DESESTABILIZANDO O SENSO COMUM: O CINEMA A SERVIÇO DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES 1

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DESESTABILIZANDO O SENSO COMUM: O CINEMA A SERVIÇO DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES1

Fagner Henrique Guedes Neves – UFF

Redesenhar as linguagens, os espaços e os tempos escolares é uma das providências mais importantes a que deve estar atenta uma formação de professores voltada à promoção da interculturalidade na educação básica. E, certamente, o cinema está dentre as ferramentas didáticas que podem colaborar a tal ruptura. Nesse âmbito, cabe questionar: como o cinema pode se constituir em um recurso de construção intercultural do saber sociológico escolar? Explorando o problema, a investigação partiu da hipótese de que o uso do cinema na Sociologia escolar pode colaborar ao alcance das finalidades da disciplina e da educação intercultural, desestabilizando concepções preconceituosas e estereotipadas sobre as minorias culturais que são reproduzidas pelo senso comum. Para tanto, buscou-se analisar os aspectos constitutivos e as aprendizagens decorrentes de uma proposta pedagógica desenvolvida com o apoio do cinema no ensino da Sociologia escolar. Na operacionalização da pesquisa, foram promovidas atividades pedagógicas interculturais conjuntamente com um professor atuante em uma escola pública situada em Niterói/RJ, a partir da exibição do documentário O Riso dos Outros. Em linhas gerais, as atividades motivaram diferentes percepções acerca do fenômeno cultural e da justiça social. Por um lado, os discursos da maioria dos alunos reproduziram o imaginário excludente e individualista que pauta as sociedades atuais. Por outro lado, houve estudantes que viram na película uma oportunidade de aprender e praticar uma forma humanística de se conceber a diversidade cultural, baseada no respeito, na valorização e no diálogo entre as culturas. Ainda que tais atitudes tenham sido pouco recorrentes entre os sujeitos discentes da pesquisa, concluiu-se que o cinema é uma linguagem benéfica à estruturação intercultural da Sociologia escolar, e da capacitação profissional de seus docentes. Palavras-Chave: Formação de Professores, Cinema e Educação Intercultural.

Trabalho apresentado no XVIII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – ENDIPE [Cuiabá/MT, agosto de 2016], no âmbito do painel temático “Saberes Disciplinares e Atividades Docentes: refletindo sobre formação de professores e educação intercultural”, coordenado pelo Prof. Dr. Paulo Pires de Queiroz (CPMDI/UFF). 1

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DESESTABILIZANDO O SENSO COMUM: O CINEMA A SERVIÇO DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Redesenhar as linguagens, os espaços e os tempos escolares é uma das providências mais importantes a que deve estar atenta uma formação de professores voltada à promoção da interculturalidade na educação básica. E, certamente, o cinema está dentre as múltiplas ferramentas didáticas que podem colaborar a tal ruptura. Por décadas, o cinema tem sido compreendido pela escola básica ora como nocivo, ora como valioso ao ensino. Por um lado, entende-se que a linguagem cinematográfica compromete as aprendizagens das competências de leitura e escrita. Por outro lado, essa mesma linguagem é concebida como um instrumento auxiliar à educação letrada. Esta última perspectiva tem sido cada vez mais dominante nos discursos políticos e acadêmicos. Nessa linha de análise, as tramas cinematográficas (fictícias e documentárias) são evocadas como estímulos à construção de um senso critico e humanístico perante as experiências vividas. Nesse cenário, é fundamental que esse entendimento faça parte das preocupações de uma formação profissional críticoreflexiva (Kemmis, 1987; Liston e Zeichner, 1993; Nóvoa, 1992; Pimenta e Ghedin, 2005; Queiroz, 2012; Tardif, 2005), que habilite os professores a refletirem sobre as condições e as implicações sociais da docência nas escolas populares e a propor práticas pedagógicas congruentes com esses termos. No que se refere ao ensino da disciplina de Sociologia, é cabível afirmar que a exibição de filmes dentro de propostas docentes crítico-reflexivas pode favorecer o desenvolvimento do olhar sociológico: uma prática investigativa das experiências sociais e do senso comum (Ianni, 1985; Wright-Mills, 1975). Esse tipo de análise pode evidenciar os mecanismos de reprodução social de diversas maneiras, em especial por meio de menções a estereótipos e preconceitos culturais que marcam o cotidiano: racismo, sexismo, homofobia, xenofobia, intolerância religiosa... Identificar e criticar esse ideário são objetivos que cabem ser perseguidos pela Sociologia escolar. Procurando contribuir com o estado da arte nacional relativo à Sociologia escolar, considero que é possível realizar investigações sobre as apropriações pedagógicas do cinema nos contextos escolares concretos onde a docência se processa. E, nesse espaço, vislumbro a seguinte questão de pesquisa: como o cinema pode se constituir em um recurso de construção intercultural do saber sociológico escolar? Proponho que o uso

