Design Gráfico no Cinema: Saul Bass

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SSN 2179-7374 Ano 2012 - V.16 – N0. 02 ISSN 2179-7374 Ano 2015 - V.19 – N0. 03

DESIGN GRÁFICO NO CINEMA: SAUL BASS GRAPHIC DESIGN IN CINEMA: SAUL BASS

Marcio Rodriguez Taú1 Mirtes Marins Oliveira2 Sérgio Nesteriuk3 Resumo O cinema se utiliza de diversas formas de linguagem para compor a sua própria maneira de se expressar, e o design gráfico pode ser entendido como uma dessas formas. Desde as primeiras manifestações do “cinema mudo” pode-se identificar a presença de elementos gráficos (textos, “cartelas” e ilustrações) inseridos na montagem. A proposta deste artigo é entender como o design gráfico colabora para a linguagem do cinema e identificar as potencialidades que o movimento pode acrescentar às composições gráficas. Isso será feito por meio de uma contextualização seguida das análises dos créditos de abertura dos filmes: The man with the golden arm (Otto Preminger, 1955) e Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), ambos criados pelo designer gráfico Saul Bass.

Palavras-chave: Design; design gráfico; cinema; motion design; créditos de abertura; Saul Bass. Abstract The cinema uses different forms of language to compose its own way of expression, and graphic design can be one of these ways. Since the first manifestations of the “silent cinema” it is possible to identify the presence of graphic design elements (texts, “title cards” and illustrations) embedded in the assembly. The purpose of this article is to understand how the graphic design contributes to the language of cinema and recognize the motion capability to add information to graphic compositions. This will be done through the analysis of the following movies open titles: The man with the golden arm (Otto Preminger, 1955) and Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), both created by graphic designer Saul Bass.

Keywords: Design; graphic design; motion design; open titles; Saul Bass.

1Mestrando 2Dra. 3

em Design, Universidade Anhembi Morumbi, [email protected]

em Educação: História, Política, Sociedade, Universidade Anhembi Morumbi, [email protected]

Dr. em Comunição e Semiótica, Universidade Anhembi Morumbi, [email protected]

ISSN 2179-7374 Ano 2015 – V. 19 – No. 03

Design Gráfico no Cinema: Saul Bass

1. Introdução Nas primeiras produções com imagem em movimento, a linguagem cinematográfica era muito diferente do que entendemos por cinema hoje. Machado (1997, p. 76 - 79) aponta que as primeiras projeções reuniam várias modalidades de espetáculos, que se originaram das formas populares de cultura da época: circo, carnaval, mágica, pantomima, feira de atrações, vaudevilles, etc. Até os primeiros dez anos de existência, o cinema ainda não havia desenvolvido um conjunto de procedimentos e técnicas de linguagem apropriado para o desenvolvimento de uma narrativa visual autônoma. Dessa forma, muitas vezes era necessária a presença de um apresentador in loco que “explicava” o que se passava no filme. Aos poucos os cineastas foram desenvolvendo técnicas que foram moldando a narrativa visual como a conhecemos hoje. Uma das tentativas de tornar a mensagem audiovisual autônoma foram as “cartelas”, que eram composições estáticas filmadas ou desenhadas diretamente na película e inseridas na montagem com o objetivo de contextualizar o espectador em uma determinada situação, que somente as imagens não conseguiam fazer, como Bernardet (1980) comenta: O filme era uma sucessão de “quadros”, entrecortados por letreiros que apresentavam diálogos e davam outras informações que a tosca linguagem cinematográfica não conseguia fornecer. (BERNARDET, 1980, p.32)

Não só a “gramática audiovisual” ainda não estava consolidada, como também seu público ainda não estava “alfabetizado”, por assim dizer. Convenções utilizadas para deslocamentos de tempo e espaço, como fades e cortes de câmera, por exemplo, nem sempre eram entendidas dessa forma pelo público espectador. Assim, recursos como a presença de apresentadores ou cartelas também eram pensados pelos diretores como uma forma de melhor garantir o entendimento do enredo – ainda que, em alguns casos, pudesse acarretar em certa redundância (Machado, 1997). Essas cartelas continham informações textuais de diálogos, passagens de tempo, avisos, entre outros. Nas composições de textos feitas à mão ou impressas em offset existia uma preocupação com o desenho das letras e com a composição dos elementos, assim pode-se afirmar que nessas produções cinematográficas existia uma aplicação de elementos caros ao design gráfico. Um cineasta que pode ser considerado pioneiro no uso das cartelas foi D.W. Griffith, que no filme Intolerance (1916) as usou como componentes significantes na história. As cartelas continham uma composição de letras brancas em fundo preto ou eram até mesmo aplicadas diretamente sobre as imagens filmadas – na época eram utilizados dezesseis fotogramas para o registro e posterior reprodução de um segundo de imagens em movimento (Figura 1, 2 e 3).

