Desfazer laços e obrigações: Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS.

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Desfazer laços e obrigações: Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS.

Cauê Fraga Machado

2013

Desfazer laços e obrigações: Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS.

Cauê Fraga Machado

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Marcio Goldman

Rio de Janeiro, fevereiro de 2013. ii

Desfazer laços e obrigações: Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS. Cauê Fraga Machado Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada por:

_____________________________________ Marcio Goldman, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN) (Orientador). _____________________________________ Miriam Rabelo, Doutora, Universidade Federal da Bahia (UFBA). _____________________________________ Marina Vanzolini, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN). _____________________________________ Eduardo Batalha Viveiros de Castro, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN) (Suplente). _____________________________________ Edgar Rodrigues Barbosa Neto, Doutor, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (Suplente).

Rio de Janeiro, fevereiro de 2013. iii

Machado, Cauê Fraga. Desfazer laços e obrigações: sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS./ Cauê Fraga Machado. - Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGASMN, 2013. xi, 111f. Orientador: Marcio Goldman Dissertação (mestrado) UFRJ/ PPGAS-MN/ Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2013. Referências Bibliográficas: 95-98f. 1. Religiões de matriz africana. 2. Batuque. 3. Morte. 4. Desfazer. 5. Transformação. 6. Etnografia. I. Machado, Cauê Fraga. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional. III. Título.

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Resumo: Esta dissertação consiste fundamentalmente em uma etnografia que descreve analiticamente os acontecimentos, rituais e eventos envolvidos na morte de batuqueiros da Nação Oyó, que parte das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul. Para isso, busca ressaltar a importância da família de santo e das pessoas e orixás mais antigos no contexto dessa religião e em suas relações com a morte. Pois esta é o acontecimento que marca uma ruptura dramática em todos os laços construídos ao longo da vida religiosa. É a partir dela que o grupo de parentes de santo deverá se engajar em um processo curto e violento de destruição de tudo que fora construído, ligado, "aprontado". No ritual chamado eru (desligamento), objetos sagrados, roupas rituais e obrigações serão destruídas desfazendo definitivamente o vínculo do egum (morto) com os vivos. A morte também mudará as relações entre aquele que morreu, os vivos e os orixás: a pessoa se transforma em egum, e, com a ajuda dos que não se foram, torna a viver. Agora, porém, no Orum (a terra dos orixás), onde viverá com seu orixá de cabeça, mantendo uma relação mais estreita com a divindade. A partir disso, a dissertação sugere que o desfazer de laços e obrigações consistem, simultaneamente, em feituras e vínculos que acontecem paralelamente em outro mundo. Morte e vida, fazer e desfazer são, portanto, tratados como constituintes homorgânicos da pessoa batuqueira no Oyó, i.e., elementos que compartilham o mesmo substrato, o que exclui a noção de pares opositivos, mantendo, no entanto, a propriedade diferencial que estabelece a relação entre eles. Palavras-chave: Religiões de matriz africana, Batuque, morte, desfazer, transformação, etnografia.

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Abstract: This thesis consists basically of an ethnography that describes and analyses the events, rituals and events involved in the death of members of Oyo Nation that belongs to religions of African origin in Rio Grande do Sul. In order to do this, it seeks to emphasize the importance of the religious family and of the oldest members and orishas in the context of this religious and its relations with death once it is the event that marks a dramatic break of all ties built throughout the religious life. It is from death that the group of religious relatives should engage in a short and violent destruction process of everything that had been constructed, connected, “made”. In a ritual called “eru” (disconnection), sacred objects, ritual clothes and obligations will be destroyed, action that undoes permanently the bond of egum (the dead person) with the living ones. The death will also change the relation between the one who died, the living ones and the orishas: the person becomes egum, and, with the help of those who have not gone, comes back to life. Now, however, in Orum (the land of orishas), where he/she will live with his/her orisha, keeping a closer relationship with the divinity. From this, the thesis suggests that the undoing of ties and obligations consist simultaneously in some initiation rituals feituras and ties that occur in a parallel world. Death and life, doing and undoing are therefore treated as constituents of homorganics of batuqueira person in Oyo, ie, elements that share the same substrate, which excludes the notion of oppositional pairs, keeping, however, the differential property establishing the relationship between them. Keywords: Religions of African origin, Batuque, death, disrupt, transformation, ethnography.

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Para Evandro, aquele que deixa tudo mais bonito quando está por perto, com amor. & Para o povo de Oyó, sobre quem esse trabalho trata. vii

Agradecimentos

O batuque é uma religião encantadora, com sua gente de todo tipo, suas cores, cheiros, músicas, histórias, milagres e orixás. Essa dissertação não teria acontecido sem a ajuda dos “filhos do Oyó”, especialmente Odacir Marinho (Pai Odacir do Ogum) que escancarou as portas de sua casa para mim. Foi ele quem mais me ensinou as coisas da religião, para que eu escrevesse, registrasse. Foi ele quem, com fidalguia admirável, teve a paciência de contar histórias, esclarecer dúvidas, orientar meus olhos e ouvidos para o que era importante no Oyó. Seus filhos e filhas de santo, todos sem exceção, tiveram curiosidade e imensa bondade ao me acolher e falarem sobre sua religião, sobre suas vidas, demonstrando grande respeito e admiração por seu pai de santo. Sempre há o risco de se esquecer de algum nome importante, o melhor seria não nomear um a um os filhos da casa que estudei, entretanto alguns foram figuras fundamentais para que essa dissertação acontecesse. Ricardinho, Carla Silva (in memoriam) e Carla Pacheco, Camile, Claudinha, Cleusa e seus filhos (entre eles Marlene), Tiago e Vanessa, Manu, Preta, Maninha, Batista, Robson, Tatinha, Dona Tânia, Tamires, Nika, Regina, Rejane. Além deles, Tia Neneca, Tia Erondina, Dona Eloci e Sergio do Oxalá (in memoriam). Da família de sangue, meu pai, Newton Machado, pelos diferentes suportes (psicológico e financeiro), pelas leituras que sempre faz e retorna com comentários orgulhosos, pela vida que me dá... Não há palavras que possam prestar as homenagens merecidas ao homem que me deu a vida e que me ensinou muito do que sei. Minha mãe, Carmen Fraga, nada faria jus a tudo que representa para mim e ao quanto me fez ser quem sou. Filha de mãe costureira e de pai operário da construção civil, ambos analfabetos, irmã de cinco irmãos e três irmãs, sempre lutou para poder estudar. Em universidade pequena, pois como sempre diz “a UFRGS é para os privilegiados”, licenciou-se em história. O valor que sempre deu para educação e o envolvimento em lutas sociais influenciou, de modo que não saberia mensurar, minha escolha pelo curso de ciências sociais e, depois, pela escolha da antropologia, onde centrei meus estudos. Ao longo da vida tive outras mães a quem também sou grato, minha Tia Inês (a Dada) que ajudou a me criar. Minha madrinha, Iara (a Dinda), que até hoje cuida do afilhado, mesmo de longe. Tia Denize, minha mãe baiana, que me acolheu no Rio de Janeiro como um verdadeiro filho. Minha madrinha Neli e sua mãe Oxum, presentes que a vida me deu e que me ajudam sempre que preciso, com carinho e amizade verdadeira. Finalmente, a minha viii

mãe de santo, Rosinha do Bará (a Dona Rosa), primeiro grande amiga, da fala mansa e da fala grossa (quando necessário), do abraço sincero, do sorriso de orelha a orelha, conselheira e confidente, meu amor, respeito e admiração ao ser mais humilde lindo que o lado de Oyó possui. Ainda na família, meu Tio Paulinho, meu pai aqui no Rio de Janeiro. Meu irmão Marcos, Wiliam, Drika e Tomas, essa grande família que me recebeu de braços abertos e que não posso mais viver sem. Com eles vieram a Cleo e a Vero, o Negão, a Jô, a Michele e a Janete. Minhas amigas e irmãs, Ana Popp e Patrícia Dias (a Patê). À Ana que com a sensibilidade, a doçura e a violência de Iemanjá tomou meu coração. Além disso, não cansou em ler minha dissertação e me ajudar nas mais diferentes ocasiões. À Patê, como nossa mãe, a figura mais doce e especial, que me acompanha desde o inicio da graduação, discutindo política, antropologia, religião e tudo sobre a vida. Amo vocês duas. Ao Marcelo e à Marcela, que foram e são minha família aqui no Rio de Janeiro. Aos amigos e amigas, Marieta, Anna, Milena, Leonardo, Alexandre, Melissa e Eleana. Aos colegas, Mariana Renou, Natalia Quiceno, Marcos Carvalho, Anna Massoz, Floriberto Vásques, Angela Kali, Luiz Felipe e Simone, Handerson e Francine, Luis Meza e Angela. À Rita Lee e ao Toquinho, pelas músicas, pelo carinho caloroso e pela companhia. Ao pessoal do Iacoreq, Ubirajara, Itarajara, Eva, Rita, Paulo, Laiz, Luanda, Adri (nunca me esqueço de ti), Marina e José Carlos. Da UFRGS agradeço aos professores José Carlos Gomes dos Anjos, com enorme admiração, e Sergio Baptista e às professoras Maria Eunice Maciel, Ceres Víctora e Cornelia Eckert. Do NER ao Prof. Ario Oro e ao Rodrigo Toniol, do PPGAS-MN à Profa. Olivia Maria Gomes da Cunha e da UFF ao Prof. Ovidio de Abreu Filho. No PPGAS-MN agradeço também à Carla e à Alessandra, pela gentileza, delicadeza e amizade com que sempre me trataram. Sem elas a biblioteca não funcionaria. E à Profa. Renata Menezes pelos comentários na RBA. Agradeço à Profa. Miriam Rabelo e à Marina Vanzolini pela gentileza de participarem de minha banca, além delas ao Prof. Eduardo Viveiros de Castro e ao Edgar Barbosa Neto por participarem como suplentes. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa concedida durante os 24 meses do mestrado, sem a qual não poderia ter cursado. Ao ix

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (PPGAS-MN/UFRJ) pelo suporte acadêmico e financiamento de idas a campo. Finalmente, ao meu Orientador, Marcio Goldman, pelo interesse e dedicação, pelas correções e paciência, pelos textos e aulas inspiradoras. Sem sua “mão” essa dissertação não teria tomado forma. E ao Evandro Bonfim, pela companhia nas horas mais difíceis dessa minha curta vida acadêmica. Pelo amor, pela dedicação, pelas ideias, conceitos, correções, carinhos, pela nova vida que me deu. Por essas e por outras que ainda virão meu amor e meu muito obrigado! “And Fate has just handed it to me – whoopee”!

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Convenções

Devido a grande quantidade de conceitos, termos e categorias nativas optei por grafá-las sem ênfases, explicando-as na primeira menção, através de notas de rodapé, parênteses, ou no corpo do texto. O ‘y’ deve ser lido como ‘i’, o ‘k’ como ‘c’ e o ‘w’ como ‘u’. Os nomes dos orixás estão escritos de modo abrasileirado, a grafia concordando com a pronúncia, exceto ‘Oyá’ e ‘Ewá’. O uso do ‘y’, do ‘w’ e do ‘k’ segue orientação dos nativos. Palavras ou expressões em latim virão em itálico. Palavras em Ioruba e nomes de orixás em citações serão transcritos tal como no original.

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Sumário Lista de Figuras ............................................................................................................................... 1 Introdução ......................................................................................................................................... 2 “Oyó Puro” .................................................................................................................................10 Religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, dados e estudos .................................15

Cap. 1 “Começar pelo começo”: a família e os antigos ............................................................25 1.1 No Santo .................................................................................................................................27 1.2 De Sangue ...............................................................................................................................30 1.3 Compadrio no santo .............................................................................................................36 1.4 Os Antigos ..............................................................................................................................37

Cap. 2 Uma troca, um eru e a imortalidade dos orixás..............................................................44 2.1 Troca de Vida .........................................................................................................................44 2.2 Do enterro ao eru de Tia Lourdinha ..................................................................................46 2.2.1 Antes do eru: a missa e as refeições.................................................................................48 2.2.2 Eru de Lourdes do Ogum .................................................................................................56 2.3 A Morte e seus Rituais Finais ..............................................................................................59 2.4 Pessoa Morre Orixá Não ......................................................................................................60

Cap. 3 Sobre pessoas, assentamentos, casas e imagens ............................................................65 3.1 Velório e enterro do Sergio do Oxalá.................................................................................65 3.2 Matança ...................................................................................................................................67 3.3 Eru do Sergio .........................................................................................................................73 3.4 Assentamentos e Imagens ....................................................................................................77 3.4.1 Um assentamento sob suspeita ........................................................................................79 3.4.2 Imagens Cruas e Imagens Preparadas .............................................................................80 3.5 Continuidade, ruptura e a condição homorgânica da pessoa batuqueira ......................81 Conclusão: fazer, desfazer e refazer .........................................................................................85 Fazer

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Desfazer e refazer ........................................................................................................................93 Referências ......................................................................................................................................96

Lista de Figuras: Figura 1: Genealogia Oyó. Figura 2: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul. Figura 3: mapa Viamão. Figura 4: planta baixa Casa Mãe Neneca do Xangô. Figura 5: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul. Figura 6: mapa de Gravataí e do bairro Morada do Vale I. Figura 7: Casa Pai Odacir do Ogum. Figura 8: planta baixa Casa Pai Odacir do Ogum.

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Introdução

É justamente nos sete dias que sucedem a morte de um batuqueiro que as Nanãs aparecem. Orixá dona da vida, da morte e dos espíritos. Acontece que, como se morre de várias formas, quando a morte vem, pode-se perder um membro, um braço ou perna. É Nanã Burukê quem juntará. Nanã Anarauim está sempre correndo, passa e não para. Nanã Anansurê passa, para e olha, mas vê que aquilo não é para ela. Já Nanã Burukê é a que para, recolhe as partes do corpo e leva para algum lugarzinho na praia – pedras, mata, beira de mar ou rio – e fica esperando o que a “lei manda”. Se nesse tempo “tudo” (rituais e oferendas) for feito direitinho, ela irá juntar os pedaços para reconstruir e levar o egum (morto) para perto do seu orixá de cabeça. Diz-se que, a cada ritual realizado, a pessoa, agora egum, vai aproximando-se mais e mais de seu orixá. Nanã vai levando o egum – ou alma1 – para perto dele. Pois o final de todos aqueles que são de religião é “aos pés de seu orixá”.

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Esta dissertação, eminentemente etnográfica, dedica-se ao estudo das relações dos batuqueiros de Oyó com a morte e a necessidade que tal acontecimento impõe de serem desfeitos laços e obrigações2, para se refazê-los noutro plano, transformando as relações entre todos e tudo envolvido. Ela nasce de meu duplo envolvimento com o 1 Em meu campo, alma é equivalente à pessoa sem a sua parte corpo. O corpo é algo a ser ocupado, seja por essa parcela da pessoa, seja por um orixá inteiro, ou pela metade orixá/metade pessoa – os axeres, o que é explicado mais adiante. Pessoa é o resultado da soma das parcelas alma e corpo, e também seu orixá – esse não como parcela. Aqui, talvez, a evidência seja de que as operações de adição e subtração talvez sejam metáforas deficientes. Contudo, são capazes de, por meio de simplificações, dar inteligibilidade a conceitos e categorias formulados com tamanha complexidade pelos batuqueiros. Alma, corpo e orixá tornam-se espécies de partes da soma total, que se separam. Orixá fica em Orum (mundo dos orixás), a alma – agora egum – deve ir para Orum também. E o corpo fica debaixo da terra, vazio. O egum, alma sem corpo, é, portanto, perigoso, pois desejoso de outros (novos) corpos para ocupar. Por isso, o eru não apenas desligará os vivos daquele que morreu, mas ensinará o egum que ele não pertence mais a esse mundo, como já mencionado. Sobre os perigos dos eguns, ver Corrêa (2006: 174). 2 Obrigação engloba tanto o que traduzimos por objetos rituais, quanto por algumas ações e pelos próprios orixás em seus assentamentos. Obrigação designa o fazer, o cuidar, mas também aquilo que fica guardado, atrás das cortinas em sopeiras e manteigueiras, os assentamentos. São as ferramentas, armas dos orixás; como a chave e a foice do Bará. São, também, os próprios ocutás. E, ainda, momentos como os cortes (matanças), festas e outros eventos. Ouvimos falarem do tempo em que fizeram sua obrigação, ou “na obrigação da minha mãe vai ori”. O que traduzimos por material e por imaterial, também, pode ser unido sob a palavra obrigação, que não confunde ingenuamente o que tendemos dividir, mas coloca numa mesma movimentação diferentes séries de acontecimentos. Acontecimentos que precisam ser feitos ou desfeitos para acontecer. Além disso, obrigação é um compromisso com a religião e com o orixá.

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batuque: como iniciado e como pesquisador. Duas posições que meus amigos trataram de conectar e separar sempre que adequado, como fica claro adiante. Optei por realizar meu trabalho de campo na casa de Pai Odacir do Ogum e não faço uso de pseudônimos nesta dissertação; utilizo nomes reais, recorrendo à referência indireta somente por ocasião de situações que envolvam o segredo religioso. Não foi nessa casa que me iniciei, mas Pai Odacir mantém laços familiares e emocionais estreitos com minha casa (família). Penso que as posições de filiado e a de antropólogo estejam imbricadas. Contudo, como demonstro, os dados de campo extraídos da relação que mantive com Odacir recaem sobre a posição de pesquisador, sendo a de iniciado um pano de fundo. Já os dados advindos de minha relação com Dona Rosa e com Neli (mãe e madrinha), fundam-se no exato oposto da relação com pai Odacir. Penso que meu duplo envolvimento com a religião produziu está dupla posição, que não pode ser ocupada sem que pese ora para relação de filiado, ora para relação de pesquisador. Datam de 2007 minhas primeiras idas ao Quilombo da Casca (lugar que em outros momentos aparece no texto), em Mostardas, região litorânea do Rio Grande do Sul. Através do Projeto de Extensão do DEDS (Departamento de Educação e Desenvolvimento Social, da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS), tive a oportunidade de passar uma semana naquela comunidade. Foi então que tive minha primeira experiência real de trabalho de campo. Já havia visitado outros quilombos e até produzido alguns textos para disciplinas; no entanto, não havia convivido por dias seguidos, participando do convívio mais cotidiano, nas casas das pessoas. Não tivera até então a oportunidade de dormir nas casas onde pesquisava, de ir, aos poucos, pegando o ritmo do dia, tão diferente do de minha vida, sempre corrido. Depois dessa semana, retornei ao Quilombo com certa regularidade; primeiramente, pousando na casa de seu Quincas, depois na de Dona Carmem, na de Dona Nana e Seu Toninho e, por último, na de Dona Rosa. Já na primeira manhã em que acordei em Casca, durante a roda de chimarrão que, geralmente, precede ou sucede refeições, o assunto mais comentado, antes do almoço, era o modo correto de lidar com o “bicho da cera do ouvido”. Diziam que não se deveria colocar álcool no ouvido, pois “embebeda o bicho”. O correto era o leite de teta de uma mulher. A partir de então, pude observar (e ouvir sobre) uma série de procedimentos para curar enfermidades, desde os óleos animais, até a benzedura, passando pelos chás, rezas e remédios alopáticos. Meus amigos de Casca foram, aos poucos, sugerindo benzedeiras para eu procurar e aprender, o que seria “bom para minha faculdade”. Das 3

benzedeiras com quem conversei, três eram “de religião3”, Sarai, Dona Carmem e Dona Rosa. E de diferentes nações4 (Jêje, Ijexá, Cabinda e Oyó) e religiões (batuque, umbanda, quimbanda, linha cruzada, entre outras). Porém, foi por meio de Dona Rosa que o universo dos batuques me foi apresentado de modo mais intenso. Benzedeira desde os quatro anos de idade, cavalo5 de Pai José de Angola desde os nove e pronta pelo lado de Oyó há 31 anos, tem na cabeça Bará e no corpo Obá. Ser pronto no batuque de Oyó significa ter assentado seus orixás, dando animais quadrúpedes e permanecendo recolhido por tempo específico, que pode chegar a 21 dias, deitado sob uma esteira no chão do quarto de santo. Os orixás obrigatórios são o dono da cabeça, o do corpo e Bará, sem o qual nada existe na religião. Orixás de cabeça e de corpo formam um casal, ou adjuntó. No Oyó, um orixá masculino sempre casará com um feminino, seguindo sempre o que a história dos orixás conta. A primeira vez que fui à casa de Dona Rosa para visitá-la, além dela encontrei também sua filha de ventre, a Neli da Oxum. Depois de termos conversado muito sobre benzedura, falamos sobre seu preto velho e um pouco sobre Oyó – “religião africana mesmo”, disse ela. Fui convidado a voltar mais vezes, o que fiz. Pouco antes de defender meu Trabalho de Conclusão de Curso, procurei todos com quem conversei na Casca, para que lessem o trabalho e o aprovassem ou não (a “banca” mais importante por que passara até então), o que adotei como procedimento para todo trabalho etnográfico que faço. Foi então que Dona Rosa pediu para eu ir à sua outra casa, no bairro Stella Maris, em Alvorada/RS, pois lá estão assentados seu pai e sua mãe (orixás). Era próximo ao dia 11 de junho, data do “aniversário de vasilha” (comemoração anual que tem como referência a data do assentamento do orixá de cabeça. Vasilha corresponde ao recipiente onde o assentamento é depositado para que possa comer o que lhe for ofertado) do Bará e da Obá. Disse para eu, antes de entregar meu trabalho a qualquer pessoa, que o entregasse para o Bará. Nesse dia, aprendi a bater cabeça6 e conheci um pouco sobre o Orixá dono da casa. Em uma casinha vermelha, estava seu sento (nome 3 Ser de religião é uma categoria nativa, é o modo mais usual para designar quem é adepto das religiões de matriz africana. 4 Nação é o nome da religião que se divide em diferentes lados, também chamados de nação. É sinônimo de batuque; quando este significa a religião, pode-se dizer que alguém é batuqueiro, de batuque, de nação ou de religião. 5 Cavalo, cavalo de santo ou aparelho é o nome para designar a pessoa que passa pela possessão na umbanda, segundo meus informantes. Cavalo de santo é utilizado para possessão por orixás também. 6 Bater cabeça é o ato de se deitar no chão com pernas e braços esticados para trás, encostando a cabeça no chão, quando a pessoa tem cabeça de orixá masculino; deitar de lado abraçando o corpo ou esfregando as palmas das mãos, fazer o mesmo movimento para o outro lado e ao final realizar o mesmo movimento que uma pessoa de cabeça de homem (como chamam) faz, quando a pessoa tiver um orixá feminino na cabeça.

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mais utilizado para falar dos assentamentos de orixá, feitos em ocutás (pedras), vultos ou metal), que não pode ser visto por qualquer um e nem em qualquer época. Em frente à casinha, Santo Onofre e Santo Antônio (Barás), balas de mel em um recipiente de vidro, uma faca, dois carrinhos de plástico, um copo de martelinho e uma garrafa de “velho barreiro” (cachaça). Era ali mesmo que eu deveria deixar a primeira cópia de meu trabalho. Meus laços com Dona Rosa, Neli e Marcos (marido de Neli e filho de santo de Dona Rosa) foram se estreitando a ponto de eu entrar para religião. Já preocupada com o fato de eu estudar (“trabalhar com a cabeça”), Dona Rosa achou por bem que eu fizesse um sanapismo de ebis7. Assim, ela pôs sua mão sobre minha cabeça e me fez seu filho de santo. Ao mesmo tempo, tornei-me afilhado de santo de Neli. Antes mesmo de ter me deitado8 para meu orixá, já era considerado filho da casa e, por isso, participei de diversos rituais e festejos. Fui, aos poucos, ganhando uma mãe, uma madrinha e irmãos de santo. Além deles, orixás que cuidam de mim, que também são pais, mães, irmãos, irmãs e madrinha. Entre o final de minha graduação em janeiro de 2010 e o início de meu mestrado em março de 2011, não tive maiores preocupações em manter alguma relação de pesquisa e segui como filho da casa. Foi apenas com o advento do curso de mestrado que conversei com Dona Rosa, com Neli e com Odacir (pai de santo de Neli e irmão de santo de Dona Rosa) sobre a possibilidade de estudar o batuque de Oyó. Essa condição de pesquisador propiciou ver e ouvir aquilo que, como filho de santo, não seria possível, pois como filho ainda me falta muito “chão9” para poder ver e ouvir o que vi e ouvi. Exemplo disso foi o “axé de búzios”

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de Marlene da Oxum, no qual apenas

os prontos poderiam participar. Aqueles em grau de iniciação mais baixo foram convidados a se retirar do salão, quando Odacir disse: “agora no salão só os prontos e esse menino que tá pesquisando” e completou, “isso não é para tu contar pros teus amigos, é pra por no teu 7 Sanapismo é a obrigação mais leve, ou a que inclui menos obrigações do filho para com seu orixá. Ebi é o caramujo de Oxalá. O sanapismo pode ser feito com pombos também. 8 Deitar para o orixá é ir para o chão, com reclusão no quarto de santo sobre esteira de palha, com sacrifício para o orixá de cabeça e por tempo correspondente a obrigação em questão. Sanapismo, 24 horas, borido quatro dias, por exemplo. 9 No sentido duplo de ter pouco tempo de religião e, por isso mesmo, não ter quase tempo nenhum de chão – de obrigação para com os orixás. Além disso, poderia dizer que tenho pouco tempo de campo também. 10 Quando o filho já pronto recebe o direito de jogar os búzios. Tal ritual envolve o sacrifício de uma galinha preta para Orumilaia, que não é cortada, mas tem sua cabeça arrancada, sempre por um homem e com a ajuda de um alá (pano branco de Oxalá). O sangue é vertido sobre os búzios, uma sineta (para chamada de orixá), as guias (que delimitam o espaço do jogo) e nos olhos do filho/a de santo. O pescoço da galinha é passado nos olhos ao invés de ser chupado, como no caso do corte para outros orixás. Penas da galinha de Orumilaia são passadas nos olhos abertos de todos os presentes. Tanto o sangue, como as penas servem para dar visão. A carne da galinha é assada e distribuída aos homens. As mulheres não podem ingerir, nem temperar, cozinhar ou matar tal ave. Apenas podem receber o sangue ou as penas nos olhos.

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livro”. Tal evento fez com que alguns mal-entendidos ocorressem, como o fato de pessoas mais antigas (os antigos são tema do primeiro capítulo) solicitassem que eu deixasse o salão; Odacir tratava de explicar o porquê de eu estar ali. O acontecimento mais explicito de eu não poder participar de uma série de rituais nem de muitas festas (batuques), como filho de santo foi a pergunta de uma axere11, indagando se eu tinha permissão para estar participando de uma festa em uma casa de Cabinda (outro lado do batuque): “o xinhore anda muito solto. O menino [forma como chamam Bará] sabe que o xinhore tá tão solto”. Tive de explicar que recebera autorização de minha mãe de santo para participar dos batuques como pesquisador, desde que acompanhado de Odacir ou de Neli. O efeito da dupla participação na religião produziu entradas e barreiras específicas. Ao mesmo tempo em que pude participar de cerimônias nas quais apenas os prontos poderiam participar, era preciso tomar certo cuidado para não se perder o controle, pois minha posição de sobrinho de santo era afetada pelas forças da inveja, da fofoca e do feitiço. Além disso, era preciso tomar certos cuidados para que meu orixá de cabeça não desejasse comer mais do que deveria12. O carinho, o acolhimento caloroso e o interesse em me ajudar a escrever, foram, contudo, as forças que mais afetaram esse trabalho. Odacir tomou para si o controle das condições em que meu trabalho de campo se desenrolou, decidindo a que eu poderia ou não assistir, chegar ou não perto, tornar ou não público na futura escrita. Desde então, sigo participando dos batuques do povo de oyó como filho-desanto-também-pesquisador. Dediquei meu olhar ao cotidiano, mas também dediquei a escuta ao que meus “nativos e parentes” gostariam que fosse dito sobre eles; ou melhor, “o que era importante para meu trabalho”. Houve um limite para o que eu poderia saber/aprender, pois saber é, neste caso, ganhar um tipo de poder que envolve o conhecimento sobre os feitiços e segredos da religião. Ainda que conhecer seja diferente de poder fazer, uma posição não apenas discursiva me fora exigida em diversos momentos. Odacir muitas vezes, quando eu estava cansado após horas de trabalhos, perguntava: “Ué tu não tá aqui para observar antropólogo? Se é para dormir, volta para casa!”13. 11

Axere é o estado em que se está metade humano, metade orixá, no corpo. Dizem que é o meio orixá. Agem como crianças, são os orixás crianças. Lembram as descrições sobre os eres, mas não são outra entidade, senão o próprio orixá. Não recebem outro nome, são tratados pelo nome específico do orixá. Para uma descrição mais detalhada, ver Corrêa (2006: 217-8). 12 O perigo é de o orixá de cabeça ver sua comida favorita, a cabeça de seu animal de quatro-pés, e passar a exigir que se lhe ofereça tal sacrifício. Barbosa Neto (2012: 17) também notou tal risco. 13 Poderia tomar, quase ao pé da letra, o que Favret-Saada (1980) escreveu sobre sua experiência com a feitiçaria no Bocage: “[...] so it was my interlocutors who decides what my position was ('caught' or not, bewitched or unwitcher)” (: 17). Com a diferença que tal decisão e mudança de posição não dependiam de

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A ideia foi permitir ser afetado pelas mesmas forças que afetam os nativos, não para fazer religião – é claro –, mas para produzir uma dissertação. Assim, fui colocado no lugar de “o observador”, “o antropólogo”, “o historiador”, o que implicava adotar algumas posturas como a de deixar o trabalho ser conduzido por aquilo que o Pai de Santo pensava ser mais pertinente para “meu livro”. Resta tecer comentário sobre o lugar de religioso que permitiu leitura diferenciada dos dados “acessados” como pesquisador. Além disso, mas não menos importante foi a colaboração na escrita, com correções que Odacir, Neli e Carla Silva (in memoriam) me enviavam, fazendo da unidade da autoria algo diluído e compartilhado na constante troca de ideias que tive com meus amigos religiosos. Não farei digressão maior sobre a relação entre pesquisar um universo do qual se faz parte14, no caso ser adepto de uma religião afro-brasileira. Enfatizo o engajamento dos religiosos na tentativa de estabilizar para mim o lugar de quem está estudando, não praticando a religião – ainda que se possa considerar estudar uma forma de praticar, não era isso que falavam sobre o que seria a prática religiosa. Os levei a sério, ocupando o lugar “imaginado/imaginário/desejado” de “puro” antropólogo. Não obstante, minha filiação religiosa foi enriquecida com essa experiência, assim como a pesquisa gerou expectativa nos religiosos de modo ainda não mensurável. Grosso modo, o lugar de onde escrevo é sui generis, o de alguém que deu os primeiros passo na iniciação religiosa e passos maiores na incursão etnográfica. Somado a isso, o conceito de pureza expresso na forma “oyó puro” utilizada ao longo da dissertação não se insere na discussão própria aos estudos de candomblé nos quais o rito nagô foi por muito tempo considerado o modelo mais africano de culto. Refere-se, antes, a formas próprias utilizadas por meus amigos para se referir à nação de Oyó, como será discutido melhor adiante. Pureza que problematizarei utilizando as próprias categorias nativas, não fazendo de minha pertença religiosa a medida de graus de pureza no qual a nação estudada estaria no topo. Voltando, parece também que para elaborar qualquer noção que extrapole a própria etnografia carecemos de comparações com outros trabalhos do que se considera uma mesma região etnográfica. Na contramão disso, passando por algumas ideias apresentadas por Strathern (1991), poder-se-ia depreender que, para se falar de batuque de

uma interpretação de meu discurso, mas de situações nas quais era importante que eu passasse de um lugar a outro. 14 A discussão sobre essa temática mereceria um trabalho à parte. Entre ser um simples filiado e ser pronto na religião existe “um mundo”, assim como o envolvimento do antropólogo com seus nativos pode variar em muitas possibilidades. De modo que temos afirmações que vão desde a tão requerida “neutralidade axiológica”, até às de Santos (1984) para quem o etnólogo só poderá realizar interpretação completa e competente se for um iniciado. Para uma discussão sobre algumas dessas possibilidades ver Cruz (1995).

