Design e arte nos cartazes de Kiko Farkas: um estudo de caso

May 25, 2017 | Autor: Hugo Fortes | Categoria: Design, Comunicação visual, Arte e Design, Cartazes
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Título: Design e arte nos cartazes de Kiko Farkas: um estudo de caso Design and art in the posters by Kiko Farkas: a case study Autores: Paloma Leslie de Mello Viana Prof. Dr. Hugo Fortes Instituição: ECA – USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Palavras chaves: design, arte, cartazes. (design, art, posters)

Desde o momento em que o design se separa da arte – fato que Bruno Munari1 atribui a atuação da Bauhaus – estes campos permanecem em tensão constante convergindo ou afastando-se de acordo com as tendências de uma determinada época ou escola; em certos momentos acentuamse as diferenças e em outros buscam-se pontos de concordância. Logo, não é de se estranhar que haja um intercâmbio de valores e referências entre ambas as áreas. Nesse contexto, o trabalho do designer está imerso na cultura visual que o cerca e o antecede, que lhe serve como pano de fundo e como parâmetro para suas escolhas. Segundo Munari, essa interação é mais do que necessária:

“O designer não pode trabalhar se não tiver uma cultura viva, interdisciplinar, feita do conhecimento de experiências antigas, mas ainda válidas, de conhecimentos actuais sobre as relações psicológicas entre projetista e usufruidor, de conhecimentos tecnológicos actuais, de cada experiência hoje utilizável. Uma soma de valores objectivos, transmissíveis a outros designers.”2

Se tomarmos como exemplo de análise, os cartazes produzidos pelo designer Kiko Farkas para a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), a relação transdisciplinar entre arte e design torna-se ainda mais evidente. Em sua entrevista para Ellen Shapiro, publicada na revista Communication&Arts em 2005, o próprio designer Kiko Farkas esclarece que sempre teve um 1

Bruno Munari destaca que a Bauhaus foi a primeira escola de design e como tal marcou a separação entre ambas as atividades – arte e design – pois, apesar de seus professores serem em sua maioria artistas e arquitetos dela nasceu “um novo tipo de trabalhador estético, que é o designer” Cf: MUNARI, Bruno. Artista e designer. Lisboa: Editora Presença, s.d. p11 2 MUNARI, Bruno. Artista e designer. Lisboa: Editora Presença, s.d. p. 41

ambiente artístico em casa, assim como uma excelente biblioteca e coleção de discos, além de possuir cursos na área de artes visuais. Essa formação diferenciada dotou-lhe de uma perspectiva particular do design e uma bagagem rica que lhe permitiu desenvolver uma linguagem visual própria que transpassa todo o seu trabalho. E foi exatamente a singularidade de suas criações que levou o Maestro John Neschling a contratá-lo para revitalizar a imagem da OSESP em 2003. Ao entregar a produção do material gráfico da orquestra nas mãos de Kiko Farkas o maestro queria que o designer criasse uma simbiose entre a música produzida pela orquestra e a representação gráfica da mesma nas peças de divulgação. Diante desse desafio, Farkas buscou um paralelo entre ambas as linguagens, usando elementos que estariam presentes nas duas como: ritmo, harmonia, som, textura, tessitura, direção, dinâmica, melodia, agrupamento, ordem, desordem, entre outros. Assim, os cartazes da OSESP invocam a audição através da visão. Essa percepção combinada de dois ou mais sentidos é denominada sinestesia. Segundo Basbaum3, a sinestesia pode ser entendida de duas maneiras: como uma condição neurológica, muitas vezes inata a um determinado indivíduo; ou como uma metáfora aplicada, pela arte ou pelo design, para atingir os sentidos do observador e submergi-lo nas sensações despertadas pela peça. A sinestesia como metáfora está presente em nossa vivência cotidiana. Uma vez que dependemos de todos os nossos sentidos para apreendermos nosso ambiente. É natural que precisemos combinar impressões sensoriais distintas para expressarmos nossas percepções, por exemplo: “perfume doce”, “som ardido”, “cor gritante”, etc. A sinestesia nos permite enriquecer a linguagem e nos abre novas possibilidades de comunicação. Farkas, nos cartazes da OSESP, faz uma incursão nesse campo, na medida em que procura impressionar os sentidos do observador, sugerindo a música através de composições que lembram compassos visuais. Contudo, apesar de suas soluções gráficas serem originais, sua tentativa de representar a música através da linguagem 3