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do cinema na Sociologia escolar pode colaborar ao alcance das finalidades da disciplina e

da

educação

intercultural,

desestabilizando

concepções

preconceituosas

e

estereotipadas sobre as minorias culturais que são reproduzidas pelo senso comum. Diante da questão e da hipótese de pesquisa, a investigação visou analisar os aspectos constitutivos e as aprendizagens decorrentes de uma proposta pedagógica desenvolvida com o apoio do cinema no ensino da Sociologia escolar. Especificamente, esse empreendimento pressupôs: (1) Construir atividades educativas de exibição e análise dialógica do documentário nacional O Riso dos Outros, no âmbito de uma escola pública de Niterói/RJ; (2) Identificar os pontos de vista dos sujeitos discentes sobre a interculturalidade a partir das atividades desenvolvidas e (3) Avaliar os achados obtidos nas práticas de ensino promovidas. Optei pela apreciação pedagógica de O Riso dos Outros em razão de sua temática e linguagem serem compatíveis com uma parcela significativa das representações sociais compartilhadas pelos jovens alunos da escola básica. O humorismo stand-up, enfocado pela película, tem tido uma alta receptividade entre os jovens de diversas classes e segmentos culturais. Em vista disso, penso que a adoção do formato pode ser um importante artifício de estímulo a que os estudantes desenvolvam uma reflexão sobre as suas próprias experiências sociais. Por fim, a escolha do filme também atendeu ao disposto no parágrafo 8 do Art. 26 da Lei n° 9394/96 (LDB): “A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais (Incluído pela Lei nº 13.006, de 2014)". Por esses motivos, é importante desenvolver atividades docentes na escola básica que contemplem essa produção cinematográfica de maneira crítica e reflexiva. Como a pesquisa está constituída em torno da analise de termos não quantificáveis, foram selecionadas estratégias qualitativas de coleta e análise de dados. Em vista dos objetivos da investigação, utilizaram-se metodologias participativas no cenário de uma escola pública situada em Niterói/RJ. A partir de contatos prévios com um professor de Sociologia e a Direção da escola, no último bimestre letivo do ano passado foi realizada uma série de seis encontros pedagógicos de cinqüenta minutos, no

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horário das aulas de Sociologia do primeiro ano do ensino médio. Em diálogo com o Currículo Mínimo do Rio de Janeiro, procurou-se abordar a temática “Preconceito e Discriminação” através dos seguintes procedimentos: Quadro n° 1: Roteiro de atividades pedagógicas

Encontro 1°

Procedimentos Apresentação da proposta. Realização de aula expositiva sobre o conceito de “imagens desestabilizadoras” (Santos, 1996). Identificação do cinema como uma potencial fonte de imagens desestabilizadoras.



Exibição integral do filme O Riso dos Outros.



Promoção de debates sobre o filme e as imagens desestabilizadoras.



Continuação dos debates. Solicitação de atividade pedagógica de caráter reflexivo, a ser realizada em casa.



Apresentação das atividades realizadas pelos alunos.