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um modo geral, não é necessário um amontoado de comparações, pois o detalhe etnográfico pode/deve ser capaz de responder questões gerais, grandes questões. Importam, como frisa a autora, as perguntas que fazemos para nossos “dados”. “Quanto mais complexas as questões, mais complexas as respostas”, e acrescenta: “fazendo ‘grandes’ perguntas a dados ‘pequenos’ a distinção pequeno/grande some, dá lugar a perspectivas e níveis, e o senso de que a natureza da descrição é parcial” (Strathern 1991: xiv-xxii). São esses dados “pequenos” (também grandes) e a evidente parcialidade do material de campo, que compõem a dissertação. Meu incômodo com a ideia de que a etnografia aparece em muitos textos acadêmicos para exemplificar ideias fechadas, antes mesmo da realização de um trabalho de campo, e minha experiência etnográfica – talvez não por acaso (e quem acreditaria em acaso?) – levam-me a escrever de modo a valorizar o detalhe etnográfico e, ao menos, tentar extrair alguma questão relevante para os batuqueiros de Oyó e para a antropologia. Deixo clara, assim, a opção etnográfica adotada, que se deve não apenas ao curto tempo para realização de uma dissertação de mestrado e os limites de tamanho, mas também a uma escolha pessoal, que envolve pensar o conhecimento antropológico como fruto da experiência de trabalho de campo. Dessa forma, uma atenção maior à vasta bibliografia sobre religiões afro-brasileiras e um estudo comparativo ficarão para outra oportunidade.

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Em novembro 2009, tive a oportunidade de ir a um batuque na casa de Odacir do Ogum. Era aniversário dos 25 anos de vasilha do Ogum. Festa especial, pois vestiriam os santos, o que não se fazia há muito tempo. Somente os orixás antigos e com fala têm o direito de utilizar suas vestes especiais, os axós. Atualmente, chamam de axó as roupas que se utilizam para ir a um batuque. Para os mais antigos, o certo é chamar de uniforme, axó é a roupa do santo. Ao contrário da hipótese de Bastide (1959; 1985) de que os santos no batuque não utilizavam suas vestimentas específicas pela pobreza do negro em Porto Alegre, o que me contam é que o enriquecimento acabou com esse ritual. Antes, usavam-se roupas simples, muitas vezes de chita, nada de saia de armação (“ala de baianas” como alguns dizem) ou brilho nas roupas. Assim, vestidos com pompa, os humanos brilham como se fossem orixás. Alguns, como Tia Erondina da Iemanjá, dizem ser essa uma das causas do ritual perder seu sentido. Quem deve brilhar são os orixás. O certo é que o ritual 8

de “saída de orixá” (vestir o orixá) perdeu seu caráter ordinário, passou a ser extraordinário, para festas como essa de comemoração de uma longa data de assentamento. Com o fim dos rituais que envolvem a comemoração do aniversário do santo, e seu respectivo chão, iniciam-se os passeios15. Odacir e seus filhos foram à casa de Dona Rosa, onde foram recebidos com pétalas de flores, com suas comidas preferidas, bebidas e saudações ao orixá dono da casa. Foi nesse dia, durante o almoço, que fui apresentado a Odacir, que me contou várias histórias “para eu colocar em meu livro”. O tempo passou e depois de ter participado de vários batuques em sua casa, em 2010 tive uma conversa para oficializar o que, de certa forma, já acontecia: uma pesquisa em sua casa. É, principalmente – mas não somente –, sobre esse período de trabalho de campo que esta dissertação se ocupa. Durante o curso de mestrado, realizei três idas a campo. A primeira, mais exploratória, ocorreu entre os meses de julho e agosto de 2011, nos quais permaneci 15 dias em campo. Na segunda, o campo foi cortado por diversos imponderáveis, pois realizei idas a campo em dezembro de 2011, retornando em fevereiro de 2012 para o toque para Iemanjá, para, depois, permanecer de abril a junho, do mesmo ano, em campo. A última etapa que seria realizada entre os meses de setembro e outubro foi antecipada para agosto por motivo da morte de Sergio do Oxalá, ocasião em que pude acompanhar os rituais de desligamento, sendo o principal deles o eru (ritual que é o tema central dos capítulos II e III). Contando minha experiência específica como estudante com o batuque, que se dá desde 2009, estive em campo por 180 dias. Assim, minha experiência prévia, desde a etnografia na Casca até o trabalho com o batuque, foi fundamental para que o curto período de campo pudesse ser mais intenso, sem a necessidade de um trabalho que exigisse maior dedicação para inserção e aceitação durante o tempo exíguo do mestrado. A exposição de meu trabalho de campo anterior e de como ele desembocou no mais recente fala um pouco sobre a natureza da construção dessa etnografia. Algumas motivações foram teóricas, outras de ordem mais pessoal, e a força do acaso. Hoje, vejo que não poderia estar estudando algo diferente. Foi esse encadeamento de acontecimentos mais ou menos não planejados que resultou nesta dissertação. De início, tive um projeto de 15

Após o final de uma grande obrigação de quatro-pés, é realizado o passeio na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Mercado Público Municipal e no Cais do Porto – todos em Porto Alegre. Depois disso, os filhos estão liberados para atividades consideradas mundanas, já podem ir “para o mundo”. Além desse passeio, é realizada uma festa chamada de brasileira, na qual se comem comidas não religiosas, bebe-se bebida de álcool, cantam e dançam músicas brasileiras (em oposição aos batuques, no qual tudo é africano). Os outros passeios consistem em ir visitar aqueles que possuem casa, ou os santos em casa, que ajudaram ou estiveram nos batuques para prestigiar.

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pesquisa, os axeres me interessavam. Queria estudar esse estado no qual o corpo está dividido entre pessoa e orixá e, ao mesmo tempo, é um orixá. Já na conversa inicial que tive com Odacir para expor os planos para o mestrado, outras questões foram postas. Era preciso iniciar pelo começo: as raízes, a genealogia. Precisava, também, acompanhar o cotidiano de uma casa de religião. Nesse dia mesmo, saí de sua casa com parte da genealogia da família de santo de Mãe Emília da Oyá Ladjá (matriarca do Oyó) e com o calendário de atividades da casa. Era desses pontos que deveria partir. Não reformulei meu projeto. Antes, abandonei a ideia de fazer algum. Meu orientador, Marcio Goldman, disse algo que ia ao encontro do que Odacir dizia, deveria fazer campo e ver quais questões eram importantes para meus nativos. Não deveria ter um projeto, mas um planejamento, um cronograma mais ou menos estruturado. E foi assim que a pesquisa de mestrado teve seu início.

“Oyó Puro”

Tia Denise do Ogum (neta de santo do Tio Paulinho do Lôde) diz que é de Oyó puro. “Mas se o Odacir vai na casa do Paulo, ele vai ver coisas que vai dizer que não é certo pelo lado de Oyó”. Essa foi a melhor frase que encontrei para apresentar o campo. Ainda que tenha me dedicado a acompanhar Odacir do Ogum em suas atividades em suas casas de religião (em Gravataí e São Luis Gonzaga, ambas cidades gaúchas), passei por outras casas, as de seus parentes de santo. Devido ao modo como esse coletivo vive, com a circulação intensa pela rede de parentesco, meu universo de pesquisa acabou por extrapolar o espaço de uma única casa religiosa, espraiando-se por mais de um templo, quando segui Odacir pelas casas dos parentes. A morfologia social fez meu campo tomar um rumo que englobasse diversas casas e pessoas. Deter-me-ei, contudo, na descrição das casas de Odacir e a de Tia Neneca do Xangô, tendo mapas com a localização geográfica e as plantas baixas incluídas no texto para fins de compreender melhor os espaços destinados ao eru, aos orixás e às pessoas. Nas duas casas, acompanhei os erus de Tia Lourdinha do Ogum e de Sergio do Oxalá, descritos nos Capítulos II e III, respectivamente, juntamente com os dados sobre as casas. A família de santo é apresentada no Capítulo I. Oyó puro ou Oyó é o nome dado pelos adeptos com quem convivi para sua religião. Com isso, quero dizer que descrevo o lado de Oyó que conheci que compreende rígidos ideais de pureza. Que, além disso, como Tia Denise disse, é o mesmo (um único 10

lado), mas é diferente em cada casa, seguindo apenas uma estrutura mínima de ordem de rezas, cores e comidas dos orixás, além do princípio de senioridade e respeito à hierarquia no santo. É preciso também mencionar que existem outras casas de Oyó, ou outra facção como dizem meus amigos, que vêm de outra raiz, não participando da mesma família de Mãe Emília da Oyá Ladjá. Meus amigos afirmam que existem “oyós e oyós”, é sobre o Oyó deles que escrevo. O nome Oyó ou Oyó Puro é utilizado pelos batuqueiros da nação para se localizarem e diferirem no universo dos batuques. Utilizo a mesma nomenclatura para delimitar o universo pesquisado para o leitor. Tal nome vem de uma experiência concreta, porque baseada em suas realidades e naquilo que definem como sendo a nação. Mas também abstrata, pois fazem dessa base concreta um conceito em plano passível de abstração. Designo Oyó ou Oyó puro em sentido próximo, na medida em que é concreto para meus amigos e ao, mesmo tempo, transformado numa abstração antropológica para dar conta de um conjunto heterogêneo de casas da família de santo, como bem notou Tia Denise do Ogum. Tal cruzamento entre concreto e abstrato, é necessário mencionar, é influenciado pela postura teórica de Strathern (1991), que propõem uma relação entre o concreto e o abstrato sob um prisma diferente, no qual abstrações de antropólogos são seus dados concretos, assim como dados de campo tornam-se abstrações que possibilitam não a comparabilidade, mas as “conexões parciais”. Ainda, na chave teórica proposta pela autora, podemos depreender que concreto e abstrato não devem ser lidos como um par de oposições, mas que o concreto é abstrato e vice-versa, o que coloca, assim, dados e teorias em um plano de continuidade epistêmica. Dessa forma, abstrações como matriz africana, e os vários outras que se replicam, como africano > batuque > nação > Oyó > Mãe Emília, tratam-se de abstrações ou dados concretos desse tipo, no qual abstrato e concreto não podem existir como um par. A mistura com outros lados e com outras religiões não é bem vista. A tendência é que pessoas que vieram de outros lados, ou que tenham outras entidades – como o caso do preto velho de Dona Rosa –, deixem, aos poucos, de cultuá-las. Alguns pais e mães de santo do Oyó fizeram seus filhos com as linhas de umbanda e com o povo da rua; porém, essa não é a regra. O envolvimento maior com a Nação implica um distanciamento em relação a outros cultos, que não aos orixás. A Nação, como exposto no Capítulo I, tem sua origem com a chegada de Mãe Emília da Oyá Ladjá, princesa africana. É devido à matriarca da nação que Iansã é

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considerada a Rainha do lado e tem, por isso, lugar de destaque no culto. Xangô, por ser o Rei de Oyó já na Nigéria, é considerado o rei da nação no Rio Grande do Sul também. Como conta Odacir, tratava-se no início de uma religião de negros pobres, cenário que vem mudando, não só com a entrada de brancos, mas também com o aumento do poder aquisitivo de alguns pais e mães de santo. O Pai de Santo lembra que, antigamente, os batuques aconteciam em casas de madeira bem pobres e pequenas, mas é agora que as casas de alvenaria, com grandes salões, vêm surgindo. Disse-me que o lado de Oyó é o mais antigo no estado e difere dos outros na ordem das rezas, cantando-se primeiro para os santos masculinos, depois para os femininos. Canta-se para Bará, Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Oxalá de Orumilaia, O Bokum Oka, Xangô, Ibêjis, Iemanjá, Ewá, Obá e Nanã Burukê (para a qual somente os prontos – pessoas e orixás – dançam), Ótim, Oxum, Iansã e Oxalá (o velho e o moço), que não é considerado feminino, mas o pai de todos, por isso aquele que encerra todos rituais, exceto o eru. O número de rezas e sua ordem interna, sua pronúncia e versos em cada um dos orixás, também é diferente. Para Obá, por exemplo, tira-se apenas uma reza, na qual só dançam os prontos junto com os orixás prontos, também. Sua reza é muito séria, trata-se de uma orixá de grande importância, pois ela determina quem é “rei” (pronto) e quem não é. É a dona dos prontos. Orixá da roda, do moinho, do corte, da nhãnhã (fofoca), do feitiço. No aré (dança com ritmo acelerado) que acontece após a roda de Obá os orixás vão para o meio da roda e fazem sua “apresentação”. Por exemplo, em um aré para Oyá/Iansã irão para o meio da roda apenas os “cavalos” ocupados por esta orixá. No aré para Ogum saem as Iansãs e ficam somente os Oguns, e assim por diante. No final do aré se “tira reza” para Bará, quando todos os orixás passam a dançar no meio da roda e apenas os humanos a dançar na roda. Rezas cantadas para alguns orixás no lado de Oyó são cantadas para outros em nações diferentes. Como rezas de Iemanjá, que tiram para Oxum, para Oxalá; rezas de Odé que nos outros lados cantam para Xangô. Além dessas, a importante reza de Oxalá que finaliza um batuque de Oyó em outros lados é tirada para Xapanã. Além das diferenças nas rezas, as práticas rituais divergem não apenas entre os lados, mas entre as casas: os cortes, a preparação das cabeças, a feitura das comidas dos orixás (considerado um grande segredo da religião e a base para àquele que deseja ser um religioso). As cores das guias e das vestimentas dos orixás e de seus filhos também são distintas em alguns casos. Por exemplo, Ogum, que utiliza azul anil e vermelho no Oyó, e verde e vermelho nos outros lados; Iemanjá, que veste verde-mar, e não azul-claro – cor 12

que no Oyó é dada par Oxum Dôco, a oxum velha (nota sobre mito); Aganjú, que veste rosa, não vermelho e branco como os outros xangôs. Ademais, todos os lados do batuque diferem muito entre si, a distinção ponto a ponto tornar-se-ia exaustiva, além de não contribuir para o desenvolvimento da dissertação e de seus argumentos. Em que pese, é sobre as diferentes concepções sobre a morte e os eguns e as diferenças rituais ligadas a eles que trato ao longo dos três capítulos. Minha experiência de campo demonstrou que no lado de oyó (acredito que em qualquer campo de estudos) generalizações são raras; ou melhor, qualquer conceito é apresentado através do relato de situações bastante concretas, particulares (o que não significa que, às vezes, não se utilize uma forma generalizante para dar alguma explicação sobre um assunto qualquer). Ao lembrar-se de algo que ocorrera no passado com alguém, ao fazer determinada ação e assinalar, “viu? Isso significa tal coisa”, é que conceitos aparecem. Deste prisma, pode-se notar que entrevistas e perguntas não se mostram muito profícuas. E que falar sobre qualquer assunto só faz sentido quando se fala de algo que aconteceu e que se presenciou ou que se ouviu falar da boca de alguém que vivenciou tal situação. Parece que estamos diante do que alguns antropólogos chamam atenção há bastante tempo: o conhecimento da bibliografia sobre alguma “realidade” não nos faz conhecer mais que essa bibliografia, o trabalho de campo está no cerne do conhecimento antropológico. Assim como um batuqueiro só aprende participando, o pesquisador que se dedicar ao estudo do batuque tem de ver e ouvir, aprendendo aos poucos16. O lado de Oyó, com exceção da dissertação de Jacqueline Pólvora (1994) versando sobre a sociabilidade dos adeptos na casa religiosa e no carnaval, não foi tema de outros estudos. Ari Oro chega a descrever a nação como a mais antiga do estado, sendo hoje muito pequena e com poucos divulgadores e sobre a qual pouco se sabe (2002: 352). A dissertação insere-se aqui na lacuna de descrições etnográficas sobre o lado mais antigo do RS e sobre a diferente forma de se lidar com a morte, tema clássico dos estudos de religião de matriz africana. A originalidade não pousa apenas no fato de esta se tratar de uma nação pouco conhecida, mas, principalmente, por trazer o tema da morte sob outra perspectiva: não apenas a da relação dos vivos com os mortos, mas dos orixás com esses, e a necessidade de se desfazerem laços e obrigações aqui em Aiyê (terra ou nosso mundo) para que a vida do morto siga em Orum (mundo dos orixás). O tema deve-se, também, ao 16

Ver em Goldman (2003: 445) a interessante alegoria do catar folha, na forma ritual de aprendizagem no candomblé, e o modo pelo qual o antropólogo aprende em seu trabalho de campo, sempre aos poucos, participando, sem perguntar. Certa vez, quando fiz uma pergunta a Odacir, obtive a seguinte resposta: “Sabe por que Exu é grande, porque ele é o maior, porque ele soube escutar tudo e nunca perguntar nada”.

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fato das mortes que ocorreram durante meu trabalho de campo e da importância do assunto na produção antropológica sobre as religiões de matriz africana. O ritual do eru, que ocorre sete dias após a morte de um filho de santo pronto na religião, tratará de desligar o egum do nosso mundo e os vivos do egum. Além dele, ao se passarem um, três, seis, nove meses e, finalmente, um ano, homenagens são feitas para afastar, aos poucos, e ensinar o egum que ele não faz mais parte desse mundo17. Tal assunto é aprofundado nos Capítulos II e III. É preciso desfazer os nós, as obrigações. Mas, além disso, é preciso que o morto encaminhe-se, com ajuda de Nanã Burukê, para Orum, onde viverá com seu orixá de cabeça. O desfazer, como já anunciado logo no início do texto, é o tema central desta dissertação. É a partir dele, que agruparei um conjunto de práticas rituais ligadas ao acontecimento da morte, que os laços, as obrigações, a morte e a transformação de relações – palavras que compõem o título – são descritas. Ainda que não seja um conceito propriamente nativo, desfazer evoca uma série de outros conceitos e categorias que emergem quando da morte de um membro da religião, como desligar, destruir, quebrar, Orum, nosso mundo, axexés, saudade, lembrança. Nesse sentido, falar em desfazer tem relevância por acionar diretamente noções ligadas ao fazer (santo, pessoa, obrigações), à morte, aos eguns, à família de santo e aos fundamentos do batuque. Dizem que é justamente no eru que o fundamento da religião se apresenta de forma mais forte. Nesse ritual, apenas os afiliados, os íntimos participam, apenas orixás prontos dançam, e só pais e mães de santo com muitos anos de aprontamento possuem o saber ritual para presidir o eru, lidar com eguns com a seriedade e precisão indispensáveis para que o morto deixe nosso mundo e prossiga sua jornada, (re)fazendo sua pessoa, obrigações, sua vida, em Orum. Ao longo desta dissertação, defendo o caráter de duplo acontecimento da morte e sua natureza intrinsecamente transformativa das relações. Antes de passar aos capítulos, apresento de forma breve dados mais gerais sobre as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul e a produção acadêmica sobre o assunto. Infelizmente, o tempo exíguo de mestrado não permite a realização de comparações com outros universos de pesquisa, que não apenas o batuque e outras religiões de matriz africana, através do levantamento bibliográfico. Por esse fato, cotejar o 17 O que está próximo da descrição de Bastide em seu texto “O mundo dos candomblés”, de que a pessoa africana, assim como a dos candomblés, não nasce de uma vez só, tampouco morre assim. “Pela iniciação fez-se o espírito passar para um corpo vivo; trata-se agora de desfazer o que foi feito, recuando aos poucos, o que é um procedimento habitual na magia, o processo de inversão, refazer em sentido contrário o que já foi feito, desfazer o nó dado” (1983: 288). A não ser pelo “aos poucos”, o desfazer no eru é rápido e violento.

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sentido dos rituais fúnebres no batuque de Oyó com os estudos sobre a morte em diferentes culturas, o que seria interessante, ficará para outra oportunidade.

Religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, dados e estudos

No Rio Grande do Sul, as chamadas religiões de matriz africana são, de acordo com Corrêa (1994; 1998) e Oro (1994; 2002; 2012) basicamente três: umbanda, quimbanda (ou linha cruzada) e batuque. A segunda pode formar junto com as outras a linha cruzada. Esses autores trabalham com a noção de continuum afro-religioso que vai da umbanda branca – mais próxima do kardecismo – ao batuque, religião que cultua orixás, passando pela quimbanda ou linha cruzada, nas quais é o povo da rua (exus e pomba-giras) que recebem lugar de destaque. Nesse continuum, é levado em consideração aquilo que os autores chamam de do “mais leve” ao “mais pesado”, o que inclui principalmente o sacrifício de animais, que não ocorre na umbanda, e que é mais importante e em maior quantidade no batuque. Em meu campo só se poderia falar num continuum que iria do mais fraco ao mais forte, sendo os orixás as divindades mais fortes de todas. Barbosa Neto (2012) apresenta religiões que não aparecem nos modelos do continuum, como a magia (pura) ou o culto à Pantera, entidade de seu interlocutor Pai Mano, por exemplo. Além disso, novas religiões têm surgido vindas da Bahia ou por meio de transformação das consideradas mais clássicas desse modelo. Podemos vislumbrar, assim, que o modelo do continnum exclui uma das mais ricas expressões das religiões de matriz africana, sua pluralidade feita tanto de continuidade quanto de descontinuidade. Todavia, para fins de simplificar a apresentação dessas religiões no Rio Grande do Sul, as apresentarei a partir desse modelo. As três principais religiões do chamado continuum afro-religioso podem ser resumidas da seguinte forma: i) a umbanda com culto aos caboclos e caboclas, pretos e pretas velhas, linha do oriente, além dos cosminhos; ii) a quimbanda cultuando, principalmente, exus e pomba-giras, nos quais se encontram algumas linhas do oriente, como o povo cigano; e, iii) o batuque (puro), que dedica seu culto apenas aos orixás. A linha cruzada seria uma quarta vertente, que estaria logo atrás do batuque nesse continuum que mediria negritude e africanidade, nela a quimbanda (também chamada de magia, magia negra, trabalho pro mal, lado do mal) se juntaria a uma ou as outras duas formas de culto, cultuando, assim, em uma mesma casa, os seres da umbanda, o povo da rua e os orixás, por exemplo. Anjos (2006; 2008), ao aproximar a noção de 15

território à linha cruzada, mostra o nomadismo inerente a essa expressão religiosa e filosófica, na qual a casa abriga diferentes entidades, mas não as cultua ao mesmo tempo, nem no mesmo exato ponto da casa. É o salão e o corpo humano que cruzam em diferentes momentos as diferentes deidades. Sob o nome de Ogum, por exemplo, teremos orixá, caboclo e exu, sem que estes nunca se confundam18 (cf. Anjos 2008: 82). Em Herskovits (1943), encontramos levantamento estatístico das casas de culto em Porto Alegre, havendo 30 casas em 1937, 33 em 1938 e 37 em 1952. Krebs (1988) fala de 211 templos. De acordo com Oro (1996; 2012), existem 30 mil casas. O Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), com os projetos19 “Mapeando o Axé” e “Alimento: direito sagrado” e o texto de Oro são, atualmente, as melhores referências para contabilizar as diferentes religiões de matriz africana no estado, em contraposição à metodologia do censo oficial. Os dados do último censo realizado em 2010 pelo IBGE apontam para uma realidade distante da apresentada pelo MDS e pelas 30 mil casas de que Ari Oro fala, a começar pela coleta realizada por indivíduos, não por casas, e pela ausência de algumas religiões no questionário. Tal fato indica o caráter individualista do questionário, que se distancia do ideal de família religiosa, no qual o que importa são as casas e os pais e mães de santo, além de ferir a prática de manter segredo sobre a religiosidade (devido o preconceito no local de trabalho, por exemplo), tão importante para sua eficácia. De acordo com os dados do último censo do IBGE, 1,47% da população gaúcha declarou-se como “seguidora de religiões afro”20, dados que sobem para 2,52% para Região Metropolitana e para 3,35% para a Capital. De acordo com Oro (2012), o Rio Grande do Sul é “o estado da federação em que houve maior explicitação de pertencimento identitário ao campo afro-religioso” (: 562). Penso que pela proposta do projeto, sua realização em parceria com o povo de santo, e sua recente finalização, a contabilização do MDS é a que mais se aproxima do que podemos chamar de realidade. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, foram mapeadas 1342 casas divididas entre terreiros e 18

No terreiro de Mãe Dorsa onde Anjos (2006) desenvolve a parte etnográfica dedicada ao estudo da linha cruzada, na qual a figura do exu é central. Ele pode servir para o bem e para o mal, ele é quem que dá início aos rituais no terreiro e faz a intermediação entre as divindades e os homens. Os rituais de possessão conferem a cada corpo participante mais de uma consciência, assim um indivíduo é ele próprio (Ego), é seu orixá de cabeça, e pode ser também um exu, ou caboclo também; tendo, desse modo, seu corpo percorrido por várias intensidades em uma única festa, por exemplo. Os orixás também não são únicos, cada um confere a um sujeito uma personalidade e também se diferencia nela. Em outras palavras, Oxum é uma, mas em cada terreiro, em cada pessoa, ela é uma Oxum diferente, ao mesmo tempo uma e várias. 19Ver . 20 Cf. .

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sociedades, sendo que no lado de Oyó são listadas 111 casas, dentre as quais 20 ficam em Gravataí, município no qual se encontra a casa de Odacir, lugar onde centrei minha pesquisa. Ambos os dados colocam estado e a Grande Porto Alegre no topo dos que mais praticam a religiosidade de matriz africana no Brasil, “contrariando a ideia bastante difundida de que o estado se caracterizaria pela quase ausência dos negros e de sua contribuição filosófica, cultural e religiosa” (ver Corrêa 2006; 1998). A produção acadêmica sobre as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul pode ser resumida, grosso modo, em quatro tipos, que são expostos esquematicamente a fim de estruturar um quadro para o leitor: i) folclóricos e psicológicos; ii) históricos; iii) sociológicos; e, iv) etnográficos e antropológicos. É importante mencionar que a divisão entre o primeiro e o segundo tipo são divisões já operadas por outros autores. No último tipo, detenho-me com acuidade, dedicando maior espaço aos trabalhos de Corrêa (2006; 1998) – por ser a obra de referência sobre o batuque –, Anjos (2006) e Anjos e Oro (2009) – por serem trabalhos que já podem ser tomados como textos clássicos sobre a religiosidade afro-gaúcha –, e Pólvora (1994) por ter sido o único estudo a dedicar-se ao lado de Oyó. Os demais estudos aparecerão de modo mais resumido, Bastide (1959; 1985; 1983), Herskovits (1943) e Barbosa Neto (2012) referências importantes, aparecem ao longo da dissertação. O primeiro e o segundo tipo estão imbricados, servem, mais tarde, de referência aos primeiros antropólogos. Dante de Laytano (s/d; 1955; 1961; 1995) e Carlos Galvão Krebs (1988) foram os primeiros pesquisadores a abordar as religiões de matriz africana no Sul do País. Os estudos do primeiro centraram-se no linguajar do negro gaúcho, na festa de Nossa Senhora dos Navegantes e na formação do estado a partir da contribuição dos europeus e dos negros escravizados, com seus cultos aos orixás. O segundo reuniu em seu livro “Estudos de batuque” matérias de jornais e artigos científicos sobre rituais como a “axé de varas” e o então em voga “estado de santo”, enfatizando seu caráter psicológico, ao estilo Nina Rodrigues. No terceiro tipo, encontramos estudos importantes, que podemos chamar de uma sociologia das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul e nos Países do Plata. Deparamo-nos com a preocupação em construir quadros sinópticos, tipologias e estatísticas. Além disso, há explicações exteriores à prática religiosa para dar conta de fenômenos dos quais a religião é objeto. Podemos citar como exemplo, principalmente, as considerações de Oro (1988; 1994; 1997; 1999; 2002; 2008) sobre o capitalismo, fronteiras, etnicidade e política – principalmente no que tange as eleições no estado. Além disso, 17

temos as observações sobre a ordem cultural, econômica e da saúde que, relacionadas aos problemas sentimentais (amor) e ao trabalho, levariam um número cada vez maior de pessoas a busca do auxílio das religiões de matriz africana. Assim, política, transnacionalização, crescimento do número de adeptos da linha cruzada e a relação entre modernidade e tradição são os principais eixos desses estudos. Como os trabalhos de De Bem (2007) e de Meirelles (2011), também. O primeiro estudo versa sobre questões ligadas a fronteiras estatais e à circulação religiosa na Região Platina. O segundo vislumbra uma desorganização no campo afro-religioso, que é reproduzida no campo político. No que diz respeito ao terceiro tipo de abordagem, os primeiros etnógrafos a se dedicarem ao estudo do batuque foram Herskovits (1943) e Bastide (1959; 1985), ambos realizaram visita curta a Porto Alegre, onde puderam observar alguns rituais e conversar com informantes. De caráter etnográfico, seus textos sobre o batuque gaúcho tratam de dar conta da religião em todas suas expressões e rituais, desde a feitura até a morte, passando pelas festas, descrição do número de orixás cultuados, cores das vestimentas, tamanho das casas e número de adeptos. É importante ressaltar que ambos leem o batuque à sombra do candomblé baiano, o que levará, anos mais tarde, Corrêa (2006 [1992]21) a chamar Bastide de candomblecentrista. O último verá com melhores olhos o trabalho de Herskovits, pela contextualização do Rio Grande do Sul e da chegada dos negros ao estado, o que discordo, pois o trabalho de Bastide (1959) tem seu início com levantamentos sobre as origens e estatísticas sobre os negros no estado; é deste a ideia de uma ilhota de resistência africana. A religião africana, mais ou menos mestiçada de cristianismo, sobreviveu no Brasil, sobretudo na região do litoral nordestino. Mas existe no extremo sul do país, numa região de população essencialmente branca, com forte densidade de descendentes de alemães, uma ilhota de resistência africana sobre a qual convém dar algumas indicações (: 236).

O estudo pioneiro de Corrêa (2006), que fornecerá a base para os estudos sobre religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, ainda hoje é, sem sombra de dúvida, o trabalho etnográfico de maior fôlego, contando com vinte anos de observação. Nele, o autor, descreverá as principais características e rituais do batuque puro (religião que cultua apenas orixás e, em algumas nações, os eguns). Pais e mães de santo conhecidos aparecem em seu texto. Da nação que estudo, Oyó, Donga da Iemanjá, seguidamente lembrado como Vô Donga por meus amigos, aparece como figura que presa pela tradição, pelo aprendizado da língua ioruba e o aprendizado das rezas (: 52). 21

É importante notar que o livro de Norton Corrêa trata-se da publicação na íntegra de sua dissertação de mestrado, defendida em 1989 e publicada pela primeira vez em 1992.