BASBAUM, Sérgio Roclaw. Sinestesia, arte e tecnologia: os fundamentos da cromossonia. São Paulo: Editora Annablume/Fapesp, 2002.

visual não é totalmente inovadora, já que a união entre imagem e a música foi perseguida por diversos artistas, sendo que um dos principais precursores da arte sinestésica foi Wassily Kandinsky. Pioneiro na busca por uma nova forma de expressão visual da música, que não dependesse de elementos figurativos; suas experiências com a sinestesia abriram caminhos para novas formas de expressão artística, sendo que o pintor é considerado também um dos precursores da arte abstrata. Segundo Lilian Barros4, o constante interesse de Kandinsky em conjugar pintura abstrata com sinestesia pode ser explicado por sua busca por uma expressividade mais universal, que fosse baseada em impressões sensoriais e não em símbolos ou códigos visuais. Nessa linha, a música, que pode ser considerada a mais abstrata de todas as artes, atingindo com maior intensidade os sentidos, dotaria os quadros do pintor de uma nova dimensão expressiva e sensorial, ao atribuir-lhes sonoridade. Assumindo as considerações deste artista, pode-se supor que Farkas, ao optar, preferencialmente, por uma representação não-figurativa da música, buscava uma comunicação também mais universal. Da mesma forma, nos cartazes da OSESP, a linha, a cor e o espaço são organizados como elementos autônomos e sua expressividade está em seu dinamismo, peso, irradiação, vibração e movimento. Desse modo, Farkas despoja a forma de qualquer aderência subjetiva, transformando os elementos primários da gramática visual – como a linha, a cor e o plano – em fatos perceptivos concretos. Mesmo nos poucos casos em que a imagem é figurativa, o designer impinge a elas um distorção proposital, que cria um estranhamento e produz um efeito expressivo independente do reconhecimento dos elementos dos cartazes pelo observador. A expressividade está no impacto que as imagens causam sobre os sentidos, ressoando e comunicando-se através de sensações. A manipulação livre da imagem, que dota os cartazes de Farkas de tanta expressividade, é consideravelmente facilitada pelo computador, pois, este permite ao designer reproduzir, alterar e distorcer imagens sem dificuldade, contribuindo, inclusive, para o processo de releitura de 4 BARROS, Liliam Ried Miller. A cor no processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac, 2006

referências, na medida em que lhe permite jogar com diferentes arranjos e composições. No entanto, além de ser uma ferramenta útil, o computador interfere no resultado, deixando sua marca nas composições, já que qualquer trabalho totalmente produzido com ferramentas digitais tenderá para uma regularidade maior, no seguinte sentido: a estilização e a espontaneidade do traço manual perdem força para a forma mais geométrica e simplificada. Assim, quando Farkas busca a expressividade característica do trabalho artesanal, o designer prefere criar os elementos à mão livre, para só depois submetê-los a edição no computador, como é o caso dos 7 cartazes compostos a partir de pinceladas grossas, traçadas em tinta negra, que detalharemos a seguir. Como o próprio designer coloca, na entrevista com Ellen Shapiro: as pinceladas para esses cartazes foram feitas individualmente e depois, apenas algumas foram selecionadas e escaneadas para compor o produto final. A composição em si surgiu no computador, através da combinação e edição das pinceladas selecionadas5. Farkas declara ainda que, sua intenção aqui, era criar uma representação gráfica da textura súbita do som e de seu movimento; para tanto o designer utilizou pinceladas negras e ásperas contra um fundo branco, deliberadamente produzindo um contraste que reforça a intensidade do traço e a textura do pincel. Arthur Nestrovski6 descreveu essa abordagem gráfica como “pinceladas japonesas” que conversam com Amilcar de Castro7. De fato o aspecto áspero e seco das pinceladas, assim como o contraste, sempre presente, entre o branco e o preto parecem fazer referência às gravuras monocromáticas deste artista plástico mineiro, e também a gestualidade controlada da caligrafia oriental. Detalharemos agora, a partir da análise de um caso em particular, como o intercâmbio de referências se apresenta nos cartazes de Farkas.