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Figura 1: Fotograma com Textos Inseridos em Fundo Preto com o Nome do Filme, Diretor e Produtora.

Fonte: Intolerance, 1916, direção: D. W. Griffith

Figura 2: Fotograma com Textos Brancos Sobrepostos à Imagem de um Livro. Terceiro Fotograma.

Fonte: Intolerance, 1916, direção: D. W. Griffith

Figura 3: Fotograma com Textos Inseridos em Fundo Desfocado com Descrição da Cena Também com Letras Brancas.

Fonte: Intolerance, 1916, direção: D. W. Griffith

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Por meio da montagem os cineastas puderam aperfeiçoar o modo de transmitir suas ideias. O filme deixou de ter a câmera fixa e, naquele momento, passou a ser composto por várias cenas, com situações e enquadramentos diferentes. Imagens em movimento eram “colocadas” uma ao lado da outra, criando assim um novo significado. Montar um filme passou a ser um processo de associações de imagens. O cineasta traça um caminho lógico e visual através de várias cenas com o objetivo de contar a sua história, transmitir a sua ideia. Como comenta Eisenstein (2002): [...] A força da montagem reside nisto, no fato de incluir no processo criativo a razão e o sentimento do espectador. O espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. O espectador não apenas vê os elementos representados na obra terminada, mas também experimenta o processo dinâmico do surgimento e reunião da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. (EISENSTEIN, 2002, p.29)

À medida que a linguagem do cinema foi se aperfeiçoando, o design gráfico também foi ganhando novas aplicações dentro da chamada “sétima arte”. De maneira geral, ele deixou de ser usado apenas para descrever o que as personagens estavam dizendo, pois o som passou a dar conta disso. Os cineastas aprenderam a usar as imagens em movimento de tal maneira que não havia mais a necessidade de textos explicando o que estava acontecendo na tela para um público já “alfabetizado” na linguagem cinematográfica – posteriormente, diretores como Jean Luc Godard e François Truffaut vão buscar justamente essa ruptura em suas obras. 2.

Design Gráfico e o Movimento

2.1. Design Gráfico no Cinema Podemos identificar a presença de elementos do design gráfico do início ao final de um filme, pois todos os textos que são exibidos têm um tratamento gráfico específico para cada momento. Textos são frequentemente utilizados para apresentar o título do filme, creditar os nomes das pessoas envolvidas na produção (atores, diretores, produtores, entre outros), identificar lugares, informações de tempo (dia, ano, hora) e para traduzir as falas das personagens para o idioma onde está sendo exibido o filme (legendas). Aparecem ainda associados a objetos de cena, como a placa de um consultório médico ou um outdoor na rua. O texto pode aparecer ainda como elemento gráfico, que não acrescenta necessariamente uma informação direta, mas sim uma ideia ou sensação. Um exemplo dessa aplicação acontece no filme Natural born killers (1997), no qual a palavra demon (demônio) e a expressão too much t.v. (muita televisão) são projetadas diretamente sobre os corpos das personagens, adicionando novas formas de percepção da cena para o espectador (Figura 4 e 5). O desenho dos textos no cinema, assim como ocorre em outras mídias, também tem uma importância muito grande. O design de cada letra, ou seja, a tipografia é utilizada de forma a agregar significado aos textos. Farias (1998) define tipografia como: Definiremos, assim, tipografia como conjunto de práticas subjacentes à criação e utilização de símbolos visíveis relacionados aos caracteres

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ortográficos (letras) e para-ortográficos (tais como números e sinais de pontuação) para fins de reprodução, independente do modo como foram criados (a mão livre, por meios mecânicos) ou reproduzidos (impressos em papel, gravados em um documento digital). (FARIAS, 1998, p.15)