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Desde a dissertação de mestrado de Norton Corrêa, publicada integralmente em seu livro de 2006, os alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS vêm produzindo uma série de etnografias sobre as religiões de matriz africana. Apresento, aqui, algumas delas e o assunto sobre o qual tratam. A dissertação de mestrado de Pólvora (1994) é dedicada ao estudo da sociabilidade dos batuqueiros de Oyó, em Porto Alegre. A ênfase recai principalmente no cotidiano “não religioso” da casa de Mãe Laudelina do Bará e de sua participação no carnaval da cidade. A quadra de samba, assim como os altares, possuem fortes referências religiosas. Rodolpho (1994), em sua dissertação de mestrado sobre o sacrifício na quimbanda, parte da acepção de Goldman (1987 apud Rodolpho 1994) de que o transe possessivo e o sacrifício são os pilares nos quais a estrutura religiosa se assenta. Corrêa (1998), em sua tese de doutoramento, propõe a chave do conflito a partir da teoria de Simmel para pensar a sociação e a socialidade nas religiões afrobrasileiras, além da revisão da vasta bibliografia sobre o tema. Focando na descrição de conflitos, o autor volta a seus dados de campo já apresentados em Corrêa (2006 [1992]). Assis (2002) aborda a temática da transmissão/reinvenção da tradição batuqueira através do apronte. Tomando como valores essenciais da religião a hierarquia e a reciprocidade, discute a construção da pessoa batuqueira (novamente a ênfase recai sobre o construir, o fazer) a partir de sua feitura na religião. Teixeira (2005) dedica-se ao estudo do ethos quimbandeiro a partir da confecção do vestuário, em um terreiro em Canoas/RS. O “mérito evolutivo” de exus e pomba-giras apresentar-se-á através do “merecimento” em ter o próprio vestuário (: 12; 59). Para a autora, o vestuário “caracteriza a dádiva em todos os seus momentos: confecção, utilização, oferta” (: 18). Ainda, “o aspecto mais importante na construção do vestuário [é] agradar às entidades e receber suas bênçãos” (: 119). Silveira (2008) estuda a trajetória de três tamboreiras, tendo como objetivo analisar relações de gênero no “acesso à tradição percussiva”, no universo “sonoromusical” do batuque gaúcho. Assim como em Braga (1998), atenta para o fato de que os tambores também tem de ser feitos, de comer e de receber reverência. Para o segundo autor é, senão, depois do pai de santo, o tamboreiro a figura de maior respeito e prestígio em uma casa de santo. Em Ávila (2009), encontramos uma interessante reflexão etnográfica sobre a política feita pelos religiosos, seu trabalho de campo acompanha os movimentos da CEDRAB/RS (Congregação em defesa das Religiões Afro-Brasileiras), presidida por Mãe Norinha do Oxalá e por Baba Diba da Iemanjá, dos quais depreende que a política afro19

brasileira – desse grupo – volta suas preocupações para as temáticas da ecologia, da etnicidade/reafricanização e o chamado trabalho social nas comunidades onde as lideranças religiosas possuem suas casas de culto, principalmente. Barbosa Neto (2012) realiza percurso distinto, assim como Anjos (2006; 2008) e Anjos e Oro (2009), das noções de ethos e visão de mundo presentes na quase totalidade da produção acadêmica sobre as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul: é o politeísmo (“intensivo”) e os desdobramentos num sem número de lados nas religiões que o autor nos apresenta. É esta sua ideia de politeísmo: “um mundo repleto de lados simultâneos e heterogêneos” (: 11). Não se trata exatamente de uma descrição detalhada de rituais e experiências de campo, mas sim de um cruzamento entre os dados de campo do autor e outras etnografias, principalmente a de Corrêa (2006), “uma linha que corta transversalmente” todo seu trabalho (: 4). Diferente do meu campo, e da descrição de Corrêa (1998), em Barbosa Neto (2012) encontramos a noção de que cada casa é um caso, não havendo um princípio hierárquico que seja superior ao Dono da casa – como vemos no Capítulo I, no lado de Oyó isso seria impossível, pois os mais antigos e a família de santo fazem com que as casas estejam implicadas uma na outra, a ponto de uma possível autonomia ser apenas relativa. Outra novidade de seu trabalho – que podemos incluir no “campo de estudos das religiões afro-brasileiras no RS” – são as modalidades rituais que encontrou em campo, que são impossíveis de serem agrupadas sob um nome, como batuque ou magia, por exemplo. O mais surpreendente, para o leitor acostumado com a bibliografia mais clássica, é o caso de Pai Luis, com casa em Pelotas/RS, que recebe Pantera – “egum ou odu” (: 29) –, uma mulher “estranha”, que se alimentava do próprio sangue de Pai Luis, acrescentando, assim, maior riqueza à “realidade” afro-religiosa no estado. A noção de “máquina ritual”, inspirada em Deleuze e Guattari, agrupa outras máquinas, que são os próprios rituais, que não são detalhados monograficamente, preferindo, Barbosa Neto, demonstrar “como se pode passar entre eles [iniciação, rito fúnebre, feitiçaria] por dentro de cada um” (: 36). Feitiçaria dentro da iniciação e do rito fúnebre, por exemplo. É essa “máquina ritual” e o “politeísmo intensivo” que são descritos. Em que pese a diferença do lado de Oyó para com os dados de Barbosa Neto (2012), importa ressaltar, principalmente, a noção de feitiçaria. As diferenças de culto não cabem ser discutidas aqui, pois se tratam de universo de pesquisa distantes; neste trabalho, cabe ressaltar a heterogeneidade e a riqueza das diferentes formas rituais nas religiões de matriz africana, que só podem ser tomadas em bloco na forma de uma “abstração 20

concreta”. Feitiço, de acordo com Odacir (meu principal informante), é uma questão de graus de conhecimento, pois feitiço é tanto para o bem, quanto para o mal, assim como os chamados serviços ou trabalhos. Como comenta o “pai-de-santo com quem o autor conversava”, feitiço é para o bem e para o mal, é para tudo (: 348-9). Como bem nota Barbosa Neto, “feitiçaria bem poderia ser o nome dessa religião se não fosse o sincretismo, mas o fato é que esse termo, não obstante a sua aplicação mais geral, é preferencialmente usado para designar as situações em que se vai atacar ritualmente alguém, e, nesses casos, pode também ser referido como ‘demanda’ ou, ainda, como axexé burukum” (2012: 349). Todavia, como me ensinou Odacir, feiticeiro bom é quem consegue fazer coisas para o bem; por exemplo, conseguir um emprego para alguém, de forma rápida, porém com permanência instável; e para o mal, é claro. Já um bom pai de santo é aquele que sabe falar o ioruba, cantar todas as rezas e fazer serviços com maior durabilidade ou para sempre; geralmente acionando o orixá de cabeça e outros orixás para a demanda específica. De qualquer forma, certa aproximação entre as definições dos dois pais de santo pode ser feita. Foi a moral ocidental (com toda generalização empobrecedora que a expressão possa ter) que aproximou feitiço daquilo considerado mal. Seguindo meus nativos, para os quais a noção de bem e mal é um tanto diferente – vingança, por exemplo, pode significar fazer o bem –, utilizo ao longo do trabalho feitiço tanto para o que seria, por nós, considerado bem, quanto para o mal, à exceção daquilo que me foi descrito como sendo serviço ou trabalho. Outro nome utilizado é axé. A regra é seguir a lógica nativa, na qual os diferentes conceitos podem ser tanto sinônimos, quanto antônimos. Uma padronização faria esse jogo sumir. Em Anjos (1993), a remoção de uma vila em Porto Alegre (a Vila Mirim) é discutida a partir do conceito nativo de linha cruzada (e encruzilhada), que o autor aproxima ao conceito deleuzo-guattariano de rizoma. Mais tarde, em 2006, é publicado em livro, quase que integralmente. A obra ‘No território da linha cruzada: a cosmopolítica afrobrasileira’ tem como foco a “narração de situações concretas de disputa” e os “aspectos cerimoniosos ou até ritualísticos” (2006: 14) envolvidos no processo de remoção da Vila Mirim, em Porto Alegre, para o bairro Rubem Berta. No livro “Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: Sincretismo entre Maria e Iemanjá’ de Anjos e Oro (2009), os autores debruçam-se sobre dados etnográficos sobre a procissão realizada anualmente para a santa. No que chamam de regimes de diplomacia se produz, em Porto Alegre, a impossibilidade de dissociar a Santa e Iemanjá (: 131). Fundamento e sua manutenção aparecem como chave da conexão entre mundos, 21

como modo de encadeamento de imagens e textos, o mundo da religiosidade africanista acontece por contágio iconográfico. Em cada texto referido, aquilo que estiver relacionado com a morte e os ritos fúnebres, o apronte e os rituais iniciáticos, a noção de pessoa e a transformação dos vivos em eguns e a bibliografia sobre morte em religiões de matriz africana fora do Rio Grande do Sul será discutido ao longo da dissertação, em momento oportuno. Além desses, outras obras como as de Santos (1976), Goldman (1984; 2009), Halloy (2005), Rabelo (2008) e Rabelo & Brito (2011) aparecem na dissertação por se conectarem a partes específicas. Existe, ainda, outro tipo de produção literária sobre essas religiões: são os livros e jornais escritos pelo povo de santo para o povo de santo. Os jornais e as revistas são encontrados nas floras e em algumas bancas de revista. Um número expressivo de pais e/ou mães de santo vem escrevendo sobre a religião, produzindo descrições e discussões alternativas às da antropologia. Apresentam textos que contam histórias dos batuques e descrevem certos rituais. Discutem, sem dúvida, problemas de maior interesse para o povo de santo. Dentre os jornais, temos “O Bom Axé” e “A Hora grande” como os mais populares. Escritos por religiosos, apresentam mitos, fofocas no formato de causos anônimos, fotos de festas, discussão sobre a vida de algum orixá, além de apresentar um sem número de anúncios de pais e mães de santo, com a finalidade de divulgar seu jogo de búzios e a eficácia de seus serviços.

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No primeiro capítulo, apresento a não existência do culto aos eguns no lado Oyó como outra estrutura ritual que chega e se desenvolve no Rio Grande do Sul com Mãe Emília da Oyá Ladjá. O respeito para com os antigos, que se dividem em vivos e mortos, será tomado como uma forma de culto e não um “quase-culto” como sugere Corrêa (1998), ancorado em José Jorge de Carvalho. O princípio de senioridade e a hierarquia estruturam um sistema de prestações de homenagens que envolve desde o bater cabeça para aqueles chamados de titios e titias, até os presentes que devem ser entregues aos orixás dos pais e mães de santo importantes que já morreram. Por isso, o adepto deve aprender sua linhagem no santo, saber, como no caso de Odacir do Ogum Oníra, até a Oyá Ladjá de Mãe Emília, quais orixás devem ser presenteados em momentos específicos, como nas

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festas grandes. E quais pessoas devem ter suas almas rezadas em Igrejas Católicas, para que toda homenagem para Ogum Oníra e seus filhos aconteça sem surpresas desagradáveis. Ao falar dos antigos, fala-se sobre parentesco no santo. A imbricação das famílias de santo e de sangue (nomenclatura nativa) promove relações que não se classificam em nenhum dos dois casos. Exemplo disso é Neli da Oxum, filha de santo de Odacir que é irmão de santo de sua mãe de sangue. Por isso, Neli sempre chamou e, ainda, chama Odacir de tio, muito raramente de pai. Além disso, seus filhos de sangue chamam Odacir de vô, ainda que agora tenham se tornando seus filhos de santo. Além disso, as regras ideais da família de santo colocam restrições sobre as possibilidades de matrimônio. No parentesco no santo, pode-se dizer, por analogia, que a afinidade está submetida ao parentesco por consanguinidade. Pais e filhos e irmãos e irmãs não podem se casar. Além desse, outro tabu: ninguém pode ser pai ou mãe duas vezes – no sangue e no santo. No Oyó, fica difícil distinguir parentesco no santo do parentesco no sangue, a não ser no caso daqueles que entram para religião por motivos de doença, dinheiro ou amor, basicamente. Ou seja, aqueles que não se “criam” na religião. Ademais, é a família afetiva que promove o parentesco no santo a partir do parentesco no sangue. Como transição do primeiro para o segundo capítulo, inicio com a descrição de uma troca de vida, feita em Carla da Iansã – mais conhecida como Carla Pacheco – por motivo de um câncer de mama. Aqui, a ideia de que a morte é algo inevitável, mas adiável e negociável. Algo que se pode trocar, dando uma ave por uma pessoa, por exemplo. Dentro da troca estão, também, os casos dos Abikus – espíritos fujões de crianças, como Dona Rosa me ensinou, ou “aqueles que nascem para morrer”, como aparecem na belíssima descrição de Verger (1983). Em seguida, passo para os rituais que sucederam a morte de Tia Lourdes do Ogum, realizados na casa de Tia Neneca, de seu enterro, até seu eru, passando pela missa católica. Desde já, a ideia de morte e de egum e das transformações nas relações entre os vivos e aquele que morreu começam a ser esboçadas, abrindo espaço para que, no capítulo seguinte, afirmações sobre alguns categorias nativas ganhem intensidade suficiente para que sejam feitas. Ao final, a quase morte de um pai de santo do Oyó faz a transição para o Capítulo III. Tal evento revela distinções entre pessoa e orixá, que auxiliam a distinção que descrevo no último capítulo entre pessoa (corpo, alma, orixá), egum (pessoa, alma e egum de orixá) e orixá (deuses imortais). No capítulo final, descrevo os rituais pós-morte de Sergio do Oxalá, ocorridos na casa de Odacir. Ainda que as semelhanças entre os erus de Sergio e de Tia Lourdinha 23

confiram ao capítulo uma aparente redundância, diferenças importantes o marcam. Além da descrição da matança que antecede a missa católica, não descrita no Capítulo II, o detalhamento etnográfico explicita a especificidade crucial, para os batuqueiros, da morte de um filho/a de Oxalá, orixá que não participa de erus, a não ser quando um filho seu morre. Na última parte do capítulo, descrevo a suspeita de morte de um assentamento de Bará, por motivos do incêndio da casa de Odacir em São Luis Gonzaga/RS. Aqui, a diferença entre o sento (ocutá) e os demais objetos de um orixá e o próprio orixá acentuam-se, como no caso do eru, ao investigar se um assentamento está vivo ou morto após pegar fogo. A partir das situações da quebra ritual dos objetos sagrados de quem morreu, descritas nos Capítulos II e III, e da morte (ou não) de um ocutá, a noção de desfazer e uma iconoclastia própria ao batuque de Oyó devem ficar evidentes.

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Cap. 1 “Começar pelo começo”: a família e os antigos

“Tu tem que começar pelo começo”. Assim me disse Odacir quando conversávamos sobre minha pesquisa. Antes de falar de festas ou outros rituais, deveria começar pelas raízes do “povo de Oyó”. Mas afinal, o que as raízes teriam a ver com a morte, tema desta dissertação? Hoje consigo ver o que Odacir já antevia: como falar da morte, seus rituais e relações no lado de Oyó sem “começar pelo começo?” Sem iniciar por aqueles que, vivos ou mortos, são cultuados e lembrados a todo o momento, seja em fotos ou certificados da AFROBRAS (Federação das Religiões Afro-Brasileiras) penduradas nos quartos de santo, seja nas histórias que ensinam a religião? Colocar Odacir do Ogum Onira e seus filhos na genealogia de Oyó, que tem seu início com Emília da Oyá Ladjá, é imprescindível para os propósitos desta dissertação. Portanto, é através das relações familiais e de parentesco no santo e no sangue (nomenclatura nativa) que o mundo dos batuques de Oyó é melhor apresentado. Além disso, trato as histórias, a lembrança e a importância da presença dos mais antigos no santo (vivos ou mortos) como uma forma de culto. As pessoas do lado de Oyó prezam pela manutenção de uma memória viva de suas raízes no santo. Ademais, os orixás de babalaus e babalaoas importantes não podem deixar de ser homenageados antes de qualquer ritual maior, sejam nas quinzenas ou nas festas grandes. Diferentemente do culto aos eguns e ancestrais em outros lados do batuque – realizados, geralmente, uma vez ao ano, com matança no balé – encontramos relações distintas em relação ao lugar atribuído aos mortos na religião. Esses são perigosos, deve-se manter uma “boa distância” deles.

***

Mãe Emília da Oyá Ladjá foi uma princesa africana que iniciou o lado de Oyó no Rio Grande do Sul, chegou no estado pelo porto de Pelotas há cerca de 150 anos, assim conta Odacir. As pessoas com quem convivi dizem que ela chegou como escrava e não deixam de falar com orgulho e reverência dessa história22. É uma diferente definição de história que os batuqueiros nos ensinam, na qual o que chamamos de mito e de história se imbricam; ou, melhor, não são diferentes, não há mitos, existem histórias e histórias. O 22

Lima (2003) fala dos antigos que são lembrados “já acrescidos da aura mítica da memória coletiva” (: 138).

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melhor seria dizer que eles falam de algo que não é nem o que chamamos de história, nem o que chamamos de mito. Os pais ou mães de santo com quem conversei sabem contar a história da vinda dos negros da Costa da África, por exemplo. Contar a história do Rio Obá – rio sem nascente que, aliás, nem mesmo os “historiadores, geólogos e geógrafos sabem explicar a existência”23, como Odacir e Dona Rosa falam. Mãe Emília aprontou muitos filhos de santo e Odacir encontra-se na terceira geração da genealogia do Oyó. Oyá/Iansã, por ser a orixá de Mãe Emília, é a rainha do lado e assim como Xangô, que foi rei do antigo Reino de Oyó, tem papel de destaque nos batuques dessa Nação. O culto, a genealogia e história se fundem nos rituais da nação. A genealogia no santo foi um dos temas de maior interesse das pessoas com quem convivi. Brincavam com o “ENEM batuquerístico”, no qual os pais ou mães de santo indagam seus filhos acerca dos nomes dos antigos (pessoas e orixás), para que todos saibam qual sua raiz no santo, até chegar a Mãe Emília. Além disso, os antigos pais e mães de santo são sempre saudados e chamados nas festas e nos diversos rituais. Quando se faz algum feitiço demandando determinado orixá, logo é lembrado o nome de algum santo antigo, que ajudará dando eficácia maior ao pedido. Por exemplo, ao fazer algum serviço para Oxalá, pode-se lembrar de chamar Oxalá Omi, do Pai Januário ou o Oxalá Olobomi da Sinhá Rola. Para fins de melhor compreender a importância da linhagem no santo e entender o parentesco de santo das pessoas que são evocadas no decorrer da dissertação, apresento a genealogia da família de santo que pesquisei, indo de Mãe Emília até os filhos de Odacir. Registro apenas os prontos na religião, já que esses são aqueles que têm seu orixá assentado e, por isso, um nome religioso. Além disso, discuto as implicações do parentesco no santo no parentesco no sangue, e vice-versa, regras matrimoniais e tabus24. Para além do sistema de parentesco, o compadrio é tratado também, pois não apenas

23 De acordo com Odacir e Neli, o Rio Obá, na atual Nigéria, nasceu da única vez em que as três esposas de Xangô (Obá, Oxum e Iansã) se uniram. Quando o Rei Xangô viajou deixando o reino na mão de suas rainhas, houve uma seca que devastaria Oyó. Não vendo saída, as três rainhas ficaram consternadas: Obá, cravando sua faca no solo seco, abriu uma fenda gigantesca; Oxum, chorando, encheu de lágrimas o buraco; Iansã, de desespero, pôs-se a ventar, fazendo com que o rio de lágrimas corresse. Dessa forma, o Reino de Oyó tornou a ter seu solo fértil e assim se diz que, na hora da necessidade, as rainhas inimigas uniram-se pelo bem maior de seu povo. 24 Bastide (1959) chama atenção para ausência de tabus nos casamentos entre batuqueiros no Rio Grande do Sul. O Incesto entre pessoas com o mesmo orixá de cabeça não sendo verificado por ele (: 248-9). Este tema, como demonstro ao longo do capítulo, é alvo de controvérsias e de regras muito rígidas, que, no entanto, não excluem a existência do tabu no plano ideal. Diz-se, inclusive, que cabeça de santo masculino como outro santo masculino “não dá bom casamento”.

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complementa o primeiro, fortalecendo laços, como direciona filhos que rompem com os pais para uma nova mão25. Momentos de festas e de cortes/matanças, além da descrição de quartos de santo, evidenciam a importância dos “antigos” na religião. Proponho que o caso específico do lado de Oyó, que não cultua eguns, mas cultua seus ancestrais a partir da lembrança dos antepassados presentificada em objetos e no tratamento especial aos mais velhos, seja entendido como uma estrutura ritual que vem com Mãe Emília e desenvolve-se no estado a partir da linhagem – ou parentesco, quase sinônimos nesse caso – no santo. É importante frisar que, no Oyó, o culto aos antepassados não se confunde com culto aos eguns. Mesmo o egum de um antepassado é perigoso, o que se cultua é o orixá individual de um antepassado importante. A própria pessoa que morreu é cultuada apenas através da lembrança geralmente presentificada em objetos rituais ou não. Fora isso, como vemos a seguir, apenas missas católicas são rezadas por suas almas e um último presente para o egum será preparado ao final do luto.

1.1 No Santo

Na genealogia abaixo apresento Mãe Emília e sua linhagem, até os filhos de Odacir. Registrei apenas os filhos prontos, pois é no apronte que o laço definitivo é criado, o nome do orixá passará a acompanhar o nome do filho serão os prontos que serão lembrados.

Figura 1: Genealogia Oyó.

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A mão não é completamente nova, como veremos a seguir, ela já tocou a cabeça do afilhado/filho juntamente com a do primeiro pai de santo. Alguns dizem, ainda, que nunca se muda realmente a paternidade/maternidade no santo.

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Emília Oyá Ládja

Vó Rola ou Sinhá Rola do Oxalá Olobomi

Mãe Matilde Ogum Bi

Pai Olguinha Dico Xapanã Iemanjá

Mãe Neuza Bará Lanã (Deí)

Pai Sidnei Xangô

Iarinha da Oxum Pandá

Regina do Oxalá

Dida Rejane Wagner do da Oxum (Negão) Xapanã Pandá do Oxalá

Carla Silva da Iansã

Batista Ronaldinho do do Aganjú Ogum (Xangô)

Carla Claudinha Pacheco da da Iansã Iansã

Dona Fernando Rosa do do Aganjú Ogum (Xangô)

Maninha Marina Neli da Oxum da Oxum Pandá Pandá

Pai Donga Iemanjá Tubuá

Pai Dirceu Oxum Loba

Mãe Negrinha Odé Onitunde

Daniel Iemanjá

Robson do Oxalá

Preta do Oxalá

Jair do Bará

Careca do Xapanã

Jaira do Bará

Wladimir (Gordo) do Xangô

Tânia da Oxum Pandá

Pai Odilon Jorge Ogum Diobocum

Mãe Bidú Iemanjá Omituá

Ercília Bará

Mãe Joaquina Iansã

Mãe Margarida

Mãe Ricarda Oxalá

Diva d'Odé

Mãe Sirlei Xangô

Pai Paulinho Bará Ejemum

Mãe Rosinha Bará Lanã (Motim)

Pai Odacir Ogum Diobí

Iara do Oxalá

Pai Ramirez Ogum

Nicola Aganjú Babuxê

Pai Januário Oxalá Omi

Mãe Leonor Ogum

Mãe Araci Odé

Luis do Bará

Jairo de Ossanha

Ana do Ogum

Cleusa do Ogum

Isabel do Oxalá

Luana da Iemanjá

Roberta Iansã

Pai Tuatan Ossanha

Denise do Ogum

Camile da Iemanjá

Paulo Xangô

Tania Xangô

Mãe Neide do Aganjú Olobomi

Luiza Helena Ogum

Denise Ogum

Erondina Iemanjá Omitola

Ivone Oxalá Omi

Neuza Bará Lôde Bi

Pai Deleon Xangô

Mãe Valdeci (Tia Neneca) do Xangô Tolá

Nelson Oxum

Sinhazinha da Iansã

Valdemar Oxalá

Pai Sergio Oxalá

Iara Oxalá

Adão Pai Paulinho Mãe Aida Bará do Aganjú da Ia Dôco (Xangô) (Oxum)

(Tia) Lourdinha Ogum

Mana Oxalá

Tati da Oxum Doco

Simbolos do Genograma

Masculino

Feminino Falecimento

Legenda de relacionamento de família 18

Legenda de relacionamento emocional 1 Normal

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O matrimônio é endogâmico, tendo como referência a família de santo extensa (a linhagem de Mãe Emília), sendo exogâmico para fora do grupo de referência. Como ideal, atualmente, e obrigatoriedade no tempo dos antigos, o tabu do incesto refere-se a regras semelhantes ao parentesco por consanguinidade na sociedade brasileira. Filhos(as) não podem, em princípio, casar-se com pai ou mãe de santo. Irmãos de santo também não. Regra que não vale para quem já chega casado a alguma casa, ou para alguém que seja casado e que seu/sua companheiro(a) deseje/precise se aprontar, sendo esse último caso raro e bastante repreendido. Os mais antigos na religião não aceitavam que irmãos de santo se casassem, “mesmo que já chegassem casados”. Davam um dos membros do casal para algum irmão de santo fazer. Contam, também, que antigamente não se escolhia o pai ou mãe de santo, os “velhos” se reuniam e decidiam quem assumiria a cabeça. Além disso, cônjuges, independentemente da hierarquia26 no santo, não devem bater cabeça um para o outro; quando se ocupam, os orixás cumprimentam-se de forma mais distante, com beijamãos apenas, ou curvatura recíproca dos corpos; quando apenas um dos membros do casal recebe seu santo, o outro não deve bater cabeça, apenas deve se curvar e beijar as mãos. Não pode haver hierarquia no santo influenciando um casal, de modo a fazer com que uma das partes seja submissa à outra devido à sua relação no santo. Ainda, cônjuges não devem fazer feitiços/serviços para um para/pelo outro (como serviços de saúde, de emprego, etc.); não podem, tampouco, tocar nas obrigações um do outro. Quando casais entram juntos para religião, as regras podem ser relativizadas. Quando alguém entra para religião, geralmente, leva os cônjuges e os parentes de sangue. Maridos e esposas, filhos e filhas, irmãos e irmãs. Mas também, amigos e colegas de serviço. Nestes casos, cônjuges podem se tornar irmãos de santo, quando o pai ou mãe de santo assim aceitar. Pais e filhos de sangue podem se tornar irmãos, primos, tios e sobrinhos no santo um do outro. Ainda que a maior ocorrência seja a de parentes de sangue e amigos tornarem-se irmãos no santo.

26 A afirmação de Bastide (1959) vai de encontro com o que pude observar. Ainda que não haja nomes específicos, como equédi ou ogãn para os cargos, existem as mães pequenas, os tamboreiros, e o tempo na religião que complica o esquema de relação pai/filho do autor, que vê na Bahia o melhor dos modelos de presença de traços africanos: “Enquanto no norte a hierarquia sacerdotal é relativamente rica, aqui [Porto Alegre], ao contrário, existe apenas a oposição entre, de um lado, os pais e as mães, e, do outro, os filhos e filhas. Por exemplo, não se encontra sacrificador especializado, até a própria Mãe pode matar os animais. Não existem protetores da seita ou ogãns, nem equédi encarregados de ajudar os filhos e as filhas durante a dança. Sem dúvida, há auxiliares femininas que, no curso das cerimônias, enxugam com um pano branco os rostos suados dos dançarinos. Ao que parece ela não constituem um corpo especializado; dá-se lhes o nome de yaba (que parece designar todas as candidatas à iniciação ou passíveis de entrar na seita)” (: 244). Resta, ainda, concordar com a afirmação de que não há cargo de sacrificador, sendo este ritual realizado sempre pelo pai ou mãe, padrinho ou madrinha e os mais antigos no santo presentes.

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Outro tabu deve ser observado, esse sem possíveis relativizações. O pai/mãe de sangue deve, obrigatoriamente, ser diferente do pai/mãe de santo; ninguém pode ser duas vezes filho/a ou pai/mãe de alguém. A partir dessa regra, sentenças como “eu não podia ser mãe duas vezes da Neli” (Dona Rosa)27 revela a perspectiva na qual “aprontar um filho é como dar à luz”. E não se dá a luz duas vezes a uma mesma pessoa. Além disso, pode-se dizer que os filhos de santo, feitos com sangue animal, ligam-se a seus pais por um laço que é de sangue também. O que reforça a ideia, bastante difundida nas casas que conheci, de que o sangue é o mais importante dos vínculos. Para ser filho de santo, é preciso se ligar a um pai que cortará o animal do orixá de cabeça, derramando o sangue sobre a cabeça do filho, assentamento e obrigações, unindo-os para sempre. No batuque de Oyó, os filhos de sangue de adeptos provavelmente serão de religião, como se diz “nascer na religião”. As crianças, desde tenra idade e mesmo na barriga das mães, já participam das mesas de Ibêjis28, das festas e, por vezes, de cortes. Ser criado na religião não garante a futura iniciação, mas, como dizem, a proximidade com o orixá vai chamando-o para perto da cabeça e fazendo com que comece a ter fome. Desde então, estes iniciam sua relação com seu orixá de cabeça e com seu futuro pai ou mãe de santo, relação que pode, é claro, ser quebrada ou transformada durante o longo percurso que leva até o apronte. Existem, ainda, os casos de mulheres grávidas que vão para o chão; mulheres que parem seus filhos durante esse período; e as lactantes, que cuidam e amamentam seus filhos com a ajuda dos parentes de santo e de sangue durante o período de reclusão. Dizem que essas crianças já fizeram o chão.

1.2 De Sangue

Desde pequena, Maria Neli, mais conhecida como Neli, ou Neli da Oxum, tinha como missão diária de ir até um canteiro de flores colocar uma colher de mel sobre uma pedra amarelada. Aos nove anos de idade, fez seu primeiro borido, pelas mãos de Mãe Bidú, esposa de Pai Januário, que era pai de santo de sua mãe de ventre, Rosinha do Bará (a Dona Rosa). Só então descobriu que aquela pedra era a sua mãe (Oxum). Morando todos 27

Ver Lima (2003) e a proibição de “colocar a mão na cabeça de filha de sangue” (: 144). A mesa de Ibêjis ocorre no segundo batuque (toda obrigação de quatro-pés compreende duas festas grandes em sábados consecutivos), antes da festa propriamente dita, por volta das 18 horas. Nela, são homenageadas as deidades gêmeas Oxum e Xangô, os Ibêjis, que são cultuados juntos. Crianças e mulheres grávidas participam da mesa, na qual são servidos doces e a carne de pombos que foram sacrificados no dia anterior para os Ibêjis. 28

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juntos, Mãe Bidú era sua avó de coração (o que estou chamando de família afetiva) e, mais tarde, sua mãe de santo. Antes de Neli se aprontar, a Vó Bidú faleceu, o que causou muitas turbulências na vida sua vida e na de sua mãe de sangue. Dona Rosa pediu a seu irmão (afetivo)29 de santo, Odacir, que tomasse conta de Neli. Além dela própria, era ele o único parente de santo a quem confiaria sua filha, mas como não podia ser mãe duas vezes, conforme a prescrição, Odacir teve de cuidar de Neli e de sua Oxum – já assentada por ocasião do borido. Hoje, Neli é pronta pelas mãos de Odacir, mas nunca deixa de prestar homenagens a Iemanjá, a orixá de Mãe Bidú. Filhos de santo, Neli, ainda não aprontou nenhum, mas já possui nove. O ocutá de Oxum (ou a própria Oxum) teve três filhos, três pedras pequeninas. Neli teve Drika, Willian e Tomas, seus três filhos de sangue (de ventre ou de barriga são outros termos para nomear tal relação). Dizem que as mães (orixás em sua forma de sento) têm o mesmo número de filhos que sua filha humana terá. A Obá de Dona Rosa teve um filhinho, conta-se que foi Obá quem deu Neli para ela. Drika com 13 e Willian com 16 anos já sabem desde muito cedo que são filhos de Iansã com Xangô e de Ogum com Oxum, respectivamente. O pequeno Tomas, em seus quase dois anos de vida, ainda não tem orixá certo. Dizem, brincando, que é do Legba ou do Lôde, por ser “um terror”; outros dizem que é filho de orixá mulher, pois desde pequeninho bate cabeça de lado – como os filhos de orixá feminino. Neli e seus filhos de sangue, desde tenra idade, são criados na religião. Isso não é exceção, pois contempla a larga maioria dos adeptos do Oyó. A família de sangue, assim como a de santo, transmite tanto coisas boas, como ruins. Dona Rosa, alvo de feitiçaria, nada sofrera. Mas, seus netos de sangue Drika e William, estiveram diante da morte quando quase morreram afogados na praia da Solidão (Mostardas/RS) no verão de 2012. Em Porto Alegre, tiveram de passar longo período de recuperação no Hospital Nossa Senhora da Conceição. De acordo com Neli, o que acontecera foi culpa de “uma velha” lá da Casca, que “anda fazendo feitiço” para sua mãe 29 Trato Odacir e Dona Rosa como irmãos ao longo do trabalho, pois é essa a nomenclatura que utilizam para se referir um ao outro. Essa relação de parentesco pode ser definida como afetiva. Odacir conheceu Dona Rosa quando ainda era menino. Na escola onde estudava, Dona Rosa era auxiliar de serviços gerais. Ao ver que o menino passava fome, passou a dividir sua marmita com ele, e ali uma grande amizade iniciou-se. Ela levou seu amigo para casa onde era filha de santo. Seu pai era Januário do Oxalá, que era casado com sua prima no santo Mãe Bidú da Iemanjá, que viria ser a mãe de Odacir. Por uma série de motivos, Odacir foi ser aprontado pelas mãos de Neuza do Legba (irmã de santo de Pai Januário e prima de santo de Mãe Bidú). Mais tarde, ele voltou para casa de Mãe Bidú, mas sem nunca deixar de ser filho de Mãe Neuza e do Exu Lonã (orixá de cabeça da mãe de santo). Assim, o grau de parentesco no santo entre Odacir e Dona Rosa é de primos. Porém, além da amizade, Dona Rosa considerava a esposa de seu pai de santo como sua mãe de santo. Assim, afetivamente, são irmãos de santo.

