiu que “se dois pesos descem sobre planos de inclinação diferente e os pesos são diretamente proporcionais aos comprimentos dos declives, estes dois pesos terão a mesma força motriz nas suas descidas” (DUHEM, 1905, p. 146). Em suma, Duhem (1905) e Crombie (1953) consideram Jordanus e sua escola o elo entre ciência Física e a Mecânica grecoalexandrina a Da Vinci e os primórdios da ciência Moderna. Mas, algumas ponderações são necessárias para tornar mais proveitosa tal abordagem continuista acumulacionista. Na Renascença, hábeis artistas-engenheiros como Sandro Botticelli (1445-1510), Leonardo Da Vinci (1452-1519) Aberto Dührer (1471-1528) e Michelangelo (14751564) foram se distinguindo por estudar e registrar experiências desde a Anatomia humana, pela prática de dissecações, a Óptica com Botticelli e Dührer (e ainda o último, com a observação dos corpos celestes que também Leonardo o fez). Nestes protagonistas, a representação de um tempo de assimilação da cultura dos eruditos e 11

Dentre eles, o conhecido como “axioma de Aristóteles”, conclui: “a força motriz é medida pelo produto do peso do corpo movido multiplicado pela velocidade imprimida sobre ele” (CROMBIE, 1953, p. 83-4). 12 Em relação a qual ele “mostrou, novamente com o princípio dos deslocamentos virtuais (pelo menos implicitamente), que o equilíbrio foi alcançado quando o vértice do triângulo formado pela junção do ponto de apoio a cada peso, estava no topo” (CROMBIE, 1953, p. 86).

desenvolvimento do caráter experimental do método científico, antes da tradição teórica atingir concepção análoga relativa ao papel dos processos empíricos na Ciência. Voltemo-nos a figura tão representativa e a um brevíssimo esboço das contribuições de Leonardo, mais especialmente, a Mecânica. Em relação à genialidade de Leonardo – discutida apenas se teve acesso e foi influenciada por pensadores antigos e medievais, e a influência posterior de sua obra –, de fato, parece-nos mais ponderada a posição de Dugas (1953), Hooykaas (1953) e Koyré (1953; 2011 [1973]) para os quais o renascentista não foi um iletrado e deve mesmo ter sido um leitor, mas não como o retratou Duhem13 (e Crombie adotou tal posição). Ao incorporar a descrição de George Sarton (1948), Koyré retrata Leonardo como então “um engenheiro-artista” (2011, p. 104); “um homem da práxis, isto é, um homem que não constrói teorias, mas, objetos e máquinas” (ibid., p. 105); um “inventor” (ibid. p. 107); de “atitude quase pragmática diante da ciência” vista não como “objeto de contemplação, mas instrumento de ação” (ibid., p. 105), ainda que não fosse um empirista a subestimar o valor da teoria14. Assim, por exemplo, a matemática (geometria), é principalmente dinâmica voltada a buscar soluções práticas. O francês René Dugas (1897-1957), mais conhecido como historiador da Mecânica, descreve Leonardo como “amador talentoso”, que tinha “lido e meditado sobre os escolásticos que o precederam”, de “imaginação ousada” e um “autodidata por excelência” (1957 [1955], p. 72), ainda que excertos do autor permitam a ressalva de cunho duhemiano no sentido de não considerá-lo por excelência15 um autodidata. O relato de uma continuidade parcial do legado de Leonardo (sobremodo em relação à Escola de Jordanus) como apresentado por Dugas não se coloca em colisão com o de Duhem e o primeiro até recorre ao último, em alguns momentos.

