DESIGUALDADES SOCIOTERRITORIAIS E COMPORTAMENTOS EM SAÚDE

June 3, 2017 | Autor: Paula Remoaldo | Categoria: Health Inequalities, Health, Public Health, Social Inequalities
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DESIGUALDADES SOCIOTERRITORIAIS E COMPORTAMENTOS EM SAÚDE

DESIGUALDADES SOCIOTERRITORIAIS E COMPORTAMENTOS EM SAÚDE

Paula Remoaldo e Helena Nogueira (Coordenadoras)

Edições Colibri

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

Título: Desigualdades Socioterritoriais e Comportamentos em Saúde Coordenadoras: Paula Remoaldo e Helena Nogueira Editor: Fernando Mão de Ferro Depósito legal n.º

Lisboa, Fevereiro de 2013

ÍNDICE

Prefácio ............................................................................................................. 7

PARTE I. INTRODUÇÃO

Capítulo 1 – Variações e desigualdades socioterritoriais em saúde Helena Nogueira e Paula Remoaldo .............................................................. 11

PARTE II – EDUCAÇÃO, PROMOÇÃO E COMPORTAMENTOS EM SAÚDE

Capítulo 2. Promoção da Saúde a partir de contextos territoriais Samuel Lima .................................................................................................. 31 Capítulo 3. Educação para a Saúde versus Promoção da Saúde: mudança conceptual inocente? Clara Oliveira ................................................................................................. 47 Capítulo 4. Educação para a saúde como estratégia de promoção de saúde na gravidez: Um estudo qualitativo Maria de Fátima Martins ................................................................................ 75 Capítulo 5. Ambiente, comportamentos e obesidade na população portuguesa Helena e Cláudia ............................................................................................ 93

PARTE III – VULNERABILIDADE, DESIGUALDADES E RISCOS EM SAÚDE

Capítulo 6 – Os riscos para a saúde humana causados pelo frio nos climas mediterrânicos – o exemplo da área portuense Ana Monteiro, Luís Fonseca, Sara Velho, Mário Almeida .......................... 117

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Capítulo 7 – Subestações de energia elétrica, radiação eletromagnética e os efeitos na saúde humana – estudo de caso do município de Guimarães Juliana, Paula e Helena ................................................................................ 141 Capítulo 8 – Construcción, desenvolvemento e crise dos sistemas de saúde de Galicia e Portugal. O desmantelamento de modelos públicos consolidados (Jésus González) .............................................................................................. 185 Capítulo 9 – A (in)equidade no acesso aos serviços de saúde: uma abordagem à exclusão social no município de Braga (Vitor Ribeiro) ..... 221 Notas biográficas dos autores ......................................................................... 249

PREFÁCIO

PARTE I INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 VARIAÇÕES E DESIGUALDADES SOCIOTERRITORIAIS EM SAÚDE Helena Nogueira Faculdade de Letras Universidade de Coimbra

Paula Remoaldo Instituto de Ciências Sociais CICS/NIGP Universidade do Minho

Resumo O presente capítulo, de cariz teórico, pretende recordar a importância das estruturas sociais quando se considera a saúde, a doença e a morte, destacando o género, a idade e o estatuto socioeconómico. Reflete sobre as desigualdades sociais em saúde, que continuam a ser na atualidade acentuadas e, em alguns dos casos, pouco reconhecidas. O enfoque usado é o qualitativo e alicerça-se na análise de vários estudos realizados à escala internacional e em Portugal, que revelam a importância da hierarquia socioeconómica, o impacte da pobreza e da privação na saúde, como a mais estudada determinante social da saúde. Por último, a componente espacial é ressaltada na explicação das desigualdades sociais, devido à singularidade e expressividade do padrão geográfico das mesmas desigualdades em saúde. 1. Introdução “(…) each society, in producing its own way of life, produces its own way of death”. (Freund, 1982: 3) Desigualdades Socioterritoriais e Comportamentos de Saúde, Lisboa, Edições Colibri, 2013, pp. 11-.

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Saúde, doença e morte encontram-se distribuídos de forma desigual em cada sociedade, sabendo-se, desde há muito, que essa desigualdade se associa à posição de cada indivíduo na estrutura social. No entanto, estas desigualdades não deixam de ser surpreendentes, uma vez que as francas melhorias ocorridas em fatores tão importantes para a saúde como a qualidade de vida das populações e a acessibilidade aos serviços de saúde não as eliminaram e, em alguns casos, tão-pouco as reduziram (Nogueira, 2007). No mundo atual, não obstante a evolução global alcançada pelos padrões de morbilidade e de mortalidade, a probabilidade de se viver uma vida longa e saudável mantém-se muito variável. Registam-se variações dramáticas na mortalidade entre países com diferentes níveis de desenvolvimento – uma menina nascida na Suécia viverá, em média, mais 43 anos do que outra nascida na Serra Leoa (WHO, 2008) – mas verificam-se também acentuadas variações dentro do mesmo país, inclusive nos chamados países desenvolvidos. Este capítulo, que se assume de carácter introdutório à presente obra, reflete sobre as desigualdades sociais em saúde, que continuam a ser gritantes e, em alguns dos casos, pouco reconhecidas (exempli gratia, o género), com os primeiros registos sobre a importância das estruturas sociais a surgirem, pelo menos, desde o século XII. Todavia é a partir do século XIX, que estas desigualdades se tornaram reconhecidas como determinantes no espectro de mortalidade e de morbilidade. Continua-se o mesmo centrando-se nas variáveis género, idade, nível de instrução e área de residência, que fazem cada vez mais sentido serem consideradas num mundo em que a globalização serviu para ressaltar a sua importância. Ao mesmo tempo, esta mesma globalização comprovou, de forma angustiante, que a evolução da sociedade tem trazido a má notícia de que as desigualdades, sejam de que tipo for, são muito difíceis de combater. Ainda assim, há que continuar a combatê-las e o começo inicia-se na reflexão e no denunciar da sua existência. 2. A importância das estruturas sociais 2.1 O género, a idade e o estatuto socioeconómico O sistemático padrão das desigualdades em saúde tem sido preferencialmente associado à posição de cada indivíduo na estrutura socioeconómica, dada a tendência quase universal de melhoria nos níveis de saúde com o aumento da posição na hierarquia social, seja esta medida pelo estatuto ocupacional (atividade profissional), nível de instrução, rendimento ou classe social, esta última geralmente definida por um, ou por uma combinação, dos três primeiros indicadores. Esta associação, sobejamente conhecida, é referida na literatura, pelo menos, desde o século XII (Loslier, 1997), mantendo-se uma das questões mais debatidas da atualidade.

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Na realidade, ainda que o conceito de “classe social” encerre um razoável grau de ambiguidade, que conduz a que não exista um consenso internacional na sua definição no seio da comunidade académica, normalmente considera-se que este comporta três dimensões: a cultural (medida sobretudo pelo nível de instrução), a material (onde sobressai o rendimento e as condições de trabalho) e a simbólica (onde se inclui o prestígio e as redes sociais) (Remoaldo e Machado, 2008). A variável “nível de instrução” constitui per se uma potente condicionante em saúde. Normalmente, esta variável articula-se com as variáveis “rendimento” e “atividade profissional” (Remoaldo e Machado, 2008), determinando-as, ou seja, é mais provável que uma pessoa com um mais baixo nível de instrução detenha um rendimento mensal baixo decorrente de uma atividade profissional menos qualificada. O contrário também pareceria passível de acontecer, mas a instalada crise económica e social, bastante visível em muitos países, estando entre eles Portugal, parece que deixou de ditar tal relação. Na realidade, atualmente podemos encontrar com alguma frequência indivíduos que possuem um elevado nível de instrução, mas que, principalmente no início da sua vida profissional, desempenham funções não coincidentes com a sua escolaridade. Não obstante, a escolaridade concede ao indivíduo uma maior capacidade para o acesso e descodificação das mensagens preventivas e para se questionarem tradições (e.g., mitos e crenças) que podem afetar a saúde (Remoaldo e Machado, 2008). Um dos exemplos que se podem avançar é o do acesso, por exemplo, à informação sobre modos de vida e hábitos saudáveis. Os indivíduos que detêm um maior nível de instrução terão, em princípio, uma maior capacidade para acederem a informação sobre modos de vida e comportamentos saudáveis (quer através de literatura, quer através da internet) e de a assimilar, detendo também, à partida, um maior controlo sobre a sua saúde e a sua vida. Resumindo, podem possuir um maior empoderamento (empowerment), o que lhes permite maior autonomia. Também, por exemplo, no domínio da saúde sexual e reprodutiva, o rendimento e/ou o nível de instrução são fatores importantes para a compreensão de fenómenos como a infertilidade (Remoaldo e Machado, 2008), o planeamento de uma gravidez, o tipo de acompanhamento que é realizado durante o período gestacional (Martins, 2007, 2011), a prevenção de infeções sexualmente transmissíveis ou a morbilidade e a mortalidade infantil. Os recursos económicos e as barreiras da distância devem jogar um papel considerável no domínio da infertilidade, pois são efectivamente os casais com um nível socioeconómico mais baixo que menos procuram os serviços de infertilidade (Remoaldo e Machado, 2008). Nos países mais desenvolvidos, o nível de instrução condiciona não só a capacidade de acesso aos cuidados de saúde e permite empreender uma relação mais igualitária com os profissionais de saúde, já que possibilita e

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potencia afinidades culturais com o discurso médico e também com as mensagens preventivas (Remoaldo e Machado, 2008). No século XIX, reconhecia-se a existência de variações na saúde em função da atividade profissional, utilizada como indicador da classe social (Macintyre, 1997). As taxas de mortalidade eram então menores em indivíduos de mais elevado estatuto socioeconómico, associação esta explicada pela maior possibilidade de evitar infeções, resultante das melhores condições alimentares e sanitárias das classes mais altas e da sua maior mobilidade, o que, em caso de epidemia, permitia minorar o risco de contágio (Adler, et al., 1993). Todavia, para além das variações socioeconómicas, observam-se outros padrões persistentes de desigualdades em saúde, que emergem em função da área de residência, da etnia, do estatuto marital e até do género e que, não sendo necessariamente independentes da classe social, não podem ser resumidas a esta (Elstad, 2000). Importa, pois, não somente a posição na estrutura socioeconómica, mas a posição em todas as estruturas sociais. Conclui-se, assim, que é restritiva a análise das desigualdades em saúde a partir unicamente da posição do indivíduo na estrutura socioeconómica, mas que também se deve considerar o seu posicionamento em todas as estruturas sociais. Olhar unicamente para a estratificação socioeconómica da sociedade, ignorando a hierarquia das restantes estruturas sociais, poderá conduzir a uma visão limitada das desigualdades em saúde, a uma compreensão parcial e incompleta das suas causas e a estratégias e políticas menos adequadas. Sendo assim, um olhar holístico sobre as desigualdades em saúde, ainda que torne a análise mais complexa, permite olhá-las de uma forma mais realista e perceber melhor o funcionamento da sociedade. Estudar as desigualdades sociais em saúde exige um olhar global sobre o funcionamento da sociedade, procurando destrinçar a teia intrincada das causas que estão na base dessas desigualdades. A tarefa não é fácil e será com certeza por isso que tem vindo a ocupar sociólogos, epidemiologistas, médicos, políticos, geógrafos, economistas, arquitetos e urbanistas sem que, mesmo assim, se tenha avançado o suficiente para as conseguir eliminar, ou até diminuir. O género, entendido como uma categoria social que define a construção social e cultural da feminilidade e da masculinidade (Swain, 1995; Pritchard, 2001; Chant e Mcllwaine, 2009) é outras das potentes determinantes sociais que durante muito tempo foi pouco considerada nas políticas de saúde. Assume-se como a principal forma de estratificação social e tem uma grande importância na hierarquia da sociedade em termos de saúde, poder e prestígio, gerando desigualdades na distribuição de recursos, benefícios e responsabilidades. A desigualdade de género provoca danos na saúde física e mental de milhões de raparigas e mulheres por todo o mundo, devido aos vários benefícios tangíveis concedidos aos homens por meio de recursos, poder, autori-

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dade e controlo (Sen, et al., 2007). Por causa da magnitude do problema, é premente tomar medidas para melhorar a equidade em saúde tendo em conta o género e para abordar os direitos das mulheres à saúde, constituindo medidas discriminativas para reduzir as desigualdades em saúde e assegurar o uso eficaz dos recursos de saúde. A consciencialização e implementação dos direitos humanos pode ser um mecanismo poderoso para motivar e mobilizar governos, pessoas e especialmente as mulheres (Sen, et al., 2007). O exercício da maternidade, que é um fenómeno biológico e que gera por si só desigualdades, sobretudo nos países em desenvolvimento, também é determinado pela posição que a mulher ocupa na hierarquia social do território onde habita. Isto significa que uma mulher que viva num território onde tenha baixo poder de decisão no seio da família e onde as crenças e as tradições se encontrem ainda bastante enraizadas, viverá, expectavelmente, menos tempo do que um homem e manifestará quadros de morbilidade que lhe condicionarão a vivência plena e saudável do menor número de anos a que está habilitada. Mais cedo irá ter filhos, o que poderá afetar a sua saúde e a da criança que venha a nascer, correndo mais riscos no decurso da gravidez, no parto e no pós-parto. Se aditarmos a esta situação a prevalência das mutilações genitais femininas, ainda vigentes em pelo menos 28 países africanos (com maior expressão na África Oriental), asiáticos e do Médio Oriente, que constituem uma mutilação irreversível, e que podem causar efeitos deletérios na saúde das mulheres a curto, médio e longo prazo, e até conduzir à sua morte, então conseguimos entender o que expusemos anteriormente. De acordo com a definição da Organização Mundial de Saúde (O.M.S.) a mutilação genital feminina (M.G.F.) inclui procedimentos que alteram intencionalmente ou causam danos nos órgãos genitais femininos para razões não-médicas (WHO, 2001). Esta prática refere-se ao corte do clítoris ou ao corte dos grandes e pequenos lábios (WHO, 2001) e, sofrendo a vítima (em caso de sobrevivência) inúmeras consequências físicas e psicológicas, desde um sofrimento atroz, um doloroso processo de cicatrização da ferida, infeções como consequência da utilização de utensílios contaminados, dores ao urinar e defecar, incontinência urinária, infertilidade, aumento de risco de contrair o vírus da SIDA e uma maior mortalidade infantil. Na sua forma mais severa, chamada infibulação, a abertura vaginal também é cosida, deixando apenas um pequeno buraco para a libertação de urina e de sangue menstrual. Não obstante, como consequência dos movimentos migratórios, esta prática alastrou-se a outras partes do mundo, como a Europa e a América do Norte e Portugal não é exceção, apesar de ser reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos de raparigas e mulheres (http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs241/en/ – acedido a 1/1/2013). A verdade é que se cifram entre 100 a 140 milhões de raparigas e mulheres que, em todo o mundo, vivem com as consequências da M.G.F. (WHO, 2001).