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de sangue. Odacir confirmou no jogo. Assim, além dos cuidados médicos, uma série de feitiços, além de presentes para Iemanjá – que devolveu as crianças –, foram realizados. Willian nunca quis saber de religião; já Drika sempre gostou de participar dos batuques, fazer novos axós e “dançar na roda”. É claro aos olhos dos sábios da religião que se trata de uma futura grande mãe de santo. Dizem que todo mundo tem santo, e que a proximidade excessiva com ele é perigosa, pois uma boa distância deve ser mantida com o orixá (ver, também, Rabelo & Brito 2011: 192-4). Por isso, sempre cuidaram de Drika para que Iansã soubesse que ainda era cedo para pedir para comer na cabeça de sua filha. Os acontecimentos na praia resultaram em uma mudança drástica nesse cuidado, quando inversamente não era mais apropriado manter distância, mas sim aproximar os orixás. Assim, Willian e Drika fizeram um aribibó, e Tomas um banho de Ebis. Em uma quinta-feira de abril, as crianças foram para o chão. Neli já tinha, no dia anterior, preparado o mieró onde ficaram banhadas as guias e as quartinhas de seus filhos. A família de sangue, que também é família de santo, estava presente. Alguns irmãos de santo vieram para ajudar também. Primeiro foi a vez de Willian, por ser filho de Ogum, seguido de Drika (filha de Iansã), terminando-se com Tomas (pois o banho de Ebis é feito para Oxalá). Odacir iniciou com um discurso, no qual dizia: Quem deveria estar fazendo essa obrigação era a mana Rosa, mas por causa do luto [pela recente morte de sua irmã de sangue], ela não estava fazendo, mas ela está fazendo comigo. Vocês [Willian e Drika] tem que obedecer em primeiro lugar a vó de vocês [Dona Rosa], em segundo lugar eu. [...] Esse serviço é só para aproximar os pais de vocês [os orixás].

O discurso emocionado seguiu com lembranças do passado comum. Disse que eles [as crianças] não tinham obrigação como os outros filhos, eles tinham obrigação de se formar. Falou de Neli, a qual viu dentro da barriga de Dona Rosa e que, agora, tudo se repetia. Porém, a obrigação maior deles era a de trazer um diploma e o botar na mão da avó e da mãe. Então, começaram com o William, e assim que um dos ritos terminava, foi a vez de Drika passar pelo mesmo ritual. Primeiramente, deram os banhos; depois, passaram nos corpos das crianças um feitiço de Xapanã, para limpeza, que logo teve de ser despachado. O corte, então, iniciou. Dona Rosa, por motivo de luto, apenas segurou as aves, não as cortando. Um responsável por limpar o axorô e a água do chão e outro por tirar as penas que se unem às obrigações (guias e quartinha) foram escolhidos. Ao final, após terem as trunfas amarradas em suas cabeças, abraçados em Dona Rosa e Odacir, 32

agora com a primeira obrigação na cabeça, William e Drika foram apresentados à rua, ao quarto de santo e aos presentes. Após isso, ficaram sentados em esteiras enquanto o banho de Tomas era realizado. Ao contrário do que geralmente ocorre, Tomas não se deitou, não quis dormir, ficou andando e brincando pela casa, com sua trunfa sempre caindo, até que se resolveu tirar o pano de sua cabeça. No dia seguinte, as obrigações e as crianças seriam levantadas do chão – a levantação. Porém, Odacir sentiu algo e disse: “não, não vou levantar”. Jogou os búzios ali no quarto de santo, na frente de todo mundo, e viu que a Iansã de Drika não queria levantar. “Se o Ogum quisesse, que levantasse”. Então, ele aliviou a cabeça das crianças, desamarrando a trunfa, lavando a cabeça, as mãos e os pés, com o auxílio de Dona Rosa. Disse que eles poderiam ir para casa, mas deveriam se portar como se ainda estivessem no chão: sem assistir televisão, sem sair pra rua, sem comer de faca e garfo, nem dormir em cama ou sentar em sofá ou cadeira, mexer com água ou fogo. Somente domingo, após meio-dia, poderiam voltar à vida normal. Por companheirismo, Ogum não se levantaria sozinho para não deixar Iansã. Com o auxílio de sua irmã de Santo, Dona Rosa, Odacir fez a obrigação. A avó de sangue passou a ser madrinha de santo, mas com o status – definido pelo discurso de Odacir – de mãe de santo. Ele, o avô afetivo, passou a ser pai de santo, dando, pelo respeito à senioridade, autoridade primeira a sua irmã de santo. Sangue, santo e afeto se mesclam, aqui, ao compadrio. Contudo, Dona Rosa e Odacir continuam sendo chamados de vó e de vô pelas crianças. O parentesco no santo segue lógica semelhante ao parentesco por consanguinidade, utilizando-se da mesma terminologia acrescida do adjetivo “de santo”. Filhos(as) da mesma mãe ou pai são irmãos. Os filhos(as) de irmãos são primos e sobrinhos do irmão ou irmã de seu pai ou mãe de santo. Existem também os netos, bisnetos, tataranetos no santo. Há também os primos ou parentes distantes. Quando parentes de qualquer grau se casam, mantém seu grau de parentesco no santo. Anjos (1993) chama atenção para quando uma relação de cliente transforma-se em relação familial: É certo que a relação de clientelismo tende com frequência a se corporificar na medida em que, os clientes vão se tornando cada vez mais assíduos frequentadores da casa. No limite, o cliente se transforma num “filho da casa”, acaba fazendo parte desse corpo, onde as “obrigações” estão definidas e o indivíduo é inserido em relações de parentesco fictício entre “irmãos de santo”. Porém, a aliança diádica entre o filho de santo e o seu pai continua sendo mantida por uma troca de bens simbólicos (religiosos) e por bens materiais. A passagem

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do contrato implícito ao contrato explícito e institucionalizado pelos rituais não garante por si só a abertura para uma relação coorporativa. Os papéis do pai e do filho de santo não estão rigidamente definidos, o caráter implícito de um leque de trocas se mantém (Anjos 1993: 208-9).

O que não é tão diferente do que pude observar, ainda que o parentesco no santo institua relações mais rígidas do que o estabelecido na linha cruzada, como nota o autor. Anjos (1993), ainda, chama atenção para como uma relação com filho de santo pode se tornar mais forte do que a com filhos carnais. As relações entre irmãos de santo são mais fracas, não formam “um corpo solidamente estabelecido por regras coletivas” (: 209). Assim como na descrição de Lima (2003), é a relação pai/filho a mais forte. No Oyó, as relações conturbadas entre diversos irmãos poderiam levar a um pensamento que concordasse com os autores. Contudo, nos rituais, o aparentamento no santo deve prevalecer e, sob os olhos do pai de santo, desavenças e conflitos de interesses não devem transparecer. Essa questão se relaciona a importância dada à criação das crianças na religião, fazendo com que laços de sangue e de santo fortaleçam-se e que se perpetue uma linhagem. Ainda, além da sobreposição entre parentesco de santo e de sangue, predominante no Oyó – que faz com que pessoas sejam duplamente parentes –, por afetividade pessoas tornam-se avós, tios. E, além disso, o compadrio fora do santo é impulsionado pelas relações no santo, na qual casais (ou mães solteiras) estabelecem ou fortalecem relações ao dar um filho para um casal ou pessoa solteira apadrinhar. O que, é importante ressaltar, difere do compadrio no santo, que não proverá ou fortalecerá uma relação entre casais, mas sim, uma relação entre o padrinho, o afilhado e seu pai ou mãe de santo, e os orixás dos três. Para finalizar a discussão sobre família e parentesco, é necessário ressaltar o caráter mediador das pessoas e de seus orixás e vice-versa. Ainda que esse não seja o foco deste trabalho, é importante para a discussão deste capítulo. Tomo observações de Anjos (1993) que descreve as relações entre o filho e seu orixá como sendo mediadas pelo pai de santo (: 207) e as de Rabelo (2008) em seu texto em que o santo aparece como mediador das relações, para, concordando com eles, apresentar etnograficamente duas situações em que essas mediações ficaram em evidência. O quarto de santo e o acesso às obrigações e aos assentamentos é de responsabilidade do pai de santo dono da casa; assim, quem decidirá o modo e a velocidade com que se dará a relação entre o filho e seu orixá é o pai de santo. Além disso, é o pai de 34

santo quem conversa com o orixá quando ele está no mundo, ensinando-o a dançar e dando ordens, recados, para que ele deixe a mensagem na cabeça de seu filho. Por outro lado, os orixás desempenham papel importante na mediação de toda sorte de relações, inclusive a de parentesco. Odacir, falando certa vez de uma filha que saiu da casa, disse que, no tempo antigo, os orixás chegavam no mundo para pedir desculpas ao pai e continuar na casa, o que hoje parece estar mudando. Pude presenciar, também, uma festa em que um orixá disse para seu filho, também orixá, que “o seu” (modo como os orixás chamam seu cavalo) podia ter mandado ele embora, mas ele [orixá] não botava filhos fora. De modo que assim como a instauração de uma nova relação de parentesco é duplamente promovida, tanto pelo pai ou mãe como pelos orixás (o orixá mostra no jogo quem ele quer como filho, o pai de santo é quem joga), o final de uma relação passará pela mediação direta do orixá e do pai de santo, sendo para dar o final decisivo, ou para aplicar “multas” (categoria nativa) que o filho humano não teria coragem, ou para barrar alguma atitude do filho de santo, que, ocupado pelo seu orixá, mudará de opinião. Poderá, ainda, defender seu filho contra o pai de santo, rompendo de vez o vínculo. Resta tecer um breve comentário sobre como se dá o parentesco com o santo: quando se é pai, filho, afilhado, padrinho, sobrinho ou tio de um orixá, ou quando um orixá (de outra pessoa) é pai, filho, padrinho, afilhado, tio ou sobrinho de uma pessoa. Além disso, há o parentesco entre os próprios orixás, como Iemanjá, que é mãe de Odé, ou, ainda, no caso do adjuntó (ou família dos orixás, semelhante ao carrego de santo no candomblé, no batuque também se diz que se carrega determinado número de orixás) quando o dono da cabeça se casa com um dono do corpo, sempre de sexo opostos e a eles se juntam Bará e por vezes uma passagem (quando o orixá de cabeça ou do corpo tem relação forte com outro orixá, que precisará ser assentado, como no caso das filhas de Oxum, que tendo como corpo Bará ou Ogum, terão Xangô de passagem, pois esse é seu par ideal) e/ou uma escravidão (quando dois orixás guerrearam pela cabeça de um filho, o orixá que fará do filho do vencedor seu escravo). Passagem e escravidão são relações familiais no santo que nem todos possuem. Além disso, outros fatores podem tornar a trama mais complexa: questões de saúde, para exemplificar, podem exigir que um orixá que não faça parte do adjuntó, como Ossanha (o médico da nação), entre para a família. Cabeça, corpo e Bará, esses sim são obrigatórios para todos afiliados da nação.

Parentesco de sangue (ou de ventre), afinidade e sua relação com o parentesco no santo: Vó Rola do Oxalá - Mãe de ventre de Erondina da Iemanjá Omitolá 35

Olobomi:

- Avó de ventre de Mãe Neuza do Bará Lanã Deí - Mãe de ventre de Valdeci do Xangô (Tia Neneca) - Irmã de ventre de Mãe Ricarda do Oxalá - Avó de ventre de Odilon Jorge do Ogum (filho de Valdeci do Mãe Matilde do Xangô) ogum Bi: - Avó de ventre de Mana do Oxalá (filha de ventre de Valdeci do Xangô e filha de santo de Lourdes do Ogum) - Sogra de Pai Dico de Iemanjá - Esposa de Pai Januário do Oxalá Mãe Bidú da Iemanjá: - “Mãe de Criação” de Maria Neli da Oxum Pandá - Foi companheiro de Denise do Ogum Tuele (sua neta de santo e filha de santo de Luiza Helena do Ogum) Pai Paulinho do Bará: - Pai de ventre (com Denise do ogum) de Ituatã do Ossanha (neto de santo) - Pai de criação e de santo de Roberta da Iansã - Mãe de ventre de Ituatã do Ossanha Mãe Denise do - Mãe de ventre de Roberta da Iansã Ogum Tuele: - Irmã de ventre de Tania do Xangô Pai Donga da - Casado com Mãe Neide do Aganjú. Iemanjá Tubuá: - Mãe de ventre de Maria Neli da Oxum Pandá - Avó de ventre de Drika da Iansã Mãe Rosinha do Bará - Avó de ventre de William do Ogum Lanã: - Avó de ventre de Thomas - Irmã de ventre de Tia Lourdes do Ogum

1.3 Compadrio no santo

Um complexo sistema de compadrio também faz parte do parentesco no santo, a fim de cumprir as prescrições religiosas. É com duas mãos, a do pai ou mãe e a do padrinho ou madrinha que se faz quase tudo na religião. Algumas pessoas e seus orixás não são apadrinhados, isso sempre se dará por escolha do orixá de cabeça, que indicará sua vontade no jogo de búzios. Ao longo da vida religiosa, acumula-se, por vezes, mais de um padrinho ou madrinha, desde aquele que auxilia no sanapismo, até o que dará os axés de búzios e de faca. Por vezes, um mesmo padrinho colocará sua mão em todas essas etapas. Independentemente disso, a madrinha ou padrinho de apronte será sempre a segunda mãe ou pai. São esses quem cumprem o papel de pai ou mãe quando os mesmos faltam, por motivo de morte ou de ruptura. Em situações em que um filho ou filha sai da casa, caberá ao padrinho cuidá-lo – principalmente se essa pessoa “não se governar”. Esses momentos impõem tensões difíceis de lidar. Como, por exemplo, continuar madrinha do filho de um irmão de santo com quem se mantém fortes laços e que sai da casa do último. Haverá 36

“jogo de cintura”, ou o abandono do afilhado, não se tomando suas dores em casos de brigas. A regra diz que os mais velhos sempre terão razão. Por isso, aqui, mais do que mediação, estamos diante de um rígido sistema calcado na hierarquia no santo e no princípio de senioridade. Como já pincelado na sessão anterior, o compadrio no santo trata-se de uma relação que envolve três pessoas (pai de santo, filho e padrinho) e seus orixás. Não se comporta como o compadrio clássico que formará, além de afilhado e padrinho, os compadres e as comadres, não sendo utilizada essa terminologia na relação entre pai e padrinho; a relação prévia no santo é a que se mantém e a que nominará o laço. O compadrio desempenha papel fundamental na manutenção de relações com os antigos (muitas vezes escolhidos por seu prestígio e por vontade dos orixás) e para favorecer aquele que tiver um número maior de afilhados, o que fora as relações emocionais envolvidos fará o padrinho ou madrinha ascender na religião. Ademais, os padrinhos são importantes para, nos casos de desavenças, mediarem as relações entre pais e filhos, ou mesmo tomar o lugar de segundo pai ou mãe, fazendo com que o filho continue fazendo parte da linhagem, ou, no limite, não ficando do lado dos afilhados e rompendo os vínculos religiosos. Haverá, assim, uma segmentação com esse corte – ainda que Mãe Emília siga como ancestral mor. Podem-se destacar três acontecimentos principais que sucedem uma ruptura entre pai e filho de santo: i) adoção pelo padrinho ou madrinha, com manutenção de alguns laços; ii) adoção pelo padrinho ou madrinha, com quebra quase completa dos vínculos com os antigos; iii) corte completo dos vínculos, que faz com que essa pessoa não seja mais considerada de Oyó puro pelos que permanecem na casa. Em todos os casos, as relações de parentesco no sangue terão forte influência, podendo, inclusive, sobrepor-se às hierarquias religiosas. Ainda, a ruptura com o pai e padrinho não ocasiona necessariamente o fim dos vínculos com os irmãos e titios, que podem seguir frequentando a casa daquele que saiu de seu templo de origem.

1.4 Os Antigos

De acordo com Pai Odacir, o lado de Oyó é uma das mais antigas e, ao mesmo tempo, menores nações do Batuque. Conta que o pequeno número de casas deve-se ao fato de terem mantido a tradição de não frequentar batuques dos outros lados – à exceção 37

dos de amigos, mas em companhia de pessoas mais antigas no santo. Pais e mães de santo proíbem seus filhos de participarem de festas ou outros rituais em qualquer casa que não seja da família. Já as festas dos parentes de santo são obrigatórias, sobretudo quando nas casas dos titios e titias mais antigos – o coletivo de seniores da nação. São essas figuras que asseguram a tão primada pureza que evocam constantemente: “somos de Oyó puro”; “são os titios [os mais antigos] que fazem com que a coisa não se perca”. Podemos notar a importância dos antigos, logo ao entrarmos na casa30 de Odacir, na qual nos deparamos com um salão logo à esquerda, um corredor à frente e a sala de búzios31 do lado direito. É no salão que as festas ocorrem. Já nele, e no corredor, em prateleiras no alto das paredes, orixás em imagens “católicas” e suas ferramentas estão por todos os cantos das paredes, exceto Iemanjá, que fica na parede esquerda do salão, de Xangô, que fica em uma parede que dá de frente para a porta de entrada, e de Obá, que fica na parede do corredor (ver planta baixa no Capítulo III). Seguindo-se em frente pelo salão, logo após um arco – no qual cortinas com as cores do orixá homenageado são colocadas –, encontramos o quarto de santo, parte mais importante de uma casa de religião. É o local onde moram todos os orixás da casa – exceto Lôde (Bará de Rua), que é assentado em uma casinha separada, geralmente vermelha, no quintal em frente à casa principal. Após o arco, na parede esquerda, do alto até aproximadamente 1 metro do chão, estão dispostas em fotografias emolduradas, por ordem de tempo e importância no santo, babalaus e babalaoas. No topo, a foto de Mãe Emília, em retrato preto e branco esmaecido pelo tempo. Abaixo, Tio Paulinho do Aganjú, Mãe Bidú e Pai Januário, Mãe Neuza do Bará Lanã e Tia Erondina da Iemanjá, em quatro molduras diferentes. Abaixo, Tia Neneca do

30 Bastide (1959) constata fraqueza econômica no batuque de Porto Alegre, principalmente pelo fato de o espaço destinado ao culto aos orixás (as casas) ser de pequeno porte, não havendo casas separadas na rua para Omulu, Ossang e Oxossi (: 241), salvo Bará. Aqui não podemos saber se, de fato, é a pobreza ou outras maneiras de cultuar que estão em jogo. No mesmo texto, por exemplo, o autor se espanta com o número de casas e cabeças consagradas a Bará, o que demonstra a importância que esse orixá tem para o batuque gaúcho, não como mensageiro ou escravo de outros orixás, mas como dono de casas e cabeças, como dizem: “cabeça grande”. “Em todas as casas visitadas, o pegi [quarto de santo] é contíguo à sala de festas e, curiosamente, a porta que lhe dá acesso é aberta no curso das cerimônias, de modo que a participação do divino e do humano possa fazer-se facilmente” (Ibidem: 242-3). As casas que conheci apresentam características semelhantes, sendo, contudo, possível fechar o quarto de santo com uma cortina, ou porta de tela. Importa a ideia que o autor chama atenção para a facilidade com que o princípio de participação entre os filhos terrenos e seus orixás se dá, como é o caso de se ir diretamente ao quarto de santo bater cabeça quando se chega a uma casa religiosa, para somente então poder cumprimentar outras pessoas ou orixás. 31 Na casa de Odacir, trata-se de uma pequena sala com uma estante, armários aéreos, prateleiras com imagens e uma mesa com duas cadeiras em lados opostos, na qual, sobre uma toalha especial, estão dispostas as guias do babalaô, formando um círculo, dentro do qual estão os búzios, moedas e uma pedra de Bará, além da sineta para a chamar os orixás.

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Xangô e uma fotografia com Odacir e Odilon do Ogum. Essa é uma fotografia de apronte que segue o padrão: pai ou padrinho em pé com os filhos ou afilhados ajoelhados em sua frente. Na parte inferior, fotografias emolduradas com os primeiros filhos que Odacir aprontou. No salão, sobre uma estante, porta-retratos com filhos de santo de Odacir, fotos com Tia Neneca e a avó de sangue dele. Depois de passar pelas fotos dos mais velhos, o quarto de santo. Nele, orixás em imagens tridimensionais “católicas”, em bonecas (Iemanjá, Oxum, Iansã e Obá) vestidas como mães de santo, com suas cores respectivas, um boneco (Bará) vestido de vermelho e uma Iansã na estátua de Joana d’Arc. Atrás deles, prateleiras que vão do chão até o teto, cobertas por cortinas, onde ficam guardadas as obrigações (quartinhas, assentamentos, ferramentas, vultos, imagens, etc.). Em outras casas da nação, pode-se observar semelhante estilo de se organizar o espaço: quadros espalhados pelas salas ou quartos de santo com fotos dos antigos. Além disso, álbuns de fotografia circulam com grande frequência, para que sejam lembradas as festas, pessoas e orixás do “tempo antigo”. Certificados da AFROBRAS dos pais ou mães de santo também são guardados como relíquias, muitas vezes emoldurados para que possam ser expostos. Móveis, louças, castiçais, alguidares, imagens e diversos utensílios, herdados, ganhados ou comprados, também proporcionam lembranças, orgulho e axé. Como diz Odacir, “elas [imagens] já comem há tanto tempo”, em referência à quantidade de anos e obrigações que tais objetos já receberam desde os tempos em que moravam noutras casas. Quando Odacir solicita a algum filho que traga alguma louça antiga, por exemplo, uma história sobre o objeto que inclui a de quem ele pertencera é contada: “Isso era de uma titia da Obá32”. Logo ficamos sabendo como eram os batuques na casa dela, como era sua orixá. O mesmo acontece com os álbuns e com os outros objetos. Aquilo que pode ficar “no nosso mundo” torna-se relíquia33. A cada foto, prato, taça etc., histórias da religião e histórias dos antigos são contadas. Muitas delas vividas por aquele que conta, outras ouvidas de alguém que viveu, “que viu com os próprios olhos” e as passa para que aquele que não viveu possa as contar no futuro. São histórias, e não estórias, como Odacir enfatiza, o que ele viu ou ouviu de quem viu é a história do Oyó. E assim seus filhos

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Objetos dos que já morreram são heranças, dadas muitas vezes em vida por aqueles; outras vezes, ficam com a família de sangue que se desfaz dos mesmos, oferecendo-os aos parentes de religião como presente ou como mercadoria. 33 O destino final desses objetos nos fala não somente da importância da transmissão daquilo que não precisa ser destruído, mas também de seu valor simbólico e familial, dando a quem os pertence não apenas objetos que não são mais fabricados, mas histórias e, principalmente, axé.

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também contam. Nessa mesma classificação do que é história está o que a bibliografia chama de mitos dos orixás. Durante meu trabalho de campo, foi possível observar a importância de se tomar como história o que aconteceu com os orixás, pois é isso, aliado ao que já aconteceu com os antigos, que é a verdade da vida. Pois “a história já foi contada desde muito antes de pisarmos na terra, o problema é que os brancos colocaram vírgulas nela”, adverte Odacir do Ogum. Odacir fala de uma história que já aconteceu e que nós dividimos em passado, presente e futuro. Noções de tempo que, assim como a de história e a de mito, como usualmente chamamos os diferentes tempos, não dão conta do universo dos batuqueiros e suas divindades. Na religião africana, como diz Odacir, existe apenas tempo e movimento, ou o movimento do tempo, o destino. Conceitos que se traduzem na deidade Oludumaré (Dono do Movimento do Destino) e Oroko (Tempo). É por isso, dizem, que um pai ou mãe de santo que promete resultados de um feitiço em número de dias – do tipo “trago seu amor em três dias” – revela o desconhecimento da religião. Como vários pais e mães de santo me ensinaram, “o tempo dos orixás é outro”, é a partir dessa temporalidade outra que história tem sentido aqui. Minha pele branca e meu pertencimento a uma universidade por diversas vezes foram assunto de conversas. As dificuldades pelas quais os negros passaram eram lembradas para se colocar uma diferença que, penso eu, mais do que criava distâncias, expressava o racismo cotidiano pelo qual meus amigos passavam. Sobre a universidade, Odacir dizia que não eram necessários livros ou estar numa faculdade, a vida lhe ensinou o que eu nunca aprenderia. Menos do que um desdém pela universidade e o conhecimento produzido nela, penso que estava em jogo fazer valer seu saber para além da religião. De certa forma, talvez Odacir estivesse propondo diretamente uma desestabilização do conhecimento acadêmico a partir de um saber ancestral. O que, sabese, é uma das razões da ciência antropológica. Odacir disse também que os brancos nem sempre dividiram tudo, o problema foi quando deixaram de acreditar. A imagem do livro “As Brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley, figura entre suas leituras preferidas, sobretudo a passagem na qual aqueles que acreditam chegam a Avalon, ao passo que os que não acreditam enxergam o Mosteiro, nunca chegando à terra mágica. É ao descer do barco e olhar para as brumas com os diferentes olhares que uma cisão (vírgula) se realiza no mundo dos brancos. Cisão que insiste em acabar com uma história na qual se chega a Orum após a morte e os deuses chegam na terra para dançar; assim como se chega em Avalon no romance. 40

Contar as histórias dos antigos e dos orixás é, portanto, uma das formas rituais de aprendizado não apenas religioso34 – que se complementa com outros rituais –, mas, principalmente, sobre o mundo. Por isso que não apenas divindades e pessoas já existem antes de serem feitas, mas toda e qualquer situação, a própria história do mundo. A história, nesse sentido, trata dos orixás e dos antigos, é formada por essas duas classes de existentes que devem ser cultuadas, cada qual a seu modo. Orixás são vivos, a vida em sua forma mais expressiva, pois nunca morrem, apenas deixam de ocupar objetos rituais e os corpos de seus filhos quando esses morrem. Já os antigos, dividem-se entre os vivos e os mortos. Diferentes formas de cultuá-los acompanham suas duas classificações. Suas histórias e cultos contam a história dos humanos e influem no movimento de seus destinos. Entre aqueles titios e titias vivos, o culto não está apenas em imagens fotográficas, ou mesmo em telas nas quais estão representados, mas no respeito a um princípio de senioridade, de hierarquia no santo35 e de validação das práticas que estrutura posições dentro do culto. A participação dos mais velhos no santo – geralmente em idade cronológica também – nos cortes, festas e erus confere legitimidade ao ritual. Dona Eloci da Oxum vem do Jêje, lado no qual se aprontou, mas atualmente acompanha o calendário de festas do Oyó36, pois sua filha de sangue é pronta por esse lado. Conta que: Só no Oyó os mais velhos são respeitados desse jeito. Não importa a casa que a gente vai, o pai de santo faz os filhos baterem cabeça pra gente. No Tio Paulinho, lá na Cleusa... Porque eu sou mais velha né. Tem muita casa que se diz de Oyó por aí, mas não respeita isso. A gente vai nos batuques e os mais novos passam como se a gente não fosse ninguém (Dona Eloci da Oxum).

Quando se prepara uma festa, entre as despesas previstas, inclui-se convidar pessoalmente esses pais e mães de santo, além de se cuidar do seu transporte e acomodações. Quando há necessidade de dormirem na casa de religião de quem oferece a 34

Para o aprendizado em religiões afro-brasileiras, ver Halloy (2005: 203-217), para o qual, no Xangô do Recife, a ação ritual engendra dimensões afetivas, sensitivas e intelectuais (: 203). Os iniciados aprendem passando por rituais, principalmente o da iniciação, e também assistindo repetidas vezes os rituais do culto, no qual saberes são mobilizados e transmitidos sobre um fundo de referências ontológicas e mitológicas (: 209-210). Rabelo & Brito (2011), estudando o candomblé angola na Bahia, descreve o aprendizado a partir da noção de skills de Tim Ingold. Critica a noção de transmissão, pois “um praticante experiente não transmite ao noviço ou principiante um corpo de conhecimentos; seu papel é, antes, o de prover os contextos em que ele possa desenvolver sua proficiência” (: 189). O aprendizado é, portanto, o treino da atenção (: 189). Além disso, enfatiza o aprendizado corporal, através da possessão, em relação à memória, que pode ser falha (: 190191). 35 Ver os trabalhos de Bastide (1985; 1978); Lima (2003); e Rabelo & Brito (2011) sobre a senioridade e a hierarquia em religiões afro-brasileiras. 36 As festas são feitas de modo que não haja colisão, os antigos da nação e os pais de santo é que dão a data em que se realizaram as festas nas casas novas.

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festa, as melhores acomodações lhes devem ser oferecidas; além disso, cadeiras especiais são colocadas no salão para que eles sentem durante as festas; são servidos em bandejas com a melhor louça da casa e suas bebidas devem ser servidas em taças, nunca em copos. Ante os mais antigos, a postura corporal deve ser diferenciada: a cabeça baixa e o ato de bater cabeça em qualquer lugar da casa são sinais de respeito e submissão esperados. Para aqueles que são prontos há mais tempo, mas não se enquadram na categoria dos antigos, os adeptos batem cabeça apenas no salão ou no quarto de santo e em determinadas ocasiões apenas beijam-lhes as mãos. Com os titios é diferente, na rua, na cozinha, onde for, devemse prostrar, ainda que muitas vezes os primeiros tentem impedir os mais novos de fazê-lo. Ser antigo não é algo fácil, são necessários muitos anos de religião, muitas alianças com os outros antigos para se angariar a respeitabilidade necessária. Além disso, o apadrinhamento ajuda a obter o respeito de quem não é seu próprio filho de santo. Para com os antigos mortos, as homenagens passam por lembrar-se dos nomes de seus orixás de cabeça, quando da chamada37. Quando se faz uma festa grande, devem-se entregar no mato ou na praia38 presentes para seus orixás. Além disso, uma missa por suas almas deve ser encomendada antes de qualquer homenagem aos orixás. Aqui, a diferença entre orixá e pessoa é necessária, pois presentes e homenagens somente os orixás podem receber. A evocação dos nomes das pessoas serve para se direcionar ao orixá (“que o Oxalá da Vovó Rola nos ajude” etc.),e às almas (eguns), também, referendadas pela evocação dos nomes, são entregues a Igreja Católica, para que por elas se reze em missas encomendadas, devendo essa ser a forma máxima de se cultuarem os eguns dos antigos, transferindo o culto aos eguns para o ritual católico, não se tratando aqui de sincretismo, mas de uma situação colocada pelas regras do grupo. Caso contrário, evocaria-se algo perigoso, do qual o ritual do eru (tema dos próximos capítulos) trata de afastar. Como diz Odacir, “eu tenho que homenagear o Exu Lonã, não a minha mãe. Não sou louco nem nada pra tá chamando gente morta”. Afora a transformação de objetos em relíquias, das missas e das histórias, outra forma de prestar homenagens aos antigos – aqui como antepassados não singularizados – é, por ocasião dos passeios, a de se ir ao cais do porto jogar flores no Rio Guaíba, não apenas como homenagem a Oxum e a Iemanjá (mães das águas), mas como lembrança dos negros que chegaram ao estado, por motivo da escravidão, via porto.