A palavra escrita possui um formato, um desenho, que se compõe da organização de letras. Essa palavra tem um significado textual, mas ao mesmo tempo o desenho dela pode criar outras associações, conforme Belantonni e Woolman (1999) comentam: O mecanismo de ler, escrever e imprimir textos funciona de acordo com o reconhecimento da palavra, cujos significados devem ser aplicados por uma convenção cultural. Esse nível de percepção surge além do simples reconhecimento de formas geradas através de uma sucessão de letras com formas únicas e bidimensionais. Uma é relacionada à ideia representada pela palavra em si, construída através de uma série de letras – a palavra-imagem – e outra através de uma manifestação holística visual – a imagem tipográfica.4 (BELANTONNI / WOOLMAN, 1999, p.6)

Figura 4: Fotograma com a Palavra Demon Projetada no Personagem Mickey Knox.

Fonte: Natural born killers, 1997, direção Oliver Stone

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The mechanics of reading written and printed texts function according to the recognition of word to which meanings have been applied by cultural convention. This level of perception goes beyond simply recognizing the shape generated through the succession of single, two-dimensional letterform. One is related to the idea represented by the word itself, constructed from a string of letters – the word-image – and other from its holistic visual manifestation – the typographic image.

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Figura 5: Fotograma com a Frase Too Much T.V. Projetada No Casal De Personagens Mickey e Mallory.

Fonte: Natural born killers, 1997, direção Oliver Stone

O cinema então passou a se apropriar dessa qualidade dos textos. Criadores de filmes de terror já utilizavam a tipografia para criar uma determinada expectativa em relação ao filme. O título do filme King Kong (1933), por exemplo, surge pequeno na tela e cresce até seu limite máximo, preenchendo todo o quadro. A fonte sem serifa e de aspecto bastante pesado parece intimidar o espectador, assim como o próprio gorila que dá nome ao filme. A tipografia nesse filme cria, portanto, um clima denso e misterioso, apropriado para um filme de terror, conforme podemos observar na Figura 6. Outro exemplo é The thing from another world (1951), no qual a tela literalmente queima, e vibrantes raios de luz parecem atravessá-la, formando assim o título do filme. As letras têm formas rústicas, parecem cavadas em madeira ou escritas sem cuidado algum, criando um clima de mistério e suspense para o espectador (Figura 7) Em meados da década de 1950 o designer gráfico Saul Bass se destaca por criar um novo modo de apresentar um filme. Usando sua experiência como designer gráfico e uma tendência à simplificação, ele cria aberturas para filmes que possuíam uma mini narrativa, que preparava o espectador para o filme em si. Além de textos, Bass utilizava elementos gráficos para “contar” suas histórias. Ele não criava somente um clima, mas uma síntese pensada a partir da indissociabilidade entre forma, conteúdo e função narrativas. (...) ainda que seja verdadeiramente novo, o cinema não é, de modo algum, isolado e autônomo. Formas tradicionais, mais fortes que todas as outras, se introduzem nas técnicas de hoje. E, independentemente da nossa própria vontade, carregamos dentro de nós outras formas invisíveis, que determinam a maneira pela qual vemos e retratamos o mundo. (CARRIÈRE, 1994, p.39)

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Figura 6: Fotograma dos Créditos de Abertura do Filme King Kong.

fonte: King Kong, 1933, direção: Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack

Figura 7: Fotograma dos créditos de abertura do filme The thing from another world

Fonte: The thing from another world, 1951, direção: Christian Nyby e Howard Hawks

Dessa forma, podemos entender que o cinema não é uma linguagem pura, pois da mesma forma que se beneficia de outras linguagens e formas expressivas da contemporaneidade, acaba também por influenciar e mesmo ser incorporado por estas – em uma relação dialógica com a cultura, a sociedade e seu espírito de época. A animação, a música, a literatura e o design, por exemplo, influenciaram (e ainda influenciam) muito o cinema, mas também se transformaram por influência do cinema. 2.2. Saul Bass (1920-1996) Saul Bass é reconhecido como um dos grandes colaboradores da linguagem cinematográfica (Pamela, 1996). Ele nasceu e viveu nos Estados Unidos, trabalhando em vários segmentos do design gráfico antes (e depois) de começar a realizar suas aberturas de filmes durante praticamente toda a segunda metade do século passado. Nascido na cidade de Nova York, Saul Bass estudou no Art Students League e no Brooklyn College, 342

