Deserto dos Anjos: um manancial de significados profundos

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Para citar este artigo: Vieira, Alba Pedreira; LIMA, Maristela Moura Silva. Deserto dos Anjos: um manancial de significados profundos. In RENGEL, Lenira e THRALL, Karin (ed.) O corpo em cena, vol. 3. São Paulo: Anadarco Editora & Comunicação, p. 41 a 63, 2011. ISBN 978-85-60137-33-6

NÚMERO DE PÁGINAS DO LIVRO: 191

“DESERTO DOS ANJOS”: UM MANANCIAL DE SIGNIFICADOS PROFUNDOS Alba Pedreira Vieira1 Maristela Moura Silva Lima2

Analisamos como a peça Deserto dos Anjos, da Companhia 2 do Balé da Cidade de São Paulo, representa, corporalmente, idosos que vivem em asilos. Com exceção da última cena, os movimentos dos bailarinos são manipulados deliberadamente de tal forma que, em cada uma, há uma denúncia do papel convencional, na cultura brasileira, desse grupo que vive socialmente excluído. A dança em geral, e esta peça em especial, é uma versão bastante particularizada do encontro entre ação e reflexão. Palavras-chave: dança, semiótica, idosos We analyze how the dance piece Desert of Angels by the Group 2 of the Ballet of the Sao Paulo City bodily represents elderly people who live in nursing homes. With the exception of the last dance, the dancers’ movements are deliberately manipulated so that in each one, there is a denunciation of the conventional role, in Brazilian culture, of this group living socially excluded. Dance in general, and this piece in particular, is a very particularized version of the encounter between action and reflection. Keywords: dance, semiotics, elderly

Introdução

“Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no 1

Alba Pedreira Vieira, Ph.D., Professora Adjunta do Curso de Graduação em Dança da Universidade Federal de Viçosa. É líder do grupo de Pesquisa Transdisciplinar em Dança (CNPq). Tem artigos e capítulos de livro publicados no Brasil e no exterior. Email: [email protected] .

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Maristela Moura Silva Lima, Ph.D., Professora Titular do Curso de Graduação em Dança da Universidade Federal de Viçosa. É vice-líder do grupo de Pesquisa Transdisciplinar em Dança (CNPq). Tem artigos e capítulos de livro publicados no Brasil e no exterior. Email: [email protected]

inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista.” (BOSI3). Nesse artigo4 convidamos o leitor a olhar para a dança e o corpo, aonde muito de nossas relações sociais acontecem, não apenas esteticamente, mas também politicamente. Vista sob essa ótica, a dança pode nos ajudar a considerar a platéia não apenas como consumidora da arte, mas co-autora da produção.

A arte possibilita ao

expectador então, praticar ação social como sujeito ativo. Portanto, nosso objetivo é discutir complexas relações entre performance, teorias culturais e semiótica enquanto reconhecemos a área da dança, com foco na coreografia, como uma força de resistência que pode estimular pensamentos críticos sobre suposições, atuais, culturais, sociais e políticas. Esperamos que este texto seja uma contribuição para nosso campo de estudo, à medida que estimula reflexões e diálogos sobre o tópico em questão. Para isso, acrescentamos nossas idéias associadas com as de pensadores e críticos da prática da performance contemporânea que investigam “como a dança reconstrói criticamente práticas sociais enquanto, ao mesmo tempo, propõe teorias sempre renovadoras sobre corpo e presença” em cena. (LEPECKI, 2004, p.1) De acordo com Randy Martin (2004), a performance em dança é um meio de reflexão da sociedade e, ao mesmo tempo, um espelho ou oportunidade de olhar para si mesmo. Este autor ainda explica que a performance em dança, ao focar sua atenção na maneira como a vida é representada, pode produzir conceitos de identidade (auto entendimento) baseados em uma situação de compreender o outro. Martin acredita que o estudo da performance em dança nos permite entender melhor a tensão entre modos mutantes e estáveis de representar o mundo. Assim, na Arte, e particularmente na

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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. Disponível em: . Acessado em: 10 de março de 2011. 4

Esse artigo foi produzido a partir de pesquisas com apoio do CNPq, FAPEMIG e CAPES.