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Nas últimas décadas foi realizado um bom esforço à escala mundial no sentido da igualdade de género, nomeadamente, através do equacionar da questão da igualdade de género (meta 3, dentro dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM) e no sentido do empoderamento das mulheres, definidos pela Organização das Nações Unidas como metas a atingir até 2015. A igualdade de género passou, assim, desde o ano 2000 a ser considerada como a chave para alcançar os outros sete ODM, mas a verdade é que está longe de ser alcançada. Os ODM colocaram os direitos humanos e a pobreza humana no centro da política de desenvolvimento (United Nations Development Programme, 2005). Como mencionámos antes, as crenças e tradições são um potente determinante da saúde. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (2001) as tradições são os costumes, as crenças e os valores de uma comunidade, que governam e influenciam os comportamentos das pessoas. Constituem hábitos aprendidos que são passados de geração em geração e não são fáceis de mudar. As pessoas aderem a estes padrões de comportamento, acreditando que eles são as coisas certas para fazer. Quando se fala de mutilação genital feminina temos uma mistura de fatores culturais, religiosos e sociais que prevalecem no seio das famílias e comunidades. Atualmente, continuam as ser relevantes as desigualdades entre homens e mulheres em termos de esperança de vida à nascença. Por exemplo, enquanto no grupo dos países desenvolvidos, em 2012 a diferença entre os homens e as mulheres se cifrava em 6 anos (75 anos para os primeiros e 81 anos para os segundos), no grupo dos países menos desenvolvidos a diferença era de 4 anos, mas chegava a ser de apenas dois anos nos países mais pobres do grupo dos menos desenvolvidos (58 anos para os homens e 60 anos para as mulheres – Population Reference Bureau, 2012). De acordo com o Population Reference Bureau (2012), os países onde a esperança média de vida é superior nos homens são: Lesoto e Zimbabwe (48 anos para os homens versus 47 para as mulheres), Swaziland (49 anos versus 48 anos) e Botwsana (52 anos versus 50 anos), não ultrapassando os 50 anos no sexo feminino, enquanto em Macau e em Hong Kong atingem os 87 anos e no Japão os 86 anos. O exercício da maternidade é uma das explicações para esta desigualdade (agravada nalguns países pelas mutilações genitais femininas), assim como o mais baixo valor social das mulheres. Em Portugal, assim como na maioria dos países, as mulheres tendem a viver, em média, mais anos do que os seus congéneres do sexo masculino. Vários fatores podem ser avançados para esta diferença que chega a alcançar 6-7 anos. A menor representatividade das doenças do aparelho circulatório até à menopausa, o exercício de profissões, normalmente de menor risco para a saúde, o consumo mais moderado de tabaco e de álcool, a menor expressão de comportamentos de risco; a realização de uma condução menos agressiva e a relação mais próxima com os serviços de saúde (Oliveira e

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Mendes, 2010 citados por Costa e Remoaldo, 2012) estão no cerne da diferença. Na realidade, a relação mais próxima com os profissionais de saúde decorre da maior facilidade de comunicação com estes e do papel da mulher enquanto cuidadora da saúde dos filhos e ascendentes (Remoaldo e Machado, 2008; Nogueira e Remoaldo, 2010; Costa e Remoaldo, 2012). 3. Observando o palco das desigualdades sociais em saúde Um pouco por todo o mundo ocidental, têm sido reportadas profundas variações sociais nos padrões de vida e morte das populações. Estas variações têm sido objeto de alguma incompreensão e muita perplexidade, dando origem a uma vasta bibliografia científica e a extensos relatórios, que refletem o esforço que a comunidade científica e o poder político têm dirigido a esta temática. Refiram-se, como exemplo, O “Black Report” (elaborado entre o final da década de 70 e início dos anos 80), o relatório Acheson (na segunda metade da década de 90), o relatório da Comissão em Determinantes Sociais da Saúde da OMS, de 2008, cujo título “Closing the gap in a generation: health equity through action on the social determinants of Health” não dá azo a qualquer ambiguidade e o mais recente relatório sobre desigualdades em saúde intitulado “Fair society, healthy lives”, mais conhecido como “The Marmot Review” (em 2010), revelando o papel do conceituado Professor Michael Marmot na sua realização. No início deste último relatório, é destacada uma frase de Pablo Neruda: “Rise up with me against the organisation of misery” (Marmot, 2010: 2), epígrafe que sublinha a importância imputada à estratificação socioeconómica da sociedade na génese e manutenção das desigualdades em saúde. A hierarquia socioeconómica, o impacte da pobreza e da privação na saúde tem sido, desde sempre, a determinante social da saúde mais exaustivamente estudada. Em Inglaterra e Gales concluiu-se que a mortalidade aumenta de forma consistente com a diminuição do estatuto socioeconómico dos indivíduos (Sloggett e Joshi, 1994); nos EUA, na Califórnia, verificou-se que a população residente nos locais socioeconomicamente mais desfavorecidos de Alameda (Alameda County), apresenta um risco acrescido de morte de cerca de 53%, comparativamente aos residentes nos locais mais prósperos da mesma área (Yen e Kaplan, 1999); na Nova Zelândia, concluiu-se que os riscos para a saúde tendem a aumentar com o aumento dos níveis de privação socioeconómica, efeito mais forte em áreas urbanas e com previsíveis impactos negativos na saúde (Hales, et al., 2003); em Amesterdão, a população de menor estatuto socioeconómico enfrenta um risco aumentado de ser obesa (20%), de sofrer de doenças incapacitantes de longa duração (30%) e de fumar (23%) (Reijneveld, 1988); no Japão, há suportes científicos que comprovam a relação entre baixo estatuto socioeconómico e pior saúde,

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concluindo-se pela morte precoce dos indivíduos residentes nas áreas mais carenciadas (Fukuda, et al., 2004); na Suécia, verificou-se uma estreita associação positiva entre a taxa de incidência da doença cardíaca coronária e o nível de privação das áreas de residência (Sundquist, et al., 2004); em Glasgow, na Escócia, verificou-se que os residentes em áreas de maior privação têm uma esperança de vida cerca de 12 anos menor do que aqueles que residem nas áreas mais prósperas (Marmot, 2006). Para a mesma cidade, Navarro refere que a diferença na esperança de vida entre um indivíduo do topo e outro da base da hierarquia social – um operário não qualificado e um empresário no escalão mais elevado de rendimentos – é de 28 anos (Navarro, 2009). Em Portugal, ainda nos anos oitenta, Santos Lucas (1987) revelou a existência de marcadas diferenças na mortalidade e na morbilidade em função da ocupação. Na década seguinte, Giraldes verificou que os indivíduos com profissões manuais, e de baixo estatuto socioeconómico, apresentam valores de mortalidade que ultrapassam os registados nas profissões de maior estatuto (quadros médios e superiores), embora este padrão apresentasse algumas exceções (Giraldes, 1996). À semelhança de investigações desenvolvidas noutros países, diversos estudos procuraram associar a privação sociomaterial dos territórios ao nível de saúde das suas populações. Para a Área Metropolitana de Lisboa, concluiu-se pela existência de uma forte associação entre um indicador de privação múltipla e diferentes resultados em saúde – mortalidade prematura e estado de saúde auto-avaliado (Nogueira, 2007, 2008). No caso da mortalidade prematura, verificou-se que a relação é exaustiva, sendo pois transversal a toda a hierarquia social. Para a Área Metropolitana do Porto, Nogueira e Remoaldo (2009) apontam também a estreita associação entre um indicador de privação socioeconómica das áreas de residência e a mortalidade prematura da população. Como se referiu, para além do estatuto socioeconómico, existem outros fatores de estratificação social geradores de hierarquias sociais, nas quais a posição é também relevante para a saúde. O sexo e a idade, por exemplo, sendo fatores biológicos, têm um impacte previsível e inexorável na saúde. Todavia, idade e sexo são também categorias sociais. Adolescência, meia-idade e velhice são categorias que definem situações sociais particulares, nas quais os indivíduos são influenciados por determinado tipo de normas e expetativas; as diferenças em saúde entre os sexos podem refletir diferenças puramente biológicas, mas as circunstâncias sociais inerentes às variações em saúde observadas entre os sexos são evidentes. Diferentes papéis sociais, diferentes posições no mercado de trabalho e nos níveis de participação política (Kawachi, et al., 1999; Stafford, 2005; Nogueira, 2009a, 2009b), são apenas algumas das diferenças de género com impacte nas desigualdades em saúde. Como foi referido anteriormente, entende-se que a expressão sexo diz respeito sobretudo a diferenças biológicas, enquanto a palavra género abran-

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ge os impactes sociais da diferença biológica. Desta forma, podemos afirmar que, enquanto o conceito de “género” se reporta a papéis socialmente construídos de homens e mulheres, o conceito de “sexo” circunscreve-se a características biológicas e físicas (Chant e Mcllwaine, 2009). De modo análogo, as diferenças em saúde entre diferentes etnias podem dever-se a fatores biológicos, mas refletem também diferentes posições sociais, das quais resultam diferenças culturais e comportamentais, situações de discriminação e segregação (por exemplo, no mercado de trabalho e de habitação – Donovan, 1984) e diferentes acessos a serviços essenciais, como os se saúde (Graham, 2000) 3.1. Os mecanismos que conduzem às desigualdades socias em saúde Mas afinal porque existem, e persistem, as desigualdades sociais em saúde? Esta é uma questão que tem dominado a investigação científica nesta temática, uma vez que não será possível debelar estas desigualdades sem saber que fatores ou mecanismos as produzem e mantêm. Embora esta questão permaneça em debate, e novas hipóteses estejam a ser colocadas, sugerimos aqui uma categorização das explicações em dois grupos, que correspondem a dois mecanismos major que estabelecem a conexão entre estrutura social e resultados/desigualdades em saúde: o material e o psicossocial (Brunner e Marmot, 2006; Marmot, 2006). Como se depreende do texto anterior, a explicação primária, e uma das mais comuns e consensuais, atribui a causa das desigualdades sociais em saúde à pobreza, num sentido mais lato, à privação material, sendo referida como a explicação materialista ou estruturalista (Diez-Rouz, et al., 2000; Macintyre, et al., 2005; Sundquist, et al., 2004). As condições materiais individuais, possibilitando ou dificultando o acesso a recursos necessários ao desenvolvimento de uma vida quotidiana saudável, como por exemplo, alimentos saudáveis, habitação adequada e serviços de saúde, influenciam a saúde. Também as áreas de residência e os locais de trabalho, largamente determinados pela posição social, protegem ou expõem os indivíduos a um largo leque de riscos para a saúde, relacionados com a qualidade do ar e da água, nível de ruídos, horário de trabalho e proteção social, disponibilidade de locais de lazer e desporto, entre muitos outros, condições estas criadas por um processo macrossocial que não é controlável pelos indivíduos. Não obstante a relevância da explicação materialista, vários autores argumentam a necessidade de considerar um outro conjunto de fatores, os psicossociais, como mecanismo explicativo na génese das desigualdades sociais em saúde. Segundo Wilkinson (2005), para além do reduzido acesso aos recursos materiais e às oportunidades de vida, a privação relativa, a desigualdade social e a perceção das iniquidades, reduzem os níveis de