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Quando, no início dos batuques, ou antes de começar a jogar os búzios, o pai de santo toca a sineta e chama todos os orixás, saudando-os. 38 Os orixás de praia são Oxalá, Iemanjá e Oxum; também chamados de povo do mel.

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Saber se localizar na genealogia no santo e cultivar relações amistosas com os antigos – os vivos diretamente, os mortos através dos orixás – é mister para que o “Oyó puro”, como o chamam, aconteça. Assim, as cisões causadas por qualquer tipo de conflito afastam aqueles de menor grau hierárquico desse ideal de religião pura, que cultiva a obediência e o respeito aos antigos e a manutenção da família de santo.

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Nesse capítulo busquei, “começando pelo começo”, apresentar a linhagem (ou raiz) de Mãe Emília da Oyá Ladjá da qual descendem meus amigos interlocutores. A partir das relações de parentesco e compadrio, o ideal de religião pura (que envolve tabus e preceitos) na qual os antigos na religião e seus orixás devem ser cultuados de modo especial foi descrito. Ao tratar do culto aos antigos na religião, a temática da morte e dos eguns foi introduzida para ser desenvolvida nos próximos capítulos.

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Cap. 2 Uma troca, um eru e a imortalidade dos orixás

No capítulo anterior, abordei o parentesco e o compadrio entre os batuqueiros do lado de Oyó. Além disso, discorri sobre a importância dos mais antigos na religião (fossem vivos ou mortos) e os cultos destinados a eles, introduzindo, desta forma, a temática da morte nessa nação. Neste capítulo, o tema da morte é tratado através da descrição de um ritual de troca de vida, um eru (ritual de desligamento) e a quase-morte de um pai de santo. A ideia é mostrar como, para os batuqueiros de Oyó: i) a morte é inevitável, mas negociável; ii) a morte concentra nos rituais correlatos fundamento e aprendizado ritual; e, iii) exceto os orixás (deuses imortais), tudo e todos estão sujeitos à morte.

2.1 Troca de Vida

Troca é o nome do ritual realizado para se afastar a morte39; ou melhor, trocar a vida de alguma pessoa pela de uma ave. A troca mais conhecida na literatura antropológica seja, talvez, a dos Abikus, as “crianças que nascem para morrer”, como descreve Pierre Verger (1983). No batuque do lado de Oyó também encontramos essas crianças que chegam às casas de religião com doenças que a medicina não alcança cura: são os Abikus. Consultam-se os orixás através do jogo de búzios para saber como proceder. Geralmente, tais crianças são dadas para Oxalá cuidar. Ele é o grande pai, dono da vida. Obá pode participar da troca, como dona da roda da vida. Pede-se para que ela faça sua roda girar para que a criança escape da morte. Iemanjá, mãe de todos os orixás e humanos, pode ser convocada junto com Oxalá. A troca, aqui, consiste em matar um casal de pombos brancos, aves de Oxalá, sobre a cabeça da criança e sobre uma quartinha, já preparada com ervas, para que a mesma seja a sua segurança. Não menos comum é a troca realizada em adultos; porém, nesse tipo de serviço, a gama de orixás e seus respectivos animais envolvidos é maior. No caso que descrevo, Carla Pacheco (Filha de Iansã), por motivo de um câncer de mama, teve de fazer uma troca envolvendo Ossanha e Xapanã – orixás relacionados à saúde e à doença–, Iansã – a dona de sua cabeça –, e um banho com ebis para Oxalá.

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Sobre saúde e batuque, ver Oro (1994), saúde e candomblé, ver Reis (2012); Rabelo (1993; 2007 ;2008).

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No quarto de santo da casa que Odacir possui em São Luiz Gonzaga/RS, Carla ficou em pé, de costas para a porta e de frente para o altar com imagens, flores e castiçais. Além destes objetos, havia a casinha vermelha de Bará, com Lôde e Bará em São Pedro e Santo Antônio, respectivamente. No canto direito de quem entra, fica uma mesa de ferro branca, com mel, azeite de dendê, velas de diversas cores, ori (banha ovina utilizada em diversos rituais), colheres, alas e guardanapos de tecido. Por volta das 23 horas, Ricardinho (filho de santo de Odacir) traz as frentes (comidas dos orixás)40: milho, feijão e pipoca torrados, além do morim branco e do verde (cores de Ossanha) para que o ritual iniciasse. Ao lado das comidas, folhas de mamoneiro (Ricinus communis L.) que vão ser usadas como bandejas para servir aos orixás. Com o início do ritual, os orixás são saudados. Odacir pede para Ewá (orixá dona do buraco, lugar onde ficam os mortos) cuidar de Carla, enquanto passa pacotes com as comidas dos orixás no corpo dela. Além das saudações, rezas são cantadas e pedidos são feitos. O pai de santo pede para que os orixás tirem a doença do ‘lombo’ dela. Passa os morins sobre o corpo da filha, também. Depois, as comidas quebradas e os morins rasgados são acomodados em cima das folhas de mamoneiro e temperados com mel e dendê. O próximo passo é passar um pedaço de carne em Carla. Depois, a carne é colocada em cima das outras coisas e cortada com faca, três vezes seguidas, Odacir diz: “eu corto a doença”. Após isso, os opetés (bolo de batata doce [de Iansã] ou inglesa [de Bará, Xapanã e Ossanha] em diferentes formatos) são passados no corpo dela e depositados em cima do bife. Depois, Odacir rasgou o vestido de Carla com o obé (faca). Sobre o vestido, agora em fiapos, Odacir também colocou dendê e mel. Odacir cortou um galo nas costas de Carla, enquanto dizia: “isso é para tirar a doença do ‘lombo’ dela”. O axorô foi passado nas costas, nos seios, no rosto, nos pés e mãos dela. O galo foi, em seguida, depositado em cima dos fiapos do vestido. A ave teve seu estômago aberto e foi temperada com dendê. Odacir enrolou o morim, que estava por baixo de tudo e fez uma trouxa para “despachar” no mato, para levar a doença que estava ali para bem longe, no mato, que é domínio de Ossanha e Xapanã. Pediu para que eu pusesse um banquinho no quarto de santo para Carla descansar até a volta deles [Ricardinho e Odacir]. Enquanto isso, ela não deveria ser chamada pelo nome.

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A cozinha e a culinária são elementos sem os quais as religiões de matriz africanas não existem. Meus amigos e parentes batuqueiros afirmam que batuque se aprende é na cozinha. Para o caso específico do batuque gaúcho, ver Corrêa (2005).

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No dia seguinte pela manhã, fui avisado para fazer o desjejum logo, pois não se faz nenhum tipo de serviço/feitiço com o estômago vazio. Nesse dia, o serviço era para Oxalá e envolvia os ebis, o ori e a canjica branca. Sentada numa cadeirinha, Carla ficou esperando no quarto de santo. Num prato, a canjica branca foi passada sobre a cabeça, nos seios e nas costas dela. Odacir pedia a Oxalá que tirasse isso [a doença] do seu ‘lombo’, pois “isso [a doença] não nasceu com ela”. Os ebis foram cortados/quebrados em seus seios, um a um, sendo passados em seu corpo e tendo as súplicas a Oxalá repetidas. Por último, o ori foi passado em sua cabeça, seios, mãos, costas e pés. Nesse momento, além de Oxalá, Iansã foi chamada, pois além de dona da cabeça de Carla, ela é a “menina dos olhos de Oxalá”. Ao final, Odacir pediu que fosse colocado um travesseiro para Carla ficar mais confortável na cadeirinha. Depois de algumas horas em que ficou ali por algumas horas, o pai de santo a liberou para tomar banho – apenas com água, sem o uso de sabonete, xampu ou outro produto químico. Podemos depreender a partir da descrição acima, a morte possui caráter inevitável, mas negociável. Pode ser transferida ritualmente de uma pessoa para um animal, através da troca. Passo agora à descrição daquilo que deve ser feito quando o inevitável não pode mais ser negociado: desligar-se o egum, desfazendo seus laços terrenos proporcionando a feitura de novos vínculos em Orum.

2.2 Do enterro ao eru de Tia Lourdinha

No dia 25 de julho de 2011, Tia Lourdinha faleceu. “Macaca velha” na religião, como se diz. Acumulava 36 anos de vasilha na época. Já no dia da morte, é preciso despachar o assentamento e obrigações de Bará41, pois esse orixá é quem encaminha e abre as portas necessária antes mesmo do enterro. Deve-se, também, tirar da prateleira os outros orixás dos quais a pessoa tinha sento. Os ocutás devem ir para os fundos da casa, onde ficam no “tempo”, por sete dias na natureza. Na data do velório, tive como incumbência buscar Dona Rosa (irmã de sangue e prima de santo de Tia Lourdinha) no Quilombo da Casca, em Mostardas/RS. Durante o trajeto, fui recebendo orientações de como proceder durante o velório e o enterro. Os batuqueiros utilizam suas guias nessas ocasiões mesmo quando as pessoas falecidas não são 41

Corrêa (2006) apresenta a constância desse procedimento; contudo, há divergências e diferenças sobre o modo de se lidar com cada qualidade de bará (ver especialmente a página 136).

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da religião, pois sempre há eguns em locais como cemitérios. Nessas ocasiões, nunca se utiliza a guia do orixá dono da cabeça, geralmente é dada preferência para a do dono do corpo. Dizem que “a cabeça [orixá]” não deve se expor a essas situações. Devido a alguns desencontros, quando estávamos a cerca de 1 hora de distância do cemitério, na companhia de Dona Rosa, recebemos a ligação de Carla Silva (da Iansã) com a ordem de Odacir para que não fossemos mais ao enterro, pois chegaríamos atrasados. Além disso, ele não queria que sua irmã de santo sofresse em demasia. Contudo, Dona Rosa deveria ficar na casa de sua filha, no bairro Stella Maris, em Alvorada/RS, aguardando a missa de sétimo dia e o eru. Haja vista o ocorrido, o relato sobre o velório e o enterro no lado de Oyó está baseado no que me foi contado posteriormente e no que aprendi durante o trajeto de carro. Além de ir com a guia do orixá de corpo, leva-se cinza – para afastar os eguns – e um pedaço de morim branco para abanar o que há de ruim e se despedir do morto42. O caixão deve ser embalado, rezas43 são cantadas. Contam com a simpatia ou antipatia do padre responsável pela paróquia do cemitério. No enterro de Tia Lourdinha, contaram com a boa vontade do padre. A descrição foi a de um ritual triste e belo ao mesmo tempo. Após o sermão do padre, colocaram a música “Jorge de Capadócia”, de Jorge Ben, para homenagear a filha de Ogum que estava deixando a terra44. Durante os sete dias que sucedem a morte, o quarto de santo fica sem luz alguma. Por causa do luto, os serviços/feitiços devem cessar. Apenas após o ritual de desligamento, aos poucos, as atividades da casa voltam ao seu normal. No oitavo dia, apenas velas. Aos poucos, pode-se começar a trabalhar, mas com serviços leves45. Após três

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Para uma descrição alternativa dos velórios entre os batuqueiros, ver Corrêa (2006). Note-se que o autor realizou etnografia no tempo em que se velavam os mortos no salão das casas de religião, daí uma serie de diferentes rituais. É ao redor do corpo velado que a roda-de-eguns acontece. Ver Barbosa Neto (2012) também. 43 De acordo com Corrêa (2006), “[A]tualmente ninguém mais sabe, no Rio Grande do Sul, o significado exato das palavras dos cânticos rituais. Sabe-se qual orixá que está sendo homenageado, o sentido geral do canto, ou se são cantos de egum” (: 157). Gostaria de registrar que tal constatação não se aplica às pessoas com quem convivi. Palavra a palavra, sentido geral, pronúncia, para que finalidade cantar, tudo isso é bastante discutido. É ensinado aos filhos/as pelos pais de santo, e, por vezes, os próprios orixás ensinam palavras e rezas. Na casa de Odacir, assim como na casa dos “antigos”, aprendem-se as palavras, as rezas e as histórias dos orixás. 44 Sem entrar em controvérsias sobre a existência ou não de sincretismo, ou sobre suas muitas formas, posso afirmar que nas casas de Oyó por onde passei São Jorge é Ogum em formato de imagem. O contrário não é válido, Ogum não é São Jorge. Os chamados santos africanos, ou as imagens tridimensionais de orixás, são novidades nem sempre bem-vindas. Além disso, não se cogita uma eliminação das estatuetas “católicas” (utilizo aspas, pois nem bem africanas são consideradas as primeiras, menos ainda católicas as segundas), pois grande parte delas já come há tanto tempo... 45 Pesado tem principalmente, mas não somente, a ver com serviços/feitiços envolvendo matança de animais ou os chamados serviços de dano. A distinção entre serviço e feitiço é apresentada alhures.

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meses, mata-se para Bará pedindo-se autorização para se fizer serviços mais pesados, o que pode ou não ser aceito. O tempo de luto varia conforme a hierarquia na religião: aos babalaus, com casa aberta, guarda-se um ano; aos prontos, mas sem os santos em casa, seis meses; àqueles com borido, três meses; aos outros, sete dias. Essa conta pode variar de acordo com os laços sanguíneos, com a afetividade e com o tempo de religião daquele que morreu. Assim, por exemplo, alguém que é pronto e não tem os santos em casa pode acarretar o luto de um ano, por conta de seu tempo de religião. Como descrevi no início do trabalho, essa é a semana em que Nanã toma conta do egum, que me foi traduzido como sendo algo análogo à alma, ou a própria alma. Não é Anarauim, nem Anansurê, mas sim, como já visto, é Nanã Burukê quem tomará conta do egum. Na noite que antecede a missa de sétimo dia, é realizado o corte para o egum – ritual que é descrito no próximo capítulo. Antigamente, era feito num buraco nos fundos da casa, sendo o mesmo depois coberto, pois no Oyó não existe balé46 ou culto aos eguns. Atualmente, com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas possuem pouco espaço nos fundos, local onde são plantadas as obrigações de cabeça. Mata-se para o egum em uma talha, quando da cabeça de orixás masculinos, e num alguidar, quando da cabeça de orixás femininos. Esses objetos são despachados posteriormente junto com toda a obrigação do sétimo dia, na Kalunga (ou praia). Quando o espaço era maior, podia-se abrir buraco nos fundos da casa, sem que ele ficasse próximo das obrigações de cabeça.

2.2.1 Antes do eru: a missa e as refeições

No dia 31 de julho de 2011, acompanhei a família de santo na missa de sétimo dia realizada na capela de Nossa Senhora da Saúde, localizada na parada (ponto de ônibus) 45 da RS-040 em Viamão/RS. Chegamos por volta das 8 horas da manhã e a igreja já 46 Interessante notar que balé no Xangô de Recife, segundo Halloy (2005), como no batuque gaúcho, é o quarto ou casa dos eguns, onde ficam seus assentamentos. Ainda, o autor refere-se ao perigo desse lugar e da obrigatoriedade em se cultuar os eguns antes de qualquer ritual. Corrêa (2006) chama atenção para o perigo do buraco, por isso de ele ser geralmente cercado: “[M]uitas casas de batuque possuem o balé ou buraco, local especialmente dedicado aos eguns e onde os ancestrais de religião do chefe do templo “moram”. Sempre fica nos fundos do terreiro e em local pouco acessível ou até cercado, especialmente se há crianças na casa. [...] este [o balé] pode ter conotações e formas diferentes de acordo com o tipo de compromisso que o chefe resolveu assumir com os mortos, além dos objetivos que tem em relação a eles” (: 147-8). Corrêa (1998) descreve a não necessidade de se arrumar a casa que é o balé (casa, geralmente, do tamanho de uma casinha de cachorro ou espécie de caixão), onde se prestam os cultos anuais e que pode ser utilizada para realização de feitiços (: 129-130). No Oyó, trata-se de um buraco que será coberto com terra após os rituais.

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estava lotada de conhecidos da religião. Um sobrevoo de olhar apontava para a presença de cento e sessenta pessoas. A construção feita em pedra avermelhada portava uma grande imagem de Cristo Crucificado e de São João Vianney. Nas paredes internas, a via crucis, contada através de quadros como nos mais diversos templos católicos. Ao lado direito de quem entra, uma mesinha com diversas imagens de santos católicos – São João, São Cristóvão, São José, Santa Bárbara, Santa Catarina e Nossa Senhora Aparecida –, com muitas velas acesas. Além disso, água benta disposta em bacias de madeira. Além do padre, do sacristão e de um coroinha, um animador litúrgico tocava no violão alguns hinos. Após a missa, por volta das dez horas, nos dirigimos a pé até a casa de Tia Neneca do Xangô – mãe de santo de Tia Lourdinha, localizada próxima da parada 45. Na entrada da casa uma filha de santo, de Tia Neneca dá as instruções do que fazer, de que modo se deve entrar. A porta fica entreaberta, nunca escancarada e, se possível, fechada, diferentemente de outras situações em que as portas ficam sempre abertas. Em frente a essa porta, por onde entramos, havia um banquinho com uma tábua em cima, formando uma pequena mesa. Em cima dessa mesinha, seis cascas de coco quebradas formando pequenos pratos com pemba branca, pemba azul, pemba vermelha, pemba amarela e pemba preta (nesta ordem). Também havia sabão da costa e muitos palitos de dente. Ao lado esquerdo, no chão, uma bacia com água e erva-mate, cheia de palitos de dente quebrados. As instruções eram para que passássemos na palma da mão esquerda com os dedos da mão direita cada uma das substâncias contidas nas cascas de coco na direção que ia da esquerda para direita, fazendo-se um círculo até se chegar nos palitos, movimentação que ia da pemba branca à pemba preta47. Depois, deviam-se lavar as mãos com o sabão, dentro da bacia, escolher o número de palitos de acordo com o número de pessoas que morassem em nossas casas e quebrá-los, para só então entrar na casa. Dizem que é assim que quebramos os laços do morto conosco, nossa casa e com as pessoas que vivem nela. Dessa forma, não corremos o risco de receber alguma visita inesperada do egum. Assim que entramos, nos deparamos com o salão onde ocorrem os batuques (festas) daquela casa. Ao lado direito de quem entra, o quarto de santo; nos fundos uma porta para rua, onde o egum era velado e os ocutás estavam depositados. Além disso, uma 47 Corrêa (2006 [1992]) apresenta descrição semelhante sobre as substâncias utilizadas antes de se entrar para o café da manhã no dia do desligamento. Fala que o movimento é o de passar na palma das mãos aquilo que vai do branco ao preto. A diferença parece consistir no fato de que no local onde realizou trabalho de campo a porta de entrada da casa deve ficar bem aberta.

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churrasqueira, onde as obrigações são assadas, e antes da porta que dá para os fundos da casa, à direita, uma cozinha. No salão, uma enorme mesa retangular com quatorze lugares, além de muitos sofás, cadeiras, bancos e poltronas espalhados. Na ponta da mesa, de costas para a porta, está Tia Neneca. Em ambos os lados, há pessoas que preenchem todos os assentos. Na outra ponta, há uma cadeira reclinada de modo a deixar o encosto fixado à mesa. Em frente a este lugar, estava servido o café da manhã do egum, com pratos, xícaras e taças para que ele participasse48. A fartura da mesa não deixa a desejar para nenhuma festa de batuque.

Figura 1: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul

Figura 2: mapa Viamão.

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Bastide (1959) fala da participação do morto por ocasião da refeição realizada para o axexê num batuque de Porto Alegre: “[...] na última noite, a mesa está posta, servem-se os pratos consagrados e o café, põe-se talher para o morto também, e a sua sombra vem participar dessa refeição” (: 248).

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Figura 3: planta baixa da Casa de Mãe Neneca do Xangô.

Ao entrarmos, tivemos de dar uma volta ao redor da mesa a partir da esquerda até a ponta onde está sentada Tia Neneca para somente então cumprimentá-la. Ritual obrigatório a todos que vão chegando. Como habitual em casas de religião, deve-se abraçar 51

o dono da casa, prostrar-se e beijar-lhe as mãos. Quando alguém termina o café e se levanta, outras pessoas são chamadas, para não ficarem lugares vagos49. Depois de comer, é preciso dar outra volta ao redor mesa. Na mesa, havia pão industrializado e caseiro, frios, queijo, Romeu e Julieta, diversos tipos de bolos, doce de leite caseiro, suco de uva e de laranja, diferentes biscoitos doces e salgados, olelé (bolo feito de feijão miúdo, comida de Iemanjá e de Oxum), acarajé (bolo de feijão miúdo feito para Iansã), pipoca, chá de abacaxi, café preto e leite. Tudo servido em coberta de mesa “fina”. O café, o leite e o chá são servidos em jarras de prata. A assistência, na cozinha, era composta por filhos e filhas da casa, que não paravam de limpar a mesa (retirando pratos, talheres, copos e xícaras utilizados) e trazer mais comida. O ritual do café da manhã tem seu término ao meio-dia. Nesse horário, Tia Neneca levanta, agradece a todos e serve o café de Tia Lourdinha: café com leite e açúcar, com pedaços de biscoito quebrados dentro da xícara (o que ela gostava de comer), uma taça com cachaça e outra com vermute, todos cobertos com um alá (pano branco) e logo em seguida retirados da mesa; No capítulo seguinte, o fechamento desse ritual é mais bem descrito. Maninha do Oxalá, única filha de santo pronta de Tia Lourdinha (filha de sangue e neta de santo de Tia Neneca), serve cachaça e vermute, em copinhos de martelinho. Primeiro são servidos aqueles que são prontos (como em todo tipo de ritual no batuque). Deve-se beber a cachaça em primeiro lugar, depois o vermute, sem deixar sobras. Nesse mesmo tempo, nos fundos da casa, começa a movimentação para se assar o churrasco; na cozinha, já estão limpando e temperando as galinhas que mataram para o egum. Umas serão assadas e outras irão para a panela, onde serão cozidas, ou comporão o arroz com galinha, a comida de egum50. Além disso, já começam a cozinhar o arroz branco e fazer diversas saladas, os acompanhamentos do churrasco. Entre o café da manhã e o almoço é servida cerveja aos convidados. Por se tratar do eru de uma filha de Ogum, todos devem beber ao menos alguns goles de cerveja, bebida ligada a esse orixá. Depois se pode beber chá, refrigerante, sucos ou o que se desejar. Podemos notar que as bebidas alcoólicas não são escolhidas aleatoriamente. O borido leva vermute e cachaça, a cerveja é axé de Ogum. Além disso, Tia Lourdinha 49 Esse vazio representa perigo. O perigo de alguém que não seja uma pessoa ocupe o lugar (ver Barbosa Neto 2012: 308; Corrêa 2006: 156). 50 Essa é a única ocasião em que se faz e se come tal prato na casa dos batuqueiros de Oyó. Dizem que preparar, ou mesmo comer tal prato em casa de não batuqueiros, pode atrair eguns, pois essa comida lhes pertence.

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gostava de cerveja, vermute e vinho doce. Dona Rosa contou histórias sobre Tia Lourdinha, disse que ela gostava de tomar uma cerveja gelada. Tia Neneca também comentava que, devido ao seu estado de saúde, Tia Lourdinha não deveria beber, mas estava sempre falando em beber um vinho ou uma “gelada”. Na parte de trás da casa, onde a churrasqueira estava localizada, um grupo de homens concentrou-se. Conversava-se sobre tipos de carne e sobre como assá-las corretamente. Comentaram sobre as homenagens a O Bokum Oka, quando se mata quatro-pés e aves. Essa tem seu início no dia 25 de dezembro e fim no dia seis de janeiro, Dia de Reis. Antes de ir para os fundos da casa, perguntei a Dona Rosa o que as pessoas tanto faziam lá atrás. Ela disse: “É o buraco, meu filho”. Surpreso, retruquei, “mas Oyó não é o único lado que não tem buraco?” Ela disse: “tem buraco no Oyó, mas depois de matar, se fecha o buraco”. O buraco, em outras nações do batuque, chama-se de balé, é onde ficam os eguns. Quando cheguei aos fundos da casa, não vi buraco algum, até porque eu não saberia identificar já que este poderia já estar fechado. Havia uma grande talha de barro, fechada com tampa de barro. Era possível notar o sangue escorrido e coagulado ao redor da talha e algumas penas de aves, além de, uma vela branca acesa. A talha estava ao lado da churrasqueira, a vela branca acesa na frente. Ao lado, pacotes de vela branca e de sebo, para que, com a proximidade do fim de uma vela, acenda-se outra. Mais tarde, perguntei a Odacir o que era aquela talha. Disse-me que se tratava do buraco. Como estava muito úmido, muito chuvoso, não deu para fazer buraco no chão, então a talha faz as vezes de buraco. E ali estava o egum da Tia Lourdinha. Era a própria Tia Lourdinha quem estava sendo velada, durante a noite anterior e todo esse dia. Atualmente, comenta Odacir, com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas possuem pouco espaço nos fundos, então se mata para o egum em uma talha, quando quem morreu tem cabeça de orixá masculino (Bará, Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Xangô e Oxalá), e num alguidar, quando a cabeça pertence a orixás femininos (Iemanjá, Oxum, Ótim, Obá, Iansã)51. As talhas e alguidares são, posteriormente, despachados junto com toda a obrigação do morto, ao final do eru, na Kalunga.

51 Nanã Burukê e Ewá são orixás cultuados no lado de Oyó, porém não se dá cabeça para elas. Ambas estão ligadas à morte. Ewá é a dona do buraco, diferente de Iansã, que é a dona dos eguns e do buraco. Note-se que Ótim normalmente não é dona de cabeça, aparece mais como dona do corpo dos filhos de Odé, com o qual forma o “casal perfeito”. Contam, contudo, que antigamente se dava cabeça para essas orixás, a feitura de Ótim e de Ewá foi perdida (com os mais velhos que não ensinaram e faleceram); já Nanã Burukê é dona de muitas cabeças, mas suas filhas são dadas para Iemanjá ou para Oxum Dôco. Odacir diz que tal fato se

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Na noite do sexto para o sétimo dia, mata-se para o egum, o que é tratado no capítulo seguinte. No eru de Tia Lourdinha, apenas aves, pois não havia nenhuma casa aberta. Quando de Babalaus ou Babalaoas com casa aberta, mata-se quatro pés também. As diferenças no ritual de desligamento devem-se não somente à hierarquia, mas também ao orixá de cabeça, e por vezes ao “cargo” ocupado na casa – em especial o de tamboreiros/a. Nos fundos da casa de Tia Neneca, em terreno anexo, um cachorro vinha comer a carne que os assadores lhe serviam, enquanto comentavam que se tratava da presença de Ogum, pois o cachorro é justamente o animal deste orixá. Foi um momento descontraído, a impassibilidade que perdurara o café da manhã foi, aos poucos, sendo quebrada com a feitura do churrasco, com a cerveja, com as conversas. O churrasco e seus acompanhamentos – como a salada de maionese, o arroz e salada de tomate – é servido. Bebe-se cerveja, refrigerante, sucos. No almoço, não é preciso dar a volta ao redor da mesa, mas os lugares vazios não são bem-vindos. Apenas se senta e se almoça. Dessa vez, já não se serve Tia Lourdinha na mesa, como no café da manhã. Guarda-se um prato com o almoço para hora do eru. Após o almoço, tudo é retirado, incluindo-se a mesa que estava no meio do salão. Dona Rosa havia me instruído para que não deixasse sobras nos pratos ou copos, uma vez que tudo que resta vai junto para a praia. E, como certa vez comentou Neli, com a Kalunga não se brinca. Disse que não tem medo de feitiços de cemitério, pois lá [no cemitério] se pode ir e desmanchar o que fizeram, mas “quem consegue ir ao fundo do mar desfazer algo?” Entre o almoço e o café da tarde, a cerveja é servida em abundância. É hora de se conhecer quem não se conhece, de colocar o assunto em dia com velhos conhecidos e, claro, aprender mais sobre a religião. Por não se tratar de ritual corriqueiro e no qual se possa ficar ensinando e lembrando fora do contexto adequado, seu acontecimento é momento propício para a aprendizagem ritual do ritual. Poucas explicações são dadas, a observação segue como modelo principal de transmissão dos saberes religiosos. Contam que antigamente nunca um pai ou mãe de santo explicava coisa alguma a seus filhos(as). Hoje, já é possível um sistema de perguntas e respostas, ou de explicações dadas sem que

deve a grande responsabilidade que uma filha de Nanã carrega, que hoje em dia não haveria mais pessoas à altura dessa orixá. Existem outras explicações para tal troca de orixás de cabeça, como o mito sobre a briga de Nanã com Ogum (dono do aço), que faria com que os sacrifícios tivessem de ser feitos com os dentes. Além dessa e de outras muitas explicações, o fato é que Nanã não fica com a cabeça de suas filhas.

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se pergunte. O que nunca substitui a observação, a participação e principalmente o “por a mão na massa”, pois é ouvindo, olhando e fazendo que se aprende.

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O café da tarde é servido por volta das 16 horas. Diferente da cerimônia do café da manhã, no café da tarde a mesa serve apenas de suporte aos alimentos e bebidas – profanas, pois dessa vez as comidas de egum e dos orixás não são servidas. Além disso, não se come à mesa, não se dá a volta ao redor dela, nem se colocam cadeiras no entorno. Não é preciso mais preencher lugares. Come-se onde se desejar: em sofás, em pé, em cadeiras espalhadas pela casa. Diferentemente do café da manhã, o da tarde não é tratado como um ritual, serve para que ninguém fique com o estômago vazio até a hora do eru. Tia Neneca marca para as 17 horas o ritual mais importante do dia, o eru – o momento de se quebrarem os objetos rituais, esmagarem comidas e rasgarem roupas do egum para empacotá-las e levá-las até a Kalunga. A maior parte dos rituais não inicia na hora marcada. Como notou Pólvora (1994), esperar faz parte do ritual. Por volta das 19 horas é que tia Neneca pede atenção de todos e dá início ao momento mais aguardado. A dona da casa manda servir as comidas do ritual: é preciso comer um pouquinho de tudo. Segundo Odacir, esse é o único dia em que todos comem e se come a comida de todos, a dos vivos, dos orixás e dos eguns. Todas as sobras são depositadas num panelão que será despachado junto com as coisas do morto na Kalunga. Odacir entrega o axé ou comidas dos orixás de cada orixá a um filho do santo ao qual tal comida pertence. Essa já vem da cozinha nos recipientes adequados e precisa ser servida, pessoa a pessoa: ninguém se levanta para se servir. Depois de um dia comendo a comida dos humanos, as comidas dos orixás são servidas: pipoca, amendoim, acarajé, frango assado (da obrigação), churrasco, tudo em alguidares, gamelas ou bacias. A galinha, o acarajé e o churrasco são cobertos por nham-nham (farofa à base de farinha de mandioca e azeite de dendê). Come-se com as mãos, sem uso de talheres. Depois disso, é servido amalá (comida de Xangô à base de pirão de farinha de mandioca, folhas de mostarda e carne de peito de gado bovino), galinha com molho, galinha ensopada. Essas últimas são servidas em pratos individuais, mas ingeridas com a ajuda apenas das mãos, sem o uso de talheres. 55

Por fim, a galinha com arroz ou galinhada (comida dos eguns), servida em pratos, mas utilizando apenas as mãos para comer. E a canjica branca com coco, de Oxalá, essa ingerida com o auxílio de colheres.