13

A respeito da discussão se Leonardo foi ou não um gênio isolado, é interessante a análise de Amélia de Jesus Oliveira (2016) acerca das posições dos participantes do colóquio realizado em Paris, de 4 a 7 de julho de 1952, em comemoração ao V centenário do nascimento de Leonardo da Vinci, e que resultou no livro Léonard de Vinci et l'expérience scientifique au XVIe siècle. Considerando que no evento a referida discussão ocorreu à luz da obra de Duhem Études sur Léonard de Vinci: ceux qu'il a lus et ceux qui l'ont lu (1906; 1909; 1913), Oliveira (2016, p. 70) divide os estudiosos em 03 grupos: “para Michel, Santillana e Sergescu, por exemplo, Leonardo certamente leu muito; para Dugas, Hooykaas e Koyré, Leonardo certamente não era um iletrado e deve ter realmente sido um leitor, mas não (...) „um rato de biblioteca saciado da escolástica‟ (DUGAS apud OLIVEIRA, 2016)” tal como o exposto por Duhem (Op. Cit.). 14 Ao contrário, em tese, ele exalta o proceder teórico. No entanto, tal exaltação não ultrapassa o “dom de intuição”, que lhe permite contornar a falta de formação teórica, “mas não pode fazer uma dedução correta a partir de princípios dos quais tem uma percepção instintiva” (KOYRÉ, 2011, p. 106). 15 Por exemplo, ao explicar o conceito de “momento estático”, conclui Dugas (1957, p. 73) “isto pareceria aqui que ele [Leonardo] tinha lido os estatistas do séc. XIII”, notadamente, a Escola de Jordanus.

O italiano aplicou a ideia de momento (estático) “de uma forma mais completa para um corpo pesado girando sobre um eixo horizontal”, por exemplo, para uma alavanca nb girando sobre um ponto n (Fig. 1), Leonardo declarou: “a razão da distância (comprimento) mn para a distância nb é tal que ela é também a razão do peso em queda a d para o (mesmo) peso a posição b” (DA VINCI, 1890, Ms. E, fol. 72). Mesmo com “alguns argumentos um tanto estranhos”, “esboçou a solução” para o problema do movimento de um corpo pesado sobre um plano inclinado, mas “nunca lhe deu uma forma final”16 e “certamente parece” que Leonardo não estava consciente da Fig. 1

solução dada por seu alegado “Precursor”. Isto não lhe tira o

“mérito” e a originalidade de ter observado “que um corpo pesado uniforme que cai obliquamente divide seu peso em dois aspectos diferentes, ao longo de uma linha bc e ao longo de uma linha nm” (Fig. 2). Prosseguindo, mediante o conceito de “momento”, Leonardo propôs uma “resolução de forças” (“internas” e “externas”). Para tanto, “ao menos implicitamente”, usou a regra segundo o qual “no que diz respeito a um ponto tomado sob um dos componentes de uma força, o momento do outro componente é igual ao momento da força total com respeito ao mesmo ponto”17 Fig. 2

(DUGAS, 1957, p. 75). Reconciliou as doutrinas do ímpeto

de Jean Buridan (esta Leonardo veio a conhecer por intermédio de Alberto da Saxônia) e Nicolau de Cusa a fim de explicar a “energia” ou “forza” de corpos moventes, embora por teses que em suas qualidades ainda estão “mais metafísicas do que positivas”. Leonardo “negou a possibilidade de movimento perpétuo, alegando que a forza gasta-se continuamente” ao passo que “a gravidade busca produzir equilíbrio, todo movimentos que estão em andamento pela gravidade tem o descanso como fim último” (cf. DUGAS, 1957, p. 76-79). Considerando duas torres ABIQ, CDLK em retidão contínua erguidas paralelamente uma a outra a partir das bases AB, CD, na Terra, Leonardo conjecturou uma teoria do centro de gravidade ao predizer que elas cairão para baixo em direção

16

Neste ponto, que seja verdade que Leonardo reproduziu e repetiu as leis da potência, de Aristóteles, Dugas (1957, p. 74) é reticente quanto à interpretação de Duhem para o qual Leonardo “imediatamente aplicou a relação de velocidades a potências – ou seja, aos aparentes pesos de um dado corpo sobre planos inclinados diferentes – e que ele chegou, desta forma, a lei acurada que nós hoje aceitamos”. 17 Ainda que – e Dugas agora concorda com Duhem – quando Leonardo desenhou uma figura oposta, ele chegou a postulados que denotam uma certa “confusão de ideias” (ver DUGAS, 1957, p. 76).