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tendo como professor Gyorgy Kepes, um dos fundadores da Bauhaus. Aos vinte e seis anos mudou-se para Los Angeles, onde começou a trabalhar com publicidade para entretenimento. Em 1954, Bass criou a abertura do filme Carmen, de Otto Preminger, seu primeiro projeto para o cinema5. Já em seu próprio escritório, aberto em 1955, Bass criou um de seus trabalhos mais famosos, o pôster e a abertura do filme The man with the golden arm (1955), do diretor Otto Preminger (figura 8). Junto com Preminger, Bass realizou um total de onze aberturas para seus filmes. Figura 8: Poster do Filme The Man With The Golden Arm (1955)

fonte: http://illusion.scene360.com - acessado em 09/2015

Além de Otto Preminger, Bass trabalhou com outros importantes diretores da história do cinema, como Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock. Bass também atuou como consultor visual dos filmes Spartacus (1960), West Side Story (1961) e Grand Prix (1966). No filme Psycho (1960), de Alfred Hitchcock, além da abertura, Bass fez o

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Nesta, assim como em outras obras, Bass também foi responsável pelos pôsteres de divulgação dos filmes. Essa produção gráfica representou uma mudança no paradigma dos pôsteres usados até então no cinema, que normalmente enfatizavam os atores ou uma cena do próprio filme. Ao trabalhar com a simplificação e a abstração de elementos-chave da obra, Bass mantinha a coerência e articulação com a identidade visual do projeto. Entre os trabalhos mais conhecidos podemos citar: The man with the golden arm, (Otto Preminger, 1955), Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958), Shinning (Stanley Kubrick, 1980) e Schindler´s list (Steven Spilberg, 1993), além da 63º festa de entrega do Oscar, em 1991. Todavia, esta produção de pôsteres encontra-se além do escopo do presente artigo.

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storyboard da emblemática cena do chuveiro, uma das sequências mais famosas do cinema mundial. Ao se assistir a cena pode ser notada a preocupação com elementos simples e funcionais, marca registrada de Saul Bass. A câmera passeia do olho até o ralo da banheira, começando num círculo e terminando em outro. O corte do chuveiro, filmado em contra plongée (de baixo para cima), parecendo um círculo em direção à boca da atriz gritando, também em forma de círculo, promove uma espécie de associação por forma, relativamente incomum para os padrões de fotografia cinematográfica da época pautados em uma contiguidade associativa mais direta. Em 1962, Saul Bass dirigiu seu primeiro curta metragem, Apples and Oranges (1962). Ainda nesse ano, Bass casou-se com Elaine Makatura, que trabalhava com ele e colaborou em diversos de seus projetos. Em 1968, Bass ganhou o Oscar pelo curta Why man creates (1968) e, em 1974, dirigiu seu primeiro longa metragem, a ficção científica Phase IV (1974). Em 1990, Bass começou uma parceria com o diretor de cinema Martin Scorcese, fazendo a abertura dos filmes: Godfellas (1990), Cape fear (1991), The Age of innocence (1993) e Casino (1995). Em 1996, dois meses antes de Saul Bass falecer em Los Angeles aos 75 anos, a School of visual arts em Nova York organizou uma exposição com seus trabalhos mais importantes.

2.3. Abertura de Filmes Saul Bass foi pioneiro em criar pequenas animações utilizadas no início dos filmes para transmitir informações ao espectador de maneira textual: nome de atores, produtores, diretores e o próprio nome do filme. Além da característica informativa, esse tipo de abertura preparava o espectador para a história que seria apresentada na sequência, funcionando como um “pequeno filme” que dialogava diretamente com a narrativa da produção como um todo. Como explica o próprio Saul Bass em uma entrevista: [...] eu comecei a pensar sobre o que fazer no início de um filme. Obviamente, o objetivo de qualquer crédito de abertura 6 é apoiar a película. [...] Meus pensamentos iniciais sobre o que um crédito de abertura poderia fazer eram definir o humor e preparar o núcleo fundamental da história do filme; para expressar a história de alguma maneira metafórica. Eu via o crédito de abertura como uma forma de condicionar o público, então, quando o filme começasse, os espectadores já teriam uma ressonância emocional com ele. 7 (Saul Bass em entrevista a Pamela Haskin publicada em Film Quaterly, 1996)

Antes de Saul Bass, os créditos que antecediam os filmes nada mais eram que uma série de nomes estáticos exibidos em sequência, normalmente sobre o fundo de

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A palavra em inglês “title”, nesse contexto, se refere ao trecho inicial de uma produção cinematográfica em que são inseridos o título do filme e os nomes dos profissionais envolvidos. Em português será utilizado o termo “crédito de abertura”. 7

[...] I began thinking about what to do at the beginning of a film. Obviously, the point of any title is to support the film. [...] My initial thoughts about what a title could do was to set mood and to prime the underlying core of the film's story; to express the story in some metaphorical way. I saw the title as a way of conditioning the audience, so that when the film actually began, viewers would already have an emotional resonance with it.