2.2.2 Eru de Lourdes do Ogum

Após todos comerem um pouco (o que no batuque é muito) de cada axé, Tia Neneca conclamou: “vamos começar”! Coloca-se uma grande toalha branca de mesa no chão, em torno da qual (xirê). Maninha do Oxalá ficou na porta do quarto de santo em pé, não participando da roda por ser filha de santo de Tia Lourdinha, assim como Dona Rosa, por seu laço consanguíneo52 com a falecida, o que se estendeu a Marcos e a mim – filhos de santo de Dona Rosa. Apenas com o adejá (sineta) e o agê (instrumento feito com uma cabaça/porongo inteira trançada com cordão e miçangas de diferentes cores) as rezas para Bará começam a ser tiradas. De maneira diferente do dançar na roda em festas, todos dançavam balançando bastante os braços, para frente e para trás. Além disso, algumas rezas eram danças no sentido anti-horário (usual) e outras em sentido horário. Faço aqui uma breve digressão para ressaltar a importância do estudo pioneiro de Corrêa (2006) no qual relata o aressum, dentro do qual está o ritual de desligamento. O autor toma o cerimonial do aressum como ritual de inversão no sentido de Turner, mas chama atenção para o fato de que a inversão nunca é total (ver especialmente página 173). Retomando o assunto do ritual de inversão, discordando, pois no Oyó há alternância o tempo todo: as músicas de orixá são dançadas em sentido anti-horário, as de egum (ou os axexés) em sentido contrário. São intercaladas, sendo compartilhado, contudo, o modo de dançar com o balanço ininterrupto dos braços. Barbosa Neto (2012) apresenta o Arissum como dois rituais distintos em seu efeito, porém praticamente idênticos em seu funcionamento (: 299). O autor oferece uma descrição geral, na qual utiliza dados de Corrêa também. Interessante

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O parentesco no santo e no sangue se imbricam. Além disso, os laços sanguíneos dos pais ou mãe de santo são estendidos a seus filhos de santo com maior intensidade que a seus filhos de sangue. Exemplo disso foi o caso de Neli, sobrinha de sangue de Tia Lourdinha, mas filha de santo de Odacir (primo de segundo grau da falecida), que seguiu o tempo de luto determinado por seu pai de santo e não o mesmo tempo que sua mãe de ventre, Dona Rosa. Aqui, o parentesco de sangue afeta o parentesco de santo, aproximando-se de um parentesco classificatório no qual Marcos e eu, filhos de santo de Dona Rosa, somos como partes dela e, portanto, passamos a ter o mesmo parentesco de sangue, o que provoca um tempo maior de luto. É sempre a relação que o pai o mãe de santo tem com o falecido que conta para seus filhos, exceto quando existe parentesco consanguíneo, excluídos deste os colaterais.

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a síntese que Barbosa Neto apresenta, na qual “[Q]uanto maior a conexão, maior também é o corte” (: 300) – aqui se refere ao parentesco no santo e ao grau de iniciação. Podemos pensar, também, nos vários níveis e qualidades de relações e parentesco de sangue e de santo e de afeto, conforme apresentados no trabalho. Já nas rezas de Bará, orixás foram chegando no mundo. Cantou-se para Bará, Odé, Ogum, Xangô, Iansã e Xapanã. Além das rezas mais conhecidas, cantadas nas festas, cantaram-se os axexés, que somente são cantados nessa ocasião, não podendo nem mesmo ser ensinadas fora desse contexto. Os orixás velhos não chegam nessas cerimônias. São considerados velhos os oxalás, as iemanjás e algumas oxuns, em especial a velha, a Oxum Dôco. Esses são, também, considerados povo do mel. As particularidades de um eru de um filho de orixá velho, no caso Oxalá, são tratadas no capítulo seguinte. Todos os outros, ou seja, o povo do azeite, podem chegar. Note-se que Oxum é um orixá que transita entre mel e dendê. Algumas oxuns jovens chegam a trabalhar no cruzeiro com os barás. A chegada de cada orixá em festas e outros rituais é festejada, saudada com os cumprimentos específicos de cada um. No eru, eles chegam gritando de maneira mais intensa, chorando, contorcendo-se, de modo que fica visível a dor e o sofrimento devido ao motivo que estão ali: despedir-se de vez de um orixá conhecido53. Na roda do eru, não se dança descalço, como nas festas. Por isso, quando os orixás chegam no mundo, os assistentes correm para quebrá-los e tirar seus calçados e meias porque eles ficam agitados e impacientes já que não querem aquilo nos pés. Depois de serem descalços, eles vão até rua (nos fundos da casa) cumprimentar o egum e as obrigações. Ninguém vai cumprimentar o quarto de santo nem a rua na parte da frente da casa como acontece nas festas e outros rituais. Depois de cumprimentar o egum, a mesa é posta no chão (a toalha branca). Serviam-na com comidas para os orixás e para Tia Lourdes. Junto daquilo que os orixás gostam, havia o que Tia Lourdinha gostava: cachaça, vinho, cerveja, refrigerante e alguns alimentos, como batatas, cenouras e outros legumes cozidos (comidas de egum). Esses alimentos servem para ela junto com Nanã juntar os cacos daquilo que tinha na terra e não passar fome durante esse processo. E para que houvesse um pouco de tudo do que mais gostava. A comida vai para o Orum quebrada/amassada, para lá ser também reconstituída. 53 É importante deixar claro que os orixás não morrem, apenas deixam de vir ao nosso mundo, pois sua ligação maior, a pessoa e o ocutá, deixam de existir em Aiyê. Contudo, os orixás de pessoas que já morreram são sempre lembrados e podem-se fazer pedidos a eles independentemente do tempo que seus filhos humanos já tenham morrido. Além do mais, os orixás vivem concomitantemente em Orum, nos ocutás, nas cabeças de seus filhos e nas demais obrigações.

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Os orixás trazem dos fundos da casa os ocutás, as quartinhas, os pratos, as manteigueiras, as guias e os depositam em sacos de tecido branco. As comidas que estavam sobre a toalha foram depositadas nos mesmos sacos. Depois de tudo arranjado nos sacos, um orixá os fecha com as mãos e com um porrete quebra tudo que está ali dentro. Esse é o momento de que tanto me falaram. “Aquela coisa horrível”, quando se dá o verdadeiro adeus à pessoa e a seu orixá – ou ao orixá e à sua pessoa. O sofrimento para quem conhece o orixá e a pessoa é enorme. Assim como os orixás choram, as pessoas presentes estão muito emocionadas; as mais íntimas, por vezes, passam mal. Contudo, o ritual é esteticamente muito bonito. Há aqueles, como Tio Paulinho do Aganjú, que prefira um eru a uma festa. Dizem, também, que os maiores segredos e fundamentos da religião estão no eru. As rezas e a roda seguem, quando então são escolhidos cinco orixás para realizarem a limpeza, sendo cada um deles responsável por um axé. De modo que eru é feito em etapas simultâneas: um grupo de pessoas, tomadas pelos seus orixás limpam as pessoas presentes e outro grupo dança, outros ocupados por seus orixás montam o saco do egum. A parte da limpeza é feita com o casal de aves que pertence aos orixás de Tia Lourdinha: 1 galo para Ogum (orixá de cabeça) e 1 galinha para Oxum (orixá de corpo), além de comida para Bará, varas de marmelo para Ogum, velas brancas e vassoura de morim em várias cores. A roda continua ao mesmo tempo em que se forma uma fila na qual todos entram para serem limpos, inclusive os orixás. A única diferença é que ao invés de passarem pelo ossagéu, tomam um gole d’água. Ao final da limpeza, o material utilizado é quebrado e depositado nos sacos – inclusive o galo e a galinha. Após tudo quebrado e todos serem limpos, distribuem-se uma flor branca (crisântemo ou rosa) e balas para cada pessoa e orixá presente. Fecha-se o saco que contém o galo e a galinha. Os dois outros permanecem com a parte de cima aberta, como se formassem um grande recipiente, um vaso de flores. Cada pessoa vai até eles e dá as balas (desempacotadas) que tiver nas mãos, presta a sua homenagem e coloca a flor que recebeu. Depois disso, os prontos, que além das balas e flores recebem velas, prestam sua última homenagem. As velas são acesas dentro dos sacos, de modo a formar uma grande oferenda. Com a proximidade do fim, um orixá vem com um espanador feito de morim nas cores azulão, amarelo, branco e vermelho e vai limpando todos os presentes, utilizando esse espanador para apagar as velas também. Os sacos são fechados, as comidas que 58

restaram nos pratos das pessoas ao longo do dia e foram armazenadas em panelas são trazidas. A toalha é enrolada, as vestes do Ogum e algumas roupas de Tia Lourdinha são rasgadas. Tudo partirá para a Kalunga. Todos os orixás e mais algumas pessoas – que dirigem os carros – partem rumo à praia. Os que permanecem na casa só podem ir embora depois que os outros voltarem. Quando os que saíram voltam, todos ficam em pé e forma-se uma roda que permanece parada. Apenas os orixás dançam, abraçando o próprio peito, com os braços cruzados. A reza de finalização do eru é, então, cantada; os orixás que até então não haviam cumprimentado ninguém, cumprimentam-se uns aos outros e depois fazem o mesmo com os humanos. Por fim, trazem um alá grande, que cobrirá todos os orixás, dão uma jarra de água para um orixá que asperge o conteúdo no chão. Todos os orixás posicionam-se sob o pano e sobre a água e, então, vão embora, sem passar pelo estado de axere. A assistência corre para calçar sapatos e meias naqueles que se ocuparam, para que não descubram esse segredo. O orixá vai embora deixando seus filhos aparvalhados por um tempo – o que acontece sempre após a deidade sair do corpo de seu filho.

2.3 A Morte e seus Rituais Finais

É preciso lembrar que cada ritual desses varia de acordo com o orixá, o tempo de religião e o que se tem na cabeça (sanapismo, aribibó, borido, angolistas, quatro-pés até a confirmação, o se governar, possuir filhos e filhas de santo e, finalmente, ter casa aberta). Assim, o sétimo dia de quem possui apenas uma quartinha consistirá em apagarem-se as luzes do quarto de santo e entregar-se na Kalunga o que esse egum tinha de obrigação. Além disso, como já mencionado, o carinho que se tinha por determinada pessoa faz com que esse esquema mais ou menos estruturado sofra modificações. Como quase tudo no Oyó, não existem receitas prontas, existe jogo de búzios e orixá... E, é claro, existe o que “a lei manda”... Como já mencionado, o período “dos três meses” pós-morte é de suma importância. Nele, acontece o primeiro corte após o eru. Na ocasião, mata-se para Bará, pedindo-se licença ao dono dos caminhos para que se possa voltar a realizar feitiços que envolvam a matança de animais ou para os serviços pesados. Quando um pronto morre, 59

sua família de santo mais próxima – mãe/pai, irmãos, filhos –, assim como os parentes de sangue que são de religião (que são, pelo período de luto, como a parentela mais próxima de santo), não podem/devem cortar até que se complete o ciclo determinado para o luto. Ademais, o ritual dos três meses (não há nome em “africano” para ele) é realizado com “tudo que a lei manda”. Esse, assim como o de seis e o de nove meses – realizado apenas quando da morte de um pronto – e o de um ano – realizado apenas quando da morte de babalau ou de uma babalaoa. Não possuem uma cerimônia com caráter público como aquela do sétimo dia. Note-se que, apesar de apenas os mais íntimos frequentarem o eru, ele não é vetado a pessoas mais distantes. Contudo, ele não possui as características de uma festa grande em que qualquer pessoa pode entrar. Assim como o sétimo dia, “o um, o três, o seis e o nove meses e o um ano” marcam tempos de se prestar mais homenagens, e se fazer com que o egum se aproxime cada vez mais de seu orixá. Como Oyó não cultua seus antepassados em balés, nem em cemitérios, cada um desses rituais trata de afastar o morto dos vivos. É importante manter a maior distância possível dos eguns. Descrevo de forma sucinta cada um desses rituais no lado de oyó. O luto, basicamente, reside em não participar de batuques ou obrigações que envolvem rezas, danças ou matanças. O ritual de 1 mês envolve missa católica, ir a casa religiosa, lavar-se com mieró na entrada da casa, passando o preparado pelo corpo e pedindo que a alma do morto se desligue. Entra-se no salão, lá se dá uma volta completa, cumprimenta-se o dono ou dona da casa e bebe-se um axé de vermute e de cachaça. No terceiro mês o ritual é semelhante, porém, dessa vez, leva-se um presente (oferenda) no mato para o egum. Caso seja autorizado pelos búzios, mata-se aves para os Barás pedindo a liberdade para voltar a trabalhar. No sexto mês o ritual é o mesmo do terceiro. No nono mês apenas reza-se a missa católica. Ao completar um ano se realiza ritual semelhante ao do sexto e nono mês, fazendo-se o último saco e o último presente para o egum, para que assim o luto termine e a vida volte ao seu normal. Durante todo esse período e em todos esses rituais os orixás não descem nos corpos de seus filhos.

2.4 Pessoa Morre Orixá Não

Orixá é inexplicável e inquestionável, é para ser vivido e pronto. Não se sabe de onde vem só se sabe que vem! (Vovô Mário e Vovô Donga da Iemanjá, citados por Odacir 60

do Ogum quando dizia o que considerava importante que eu escrevesse para meus professores).

Um antigo babalau do Oyó deu o corte e a festa que segue durante a quaresma, período no qual não se corta na cabeça e não se dá toque (de tambor). Serviços/feitiços com axorô são realizado apenas em caso de doença e mesmo assim não se derrama o sangue sobre a cabeça, apenas no corpo, testa e têmporas. Como certa vez Odacir comentou: “não somos africanos da gema, somos afro-brasileiros. Se as nega velhas guardavam a quaresma, quem sou eu para questionar, para mudar, ou pensar que africanizarei qualquer coisa. Nossa tradição é a do batuque de Oyó já no Brasil”. É por isso que esse e tantos outros preceitos, assim como os orixás, são inquestionáveis: são assim e pronto. Não se deve questionar muito, muito menos tentar modificar qualquer ritual, pois como se diz, a “volta vem a galope”. O mesmo babalau não guardou o luto de um ano pela morte de um filho de santo – outra quebra perigosa de preceito. Pois bem, o batuque aconteceu, Odacir e seus filhos não foram, mas ficaram sabendo do ocorrido. Como de costume nas festas dessa casa, o Xangô, quando chega no mundo, dança por um tempo junto com os outros orixás e depois para a festa por alguns instantes; depois, vai até o quarto de santo buscar o oxê (machado de dois gumes de xangô), para voltar e fazer sua dança sozinho. Quando o Orixá abaixou-se para pegar sua arma, não se levantou mais. Os outros orixás e as pessoas, sem entender o que acontecia, foram ver o que se passava, ele estava curvado, com os olhos fechados, a boca entreaberta torta para um lado por onde escorria saliva. O pai de santo quase morreu. Além de ser motivo de tristeza, tal fato foi alvo de comentários jocosos. Houve preocupação com a possível morte de parente de santo e lembrança de algumas histórias. Um eru estragaria o batuque de outubro (festa grande que ocorre sempre no mês de outubro na casa de Odacir), pois o tempo de religião do babalau exigiria pelo menos seis meses de luto para família de santo de Odacir dado ao parentesco que possuem. Divertido como sempre, Odacir, encenou o ocorrido para cada conhecido que chegava a sua casa, e acrescentava: “no meu tempo, a pessoa morria e o santo não parava de dançar”. Assim, lembrou-se das histórias de um Bará do tempo antigo e da Tia Francisca da Oxum. Ele dançou um batuque inteiro, ficou em axere e disse: “agora eu vou, porque o meu já foi há muito tempo”... Quando fizeram a autópsia, apareceu que o cavalo 61

de santo já enfartara havia mais de cinco horas. No outro caso, a Oxum dançou a noite toda, foi para o meio do salão e pediu uma reza de oxalá. Solicitou que os presentes arrumassem todas as coisas para levar para praia, e morreu em seguida. Disseram que a filha já estava morta há mais de três horas. Histórias como essas são comuns e falam não apenas do que é um corpo, do que é a morte, mas, principalmente, do que é um orixá “bem feito”. Como diz Odacir “orixá bem feito tem que dançar no seu cavalo a festa inteira, dar consulta, ficar em axere, fazer tudo normal, se a pessoa morreu não importa. Pessoa é pessoa e orixá é orixá, pelo menos deveria ser assim...”. “Orixá é inexplicável, só se sabe que ele vem”. A morte, pelo contrário, possui muitas explicações, desde as mais ligadas ao mundo profano – como por doenças, acidentes, assassinatos, velhice – até as mais ligadas ao mundo sagrado – como por feitiçaria ou desrespeito aos tabus religiosos. A feitiçaria não é uma explicação muito acionada para dar conta do acontecimento da morte. Na contramão, os feitiços ou serviços, como as trocas de vida, por exemplo, são bastante recorrentes para “segurar” a vida e adiar a morte. As explicações mais dadas para ocorrência da morte são as do tipo: “já tinha chegado a hora”, “ele/a não se cuidava mesmo”, “não é porque tem santo que não se vai ao médico”, sendo a união destas três explicações a mais comum. Pais e mães de santo e mesmo orixás, quando estão no mundo, costumam prescrever para seus filhos que consultem médicos, ou “os burro da terra” como chamam. Contudo, a feitiçaria braba, aquela feita por ocasião de velórios, enterros e até mesmo na praia, pode ser considerada uma das causas primeiras da morte, principalmente se quem morreu não tiver “nada” que explique sua morte além disso. O orixá continuar dançando no corpo de seu cavalo já morto parece ser fundamental para um pensamento no qual pessoas morrem, mas orixás nunca. O que acontece é que devido ao fato de seu filho humano não estar mais no nosso mundo, não o vemos mais em sua forma “encarnada”. Mas eles continuam vivos. Como descrevi no Capítulo I, os orixás dos grandes babalaus e babalaoas não podem ser esquecidos e, em certa medida, os humanos que já partiram também não. É por isso que quando se realiza uma festa grande com matança de quatro-pés, manda-se rezar uma missa para todos os pais e mães de santo que fizeram história. Além disso, é preciso entregar presentes para os orixás dos ancestrais desde Mãe Emília da Oyá Ladjá, princesa africana que trouxe a nação para o Rio Grande do Sul, da qual Odacir é bisneto de santo.

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Nesse capítulo, procurei descrever, através da troca de vida, do eru e da quasemorte de um babalau, a natureza intrinsecamente mutável e negociável da morte. A morte que não é inevitável, mas pode ser trocada, prolongando-se assim a vida. O morto precisa, assim como os vivos, aprender que o estatuto da sua relação com os entes queridos e as divindades transforma-se radicalmente com a quebra ritual de toda sua obrigação. Resta aos vivos não cultuar mais o orixá daquele que se foi, a não ser quando esse se torna um grande homem ou mulher e um grande orixá, devendo ser cultuado com um antigo morto. Tal mudança de estatuto deve ser aprendida ritualmente. Os saberes e segredos envolvidos no eru mobilizam os fundamentos da religião. Além disso, a morte, ou melhor, a quase-morte evidencia que corpo, pessoa, orixá e objetos rituais são unidos sim, mas nunca perdem sua capacidade

de

separabilidade.

Morte/vida

e

pessoa/orixá/objetos

rituais

são

potencialmente muito diferentes e, ao mesmo tempo, tão próximas, que possam se confundir, isso é o que chamo de condição homorgânica. Tomo, pois, morte e vida como constituintes homorgânicos da pessoa batuqueira no Oyó, i.e., elementos que compartilham o mesmo substrato, o que exclui a noção de pares opositivos, mantendo, no entanto, a propriedade diferencial que estabelece a relação entre eles54. O uso do adjetivo homorgânico tem a ver com a ideia de oposições não contrastivas que podem ser ligadas a uma continuidade ou a uma descontinuidade. É nesse sentido que homorgânica, ou melhor, o ponto de articulação que conecta diferenças homogêneas e heterogêneas na experiência religiosa é a pessoa. É a pessoa que articula de modo semelhante (mas não igual) nascer e ser feito; e de modo diferencial vida e morte. Esta variação contínua é a própria condição homorgânica da pessoa. Assim podemos colocar continuidade e ruptura sob um mesmo articulador, a própria pessoa batuqueira. Homorgânico, como utilizado aqui, fala daquilo que está em “participação” ou é “simpático”55 entre si, mas também do que não compartilha substrato ou substância alguma – pelo menos à primeira vista. A pessoa batuqueira é, ao mesmo tempo, articuladora dos 54

O adjetivo homorgânico vem da linguística; de acordo com Crystal (2000), é um “termo geral na classificação fonética dos sons da fala, com referência aos sons produzidos no mesmo ponto de articulação, como [p], [b], e [m]. Os sons que envolvem articulações independentes podem ser chamados de ‘heterorgâmicos’. Os sons que envolvem articulações adjacentes (e, por isso, de certa forma mutuamente dependentes) são chamados algumas vezes de ‘contíguos’” (: 141). 55 Participação é pensada aqui no sentido que Bastide (1983) dá ao conceito; “simpático” no famoso sentido de Frazer.

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“homorgânicos” e tem como condição de existência as articulações que a precedem e a fazem um tipo especial de pessoa56.

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Uma discussão mais atenta à “noção de pessoa” em antropologia seria um caminho interessante a percorrer na dissertação, contudo optei pelo estilo monográfico da descrição detalhada, não havendo espaço para tal debate. Desde Marcel Mauss até etnografias mais recentes como as de Joel Robbins e Marilyn Strathern, passando por Roger Bastide e Marcio Goldman na literatura sobre religiões afro-brasileiras, é importante ressaltar a preocupação antropológica dedicada ao tema. De acordo com Goldman (1999), “Se desejarmos permanecer fiéis à tradição antropológica, deveríamos reconhecer que após toda essa discussão, é ainda Marcel Mauss quem nos aguarda no final do caminho. Para admiti-lo basta reunir ao texto sobre a pessoa suas análises a respeito da “expressão obrigatória dos sentimentos” e das “técnicas corporais”. Recuperaríamos, assim, o plano do “fato social total”, onde físico, psíquico e social não podem mais ser distinguidos, e onde representações e processos empíricos não constituem mais que dimensões ou expressões sempre articuladas das práticas humanas que pretendemos investigar” (: 37). O texto de Mauss (2003) realiza fenomenal genealogia da noção, oferece: “um catálogo das formas que a noção adquiriu em diversos pontos, e mostrar de que maneira ela acabou por ganhar corpo, matéria, forma, arestas, e isto até nossos tempos, quando ela tornou-se clara, nítida, em nossas civilizações (nas ocidentais, muito recentemente) e não ainda em todas. [...] O que quero mostrar é a série de formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das sociedades, com base em seus direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades” (:370-1). Tendo tal ideia no horizonte, busco oferecer uma leitura possível da pessoa batuqueira, articulada, feita e desfeita sob o que chamei de “condição homorgânica”.

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Cap. 3 Sobre pessoas, assentamentos, casas e imagens

Este capítulo dedica-se a descrição do eru de Sergio do Oxalá e da reconstrução da casa de Odacir em São Luís Gonzaga/RS (doravante SL). Como no capítulo precedente busco expor detalhadamente os acontecimentos, desse modo, além de demonstrar as diferenças e semelhanças intrínsecas ao ritual de desligamento, o detalhamento etnográfico fornece, aqui, ideias que justapostas às já apresentadas nos capítulos anteriores compõem um olhar mais geral (também-abstrato) sobre a morte, os eguns e a importância dos parentes de santo. Por ser o último capítulo, já possui ares de fechamento do argumento central. Os mais velhos, os eguns, o eru reaparecem conectando o já antes apresentado com outros dados que iluminam àqueles. Portanto, pontos que se repetem são repetições e, ao mesmo tempo, dados novos. Ao apresentar dados diferentes que versam sobre o mesmo tema, busco oferecer um quadro em que pela diferença o mesmo se faça mais compreensível para quem não está familiarizado com rituais do lado de Oyó. Além disso, esse modo de reapresentar um tema com outros dados dá ênfase ao que em campo é a todo momento reforçado: a diferença intrínseca a rituais da mesma natureza. Ao descrever o ocorrido em SL, procuro mostrar como situações inesperadas exigem ações calcadas num certo tipo de improviso. Além disso, a possível morte de um ocutá, a destruição de imagens e de uma casa num incêndio serão descritas para comporem com o eru um quadro que explicite o modo negociável em que as coisas de religião acontecem. O que já aparece na comparação entre os diferentes erus deve ficar mais claro com o auxílio de outro assunto. Às vezes, como no caso que é descrito, quando uma pedra morre, existe um período de suspeita sobre a condição de viva ou não, sendo o jogo de búzios o melhor dos oráculos para se certificar do ocorrido.

3.1 Velório e enterro do Sergio do Oxalá

Já não era de hoje que Sergio dava sinais de despedida de nosso mundo. Os AVCs, a trombose e tantos outros problemas só se agravaram. Como dizem, já era sabido. 65

Contudo, não deixa de surpreender. É que de tantas idas e vindas do hospital, parecia que nunca iria chegar a hora. A isso se ligam as expectativas em relação à ocorrência ou não do próximo batuque, seja na casa de Odacir ou na de outros parentes de santo. Uma morte interrompe planejamentos, preparativos e os rituais ligados à vida; em suma, a morte tratará, pois, de paralisar, por períodos determinados, a lida com os orixás. Lembro-me de, em abril, em visita a casa de Tio Paulinho do Aganjú, esse dizer: “Odacir pode cancelar o batuque e se preparar para embalar”. Ele e sua esposa riram e comentaram sobre a importância do eru. É nele que, segundo Tia Aída da Oxum Dôco, aprende-se a religião: “é ali que participam só os parentes e amigos, diferente de uma festa. Quem tá num eru, tá por amor”. Tio Paulinho comentou que esse é seu ritual favorito. Tia Aída o completou: “mas é importante saber tudo, todas as rezas. E só participando mesmo, pois não dá para cantar pra eles [mortos], porque chama”. A situação de Sergio continuou a mesma até o momento em que baixou hospital pela última vez. Odacir recorreu aos mais velhos, foi no Tio Paulinho e na Tia Neneca. Era preciso saber o futuro, saber qual era a situação do Sergio.

***

No sábado dia 18 de agosto de 2012, Sergio Demétrius, o Serginho do Oxalá, faleceu. No dia seguinte à morte, após velarem o corpo por toda madrugada, ocorreu o enterro. Aproximadamente uma hora antes de o caixão sair da capela do cemitério, começaram a chegar os parentes de santo. Velando o corpo, estavam Odacir, Manu e Lúcia do Ogum, mãe e filha, ambas filhas de santo do primeiro. Além delas, uma tia de sangue de Sergio. Após a missa na capela do cemitério, foi hora de levar o caixão até a sepultura. Batuqueiro tem de ser enterrado, nunca cremado. O caixão deve ser embalado. Só prontos podem segurar as alças, de preferência filhos de Xangô e de Iansã – orixás donos dos eguns. Com o agê, Tio Paulinho puxou os axexés, as rezas de egum. Dizem que o que já estava triste ficou pior. Sua entonação foi linda, contam que ele sabe puxar axexé como ninguém no Oyó. Tio Paulinho chama atenção dos homens para que embalem, dancem e cantem melhor. Todo o trajeto até o sepulcro deve ser dançado, embalado e cantado. Mas, como já descrito no capítulo anterior, o enterro é apenas uma parte da despedida. O 66

principal ritual é o eru. No enterro, quem se vai é o corpo; que deve ser enterrado. É importante chamar atenção para o fato de um pai ou mãe de santo não poder segurar as alças do caixão de seu filho/a, pois pai ou mãe não embala filho. Aqui podemos destacar a ligação com o parentesco de sangue e o tabu fundamental que proíbe o fato de se ser pai ou mãe duas vezes, aqui parentesco no sangue, no santo e o eru se conectam, vida e morte, portanto. O pai ou mãe de sangue, aquele que dá a luz não pode desfazer seu filho/a, não pode terminar, caberá ao pai ou mãe de santo presidir o eru, presidir a destruição de todos os laços de quem morreu com os vivos. Tarefa que pais e mães de sangue não podem realizar, eles não podem quebrar/destruir/desligar seus filhos. Voltando ao ritual, para saber como proceder um ritual dessa importância, é preciso consultar os búzios, perguntar para o egum o que ele quer comer e o que mais deseja. No caso de Sergio, o egum exigiu matança de quatro-pés e tamboreiros para a roda do eru. A morte, por mais anunciada que seja, pega de surpresa. Impinge tristeza e gastos dos mais diversos. Como acontecera no eru de Tia Lourdinha, deve-se ao egum homenagens que incluem as matanças e um dia inteiro de refeições para os humanos que passam pela casa, além das frentes de todos os orixás, as comidas de egum e as brasileiras (as que não são nem de orixá, nem de egum, aquelas que se comem no dia a dia). Tal fato fez com que Odacir tivesse de negociar com o morto os rituais pós-morte. Em troca dos quatro-pés e do tambor, o egum exigiu que lhe fossem prestadas homenagens (rituais) de um, três, seis, nove e doze meses. Como já mencionado, os rituais pós-morte tem função de desligar o morto do nosso mundo. Não apenas os vivos devem aprender a seguir com suas vidas sem aquele que partiu, mas quem morreu deve aprender que não faz mais parte desse mundo.

3.2 Matança

No sexto dia pós-morte, matou-se para o egum. O início dos trabalhos estava marcado para às 19 horas. Como de costume, aconteceu mais tarde, por volta das 22 horas. Desde muito antes do horário marcado, a movimentação na casa já é grande. Os filhos de santo vão chegando aos poucos e já tomam conhecimento com o pai de santo das atividades que deverão realizar. No sexto dia, não há ritual a ser realizado antes de se entrar na casa, o que só ocorre depois da missa de sétimo dia.

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Após cumprimentar quem estava na casa, fui até a cozinha dos fundos para ter com Neli. À direita, uma porta leva ao pequeno espaço de terreno que não é ocupado por construção, justamente para ser utilizado em determinados rituais. Toda casa deve ter fundos. Lá já estava a talha, velas brancas e as obrigações de Sergio cobertas por um de seus alás, diferente do caso de Tia Lourdinha, em que as obrigações estavam descobertas. É que devido ao fato de ser filho de Oxalá, o dono do alá, as obrigações são deixadas no “tempo” de modo distinto das dos demais orixás.

Figura 4: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul.

Figura 5: mapa de Gravataí e do bairro Morada do Vale I.

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Figura 6: Casa Pai Odacir do Ogum.

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Figura 7: planta baixa Casa Pai Odacir do Ogum.