Continuação das apresentações e avaliação dos trabalhos. No primeiro encontro, obteve-se o consentimento dos sujeitos em filmar as

discussões. Além disso, foi garantido o anonimato dos participantes. Ao todo, vinte e nove estudantes participaram das dinâmicas. Das atividades empreendidas resultaram importantes achados de pesquisa, assim como experiências formativas docentes e aprendizagens discentes. Abordemos brevemente o percurso da pesquisa. A proposta investigativa foi inserida a partir da terceira aula do quarto bimestre, unidade a qual, segundo o planejamento pedagógico elaborado pelo professor, tratava dos “processos de estigmação, rotulação, preconceito, discriminação e intolerância que marcam a convivência das culturas na atualidade” (Professor Participante da Pesquisa). Procurando contribuir com o debate, realizou-se aula expositiva em torno das imagens desestabilizadoras (Santos, 1996). A aula buscou levar aos alunos a uma compreensão do conceito a partir de suas realidades sociais e culturais, mirando a produção de uma consciência sociológica sobre esses fenômenos. Para Boaventura de Sousa Santos, o ensino assume um papel epistemológico e político estratégico, sendo entendido como um “projeto orientado a combater a trivialização do sofrimento, por via da produção das imagens desestabilizadoras a partir do passado concebido não como fatalidade, mas como um produto da iniciativa humana” (Santos, 1996, p. 17). Ou seja, a educação é um instrumento de desestabilização do ideário comum, que compreende o social como um campo estático e acabado, em favor

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da concepção desse espaço como uma arena construída pelo homem e que, como tal, sempre está aberta a contestações e transformações. Por meio do emprego de imagens como essas, a aprendizagem de conhecimentos mais compatíveis com a justiça social se torna viável. É possível inferir a partir das proposições de Santos que as imagens desestabilizadoras correspondem a todo tipo de ideia, pessoa, instituição ou objeto cuja menção seja capaz de problematizar desigualdades sociais e preconceitos culturais que, por vezes, são naturalizados pelo senso comum. Na ótica de Santos, a visão dessas injustiças pode desencadear atividades pedagógicas favoráveis ao comprometimento dos estudantes com a promoção do respeito e a valorização das culturas, bem como de sua livre interlocução nos espaços públicos. Com efeito, o cinema é um recurso capaz de provocar a desestabilização do ideário comum. Certamente, o cinema pode cumprir tal função quando não é entendido como uma representação mimética ou inequívoca do mundo, ou um meio de tornar as aulas mais lúdicas. Rechaçando esses usos, o debate acadêmico (Bittencourt, 2005; Duarte, 2006; Ferro, 2002; Turner, 1997; Xavier, 2005) converge à ideia de que o cinema pode estimular leituras de mundo, questionamentos, estudos e debates que, enfim, resultem nas aprendizagens que se deseja promover na formação de professores e na educação escolar. E foi a partir dessa perspectiva que se exibiu o filme O Riso dos Outros, no segundo encontro. O Riso dos Outros é um documentário lançado em 2012, sob a direção de Pedro Arantes e a chancela da TV Câmara. Em um roteiro no qual não se ouve a voz de qualquer narrador, um coletivo de entrevistados explora o stand-up a partir de pontos de vista diversos. Os quarenta e sete minutos da película giram em torno de uma polêmica bastante divulgada na atualidade: os limites políticos, culturais e morais do formato humorístico stand-up. Os entrevistados concordam acerca da ideia de que o humor, sobretudo o stand-up, se sustenta em alguns pilares estéticos e culturais. Em primeiro lugar, o humor carece sempre de uma relação de compartilhamento de significados entre o humorista e os interlocutores. Isto é, ambos devem estar de posse de um mesmo imaginário social, para que as piadas façam sentido a quem as ouve, provocando o riso. Muitas vezes, esses significados compartilhados são os estereótipos e preconceitos manifestos e velados nas práticas cotidianas contra o outro, o diferente, principalmente quando este representa uma ou mais minorias socioculturais. Em o Riso dos Outros, diversos excertos breves de