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capital social e de coesão social, corroem e corrompem as relações sociais, aumentam o isolamento social, os conflitos, a falta de controlo sobre os acontecimentos da vida, os níveis de stress e depressão, os sentimentos de insegurança, entre outros riscos sociais que têm sido associados à degradação da saúde física e mental (Cohen, et al., 2006; Sundquist e Yang, 2007; Yip, et al., 2007; Stafford, et al., 2007). A abordagem psicossocial enfatiza também as respostas biológicas, neuroendócrinas e imunológicas que são produzidas em situação de stress crónico, e que afetam a saúde física e mental (Brunner e Marmot, 2006), de que é exemplo a produção de cortisol, uma hormona que interfere em múltiplos mecanismos fisiológicos, inclusive no regulador do apetite. Referidas as abordagens materialista e psicossocial enquanto modelos explicativos das desigualdades sociais em saúde, importa ainda realçar o papel dos comportamentos e estilos de vida na génese e manutenção dessas desigualdades. O impacte dos comportamentos na saúde é de tal modo relevante que alguns autores fazem referência a uma abordagem comportamental das desigualdades em saúde (Elstad, 2000). O consumo de tabaco, uma dieta desequilibrada, a falta de atividade física, entre outros, são comportamentos que podem produzir pior saúde. Porém, é necessário procurar a causa dos comportamentos e entender os estilos de vida como o resultado de um conjunto de opções, geradoras de atitudes e padrões comportamentais que, promovendo a identidade social dos indivíduos, são económica, histórica, familiar, política e culturalmente contextualizados (Lynch, et al., 1997). As opções individuais não são auto e livremente determinadas, mas antes o resultado de um vasto conjunto de fatores psicológicos, cognitivos e materiais, como a perceção, a motivação, a informação, o conhecimento, a acessibilidade, a disponibilidade, o preço/rendimento, entre muitos outros. Indivíduos de baixo estatuto socioeconómico limitam o consumo de alimentos saudáveis, como frutos e legumes, mais caros que os restantes alimentos; restringem o acesso a instalações desportivas pagas e têm geralmente menos tempo livre para dedicar ao desporto e ao lazer; são menos informados e possuem menos capacidade de procurar informação sobre os fatores que promovem a saúde; acresce que as condições stressantes e perigosas sob as quais se desenrolam os seus empregos, e que muitas vezes caracterizam também as suas áreas de residência, são geradoras de ansiedade, stress e depressão. Como exemplo, refira-se o gradiente social da prevalência de obesidade, patologia que aumenta com a diminuição do estatuto social. Brunner e Marmot (2006) sugerem que este gradiente pode ser explicado por fatores materiais, como a dificuldade em comprar alimentos saudáveis e praticar exercício físico, mas também por um conjunto de fatores psicossociais, que conduzem a respostas psicobiológicas, envolvendo o sistema nervoso simpático e o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, como baixa de autoestima e de vontade em participar em atividades físicas formais e tendência

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acrescida de comer “para confortar”. Além disso, é provável que a depressão, a ansiedade e o isolamento social diminuam os níveis de atividade física informal, por exemplo, a atividade física desenvolvida informalmente, muitas vezes relacionada com as interações e os contatos sociais. 3.2. A geografia das desigualdades sociais em saúde As desigualdades sociais em saúde observam-se, muitas vezes, numa base espacial, dada a singularidade e expressividade do seu padrão geográfico. As variações espaciais da saúde sublinham a complexidade causal das desigualdades em saúde, que resultam de uma combinação intricada de diferentes fatores, atuantes a distintos níveis, individual e contextual, e ainda da sua interação. O estatuto socioeconómico, o género, a etnia, os comportamentos e estilos de vida, influenciam a saúde individual. Mas o indivíduo não existe fora de um espaço e não pode ser entendido senão por referência ao(s) seu(s) espaço(s). Não se trata aqui de um espaço abstrato, geométrico, mas de um espaço vivido, que cada um de nós identifica e que lhe dá identidade – o lugar. Os lugares, espaços concretos da existência humana, são espaços de carácter distintivo (Nogueira, 2008), caracterizados, em parte, pelos indivíduos que os habitam e experienciam. Sendo assim, uma área caracterizada por possuir uma população de baixa condição social apresentará, face a outra que contenha uma população de alto estatuto socioeconómico, piores níveis de saúde. A concentração e segregação geográfica da riqueza e da pobreza traduz-se, pois, em variações geográficas da saúde. Trata-se de um efeito designado na literatura como “efeito composicional”, já que resulta da agregação de atributos observados a nível individual (Cummin, et al., 2005). Porém, para além das características da sua população, importam ainda as características inerentes aos próprios lugares, já que a saúde é também influenciada pelos atributos do contexto, decorrentes do seu ambiente físico, social, económico, cultural e histórico. Os resultados em saúde dependem não só de quem se é, mas também do lugar onde se vive (Nogueira, 2008). Uma área pobre não é apenas uma área com população maioritariamente pobre, de baixos rendimentos, baixo nível de instrução e profissões de risco para a saúde. É, além disso, e talvez mais do que isso, uma área onde se acumulam riscos para a saúde e onde falham as oportunidades que permitem desenvolver uma vida quotidiana saudável, melhorar a qualidade de vida e promover a saúde (Nogueira, 2009b). Ou seja, é uma área que cria e perpetua iniquidades, sociais e de saúde. Os fatores contextuais, como a qualidade do ambiente físico, a estética, o ambiente económico e social (englobando-se neste a organização social, a coesão e o capital social, a reputação e a segurança da área) têm um impacte

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comprovado na saúde. Também têm um importante impacte a estrutura de oportunidades locais, referindo-se esta ao conjunto diversificado de características locais e comunitárias, como os serviços locais existentes (de saúde, educação, recreação e sociais, entre outros) até à qualidade e disponibilidade de habitação, disponibilidade de alimentos saudáveis e de transporte público (Raphael e outros, 2001). Por último, temos que aditar a qualidade, a disponibilidade e a acessibilidade a infraestruturas várias (desportivas, de transporte ativo, como passeios e ciclovias, e outras), a oferta adequada de bens essenciais, proporcionada por comércio local diversificado e de qualidade. Macintyre, et al. (2002), num estudo desenvolvido em Glasgow, apontam cinco características locais relacionadas com a saúde, destacando a disponibilidade de ambientes saudáveis, tanto na habitação, como no trabalho e no lazer, o acesso a bens e a comodidades, como por exemplo, a disponibilidade de alimentos saudáveis e o acesso a estruturas e equipamentos desportivos e ainda os serviços, públicos ou privados, providenciados para suporte da vivência quotidiana da população, de que são exemplo os serviços de educação, saúde, limpeza e iluminação das ruas, policiamento e transportes públicos. Em Portugal, para a Área Metropolitana de Lisboa, vários estudos comprovam o impacte dos fatores contextuais nos níveis de saúde da população. O capital social, a coesão social, a disponibilidade de serviços de saúde, a acessibilidade ao transporte público, a segurança, avaliada pela ocorrência de crime e a privação sociomaterial demonstraram ter uma influência significativa no estado de saúde da população residente (Nogueira, 2008, 2009a, 2009b, 2010). A geografia das determinantes contextuais da saúde evidenciou territórios caracterizados pela sua capacidade em promover saúde – territórios de oportunidade – em oposição a territórios que a degradam – territórios de vulnerabilidade e risco. Acresce que os dois níveis de desvantagem aqui referenciados (individual e contextual) combinam-se de forma interativa e sinergética para produzir desigualdades em saúde. No seu relatório de 2008, a Comissão da Organização Mundial de Saúde para as Determinantes Sociais da Saúde refere-se à emergência de “ambientes tóxicos” em espaços marcados pelo declínio socioeconómico, considerando-os responsáveis pelos baixos níveis de saúde das populações mais pobres e pelas crescentes iniquidades em saúde (WHO, 2008). Alguns autores referem-se à existência de um processo de sobreposição de riscos, que atua como um círculo vicioso de empobrecimento, ou seja, um lugar ocupado por uma população maioritariamente pobre e carenciada vai perdendo a sua capacidade em atrair residentes de maior poder económico, retendo e atraindo apenas aqueles que são mais vulneráveis e que possuem mais constrangimentos económicos. As habitações e espaços públicos tornam-se progressivamente degradados dados os escassos recursos financeiros da sua população e a sua vontade em sair da

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área. Por outro lado, o investimento em novos comércios e serviços diminui e é possível o encerramento de alguns dos existentes. É provável que se verifique um aumento da violência e da insegurança, com maior ocorrência de crimes, diminuindo as interações e os contatos sociais, bem como os sentimentos de identidade, pertença e a participação comunitária (Wilkinson, 2005; Nogueira, 2010). Deste processo de degradação social e estrutural emergem territórios de risco, onde a escassez de recursos se sobrepõe à vulnerabilidade individual, intensificando-a. A geografia das desigualdades sociais em saúde sublinha a importância da estrutura espacial nos resultados em saúde, ela própria determinada pelo conjunto de fatores geográficos, sociais, políticos, económicos, culturais e históricos que, em interação, constituem os lugares. Se a saúde é uma produção social, o lugar assume-se então como um fator social crítico, devendo ser analisado no estudo das variações e desigualdades sociais em saúde. 4. Conclusão As variações em saúde não são um problema que se possa circunscrever a um tempo e a um espaço. São, antes, um problema persistente e transversal a todas as sociedades, que tem vindo a ganhar protagonismo, talvez porque desafiem as melhorias conseguidas ao nível da qualidade de vida da população e os esforços económicos, sociais e políticos que têm sido feitos para as eliminar. Compreender as causas e os mecanismos que perpetuam estas variações é atribuir a devida importância às determinantes individuais, como a idade e o género. Homens e mulheres, em diferentes idades, têm diferentes papéis sociais, diferentes comportamentos e diferentes perceções que, interagindo, influenciam desiguais experiências de saúde. Também a estruturação socioeconómica da sociedade, influenciando tantos e tão diversos aspetos das condições de vida, como a possibilidade de aquisição de bens e serviços, as condições de trabalho e de habitação, a estabilidade no emprego, a exposição a riscos de infeções e de acidentes e a capacidade de adquirir novos conhecimentos, entre outros, é uma determinante crucial das variações e desigualdades em saúde. Todavia, compreender as variações e as desigualdades em saúde é ainda reconhecer que cada indivíduo se insere num contexto que, em parte, o determina e é por ele determinado. Cada lugar deve ser entendido como síntese de um conjunto de fatores sociais, psicológicos e materiais que influenciam a saúde. Especialistas da saúde podem e devem procurar na análise e nas ferramentas geográficas algumas das explicações para as desigualdades em saúde, atribuindo relevância a algo que o geógrafo há muito tempo sabe bem. Estamos a referir-nos à cultura, que não é apenas um software operando na cabeça dos indivíduos. Ela está escrita na paisagem,

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forma os territórios e, por isso, a paisagem e os territórios, reflexivamente, afetam as pessoas. As desigualdades em saúde são, pois, de causalidade complexa, exigindo uma abordagem holística aos mecanismos que as geram e mantêm. 5. Referências ADLER, N. E. et al. (1993), “Socioeconomic Inequalities in Health – No Easy Solution”, J. A. M. A, 269: 3140-3145. BRUNNER, E.; MARMOT, M. (2006), “Social organization, stress, and health”, Marmot, M.; Wilkinson, R. (eds), V, Oxford-New York, Oxford University Press: 6-30. CHANT, S.; MCLLWAINE, C. (2009), Geographies of development in the 21st century: an introduction to the Global South, Cheltenham, Edward Elgar Publishing Limited. COHEN, D. et al. (2006), “Collective efficacy and obesity: the potential influence of social factors on health”, Social Science & Medicine 62: 769-778. COSTA, T.; REMOALDO, P.C. (2012), “Portugal, um país de cabelos brancos: o envelhecimento da população portuguesa e as suas implicações no ordenamento do território”, Aurora-Geography Journal, 4, 29 p. (disponível on-line). CUMMINS, S. et al. (2005), “Measuring neighbourhood social and material context: generation and interpretation of ecological data from routine and non-routine sources”, Health & Place, 11: 249-260. DIEZ-ROUX, A.; LINK, B.; NORTHRIDGE, M. (2000), “A multilevel analysis of income inequality and cardiovascular disease risk factors”, Social Science & Medicine, 50: 373-687. DONOVAN, J. (1984), “Ethnicity and Health: A Research Review”, Social Science & Medicine, 19: 663-670. ELSTAD, J. (2000), Social inequalities in health and their explanations. Oslo, Norwegian Social Research – NOVA. ISBN 82-7894-096-7. FREUND, P. (1982), The civilized body. Social domination, control, and health. Filadéfia: Temple University Press. FUKUDA, Y.; NAKAMURA, K.; TAKANO, T. (2004), “Municipal socioeconomic status and mortality in Japan: sex and age differences, and trends in 1973-1998”, Social Science & Medicine, 59: 2435-2445. GIRALDES, M. R. (1996), Desigualdades Socioeconómicas e seu Impacte na Saúde. Lisboa, Editorial Estampa. GRAHAM, H. (2000), “Understanding Health Inequalities. Introduction”, GRAHAM, H. (ed.), Understanding Health Inequalities, Buckingham, Philadelphia, Open University Press: 3-23. HALES, S. et al. (2003), “Social deprivation and the public health risks of community drinking water supplies in New Zealand”, J Epidemiol Community Health, 57: 581-583. KAWACHI, I. et al. (1999), “Women’s Status and the Health of Women and Men. A View from the States”, Social Science & Medicine, 48: 21-32. LAWSON, B. (2001), The Language of Space. Oxford, Architectural Press.

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PARTE II EDUCAÇÃO, PROMOÇÃO E COMPORTAMENTOS EM SAÚDE

CAPÍTULO 2 PROMOÇÃO DA SAÚDE A PARTIR DE CONTEXTOS TERRITORIAIS Samuel do Carmo Lima Instituto de Geografia Universidade Federal de Uberlândia

Resumo Este texto apresenta uma discussão sobre as ações e práticas de saúde numa visão que contesta o modelo biomédico, hospitalocêntrico e centrado em ações curativas e no indivíduo. Os argumentos reforçam a ideia de que a saúde é determinada por contextos territoriais, isto é, onde moramos pode dizer mais sobre a nossa saúde do que quem somos. Portanto, estratégias de promoção da saúde devem buscar mudança de contextos de vida e a contrução de territórios saudáveis, o que, necessariamente depende de uma reorganização das ações e das práticas nas unidades locais de saúde, para que se considere mais que os indivíduos, também a população e o território. 1. Introdução Budin dizia em seu livro Essai de Geographie Médicale, em 1843, “o homem não nasce, vive, sofre e morre de maneira idêntica nas várias partes do mundo” (Pessoa, 1978: 104). O que Budin queria afirmar é que a influência dos contextos ambientais na saúde varia de lugar para lugar, não somente pela posição social, económica e cultural do indivíduo e das populações, mas também, pelas condições físico-biológicas e climáticas. Seguindo essa mesma ideia, Kawachi e Berkman (2003) dizem que onde cada indivíduo reside é importante para a sua saúde, para além de quem é cada indivíduo. Desigualdades Socioterritoriais e Comportamentos de Saúde, Lisboa, Edições Colibri, 2013, pp. 31-46.