Dança, não podemos fechar nossos olhos ao mundo e à época de crise (inclusive econômica) em que vivemos, na qual existe uma compreensão caótica de eventos contemporâneos (que nos parecem tantas vezes confusos), e dúvidas sobre reflexões críticas e intervenções controversas. Artistas com tais inquietações se questionam: quais símbolos do mundo podemos ou devemos escolher para nossas obras de dança? Que mundo deveria ou é representado? Como o mundo é representado? Martin (2004) discute estas questões apresentando outras duas: Como a dança está (re)produzindo a crise atual de identidade? A estética e a identidade da dança estão em crise? Nós entramos neste debate discutindo uma coreografia brasileira que, pelo nosso ponto de vista, questiona como a dança e os corpos dançantes estão (re)produzindo a crise atual de identidade, em relação especificamente à terceira idade, indicada por Martin. Orienta nosso texto a crença que noções de identidade são como a Dança: dinâmica e sempre em movimento.

O Contexto da Companhia e da Obra

“A memória poderá ser conservação ou elaboração do passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se meio caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a inteligência, que é capaz de inovar. (BOSI5). O Balé da Cidade de São Paulo/BCSP é reconhecido no Brasil e no exterior como uma das maiores Companhias de Dança do Brasil. Ele foi criado inicialmente como Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo por meio do Decreto n. 7.369 de 7 de fevereiro de 1968. Em 1974, devido às influências modernistas de, dentre outros, o Ballet Stagium, resolveu-se contratar o novo diretor: o bailarino gaúcho Antônio Carlos Cardoso, cuja forma de trabalho e de concepção coreográfica [...] impactou parte do elenco, que se revelara hostil às propostas [inovadoras] e incomodado com uma suposta falta de decoro, imoralidade e, até, permissividade. A movimentação, um tanto previsível nas coreografias de balé clássico, ficara mais voluptuosa e as sapatilhas de ponta, ícones daquele gênero, tornaram-se desnecessárias. (ROSSI, 2009, p. 46)

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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. Disponível em: . Acessado em: 10 de março de 2011.

Apesar dessa resistência inicial, a Companhia cresceu bastante nos anos seguintes, agregou diferentes vocabulários artísticos e, na gestão de Ivonice Satie (ela própria ex-bailarina da Companhia), foi criada, em 1999, a Companhia 2 do BCSP, que, desde então, tem como integrantes bailarinos veteranos do elenco. De acordo com Bazarim e Godoy (s/d), a Companhia 2, com uma proposta de trabalho diferenciada, buscou “aproveitar ao máximo as experiências de anos de treinamentos diários, acumuladas nestes corpos. Esta empreitada pioneira cria uma Companhia com características peculiares de pensamento, ação e de visualidade estética dentro do cenário da dança brasileira” (s/p). Atualmente, as Companhias 1 e 2 compõem o corpo estável do Balé da Cidade de São Paulo Em 3 de fevereiro de 2002, a Companhia 2 do BCSP estreou uma obra intitulada Deserto dos Anjos com sete intérpretes e direção e coreografia de Claúdia Palma. Em um dos sites eletrônicos de divulgação do espetáculo,6 é informado que esse foi criado a partir das experiências vividas pelos bailarinos do Balé da Cidade em um asilo de idosos em São Paulo, e de pesquisas feitas a partir do livro Memória e Sociedade, Lembranças de Velho, de Ecléa Bosi, professora titular de Psicologia Social e coordenadora da Universidade Aberta a Terceira Idade. Foi com base neste universo que os bailarinos trouxeram à tona questões como o abandono e esquecimento sofrido por parte dos idosos. Deserto dos Anjos prima por explorar a lentidão dos movimentos como um espelho da fragilidade dos idosos. Criar o espaço da memória parte integrante do cotidiano da terceira idade - foi o desafio para a cenógrafa convidada, Daniela Thomas. Também foram convidados para participar do projeto o músico e maestro Jether Garotti Junior - direção e produção musical, e o jovem estilista e figurinista paulista Marcos Nasci (de Os Lusíadas). André Boll desenhou a luz e Ana Terra e Renata Franco fizeram a preparação corporal. A concepção e a coreografia ficaram por conta de Cláudia Palma.