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shows de stand-up fizeram desfilar vários preconceitos contra as mulheres, os homossexuais, os negros, os idosos, os suburbanos, os interioranos, contra determinadas comunidades estrangeiras, deficientes físicos ou mentais ... E não faltou quem risse das piadas. Os participantes da película identificam que o sucesso das piadas pressupõe uma “caricaturização” cruel de uma minoria (10’14’’). Por meio desse expediente, o humorista identifica um aspecto que o senso comum considera característico de uma minoria (10’30’’), como a subalternidade das mulheres e dos negros, por exemplo, e destila comentários desrespeitosos sobre o seu alvo. As risadas daqueles que não são atingidos são garantidas, uma vez que a comunicação de significados entre o comediante e a platéia foi firmada. Contudo, em outros momentos, aqueles que foram caricaturizados riem de outros aos quais coube a mesma função. Deste modo, os preconceitos são sempre reiterados como que em um círculo vicioso. Todavia, o que opõe as ideias dos entrevistados em dois grupos é a consideração dos efeitos políticos que as piadas são capazes de engendrar. De um lado, escritores, cartunistas, políticos e ativistas sociais identificam um acentuado teor discriminatório contra as minorias culturais nessa linguagem humorística. De outro lado, os humoristas de stand-up afirmam que suas piadas nada têm de ofensivas aos grupos minoritários, sendo não mais do que manifestações das suas liberdades de expressão. Ou seja, para os últimos o humor é uma “prática politicamente neutra”, ao passo que para os primeiros, se trata de um artifício de legitimação de violências sociais e culturais através de uma linguagem artística. Segundo os humoristas, os shows de stand-up não constroem preconceitos, apenas os utilizam, por meio de uma espécie de licença poética, para fazer rir. O humor seria para eles uma expressão jocosa das mazelas sociais, criadas pelos donos do poder. Conforme os comediantes, as decisões desses atores é que deveriam ser criticadas. As piadas, ao contrário, seriam “inofensivas”. Elas serviriam apenas ao intuito de atacar momentaneamente determinados alvos, mas sem as mesmas intenções opressivas das elites capitalistas. Para esses artistas, o humor não tem o papel que os críticos apontam. Entretanto, os defensores dos direitos das minorias fazem atentar ao caráter profundamente politizado das justificativas dos humoristas: o humor preconceituoso seria um eficaz instrumento de naturalização de conservadorismos. No entender de representantes de movimentos negros, feministas e homossexuais, em nenhum momento os humoristas de stand-up, muitos deles estrelas midiáticas, estariam interessados em

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questionar mazelas sociais (29’33’’). O foco deles seria sempre reproduzir o imaginário social dominante e, de forma individualista, colher a fama e o retorno financeiro de seus trabalhos. A polêmica segue com os comediantes criticando o que denominam como “a ditadura do politicamente correto” (31’30’’), a qual, segundo eles, tem diminuído a sua liberdade de expressão através da interposição de ações judiciais promovidas por movimentos sociais minoritários. Os membros desses movimentos, por sua vez, replicam, defendendo que toda liberdade tem limites e estes são os direitos de manifestação e valorização dos outros, que devem ser garantidos nas sociedades democráticas. Não é ditatorial defender direitos: ditatorial é querer negá-los (32’07’’). E não se pode atribuir a posição de opressores àqueles que sempre foram e são oprimidos. Em suma, O Riso dos Outros aponta a um impasse entre liberdade individual e interculturalidade que está longe de ser resolvido nos tempos atuais. Diante do exposto, o filme pode ser compreendido como um artifício de construção de subjetividades indignadas e inconformistas perante as injustiças sociais e que se rebelem contra a continuidade desses conflitos. E muitas dessas atitudes podem ser viabilizadas na educação básica, através de imagens veiculadas pela película. É frente a essas proposições que uma educação que se pretenda chamar de “intercultural” tem muito a se beneficiar com a exibição pedagógica de produções cinematográficas como essa. O filme motivou diferentes percepções entre os estudantes, a partir do terceiro encontro. Para a maioria dos alunos, o stand-up de matiz preconceituoso nada teria de ofensivo aos direitos das minorias e que esses direitos não seriam tão importantes quanto as liberdades individuais e a expansão das oportunidades de mobilidade social ao povo. No entanto, houve estudantes que viram na película uma excelente oportunidade de aprender sobre uma forma humanística de se conceber a diversidade cultural. Foram empreendidas dinâmicas dialógicas sobre o filme e sua possível condição de imagem desestabilizadora do senso comum. Visando criar oportunidades iguais de manifestação das culturas na constituição dos saberes e das práticas de ensino, buscou-se estabelecer canais interativos entre os diversos referenciais culturais representados pelos alunos. Não se trata de uma tarefa fácil, visto que, não raramente, as salas de aula englobam fronteiras invisíveis, territórios demarcados pelas identidades culturais dominantes de diferentes grupos de estudantes. Porém, a experiência profissional do professor participante ofereceu importantes contribuições interculturais à pesquisa:

8 “Eu não fui preparado na licenciatura para trabalhar com a diversidade, mas eu desenvolvi com o tempo de sala de aula um costume de trabalhar em atividades na sala que eles [os alunos] possam interagir [...] Muitas vezes, eu determino os grupos aleatoriamente que vão trabalhar, para tirar um pouco aquela coisa da ‘afinidade’ [...] Já consegui, por exemplo, de pessoas que não se davam muito bem elas se acabarem se relacionando [...] Por exemplo, quando eu to trabalhando um conceito relacionado ao preconceito sexual [...] esquecem que ela é lésbica ou que ele gay [...]” – Professor Participante da Pesquisa

A partir da reflexão crítica do professor participante sobre a sua prática, procedeuse a debates organizados em grupos de quatro ou cinco sujeitos com diversos referenciais culturais, inclusive conflitantes entre si. Em dois grupos, tais encontros foram significativas oportunidades para a visibilização dos conflitos, assim como a negociação de denominadores comuns, capazes de estabelecer uma ordem democrática no espaço educativo. No entanto, quanto aos outros grupos, as dinâmicas não foram além do descaso com a interculturalidade, afirmando-a como uma questão menos importante que a liberdade e a mobilidade social: “o que interessa é ficar rico e ser feliz” – disseram alguns. Identificar a felicidade com o acumulo de riquezas materiais revela uma perspectiva ética estreita, porém bastante difundida no imaginário contemporâneo. Trata-se de uma proposta excessivamente individualista e utilitarista, que enxerga no social apenas um meio para a livre satisfação do interesse individual e não como um fim em si mesmo, isto é, como uma arena possível e desejável à realização do ser humano através da convivência dialógica e respeitosa com todas as diferenças. E, certamente, quem disse ou concorda com “o que interessa é ficar e ser feliz” nada faz senão reproduzir o mesmo ideário representado pelos humoristas entrevistados em O Riso dos Outros: a falta de compromisso com o bem comum, justificada pelo direito à liberdade de expressão e escolha. Mas o indivíduo não pode existir em detrimento da comunidade e alternativas pedagógicas que promovam esse entendimento na escola básica cabem ser pensadas e experimentadas. Por certo, não é possível desenvolver uma educação intercultural de maneira autocrática, tal como procede a educação tradicional. Não se pode querer construir diálogos

interculturais

que

apontem

alternativas

democráticas

à

força,

compulsoriamente. É necessário que se busque convencer a todos, com argumentos, de que esses encontros são benéficos à ordem social e, por isso, sua realização é válida. E foi tendo em vista esses fundamentos que se sugeriu aos estudantes que, em caráter

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opcional, nas duas aulas seguintes identificassem e comentassem qualquer ideia, objeto, pessoa ou instituição que pudesse desestabilizar os estereótipos e preconceitos culturais correntes no país e no estado. Partiu-se da premissa de que os alunos que atendessem a uma solicitação desvinculada de qualquer premiação escolar estariam verdadeiramente focados em desenvolver o pensamento sociológico. Porém, poucos alunos responderam à solicitação. Dos vinte e nove alunos, dezenove não fizeram a atividade, sendo que nove deles nem compareceram aos dois últimos encontros. Ao contrário, oito estudantes, integrantes dos dois grupos que se mostraram afeitos à interculturalidade, realizaram a tarefa. Eles mostraram um evidente crescimento intelectual, ao identificarem imagens referentes a conflitos culturais diversos. Cabe comentar três dessas atividades na sequência. A primeira atividade que destaco foi um relato de experiência de uma aluna, o qual foi bastante revelador acerca da importância pedagógica das imagens desestabilizadoras à formação básica: “Eu tive uma professora de História que era negra e uma vez chegou na [sic] sala com um vestido esquisito [sic]: todo colorido, que parece ‘coisa de africano’ [...] E aí eu falei: ‘esse vestido parece que é de macumba, a Srª é macumbeira?’ (…) E ela me respondeu: ‘por que essa roupa simboliza para algumas pessoas ‘macumba’?’ ‘E o que é ‘macumba’?’ [...] O que aconteceu? Uma discussão muito legal sobre o respeito pelo outro, pela religião alheia, contra os preconceitos começou e envolveu a sala toda [...] A turma entendeu que, se as culturas estão por aí [sic] e elas são diferentes, a gente tinha que aprender sobre elas, para que a gente respeitasse elas [sic] [...]” – Aluna Participante da Pesquisa