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Cada lugar representa contextos diversos, resultado da acumulação de situações históricas, ambientais, sociais, que promovem condições particulares para a produção de saúde e doença. “Se a doença é uma manifestação do indivíduo, a situação de saúde é uma manifestação do lugar” (Barcellos et al., 2002: 130). Disto se depreende que a saúde depende de quem se é e de onde se vive (Pickett e Pearl, 2001; Nogueira 2008; Proietti et al., 2008). Não se trata de buscar a causa das doenças, porque a maioria das doenças são multicausadas. Causas são o que produz a doença e, na maioria das vezes, não se podem eliminar as causas enquanto permanece o contexto. Contexto são as condições objetivas e subjetivas da vida de um lugar, que podem influenciar ou condicionar de forma direta ou indireta saúde dos indivíduos e das populações. “A causa pode ser removida, pode desaparecer pela adoção, por exemplo, de medidas técnicas, enquanto o contexto é mais perene, para modificá-lo é necessária a intervenção de processos sociais e culturais mais complexos, e não meramente pontuais” (Augusto, 2003: 182). Portanto, as ações de saúde devem, assim, ser guiadas pelas especificidades dos contextos dos territórios da vida cotidiana, nos diversos lugares onde a vida acontece. Para iniciar este breve argumento sobre a construção de territórios saudáveis, onde a vida humana pode encontrar qualidade de vida e justiça social, podemos afirmar que o território é um recorte espacial, social e historicamente construído, em relações conflituosas, e não mero receptáculo ou palco das ações humanas. O território, sendo um recorte espacial pressupõe uma dada escala que contém em si mesmo uma dinâmica multiescalar. As condições de saúde são territorializadas, sendo a escala do cotidiano a escala privilegiada de análise e intervenção. Entretanto, um território não se explica sem os nexos que possui com os processos da realidade na escala local e com processos que se dão em outras escalas, meso e macrorregionais, nacionais e internacionais. Monken e Barcellos (2005: 904) concordam que “o reconhecimento do território na escala do cotidiano não exclui a identificação de relações de verticalidade com outros níveis de decisão que podem influenciar sobremaneira a vida social local”. Lacoste (1993), também concorda com a necessidade de análises multiescalares, mas diz que, antes, é necessário encontrar a escala adequada para a observação dos fenómenos que se quer estudar, que em outra escala não se manifestariam. 2. O Território da Saúde Territorializar a saúde é perceber os problemas e as situações de saúde no território, por meio de um exercício de elaboração investigativa; é ordenar o território de acordo com as necessidades e possibilidades das práticas

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de intervenção, de modo que o território passa a ser um elemento fundamental para o planejamento das práticas e ações de saúde (Barcellos et al., 2002). Brandão (2007: 58), ao contrário, apresenta uma crítica, dizendo que a territorialização das intervenções públicas não pode ser uma panaceia para todos os problemas do desenvolvimento; e diz ainda: “Na verdade, parece existir uma opção por substituir o Estado (‘que se foi’) por uma nova condensação de forças sociais e políticas (abstrata) que passa a ser chamada de território”. Na verdade, a territorialização não substitui o Estado, que continua tendo que responder por suas responsabilidades constitucionais, mas pode ser um instrumento para a implementação de políticas públicas, que tenham referências claras no território. Efetivamente, isso ocorre com as políticas públicas de saúde no Brasil e com o Sistema Único de Saúde (SUS) que têm diretrizes muito claras de territorialização e regionalização, que são pressupostos da organização dos processos de trabalho e das práticas de saúde. Por outra parte, deve-se considerar que o Estado não pode ser visto como a única força capaz de intervir no território para atenuar os efeitos da ordem económica selvagem das corporações económicas. Há dinâmicas sociais e culturais que se estabelecem nos lugares que não estão contidas por determinações económicas. 2.1. Da saúde do território ao território da saúde O que se quer dizer quando se fala de saúde ambiental? Pode ser a saúde do ambiente, e sendo assim, podemos relacionar isso à saúde de plantas e animais e à saúde dos ecossistemas. Neste caso, saúde ambiental é a expressão da qualidade do ambiente que pode afetar a saúde humana. Muitos partem da ideia de que saúde ambiental refere-se à saúde do ambiente, pondo o foco no ambiente, considerando a degradação ambiental e a poluição. É verdade que a saúde dos ecossistemas e a degradação ambiental afeta a saúde humana, mas, este entendimento vem de um conceito restrito de ambiente, como meio físico-biológico-climático, que separa completamente o homem da natureza. A WHO (2003 1) diz que saúde ambiental “(…) comprises of those aspects of human health, including quality of life, that are determined by physical, chemical, biological, social, and psychosocial factors in the environment. It also refers to the theory and practice of assessing, correcting, controlling, and preventing those factors in the environment that can potentially affect adversely the health of present and future generations.” 1

http://www.ino.searo.who.int/en/Section4/Section14.htm

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Entretanto, outra compreensão de saúde ambiental, mais ampla e abrangente, que põe o foco na saúde humana e entende que o ambiente é mais que a dimensão física ou “natural”, contendo ainda as dimensões socioeconómica, política, psicológica e cultural, e relaciona-se ao lugar em que as pessoas vivem: o lugar em que moram, trabalham; os lugares do lazer e também o trajeto entre esses lugares. Neste sentido, saúde ambiental pode referir-se ao ambiente da saúde, querendo dizer que a saúde dos indivíduos e das populações é afetada por um contexto de fatores ambientais. O ambiente da saúde é ao mesmo tempo físico e social, um espaço de relações, no qual se manifesta a vida cotidiana dos indivíduos e das populações. O lugar é o resultado de uma acumulação de situações históricas, ambientais, sociais que promovem condições particulares para a produção da saúde e das doenças (Monken e Barcellos, 2005). Existe uma concepção de saúde ambiental fortemente baseada no modelo da História Natural da Doença que critica o modelo monocausal, a partir da ideia da tríade causal. Com a tríade causal, busca-se a causa das doenças, principalmente, as doenças infecciosas e parasitárias a partir de uma relação entre o patógeno, o vetor e o ambiente. Ampliou-se o foco da visão para olhar o meio ambiente, buscando compreender pela ecologia dos vetores os fatores determinantes da causa, com uma visão finalista. Mas, ainda, busca-se a causa. Os aspectos biológicos prevalecem e o modelo biomédico continua dominando o modelo e as ações da vigilância e controle dos riscos ambientais para a saúde (Augusto, 2003). A visão biomédica hegemónica da relação saúde-ambiente é limitada e considera o ambiente apenas como uma das variáveis a serem consideradas no aparecimento das enfermidades. Neste caso, ambiente e saúde são coisas separadas e, eventualmente, a primeira podendo exercer influência sobre a segunda; ou seja, é uma visão tecnológica-tecnocrática para intervir sobre o meio ambiente, por exemplo, controlando a poluição (Minayo, 2002). Não há como negar que a saúde ambiental se trata de um campo transdisciplinar que envolve as disciplinas da área da saúde, das áreas ecológicas e da área das ciências sociais, mas a relação entre saúde e ambiente, focada apenas nos agravos à saúde devido a fatores físicos, químicos e biológicos, mais diretamente relacionados com a poluição, tem uma clara filiação com o modelo biomédico de saúde, quando atribuiu ao ambiente um caráter eminentemente ecológico mecanicista no processo saúde-doença (Gouveia, 1999). Para superar essas visões reducionistas, é preciso considerar a saúde ambiental numa relação saúde-ambiente a partir de um modelo integrador, ecossistémico e territorial. Numa concepção que superanda o paradigma cartesiano, mecanicista e fragmentário por uma concepção holística e integrada, ambiente é mais que o meio físico-biológico-climático (Capra, 1982).

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Saúde ambiental é mais do que saúde do meio ambiente, é também o meio socioeconómico, cultural e psicológico, é o ambiente que importa à saúde humana, tendo em vista que a saúde é resultado da produção social – determinantes sociais da saúde, equivale a dizer, é o lugar em que as pessoas vivem: o lugar em que moram e trabalham; o lugar do lazer e também o trajeto entre esses lugares. Desse modo, não é possível pensar em promoção da saúde sem pensar em saúde ambiental. Os paradigmas de saúde estão em disputa nas ações de saúde, nas instituições e organizações e, também, nas definições teóricas e conceitos dos campos de conhecimento que têm a saúde como objeto. Como não poderia ser diferente, a saúde ambiental, que é um campo relativamente novo, tem rumos divergentes a depender da filiação que faz com os modelos de saúde. Esta saúde ambiental mais ampla, que se relaciona ao lugar de vida das pessoas é fundamental para ações de promoção da saúde. Poderíamos dizer, sem risco de errar, que não é possível fazer promoção da saúde sem promover a saúde ambiental. 2.2. O território da vida cotidiana Nogueira (2008), citando Tornnelier (1997) diz: “O geógrafo deve mudar de escala em função do problema proposto, como o fotógrafo muda de objetiva”. Por isso devemos perguntar: qual é a escala espacial que corresponde às condições de vida e situação de saúde dos indivíduos e das populações humanas? Monken e Barcellos (2005: 901) “a escala geográfica operativa para a territorialização emerge, principalmente, dos espaços da vida cotidiana, compreendendo desde o domicílio (dos programas de saúde da família) a áreas de abrangência (de unidades de saúde) e territórios comunitários (dos distritos sanitários e municípios)”. É na escala da vida cotidiana que se manifestam os determinantes sociais da saúde, porque a saúde é socialmente produzida. É verdade que o corpo biológico manifesta saúde e doença, mas é verdade também que a saúde é produzida socialmente e grande parte das doenças é originada por fatores externos ao organismo. Isto representa uma crítica fundamental ao modelo biomédico de saúde, hegemónico, que prefere não olhar para além do corpo físico, para ver o lugar onde vive o indivíduo. O território é a expressão do contexto de vida dos sujeitos e grupos sociais, o espaço organizado das relações sociais que produzem saúde e doença. Sendo assim, para a realização de ações e práticas de saúde, é preciso considerar o território na escala da vida cotidiana. Diagnósticos de situação de saúde para expressar as relações complexas entre os indivíduos e os grupos sociais devem considerar o território, com todos os significados e conteúdos históricos, socioeconómicos, culturais e epidemiológicos que possui.

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Considera-se, então, o indivíduo como sujeito integrado na família e no domicílio e, ao mesmo tempo, considera-se o lugar, representado nas condições coletivas da vizinhança. O lugar delimitado por um contexto de saúde é um território de saúde (Monken e Barcellos, 2005). Mais uma vez, não é suficiente conhecer os eventos relativos à saúde que afetam os indivíduos, é preciso conhecer os contextos ambientais do lugar que os produzem, para promover estratégias consequentes e eficazes. A partir dessas definições, precisamos discutir o lugar como uma unidade territorial fundamental que representa o indivíduo e a vizinhança no contexto da vida cotidiana, cujos limites podem ser o setor censitário, o bairro, a área de abrangência de uma unidade de saúde, ou a área da “vizinhança percebida” pelos moradores do lugar (Pickett e Pearl, 2001; Proietti et al., 2008). A escolha do setor censitário, ou da área de uma unidade administrativa como unidade territorial da pesquisa pode ser útil pela possibilidade da obtenção de dados e informações já disponíveis em instituições públicas, em diversos bancos de dados (Proietti et al., 2008). Como, então, apreender esses contextos ambientais do processo saúde-doença. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que os indicadores individuais de saúde podem ser insuficientes para compreender os eventos relativos à saúde, que resultam de uma complexa relação entre a situação dos indivíduos, da população (dados agregados) e do território, sendo necessária uma abordagem multinível. Proietti et al. (2008) propõem uma abordagem com níveis de complexidade hierarquicamente estabelecidos: individual, agregado e contextual. No nível individual apreende-se a situação dos indivíduos, como idade, género, ocupação, escolaridade, renda (variáveis individuais); as variáveis que são propriedades do agregado caracterizam a população, nas suas condições de vida (variáveis de composição) e as variáveis que caracterizam os atributos físicos e sociais do lugar, que não resultam da agregação de características dos indivíduos (variáveis integrais). Na linguagem geográfica, chamaríamos essa abordagem de espacial multiescalar que permite conhecer a realidade dos indivíduos, mas também os contextos de vida cotidiana do lugar. Iniciando-se pela escala da moradia, identificam-se as variáveis individuais. Na escala do lugar, o bairro, vizinhança ou outro recorte espacial que permita apreender os contextos da vida cotidiana dos indivíduos, identificam-se as variáveis de composição e as variáveis integrais. Numa terceira escala de abordagem, ainda, devemos considerar as conjunturas económicas, sociais, culturais e ambientais e as políticas públicas que afetam o lugar. Resta dizer que estamos tratando de identificar os contextos da vida cotidiana como contextos de saúde, a partir das condições sociais e culturais do lugar onde se vive, para além das condições socioeconómicas dos indivíduos.