Rossi (2009, p. 164) complementa a caracterização deste trabalho coreográfico: a trilha sonora é composta por músicas nacionais e internacionais, a saber, da autoria de Meredith Monk, Yann Tiersen, Golden Palominos, Luís Carlos Borges e Art of Noise, além da peça possuir vozes dos idosos gravadas na Casa dos Velhinhos Ondina Lobo e dos bailarinos. Na apresentação que antecede a exibição de Deserto dos Anjos no canal SESCTV, programa STV na Dança, a jornalista e crítica de Dança Ana Francisca Ponzio afirma que

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. Acessado em: 15 de março de 2011.

a coreógrafa Cláudia Palma desafia o elenco da Companhia 2 do Balé da Cidade de São Paulo a explorar movimentos contidos e introspectivos, para interpretar as fragilidades da velhice. A partir de suas inquietações sobre a condição dos idosos na sociedade brasileira, a coreógrafa coloca em foco um universo onde a passagem do tempo é marcada pelo isolamento e pela melancolia. Imersos num vácuo, cuja profundeza é acentuada pelo cenário de Daniela Thomas e pelo desenho de luz de André Boll, os personagens de Deserto dos Anjos parecem estar retornando ao pó de que foram feitos.7

Para Ponzio, Claúdia Palma construiu um “poema cênico sobre a velhice” com uma “trilha sonora que parece juntar retalhos de memória”. Para construir os gestos, movimentos e cenas, a coreógrafa e os bailarinos conviveram com os internos da Casa de Velhinhos Ondina Lobo durante o processo de criação. Essa apresentação na TV foi gravada em DVD pelas pesquisadoras autoras desse estudo, a fim de poder rever a obra o tanto de vezes que se fizesse necessário para se realizar uma análise de cenário, figurino, iluminação, músicas e sons, expressões faciais, maquiagem, relações entre bailarinos, desenho espacial, movimentos e gestos que foram criados especialmente para mesclar com outros elementos da dança, de modo a constituir um código, ou seja, um sistema de signos que a coreógrafa e seus colaboradores escolheram para “conceber e enviar mensagens.” (DANESI, 1999, p.5).

Nosso Foco, Ponto de Partida e Caminhos

Nesse artigo, nossa proposta consiste em analisar como a peça Deserto dos Anjos representa pessoas idosas que vivem em asilos na sociedade brasileira contemporânea. Essa obra incorpora três elementos que, na visão de Francis Sparshott (1982), estão envolvidas em toda produção de arte: transformadores (os artistas), as transformações que eles criam (o produto), e as transformações que eles fazem (a criação e a produção). Nesse estudo focalizamos nas mudanças que os artistas fazem de acordo com nossa própria perspectiva como espectadores. Acreditamos que todo artista precisa de público, então, concordamos com Sparshott (1982) que a platéia é o quarto elemento essencial em toda produção de arte. Cada um de nós (o criador, os bailarinos, e a platéia) concebe significados diferentes, mas, para o objetivo desse artigo, nossa discussão se concentra em como nós compreendemos signos específicos da obra sendo analisada. Ao estudar códigos não verbais por meio da semiótica, pode-se entender melhor “como as pessoas vivenciam e se definem através de seus corpos” (DANESI, 7

A filmagem do Espetáculo Deserto dos Anjos, apresentado no Teatro Alfa em São Paulo, foi exibida pelo SESC TV em 2011.