No depoimento, a vestimenta da professora foi o estopim necessário para um debate humanístico sobre as diferenças religiosas e raciais e a importância do respeito a elas em uma sociedade democrática. Essa situação foi tão significativa para a aluna que ela trouxe o ocorrido à tona ao pensar em meios de problematização da diversidade cultural. Esses apontamentos mostram o quanto as imagens desestabilizadoras podem marcar toda uma trajetória escolar, motivando o estudante a desenvolver um comprometimento com reflexões e diálogos humanísticos tempos mais tarde. Também chamou a atenção a reflexão de um estudante sobre os regionalismos, que consistiu na comparação entre alguns estereótipos regionais brasileiros através da apresentação de quatro mapas nacionais alternativos, encontrados em sítios virtuais:

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Figura nº 1: “O Brasil segundo os cariocas”

Fonte:

selocalize.blogspot.com

Figura nº 3: “O Brasil segundo os gaúchos”

Fonte: seumadroga.com

Figura nº 2: “O Brasil segundo os paulistas”

Fonte: osqueridoes.com.br

Figura nº 4: “O Brasil segundo os acreanos”

Fonte: selocalize.blogspot.com

Os mapas elencados trazem as imagens dos estereótipos regionais que compõem o senso comum de diferentes estados brasileiros, e até mesmo quanto a nações vizinhas (Figura nº 1). Nessas imagens, verifica-se sistematicamente um olhar etnocêntrico, que exalta a própria comunidade regional em detrimento das outras. Tal como no stand-up, os autores buscam fazer humor através de caricaturas, atribuindo ao “outro”, sempre quando o nome dele é evocado, rótulos discriminatórios e reducionistas (“Bichas”,

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“Gostosas”, “Favelas”, “Bahia”, “Paraíba”, “Só tem mato” ou “Sem importância”) ou, revanchistas (“Isto não existe” ou “Argentina Brasileira”). Discordando com esses preconceitos, o aluno que trouxe os mapas à sala, “um erro não justifica o outro, e não é por que o ‘outro’ constrói uma imagem negativa de mim que eu vou fazer o mesmo”. Seu depoimento leva a ressaltar que a justiça social exige a valorização do próximo, seja ele um sujeito ou uma cultura regional. Por sua vez, a reflexão de um outro aluno indicaram que a desestabilização do senso comum pode motivar um autorreconhecimento cultural positivo. Nesse sentido, o estudante exalta o seu orgulho de ser negro, através da menção à letra Afro-Brasileiro, dos rappers Thaíde e DJ Hum: [...] Afro-brasileiro (sabe quem eu sou?) Afro-brasileiro (me diga quem você é) Afro-brasileiro (sabe quem eu sou?) Afro-brasileiro Afro-brasileiro (me diga quem você é) Afro-brasileiro (sabe quem eu sou?) Afro-brasileiro Somos decendentes de zumbi Grande guerreiro [...] (THAÍDE E DJ HUM, 1995)

Thaíde e DJ Hum exaltam o orgulho das suas origens culturais africanas e que deve ser o mesmo sentido de si de outros negros. Na íntegra, a letra explora importantes aspectos das culturas negras suburbanas e periféricas, como as “rodas de capoeira”, as confraternizações que elas motivam, das crenças religiosas de matriz africana e da escravidão que marca a sua história no país (“descendentes de Zumbi”). Segundo o aluno, “ao invés de querer assimilar tudo o que o branco tem a oferecer [a cultura hegemônica], o negro deve, antes de tudo, valorizar os seus antepassados, jamais se envergonhando deles”. Sem valorizar a si próprio, como valorizar a outrem? Nesse sentido, a reflexão do aluno leva a problematizar o autorreconhecimento como uma dimensão fundamental da interculturalidade. Portanto, as atividades desencadearam as reflexões de alguns alunos que se mostraram receptivos às ideias interculturais. Em síntese, essas reflexões apontaram a importância das imagens desestabilizadoras a uma educação que cultive o respeito integral a si mesmo e ao próximo, como um semelhante e potencial interlocutor. Mesmo diante de manifestações como essas, é verdadeiro, por outro lado, que “não há garantias de que a educação intercultural venha a mudar a forma pela qual os