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uma tela preta, que só tinham uma ligação com o filme de maneira informativa. Já as aberturas de Bass também tinham uma ligação visual e narrativa com o filme. A partir daí os textos deixaram de ter a única função de nomear pessoas ou coisas e, somados à música e outros elementos gráficos, ganharam movimento, diagramações originais e passaram a assumir outros significados. Com essas inovações, Bass mudou o modo de se perceber a abertura de um filme. Os créditos do início deixaram de ser simples textos sem importância para a trama, pois nesse novo formato os créditos são apresentados como parte integrante da narrativa. Os textos são organizados no quadro de forma a transmitir uma mensagem não só informativa, mas visualmente elaborada. Foram aqui selecionadas duas aberturas de filmes feitas por Bass que dialogam visualmente e que são mais recorrentes em textos sobre o designer: The man witn the golden arm (Otto Preminger, 1955) e Psycho (Alfred Hitchcok, 1960). O objetivo da análise destas aberturas não é identificar o significado das composições, muito menos descobrir as possíveis intenções do designer no momento da criação. A proposta é identificar como o design gráfico colabora para a construção da mensagem audiovisual e identificar as potencialidades que o movimento pode acrescentar às composições gráficas, além de buscar possíveis relações com outras produções de design gráfico contemporâneas aos filmes analisados. Para melhor entendimento desta análise, recomenda-se assistir às aberturas na íntegra por meio dos links disponibilizados nas referências deste artigo.

2.4. Formas Geométricas – Influências da Bauhaus e da De Stijl Nas aberturas dos filmes The Man with the golden arm (Otto Preminger, 1955) e Psycho (Alfred Hitchcock, 1960) Saul Bass cria composições abstratas que podem levar a um grande número de interpretações por parte do espectador, configurando-se assim como uma obra (dentro de outra obra) cuja experiência só atinge fenomenologicamente sua completude quando em diálogo com o público. A utilização de composições abstratas nessas aberturas pode causar certo estranhamento ao espectador e, segundo Umberto Eco (1997), é exatamente esse afastamento que possibilita ao público uma reconsideração do que está sendo visto, ato que leva o espectador a olhar de modo diferente para a obra. O efeito de estranhamento ocorre desautomatizando-se a linguagem: a linguagem habituou-se a representar certos fatos segundo determinadas leis de combinação, mediante fórmulas fixas. De repente um autor, para descrever-nos algo que talvez já vimos e conhecemos de longa data, emprega as palavras (ou os outros tipos de signos de que se vale) de modo diferente, e nossa primeira reação se traduz numa sensação de expatriamento, numa quase incapacidade de reconhecer o objeto, efeito esse devido à organização ambígua da mensagem em relação ao código. A partir dessa sensação de “estranheza”, procede-se uma reconsideração da mensagem, que nos leva a olhar de modo diferente a coisa representada mas, ao mesmo tempo, como é natural, a encarar também diferentemente os meios de representação e o código a que se referiam. A arte aumenta “a dificuldade e a duração da percepção, descreve o objeto“ como se o visse pela primeira vez” (como se não

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existissem já fórmulas para o descreverem) e “o fim da imagem não é tornar mais próximo da compreensão e significação que veicula, mas criar uma percepção particular do objeto” (ECO, 1997, p.70)