1999, p. 62), o que está relacionado à maneira como a dança é vista e quais imagens corporais são aceitas em uma determinada cultura. Concordamos com Blumenfeld-Jones (2011) que damos sentido à experiência a partir de um horizonte de compreensão estabelecido pela comunidade e cultura em que nascemos. Esse horizonte (que consiste em nossa história pessoal, a história das nossas tradições, cultura mãe, o território político-econômico-cultural-social em que estamos, dentre outros), constitui os limites do que podemos conhecer e também apresenta a plataforma de onde nos aventuramos no mundo ao encontro do outro, de outras culturas, histórias e experiências de vida. Portanto, percebemos que há constantes desafios e dilemas ao dialogar com o trabalho de outros artistas tendo em vista que cada um de nós estabelece compreensões a partir de um horizonte cultural e pessoal. Esses horizontes, muitas vezes, são bastante diferentes, outras vezes, nem tanto. Mas em qualquer um dos dois casos, nós assumimos que não podemos compreender plenamente o outro. Assim, a compreensão/interpretação que apresentamos de Deserto dos Anjos nesse texto, é mediada por esses horizontes. O diálogo que buscamos estabelecer com a obra é abordado com humildade, respeito e cuidado, pois não apresentamos, nem pretendemos apresentar, nenhuma verdade. Na dança artística, a mensagem do corpo se entrelaça com “os recursos de códigos diferenciados para compor um texto” (DANESI, 1999, p.30). Códigos culturais também estão entre os elementos complexos no processo de compreensão da natureza semiótica da dança. Os códigos são sistemas de signos que as pessoas usam para criar e enviar mensagens. Eles circunscrevem significados diferentes para os mesmos signos em diferentes culturas. Geralmente, vários corpos estão envolvidos na construção dos textos de dança, os dos coreógrafos, diretores, bailarinos e espectadores. Em nossa opinião, essa característica enriquece o trabalho artístico uma vez que há uma reunião de atores sociais com diferentes visões de mundo. Concordamos com Adshead-Landsdale (1999) que nesta rede complexa de comunicação não deveria haver nenhuma hierarquia entre os sujeitos envolvidos no processo de construção de significados. Na verdade, esta é uma atitude útil em uma análise semiótica da dança, a exploração da relação entre coreógrafos/diretores, bailarinos e o público na construção de textos de dança. Não vemos os textos de dança como trabalhos fixos e acabados que o espectador só tem de se apropriar e interpretar. Percebemos que o espectador, como se fosse também um artista, se engaja na construção de textos de dança, os quais estão em permanente

transformação. Assim, todos esses artistas articulam os signos de dança a fim de formar uma estrutura organizada em que o texto coreográfico se desenvolve. Apesar de outras formas artísticas de expressão e comunicação (por exemplo, literatura, escultura, fotografia e filme) terem se desenvolvido, em todas as culturas ao redor do mundo, pode-se encontrar pessoas vivenciando (criando, fazendo, e/ou apreciando) o poder da dança para disseminar mensagens, ou o que uma pessoa deseja comunicar. Embora o poder comunicativo seja comum a todas as formas de arte, um meio, em particular, é especial para artes cênicas, o corpo. Entre os elementos complexos na compreensão da natureza semiótica da dança estão os seus signos. Um “signo é uma realidade sensorial relativa à outra realidade que se destina evocar” (s/p).8 O corpo é um signo na dança. Nosso interesse artístico e acadêmico por essa obra decorre de preocupações sobre as condições dos assim chamados ‘velhos’ na sociedade brasileira. Apesar de que a situação tem melhorado nos últimos anos, não é tão comum observar a presença de membros da terceira idade, tanto como participantes ou observadores, na maioria das atividades artísticas. Ademais, poucas propostas artísticas são planejadas especialmente para incluir pessoas idosas, pois questões logísticas têm de ser pensadas nesse sentido. Nossa paixão pelo tema da obra Deserto dos Anjos pode ser ambos, o estímulo e o principal viés nesse estudo. Lágrimas ainda brotam quando assistimos a obra – mesmo após já ter acontecido inúmeras vezes. Mas, ao escrevermos esse texto, permitimo-nos duvidar e desafiar interpretações prévias da obra. Como aquelas pessoas que necessitam de óculos para enxergar, precisamos de ‘lentes semióticas’ para ver o que não estava sendo visto antes nessa peça artística. Ao invés de somente ver a realidade sendo representada como ela é, a semiótica nos auxiliou a poder ver, também, a realidade sendo representada como poderia ser. Ao discutir formas de perceber trabalhos artísticos, Goodman (1997) afirma que o olhar estético não pode ser “meramente olhar” (p. 264). Precisamos usar instrumentos de conhecimentos e experiências para perceber claramente diferenças e propriedades estéticas. Nesse estudo, a fim de analisar a peça Deserto dos Anjos nossas ferramentas principais são a semiótica e conhecimentos e experiências em dança. Justificamos ser a semiótica nosso aporte teórico porque nos auxilia a atribuir significados aos signos de Deserto dos Anjos. Dentre os muitos signos que compõem a 8