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alunos veem a diversidade e se posicionam diante dela fora da escola” (Professor Participante). Muitos preconceitos, conflitos e violências culturais persistem nas instâncias sociais. E possivelmente a interculturalidade, processo construído necessariamente em caráter voluntário, enfrente a oposição de interesses contrários à justiça que se estendem coercitivamente sobre as sociedades contemporâneas, sendo amplamente reproduzidos pelo imaginário social. Neste problema, reside o maior desafio do projeto da interculturalidade. Apesar de muitos estudantes desconsiderarem a importância do diálogo intercultural à promoção de uma sociedade melhor, as atividades desenvolvidas a partir da exibição de O Riso dos Outros foram significativas oportunidades educativas, para todos os envolvidos. Além de obter achados importantes sobre as repercussões dos preconceitos e das discriminações nas impressões dos alunos, os encontros propiciaram problematizações do imaginário social e de seus conflitos culturais típicos, assim como experiências e discussões que podem contribuir à formação profissional continuada do professor. A investigação permitiu apontar que o cinema pode se constituir em um recurso de construção intercultural do saber sociológico escolar. Uma utilização crítica do cinema na educação escolar, como um aspecto desencadeador de práticas de ensino reflexivas, engendra imagens referentes a conflitos culturais cujo reconhecimento e critica são aspectos necessários à formação básica. A película pode veicular na disciplina de Sociologia imagens do ideário comum, que permanentemente engendra e naturaliza injustiças sociais e culturais. Diferentes depoimentos presentes no filme podem propiciar aos estudantes exercícios de desestabilização de concepções ordinárias e dominantes de mundo que, por vezes, nada mais fazem do que produzir um conformismo tácito com o status quo excludente e individualista da atualidade. E somente a partir desses movimentos é possível pensar e propor uma ética educativa que ganhe corpo em ideias e práticas que realmente venham a contestar tal estado de coisas. O cinema é, pois, um recurso didático benéfico à educação escolar. O cinema está no rol dos recursos que permitem os educadores redesenhar a educação escolar em termos interculturais. O emprego desses recursos no ensino de Sociologia pode colaborar à flexibilização das lógicas linguísticas, espaciais e temporais das escolas, ao mesmo tempo em que favorece o exercício do olhar discente crítico sobre a experiência social. Por certo, estas operações favorecem a emergência da escola intercultural.

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Não há como negar que o projeto pedagógico intercultural exige que os professores dominem os saberes constituintes de seu ofício, tornando-os instâncias de permanente reflexão crítica. E nesse âmbito, o cinema não pode ser concebido através dos lugares-comuns que o caracterizam como uma linguagem pedagógica escolar. Urge que eles saibam rejeitar as abordagens miméticas e ilustrativas de filmes em suas propostas educativas. Primeiro, convém concebê-lo como uma forma particular de representação do mundo, capaz de fazer pensar, e não como um meio que obriga a reproduzir modelos pensados pelos outros. Cabe também não utilizar filmes como expedientes meramente adjacentes ao conhecimento escolar, que tornam as situações educativas mais lúdicas, ao mesmo tempo em que só confirmam o discurso das aulas expositivas e dos livros didáticos. O cinema é capaz de colaborar a uma desestabilização do ideário comum sobre a experiência social, apontando caminhos à reflexão acerca de alternativas que favoreçam a justiça. Este é, sem dúvida, um vasto e significativo debate referente à formação de professores que convém ser sempre retomado. É indubitavelmente importante que os professores sejam capacitados, em suas formações iniciais e continuadas, a empregar filmes como elementos disparadores da reflexão, da crítica, da manifestação dialógica de pontos de vista e da negociação entre os diferentes em suas aulas. Desta maneira, o cinema pode ser incluído nos roteiros pensados em prol da educação intercultural nas escolas brasileiras.

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