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FARKAS. Kiko. Kiko!. Communication&Arts, 2005. Entrevista concedida a Ellen Shapiro. Disponível em: 6 NESTROVSKI, Arthur. Imagens da música. In: FARKAS, Kiko. Cartazes musicais. São Paulo: Editora Cosac Naify. 2009. p.19 7 Amilcar de Castro, artista plástico mineiro nascido em Paraisópolis em 1920 é particularmente conhecido por suas esculturas em aço cor-ten, mas possui também um número grande de gravuras de sua autoria. Cf: AGUILERA, Yanet. et al. Preto no branco: a arte gráfica de Amilcar de Castro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.09

1.1. Estudo de Caso

Fig 1 - Gravura de Amílcar de Castro

Fig 2 – Cartaz de Kiko Farkas

Nas gravuras de Amílcar de Castro, exemplificadas pela fig1, as formas poligonais delimitadas pelas pinceladas negras são claras, precisas, a composição visual é concisa e direta, compõe-se apenas de alguns traços grossos que cortam o plano, revelando as formas. Comparativamente, a fig2 é um exemplo de como Farkas opta por utilizar poucos elementos, de maneira organizada e clara. Não há excessos na composição, o asterisco é formado por apenas quatro pinceladas retas que se interseccionam no centro, compondo uma concentração de cor negra que se destaca intensamente contra o espaço em branco. A presença expressiva do asterisco é reforçada pela textura da pincelada, que deixa estrias no papel. O traçado áspero, que está presente no cartaz, é um elemento recorrente da obra de Amílcar, que demonstra que nas gravuras do artista “não se procura realmente uma plasticidade que dê livre curso a expressão”8, mas sim um traço sem hesitação ou arrependimento que organize o espaço, ou seja, uma gestualidade controlada que gere uma força com direção própria, que imprima movimento na composição.

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NAVES, Rodrigo. A Forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1996. p.242

A direção e o movimento concedidos pela pincelada são aspectos importantes também no cartaz, pois, dotam o da capacidade de representar o som. Na medida em que as estrias de cada pincelada apresentam direções diferentes, e a alternância de direções produz um movimento convergente, que parece se chocar no centro, liberando no impacto o som. O visual áspero e seco reforça o impacto desse movimento. O movimento se propaga ainda pelo espaço em branco, o qual, imantado, funciona como um eco sonoro e reafirma o a força do asterisco através do contraste. Na arte japonesa, segundo Iizuka9, o branco expressa silêncio e potencialidade. Comparativamente, Farkas parece utilizar o branco exatamente com a intenção de criar uma pausa, um ponto de repouso que, por contraste, reforça o movimento gestual da pincelada e sua sonoridade. O branco, também para Kandinsky, representa uma pausa na música, cheia de expectativa e potencial, pois o branco guarda a possibilidade do nascimento, do começo, já o preto representa a ausência de resistência. Devido ao movimento concêntrico, inerente a essa cor, o observador tem sensação de ter o olhar tragado em uma queda sem fim. No entanto, Farkas consegue atribuir resistência e sonoridade ao preto através da textura, que pela qualidade áspera com que sulca o papel, irrompe na página branca como um estrondo. A partir das observações feitas, percebe-se que a gestualidade presente nos cartazes é muito bem calculada. O designer usa um gesto controlado, inspirado em uma técnica manual de pintura, para criar o efeito de uma expressividade livre e súbita. Uma demonstração clara de como o design pode enriquecer sua prática a partir da absorção de construções visuais baseadas em técnicas manuais. 1.2. Considerações Finais No trabalho de conclusão de curso entitulado “Representações Gráficas da Música - análise dos cartazes de Kiko Farkas para a OSESP”, que apresentamos junto à escola de Comunicações e Artes da USP em 2010 para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, pudemos analisar inúmeros outros exemplos dos cartazes produzidos por Kiko Farkas, classificando-os nas seguintes categorias formais: geometrismo, acúmulo de ornamento, grafite e gestualidade. O cartaz 9 IIZUKA, Silvana Dudonis Vitorelo. Participação da estética japonesa na arte moderna brasileira – estudo de caso: Manabu Mabe. São Paulo: USP, 2000. 219f. Dissertação de Mestrado, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