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Os estudos sobre o “efeito de vizinhança” tentam reconhecer como o lugar pode afetar a saúde e o bem estar dos indivíduos, identificando-se as condições materiais e sociais como, por exemplo, rede de serviços de saúde e assistência social, áreas de recreação e lazer, infraestrura urbana de vias públicas e saneamento ambiental, níveis de poluição, agregação social e de redes sociais de solidariedade, possibilidades de emprego e renda, violência e criminalidade (Phelan et al., 2010). Na Figura 1 apresenta-se um modelo esquemático de investigação de um bairro ou uma vizinhança, para identificar contextos territoriais que podem ajudar a estabelecer políticas públicas e estratégias de promoção da saúde. Neste esquema apresentam-se duas escalas de trabalho. Figura 1 – Esquema metodológico para o estudo de contextos territoriais

De um lado, a moradia identifica os dados dos indivíduos (variáveis individuais) e os dados agregados, que representam o conjunto dos indivíduos, a população do lugar, obtida a partir do tratamento estatístico das variáveis individuais (variáveis de composição). As informações podem ser obtidas a partir das bases de dados oficiais e de inquéritos socioeconómicos e epidemiológicos (quantitativas), assim como, observações e entrevistas para conhecer as histórias de vida dos sujeitos (qualitativas). Do outro lado, o território nos apresenta dados e informações (variáveis integrais) que não se relacionam diretamente aos indivíduos nem à popula-

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ção, mas ao lugar que apresenta características físicas e interações sociais que não podem ser obtidas por meio de inquéritos populacionais, e seriam obtidas com “observação social sistemática” (Phelan et al., 2010). Um estudo interessante que demonstra como utilizar esta observação social sistemática para caracterizar o território foi realizado por Cohen et al. (2000) que investigaram a associação entre incidência de gonorreia, comportamento sexual de alto risco e características físicas do local de vizinhança como medida da desordem social, num bairro de Nova Orleans (EUA). Foram observados 55 quarteirões, analisando-se as condições dos edifícios e das vias públicas, a partir do índice de “janelas quebradas”, que media a qualidade das moradias, carros abandonados, pichações, lixo, e deterioração de prédios públicos. A base teórica desse trabalho foi a teoria da janela quebrada, originalmente proposta por Wilson (1989), que relaciona o nível de desordem da vizinhança com a criminalidade, sugerindo que a aparência do ambiente físico deteriorado não representa apenas negligência, mas também um sinal de que comportamentos que são geralmente proibidos, neste lugar são tolerados. Nesta pesquisa, a ideia era que a paisagem de ambiente descuidado significava desordem social, um sinal de que ninguém se importava com o lugar, não havia regras a serem seguidas e isto oferecia oportunidades para comportamentos e situações de risco à saúde. Os resultados sugeriam que a deterioração física do bairro pode ser um indicador para comportamentos de risco para doenças sexualmente transmissíveis. Independente da validação das conclusões, essa pesquisa demonstrou como utilizar a observação social sistemática como procedimento metodológico para estudos de contextos territoriais da saúde. Outro estudo que pode ser citado é o de Nogueira (2008), realizado na área metropolitana de Lisboa, relacionando indivíduos, lugares e saúde, a partir da análise da privação sociomaterial e com as dimensões do ambiente sociomaterial local. Aqui é preciso tomar cuidado com que o que se apelida de falácia ecológica e falácia atomística. Não se pode, apenas com dados de contexto inferir a situação de saúde dos indivíduos, e o contrário, não se pode com dados individuais apenas inferir sobre o contexto (Noronha e Andrade, 2006). Sem incorrer no risco de tomar a escala local como a única ou de pensar que as estratégias de desenvolvimento territorial local podem prescindir de análises territoriais de outras escalas, e sem negligenciar as forças da globalização, podemos responder, sem sombra de dúvida, que o lugar é o território de vida e trabalho, com toda a sua dinâmica económica, social e cultural. Na ideia de desenvolvimento local sustentável está implícita a noção de lugar como escala territorial. É na escala local que ocorrem as inter-relações pessoais da vida cotidiana, que se constroem identidades. É no lugar que se manifestam os problemas concretos dos indivíduos e das populações, o cotidiano conflitante e solidário vivido em comum (Martins, 2002).

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2.3. Promoção da Saúde O conceito de promoção da saúde faz parte de uma nova concepção de saúde que tenta romper com a hegemonia do modelo biomédico, para ampliar o olhar para além do indivíduo e do corpo, para ver o lugar onde ele vive. Essa ideia ganhou muita força a partir do relatório Lalonde, que dizia que a saúde é resultado de um conjunto de fatores que podem ser grupados em quatro categorias (Lalonde, 1974): • Biologia Humana – envolve todos os fatos que se manifestam como

consequência da constituição orgânica do indivíduo, incluindo a sua herança genética; • Ambiente – agrupa os fatores externos ao organismo, nas suas dimensões física e social; • Estilos de vida – inclui o conjunto das decisões que o indivíduo toma a respeito da sua saúde, no que se refere às atividades de lazer e alimentação; • Organização da Atenção à Saúde – disponibilidade, quantidade e qualidade dos recursos destinados aos cuidados com a saúde. O ambiente de Lalonde, considerando todos os fatores externos ao organismo, nas suas dimensões física e social passa a ser o lócus da produção social da saúde, o que equivale a dizer “determinação social da saúde”, na qual se deve considerar como fatores preponderantes a pobreza, o desemprego, a habitação precária e outras desigualdades econômicas e sociais (Heidmann et al., 2006). A partir deste entendimento, começou a ser construído um novo paradigma para a saúde, que os conceitos de saúde e qualidade de vida se aproximam e dependem não só de uma condição biológica do corpo, mas dependem, também, das relações construídas pelos indivíduos e grupos sociais nos lugares onde se vive. Portanto, os pré-requisitos básicos para se obter saúde estão nas condições e recursos fundamentais da vida cotidiana: paz, abrigo, educação, alimentos, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade. Efetivamente, só é possível alcançar essa condição a partir de estratégias de promoção da saúde, definida na carta de Ottawa com ações baseadas em cinco princípios fundamentais (WHO, 2009): • • • •

Elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis; Criação de ambientes favoráveis à saúde; Reforço da ação comunitária, Desenvolvimento de habilidades pessoais;

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Desigualdades Socioterritoriais e comportamentos em saúde • Reorientação dos sistemas e serviços de saúde.

Políticas públicas saudáveis são necessárias tendo em vista que a saúde exige mais do que ações do setor de saúde; depende das ações dos diversos setores do governo e da sociedade, o que impõe a intersetorialidade na governança política para as ações e práticas de saúde. A conferência internacional de saúde de Adelaide, realizada em 2010, teve como tema “saúde em todas as políticas”, o que requer uma nova forma de governar, em que haja um envolvimento coordenado de todos os setores do governo para promover a saúde e o bem estar (WHO, 2010). Segundo Brasil (2010), a Promoção da Saúde pode ser vista como uma estratégia intersetorial de atenção à saúde que visa melhorar a qualidade de vida e a redução das vulnerabilidades e riscos à saúde. Tendo em vista que a saúde depende da relação entre os indivíduos e grupos sociais com o lugar em que vive, é possível promover saúde construindo ambientes saudáveis, não só preocupando-se com o meio físico-biológico, mas também com o ambiente socioeconómico, cultural e psicológico do cotidiano das pessoas e coletividades, buscando reconhecer as situações de iniquidades nos territórios de vida e trabalho. Não se pode falar em promoção da saúde sem falar de construção de territórios saudáveis. A partir de intervenções sobre o território, pode-se promover a saúde, modificando os contextos relacionados com os modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais (Polonia e Alves 2003). A Carta de Ottawa (1986) remete-nos para a ideia de empoderamento dos indivíduos e coletividades, que significa reconhecer-se como sujeito na sociedade e no lugar em que se vive, para não esperar, simplesmente, pelo poder público, mas que seja capaz de agir com organização e autonomia, para estabelecer estilos de vida saudáveis e de ajudar na construção de ambientes saudáveis. Portanto, o desenvolvimento de habilidades pessoais para promover uma vida saudável é um requerimento fundamental para o empoderamento dos indivíduos, não só para a autodeterminação de modos e estilos de vida saudáveis, mas também para que sejam sujeitos e não simples objeto das políticas públicas. Efetivamente, isso que exige o fortalecimento dos mecanismos de participação política e controle social, assim como o contínuo acesso às informações. Por fim, nada disso pode acontecer se, antes, não se promover a reorientação dos sistemas e serviços de saúde que devem alinhar-se cada vez mais na direção desta nova concepção de promoção da saúde, que exige práticas de saúde que ultrapassam as ações curativas e hospitalares e chegam ao território de vida dos sujeitos e coletividades. Promoção da saúde é uma estratégia para atuar sobre as iniquidades de saúde, produzidas por determinantes sociais, ou seja, fatores socioeconómi-

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cos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que determinam situações de saúde e problemas de saúde (Buss, 2007). O modelo de determinantes da saúde de Dahlgren e Whitehead (1991), juntamente com o conceito de território usado que dá concretude aos lugares (Santos, 1988), pode ser muito útil para a compreensão das relações ambientais que afetam o processo saúde-doença. Figura 2 – Modelo de determinantes sociais da saúde de Whitehead & Dahlgren (2001)

Fonte: CDSS (2008).

O modelo apresenta camadas concêntricas. Na camada mais interna estão os fatores individuais de idade, sexo e fatores genéticos que influem sobre a saúde. No nível externo seguinte estão os fatores relacionados com o comportamento pessoal e modos de vida, que são fortemente influenciados pelos padrões culturais dos grupos sociais. A próxima camada corresponde à organização comunitária e redes de apoio social e de solidariedade. No próximo nível estão os fatores que expressam as condições de vida e de trabalho, ou seja, ambiente de trabalho, educação, disponibilidade de alimentos, desemprego, saneamento ambiental, acesso a serviços de saúde e habitação. Na camada mais externa estão os fatores estruturais relacionados com as condições económicas, culturais e ambientais da sociedade exercendo grande influência sobre todas as camadas subjacentes. Como estratégia de intervenção sobre os determinantes da saúde, a Promoção da Saúde estabelece uma proposta de ação holística e sistémica, numa perspectiva socioecológica, entendendo que o processo saúde-doença resulta de interações complexas dos sujeitos com o seu ambiente físico, socioeconómico e cultural.

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Para efetivar intervenções sobre as condições de saúde com a ótica da promoção da saúde, incorporando a integralidade, devem-se realizar articulações intra e intersetorial, com atuação em rede do emprego de metodologias interdisciplinares e participativas, que visam a interação e a mobilização social. Como a saúde é marcada fortemente pela realidade social das populações, populações em situação de vulnerabilidade social estão sujeitas a circunstâncias de pobreza, baixa escolaridade, insegurança alimentar, moradia inadequada, falta de higiene e baixa qualificação profissional que constituem contextos muito favoráveis à doença. Os mais pobres estão mais expostos aos contextos vulneráveis à saúde. É o que House et al. (1990) reconheceram, ou seja, que indivíduos na base da pirâmide social são acometidos por doenças crónico-degenerativas com antecedência de aproximadamente 30 anos em relação aos indivíduos socialmente mais abastados. É verdade que a vulnerabilidade social pode ser percebida pelas condições socioeconómicas desfavoráveis em que vive uma população, mas seriamos simplistas demais se pensássemos que a sociedade está determinada exclusivamente pela economia. Neste caso, estaríamos tentando livrar a saúde de um determinismo biológico e corremos o risco de aprisioná-la ao determinismo económico. Outro fato importante a ser destacado é que quando falamos de vulnerabilidade social queremos mudar o foco da atenção do indivíduo para a população. Quando é preciso tratar o doente, para curar ou controlar a doença, o tratamento é individual, mas quando se quer realizar promoção da saúde tem que se pensar nos grupos sociais, na população e, invariavelmente no contexto ambiental do território e do lugar. Vulnerabilidade social é o conceito que explica o estado de maior ou menor exposição das populações e grupos sociais aos fatores de exclusão social, e refere-se a um conjunto de situações que conforma um contexto de negação dos direitos sociais: educação, saúde, moradia, renda mínima para um consumo que permita manter a vida e a dignidade humana. Estudos de vulnerabilidade social para fins de estratégias de promoção da saúde e a construção de territórios saudáveis deve considerar três aspectos: a população, o território e as redes sociais. Por tudo isso, a construção de territórios saudáveis passa pela operacionalização dos conceitos de justiça social, de sistemas de produção sustentáveis, de redução de consumo, de acesso universal aos sistemas de atenção à saúde, mas também de sistemas de vigilância em saúde (epidemiológica, sanitária e saúde ambiental) e promoção da saúde, articulando políticas públicas intersetoriais e redes sociais para a melhoria de condições de vida da população (Teixeira e Costa, 2003).

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3. Conclusões Os princípios e definições apresentados nos planos nacionais e internacionais indicam uma nova concepção de saúde, que procuram dar mais relevância à atenção primária, indicando como prioridade as ações de vigilância, prevenção e promoção da saúde, o que parece ser mais adequado ao momento histórico atual, e que pode realizar uma mudança radical, transformando os sistemas de saúde para serem efetivamente da saúde e não da doença. Entretanto, no nível local, o modelo biomédico, medico-assistencialista, curativo e hospitalocêntrico, continua hegemónico. Há um descompasso imenso entre a teoria e a prática, entre a concepção e a ação. Será preciso transformar as ações e práticas de saúde, reorganizando o trabalho nas unidades locais de saúde, para incorporar as políticas de saúde nas ações. Para as estratégias de vigilância e promoção da saúde torna-se fundamental considerar o território de vida e trabalho dos indivíduos e das populações, com ações e práticas de saúde que ajudem a melhorar a qualidade de vida e atuem sobre os determinantes sociais da saúde, construindo territórios saudáveis. A construção de territórios saudáveis faz-se com o estabelecimento de políticas públicas urbanas voltadas para a melhoria da qualidade de vida. Cada território possui particularidades e diversidades, económicas, culturais ou sociais. Não se pode fazer uma política única para lugares que possuem características e necessidades diferentes. É preciso conhecer, em cada lugar, a população, os seus costumes, hábitos, necessidades para que se possa contribuir para a construção de ambientes saudáveis. Promoção da saúde é a estratégia de ação intersetorial que operacionaliza a ideia de territórios saudáveis. Mas, não é possível fazer promoção da saúde sem considerar os indivíduos e os grupos sociais como sujeitos. É preciso construir territórios saudáveis com políticas públicas intersetoriais, inclusão social e, sobretudo com a participação das redes sociais de solidariedade. Por isso, reconhecer os territórios, rompendo a ruptura entre objeto e sujeito, é a condição básica para os programas de promoção da saúde que se devem estabelecer com intervenções intersetoriais e participativas, em que a população seja considerada como sujeito do processo de transformação da realidade. É a partir dos conceitos de vulnerabilidade social, de saúde ambiental e território saudável que se deve pensar a promoção da saúde, para a construção de cidades saudáveis. Promover a saúde é construir territórios saudáveis.