Apostila “Semiotics of Performance,” da disciplina Dance and Aesthetics, ministrada em 2005 por Luke Kalich na Temple University, EUA.

obra, delimitamos nossa análise, nesse texto, às posturas e atitudes corporais, movimentos e gestos dos bailarinos, e à iluminação, os quais, a nosso ver, encapsulam mensagens dos demais signos (iluminação, cenário, figurino e outros) que compõem toda a obra (vide figura 1). Questionamos como e quais mensagens esses elementos transmitem sobre os idosos no Brasil. No processo comunicativo, essas mensagens chegam codificadas à platéia; assim, esse estudo se justifica por apresentar uma das várias versões possíveis de decodificação dos inúmeros significados que podem ser conferidos a esse texto artístico. Sugerimos que os movimentos, gestos, e posturas corporais representam as limitações físicas e intelectuais biológicas dos idosos a fim de denunciar seu papel convencional na sociedade brasileira. Mais adiante no texto explicamos esse papel.

Figura 1: Cena de Deserto dos Anjos9

Evitamos aprofundar nossas interpretações por causa da nossa falta de informação sobre detalhes das intenções dos artistas envolvidos na obra, seu processo criativo, e outros. A pergunta que orienta nossa análise é: Como idosos que vivem em asilos na sociedade brasileira contemporânea são representados pela Companhia 2 do BCSP na obra Deserto dos Anjos?

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Todas as fotos foram tiradas, do vídeo, pela primeira autora em 15 de outubro de 2011.

Construindo Significados da Peça Em artigo do Jornal Estadão de 04/07/200210, Deserto dos Anjos é apresentada como uma obra que fala sobre a vida dos idosos no Brasil. Embora não haja nenhuma maneira de saber o que é verdadeiramente representado nesta peça, percebemos que a maioria dos movimentos dos dançarinos representa a fragilidade física, a limitação cognitiva e a solidão dos idosos confinados em asilos. Imaginamos que o texto da peça possa querer mostrar que essa exclusão da sociedade pode, por sua vez, reforçar e acelerar todo seu processo de envelhecimento em relações aos aspectos físicos, intelectuais e emocionais. A fragilidade física é representada através de muitos movimentos, gestos e posturas corporais, mas uma em particular chamou nossa atenção: a pretensa dificuldade dos bailarinos em ficar em pé com o corpo alinhado na posição vertical (vide figura 2).

Figura 2: Corpos inclinados

Muitos movimentos são realizados com o corpo posicionado a partir do nível médio para o baixo. Os bailarinos parecem se desequilibrar quando estão em pé tentando assumir uma postura ereta, ou realizando movimentações no nível alto. Normalmente seus corpos se inclinam para trás ou para frente, como se estivessem 10

Balé da Cidade toma os palcos de SP. Disponível em: . Acessado em 20 de maio de 2011.