uma a outra se as verticais (B e C) do centro de gravidade passarem para fora da base18 (Fig. 3). Em seu Tratado de Pintura, aplicou tal ideia para o voo dos pássaros que, mesmo sem o bater das asas, movem-se: “qualquer corpo que se move por si mesmo o fará com maior velocidade se o seu centro de peso for ainda deslocado a partir do seu centro de apoio” (DA VINCI, apud DUGAS, 1957, p. 81), isto é, distante a partir do meio da extensão das suas asas. Em relação à queda dos corpos, Leonardo ainda declarou-se a favor da correta lei da velocidade v = kt, no entanto, por acreditar que “um corpo pesado que cai livremente adquire uma unidade de movimento em cada unidade de tempo e uma unidade de velocidade para cada unidade de movimento” (DA VINCI, 1890, Ms. M, fol. 45), ele Fig. 3

estava

enganado sobre a lei de distâncias. Em Hidrostática, como

os antigos, Leonardo lançou-se a explicar as nascentes de água no topo de montanhas. Como Alberto da Saxônia em seu comentário a obra Meteoros de Aristóteles, a explicação se ampara em uma analogia especulativa („ingênua‟, diria um „contemporâneo‟) com a natureza do calor no corpo humano, Leonardo apresentou uma formulação completa da lei do fluxo de correntes. Para ele, “todo o movimento de água de largura e superfície uniforme é mais forte a um lugar do que a outro, conforme a água é menor em profundidade lá do que na outra” (DA VINCI apud DUGAS, 1957, p. 82), o que reconhece que os líquidos transmitem pressão e até que o trabalho realizado pelo motor é igual ao feito pela resistência. E com Duhem, continua Dugas, “Leonardo também esboçou uma teoria de bombas hidráulicas no seu escrito Del Moto e Misura Dell'acqua no qual uma dica ao princípio de Pascal pode ser descoberta”. Por fim, Dugas transcreve passagem que evidencia o que “Duhem buscou incansavelmente” sobre a posição de Leonardo contra a hipótese geocêntrica: “Porque a Terra não está ao centro do círculo do Sol nem ao centro do mundo, mas sim ao centro dos seus elementos que acompanham ela e com os quais ela está unida” (DA VINCI, 1890, Ms. F, fol. 41). Sob a influência das ideias de Alberto da Saxônia, escreveu sobre a Terra, que há uma tendência dos corpos pesados para baixo ou “para as coisas que estão a uma altura, caírem” e que “assim” [thus] (em relação de „consequência‟) “o Mundo se

18

A partir destas pegadas, rastreia Dugas (1957, p. 80), “isto é, implicitamente, o agora clássico teorema do polígono de sustentação, mas contém o erro, comum a todos os Escolásticos, que a convergência das verticais não tenha sido negligenciada”.

tornará esférico e, em consequência, será completamente coberto com água” e “a Terra será inabitável” (DA VINCI, 1890, Ms. F, fol.70). O princípio de trabalho da alavanca, o italiano também utilizou para o desenvolvimento da teoria de polias e outros aparelhos mecânicos. Como resume Koyré (2011, p. 107), o Leonardo “inventor” concebeu Máquinas de guerra e máquinas para a paz, carros de assalto e máquinas perfuratrizes, armas e gruas, bombas e teares, pontes e turbinas, tornos para fazer parafusos e para polir as lentes, palcos giratórios para espetáculos de teatro, prensas para imprimir e rolamentos sem fricção, veículos e embarcações que se moviam por si mesmos, submarinos e máquinas voadoras, máquinas destinadas a tornar mais fácil o trabalho dos homens e a aumentar seu bem-estar e seu poder.