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4. Agradecimentos Agradecemos à Coordenação de CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo apoio à pesquisa que originou este trabalho. 5. Referências AUGUSTO, L.G.S. (2003), “Saúde e Vigilância Ambiental: um tema em construção”, Epidemiologia e Serviços de Saúde, 12(4): 177-187. BARCELLOS, C.; SABROZA, P.C.; PEITER, P.; ROJAS, L.I. (2002), “Organização espacial, saúde e qualidade de vida: análise espacial e uso de indicadores na avaliação de situações de saúde”, Inf. Epidemiol. Sus [online], 11(3): 129-138. BRANDÃO, C. (2007), “Territórios com Classes Sociais, Conflitos, Decisão e Poder”, in Ortega, A.C., Desenvolvimento territorial, segurança alimentar e economia solidária, Almeida. Campinas, Editora Alínea: 1-24. BRASIL (2002), As cartas de promoção à saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Projeto Promoção da Saúde, Brasília, Ministério da Saúde. BRASIL (2010), Política Nacional de Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, 3ª Ed., Brasília, Ministério da Saúde. BUSS, P.M.; PELLEGRINI FILHO, A. (2007), “A Saúde e seus Determinantes Sociais”, PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, 17(1): 77-93. CAPRA, F. (1982), O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente, São Paulo, Cultrix. CDSS (2008), As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil/Relatório. [Em linha] Disponível em: . [Consultado em 15/06/2012]. COHEN, D.; SPEAR, S.; SCRIBNER, R.; KISSINGER, P.; MASON, K.; WILDGEN, J. (2000), “Broken Windows” and the Risk of Gonorrhea”, American Journal of Public Health, 90(2): 230-236. [Em linha] Disponível em: . [Consultado em 14/08/2011]. DAHLGREN, G.; WHITEHEAD, M. (1991), Policies and Strategies to Promote Social Equity in Health, Stockholm, Institute for Futures Studies. GOUVEIA, N. (1999), “Saúde e meio ambiente nas cidades: os desafios da saúde ambiental”, Saude soc. [online], 8(1): 49-61. [Em linha] Disponível em: . [Consultado em 25/03//2010]. HOUSE, J.S. et al. (1994), “The social stratification of aging and health”, J Health Soc Behav, 35(3): 213-234. HEIDMANN, I.T.S.B. et al. (2006), “Promoção à saúde: trajetória histórica de suas concepções”, Texto contexto – enfermagem, 15(2): 352-358.

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CAPÍTULO 3 EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE VERSUS PROMOÇÃO DA SAÚDE: MUDANÇA CONCEPTUAL INOCENTE? Clara Costa Oliveira IE-CEHUM Universidade do Minho

Resumo Faremos uma abordagem histórica das expressões em estudo, no âmbito da OMS, indicando as ideologias que lhes subjazem, tendo anteriormente dado conta da evolução do conceito de educação no século passado. Serão ainda abordadas as várias gerações de Educação/Promoção da Saúde, bem como os vários níveis de prevenção defendidos pelos especialistas. Entre eles, será dada especial atenção ao quaternário, que só acredito poder ser efetuado com recurso ao âmbito educativo (formal e não formal) de cuidadores de saúde. Faremos ainda uma abordagem epistemológica dos pressupostos em que assenta a Promoção da saúde, propondo o modelo salutogénico de A. Antonovsky como um pré-paradigma que se avizinha possível, centrado na saúde, em detrimento de uma exclusiva focalização na patogenia. É ainda apresentada uma ampla bibliografia, que pode orientar os leitores interessados em aprofundarem as questões aqui apresentadas. 1. Introdução Até 1986, a expressão «educação para a saúde» era aquela que era utilizada, quer pelas equipas sanitaristas (enfermeiros e médicos, sobretudo), quer pelos professores, e outros profissionais, que atuavam em programas de prevenção da doença em todo o mundo. Desigualdades Socioterritoriais e Comportamentos de Saúde, Lisboa, Edições Colibri, 2013, pp. 47-73.

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A partir da Conferência da OMS (Organização Mundial de Saúde), realizada em Ottawa (1986), aquela expressão começou a ser substituída por «promoção da saúde». Iremos aqui refletir sobre algumas das razões históricas, filosóficas, políticas, etc., de esta mudança conceptual. 2. Educação para a saúde: surgimento e desenvolvimento de uma expressão em declínio A expressão „educação para a saúde‟ surge na história ocidental associada aos médicos sanitaristas, ou higienistas, do século XIX, que se preocupavam com as condições miseráveis que o desenvolvimento do capitalismo industrial criara, na vida das populações. O quotidiano de muitos milhares de pessoas era a pobreza, a falta de higiene e de acesso a cuidados de saúde. A maior parte destes homens eram médicos preocupados com a saúde pública, tendo identificado que ela se associava às condições sociais em que as pessoas viviam. Alguns desses médicos foram: J. Snow, conhecido sobretudo pela sua defesa da anestesia obstetrícia e pelo estudo epidemiológico da cólera; W. Alison, M. Terris, o português Ricardo Jorge, e Charles-Edward Winslow, este último bacteriologista, criador da mencionada expressão, que acabou por ser retomada nas Conferências da Sociedade das Nações, instituição precursora das Organização das Nações Unidas (ONU). Nas reestruturações dos cursos de Medicina de então (e a criação de vários deles) encarava-se com menos polémica a existência de áreas de saúde pública/comunitária, também apelidada, por vezes, de «Medicina social». O primeiro académico de Medicina social foi o médico John Ryle, na universidade de Oxford, em 1943. A que é que este homens (e sem dúvida que podemos considerar Nightingale como uma higienista, ainda que não fosse médica) se referiam quando falavam em „educar para a saúde‟? O seu objetivo era sobretudo conseguirem controlar situações epidemiológicas, que se relacionavam intrinsecamente com questões de ordem social. Acreditavam que era preciso educar as pessoas para que elas passassem a ter cuidados de higiene básicos, que impediriam muitas das epidemias, como a da cólera, tifo, tuberculose, entre outras. O seu propósito era pois atuar no presente, e para isso se constituíram campanhas de educação junto das populações mais pobres, que se deslocavam aos bairros onde estas pessoas viviam, ou aos seus locais de trabalho (lembremo-nos que uma das instituições mais importantes das sociedades atuais – a escola – era privilégio de muito poucos, e não de pobres). Havia pois uma intencionalidade deliberada e concreta num plano de ação que delineavam, e que acreditavam que se devia ensinar aos médicos em formação, a delinear. Três características dessa época se mantiveram, até

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hoje, nos projetos em educação para a saúde: 1) atuar ao nível individual, focalizando-se no presente; 2) delinear-se ações combinadas entre si, que promovam aprendizagens, das quais emergirão novos comportamentos, de modo voluntário (Green e Kreuter, 1999); 3) estabelecimento de contacto direto entre os educadores para a saúde e a população-alvo, mesmo quando se aliava a campanhas de informação de tipo social. […] Mi madre fue la Visitadora Social que com el Dr. Vicente Dañino organizaron a comienzos de la década del 40, lo que fuel a campaña Antivenérea en Chile. […] Si cubrió el país de afiches que decían de todas las maneras posibles, en que consistían las enfermidades venéreas. Se créo en todo el país un sistema de policlínicos, donde podían ser atendidas las personas que consultaban, que iban allá donde había una Assistente Social que investigava discretamente la red sexual de la persona, y por supuesto estaba el tratamiento gratuito. […] En dos anos […] bajó [mucho] el índice de nuevos contágios. […] Como pasó así, que yo le pergunte a la mamá como creia que ella había resultado esto. […] Un factor importante fue que cuando una persona se saltaba una inyección, el policlínico mandaba un Carabinero a su casa […], yo le decia no mamá no puede haber sido eso, primero porque el Carabinero lo único que hacia era recordarle a uno. Há! Pero el miedo, si claro, pero no había allí una acción, no había un acto punitivo, no era una falta punible, habia outra cosa más importante, la gente contaba de de su rede de relaciones sexuales. Y esto es interesante. Esto de decir que me acoste com él o con ella, oye, pero por favor, esto no era trivial contar com quien uno tiene una relación sexual imaginense en 1941/42 [….] (Maturana, 2002: 7).

Esta citação de Maturana (biólogo e pai da teoria da autopoiesis) ajuda-nos a compreender a crítica que posteriormente se vai fazer à educação para a saúde, como sendo uma forma de saúde pública (enquanto área da Medicina; lembro que a Enfermagem, como área científica, dava então os primeiros passos), apenas, e de carácter penalizador da vítima (blaming the victim), ainda que manifeste também o carácter eficaz do programa de prevenção em questão, que exemplifica muitos dos programas de educação para a saúde dos anos 40 do século passado. O carácter penalizador da educação para a saúde, e a sua vinculação à autoridade médica, foram duas das razões que fizeram surgir o movimento da Promoção da Saúde, como veremos adiante. 2.1 Evolução dos conceitos ‘educar’ e ‘aprender’ no séc. XX Hoje, a educação para a saúde aparece muitas vezes como uma especialidade dentro das ciências da educação; outras vezes, porém, os profissionais de saúde reclamam-na como sua. A „educação para a saúde‟ refere-se pois a

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uma área científica que exige uma (auto) formação interdisciplinar nem sempre fácil de obter, dada a divisão, por vezes extremada, a que as entidades certificadoras da formação nesta área (sobretudo as universidades e os institutos politécnicos) se encontram vinculados. Tal dificuldade agrava-se, sobretudo com a abrangência de educadores para a saúde (formais, não formais e informais) que podemos encontrar nas sociedades humanas de todos os tempos, assunto que desenvolveremos em breve. Mas prende-se também com grandes mudanças concetuais que ocorreram no âmbito educativo, durante o século passado, que foi o século de expansão da educação escolar na Europa mediterrânica, abrindo-se às meninas e aos filhos da classe operária, por exemplo. Não é pois de admirar que o final desse século, e início do século XX, fossem muito dedicados à educação formal de tipo escolar. Ele iniciou-se com a “educação bancária” (Freire, 1976) mas também com a esperança trazida por autores como Maria Montessori, Célestin Freinet, John Dewey, Edouard Claparède, Faria de Vasconcelos, Carrington da Costa, Delfim Santos, António Sérgio, e outros representantes das Escolas Novas. Ainda que divergindo entre si em vários aspetos, todos sublinharam duas dimensões: a valorização da aprendizagem não escolar e a compreensão dos fenómenos educativos a partir da ciência. Este último era importante para tentar desvincular a formação de pedagogos da dimensão normativa de Filosofia, buscando-se antes uma dimensão descritiva dos fenómenos de aprendizagem que permitisse (acreditava-se) uma educação mais eficaz. Com os autores das Escolas Novas, foi o próprio mundo escolar que começou a ser explicitamente confrontado com a educação não formal e informal dos alunos; Freinet, entre outros, criou métodos inovadores originários na educação informal, tendo como propósito a revolução social, própria do seu ideário marxista. Foi, no entanto, sobretudo a partir da II Grande Guerra que o conceito „Educação‟ se modificou extraordinariamente, no contexto das Conferências Internacionais de Educação de Adultos, patrocinadas pela UNESCO. Em 1972 (Conferência de Tóquio), a educação escolar passa a ser considerada um subsistema da educação permanente e comunitária. Desta Conferência resultou a Declaração de Nairobi sobre Educação de Adultos (UNESCO, 1976). Nela se estabelecem vários aspetos que nos interessa ter presente: 1 – a educação é um único processo, que se desenrola (pelo menos) desde o nascimento até á morte das pessoas; 2 – a educação, enquanto processo único, não se encontra ontologicamente faseada em etapas ontogénicas diferenciadas; 3 – a educação ocorre não só em contexto formal (escolas e centros de formação, por exemplo), mas também em contexto não formal (associações religiosas, desportivas, por exemplo) e informal, sobretudo (a educação familiar e entre amigos, por exemplo). Foi nesta Declaração que se