mantendo o movimento de uma cadeira de balanço, mesmo não estando em uma. Os corpos parecem tão curvados, como galhos de árvore ressecados e retorcidos, que parecem prestes a se quebrar a qualquer momento. As posturas curvadas dos bailarinos lembram-nos também de galhos finos e pequenos de uma macieira que começam a se quebrar devido ao peso exagerado das frutas que se acumulam. Como se as maçãs fossem memórias que insistem em nascer, crescer, frutificar, mas que se mostram por vezes pesadas demais para serem suportadas na realidade corporal e social atual vivenciada pelos idosos. A cabeça dos bailarinos se apresenta, em vários momentos, tombada. A cabeça, que na cultura ocidental representa o santuário da intelectualidade, se apresenta pendurada, como um acessório corporal que não tem mais função; se o que se quer representar é a diminuição nos idosos da sua capacidade intelectual, a postura da cabeça dependurada pode estar relacionada à inutilidade, uma parte do corpo que está lá, mas que não tem mais porque estar. Ou a cabeça se apresenta curvada, por estar pesada demais devido a tantas lembranças. Ainda há momentos em que a cabeça aparece dependurada, como se o bailarino tivesse sido enforcado – a cabeça foi cortada, mas o corpo teima em continuar se movimentando; um morto-vivo que vive perambulando sem cabeça, sem ter plenitude das suas faculdades mentais? A fim de complementar a tristeza desse cenário, a escuridão, frequentemente atribuída à idade avançada, parece ser representada pela escuridão amiúde no palco (vide figura 1). Na nossa cultura, quando uma situação está ruim, por qualquer motivo, as pessoas costumam dizer que a situação está preta. Em uma famosa canção do músico Chico Buarque (Meu caro amigo), a letra traz a expressão: “a coisa aqui tá preta”, referindo-se a um dos períodos mais opressores da história política brasileira, o da ditadura militar. Assim, pode ser que a escuridão no palco esteja relacionada à perspectiva cultural brasileira sobre a terceira idade, que é vista como o período da vida tido como ruim e preto. De acordo com Lima e Vieira (2007), essa visão é resultado do receio de grande parte dos brasileiros com o avançar da idade, e da obsessão pela juventude e manutenção da beleza física. Somos um dos países que ocupa as primeiras posições de maior número de cirurgias plásticas no mundo. Para Lima e Vieira (2007), “ao viver numa cultura assim, pode-se imaginar quão fragilizada uma pessoa idosa pode se sentir, ao perceber suas capacidades corporais declinarem” (p. 130). Embora a diminuição de força muscular e capacidade mental seja um processo biológico, percebemos que a colocação corporal dos corpos dos bailarinos no espaço (exageradamente inclinando seus corpos para frente ou para trás), é feita de tal forma

que pode estar relacionada à dificuldade dos idosos em se manterem eretos, com segurança e auto-estima elevada e para se movimentarem com fluidez, não apenas por limitações corporais fruto de um processo biológico natural, mas porque outras pessoas insistentemente os lembram quão improdutivos e frágeis eles são. Uma maneira de expressar isso é confinando-os em asilos. A fragilidade física pode ser representada por meio da dificuldade em se movimentar. O esforço para se movimentar facilmente é, aparentemente, revelado pelo tempo lento em que cada movimento é realizado na maioria das cenas de Deserto dos Anjos. Assistir a peça nos deu a impressão de assistir um filme dramático gravado em câmera lenta. Há ocasiões em que uma música com um ritmo rápido contrasta com os movimentos lentos dos bailarinos. Faz-nos estabelecer um paralelo desse trecho do texto da dança com a vida real: a música com um ritmo mais rápido está para aquele que, geralmente, pessoas mais jovens da sociedade têm no seu dia-a-dia corrido e atarefado; essa correria contrasta com o ‘compasso’ devagar das pessoas idosas. Os signos da peça representam como essa discrepância de ritmos parece ser solucionada. Ao isolar as pessoas ‘lentas’ em um mundo separado, os asilos, os idosos vivem em exclusão de tal modo que eles não podem perturbar a batida rápida ‘natural’ da sociedade. A música toca, independente do que fazem os bailarinos, porque o ‘show’ veloz da vida precisa continuar. A solidão parece ser representada pela ausência de um parceiro em muitas cenas; os bailarinos dividem o palco, mas não há relação nem foco direto entre eles. Ela é representada, bem claramente em uma das cenas, quando uma bailarinas dança com alguém invisível. Ocasionalmente, os bailarinos fingem estar dançando com alguém. Seus braços estão, aparentemente, abraçando o corpo de um companheiro, que é uma pessoa invisível. Ademais, em ocasiões raras, os bailarinos tocam nos corpos uns dos outros ou se olham. Os olhos vazios vagueiam apaticamente pelo espaço. O que esse subtexto profundo indica aqui? Que eles podem estar se lembrando de seus mundos, de suas vidas, dos quais foram excluídos. Em um determinado momento da peça, uma bailarina levanta o braço direito, e com os dedos próximos à cabeça os estala, como a se perguntar: “Porquê não consigo me lembrar?” Esse é um gesto típico da cultura brasileira, quando a pessoa tenta se lembrar de algo, mas não consegue. Em seguida, ela movimenta seu braço afastando-o da sua cabeça, mas seus dedos continuam estalando. Parece que esses movimentos indicam como os idosos lutam para manter suas memórias, embora essas continuem se esvaindo. Talvez essa seqüência de movimentos

simboliza um processo em que, concomitantemente, as memórias mantêm os idosos vivos, enquanto tentam mantê-las viva (vide figura 3).