Se, no entanto, ressalva Koyré, “não há nenhuma certeza de que tenha construído uma única delas”, de fato, a partir da sua “arte de engenheiro” (que “é sempre a de um geômetra”) em seus projetos técnicos a Mecânica delineia-se ciência das máquinas (id., Ibid., p. 107). Claramente, ainda que haja um primado da empiria, penso, ela não é horizonte cego ao olhar teórico: a engenhosidade de Leonardo é a de ser um tecnólogo experimentador que especula. Como destacado representante de uma ciência ativa e operativa, Leonardo, que assimilou a cultura dos eruditos, realmente pode se posicionar como um divisor de águas a erigir o status das “artes mecânicas”, embora no séc. XV estas últimas já estivessem menos depreciadas em relação às “artes liberais”. Entretanto, se homens pioneiros podem mudar sua cultura, inegavelmente, são afetados (mais ou menos) pelos valores e crenças partilhados nela. Neste sentido, as narrativas históricas contemporâneas acerca da explicação mecanista não podem mais tangenciar a investigação da instituição crucial por disseminar tal forma de explicação: a educação.

4. Epílogo: a Mecânica na educação dos instruídos e na cultura

Prossigamos com o interessante (mas, não imune a ressalvas) relato de Crombie de modo a rastrear a vinculação da ciência as artes, o que sustentou a emergência da visão mecanista sobre a natureza. Para Crombie (1953, p. 146), Uma das razões para esse interesse dos instruídos na técnica pode ser encontrado na educação que receberam. O manual popular sobre as ciências de Hugo de São Victor [1096-1141], Didascalicon de Studio Legendi, mostra que, até o século XII, as sete artes liberais tinham sido ampliadas e especializadas de modo a incluir vários tipos de conhecimento técnico. Os

temas matemáticos que formam o quadrivium tinham, é claro, um objetivo prático pelo menos desde o tempo de Bede, mas a partir do início do séc. XII havia uma tendência para o aumento da especialização. No Didascalicon, Hugo de São Victor seguiu uma versão modificada da classificação da ciência na tradição vinda desde Aristóteles e Boécio; ele dividiu o conhecimento em geral em teoria, prática, mecânica e lógica.

Sem incorrer em um determinismo cultural, no entanto, pode ser um erro ignorá-lo se ele nos levar a questionar: a supracitada ampliação das artes liberais de modo a incluir vários tipos de conhecimento técnico, não se configura, no séc. XII, como um processo de acomodação social consequente do sucesso de invenções técnicas que transformavam a vida dos homens e do avanço da Mecânica? E ainda, ganharia a Mecânica status de disciplina científica se não estivessem legitimados e estabilizados os alguns avanços? Mumford (1955, p. 4) daria resposta instigante: “não devemos meramente explicar a existência de novos instrumentos mecânicos: devemos explicar a cultura que foi preparada para usar eles e se beneficiar deles”. Mais especialmente, agora irei me debruçar sobre o recorte cultural da educação e o status da Mecânica nos séc. XII-XV tal como, gradualmente, se legitimou e se estabilizou a explicação mecanista como “nova” imagem do mundo. Do séc. XII, o relato “pseudo-histórico19” de São Victor exposto por Crombie inclui sete artes formando a “„adulterina‟ ciência da Mecânica”: a da fabricação de pano e de armas, da navegação, a que ministrava as necessidades extrínsecas do corpo, a agricultura, a caça, a medicina e a ciência das performances teatrais, que ministrava as necessidades internas. Tais artes surgiram “em resposta às necessidades humanas como um conjunto de práticas costumeiras que foram posteriormente reduzidas a regras formais” (CROMBIE, 1953, p. 146). Note-se aqui, o adjetivo não usual “adulterina” [adulterine] nos indica o estágio de marginalidade das artes mecânicas, talvez por insistirem no „pecado‟ de corromper os cânones da episteme, da Patrística e Escolástica. Como São Victor, também no séc. XII, De Divisione Philosophiae, de Domingo Gundisalvo, parte da distinção entre teoria e prática, porém, sob viés mais aristotélico quanto à primeira. Comum ao relato de São Victor, com respeito às artes mecânicas, Gundisalvo também ressalta o seu papel sob um viés que podemos considerar operativo-transformador da matéria em utilidade para a vida, o que me parece, gradualmente contribuiu para uma secularização do conceito de “substância” que se tornou mais claramente perceptível em Descartes. E tal matéria poderia vir tanto de 19

