Desestatização e Políticas de Pessoal: Dois Eixos de Análise na Criação de Organizações Sociais no Âmbito Federal e no Estado de Minas Gerais

June 7, 2017 | Autor: J. Dos Reis Sampaio | Categoria: PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL, Gestão de Pessoas, Administração Pública
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Desestatização e Políticas de Pessoal: Dois Eixos de Análise na Criação de Organizações Sociais no Âmbito Federal e no Estado de Minas Gerais Jáder dos Reis Sampaio1 RESUMO A proposta do governo federal de criação de uma nova entidade estatal denominada “organizações sociais” teve por reflexo no Estado de Minas Gerais a elaboração de um projeto de lei. Neste trabalho comparamos o projeto mineiro com as diretrizes do governo federal e analisamos os possíveis impactos de sua implantação nas políticas de recursos humanos do serviço público. Palavras-chaves: Psicologia do trabalho, Políticas Públicas, Políticas de Recursos Humanos, Administração Pública. ABSTRACT Brazilian federal government planned new government agencies called “social organizations”. This initiative brought to a specific law proposition in the state of Minas Gerais. This article makes a comparison between the federal and the local guidelines of the legislation in order to analyze the effects of it in the state’s human resources policies. Key-words: Work psychology, public policies, human resource policies, Public administration. 1. Por Que Organizações Sociais? Que contribuições pode trazer à Psicologia um trabalho que se direciona à análise de um objeto, como as “organizações sociais”? Esta primeira questão exige que se apresentem algumas premissas de trabalho. O objeto privilegiado da Psicologia do Trabalho é o “homem que trabalha”, ou seja, a interseção entre as categorias homem e trabalho. Dentre as muitas possibilidades de abordagem, tenho optado por entender o homem como um ser inserido em um contexto social econômico e político, mas ao mesmo tempo dotado da possibilidade de escolhas e ação no mundo. Felizmente não estou sozinho nesta empreitada, uma vez que a subjetividade voltou à tônica na produção das ciências humanas e sociais. (LANE, S. 1993, CASTRO, Eliana M, ARAÚJO, José Newton G., 1994 e ENRIQUEZ, Eugène, 1994) Em decorrência desta premissa, tenho suspeitado das visões solipsistas do homem, tão comuns no pensamento psicológico, com a mesma intensidade em que suspeito do determinismo estrito do homem, que se encontra bastante desenvolvido por algumas escolas das ciências sociais, econômicas e naturais. A compreensão do homem que trabalha é, portanto, indissociável da compreensão das organizações de trabalho, e estas não são redutíveis à sua estrutura (ou função), mas são desvendadas à medida que se entendem as relações sociais em geral e as 1

Professor do Departamento de Psicologia da UFMG, Psicólogo. Especialista em Psicologia do Trabalho e Desenvolvimento Organizacional e Mestre em Administração.