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Em uma gaiola, que serviria de morada ao peru (animal de Xapanã) de nome Crô – que, como um prenúncio57, morreu pouco antes de Sergio–, ajudei a colocar as aves que foram trazidas para a obrigação. Havia aves para Oxalá, Iemanjá, Oxum, Bará e Odé. Tia Neneca veio para presidir o eru. É ela quem organiza todo o ritual; vale lembrar que no lado de Oyó o dono de uma casa deve passar o poder para a mão do mais velho que está presente, conforme a lei da nação. Para o início da matança, pede-se silêncio e que os prontos se aproximem, da ordem do mais antigo na religião ao mais novo. Os não prontos assistem de longe, o que é possível por entre os braços e pernas daqueles que estão mais próximos. A maior parte dos presentes se amontoa. Muitos participam pela primeira vez, outros já não lembram do último eru do qual participaram. Aglomerados no pátio dos fundos da casa estavam os prontos, ao passo que dentro da cozinha estavam os outros espectadores que, como eu, não deveriam ficar muito próximos ao buraco. A talha que faz as vezes de buraco é batizada. Como de costume, batiza-se com farinha de mandioca e coloca-se folha de mamoneira, para que só então o axorô possa ser ali depositado, juntamente com ele a cabeça das aves. O restante do animal vai diretamente para bacias, separadas por orixá, para que depois as inhálas (miúdos, patas e testículos para os orixás masculinos, exceto Oxalá, pois esse recebe animais fêmeos) sejam separadas e as aves depenadas e preparadas para o tempero. É com elas que se fará o arroz com galinha, a comida de egum. É importante mencionar que diferentemente das inhálas de obrigação, que são fritas, refogadas na banha com coloral e outros temperos, as de egum ficam cruas, só têm de ser lavadas para que não estraguem até o dia seguinte. Como em qualquer obrigação, inicia-se por Bará. Tia Neneca é quem primeiro mata, depois Odacir, e esses vão chamando, sucessivamente, os mais antigos na religião. Na hora de matar para Oxalá, Odacir chama Regina do Oxalá, filha desse orixá que estava presente, pronta há mais tempo. Filhos de Oxalá não devem se aproximar muito do buraco, mas por se tratar da morte de um filho desse santo, outras regras se aplicam. No 57

Peru é uma das aves de Xapanã, orixá ligado à morte, à doença e à saúde. Xapanã utiliza sua vassoura para varrer os males da terra, outrora perfeita, hoje cheia de imperfeições que os humanos criaram. Odacir ganhou Crô de sua amiga Jane, em SL. Pude acompanhar todo desenrolar dessa história, que culminou na morte do animal. O peru, como explicou-me Odacir, criado no quintal de casa, varre tudo de ruim, bloqueia o olho grande e a inveja, também. A primeira ideia foi deixar Crô solto no pátio de sua casa em Gravataí, o que aconteceu por alguns meses. Devido à sujeira gerada pelo animal, com excrementos e restos de plantas que ele comia, Odacir achou por bem construir uma gaiola, grande e bonita, pois Crô era de estimação. Uma das baixas de Sergio no hospital coincidiu com o dia da construção da gaiola, dia em que Crô pulou para o terreno do vizinho dos fundos da casa (o que nunca havia acontecido) e foi morto por um cão. Quando perguntei por Sergio para Neli, ela me disse: “a coisa não tá muito boa e o tio [Odacir] ainda ficou mais preocupado porque o Crô, que é do Xapanã, morreu. Isso não é bom sinal”.

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entanto, é com parcimônia que a filha de Oxalá deve se aproximar da talha. Após cada ave cortada, tempera-se a obrigação com mel e dendê. Tia Neneca profere, em voz baixa, algumas palavras. Odacir também. Pedem pela alma de Sergio, “que ele tenha um caminho doce”; “uma ida doce”. Não há rezas. No dia seguinte, Odacir explicou o motivo: Tia Neneca era filha de egum, assunto que trato mais à frente. Tal condição lhe impôs as rezas de axexé como tabu. Mas tampouco cantou as rezas de Nanã, que deveriam ser cantadas também. Ela não podia cantar e ele não sabe cantar. Disse que não dá para fazer como se faz para orixás: cantar respondendo errado ou errar a pronúncia58, abrasileirar como tantos fazem. A lida com egum é coisa muito séria. Quando não se sabe, não se faz. Assim é melhor. A matança é rápida. Diferentemente das feitas por motivo de homenagens, quinzenas ou quatro-pés, essa é cercada pela tristeza. Com lágrimas nos olhos, Odacir pede aos filhos e filhas de santo que depenem as aves. “Agora vocês trabalhem um pouco pro Sergio, que ele trabalhou a vida toda para vocês”. Após a matança, é acesa uma vela branca atrás da talha, com um protetor contra o vento. Ao lado da vela acesa, pacotes de vela branca para que ao final de cada vela já se acenda a seguinte. Tamires fica responsável por cuidar da vela, repor para que o egum não fique no escuro. Assim deve ser até a hora do eru. Durante a matança, a cozinha não para. O jantar é preparado para que todos possam comer assim que as aves fiquem prontas. Logo após o jantar se começa a preparar aquilo que pode ser preparado véspera, como deixar canjica de molho, cozinhar algumas coisas, cortar outras, separar as que serão refogadas. Contudo, nada pode ser aprontado 58

A pronúncia correta de todas as palavras em todas as rezas de todos os orixás é obrigatoriedade para que se possam cantar as rezas. Não pode ser feito um ritual, ainda mais um eru, sem que sejam pronunciadas todas as palavras que compõem os versos das rezas. O verso de uma reza de Iansã é exemplo do que falo, é motivo de piadas quando, em vez de cantarem “loqué loqué loquéce”, cantam “eu quero eu quero esse”. Para as pessoas que conheço de Oyó, tal erro é absurdo. Dizem que, quem se diz de Oyó e canta errado, não é do “Oyó verdadeiro”. Para ser alguém que puxa rezas, é necessário um longo investimento, geralmente se dedica uma vida a aprender as rezas completas. Junto com o aprendizado de ouvido, busca-se, paralelamente, em cursos de ioruba, aprimorar a pronúncia e saber as traduções e histórias correlatas. A tradução não conta toda a história ou passagem que uma reza comporta, por isso que outras formas de aprendizado não substituem a passada pelos pais ou mães de santo. São eles que escolhem quando os filhos têm o direito de saber o que significa cada reza, principalmente quando se trata da reza do orixá de cabeça. Contam que, antigamente, o Vô Donga da Iemanjá parava os batuques caso ouvisse alguém cantando errado. Já pude presenciar cenas semelhantes a essa, quando um pai de santo ou orixá para uma festa para corrigir a reza, ou canta mais alto e lentamente, demonstrando assim o modo correto de cantar. Corrêa (2006) relata conversas sobre o assunto que teve com Donga da Iemanjá: “Ninguém mais tem fundamento (conhecimento), misturam uma coisa com a outra, ficam dizendo ‘Xangô baía’, ‘aliança é de loiá’, ‘Ogum macaca’, tudo que é bobagem que aparece na cabeça! [...] Por exemplo, a versão correta, conforme o Donga, seria: ‘Xangô baín’ e ‘ariansã édi loiá’” (: 52). O autor chama atenção que esse modo diferente de cantar as rezas foi tomado por Roger Bastide como uma deturpação de um “modelo original”, o que será interpretado como “mudanças naturais que o grupo do batuque experimenta [...]” (Ibidem.).

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antes da missa e do ritual do café da manhã. Só então começa a correria para fazer todas as frentes a tempo para o eru.

3.3 Eru do Sergio

Como no eru de Tia Lourdes, a preparação para o ritual começa na entrada da casa, onde, em uma mesinha baixa, oito cascas de coco serviam de pratinhos, dispostas em duas fileiras paralelas quatro a quatro. Da frente para trás e da esquerda para direita, eram preenchidos com pemba vermelha, amarela,

azul, branca, preta, sabão da costa e,

finalmente, os palitos de dente. Uma bacia de louça ágata branca sob a cadeira continha o mieró de egum, que leva erva mate. Tudo preparado por aqueles que ficaram na casa desde a matança. Tal qual realizado na ocasião do eru de Tia Lourdes, essas substâncias deveriam ser passadas na palma da mão esquerda, com auxílio da mão direita. Ainda que os conteúdos difiram de um eru para o outro, o modo de se limpar para entrar na casa se assemelha e marca a necessidade de se limpar o corpo para se participar de um ritual desse porte. A maior diferença está relacionada aos palitos que, ao invés de contados pelo número de pessoas que residem com quem está se limpando, devem ser apenas dois, que são passados sobre o corpo e depois quebrados, dando fim a limpeza. Após esse ritual, pode-se adentrar a casa. Logo na entrada, o salão já espera com a mesa do café da manhã posta. Odacir foi o primeiro, Tia Neneca já estava à mesa. Ele dá uma volta em torno da mesa em sentido anti-horário, no mesmo sentido em que se dança uma roda para os orixás, mas no sentido contrário ao realizado na entrada do eru da Tia Lourdes. Na ponta da mesa que dá de frente para a porta, Tia Neneca tomava seu café, era ela quem deveria ser cumprimentada em primeiro lugar. Odacir toma a outra ponta, a do egum. Somente após o término do café da Tia, é servido o café para o egum, com duas xícaras de café com leite e as outras guloseimas que estavam postas. Além disso, havia um martelinho com cachaça e outro com vinho doce. A cadeira fica com seu encosto tocando a borda da mesa. Regina do Oxalá (antiga filha de santo de Odacir), Neli da Oxum e Mana da Iansã (antiga filha de santo de Sergio) ficaram responsáveis por todas as miudezas e todas as frentes, de Bará a Oxalá. Fizeram as comidas de egum e as comidas de santo. As 73

brasileiras, aquelas preferidas de Sérgio, foram preparadas na cozinha da frente. A cozinha funciona o dia todo, concomitantemente com o ritual do café da manhã e o almoço que segue. O ritual do café da manhã encerra ao meio-dia. Tia Neneca vai até as duas xícaras servidas para o egum, pega as comidas que estão servidas para ele, esmaga tudo e coloca dentro das xícaras de café com leite. Dá uma para Regina, que vai com Odacir despachar o conteúdo na frente da casa. A outra caneca ela dá para Mana, que vai para os fundos da casa, para despachar o conteúdo também. O martelinho de vinho doce vai para os fundos, quem o despacha é Ronaldinho do Aganjú (filho de santo de Odacir). A cachaça vai para a frente e quem a despacha é Batista do Ogum (filho de santo de Odacir)59. A mesa é recolhida, tirada do salão e levada até a sala dos fundos. Tudo o que sobra do café é colocado em uma mesinha em um canto, nos fundos da casa, para aqueles que chegam mais tarde. Enquanto a mesa para o almoço está sendo arrumada, um grupo de mulheres trabalha na finalização dos pratos que serão servidos. Um grupo de homens se ocupa de assar carnes para o churrasco. Assim como no café da manhã, durante o almoço, também não deve haver lugares vagos. Logo após o almoço, Odacir começa a falar sobre as rezas de egum, os axexés. É um daqueles momentos que os filhos de santo mais prezam, quando o pai ou mãe senta para contar histórias. Odacir relata que não conhece bem as rezas de egum, que para eles não dá para cantar errado. Diz que quer se dedicar a aprender os axexés. O que é difícil, pois como certa vez lembrou Tia Aída, são rezas que enrolam a língua. Além disso, não dá para ficar ensinando, cantando fora de um eru, pois elas chamam os eguns. Odacir comenta que tudo estava sendo feito certinho, menos os axexés, pois não havia ninguém para puxálos. Quando lhe perguntaram da sabedoria de Tia Neneca, contou que ela canta algumas rezas, mas não todas. Na matança, teria que ser cantado para egum e para as três Nanãs (Anansurê, Anarauim e Burukê), o que não ocorrera. Conta que ela sabe cantar, mas não gosta, mesmo quando é obrigada, pois tem uma proibição de sangue. Um tabu, por ser filha de egum. Aqui, um tabu influenciado pelo parentesco no sangue que acarreta proibições no santo. Seu pai de sangue era o que se chama de Egum Letí: morto vivo, vivo morto, pois “nasceu para morrer”, para ser um abiku. Por esse fato, as antigas babalaoas reuniram-se, enterraram o cadáver num balé, cobriram com areia, ali rezaram por dois dias, fizeram toda a cantoria de egum para depois desenterrá-lo “vivinho da silva” e não se 59

Assim como as noções de frente e de trás [ou fundos] – o ‘lombo’, como referido no capítulo anterior – são fundamentais para a noção de corpo e de pessoa no batuque, elas são cruciais para se entender o espaço da casa e como desenvolver-se-á cada obrigação. A rua, a mata, a praia, os cruzeiros não são senão extensões do espaço sagrado.

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tornar um abiku. Ela é filha de um egum, por isso tem a proibição de cantar reza de egum. Contudo, como estava lá para presidir o eru, teve de falar com o egum durante a matança. Esse fato é responsável, também, por todo um “facção”, como diz Odacir, do Oyó não cultuar eguns de modo nenhum.

***

O eru propriamente dito teve seu inicio por volta das 22 horas. Preta do Oxalá foi quem puxou as rezas e tocou o agê. Pelo lado de Oyó, a primeira reza é “Bará Bô”. Todos devem dançar na roda com os pés calçados, devem cantar (respondendo) também. Logo nas rezas de Bará, alguns orixás começam a chegar no mundo. Chegam gritando e se contorcendo, uma chegada dolorida, triste, de despedida, como me disseram. O procedimento pós-chegada é ir aos fundos da casa, ainda calçados, até a talha e as obrigações, onde cumprimentam o egum. Não se cumprimenta o quarto de santo. Alguém é encarregado de acompanhar cada orixá que chega. Quando os orixás voltam para o salão são quebrados e o encarregado lhes tirara os calçados (como na descrição do eru, no Capítulo anterior). Em determinado momento, um dos orixás mais antigos coloca o dedo indicador da mão direita sobre a orelha direita, olha para as pessoas que fazem santo60 e ainda não se ocuparam, e sopra de modo bastante suave, olhando-as nos olhos. A cena é uma das mais lindas que já presenciei: como num efeito dominó, os santos vão chegando, estendendo cabeça e tronco para trás, um em seguida do outro até que quase todos os orixás da casa chegam no mundo. Aqui, além de uma diferença com o outro eru, encontrase uma prática bastante comum no batuque: chamar um orixá. Com sopros, frutas, flores, doces, palavras ou gestos, orixás podem ser chamados. Eles não chegam apenas quando desejam, mas há momentos em que o pai de santo, ou alguém mais antigo, pode lhes invocar. Outra diferença foi de que, por se tratar do eru de um filho de Oxalá, Oxalás, Iemanjás e Oxuns chegaram e dançaram. De modo mais lento, com participação menos ativa na hora de arrumar as obrigações e quebrá-las, mas presentes. À exceção de oxalás (por ser uma despedida de um Oxalá), os outros santos velhos não irão até a praia, a Kalunga, finalizar o eru. Ficam em casa, à espera dos que foram. Nesse caso, o eru, ritual do qual os orixás velhos, ou povo do mel, não participaria, impregna-se da presença dos 60

“Fazer santo” é sinônimo de “se ocupar”.

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orixás da praia, da doçura e da leveza. Orixás que chegam com suas características atenuadas pela natureza do ritual, que é influenciado pelas mesmas, sendo tomado pela natureza do mel, não sendo marcado pela força do dendê, como noutros erus. Deve ficar claro, aqui, que ao menos duas naturezas de substâncias dividem os orixás e todos os rituais a eles ligados: o mel e o dendê. Os orixás que já estavam no mundo foram colocando a toalha branca e levando as comidas brasileiras – os pratos favoritos do Sérgio (bife, ovos fritos, arroz, salada de tomate e alface, pudim, flã (industrializado) e refrigerantes). As bebidas são agrupadas: refrigerante, cerveja branca e preta e o atã (bebida de Ogum, feita à base de frutas). Em uma das pontas da toalha, as comidas brasileiras; no meio, as frentes dos orixás; logo após, as comidas de egum – os cozidos (legumes e carne) e o arroz com galinha. E as rezas seguiram, como nas festas: primeiro os orixás masculinos, menos para Xangô, orixá para o qual se cantou apenas na hora da quebra das obrigações. Após a reza de Ossanha, pediram para que iniciassem as rezas de Bokum (qualidade de Oxalá). Foi durante essa reza que a limpeza foi passada no corpo dos presentes. Diferentemente do eru de Tia Lourdinha, havia a frente do Bará, varas de marmelo do Ogum, uma galinha amarela da Oxum e dois pombos brancos de Oxalá, fechando o ritual com este orixá. Simultaneamente, na mesa posta em toalha branca estendida no chão, três sacos brancos forrados com folhas de mamoneira servem como depósito para tudo que fora servido. É durante a reza de Bokum que os orixás mais antigos vão até os fundos da casa buscar as obrigações de Sergio. Tudo será quebrado, rasgado ou arrebentado: seus axós, alás, guardanapos, toalhinhas, guias, manteigueiras, sopeiras. Quando as obrigações chegam, é a reza do Oxalá Talabô, o santo de Sergio, que é cantada. Na hora da primeira paulada para quebrar a sopeira de Oxalá, um Xangô pede que cantem o Aludjá. Assim que o barulho da louça sendo quebrada toma conta do ambiente, orixás que não haviam chegado vêm ao mundo, e quem ainda não estava emocionado cai em choro, em desespero. Mas é preciso que a reza prossiga. Como dizem, “até na hora da morte batuqueiro faz festa”. Com muita dificuldade, aos poucos, as rezas voltam a ser cantadas por todos. Como descrito no capítulo anterior, tudo deve ser destruído, os pombos, as galinhas, as comidas. Matam-se as aves com seus pescoços virados para trás, sem sangrar. Os orixás passam a obrigação em toda casa, para que só então os pacotes possam ir para os

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sacos também. Balas e flores são distribuídas, para que cada um enfeite os sacos e peça uma ida doce para o egum. Depois de se colocarem todas as obrigações nos sacos, ascender velas e apagalas com o ossagéu, é hora de pegar os sacos pelas pontas e embalá-los. Além disso, nada do que foi feito em casa nesse dia fica em casa, vai tudo para praia. Até mesmo coisas que estavam na geladeira e que não foram usadas devem ser descartadas. Cada um dos sacos é segurado por uma Iansã (Rainha dos eguns) acompanhada de outro orixá. É o único momento em que um axexé é tirado. Três carros já esperam para levar tudo à Kalunga. Durante o axexé, embalam-se os braços, num movimento de trás para frente, que se assemelha ao tocar/empurrar para fora. Os braços não param de balançar, nem a reza para de ser cantada, até que os carros saiam. O eru ainda não terminou. É preciso que na Kalunga – que em Porto Alegre é feita (se utiliza o verbo fazer, “fazer a praia”) no Rio Guaíba – tudo seja entregue para Nanã Burukê. Quem fica na casa não pode sair até que os que saíram voltem. Ao sinal de que os carros chegaram, todos ficam em pé e os orixás se cumprimentam. Alguns deles cumprimentam algumas pessoas também. Por fim, colocam os calçados nos orixás, trazem um grande alá onde todos os orixás se agrupam. Com um gole d’água, o encarregado asperge o chão, despachando o orixá por inteiro, sem passar pelo estado de axere. Ao final do eru, Odacir escolhe algumas pessoas para ficarem ajudando na arrumação da casa e do quarto de santo. As quartinhas devem ser esvaziadas e depois receber água nova. Além disso, todas as cortinas, todas as toalhinhas, todas as roupinhas de imagens e das bonecas, tudo o que estava no quarto de santo e no salão deve ser trocado, para não ficar igual ao que estava antes de ser feito o eru. Tudo deve ser renovado. Assim, ao mesmo tempo em que há uma continuidade da pessoa batuqueira na passagem da vida e morte, há um rompimento forte que deve ser feito para que esta continuidade se realize.

3.4 Assentamentos e Imagens

Passo agora a outro acontecimento, que se liga à descrição acima por relacionar diferentes tipos de morte e modos de morrer, pois objetos e imagens têm vida e o prolongamento dela, através de momentos críticos, assemelha-se ao que ocorre com a pessoa batuqueira em uma troca. Em fevereiro de 2012, a casa de religião que Pai Odacir 77

mantém em SL incendiou devido a um curto circuito na rede elétrica, o que destruiu por completo o quarto de santo e a cozinha que também é uma das partes mais importantes de uma casa de religião – é nela que se fazem as comidas para os orixás que trabalham à base de alimentos preparados e posicionados de diversas formas nos feitiços (também chamados de oferendas, serviços ou trabalhos). A sala de estar, o banheiro, o quarto de dormir e a sala de búzios foram atingidos por fumaça forte, o que destruiu, também, parte dos objetos desses outros cômodos. Inatingida apenas Oxum, na imagem de Nossa Senhora Aparecida. À sua volta, os restos daquilo que fora um local sagrado. Os jornais noticiaram o milagre da santa que guardou a casa. A foto de Nossa Senhora Aparecida chamuscada sobre os escombros era prova cabal de que a casa estava sob sua proteção. Contudo, comentários de leitores oscilavam entre o sentimento de pena e as observações mais raivosas. “Casa de feiticeiro tem que queimar”. “Tanto fez, que teve o que mereceu”. Na contramão das agressões publicadas e dos comentários que “se ouviu”, um número significativo de clientes e amigos fez um mutirão para alugar uma nova casa, salvar o que era possível – como roupas, móveis e demais utensílios domésticos – comprar o que faltava e levantar o ânimo de Pai Odacir. O babalau pensou em abandonar sua casa em SL, pois seus assentamentos e o de seus filhos ficam na casa de Gravataí. Além disso, ele possui outra casa em Laguna/SC. Foi a força da gente amiga que não o deixou desistir de tudo aquilo que construiu em SL. Na cidade pertencente ao chamado Sete Povos das Missões61, Odacir cuidou de imagens centenárias – que continham o axé de antigos pais e mães de santo e de seus orixás –, assentou um Bará de trabalho (orixá não pessoal, mas da casa), fez e cultivou muitas amizades. Filhas de Santo fez duas. Fez quartinhas para segurança de crianças também. Perder, no fogo, imagens, quartinhas e outros objetos religiosos tão antigos foi o que mais lhe doeu. Preferia que a parte não propriamente religiosa da casa tivesse queimado por completa: perder a cama, as roupas e tudo. Essa dor ainda não superada serviu como motor para que trabalhasse mais. Foram as clientes que compraram objetos novos – tanto rituais, quanto profanos – e cuidaram de arrumar aquilo que podiam. Além disso, recebeu muitas doações de objetos antigos: imagens, móveis, eletrodomésticos. A algumas quadras da casa queimada, uma nova casa religiosa ganhou vida, foi feita. (A antiga em ruínas

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Conjunto de aldeamentos Guarani fundados por jesuítas entre os séculos XV e XVI, compostos pelos hoje municípios de São Luiz Gonzaga, São Francisco, São Nicolau, São Miguel, São Lourenço, São João Batista e Santo Ângelo.

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aguarda pelo destino que a proprietária do imóvel lhe dará). O que, como deverá ficar claro, relaciona diretamente a morte à vida e o desfazer (ou destruir nesse caso) ao fazer.

3.4.1 Um assentamento sob suspeita

Bará, orixá de frente, dono dos caminhos, das portas, das chaves, dos cruzeiros abertos, dos mercados, da fartura, do movimento e da sexualidade é o primeiro a receber tudo no batuque. É o orixá que se homenageia, em primeiro lugar, com presentes e rezas, tudo é dado primeiro a ele. Caso contrário não se chega aos outros orixás, nem a lugar algum. Protege a casa e a rua. Por isso, mesmo tendo Bará e Lôde (Cf. planta baixa, neste capítulo) em Gravataí, Pai Odacir assentou um Bará de trabalho para proteger a casa em SL. Lôde tem sua casa vermelha na frente das casas de religião, Ogum Avagã pode morar com ele, são os chamados orixás da rua. Os outros barás são assentados dentro do quarto de santo onde estão os demais orixás; contudo, ficam em uma pequena casa de madeira pintada de vermelho, no chão, nunca em prateleiras. Em SL, o Bará morava dentro de casa, no quarto de santo, em sua casinha vermelha. Com o incêndio, a casinha foi queimada, seu alguidar e suas ferramentas também; o ocutá ficou chamuscado. O fato é que ainda não se sabe se aquela pedra (o ocutá) está viva. Na casa nova, ele (Bará) está sob uma árvore nos fundos da casa62, encostado na raiz, tomando sol e chuva, em contato com a natureza e seu movimento (maré), no “tempo”. As cinzas da antiga casinha, o alguidar, a quartinha e as ferramentas foram despachadas no mato. Já tinham perdido sua vida, seu axé. O ocutá não. É preciso ir aos mais velhos na religião e pedir para que joguem e vejam o destino (odú) dessa pedra: o mato ou a uma nova casinha. No caso da segunda hipótese, Bará necessitará de uma série de cuidados e ofertas. Carinho, suas folhas sagradas, ori, dendê, sangue de cabrito e de galos vermelhos. Tudo isso transmite axé. O axorô é a forma mais concentrada de vida; mas as mãos de um pai de santo, ao tocarem uma pedra, a envolvem de axé forte também. Caso seja necessária outra pedra, essa também deverá passar por diversos rituais.

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Como já descrito, os fundos de uma casa de religião é local destinado a obrigações para os eguns (mortos); mas também é onde se plantam outras obrigações, como seguranças de vida. É, portanto, um lugar que atende às demandas de vida e de morte, e, no caso de suspeitas, do estado em que não se está nem vivo, nem morto.

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Os ocutás são encontrados na natureza ou em casas de religião de conhecidos, como o Ossanha de Pai Odacir, encontrado na casa de sua irmã de santo. A pedra do orixá dono das folhas e médico dos orixás se assemelha a um pé, símbolo do santo que não tem a perna esquerda. Como quase tudo na religião, é através do jogo de búzios que se confirmam as coisas, neste caso, se o assentamento será aceito ou não pelo orixá.

3.4.2 Imagens Cruas e Imagens Preparadas

Semelhante à noção de “viva” ou “morta” utilizada ao se falar das pedras (ocutás) está a noção de “crua” ou “preparada” aplicada às imagens de santos. Quando se vai a uma flora (loja especializada em artigos religiosos),encontram-se imagens cruas; assim, não adianta acender velas, dar comida ou rezar para elas. É preciso fazer um mieró para a imagem que deve permanecer imersa nesse preparado por alguns dias. O correto é que tal ritual seja realizado dentro do quarto de santo. Quando das matanças, derrama-se o sangue do animal correspondente ao orixá na imagem. Na nova casa, um novo quarto de santo, novas prateleiras, novas imagens, tudo em processo de transformação do “cru” para o “preparado”, de “talvez-morto” para o “vivo”. Assim como no novo quarto de jogar búzios, mesa e cadeira novas, porém com búzios antigos. No quarto de santo, prateleiras novas, toalhas e castiçais antigos. Além disso, as ervas e o axorô. A partir dessa breve descrição sobre a destruição e reconstrução da casa de Pai Odacir do Ogum, podemos depreender uma série de obrigações, o encadeamento de ações que fizeram com que uma casa queimada desse lugar a um novo templo, com o antigo axé (refeito e renovado – ou axé sobre axé, pois, como dizem, nunca se perde o antigo axé ao se fazer um novo). Além disso, fica em evidência a aplicabilidade das noções de vida e morte aos assentamentos e às imagens (traduzidas nas noções de cru e preparado). Além disso, a morte de um ocutá é de outra natureza que a morte de uma pessoa, pois um assentamento necessita, por vezes, ficar no “tempo”, sob suspeita de morte, para que então se afirme se ele está vivo ou morto. Diferentemente do caráter negociável da morte envolvido em uma troca de vida, o que a suspeita demonstra é que existe algo, um estado, no qual a espera, ou o curso do tempo, é crucial para se saber se estamos diante de algo morto. Não há negociação, mas espera.

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3.5 Continuidade, batuqueira

ruptura

e

a

condição homorgânica

da

pessoa

No início, sugeri que ares de conclusão estariam difusos ao longo deste capítulo. Isso se deve principalmente ao fato de que ao justapor a descrição de uma suspeita de morte logo após a descrição de um ritual que desliga aquele que morreu dos vivos, e vice-versa, a noção de morte estende-se mais uma vez, passando pelo negociável, pelo inevitável, pelo perigo e, agora, pela sua qualidade de dúvida. Ainda que se trate de diferentes tipos de morte (pessoa, assentamento), o uso do mesmo termo para se referir a tal fenômeno sugere que deuses, pessoas e “objetos” compartilham dessa qualidade que, em princípio, sugere a ideia de fim – ainda que um fim fabricado e ritualizado. Sugiro, agora, que, ao dialogar com autores clássicos da literatura sobre a morte no batuque e ao falar sobre esse tema tão recorrente nos estudos sobre religiões de matriz africana, os dados de campo apresentados fazem outro tema recorrente, o fazer, dialogar com o desfazer. Imbricando vida e morte e fazer e desfazer, não como dualidades, mas como mesmo e diferente a um só tempo, um participando do outro. É, portanto, mais de uma continuidade transformadora, propiciada por uma ruptura violenta, do que séries de rupturas e cortes ou de simples continuuns existenciais. Busco, agora, conectar meu argumento, eminentemente etnográfico, ao que importantes etnógrafos escreveram sobre a morte no batuque gaúcho. Bastide (1985) toma quase termo a termo a descrição de Herskovits (1943) sobre a relação dos negros gaúchos com a morte e com os mortos. Os dois falam do axexê em Porto Alegre, levantando pontos como a crença na reencarnação, na continuidade do culto aos antepassados na forma de eguns e na perda de africanidade pela não existência das sociedades de eguns, como a da Ilha de Itaparica/BA. A series of rituals called acheché, which endure for seven nights after death and separate the dead cult-initiate from his cult-group and his family, is held when a member of one of the Porto Alegre cult-groups dies. At one house where this cult was discussed, it was described how a "four-footed animal'- an important sacrifice in terms of what is given in this cult-is offered to the spirits of the dead on the last night of the acheché, in the manner customary in other parts of Brazil. As in the North, the spirit of the dead is interrogated, and through divination the wishes of the deceased are determined regarding the disposition of the ritual paraphernalia he used during his lifetime. If the god so wills it, these objects, and the stone sacred to his god, are made up into a bundle, the carrego, which is taken to a beach to be carried away by current or tide. In addition to the sacrifices offered when a cult-initiate dies, the egum are "fed" annually. The important offerings for the soul of any cult-member are made on the first, third, fifth, and seventh anniversaries of his death. Of these, the seventh year offering has the greatest significance, since the spirit of the dead is then definitively "sent away." After this time, the surviving members of the family have no further obligations toward the spirit of the dead relative which participates casually in

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offerings given in connection with the observances decreed by the cult of the dead (Ibidem: 507-8).

De acordo com Bastide, “Não é senão depois de sete anos que o espírito do morto é finalmente despachado. Porém ele pode voltar à terra; os negros de Porto Alegre creem na reencarnação como seus ancestrais africanos e explicam a continuação de suas tradições pelo retorno dos orixás através dessas reencarnações dos antigos nos corpos dos recém-nascidos” (Bastide 1985: 293). De modo diferente ao que o autor relata, a partir de minha experiência de campo com o povo de Oyó, penso que alguns pontos merecem melhor exame. Em primeiro lugar, a reencarnação não é algo evidente como sugere Bastide; é, antes disso, um ponto controverso, tema de debates. Ainda que alguns batuqueiros concordem com a ideia de reencarnação, o eru explicita uma relação que se transforma de forma distinta. Não a transformação da alma (porção do morto) do morto por ligação a novos corpos, formando uma nova pessoa. Mas uma transformação que faz do morto ou egum, uma pessoa que viverá em Orum junto a seu orixá, não havendo como, nem porque, de sua volta. Outro ponto é que, apesar das diferenças temporais e de nação, existe certa estrutura nas diferentes descrições dos ritos fúnebres, com a importante exceção da continuidade de culto aos antepassados que não encontramos – pelo menos através de rituais específicos. O que Odacir, meu principal informante, disse-me certa vez é que: “um orixá que já se foi pode até voltar, mas nunca como orixá novamente”. O que ele pode vir a ser, o pai de santo prefere deixar em suspenso. Além de Herskovits e Bastide, Norton Corrêa (2006) foi o único antropólogo a dedicar uma parte de seu livro “O batuque no Rio Grande do Sul” à relação entre vivos e mortos. É em seu estudo que se encontra a melhor e mais completa descrição do aressum, o rito fúnebre nos batuques. O aressum, assim como o axexê no candomblé (ou o sirrum no candomblé angola), é realizado quando da morte de algum membro da casa de religião e, também, todo ano, quando se mata para os eguns, nos fundos da casa, em um buraco chamado Balé. Podemos ver em sua obra que os mortos, no batuque, também se transformam, não do mesmo modo como descrevi para o lado de Oyó. Para falar do assunto, o autor utiliza-se da noção de rito de passagem de Van Gennep, na qual o egum, durante o aressum, está em estado de liminaridade, até sua passagem, por meio da enganação feita pelos vivos (os vivos enganariam os eguns com o eru, dando-lhes

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oferendas, fazendo-os pensar que ainda são bem quistos, para depois afastá-los e doutrinalos no balé), para a categoria de morto. Além disso, para o autor, os ritos fúnebres seriam anti-rituais, nos quais tudo é feito de forma contrária ao realizado nos rituais para os deuses (orixás). Minha experiência de campo vem demonstrando que os batuqueiros do oyó tomam o eru como um dos rituais mais sérios da religião. É óbvio que os batuqueiros não utilizam o conceito de antiritual, nem mesmo é isso que Corrêa afirma. Ainda assim, não é de anti-ritual que se trata, e tomo aqui a crítica feita por Barbosa Neto (2012) à descontinuidade contida no “modelo do rito de passagem”, apostando na continuidade e repetição: Se, no caso descrito por Verger [dos Abikus], o que acontece imediatamente após o rito é uma espécie de retorno a um momento inicial da vida, anterior à codificação social que a organiza, no caso daquele jovem, e todos os outros análogos a ele, o que sucede depois é uma repetição do próprio rito, cujo propósito é impedir que aquela doença retorne. É aqui que se mostra como particularmente complexa a descontinuidade entre o “antes” e o “depois” muitas vezes pressuposta pelo modelo do rito de passagem. Se a iniciação muitas vezes ocorre em função de eventos que começaram antes dela, isso nos permite pensar que a pessoa que irá se iniciar já se encontra, de algum modo, no interior da religião. Iniciar-se, nesse caso, não é simplesmente, ou não é apenas, fazer a pessoa entrar, e sim redefinir a sua maneira de já estar dentro. Existe um ‘antes’ antes do ‘antes’ da iniciação. A ruptura, contudo, não se complica apenas para trás, no momento de definir onde passa o corte, mas também, e talvez sobretudo, para frente, naquilo que acontece depois do corte. Ocorre que a iniciação sempre põe a delicada questão de sua própria continuidade. Se ela, como disse antes, é uma prática que visa a pôr termo a uma série de eventos negativos na vida de alguém, não se pode achar que uma vez alcançado esse resultado tudo então estará resolvido, tendo-se a partir daí a segurança de que a tal série não poderá voltar. Até o fim da vida essa pessoa deverá repetir periodicamente o chão, submetendo-se a ritos cuja estrutura é em tudo semelhante à do primeiro. [...] o ritual não é invulnerável ao seu próprio efeito, e assim, como se pode notar, ele não pode interromper definitivamente a circunstância que o gerou, mas sim inseri-la em uma série de transformações contínuas cuja interrupção pode provocar o retorno à situação anterior. O ritual, portanto, não introduz a solução por uma ruptura definitiva, mas pela repetição contínua de si mesmo, isto é, pela repetição da transformação que é o seu efeito. O depois seria assim como a continuação da ruptura entre o “antes” e o “depois”. A descontinuidade que ele produz é inseparável da sua continuidade (: 295-6).