Embora Crombie não esclareça o sentido da terminologia “pseudo-histórico”, a tomo como a visão do autor a que Crombie se refere tal como ela se desdobra em uma narrativa subjetiva de fatos históricos.

coisas animadas, por exemplo, madeira, lã, linho ou ossos, ou de coisas inanimadas, por exemplo, ouro, prata, chumbo, ferro, mármore ou pedras preciosas. Na perspectiva de Gundisalvo, descreve Crombie (1953, p. 147), Para cada uma das artes mecânicas correspondia uma ciência teórica que estudava os princípios básicos que a arte Mecânica colocava em prática. Assim, a aritmética teórica estudou os princípios básicos de números usados no cálculo pelo ábaco, como no comércio; a música teórica estudou as abstratas harmonias produzidas por vozes e instrumentos; a geometria teórica considerou os princípios básicos colocadas em prática nos corpos de medição, no levantamento e na utilização dos resultados da observação dos movimentos dos corpos celestes com o astrolábio e outros instrumentos astronômicos; a ciência dos pesos considerou os princípios básicos do equilíbrio e da alavanca. Finalmente, a ciência dos „dispositivos matemáticos‟ converteu os resultados de todas as outras ciências matemáticas para fins úteis, para a pedra de alvenaria, para instrumentos de medição e levantamento de corpos, para instrumentos musicais, ópticos e de carpintaria.

Já no séc. XIII, este relato acima encontrou eco nos tratados de Michael Scot, tal como sintetiza Crombie (1953, p. 148), Para diferentes ramos da „física‟ teórica corresponderam ciências práticas tais como a medicina, a agricultura, a alquimia, o estudo de espelhos e de navegação; aos diferentes ramos da matemática teórica corresponderam artes práticas tais como negócios preocupados com o dinheiro, a carpintaria, a ferraria e pedra de alvenaria, a tecelagem e a fabricação de calçados.

Para o historiador australiano, Scot “decidiu que cada uma das ciências práticas foi relacionada a uma ciência teórica e foi a manifestação prática da ciência teórica correspondente”. Aqui, considero exegéticos os termos de Crombie. Mais apropriado teria sido falar em termos de um esforço por correlacionar cada teoria a respectiva arte prática que está sob seu domínio de modo a tornar a teoria operativa e útil em um campo da vida das pessoas. Também no tratado De Ortu Scientiarum, o relato pseudohistórico de Robert Kilwardby (1215-1279), para Crombie, foi na mesma direção e entre as artes mecânicas “ele incluiu a agricultura, viticultura, a medicina, a confecção do pano, as armaduras, a arquitetura e o comércio” (idem, ibidem, p. 148). Crombie reconhece que treinamentos práticos em artes mecânicas poderiam ser recebidos “apenas” em guildas de artesãos. Certamente é possível complementá-lo: além do artista, por exemplo, os homens do campo e os citadinos não estão alheios à transmissão e divulgação de ensinamentos, rudimentares ou não, pela oralidade. “Objetivos utilitaristas de escritores medievais” (embora não mencione quais) sobre a educação atingiram cursos universitários, por exemplo, no séc. XII, com o curso de Medicina em Salerno, e a partir do final do séc. XIII, em Bolonha, “parece, de fato, ter