relações de produção. Um tema como “motivação”, ou “liderança”, por exemplo, não pode ser tratado em si, como se houvessem leis naturais cujo desvendamento nos ensinasse como agir universalmente de forma a motivar as pessoas que trabalham. Por mais que se encontrem algumas premissas e regularidades gerais, temas como estes apresentam facetas multiformes em cenários diferentes. Uma mesma política de gestão pode ter impactos diferenciados em trabalhadores de diferentes organizações, e por este motivo, gerar respostas diferenciadas. Esta a dificuldade de estudo da Psicologia do Trabalho. Não entenda o leitor que a partir desta premissa tenhamos optado pelo relativismo, pós-modernismo ou outra designação que traga no seu âmago a renúncia à análise das influências e constrições que diversos fatores impõem aos agentes sociais. A globalização2, por exemplo, exige ações das organizações de trabalho e dos estados, mas não determina nem impõe uma certa e determinada ação por parte de empresas e governo, como querem fazer crer alguns dos consultores do millenarium social. Uma experiência nas ciências administrativas que tenta transformar estes conceitos em prática é a da escola sócio-técnica3. Desenvolvida no Reino Unido nos anos 50 e com aplicações recentes em outros países da Europa, esta escola contrapõe-se à organização taylorista do trabalho, com propostas ao nível de organização da produção, estrutura das organizações e relações entre empresas. Coerente com esta visão de homem e de práxis do homem, ela propõe, com base na intervenção junto às minas de carvão de Durnham, que as organizações podem ser organizadas e geridas de diferentes formas ante um determinado contexto (princípio da escolha organizacional) e que as decisões sobre os processos de gestão e organização do trabalho devem ser decididos com a participação das pessoas envolvidas no trabalho (concepção partilhada). Os trabalhos de Eric Trist são considerados clássicos desta proposta administrativa, nos dias de hoje. Com esta perspectiva temos uma outra implicação igualmente importante: a política. Se o homem não se acha determinado e é de certa forma agente em seu meio, o entendimento do homem que trabalha exige um viés político, ou seja, de como os agentes se posicionam e empreendem ações coletivas. Esta referência enfraquece, por exemplo, as opções metodológicas de autores contemporâneos que tentam reduzir a Administração à Economia (e alguns, especificamente, o fazem tendo em vista a macroeconomia), ou, pelo menos, situar a segunda como base teórica da primeira. Tendo desenvolvido as premissas e algumas de suas conseqüências, retomo a questão inicial. Nesta concepção, o papel do psicólogo envolve abrir mão da tentação de enquadrar seu objeto de estudo em concepções teóricas que tem a pretensão de, em si, predeterminar o homem. Trabalhando desta forma, o psicólogo aprofunda seu conhecimento sobre a psicanálise ou qualquer outra “escola”, por exemplo o behaviorismo, o humanismo, etc.; e crê que a compreensão do homem não passa da aplicação de seus pressupostos, qualquer que seja o contexto. É uma posição pretensiosa e pouco convincente e acaba nos conduzindo a um psicologismo, termo que emprego aqui como a tentativa de fundamentar a análise dos fenômenos próprios das ciências humanas e sociais com uma teoria exclusivamente psicológica. Este projeto é claramente insuficiente no campo da Psicologia do Trabalho assim como de outras áreas da Psicologia. 2

Entendida como a internacionalização de capitais, redução de barreiras alfandegárias e outros mecanismos de proteção de economias nacionais que tem por premissa a promoção do “livre comércio”. 3 Uma leitura introdutória sobre a sócio-técnica pode ser realizada em BIAZZI JR, F. 1994. 2