O uso de formas geométricas pode ser encontrado também em trabalhos da Bauhaus, escola fundada em 1919 que influenciou o design em todo o mundo. Gyorgy Kepes, que foi professor de Saul Bass no Brooklyn College, foi também um dos mais ativos colaboradores da Bauhaus, que junto com muitos outros designers precisou fugir da Europa por causa de perseguições da Segunda Guerra Mundial. As duas aberturas mencionadas têm uma similaridade com os trabalhos da Bauhaus, mas essa similaridade também pode ser observada com os trabalhos de outro importante movimento do design: De Stijl (O Estilo). Os trabalhos dos designers desse movimento holandês têm como princípio básico a geometria das formas. Geometria essa que serviu de inspiração para muitos dos trabalhos da Bauhaus. A característica mais óbvia do De Stijl era sua retangularidade, exemplificada nas pinturas abstratas de Piet Mondrian, que geralmente mostram uma grade de linhas pretas sobre uma tela branca, com uns poucos retângulos coloridos nas cores primárias ou em cinza. Theo Van Doesburg, vigoroso porta-voz e teórico do De Stijl, era pintor, arquiteto e poeta. Além de editar a revista De Stijl, para a qual também criou o layout, Doesburg produzia designs gráficos e tipografia, cujo estilo estritamente geométrico serviu de base para grande parte do trabalho pioneiro de Schwitters e da Bauhaus. (HOLLIS, 2001, p.68)

Se compararmos as aberturas dos filmes The man with the golden arm (1955) e Psycho (1960) feitas por Bass, com alguns trabalhos feitos por designers do De Stijl, podemos verificar as semelhanças nas composições. A capa da revista De Stijl (figura 5) criada por Vilmos Huszar em 1917, por exemplo, é um trabalho que dialoga diretamente com o tratamento visual usado nas aberturas aqui comentadas. Na abertura do filme The man with the golden arm (1955), Saul Bass usou retângulos brancos em contraste com um fundo preto. Usou também textos sem serifa, outra característica da Bauhaus e do De Stijl (figura 6). A abertura de Psycho também tem composições feitas com retângulos, só que cinzas, e os textos apresentados em branco e sem serifa (figura 9). O contraste é bem explorado nesses dois trabalhos, quando Bass coloca o preto e o branco na mesma composição, evidenciando ambos, de forma que um intensifica o significado do outro e vice-versa. Além das cores contrastantes à posição dos elementos em quadro, seus movimentos também configuram uma situação de contraste. Ao colocar uma série de retângulos brancos ligeiramente inclinados ao lado de textos sem inclinação nenhuma num determinado momento da abertura do filme The man with de golden arm (1955), Bass cria uma situação de contraste que perturba o equilíbrio da composição. Esse efeito também pode ser notado em diversos momentos na abertura de Psycho (1960), quando os retângulos entram no quadro de forma irregular tanto na vertical como na horizontal. Sobre esse desequilíbrio, Dondis (1997) comenta: Tanto para o emissor quanto para o receptor da informação visual a falta de equilíbrio e regularidade é um fator de desorientação. Em outras palavras, é o meio visual mais eficaz para criar um efeito em resposta ao objetivo da mensagem, efeito que tem um potencial direto e econômico de transmitir a informação visual. As opções visuais são polaridades, tanto de regularidade quanto de simplicidade de um lado, ou de variação complexa e inesperada de outro. A

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escolha entre essas opções determina a resposta relativa do espectador, tanto em termos de repouso e relaxamento quanto de tensão. (DONDIS, 1997, p.35)

“Perturbar o equilíbrio” pode ser entendido como algo pejorativo, mas, nesse caso, é exatamente o contrário; é esse desequilíbrio que dialoga com a tríade logo, pathos e ethos dos filmes e que torna as obras de Bass tão expressivas quanto singulares. Esse desequilíbrio é um dos fatores que causa o estranhamento (unheimlich) por parte do espectador e que estimula o espectador a uma reavaliação do que está sendo visto, que se apresenta, portanto, simultaneamente como algo familiar e desconhecido, agradável e estranho. Figura 9: Capa da Revista De Stjil, 1917

fonte: http://www.designhistory.org - acessado em 09/2015

2.5. The Man With the Golden Arm (1955) Este filme apresenta a protagonista Frank Machine (Frank Sinatra), que acaba de voltar da prisão, onde ficou em tratamento para se livrar do vício da heroína. Para ajudar na sua recuperação, Frank aprendeu a tocar bateria. Ao utilizar retângulos brancos e textos sem serifa, Bass cria uma verdadeira coreografia visual, na qual os elementos gráficos em movimento formam diversas composições durante toda a abertura. Os retângulos ora se assemelham às baquetas de um músico, ora parecem simplesmente elementos gráficos para marcar o ritmo da música (Figura 10). 347