sido requerida na maioria na maioria das escolas médicas a partir do final do séc. XIII” a instrução prática em anatomia e cirurgia. Crombie (1953, p. 149) também rastreia uma tal “tradição utilitarista”, mais especialmente, no curso de Artes da Universidade de Oxford por sua “ênfase considerável” “colocada sobre os temas matemáticos, os livrotexto prescritos, incluindo, por exemplo, não apenas a Aritmética de Boécio e os Elementos de Euclides, mas também a Optica de Alhazen, a Perspectiva de Witelo, o Almagesto de Ptolomeu”, os trabalhos de Aristóteles sobre “filosofia natural”, além de haver “evidências de que cursos especiais de astronomia foram dados em Oxford no séc. XIV”. Uma “ênfase similar”, nos termos de Crombie (1953, p. 150), foi vista nos cursos de Artes da Universidade de Bolonha, além de “algumas das universidades alemãs” – embora o autor não especifique quais – que “parecem também seriamente ter cultivado” o estudo das ciências matemáticas. Com Crombie (1953, p. 150), “um resultado importante deste treinamento matemático recebido na educação medieval foi que incentivou o hábito de expressar eventos físicos em termos de unidades abstratas e enfatizou a necessidade da padronização de sistemas de medição”. É bem verdade que um tanto exegeticamente, a respeito do relógio – o primeiro sistema de medida regular do tempo – Mumford (1955, p. 14) afirmou: “o relógio, não a máquina a vapor, é a máquina-chave da idade industrial moderna”. Crucial aqui, seria inconcebível o avanço da ciência Mecânica (e outras) sem a matematização da física que revestiu de autoridade a explicação de quantidades por meio de prova dedutiva disposta em linguagem abstrata cada vez mais formal e precisa. E em face da exigência crescente de demonstração por evidência matemática ou até empírica, advinda de membros (sobretudo com os nominalistas) da própria escolástica, foi se enfraquecendo a estrita disputatio medieval. Com a interação inventiva de tempos em tempos revelando-se profícua com novos implementos ou aperfeiçoamento técnicos, o correlato da “máquina” despertou (e retroalimentou), no campo e na cidade, os valores da eficácia e eficiência como vetores para a possibilidade de dominar a natureza, os seres e o mundo. Fora dos muros das universidades e monastérios, sob o poder das armas de fogo, ruíam castelos e reinos imponentes e, mesmo ao homem guerreiro mais forte e destemido, a proteção da armadura já não assegurava a sobrevivência e sua queda poderia vir até do mais fraco. Com o controle da fabricação da pólvora e de canhões nas mãos de príncipes governantes, ascenderiam as monarquias absolutas dos séc. XVI e XVII. Emblematicamente, afirma Mason (1964, p. 84), “a imprensa e as armas de fogo, no fim da Idade Média, tiveram efeitos semelhantes aos da invenção do alfabeto e da

descoberta da produção do ferro, ao findar a Idade do Bronze”, a medida que a primeira fez aumentar a instrução do homem; ampliar a acessibilidade dos homens (e não das mulheres) aos registros acumulados pela humanidade, inclusive a Bíblia, o que auxiliou a Reforma Protestante. A respeito do aperfeiçoamento do conhecimento técnico no medievo, conclui Crombie (1953, p. 157), ele ocorreu “em parte, aprendendo com as práticas e escritos (muitas vezes de origem clássica) dos mundos bizantina [grega] e árabe e, em parte, por uma atividade lenta, mas crescente de invenção e inovação dentro da própria cristandade ocidental”. Neste contexto, se uma „corrida‟ a Toledo atrás das obras gregas e árabes traduzidas nos séc. XII-XIII disseminou conhecimento, além de continuar tal disseminação as enciclopédias – notadamente as de Alexander Neckam, Alberto Magno, Roger Bacon, Tomás de Aquino, e também, Robert Grosseteste, Pierre de Maricourt, Walter de Henley, Peter de Crescenzi, Raymond Lull e Vital Du Four – enfim, desencadearam a fundação de escolas de pensamento. Se há um relativo consenso entre Crombie e Mason ao enumerar quem foram os grandes enciclopedistas do séc. XIII, o mesmo não se pode dizer a respeito dos autores ilustres por escreverem sobre matérias técnicas diversas (como Giles de Roma sobre a arte da guerra). De forma geral, as enciclopédias versavam sobre filosofia, teologia, lógica, direito, matemática, e a “filosofia natural” da época: botânica, zoologia, alquimia, geografia, óptica, astrologia e, claro, a cosmologia aristotélica. Além disso, também os tratados técnicos continham uma boa quantidade de informações precisas sobre o calendário, o magnetismo (especialmente com a bússola) e a agricultura. Não estou a sugerir que o desenvolvimento técnico ou um empirismo „puro‟ (tal como o de um Roger Bacon20) tenham sido condição suficiente para a “revolução científica” Moderna: aqueles teriam sido estéreis se não fosse uma reconsideração da Matemática. Nicolau Copérnico (1473-1543) rejeitou a visão instrumentalista do prefácio de Andreas Osiander, segundo o qual a obra do primeiro De revolutionibus orbium coelestium (1543) não apresentava um retrato real do universo, mas apenas um cálculo coerente com as observações. Antes de tratá-la como evento paradigmático, pode-se considerar tal rejeição como indicativa da direção que o desenvolvimento da matemática no séc. XVI (por exemplo, com a geometria analítica) assumiria em uma perspectiva realisticamente orientada. A matemática já não ser mais útil apenas como 20