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passou a possuir uma definição sólida de educação permanente e comunitária (life long learning). Ela passa a ser entendida como os processos que criam condições para que cada pessoa possa desenvolver, integral e harmoniosamente, todas as suas dimensões (emotiva, raciocinativa, ética, espiritual, profissional, lúdica, etc), colocando cada pessoa essas capacidades ao serviço da comunidade. Esta definição foi também um marco por implicar a educação em contextos comunitários, e os responsabilizarem, ou seja, cabe às comunidades criarem condições (políticas, económicas, por exemplo) para que os cidadãos se eduquem, e cabe a estes servirem a comunidade com todas as suas capacidades que vão desenvolvendo (cfr. Oliveira, 2004: 45-46) As Conferências Internacionais de Educação de Adultos foram alargando esta conceptualização, até atingir uma perspetiva ecossistémica; alguns autores consideram, no entanto, que a partir dos finais dos anos 80 se vislumbra claramente a subjugação da educação permanente e comunitária aos interesses puramente produtivos da formação contínua de tipo empresarial (Ribeiro-Dias, 2009). Tal pode ser, com efeito, um dos efeitos perversos de a ONU ter declarado que a educação ocorre num único processo (life long learning and education) com dois momentos: a educação de infância (até aos 18 anos) e a educação de adultos. Este posicionamento por parte da UNESCO trouxe, contudo, aspetos muito positivos, nomeadamente a valorização da educação não formal e informal. Aos educadores não formais reconhece-se um papel educativo fundamental no que respeita ao modo de lidar com o sofrimento (logo, na educação para a saúde) como por exemplo, os grupos de autoajuda, ou ao pastor que acolhe a aconselha o jovem toxicodependente. Os educadores informais somos todos nós, o filho que beija a mãe no seu desalento, a mulher que reza pelo marido que acamou, o amigo que leva o amigo a ver o mar num momento especialmente difícil, etc. Os educadores formais de educação para a saúde são, lato sensu, os profissionais de saúde (psicólogos, farmacêuticos, radiologistas, assistentes sociais, fisiatras, fisioterapeutas, médicos, enfermeiros, etc). Vemos pois que hoje, um educador para a saúde, não tem por mera missão instruir, ensinar procedimentos que levem a mudanças comportamentais voluntárias, mas usualmente coercivas e automáticas. A compreensão do que significa educar, e também aprender, mudou substancialmente face ao significado que lhe era atribuído pelos médicos higienistas-sanitaristas das primeiras décadas do século passado. A Educação para a Saúde foi reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS, organismo da ONU) no final dos anos 70, na Declaração de Alma Ata (1978); no entanto, a definição de saúde que aí podemos encontrar (muito para além da ausência de enfermidade) é defendida pela OMS desde a sua criação, em 1948, e vincula-se – mais ou menos diretamente – à conce-

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ção de life long learning da Declaração de Nairobi. Os anos 70 e 80 do século passado foram os anos áureos da educação para a saúde, com a expansão desta área em todos os subsistemas (incluindo o escolar) do sistema educativo. 2.2 Evolução do conceito de ‘saúde’ Desde o surgimento da ciência moderna, nos séculos XV e XVI; que a saúde tem vindo a ser entendida, no ocidente, como «ausência de doença». Para tal muito contribuiu o paradigma mecanicista newtoniano no qual assentaram todas a ciências, pelo menos até final do século passado. O conceito „saúde‟ vinculou-se, na nossa cultura, sobretudo a duas áreas: a Biologia e a Medicina, que utilizaram o conceito „doença‟ como defeito numa máquina cujo funcionamento se assemelha ao de uma máquina construída por mãos humanas. A esta conceção de „saúde‟ apelida-se usualmente „teoria/modelo biomédico‟ (Machado, 2006). Em 1974, o relatório Lalonde (sobre a saúde dos canadianos) veio propor que, além da dimensão biológica, se tivesse em consideração, na avaliação de saúde dos cidadãos variáveis de âmbito comunitário (retomando a ligação da pobreza à ausência de doença, por exemplo) e também individual, de foro não fisiobiológico, como os estilos de vida (Tura, 2009). Foi no entanto preciso esperar pela Conferência Internacional sobre Cuidados Básicos de Saúde, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1978, em Alma-Ata, sob a égide Saúde para todos no ano 2000, para que uma nova perspetiva ideológica se afirmasse (pelo menos teoricamente). Nela, a saúde passa a ser entendida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas como ausência de doença (OMS, 1978: 1). Dado não se negar a dimensão física, em Alma Ata, a enfermidade é também contemplada como sendo uma forma de falta de saúde (dado que provoca deficiência ao nível da autoperceção de bem estar), mas nessa Conferência passa-se a definir a saúde pela positiva, dependente de autoperceções individuais sobre o seu próprio bem-estar. Importante nesta Conferência, sobretudo no âmbito deste livro, foi a identificação de assimetrias chocantes entre o bem-estar de populações que vivem em localizações geográficas diferenciadas (conectando esta situação com o (des)governo político nessas áreas geográficas). Os anos seguintes caracterizaram-se pois por uma educação para a saúde muito centrada na adoção de estilos de vida ditos saudáveis, ou na qualidade de vida das populações, jargões nem sempre utilizados, e muito menos refletidos e problematizados, em função das conceções avançadas por Alma Ata. À época, a maior parte dos projetos de Educação para a Saúde cabia ao técnico de saúde, ou de educação – usualmente escolar – que procediam à

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identificação das variáveis consideradas encorajadoras de comportamentos, e estilos de vida, saudáveis (Tones e Tilford, 2001). Do meu ponto de vista, a orientação mais produtiva de Alma Ata prende-se com a sensibilização dos estados membros da ONU para com os cuidados de saúde primários, tendo sido implementadas em vários países medidas para a sua concretização (ainda que estejamos muito longe de o termos conseguido, efetivamente; veja-se o caso do saneamento básico em Portugal, onde existem cidades com zonas sem esgotos, por exemplo (já para não falar da situação em mundo rural, que rondará quase a totalidade do território). 3. Promoção da Saúde A Declaração de Nairobi vincula definitivamente a educação às comunidades nas quais ocorre (como vimos), um tema bem ao gosto dos defensores da „Promoção da Saúde‟. A expressão «promoção da saúde» parece ter sido expressa, com rigor, pela primeira vez pelo francês Henry Sigerist, em 1945, apontando-a como um dos quatro papéis da Medicina; para além dela, os outros três eram a prevenção da doença, a restauração dos doentes, e a sua reabilitação. Health is promoted by providing a decent standard of living, good labor conditions, education, physical culture, means of recreation and rest. [...] the promotion of health obviously tends to prevent illness, yet effective prevention calls for special protective measures (Terris: 1992). Sigerist considerava que o factor mais importante de todos na promoção da saúde era, curiosamente, educação livre para todas as pessoas (incluindo educação para a saúde) 1, seguida de condições de trabalho e de vida, meios para descanso e lazer e, em último lugar, cuidados médicos. Esta expressão surge com relevo nos documentos da OMS em 1986 (Carta de Ottawa), em continuidade com os princípios nos quais se funda a própria Organização das Nações Unidas: a paz no mundo, fundada na dignidade humana. A partir desta Conferência, até 2009 (Conferência de Nairobi da OMS), esta expressão substitui paulatinamente «educação para a saúde», nos documentos da OMS. […] The emergence of health promotion has been paralleled by the marginalisation of health education. This has not just been due to mere fashion but has been indicative of an underlying dissatisfaction with the aspects of the theory and practice of public health. [...]. The demise of the conventional approach to health education centres on its ‘victim blaming’ philosophy –real or imagined. Unfortunately, the health education baby was thrown out with the proverbial bath (Tones e Tilford, 2001: vii) 1

Note-se que ele se referia à educação escolar, mas não a circunscrevendo, necessariamente, apenas às crianças e jovens.

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Convém salientar que tendo sido expressão ‟promoção da saúde‟ definida por Sigerist, quem a introduziu definitivamente na OMS foi a primeira responsável vinda das ciências sociais – Ilona Kickbusch; todos os anteriores dirigentes tinham sido médicos (Sakellarides, 2005). Isso ajuda a perceber que a promoção da saúde pós Ottawa se direciona para mudanças de comportamento, a nível organizacional, desfocando-se gradualmente das pessoas individuais. Dirige-se sobretudo para o futuro, em detrimento do presente, e daí a sua aposta mais forte ocorrer ao nível da prevenção. Na mesma linha socializante, perspetiva-se as mudanças em saúde como emergindo de mudanças sociais nas quais se envolvam políticos e outros agentes comunitários, situados fora do espaço usualmente considerado como o da educação para a saúde. A situação tornou-se, a meu ver, perigosa: ao que se consta, o financiamento da instituição (OMS) pelos estados membros da ONU já é menor que o financiamento garantido pela indústria farmacêutica e por ONGS, entre outras organizações. 1 Note-se que ele se referia à educação escolar, mas não a circunscrevendo, necessariamente, apenas às crianças e jovens. Alguns documentos da ONU (da OMS, nomeadamente) são contraditórios entre si, ainda que se digam em continuidade uns com os outros. Outras vezes os documentos surgem com afirmações contraditórias entre si. Isso decorre de vários fatores, como o facto de o documento final ter tido que negociar posicionamentos opostos, dentro da conferência, para poder ser aprovado: outra situação habitual é a de nessas reuniões se poderem encontrar especialistas nas áreas com políticos poderosos, mas iletrados nos assuntos em questão. Abordemos então, ainda que brevemente (cfr. Feio, 2011), as principais conferências de promoção da saúde, realizadas no âmbito da ONU. Assim, em Ottawa (1986) atribuiu-se aos indivíduos, inseridos em comunidades, a capacidade de conseguirem, ou não, possuir saúde, dado que a eles cabe a responsabilidade em optar pelo seu tipo de vida, um dos fatores mais importantes na saúde das pessoas, segundo o documento. Ainda que se fale na necessidade de intervenção ao nível individual, na sua capacitação (empowerment), também se refere a importância da visão socioecológica, para a sustentabilidade dos recursos, apontando para uma responsabilidade global. Não se entende bem como estas duas preocupações se articulam entre si. Ao considerar que a promoção da saúde se deve verificar em todas as organizações (escolas, lares, lugares e ambientes comunitários) o texto conota a educação apenas com o subsistema escolar, sendo para esse espaço que remete a educação para a saúde, manifestando um total desconhecimento sobre a evolução do conceito de «educação» no século XX, anteriormente abordado. Essa será, aliás, a abordagem comum da educação nos documentos da OMS após Ottawa. O enfoque na questão ecológica surge aqui de um modo claro pela primeira vez, nos documentos da OMS, e irá manifestar-se, compreensivelmente, em todas as conferências posteriores da OMS.

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Em Adelaide (OMS, 1988) a focalização grupal acentua-se, dado centrar-se nas necessidades de grupos minoritários e a grupos especialmente atingidos pelas políticas de países ditos desenvolvidos, que se repercutem nos países periféricos. Com o título Promoção da saúde e políticas públicas saudáveis, apela-se a políticas transnacionais e que encontrem soluções para as questões de injustiça social que o desenvolvimento tecnológico acarreta, nomeadamente ao nível dos cuidados de saúde. Em 1991, a OMS reuniu-se em Sundsvall, sob o tema da Promoção da saúde e ambientes favoráveis à saúde (OMS, 1991), sob o tema da Promoção da saúde e ambientes favoráveis à saúde. De novo se apela à capacitação que a educação para a saúde pode proporcionar nas pessoas e nas comunidades. Alerta-se ainda para a responsabilidade dos governos em fazer cumprir diretrizes decididas em conferências anteriores, nomeadamente no respeitante às questões ambientais e às desigualdades sociais entre países, e zonas geográficas do mundo. A quarta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizou-se em Jacarta, sob o mote Promoção da Saúde no Século XXI (OMS, 1997); foi uma dos encontros mais interessantes, a meu ver, sobre Promoção da Saúde. Saliento os aspetos principais: 1 – Avaliação dos resultados obtidos em Promoção da Saúde desde 1986, Ottawa; 2 – Procedeu-se à redefinição de fatores determinantes de saúde (ou de doença, digo eu), tais como o envelhecimento populacional, o surgimento de novas doenças, e a cronicidade de muitas outras), tendo sido considerado que a promoção da saúde lhes devia dedicar especial cuidado; 3 – Considerou-se que a dimensão espiritual é uma das dimensões humanas de saúde; 4 – Salientou-se a importância do sector privado nos cuidados de saúde; 5 – Assumiu-se que muitas vezes os projetos comunitários de promoção da saúde são construídos para as pessoas e comunidades, não sendo elaborados, e efetivados, com, e por, as populações; 6 – Lamentou-se a continuidade de desigualdades e injustiças sociais no acesso à saúde, por questões geográficas; 7 – Alertou-se para possíveis consequências da globalização de novos valores, e de novos estilos de vida. A reunião seguinte ocorreu na cidade do México, em 2000, onde novamente a questão de assimetrias nos cuidados de saúde se colocou, tendo os participantes centrado muita da sua atenção nas novas doenças. As questões ambientais na influência da saúde das populações continuaram a ser discuti-

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das. O mote da conferência foi Promoção da Saúde – rumo a uma maior equidade. Em 2005, em Banguecoque, a OMS reuniu para se questionar sobre a Promoção da saúde num mundo globalizado. As preocupações com a globalização foram, obviamente, centrais, quer nos seus aspetos positivos (comunicação interplanetária), quer nos negativos (vulnerabilidade das crianças, como no caso da pedofilia, e discriminação de populações analfabetas funcionais quanto às novas tecnologias). Apelou-se à participação de toda a sociedade na promoção da saúde, em nome da cidadania solidária. Por fim, em 2009, em Nairobi, retomaram-se alguns dos compromissos anteriores: o incentivo à capacitação individual e comunitária, ao envolvimento de todos os sectores da sociedade na promoção da saúde, e a necessidade de ela ser vinculada cada vez mais aos decisores políticos no que respeita às suas promessas de desenvolvimento. Já anteriormente manifestei críticas ao movimento de Promoção da saúde (Oliveira, 2004: 46-50), pelo que referirei aqui o mais fundamental. As conferências da OMS sobre Promoção da Saúde enfermam todas elas de um grave problema: não possuem um (nem vários) quadro teórico rigoroso e explícito. A expressão „Promoção da saúde‟ é utilizada de modo confuso e remetendo para questões epistemológicas, e até éticas, que se contradizem, por vezes. Ao não esclarecer o novo quadro conceptual (face ao de „educação para a saúde‟), criou-se um reino de ninguém e de todos, aos técnicos. Daí que todos eles reclamem que os seus projetos promovem a saúde das populações, mesmo quando assentam em premissas, objetivos, metodologias, resultados de tipo biomédico, paternalista, infantilizante, etc, das populações. We argue, quite forcibly that it is both possible and desirable to theorise: a sound theoretical framework is essential to the development of effective health promotion programmes and evaluating them (Tones e Tilford, 2001: viii). Os relatórios das comissões internacionais sobre esses programas/projetos permitem verificar que há poucos que promovam, efetivamente, a saúde das comunidades (e ainda menos, de indivíduos, diretamente); a grande maioria previne (ou assim o pretende) doenças, o que sendo importante, não esgota a promoção da saúde 2. Outro problema reside nos projetos de tipo transnacional (eg: escolas promotoras de saúde, hospitais saudáveis, cidades saudáveis, etc), onde usualmente não houve o cuidado em se construir um quadro teórico, inclusivo de metodologias e práticas com ele coerentes. Parte-se do princípio de haver uma única leitura, e implementação, possíveis de tais projetos transna2

Veja-se a avaliação empreendida pela OMS em 1998 desde Ottawa (o documento completo pode ser consultado no site da OMS (WHO – World Health Organisation), mas pode também ser apreciado resumidamente em Tones e Tilford, 2001: 491-492).