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A ligação entre uma composição e outra durante toda a abertura é feita pela permanência de um dos retângulos no quadro ou pelo movimento dele (“cortina”). Logo no início surgem quatro retângulos que entram pela parte superior do quadro, junto com o nome dos atores principais que surgem em “fade in”9, formando a primeira composição da abertura. Depois, três dos retângulos saem em “fade out”8, sendo que um deles permanece em quadro para fazer parte da próxima composição com outros três novos retângulos que entram cada um de um lado do quadro. Novamente, um dos retângulos permanece e em seguida se move para formar outra composição. E assim sucessivamente até o final da abertura, quando quatro retângulos se unem e formam um braço estilizado, imagem essa que faz referencia à personagem principal, pois se trata de um viciado em heroína (droga normalmente injetada na veia dos braços) e que toca bateria (instrumento musical tocado majoritariamente com os mesmos braços). Figura 10: Fotogramas da Abertura do Filme The Man With The Golden Arm.

Fonte: The man with the golden arm, 1955, direção Otto Preminger

Se analisarmos os quadros parados de cada composição (Figura 10), o movimento dos retângulos parece já estar indicado na posição que eles assumem em tela. O movimento é quase como um prolongamento da composição gráfica, como se ele completasse a indicação feita pela composição. O movimento dos elementos gráficos nessa abertura é usado de forma a dar continuidade ao trabalho todo. Uma composição não existe sem a outra, elas são todas conectadas, interligadas. O movimento ou a permanência dos retângulos em quadro cria um eixo sobre o qual a percepção do espectador fica “apoiada”.

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Fade-in e fade-out são termos utilizados em edição de imagens em movimento e significam respectivamente surgir em transparência e desaparecer em transparência.

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2.6. Psycho (1960) Este filme de Alfred Hitchcock mostra o assassinato de uma garota hospedada em um hotel de beira de estrada. O assassino, Norman Bates (Anthony Perkins), é o dono do hotel e tem um desvio de personalidade identificado pelo quadro psicopatológico que dá nome à obra. A abertura deste filme começa com um fundo cinza, que é cortado por vários retângulos pretos horizontais, formando uma tela listrada. Nos espaços em preto surgem fragmentos de um texto branco que formam as palavras “ALFRED HITCHCOCK’S”. Na sequência, novas listras cinza invadem a tela, primeiro retirando o texto anterior e depois “trazendo” a próxima palavra, “PSYCHO” (Figura 11). Figura 11: Fotogramas da Abertura do Filme Psycho.

fonte: Psycho, 1960, direção Alfred Hitchcock

O nome do filme permanece estático no meio do quadro e, em seguida, sofre uma fragmentação. Logo após, no centro do quadro, surgem listras brancas verticais, que separam a palavra “PSYCHO”. A partir desse ponto, a série de nomes (créditos) é apresentada de forma similar, ora revelados por retângulos horizontais, ora por retângulos verticais. Assim como na abertura do filme The man with the golden arm, Bass utiliza os retângulos para criar composições abstratas, que podem ser interpretadas de maneiras diversas, como Dondis (1997) ilustra: Todas as formas básicas expressam três direções básicas e significativas: o quadrado, a horizontal e a vertical; o triângulo, a diagonal; o círculo, a curva. Cada uma das direções visuais tem um forte significado associativo e é um valioso instrumento para a criação de mensagens visuais. (DONDIS, 1997, p.59-60)