A análise do contexto em múltiplos enfoques e de suas mudanças nos permite um entendimento melhor de sua influência sobre as pessoas que concretamente trabalham sob o seu âmbito. Neste artigo, as propostas de mudanças no estado brasileiro tem um papel privilegiado. Ele trata da proposta de constituição de “organizações sociais” como uma das ações desestatizantes. Examino as objeções apresentadas ao mesmo por diferentes entidades, e, finalmente, teço algumas considerações sobre seus impactos nas políticas de recursos humanos e, portanto, nos servidores públicos. Ele faz parte de um trabalho de pesquisa que tenho realizado que tem por objeto as políticas de recursos humanos no serviço público. 2. A Política do Estado Brasileiro A dimensão política possui um peso significativo nas análises de organizações do serviço público. Considerando-se o processo de reforma do estado, pode-se afirmar que não é possível empreender qualquer tipo de análise organizacional sem que se discuta a priori as diretrizes propostas e as ações que vem sendo empreendidas na busca de reconstruir-se o Estado Brasileiro. O Governo Federal, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, publicou um documento intitulado Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado, onde lança as diretrizes gerais para a intervenção nos órgãos da administração pública dos três poderes e nos três níveis de estado, visando à implantação da reforma do estado brasileiro. Em uma tentativa de análise das principais tendências do cenário econômico e social vigentes à época deste plano, os estadistas centralizam suas preocupações no papel do estado e em suas relações com o mercado, creditando ao primeiro uma disfunção decorrente do seu papel ativo no setor produtivo. Como já o disseram AZEVEDO e ANDRADE (1997), a justificativa central para a saída do estado do setor produtivo, tem como corolário o aumento de sua participação na esfera social. Mais recentemente, os aumentos sucessivos da dívida interna e a diminuição acentuada das reservas, associados a crises de países importantes para a economia mundial, como os tigres asiáticos, o Japão e a Rússia, vêm permitindo ao governo federal admitir que estas ações são essenciais a um ajuste fiscal, que tem por papel a resolução dos desacertos entre receita e despesa do estado brasileiro em seus três níveis. Enquanto não se encerra o processo eleitoral, que deve confirmar uma arena política caracterizada pela maioria dos “partidos aliados” ao partido do governo na união e na maioria dos estados-membro, espera-se um conjunto dilatado de “pequenas ações e medidas” do poder executivo, com efeito cosmético. Em recente conferência na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, o representante do MARE recordou o decreto lei 200, onde o então ministro Hélio Beltrão (1967) buscava uma descentralização via "autarquias especiais, regime fundacional, sociedades de economia mista e empresas estatais". A proposta Bresser retoma a idéia de flexibilização do estado de Beltrão, apesar de abandonar quase todos os arranjos organizacionais estabelecidos por ele. Ela traz em seu contexto a idéia de uma administração pública gerencial como uma forma de superação da administração burocrática, baseada no "controle por resultados, busca da qualidade e eficiência dos serviços públicos". Os cidadãos de Minas Gerais elegeram um governador do mesmo partido que o 3

presidente da República (1995/1998), o que implicou em uma grande influência das políticas da esfera federal na gestão do estado. O objetivo do presente trabalho é comparar a proposta de criação de organizações sociais do Deputado Miguel Martini com as diretrizes estabelecidas pelo governo federal, buscando identificar as especificidades deste estado membro. Em um segundo momento passo a refletir sobre os possíveis impactos que as novas políticas de pessoal decorrentes deste projeto teriam sobre o servidor público. 2. Privatização e Publicização: As Linhas Mestras da Desestatização No governo federal a proposta Bresser Pereira divide o estado em quatro núcleos distintos, sobre os quais pesam diferentes políticas de ação da autoridade constituída. Inicalmente considera-se um núcleo estratégico onde se definem “a lei e as políticas públicas, e se garante, em nível alto, seu cumprimento”. Nele se encontram a estrutura dos poderes legislativo e judiciário, o ministério público, a presidência e a cúpula dos ministérios, no caso da União. Um segundo nível envolve as chamadas atividades exclusivas do Estado, que não poderiam ser delegadas a instituições não-estatais e envolveriam a regulamentação, fiscalização, fomento, segurança pública e seguridade social básica. No terceiro extrato, temos as universidades, hospitais, centros de pesquisa e museus, cuja natureza permite ao estado passar a prestação de serviços para instituições não-governamentais (denominadas Organizações Sociais). O último extrato envolve atividades de produção para o mercado, que vem sendo ocupado por empresas públicas e sociedades de economia mista. As ações de publicização e privatização são as diretrizes básicas respectivas aos dois últimos extratos do estado. Por publicização entende-se a passagem da prestação de serviços do “terceiro extrato” para entidades de direito privado sem fins lucrativos, que passam a ser regidos através de contratos de gestão. Por privatização entende-se a venda das ações de empresas públicas e sociedades de economia mista pertencentes ao Estado para a iniciativa privada. O Estado utilizar-se-ia também de outros dispositivos de ação, como as concessões, parcerias, alienações e terceirizações. O governo pretende iniciar uma campanha de publicização, que atingirá estados-membro e municípios e aguardava a reforma administrativa e as eleições para tal. Esta ação do estado atingirá principalmente o segmento de educação, cultura, saúde e pesquisa, de forma diferenciada dos segmentos considerados estratégicos e exclusivos do estado, o que justifica uma reflexão mais detida sobre a questão. No estado de Minas Gerais, a desestatização se encontra bem associada ao ajuste fiscal, através do termo “desoneração do estado”, que foi definido no documento intitulado “Diretrizes gerais para o planejamento em Minas Gerais” (SEPLAN, 1995) da seguinte forma: “Desonerar-se de atribuições e encargos através da privatização de ativos e participações que detenha em empresas, quer mediante a concessão à iniciativa privada de exploração de bens e serviços públicos, quer por intermédio do desenvolvimento de parcerias com o setor privado que proporcionem investimentos em projetos e programas de interesse na economia mineira”.