Corrêa, influenciado pelas noções de Van Gennep, para tratar do ritual, identifica no batuque todas as fazes descritas pelo último. A inversão dos “ritos fúnebres” em relação às festas (batuques) nunca é completa, como busquei descrever. O detalhamento etnográfico demonstra as alternâncias, os diferentes ritmos. Meus amigos e parentes contam, por exemplo, que o eru é o único ritual do qual todos participam: mortos, vivos e deuses, s Sendo o ritual em que a comunicação, no mínimo, entre esses três mundos acontece. A morte e o ritual a ela destinado não pode ser compreendida como o inverso perfeito (ou simétrico) da vida, como já vimos no capítulo anterior. Está, antes, mais 83

próxima de algo que por momentos (o tempo e seus ritmos) comunga com os deuses e com os vivos dos mesmos acontecimentos. Os rituais de desligamento não são anti-rituais, mas complexos rituais de transformação das relações e de provocação de mudanças de tempo e espaço, como o morto na terra que é vivo em Orum. No batuque, existe apenas tempo e seu movimento, a morte trata de quebrar um tempo de vida para promover um tempo de morte. Tempos que se contraem num só, dividindo-se em espaços ou dimensões: morte aqui (na terra), vida lá (em Orum). Lembro-me de Odacir falando de Nanã Burukê que “é início e fim, é vida e morte. E início é fim e vida é morte”. É, portanto, o eru que garante a condição homorgânica do batuqueiro, é isso que impede uma clivagem na duração da pessoa, o que a tornaria linear.

***

Neste capítulo, através da descrição do eru de Sergio do Oxalá e dos acontecimentos que sucederam o incêndio na casa de Pai Odacir do Ogum, tratei, com base na etnografia, de vida e morte e seus correlatos (início e fim, cru e preparado) como experiências homorgânicas. Além disso, o diálogo com outras etnografias levou à leitura dos rituais fúnebres para uma chave diferente da dos ritos de passagem, como Barbosa Neto (2012: 295) já notou, apostando na implicação mútua entre continuidade e descontinuidade. Somada a essa proposta, o ritual do eru trata de impor a ruptura violenta como propiciadora do fazer, implicando mutuamente o fazer no desfazer e vice-versa. O que chamei de condição homorgânica.

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Conclusão: fazer, desfazer e refazer

Quando estava terminando a dissertação, comentei com Odacir os rumos que o texto tinha tomado, no que ele me brindou com a história que em minha opinião conecta todo meu argumento. Odacir deu mais detalhes da vida daquela que foi o início da nação, Mãe Emília, que jaz no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, mas encontra-se em Orum, ao lado de Oyá Ladjá, orixá que reina absoluta sobre a nação de Oyó. Odacir contou que Mãe Emília da Oyá Ladjá foi uma princesa africana que chegou ao Rio Grande do Sul pelo Porto de Pelotas e lá aprontou seus primeiros filhos e filhas de santo. É, pois, em Pelotas, que a “bacia” de Oyó tem seu início. Mais tarde, Mãe Emília se muda para o bairro Menino Deus, conhecido na época como Areal da Baronesa, em Porto Alegre. É lá que abre sua casa e se consagra como uma grande babalaoa, fazendo história e grandes babalaus e babalaoas, seus filhos. Manteve boas relações com políticos e policiais, por isso, mesmo na época em que os batuques eram proibidos, deu uma das primeiras festas religiosas abertas. Sua personalidade austera e matriarcal fez com que impusesse regras de família e respeito à senioridade de modo rígido – o que não era incomum a quase todos os lados do batuque. Suas regras, porém, obrigavam os filhos e filhas de santo a dar a cabeça de seus filhos de sangue para ela assim que nascessem. Assim, a família de sangue era criada dentro da mesma casa de santo e as crianças tinham suas cabeças lavadas por Mãe Emília. O que fazia parentesco de santo e de sangue andarem juntos. Acabou aprontando muitos filhos em Porto Alegre, desses, o que Odacir chamou de “uma turma nova” que deixou de seguir à risca as regras da matriarca. Tal comportamento causou-lhe desgosto pela vida e pela religião. Triste com tal situação colocou sua mãe (Iansã) e suas demais obrigações em um balaio, foi até a beira do Rio Guaíba (Lago Guaíba), chamou um barqueiro e pediu que a levasse até o meio do Rio, onde despachou sua orixá. Quando voltou, reuniu seus filhos para conversar. Oyá Ladjá chegou no mundo e contou da decepção com a família de santo, disse que seus filhos procurariam uma mãe e nunca mais a encontrariam e que, além disso, uma Iansã no lado de Oyó nunca mais poderia rir. Logo após, Mãe Emília viria a falecer, e foi somente quando os filhos procuraram o assentamento e as obrigações de Iansã, para prestar a última homenagem no eru e não a encontraram é que entenderam o que sua mãe de santo dizia. 85

Com sua morte, os filhos que seguiram na religião tornaram-se mais apegados aos preceitos da matriarca e, até hoje, procuram manter aquilo que Mãe Emília e sua Oyá Ladjá ensinaram.

***

Conclusão talvez não seja o mais apropriado para as pretensões deste trabalho. Não se trata nem de fechar um pensamento, que na natureza própria do tema descrito ao longo dessas páginas, mostrou-se permanente (a ruptura abrupta existe para a continuidade necessária). Tampouco, trata-se de elencar uma série de considerações sobre o que foi exposto até agora. Para fazer jus à riqueza do que meus amigos me ensinaram sobre os batuques de Oyó, acho interessante voltar o texto para o ainda não descrito, o que está para fazer. Procuro, assim, elucidar alguns pontos levantados ao longo dos capítulos. Bastide (1983) aponta uma importante distinção entre a noção kantiana de Ser, na qual se existe ou não (sem a possibilidade de intermediários entre esses dois estados) e aproxima a concepção africana de pessoa (personalidades) à medieval. Para os afroreligiosos “existe-se mais ou existe-se menos, de acordo com a participação63” (: 371). Participação trata da consubstancialidade entre o que traduzimos como pessoas, coisas e deuses, e o ritual da lavagem de contas demonstra bem esse conceito: “Numa palavra, é preciso que exista no colar um certo poder de atração da força divina, uma simpatia preestabelecida; é preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atração, sem o que a participação não poderá se estabelecer. [...] Um observação do mesmo gênero cabe à pessoa que vai usar o colar” (: 367). Ainda, “os afro-brasileiros exprimem para melhor compreensão dos profanos, por estes termos católicos: “Todos nós temos nosso anjo da 63

Conceito extraído do pensamento de Levy-Brühl. De acordo com Goldman (1994), para Levy-Brühl: “existiria pelo menos um elemento comum a todas as representações coletivas primitivas, que poderia permitir a descoberta dessa lei geral [lei da participação]” [...]. ‘Eu diria que, nas representações coletivas da mentalidade primitiva, os objetos, seres, fenômenos, podem ser, de modo incompreensível para nós, ao mesmo tempo eles mesmos e outra coisa que eles mesmos. De modo não menos incompreensível, emitem e recebem forças, virtudes, qualidades, ações místicas, que se fazem sentir fora deles, sem que deixem de estar onde estão’” (Levy-Brühl 1910: 77 apud Goldman 1994: 198). Ainda é importante lembrar que Goldman (1984: 185-6) avança na discussão ao sugerir que o único Ser que atinge a plenitude é o orixá geral, mitológico, não o individualizado feito ritualmente. Além disso, Goldman (2009: 134) vai tratar da iniciação como uma questão de “participação mútua”, o que, segundo Mãe Ilza, seria uma questão de “lapidação”, não de “produção”. É que as coisas no candomblé não seriam feitas a partir do nada, mas já existiriam, esperando para serem feitas. Os trabalhos de Goldman (1984 e 2009) tratam de complexificar o uso do conceito de participação em Bastide e de sua noção de pessoa no candomblé, sugerindo que não existem nem um ser completo e uno (Goldman 1984: 185), nem um não ser, pois nada é criado a partir do nada (Goldman 2009: 134).

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guarda”. Por conseguinte, nossa “cabeça”, assim como o colar, são um convite à participação” (: 368). Trata-se da ideia de que as coisas, pessoas e deuses serão postos em participação, porque já compartilham uma mesma natureza, se posso dizer assim. É por isso que a feitura não deixa, em última instância de ser um refazer ou fazer o que já está pronto para ser feito. Fórmula essa melhor resumida na ideia de lapidação apresentada por Goldman (2009), Dona Ilza, a mãe-de-santo do Tombenci, diz, como vimos, que a iniciação no candomblé é um problema de “lapidação”, mais que de produção. Diz também que a relação entre filhade-santo e orixá é de participação mútua, não de propriedade — e isso ainda que ela se refira ao seu santo como “minha Iansã” e que também diga que ela própria “é de Iansã”. Nessa direcção, já deve ter ficado claro que a expressão “santo bruto”, utilizada para designar o orixá antes da iniciação, não deve ser inteiramente compreendida no sentido de que se trata de um santo “violento”, manifestando-se numa pessoa passiva, mas no sentido em que ambos, santo e pessoa, constituem uma espécie de pedra preciosa à espera de ser descoberta e lapidada (: 134).

Passo, agora, à descrição do fazer, aonde elementos ainda não apresentados no desfazer surgem elucidando alguns aspectos de tudo que envolve os ritos fúnebres e a posterior feitura da pessoa em Orum. Penso as duas feituras (na terra e em Orum) como homólogas, mas diferindo-se no percurso até o apronte na terra e a reconstrução total em Orum. Pessoa, objetos e o orixá de cabeça que, como Bastide já observou, desde sempre compartilham algo que os “convida” a participarem uns dos outros, manterão sua ligação feita na terra no pós-morte. A natureza da relação é que sofre modificação, passando de uma participação que se funde em momentos rituais, para uma convivência ordinária, na qual não se é ocupado pelo orixá, mas se vive com ele, lado a lado. Contudo, não é apenas essa tríplice relação que se transforma, mas a relação do morto (egum) e de seu orixá com os vivos e os outros orixás da família de santo.

Fazer

Como bem notou Bastide (1983), no candomblé, fazer uma pessoa é um processo lento, assim como o de desfazê-la. No batuque gaúcho não é diferente. Contudo, esses

rituais

não

são

etapas

que

devem

ser

percorridas

na

ordem

de

compromisso/obrigação envolvidos.

87

Pode-se, por exemplo, chegar a uma casa de religião como um freguês, para jogar búzios e receber de resposta dos orixás a necessidade do apronte, ou de um borido. Em outras palavras, a necessidade de se engajar numa relação familial com adeptos e os deuses do batuque. Também é possível estar a muito tempo na religião e o orixá de cabeça não exigir maiores obrigações. Como Dona Rosa sempre comenta “não se dá coisa demais pros pais [orixás]”, isso, segundo ela, prejudica a vida de um filiado tanto quanto não dar o que o orixá pede. Como se diz, “tudo [na religião] a seu tempo”. Existe uma qualidade de pessoa que nasceu para a religião. Outras apenas farão uso como fregueses ou como filhos com menores obrigações. No caso das primeiras, o orixá tratará de levar aquele que não é criado no ambiente da casa de religião para iniciar sua entrada para o batuque. Por motivos de saúde, falta de dinheiro, problemas relacionados à vida amorosa, ou até distúrbios aparentemente psíquicos ou de ordem moral, o orixá fará seu filho chegar a um pai ou mãe de santo. Ser um pesquisador (antropólogos, historiadores, biólogos, folcloristas, psicólogos, etc.) também pode ser o meio encontrado pela divindade para se aproximar de seu filho. Tais acontecimentos não deixam de ser pensados como problemas em si ou como carreiras (pesquisadores) que devem ser levadas a sério, apenas se acrescenta a causa mais profunda ao já sabido. Dizem que se entra na religião “por amor ou dor”64. Neli tem uma perspectiva interessante sobre religião e orixás, na qual orixá e religião são coisas diferentes para cada pessoa, “para uns é amor, para outros a cura de uma doença, para outros um emprego”. É a partir da ordem do orixá que se fará uma pessoa religiosa, suas obrigações e os vínculos que essa dupla feitura implica. Nessa espécie de retrospecção do fazer para se chegar ao desfazer, que estou apresentando, não cabe um maior detalhamento da feitura, ou melhor, do apronte no batuque de Oyó, mas apenas elencar relacionamentos e aquisições que compõem o adepto, seu orixá e seus objetos rituais. Apronte, como Neli me explicou, é utilizado ao invés de feitura, pois a ideia é a de que não se faz um orixá, ele já existe desde sempre, o que se faz é aprontar a pessoa e doutrinar um orixá quando ele ocupa seu filho, o que está próximo ao já descrito sobre a lapidação no candomblé (Goldman 2009: 134). Descrevo, portanto, a confirmação (ritual que repete o apronte, confirmandoo) de Marlene da Oxum, na qual impasses sobre o sento de Iemanjá estiveram envolvidos. 64 Bastide (1959) chama atenção já no primeiro ponto do que levaria uma pessoa à iniciação no batuque gaúcho: “1) Apêlo do orixá que, sob uma outra forma, manifesta a sua vontade de possuir um indivíduo dado. Tal indivíduo pode se surpreender com o apêlo, mas não a Mãe, pois ela sabe antecipadamente quem será designado pelos deuses” (: 247).

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Assim, elucida-se o caráter negociável que envolve quase tudo no batuque de Oyó, desde os primeiros passos rituais, até os últimos sacrifícios para o egum.

*** A partir da primeira vez que um pai ou mãe de santo olha alguém, já é possível imaginar se essa pessoa tem futuro dentro da religião ou não. O jogo de búzios acrescentará maiores informações, ou esclarecerá dúvidas. Por vezes, é necessário ir às casas dos titios e titias para confirmar algo que aparece nebuloso na mesa de búzios, ou aquilo que é deveras importante, como situações que envolvam as trocas de vida. Odacir conta que já tinha casa aberta e já sabia confirmar quando um sento era para determinado orixá, mesmo assim tomava mais de um ônibus para ir a mais de uma casa dos antigos confirmar. A religião é mesmo cheia de detalhes, ou “está no detalhe” (Barbosa Neto 2012: 79-279), não pode haver erro algum, especialmente na hora de aprontar um filho. Entretanto, não encontramos tal detalhamento nas descrições etnográficas sobre o batuque desse longo percurso de fixar relações que envolvem os diferentes rituais iniciáticos. Depois de confirmada a necessidade de se ir para o chão, é hora de começar a comprar tudo que será utilizado durante o período de reclusão. Há todo um mercado de aviários e criadouros de animais de quatro-pés especializados, as floras (lojas de artigos religiosos), as lojas de tecidos, as costureiras, os armarinhos, os artistas que fazem quartinhas, aqueles que fazem guias especiais (como a guia de bronze de Ossanha e as guias imperiais), os que fazem vultos, os locais para se comprarem flores e frutas, os presentes que os antigos dão aos que estão iniciando sua jornada religiosa (guias, correntes, imagens, tudo do “tempo antigo”), os locais para comprar as louças, o mercado para se comprarem alimentos e produtos de limpeza que manterão os parentes de santo e a casa durante o chão, os tamboreiros profissionais, além de cozinheiras que podem ser contratadas para aliviar o trabalho dos filhos da casa (cozinhando apenas as comidas para os humanos, as comidas de orixás devem ser preparadas pelos filhos). Quando Marlene da Oxum (neta e afilhada de santo de Odacir, filha de santo de Cleusa do Ogum) foi para o chão com três irmãos que são, ao mesmo tempo, seus afilhados de santo (Paula da Iansã, Paulo do Ogum e Michele do Oxalá) não foi diferente. A festa para sua mãe já era aguardada, pois, por motivo da morte de parentes de santo e o luto que segue, a festa já tinha sido adiada por duas vezes. Marlene já chegou pronta nas mãos de Mãe Cleusa. Por isso, era preciso dar um novo quatro-pés, o que é chamado de 89

confirmação, além de ser uma mudança de axé, uma mudança de mão sobre sua cabeça se confirma com a nova mãe. Além disso, a Oxum de Marlene estava completando 18 anos de vasilha, Em uma quarta-feira de abril, fui até a casa de Cleusa do Ogum para encontrar Odacir. Ele estava com os ebós (os filhos que estão de obrigação na casa à espera do início do chão). Os objetos rituais estavam dentro de grandes bacias com mieró e eram manipulados por Odacir, Cleusa e Marlene, os mais antigos presentes naquele momento. Era o momento de se lavarem as quartinhas, manteigueiras, saias (os pratos de louça que protegem os assentamentos), e os ocutás, escolhendo-se o adequado para cada orixá e colocando-se dentro de seus pratos suas respectivas ferramentas. Quando Odacir manuseou a Iemanjá (sento) de Marlene, ficou com a testa franzida, preocupado, com ares de uma certeza que precisava ser confirmada. A Iemanjá era toda furadinha e a parte debaixo era diferente; e ele olhava e olhava, quando resolveu pedir a sua filha Cleusa que trouxesse outras Iemanjás (ocutás ainda em estado de pedra) que estivessem pelo terreno da casa. Além disso, pediu oito grãos de milho cru. Ele chamou a filha e a neta de santo e disse que aquilo era um caso raro no Oyó, que era como a Iemanjá da Camile (filha de santo de Odacir), uma Iemanjá que tem passagem com Xapanã, e isso fazia com que ela [Marlene] estivesse sempre doente nas “partes de baixo” (região do baixo-ventre e genital). Então, ele decidiu trocar o antigo assentamento, mas não sem antes jogar. Na falta de seus búzios, utilizou os grãos de milho e jogou-os no chão mesmo, não sobre mesa (somente búzios são jogados sobre a mesa). Pôs ao lado do ocutá de Iemanjá outros três possíveis ocutás, para que o milho em torno das quatro Iemanjás respondesse onde seria a nova morada da deidade das águas. O ocutá antigo disse, através do jogo, que não queria sair da casa. Odacir então perguntou para Marlene: “tu gosta da tua mãe de santo?”. A resposta afirmativa o autorizou a dar o assentamento para Cleusa. Disse para ela colocar numa vasilha de vidro transparente e, no último dia do chão, quando se mata para levantação, fazer uma Iemanjá da casa. Depois disso, ele arrumou todas as vasilhas, deixando-as prontas para o corte do dia seguinte. Toda a obrigação começa por Bará. Quando a casa religiosa tem um Bará de rua assentado (o Lôde) é por ele que se inicia. O corte para esse orixá é feito, geralmente, por volta das 6 horas, horário em que o movimento na rua está começando, quando os primeiros trabalhadores estão saindo de casa. Nesse corte, apenas os homens e a dona da

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casa podem participar, pois se trata de um orixá com o qual as mulheres não devem lidar e, que, ao mesmo tempo, toma conta de toda a rua para todos os filhos de uma casa. O corte para Lôde tem seu término por volta das 10 horas, quando se passa para o salão onde estão as mulheres que não puderam participar. Após tomarem um banho de chuveiro e vestirem uma roupa velha, que será rasgada, os ebós estão prontos para o banho ritual. A mãe de santo toma a frente, Marlene vem atrás com suas mãos nas costas dela. Rezas são tiradas para Bará, Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Obá, Iemanjá, Oxum, Oxalá, Xangô, Iansã. Marlene caminha até a bacia com o mieró e entra nela. A mãe e o avô de santo começam a dar o banho com sabão da costa e folhas, rasgam toda a roupa com as mãos, cortam algumas partes com obé (faca). O sabão da costa é passado no corpo em seu corpo por todos os prontos presentes, além disso passam um pacote de pipoca (estourada), varas de marmelo e velas, que são quebrados em seguida. Após isso, a filha de Oxum dá um passo à frente, saindo da bacia e recebendo uma roupa nova que será utilizada durante todo o corte. Contam que antigamente era esse o momento em que um santo deveria gritar pela primeira vez no mundo, pois esse banho simboliza o fim de uma vida antes da entrega total da vida ao orixá. O primeiro quatro-pés a ser oferecido deve ser o da dona da cabeça de Marlene, Oxum. A cabrita de Oxum deve vestir uma capinha amarela enfeitada com rosas e crisântemos amarelos. Todos os animais de quatro-pés, exceto o cabrito de Bará, são enfeitados com capinhas com suas cores e flores correspondentes. Uma corda de sisal é amarrada à cintura da filha de santo e ao animal; como Claudinha da Iansã me disse, isso “representa o cordão umbilical”. Um ramo de folhas deve ser separado para cada quatropés. O animal é trazido pelos prontos até a porta do salão, em frente ao quarto de santo (a aproximadamente três metros da entrada do salão); Marlene já espera com as obrigações de sua mãe e o sento a sua frente. Odacir e Cleusa estão em pé com os ramos de folhas, cantando a reza de Oxum, enquanto sua cabrita é embalada pelos prontos, puxada pela corda até que comece a dançar, dando o primeiro sinal de que é de Oxum. Logo em seguida, com a reza sendo cantada, acompanhada pela animação crescente dos que assistem, a cabrita come as folhas, colocam sobre ela a capinha e chamam Marlene para amarrar a corda em sua cintura. Isso tudo acontece em segundos, então o cordão é desamarrado, a capinha é retirada – pois enfeitará a obrigação após o corte – e o pescoço do animal é cortado por Odacir com Cleusa segurando o animal, com o auxílio de Dona Eloci – a mais antiga presente – e de alguns homens prontos. Cleusa, mesmo sendo mãe de 91

Marlene, não é quem faz o primeiro corte, pois seu pai de santo está presente, sendo reservada a ele esta tarefa. Assim manda a lei, quando o pai de santo está presente, a casa “passa a ser dele”. O axorô é derramado sobre a cabeça, ocutá e demais obrigações. A cabeça do animal é separada do corpo e depositada em um prato onde permanecerá até a primeira levantação, antes do borido que segue o quatro-pés. Fatias de pão são colocadas entre as patas e o corpo do animal que é levado para o meio do salão, onde ficará até que todos os quatro-pés sejam cortados. Apenas depois disso serão levado pelos homens que irão courear, separar as inhálas e colocar a carne no tempero para ser assada para primeira festa. Após cada animal de quatro-pés, suas aves correspondentes são cortadas sobre o corpo, o assentamento, e as demais obrigações. Na cabeça, apenas o sangue dos animais do orixá dono da cabeça e dos pombos brancos de Oxalá, que fecham toda obrigação no lado de Oyó. As aves têm algumas penas retiradas logo após serem cortadas, depois são levadas para ser depenadas, ter as inhálas separadas e ir para o tempero. As penas são colocadas sobre as obrigações, formando uma espécie de coroa, sendo finalizada com a plumagem das aves, que cobrirá por completo a obrigação. No lado de Oyó, sob cada obrigação contendo assentamento, ferramentas e joias, um alguidar serve de base para vasilha onde o orixá está. Iansã, rainha da nação, é dona do barro, o alguidar feito de barro é a base de toda feitura de orixá nesta nação. Após cortados os animais para todos os orixás de Marlene (Bará, Ogum, Xapanã, Ossanha, Obá, Iemanjá, Oxum, Iansã, Xangô e Oxalá), a filha de Oxum, banhada em axorô, tem sua cabeça amarrada com uma trunfa feita em tecido amarelo, bate cabeça para todos os mais velhos que ela na religião, iniciando pela mãe e pelo avô de santo, para só então ir para esteira onde passará deitada pelas próximas duas semanas. Essas cortadas por duas festas, duas levantações, o borido, o corte final (no lado de Oyó, para levantar, corta-se para todos os orixás), os axés de faca e de búzios (no caso da confirmação, pois raramente esses axés são dados no primeiro quatro-pés). Podemos notar, a partir dessa breve descrição, que fazer e desfazer compartilham processos, como o ligar e o desligar. Como vimos, o apronte, ou a confirmação (rituais homólogos, o segundo sendo uma repetição do primeiro, confirmando-o, assim) em primeiro lugar deve desligar o adepto de uma vida anterior à entrega total ao orixá, quando dá sua cabeça no quatro-pés. O banho e a destruição das roupas antes do corte marca o fim de uma vida, para o início de outra, dada com o passo 92

seguinte em direção ao quarto de santo. A vida antes de ser do santo participa da nova, é claro, as lembranças não se apagam, porém preceitos, posturas e substâncias outras participam do filho de santo pronto. O apronte tem seu inicio pelo desligar, seguido da ligação mais profunda na religião, a participação da cabeça, ocutá, orixá e obrigações a partir do derramamento de axorô (sangue) de quadrúpedes.

Desfazer e Refazer

Um eru, obviamente, nunca é igual ao outro, e isso não diz respeito apenas à sua particularidade, mas também ao próprio ritual em questão. Sabe-se que do barro de Nanã Burukê todos nós “humanos/pecadores” fomos feitos. E nosso destino são as profundas águas lodosas do mar, pertencentes à Nanã Burukê. É a Kalunga – significando a praia e o fundo do mar – o destino de todos (pelo lado de Oyó, ao menos). É a Kalunga, mas também uma nova vida ao lado do orixá dono de cabeça, lá em Orum. Questionado sobre se o fundo do mar seria feito de barro como os mangues e outras formações lodosas, Odacir rebate: “quem conhece mesmo o fundo do mar? Ninguém! Para nós o fundo é Nanã”. Santos (1976) já havia notado que se deve “insistir no fato de que para o Nàgô, a morte não significa absolutamente a extinção total, ou aniquilamento [...]. Morrer é uma mudança de estado, de plano de existência e de status. [...] A imortalidade, ou seja, o eterno renascimento, de um plano da existência a outro, deve ser assegurado (: 221-2). Halloy (2005) que “Le rituel funéraire d’oxexe est un rituel destiné à aider le mort à se défaire totalement de ses attaches terrestres et à rejoindre le monde des egun (: 773). A primeira fala de sua experiência com candomblés de origem nagô na Bahia, o segundo com o xangô recifense. Barbosa Neto (2012) conclui sua tese com a interessante possibilidade de pensarmos a nós mesmos (humanos) como o outro lado dos espíritos. Fecho a dissertação como uma reflexão nativa e outra minha, não como contraponto a qualquer uma das afirmações – até mesmo porque se tratam de contextos etnográficos bastante distintos –, nem de simplesmente com elas concordar, mas usar as duas ideias (estritamente conectadas) para explorar e ampliar essas conclusões. Gostaria aqui de voltar ao orixá Nanã Burukê e tratá-la como um conceito, para assim tocar no ponto crucial para este trabalho: a de que início é fim, portanto morte é vida – e vice-versa. Ou como chamei no último capítulo, a natureza homorgânica da pessoa 93

batuqueira. Nas palavras de Odacir, essa é a lei do povo de Oyó: “do princípio ao fim”, tudo que se começa, se termina. Isso inclui tudo na vida. Desliga-se o morto do nosso mundo, mas constantemente eles pairam por aí. Depois da Kalunga, no lado de Oyó, os rituais continuam, pois vida e morte sempre hão de continuar e com elas temos que lidar. Se somos o outro lado dos espíritos e dos mortos (por que não?), é que disjunções, desligamentos, mudanças de status não funcionam bem assim, como se houvesse de antemão o vivo e o morto que se conectam e que se desligam – ainda que haja toda a intensidade da ruptura provocada pelo eru. Mas, antes, eles podem ser isso e ao mesmo tempo uma única coisa (poderíamos até mesmo chamar de axé). Em Orum, com tudo que fora quebrado na terra, o egum (para os vivos, é claro) depara-se com um grande trabalho pela frente. Nanã Burukê tratará de ajudá-lo nesse longo percurso de colar tudo que chegou à terra dos orixás despedaçado, destruído, desfeito. Com o acontecimento do eru que destrói e desfaz na terra, as obrigações são entregues na Kalunga, diretamente à Nanã Burukê. O corpo que foi enterrado chegará às mãos dela também. É preciso que o egum se ocupe com a nova feitura de seu corpo e obrigações, esquecendo, aos poucos, com o eru e os outros rituais que o seguem até o rito final (quando completa um ano da morte), de nosso mundo, de querer voltar ao nosso mundo. Assim, ele poderá chegar até o dono de sua cabeça para viver a eternidade em sua companhia em Orum. Os rituais de desligamento realizados na terra é que garantem essa possibilidade. Podem também propiciar a mudança de estatuto de um simples egum, para um dos antigos, que receberá culto e oferendas para todo o sempre aqui na terra. Mas isso, só o “tempo” dirá.

***

Ao longo desta dissertação sobre os batuques de Oyó busquei relacionar acontecimentos e rituais ligados à morte. Através da descrição do eru, propus que, ao invés de enfatizar a feitura ou apronte, o ritual de desligamento ou o desfazer proporciona um alargamento da compreensão sobre uma noção batuqueira de pessoa. Isso está intrinsecamente relacionado ao que chamei de natureza homorgânica do batuqueiro. A morte precisa, portanto, ser vista como duplo acontecimento, desfazer na terra para (re)fazer com o auxílio de Nanã Burukê em Orum. Fazer uma pessoa ou desfazê-la são processos mutuamente implicados; a morte, assim como o nascimento, possui caráter 94

transformativo das relações não apenas entre vivos e mortos, mas entre orixás e mortos, orixás e orixás, vivos e orixás, e a própria memória e a transformação de objetos de lembrança em objetos de culto aos antigos. Esses últimos são a melhor expressão da imbricação de vida, morte e parentesco, outro tema da maior importância para “o povo de Oyó”. Em uma frase, é o desfazer que garante o fazer e vice-versa: fazer bem um eru, desfazer bem uma vida que fica para trás do apronte. Fazer e desfazer.

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