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O contraste dos elementos gráficos nesta abertura é obtido por três formas distintas, mas complementares: primeiro, pelas cores dos elementos brancos, cinza e preto (luminância); segundo, pela forma e posicionamento dos elementos gráficos no quadro; e terceiro, pelo movimento deles. O movimento, assim como na abertura de The man with the golden arm, serve como elemento de transição entre uma composição e outra. Os retângulos cinza ora cruzam o quadro “trazendo” um novo texto, ora surgem do meio do quadro, como se separassem o texto que está escrito. Esses movimentos dos elementos gráficos, na maioria das vezes, possuem sentido e direção contrários uns aos outros, ou seja, são contrastantes. Os retângulos ora surgem todos do mesmo lado do quadro, ora alguns de um lado e outros do outro, apresentando também movimentos contrários. E mesmo quando surgem do mesmo lado, eles não estão alinhados. Além disso, os retângulos apresentam sempre alguma irregularidade, como tamanhos diferentes, por exemplo. Outra característica interessante do movimento dos elementos é a velocidade, representada por uma distância percorrida em um determinado intervalo de tempo. Alguns retângulos cruzam o quadro e revelam o próximo texto em menos de três segundos, configurando assim uma passagem rápida pelo quadro – enquanto outros levam um intervalo de tempo perceptivelmente maior. O movimento contrário dos retângulos também pode ser entendido como uma representação dos desvios da mente da personagem principal da trama. Já a velocidade deles pode indicar uma perseguição, como se estivessem sempre fugindo de alguma coisa, outra possível relação com o enredo do filme (a vítima acaba se hospedando no hotel do assassino, porque está fugindo de sua cidade). Outra referência que pode ser citada é a configuração irregular dos retângulos, que evocam a silhueta de uma cidade com seus arranha-céus, lugar onde começa a trama do filme. Todas essas possíveis analogias são ilustrativas, pois se configuram de forma diferente para cara espectador. Todavia, independentemente de seu caráter imaginário ou simbólico, a utilização do movimento agregou um significado potencial além daquele associado à forma e à cor dos elementos, sendo assim outro elemento relevante na transmissão da mensagem.

3. Considerações Finais Após analisar às aberturas dos filmes The man with the golden arm (1955) e Psycho (1960), produzidas por Saul Bass, foi possível determinar que as variáveis “tempo” e “movimento” presentes no cinema ampliaram as possibilidades interpretativas dos elementos gráficos presentes nos créditos de abertura de um filme. Nessas aberturas, textos e formas geométricas estimulam percepções através de suas formas, cores, posicionamentos e tamanhos, gerando contrastes, equilíbrios e desequilíbrios. A partir do momento que esses elementos tornam-se animados, todas essas características compositivas são potencializadas: uma mesma composição pode variar, em alguns segundos, entre equilibrada e desequilibrada simplesmente com a aplicação do movimento de seus elementos e associação a determinado som ou sequência musical. Além dessas características, foi possível também identificar uma aproximação com produções da Bauhaus e, sobretudo, do movimento holandês De Stijl, que tem como princípio básico a busca pela harmonia pela geometria das formas e pelo abstracionismo responsável por libertar a imagem de uma função mimética ou da busca 350

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figurativa de uma forma de registro do real imediato. Outro aspecto detectado no uso de elementos gráficos nessas produções cinematográficas é a manipulação e sobreposição temporal dos elementos gráficos apresentados no quadro. O tempo de permanência dos elementos e suas velocidades de deslocamento estão diretamente ligados à percepção e à compreensão dos mesmos. Nesse sentido, o designer gráfico torna-se “senhor do tempo”, explorando-o como um elemento ativo e indissociável dos demais, que ao ser registrado (e posteriormente reproduzido) na forma de uma sequência de fotogramas em uma película, torna-se como uma espécie de quarta dimensão imagética.

Referências BELLANTONI, Jeff & WOOLMAN, Matt. Type in Motion. New York: Rizzoli, 1999. BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ECO, Umberto, A Estrutura Ausente. São Paulo: Perspectiva, 1997. EISEINSTEIN, S. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. FARIAS, Priscila. Tipografia digital: o impacto das novas tecnologias. 1. ed. Rio de Janeiro: 2ab Editora, 1998. v. 1. 112p HASKIN, Pamela, Bass Saul. “Can you make a title?”: Interview with Saul Bass. Film Quaterly. 1996. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997.

Filmografia Intolerance. Intolerância. dir. D. W. Griffith. Estados Unidos. 1916. (163 min). King Kong. King Kong. dir. Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Estados Unidos. 1933. (100 min). Natural born killers. Assassinos por natureza. Dir. Oliver Stone. Estados Unidos. 1994. DVD (121 min). Psycho. Psicose. dir. Alfred Hitchcock. Estados Unidos. 1960. DVD (109 min). The man with the golden arm. O homem do braço de ouro. dir. Otto Preminger. Estados Unidos. 1955. DVD (119 min). The thing from another world. O monstro do ártico. dir. Christian Nyby e Howard Hawks. Estados Unidos. 1951. (87 min).

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Internet créditos de abertura do filme The man with the golden arm (1955) https://www.youtube.com/watch?v=sS76whmt5Yc

créditos de abertura do filme Psycho (1960) https://www.youtube.com/watch?v=Tek8QmKRODw

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