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Ressalvo que outras atividades se encontram ligadas à desestatização neste documento, como a renegociação da dívida mobiliária do Estado. A SEPLAN considera como objetivos da desoneração do Estado: "- Reduzir a participação do setor público em áreas que possam ser assumidas pela sociedade; - Reciclar a dívida mobiliária do Estado; - Racionalizar a utilização de bens imóveis; - Enquadrar o Estado de Minas Gerais nas determinações da Lei Complementar no. 82.195, regulamentadora do artigo 195, da Constituição Federal." (SEPLAN, 1997. P. 32)

3. A Publicização em Minas Gerais A base legislativa do programa estadual de incentivo às organizações sociais do Estado reside no projeto de lei, atualmente em curso, do deputado Miguel Martini. Uma análise do seu conteúdo mostra que o Estado pretende implementar as diretrizes do governo federal com algumas singularidades, que passamos a discutir: a) O projeto de lei não permite a concessão de servidores da administração pública (direta, autárquica e fundacional) nem de empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista no estado para servir nas organizações sociais. A única possibilidade de aproveitamento de quadros, reside em os servidores interessados pedirem licença sem remuneração, medida que reduz o gasto com a folha de pagamento e adia o direito de gozo de benefícios associados a tempo de serviço no Estado. Qual será, entretanto, o destino dos servidores públicos que não desejarem trabalhar na OS recém criada, especialmente quando tal se der concomitante à extinção da entidade estatal que vinha desempenhando suas atribuições? (MARE, 1998. p. 18) Este servidor seria passível de exoneração, ficaria à disposição do estado ou seria transferido? Com a extinção do órgão onde o servidor se achava lotado a lei da reforma administrativa permitiria sua exoneração? Estas questões se acham ainda por serem respondidas. b) O processo licitatório, uma vez cumprido o registro da OS, pertenceria ao arbítrio do poder executivo, na pessoa dos secretários de estado, avalizados pelo Governador. Desta forma, o legislativo só participaria da discussão referente à extinção de órgãos do estado, e os conselhos de saúde e educação não teriam qualquer poder de influência sobre as organizações sociais criadas em suas respectivas áreas de atuação. O conselho nacional de saúde se manifesta da seguinte forma: "Não estão previstos quaisquer mecanismos concorrenciais, seja por preço, seja por qualificação dos membros das OS. Diante disso, é de se indagar sobre como procederá o presidente ou o Ministro da pasta em questão ante a possibilidade de dois ou mais grupos formarem "pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos" e se dispuserem a gerir uma determinada instituição de saúde." (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 1998. p. 4) 5