acima analisado pertence à categoria gestualidade. Não será possível apresentar neste artigo as considerações sobre as outras categorias, porém cabe ressaltar a pluralidade de soluções criativas utilizadas por Kiko Farkas em sua produção. Arthur Nestrovsky10 no livro “Cartazes Musicais: Kiko Farkas” afirma que o designer visita 1001 estilos e se apropria de cada um deles, sem nunca abandonar o seu próprio estilo pessoal. Os quase 300 cartazes, produzidos pelo designer para OSESP entre 2003 e 2007, possuem diversas temáticas, provando que Farkas não se restringiu a nenhum elemento ou estilo específico, mas renovou-se a cada série. No entanto, apesar da diversidade de temáticas e linguagens gráficas, todos eles possuem uma identidade comum: aquela que Farkas, como designer, criou para a orquestra, conectando todas as peças e transformando-as em uma manifestação da imagem da OSESP. Conseqüentemente, existem elementos que se repetem em um grande número de cartazes como: a cor chapada para o plano de fundo, o emprego de fortes contrastes de cor, a presença de formas e tipografias sangradas, de texturas, de malhas, de tramas e a utilização de toda a área do cartaz para a composição. Existe também um “rigor tipográfico”11 que permeia todos os cartazes, fortemente representado por um o bloco de texto com as informações da orquestra, que é sempre visível e muito claro, independente da composição. Trata-se de um bloco pequeno para as proporções das peças, mas que ganha peso por se mostrar muito concentrado, esse bloco funciona como uma âncora tanto para a composição da peça, quanto para fortalecer a identidade comum compartilhada entre toda a coleção. Os logos, representações diretas da identidade da orquestra e de seus patrocinadores, também nunca são negligenciados e se apresentam, em geral, na mesma posição em todos os cartazes, permitindo uma identificação rápida por parte do observador. A importância dada a esses elementos demonstra a preocupação com a transmissão da mensagem nessas peças, pois, 10

NESTROVSKY, Arthur. Imagens da música. In: FARKAS, Kiko. et al. Cartazes da musicais: Kiko Farkas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 18-22. 11 LEITE, João Souza. Da livre natureza dos sistemas. In: FARKAS, Kiko. et al. Cartazes da musicais: Kiko Farkas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p.135

independente de qualquer alusão visual e não simbólica a música, os cartazes tinham antes de tudo a função de informar o público a respeito dos concertos da orquestra. De acordo com João Leite, esse é um “preceito primeiro do design gráfico, aquele que supõe um outro, um alguém a ser comunicado, ou um grupo de pessoas a ser informado”12. Conseqüentemente, o designer deve equilibrar as diferentes demandas de um projeto, para atender a um cliente que deseja comunicar-se e, ao mesmo tempo, cativar seu público. Ao fazer suas escolhas o designer irá levar em consideração todo o conhecimento e cultura adquiridos ao longo de sua carreira e vida pessoal, para empregá-los como parâmetros que guiaram suas soluções. Contudo, é sua perspectiva individual do desafio proposto e suas referências que irão assinalar o trabalho como caracteristicamente seu. 1.3. Referências Bibliográficas

AGUILERA, Yanet. et al. Preto no branco: a arte gráfica de Amilcar de Castro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. BARROS, Liliam Ried Miller. A cor no processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac, 2006. BASBAUM, Sérgio Roclaw. Sinestesia, arte e tecnologia: os fundamentos da cromossonia. São Paulo: Editora Annablume/Fapesp, 2002. FARKAS, Kiko. et al. Cartazes da musicais: Kiko Farkas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. FARKAS. Kiko. Kiko!. Communication&Arts, 2005. Entrevista concedida a Ellen Shapiro. Disponível em: IIZUKA, Silvana Dudonis Vitorelo. Participação da estética japonesa na arte moderna brasileira – estudo de caso: Manabu Mabe. São Paulo: USP, 2000. 219f. Dissertação de Mestrado, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. MUNARI, Bruno. Artista e designer. Lisboa: Editora Presença, s.d. NAVES, Rodrigo. A Forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1996

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Ibidem. p.135

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