Figura 3: Memórias

Denunciando e transcendendo o mundo estereotipado "A criança sofre, o adolescente sofre. De onde nos vêm, então, a saudade e a ternura pelos anos juvenis? Talvez porque nossa fraqueza fosse uma força latente e em nós houvesse o germe de uma plenitude a se realizar. Não havia ainda o constrangimento dos limites, nosso diálogo com os seres era aberto, infinito. A percepção era uma aventura; como um animal descuidado, brincávamos fora da jaula do estereótipo. E assim foi o primeiro encontro da criança com o mar, com o girassol, com a asa na luz. Ficou no adulto a nostalgia dos sentidos novos". (BOSI11) De maneira geral, os corpos moventes nos lembram os de um Frankenstein velho sem lubrificante, ou seja, o corpo velho está supostamente representado como uma máquina frágil que não funciona mais eficientemente. Os movimentos restritos e tensos das cabeças, pernas e braços dos bailarinos parecem estar desarticulados e quebrados. “A 11

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. Disponível em: . Acessado em: 10 de março de 2011.

cabeça não ajuda mais para nada”, afirma, em determinado momento, a voz de uma idosa. Em uma sociedade capitalista, como a brasileira, o papel e importância de uma pessoa são medidos, principalmente, pela sua capacidade de trabalho, bem como sua eficiência física, emocional e intelectual. Assim, os efeitos naturais do processo de envelhecimento são usados na cultura brasileira para explicar o papel convencional atribuído aos idosos no país. Os membros da sociedade com idades avançadas são marginalizados devido à sua incapacidade de gerar capital. A peça Deserto dos Anjos parece denunciar esse papel convencional. Nossas impressões sobre a obra sugerem que a coreógrafa Cláudia Palma e os bailarinos deliberadamente manipularam significantes intimamente ligados à velhice, tais como corpo, movimentos e gestos, reforçando construções coreográficas que podem comunicar incapacidades físicas e cognitivas naturais, a fim de denunciar seu papel convencional na sociedade brasileira. Sem dúvida, esta poderia ser a razão pela qual vivem em asilos. Ou seja, eles perdem sua importância, valor e eficácia na sociedade, ao mesmo tempo que perdem seu corpo forte, produtivo, jovem, sua mente rápida, e sistema emocional equilibrado. Na sua maior parte, a peça oferece referências ao mundo da terceira idade baseadas nas qualidades de movimento que reforçam ações pesadas, indiretas, lentas e de fluência controlada, que indicam um sentido de economia do esforço. O uso sustentado dos movimentos que os bailarinos lançam mão pode ser lido não apenas como uma limitação física dos corpos velhos que querem representar. Estes movimentos também podem ser vistos como uma recusa de adesão a uma ordem imposta, a estereótipos, e ao tempo. Acreditamos que estes movimentos e gestos pretendem denunciar a indiferença e o descaso da cultura brasileira em relação à sua população idosa. Esta pode ter sido a intenção da última cena, na qual os movimentos e corpos dos bailarinos assumem, respectivamente, diferentes qualidades e posturas; um sorriso brota no rosto (vide Figura 4).

Figura 4: Sorriso no rosto, corpo ereto O corpo ereto dos sete bailarinos (figura 4) explora o espaço diretamente, principalmente no nível alto, e acompanha o ritmo da música com movimentos rápidos. Os bailarinos transitam com facilidade pelas frases dinâmicas de movimento e se mostram confortáveis em conseguirem controlar seus movimentos. Como se estivessem transcendendo suas limitações físicas, intelectuais e emocionais, bem como o papel convencional das pessoas idosas na sociedade brasileira, eles representam os corpos e movimentos de pessoas idosas com energia, vigor e poder. Ao capacitar seus corpos e movimentos, os artistas podem querer revelar a idéia de que uma mudança no papel convencional dos idosos na sociedade, é possível. O corpo pode ser uma fonte de opressão, assim como de liberdade.