Na experiência de Curitiba, foi criada uma Comissão Municipal de Publicização, onde, apesar da predominância do poder executivo, havia espaços para o legislativo, mas não ficou claro na exposição de Capriglioni (ALEMG, 1998) de que forma se pretende estabelecer uma gestão compartilhada entre estado e sociedade na definição e elaboração de políticas públicas, posto que estas parecem continuar sendo uma prerrogativa do poder executivo. c) As OS mineiras têm como instância deliberativa o Conselho de Administração, com poder sobre a diretoria da organização (inclusive o de escolher, designar e dispensar membros), composto dos seguintes membros não remunerados: três a cinco membros natos do poder público, dois membros indicados pelo estatuto, três membros eleitos pelos demais membros do Conselho entre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral e um membro indicado pela sociedade civil na qualidade de membro nato. d) O diretor presidente participa do Conselho Administrativo da OS sem direito a voto. e) O conselho fiscal da OS é composto de um representante da Secretaria de Estado da área afim à mesma, um representante da Procuradoria-Geral do Estado, um representante da Secretaria de Estado de Planejamento, Ciência e Tecnologia, um representante da Secretaria de Estado de Recursos Humanos e Administração e dois membros indicados pelas entidades representativas da sociedade civil. 5. As Críticas Dirigidas à Publicização Passo a discutir algumas das críticas geralmente direcionadas ao processo de publicização. A publicização seria uma forma de privatização de serviços do setor público. Não se trata de uma crítica rigorosa, mas de um jargão, posto que alguns elementos importantes do setor privado, como a economia de mercados, a competição e o lucro estão excluídas da dinâmica das organizações sociais. Trata-se de uma forma flexibilizada de terceirização, com transferência da execução dos serviços a empregados regidos pela CLT e permissão para obtenção de recursos junto à sociedade para complementarem-se as verbas previstas pelo contrato de gestão. As organizações sociais são inconstitucionais. Este tema polêmico contempla diferentes interpretações do texto de lei que atribui ao Estado certas obrigações. A manutenção do financiamento das OS pela via dos contratos de gestão deve ser o trunfo legal empregado pelo poder executivo para argumentar em favor da constitucionalidade das mesmas. A perda do controle da sociedade sobre as políticas públicas, especialmente as de saúde, previstas pela lei 8142. Embora o executivo afirme que as políticas continuarão a ser definidas pelos conselhos de saúde, este arranjo fragiliza a capacidade dos mesmos influenciarem em sua implementação, posto que o poder executivo se torna um anteparo entre a agência executante e a instância definidora de políticas. Sob esta ótica, a menos que se faça uma emenda de lei assegurando a presença dos membros destes órgãos nos 6

conselhos administrativos das organizações sociais, em número igual ao dos representantes do poder executivo, considero esta crítica bem procedente. A forma jurídica que permite a operacionalização dos contratos de gestão é o convênio, que é precário no que respeita à ação de partes lesadas, uma vez que não estabelece penalidades. No caso mineiro, a legislação prevê a ação de um interventor caso o conselho administrativo considere a gestão da OS irregular, bem como o descredenciamento da mesma. Resta saber qual a possibilidade da diretoria da OS realizar verdadeiras batalhas no poder judiciário e, em caso de endividamento da mesma, quem herdaria passivos trabalhistas e contas a pagar na situação onde o descredenciamento se consumasse. O ajuste fiscal, e não a administração gerencial, seria o principal motivo que leva o poder executivo a publicizar. O modelo burocrático weberiano é incompatível com o gerencialismo? Parcialmente. A definição circunscrita de cargos, associada à estabilidade proveniente do concurso público, dificulta os rearranjos organizacionais em situações de mudanças. Entretanto, a gestão burocrática pode ser acrescida do estabelecimento e avaliação de metas organizacionais. Este é o modelo que o documento do ex-ministro Bresser propõe para o chamado nível estratégico do Estado. O que o leva, então, a terceirizar as atividades de saúde, educação, pesquisa e cultura? Nossa opinião é que, tomando-se como parâmetro a trajetória da Associação das Pioneiras Sociais, as OS serão um meio para reduzir o número de servidores públicos sob o regime jurídico único, o que tem um impacto sobre a previdência pública e sobre a folha de pagamento do estado. Estas atividades se tornam mais "flexíveis", também no sentido de o Estado, em um cenário de crise fiscal, poder repassar menos recursos para as OS e, até mesmo, rescindir contratos de gestão, alegando a ineficácia das mesmas. Desta forma, a desoneração do Estado viria às custas dos serviços de saúde, educação, cultura e pesquisa. Sempre que isto acontecer, podemos dizer que o Estado nos oferece uma "desestatização estratégica" no lugar de um "estado mínimo". 6. Que impactos as organizações sociais teriam sobre os servidores públicos?