Para ele, a justificação das ciências teóricas eram seus resultados úteis, além de salientar a necessidade de incluir o estudo das práticas de artesãos e de alquimistas práticos em qualquer esquema de educação.

instrumento para cálculos e modelos, mas, também, para descrições que pretenderiam „salvar fenômenos‟ e comprová-los. Assim, a matematização da natureza configurou-se como a sua mecanização. Segundo Koyré (2011, p. 198), se “a ciência moderna tende a explicar tudo „pelo número, pela figura e pelo movimento‟ (...), foi Descartes e não Galileu quem, pela primeira vez, compreendeu inteiramente o alcance e o sentido disso” em uma filosofia mecanista da natureza. Tal afirmação não implica que Koyré estivesse a desnudar uma suposta carência de figura paterna para o „nascimento da modernidade‟, pois ele reconhece que teorias são desenvolvidas por sujeitos inexoravelmente imersos no continuum histórico que se desdobra em distintas visões de mundo partilhadas em cada época, e em seus respectivos valores morais e epistêmicos. Desde o séc. XIV, com o humanismo renascentista, por exemplo, de Nicolau de Cusa e Pico de la Mirandola, afirmou-se a dignidade do homem pela sua capacidade de operar e não apenas contemplar o mundo. Francis Bacon (1979, p. 13) considerou “o homem, ministro e intérprete da natureza, [que] faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais”. Contra Crombie, Koyré (2011, p. 68) argumenta que as tecnologias medievais por si mesmas não conduziram a um progresso científico teórico: “a invenção do arado, do arreio, da biela e da manivela, e do leme a ré, nada tem que ver com o desenvolvimento científico”, diz ele. Isto me parece correto apenas em parte, mas não totalmente. No mínimo, é inegável que a partir daquelas e outras invenções como a do relógio mecânico até as grandes navegações europeias, já se pode depreender a emergência de uma nova imagem do homem. Nesse sentido, há tempos o que Bacon radicalizou não era uma ideia estranha à cultura: o homem é a medida da consciência do seu domínio sobre a natureza e deste resultaram teorias tanto quanto instrumentos e máquinas. O “desenvolvimento científico” não pode ser total e inequivocamente compartimentado em relação a outros desenvolvimentos humanos, como pressuposto neste comentário crítico de Koyré. REFERÊNCIAS ALQUIÉ, Ferdinand. Descartes. Paris: La Gaya Scienza: 2011 (collection dirigée par Laurence Hansen-Løve, responsable de publication Pierre Hidalgo). ALQUIÉ, F.; RUSSO, F.; et. al. Galileu, Descartes e o Mecanismo. Lisboa: Gradiva, 1987. BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pensadores).

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