Considerações provisórias

O estudo semiótico de Deserto dos Anjos tem sido um exercício para “conhecer a si próprio” (DANESI, 1999, p. 195). Descobrimos nossas tendências em apreciar espetáculos de dança que representam os integrantes de grupos especiais (por exemplo, idosos, pessoas com necessidades especiais, e pessoas de grupos minoritários, especialmente crianças pobres). Talvez porque o nosso trabalho em ensino, pesquisa e Arte/Dança tem sido muito influenciado pela pedagogia crítica de Paulo Freire. Somos interessadas, em especial, na relação entre dança e questões sociais, políticas, econômicas e culturais. Não é difícil ser engajado política e socialmente em um lugar como o Brasil, um país capitalista ‘em desenvolvimento’ que apresenta muitas injustiças sociais e econômicas. A exclusão dos idosos da sociedade dita ‘normal’ tem como base a idade, a qual se encontra dentre outros vários fatores preconceituosos de

marginalização social, tais como: etnia, sexo, orientação sexual, religião e assim por diante. Nossos valores e preferências como educadoras em dança, heterossexuais, do sexo feminino, brasileiras, nascidas e criadas na classe média, provavelmente influenciaram a maneira que olhamos para este espetáculo de dança. Mas, como estamos em processo de mudanças dinâmicas, estes são os nossos pensamentos neste momento; eles podem mudar na nossa jornada de ampliarmos nosso saber “sobre a prática e a arte da dança” (SPARSHOTT, 1995, p. 412). Com exceção da última cena, os movimentos em cada uma se assemelham aos de pessoas idosas que vivem excluídas da sociedade. Os artistas parecem ter manipulado cada transferência de peso de forma lenta e difícil, apresentando desequilíbrio constante, desarticulação de partes do corpo, foco e a posição, muitas vezes ‘pendurada’, dos braços e da cabeça, a fim de indicar a fragilidade física e cognitiva dos idosos, como se estivessem em um constante estado de alienação. Os movimentos, gestos e postura corporal que lembram os de idosos, foram realizados com exagero como se os artistas estivessem fazendo paródias dos integrantes velhos da sociedade brasileira e como se estivessem afirmando: “Olhe para o que acontece comigo quando você me exclui de suas vidas.” No nosso ponto de vista, a dança em geral, e nesta peça em especial, é uma versão bastante particularizada do encontro entre ação e reflexão. A dança é um evento especial em que significados, tempo, espaço e corpos são construídos para e por meio do público. Ela abre espaços para pensar e fazer, fazer e pensar (práxis) como uma atividade de construção do mundo. A dança nos convida a participar na criação da performance/mundo. O vídeo terminou. Lembramos a nós mesmas que devemos exercitar melhor nossos sentidos quando apreciamos uma obra de arte. Precisamos nos comprometer a seguir de perto o conselho de Susan Sontag: “O que é importante agora é recuperar os nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais” (SONTAG, 1997, p. 255). Fechamos nossos olhos externos, abrimos os ‘internos” e refletimos: as pessoas, normalmente, não podem ver anjos. Da mesma forma, as pessoas não podem ver os idosos isolados que estão confinados em asilos. Escondê-los é a melhor maneira de fingir que não existem? Indignadas, sentimo-nos emocionadas, pois há uma mensagem de esperança na última cena, o papel convencional pode mudar. Anjos que haviam quebrado suas asas, finalmente, recuperaram a sua capacidade de voar; talvez,

os anjos possam, finalmente, voar em direção a um oásis ou retornar para o mundo ‘real’. A vida pode imitar a arte?

Referências ADSHEAD-LANSDALE, Janet. Dancing texts: Intertextuality in interpretation. London: Dance Books, 1999. BAZARIM, Caroline; GODOY, Kathya Maria Ayres de. Companhia 2 do Balé da Cidade de São Paulo: sua formação, consolidação particularidades dentro da produção da dança contemporânea brasileira. Disponível em: . Acessado em: 15 de março de 2011. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. DANESI, Marcel. Of Cigarettes, High Heels, and Other Interesting Things. New York: St. Martin's Press, 1999. BLUMENFELD-JONES, Donald. Research in Dance and cultural interfaces: dilemmas and challenges. Palestra proferida no Encontro dos Grupos de Pesquisa em Dança – ENGRUPE/Dança. Maringá, PR, 2011.

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