As políticas da reforma do aparelho do estado têm um impacto inicial sobre seus recursos humanos, que é a precarização do seu vínculo e uma discriminação cada vez maior de seus servidores. Políticas de Recursos Humanos são diretrizes de práticas de gestão que abrangem as relações de trabalho no interior de organizações. Para fins analíticos podemos tipificar as políticas de recursos humanos em políticas de manutenção, de qualificação, de bem estar e de qualidade de vida e saúde no trabalho. Por políticas de manutenção entende-se a atuação da organização visando a fazer com que os empregados optem por manter seu vínculo empregatício com ela. Elas envolveriam práticas como processos cuidadosos de recrutamento e seleção, remuneração aos níveis do mercado, planos de carreiras ou equivalentes, sistemas de recompensas e práticas que a diferenciam das demais organizações, como benefícios. Por políticas de qualificação entendem-se as ações voltadas a manter os empregados prontos a exercerem suas funções atuais e futuras, não se limitando apenas a ensinar a fazer, mas envolvendo também educação, informação e formação profissional. Por políticas de qualidade de vida e saúde no trabalho entende-se todo tipo 7

de ação organizacional no sentido de promover segurança, saúde (física e mental) e satisfação no trabalho. Por políticas de bem estar compreendem-se as ações que visam a promoção do bem estar dos empregados e de suas famílias além do ambiente de trabalho, como os programas de saúde, habitação, ambientais, assistência jurídica, etc. Ao distinguir as agências e órgãos governamentais para atuar de forma diferenciada, o governo acaba por implementar práticas de recursos humanos diferenciadas. Um primeiro impacto das medidas propostas seria o de se terem diferentes padrões de recursos humanos no serviço público. Os servidores públicos de órgãos e agências do núcleo estratégico e das “atividades exclusivas” seriam beneficiados com relação aos empregados das agências “prestadoras de serviços” do setor não-exclusivo. Os primeiros continuariam sob o regime estatutário, os últimos, a prevalecer a experiência do Hospital das Pioneiras Sociais, “optariam” pelo regime “celetista”. Considerando as políticas de manutenção, os servidores públicos, mesmo após a “flexibilização da estabilidade” obtida com a reforma administrativa, seriam mais estáveis que os servidores não-estatutários. Possivelmente, a recomposição salarial dever-se-á desenvolver-se dentro desta lógica de assimetria, como vem acontecendo com o caso dos gestores públicos. Acredito que os servidores do núcleo estratégico devam ser melhor remunerados que os servidores das chamadas atividades exclusivas, exceção feita ao fisco, por motivos óbvios. Espaço político regido pela CLT, as organizações sociais facilitariam a contratação dos "amigos do poder constituído", situação que havia sido coibida (embora não eliminada completamente) com a exigência de realização de concurso público para o provimento de servidores, mesmo em empresas públicas e sociedades de economia mista. Talvez a extensão deste critério para as organizações sociais reduza a possibilidade de tráfico de interesses em seu bojo. Outro problema de manutenção diz respeito à remuneração. Se por um lado as organizações sociais podem oferecer uma remuneração mais condigna que o Estado (o que pode acontecer se houver o interesse deste em pedidos de exoneração de servidores), por outro o montante de recursos que ela disporá para remunerá-los é restringido pelos valores do contrato de gestão, o que permite ao poder executivo "dar com uma mão e tirar com a outra". Entendo, portanto, que o vínculo dos servidores não-estatutários pode ser considerado como precário, se contraposto ao dos servidores estatutários, e que os servidores do núcleo estratégico contariam com ações de manutenção ainda mais vigorosas que os servidores dos órgãos de atividades exclusivas. Considerando as políticas de qualificação, o projeto de reforma do estado é cheio de boas intenções, mas não considera a estruturação de áreas de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos nos diferentes órgãos e agências. O projeto do governo federal mantém a qualificação via escolas de administração pública, o que é claramente insuficiente. Há que se delimitar um escopo de ação possível destas escolas, que mostram ter estrutura para o repasse dos princípios e da qualificação básica necessária ao administrador público diante da reforma administrativa, pode ser que possuam capacidade para alavancar programas de qualidade no serviço público, mas têm sua estrutura comprometida no que tange ao treinamento técnico e comportamental, bem como na capacidade de implementar programas de desenvolvimento de recursos humanos nas agências e órgãos públicos, dada a multiplicidade de atividades desenvolvidas nelas, bem 8

como o número de servidores das mesmas. Ainda que se investisse substancialmente nas escolas de administração pública, quantas horas de treinamento estas seriam capazes de proporcionar para todo servidor público no período de um ano? Qual seria sua capacidade de diversificar os programas de capacitação e de atender às demandas localizadas dos órgãos e agências? A posição de Schwartzman (1996) é de descrédito deste modelo, sugerindo-se uma maior proximidade entre a universidade e os órgãos públicos. Os servidores das agências de serviços não-exclusivos contariam com recursos que estariam estabelecidos nos contratos de gestão para que se implementem programas de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos. A questão que este dispositivo suscita é como conciliá-la com a concorrência entre as agências para obter-se o contrato. A princípio, as leis de mercado agem contrariamente à qualificação dos empregados. A legislação estadual é omissa com relação a este ponto. As políticas de qualidade de vida no trabalho, na presente proposta, restringem-se ao projeto de valorização do servidor para a cidadania, que não se acha suficientemente bem descrito e pode ser montado mais como uma tentativa de cooptação que uma consolidação de espaços de participação e de empreendimento; e à organização de carreiras, que mais uma vez não se aplica às organizações sociais. A legislação do estado é também omissa com relação a este tipo de assunto. Finalmente, as políticas de bem estar se restringem ao programa de atenção integral à saúde do servidor e seus dependentes, um sistema de saúde marginal ao SUS. Não temos estes dois últimos grupos de políticas desenvolvidos de forma a nos permitir maiores comentários, o que não deixa de ser sugestivo do lugar que ocupam no presente momento. No nível estadual não encontramos sequer projetos ou planos que possam correr em paralelo com a proposta legislativa de criação de organizações sociais. 7. Uma Discussão Geral O que se observa a princípio é que sob o ponto de vista das políticas de recursos humanos, a flexibilização do estado precariza as relações de trabalho, com maior intensidade no segmento dos serviços não exclusivos do estado. Não há ênfase nas políticas de qualificação, qualidade de vida no trabalho e bem estar. Em sendo implementada, a proposta é coerente com a intenção de governabilidade, à medida que dá poderes ao executivo para dimensionar os serviços não exclusivos do Estado segundo sua receita, mas demanda a ampliação das atividades de fiscalização e gestão para que se administrem estes serviços. Os impactos maiores das assimetrias nas políticas de recursos humanos se farão perceber nos âmbitos estadual e municipal, onde os chamados serviços não-exclusivos do Estado envolvem um número muito maior de servidores e cidadãos-clientes. Uma questão continua em aberto. As organizações sociais assegurarão uma melhor prestação de serviços ao público ou apenas flexibilizarão a folha de pagamentos e o quadro de inativos do estado? Uma organização atrelada ao financiamento do estado e regida pela lógica do clientelismo na composição de seus quadros pode ser mais efetiva que uma outra organização burocratizada4 mas provida de pessoal por concursos públicos e articulada com metas e objetivos estabelecidos e fiscalizados pela sociedade? Uma organização pode se tornar mais efetiva que outra sem nenhuma ação de qualificação e sem 4

Emprego o termo no sentido weberiano. 9

políticas que apontem para uma qualidade de vida no trabalho e bem estar social? É a burocracia inefetiva apenas por ser burocracia? Estas questões são centrais e precisam ser respondidas a priori, quer se deseje implementar organizações sociais, quer se deseje manter um aparato burocrático no Estado. O projeto do deputado Miguel Martini introduz um maior controle do Estado sobre as organizações sociais, mas devemos reconhecer que este controle pode ser estabelecido com a supremacia de uma lógica meramente monetarista, e as conseqüências desta ação são óbvias. Na concepção que apresento, as políticas de recursos humanos assumem um papel relevante na análise da viabilidade dos planos e propostas das organizações. Devem, portanto, entrar na pauta de discussões de planejamento, sob a pena de inviabilizá-los se negligenciadas.

8. Fontes Bibliográficas ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Ciclo de debates sobre reforma do estado, Diário do Legislativo, Belo Horizonte, 30/06/98. ______ 361ª reunião ordinária, Diário do Legislativo, [online]. Disponível na internet via http://www.almg.bov.br/dia/1050598.htm. Arquivo capturado em 10 de outubro de 1998b. AZEVEDO, Sérgio, ANDRADE, Luiz Aureliano. A reforma do estado e a questão federalista: reflexões sobre a proposta Bresser Pereira. In: DINIZ, Eli, AZEVEDO, Sérgio: Reforma do estado e democracia no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. BIAZZI JR., Fábio. O trabalho na perspectiva sócio-técnica. Revista de administração de empresas, São Paulo, v. 34, n. 1, p. 30-37, jan./fev. 1994. CÂMARA DA REFORMA DO ESTADO. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: MARE, 1995. CASTRO, Eliana de Moura, ARAÚJO, José Newton G. Análise social e subjetividade. in: MACHADO, Marília N. M. et al. Psicossociologia: análise social e intervenção. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Posição do Conselho Nacional de Saúde a respeito da proposta de criação das organizações sociais.[online] Disponível na internet via http://www.alternex.com.br/~saudebrasil/ted/cns_os.htm. Arquivo capturado em 27 de agosto de 1998. ENRIQUEZ, Eugène. O papel do sujeito humano na dinâmica social. in: MACHADO, Marília N. M. et al. Psicossociologia: análise social e intervenção. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. LANE, S. T. M. (Org.) Psicologia social: o homem em movimento. (11 ed) São Paulo: Brasiliense, 1993. MINAS GERAIS. Plano plurianual de ação governamental - PPAG. [online] Disponível na internet via http://www.seplan.mg.gov.br/ppagh.htm 10

MINAS GERAIS. Projeto de lei 1570/97 que institui o programa estadual de incentivos às organizações sociais e dá outras providências. [s.n.]. MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO. Organizações Sociais. Brasília: MARE, 1998. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Medida provisória dos bancos estaduais. [online] Disponível na internet via http://www.fazenda.gov.br/portugues/real/mpesta.html. Arquivo capturado em 13 de agosto de 1998. SECRETARIA DE ESTADO DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL. Diretrizes gerais para o planejamento em Minas Gerais. in: Plano mineiro de desenvolvimento integrado. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1995. SECRETARIA DE ESTADO DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL. Reforma e modernização do Estado. (2ª versão). Belo Horizonte: SEPLAN, 1997. ______ Representação gráfica dos órgãos e entidades da administração pública estadual - poder executivo. Belo Horizonte: SEPLAN, 1993. Artigo publicado na revista Cadernos de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais SAMPAIO, Jáder R. Desestatização e políticas de pessoal: dois eixos de análise na criação de organizações sociais no âmbito federal e no estado de Minas Gerais. Cadernos de Psicologia. Belo Horizonte, v. 8, n. 1, p. 19-32, 1999.

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