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cionais, no que resulta por vezes em modos de atuação contraditórios, dentro do mesmo projeto. Isso é aliás compreensível se tivermos em conta a diversidade formativa de técnicos envolvidos, como psicólogos, médicos, enfermeiros, professores de Biologia, assistentes sociais, etc. O que cada um destes grupos profissionais aprendeu na sua área de formação sobre „Promoção da saúde‟ é bastante diferente (e alguns destes grupos profissionais podem nem ter ouvido, ou terem ouvido muito pouco, essa expressão na boca de seus mestres académicos). No que respeita a projetos nacionais, um dos maiores problemas é a competitividade entre as várias equipas que andam no terreno. De acordo, aliás, com a mentalidade portuguesa usual, as outras equipas dificilmente são consideradas possíveis colaboradores e parceiros, mas antes rivais. Assim se têm desgraçado fundos financeiros, recursos humanos e físicos, cujos principais prejudicados são as populações-alvo, inundados por projetos sobre a mesma temática, mas sem articulação entre si. Evidentemente, que alguns casos há de excelente cooperação entre as instituições (eg: centros de saúde e escolas), mas infelizmente ainda são exceções. Uma outra questão relacionada com o que acabei de afirmar prende-se com a não avaliação de muitos projetos de promoção da saúde que proliferam neste país. Aliás, tenho dúvidas que cada ministério tenha conhecimento dos projetos que existem nesta área e que lhes estão afetos, direta ou indiretamente (já para não falar na quase total falta de articulação de Ministérios entre si). E, no entanto, tudo isto contradiz totalmente a vontade de intervir junta da classe política (enunciada em todas as reuniões da OMS a que nos referimos), ainda que aparentemente assim não seja. De facto, a classe política (os governos, em particular) pouco, ou nada, têm contribuído para a criação de um terreno comum entre as instituições envolvidas nestes projetos, onde muitos dos parceiros receiam perder visibilidade. Que quadro teórico poderia ser utilizado como sustentação epistemológica da Promoção da Saúde? Para muitos (onde me incluo) deveria ser o de Aaron Antonovsky: In the 1980s, Antonovsky’s salutogenic model of health influenced the development of health promotion (although not explicitly stated in the Ottawa Charter). The underlying theories of health promotion research were discussed in a seminar held at the WHO Regional Office in Copenhagen in 1992. Antonovsky attended this workshop and presented his salutogenic model as one direction for health promotion. There was an agreement and conclusion that the focus henceforth should be on health rather than on disease. This was a fundamental shift from the old and previous theoretical perspectives that largely stemmed from the biomedical model of disease (Eriksson e Lindstrom, 2008, p. 191).

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3.1 Ottawa e Antonovsky Aaron Antonovsky (1923-1994) desenvolveu o conceito „salutogenesis‟ a partir de uma investigação que realizou com dois grupos de mulheres sobre a perceção de felicidade nas suas vidas. Um desses grupos era constituído por pessoas que tinham estado em campos de concentração na II Guerra Mundial. Os resultados do estudo foram surpreendentes: a maior parte destas mulheres consideravam-se mais felizes que as mulheres do outro grupo, apesar das terríveis experiências que tinham tido nas suas vidas. Antonovsky decidiu saber porquê e dedicou a sua vida a esta questão: como é que pessoas sujeitas a situações extraordinariamente adversas na vida conseguem sentir-se felizes e vivem com menor incidência de patologias? A hipótese a considerar era que a saúde de uma pessoa dependia muito mais de si própria do que dos fatores externos, aos quais estaria sujeita. Colocou a hipótese de haver formas de produzir saúde, mesmo em situações adversas e plenas de stress (como passar fome, estar sujeita a tortura, ver os seres que ama serem mortos, etc.). A investigação deste autor levou-o à conclusão que ter saúde é muito mais do que não ser portador de patogenias; percebeu, aliás, que a patogenia é muitas vezes uma consequência de quem não consegue produzir saúde na sua vida! A produção de saúde ocorre quando as pessoas encontram sentido para o sofrimento (Cassell, 2004) ao qual vão estando sujeitas ao longo da vida, conseguindo descobrir soluções para problemas com que se deparam continuamente. O modo mais usual de criar soluções é utilizando corretamente recursos gerais de resistência (GRR-Generalised Resistance Resources), de vário tipo: 1 – Ambientais e naturais: vivendo em ambientes pouco poluídos, consumindo água potável, contactando amiúde com a natureza, etc; 2 – Físicos e bioquímicos: exercitando o corpo e a mente, alimentando-se de modo a assegurar nutrientes básicos, utilizando a panóplia de substâncias químicas ao dispor da humanidade, etc. 3 – Emocionais: exprimindo emoções em contextos adequados; gerindo emoções; sendo recetivo às emoções dos outros, etc; 4 – Interpessoais: desenvolvendo e mantendo uma rede de amigos; tratando e sendo tratado como igual em contextos profissionais, etc. 5 – Socioculturais: apreciando arte, produzindo e consumindo cultura, tendo momentos de lazer e de ócio, praticando rituais de espiritualidade ou de religião regularmente (como meditação, oração), etc;

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Os incontáveis GRR com que cada ser humano se pode deparar, e criar, foram agrupados por Antonovsky em três grandes categorias: compreensibilidade (comprehensibility), capacidade de gerir (manageability, usualmente traduzido por gerenciamento) e significação (meaningfulness). Comprehensibility […] refers to the extent to which one perceives the stimuli that confront one, deriving from the internal and external environments, as making cognitive sense […]. The person high on the sense of comprehensibility expects that stimuli he or she will encounter, then they do come as surprises, that they will be orderable or explicable. […] Manageability is the extent to one perceives that resources are at one’s disposal which are adequate to meet the demands posed by the stimuli that bombard one. […]To the extent one has a high sense of manageability one will not feel victimized by events or feel that life treats one unfairly. Outward things do happen in life, but when they occur, one will be able to cope and not to grieve endlessly. […] The meaningfulness component t[…] refers to the extent to which one feels that life makes sense emotionally, that at least some of the problems and demands posed by living are worth investing energy in, are worthy of commitment and engagement, are challenges that are ‘welcome’ rather than burdens that one would much rather do without. […] When unhappy experiences are imposed […] he or she will willingly take up the challenge, will be determined to seek meaning in it, and will do his or her best to overcome it with dignity (Antonovsky, 1988: 17-19).

No entanto, segundo este autor, estas capacidades de atribuição de significação, de utilização dos recursos de que dispomos, e de compreendermos a especificidade e os contornos do sofrimento que estamos a viver, só se obtêm quando possuímos sentido interno de coerência (SOC), ou seja, quando soubermos ir desenvolvendo, no percurso da nossa existência, uma profunda e sólida noção de identidade que resista ao efeito desestruturante que o sofrimento sempre acarreta. O SOC é passível de ser reforçado, flexibilizado, desenvolvido, desde que nascemos até que morremos, sendo que usualmente aumenta ao longo de uma vida mais longa, constituindo uma base poderosa para compreendermos correlações positivas entre saúde percecionada, saúde mental e qualidade de vida. Os três tipos de GRR mencionados foram encontrados em todas as pessoas estudadas, que evidenciaram forte sentido de coerência. Muito embora os GRR estejam relacionados entre si, algumas pessoas são melhores na utilização e construção de uns, em detrimento de outros. Tal relaciona-se com o conteúdo do sentido de coerência existencial da pessoa em questão. Faço notar que este autor não menosprezava a importância, para a área da saúde humana, da doença. Para ela, contudo, a doença não se opõe à

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saúde; ambas se articulam continuamente, na vida. Há pois a negação de uma perspetiva dualista, na qual assenta usualmente a prevenção da doença, enquanto ausência de doença. Uma perspetiva salutogénica focaliza-se naquilo que é resistente aos fatores stressantes (stressors) da vida humana, descentrando-se dos fatores predisponentes para o surgimento de patologias. Deste modo, por exemplo, um programa salutogénico sobre o consumo de álcool poderia focalizar-se em pessoas que estiveram desde a mais tenra infância inseridos em contextos de alcoolemia e, ainda assim decidiram, no entanto, não a consumir. Obviamente que um estudo deste tipo seria também muito útil para a prevenção do alcoolismo, ou seja, a promoção da saúde não se opõe à prevenção da doença; ambas se complementam. O pensamento de Antonovsky tem sido utilizado por muita gente para enquadrar teorias, modelos, e práticas. No entanto, ele sempre se mostrou reticente em relação a este tipo de abordagem do seu pensamento, nomeadamente à eventual ligação da sua perspetiva salutogénica com os „fatores de risco‟, „estilos de vida‟, „psicosomatização‟, jargões imensamente utilizados, quer nas Conferências da OMS, quer nos projetos transnacionais, nacionais e locais de „Promoção da saúde‟, vinculados a Ottawa. In the 1930s it was revolutionary to suggest that something in the mind could lead to somatic diseases. Today, I submit (though many would disagree), we are held back by the concept, because it implies that some diseases are psychosomatic and others are not. It perpetuates dualistic thinking and prevents us from seeing that all human distress is always that of an integrated organism, always has a psychic (and a social, I might add) and a somatic aspect» (Antonovsky, 1996: 11).

4. As gerações de educação/promoção da saúde O conceito “Educação para a Saúde” foi variando ao longo dos tempos, como vimos, sendo hoje utilizado – muitas vezes – indiscriminadamente com o de “Promoção da Saúde”, ainda que haja diferenças históricas e ideológicas, que brevemente acabámos de descrever. Se a Conferência de Alma Ata nos proporcionou um conceito de Saúde, no qual ainda nos revemos hoje, foi também fundamental para a criação e o reforço dos cuidados de saúde primários em todo o mundo. A Carta de Ottawa (1986) proporcionou-nos uma outra forma de encarar a saúde, salientando a necessidade da sua promoção, através da definição de políticas de saúde promotoras do bem-estar. […] Health education is viewed as making a major contribution to health promotion, while not being synonymous with it. Indeed, an admittedly somewhat simplistic formula is used to capture the essence of the synergetic relationship between policy and education. It asserts that Health Promotion = Health Education x Healthy Public Policy (Tones e Tilford, 2001: xiii).

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Cruzando as conceções nestas duas expressões, Sánchez Moreno, Ramos Garcia e Marset Campos (2000) identificam três gerações no desenvolvimento da educação para a saúde; elas foram surgindo por influência das mudanças sociopolíticas e da avaliação dos considerados fatores de risco: a “educação para a saúde informativa”, “a educação para a saúde centrada no comportamento” e a “educação para a saúde crítica”. Na primeira situação, acredita-se que a doença é causada por hábitos e comportamentos de risco decorrentes de falta de informação; a saúde resulta, por consequência, da prevenção e do tratamento da doença, num claro reconhecimento do modelo biomédico. Esta posição ancora-se na transmissão de informação, recorrendo usualmente a uma metodologia expositiva e magistocêntrica, reservando-se ao educando um papel tendencialmente passivo. A Educação/Promoção da Saúde, neste contexto, ocorre em instituições meramente formais (o hospital, o centro de saúde, a escola), onde o técnico se assume como quem sabe face ao outro, considerado ignorante, vinculando-se à educação bancária (Freire, 1976). Representa a abordagem dos higienistas-sanitaristas, em geral, do século XIX, sendo ainda hoje especialmente útil ao nível epidemiológico, dado os seus objetivos serem facilmente mensuráveis (Loureiro & Miranda, 2010). O maior problema deste posicionamento remete para estatitização de dados, não tendo em conta os saberes específicos de pessoas e comunidades (Oliveira, 2007; Turábian & Franco, 2001), nomeadamente os recursos individuais/grupais para implementar as instruções emanadas das autoridades. Aliás, podem as pessoas terem recursos, e não os saberem utilizar! A segunda linhagem emergiu na sequência da crescente morbilidade e mortalidade associadas a doenças oncológicas e cardiovasculares, consideradas resultantes sobretudo de estilos de vida não saudáveis. Com ela pretende-se a implementação de comportamentos saudáveis, nomeadamente nas populações consideradas de risco. A saúde releva do comportamento do indivíduo, o qual é determinado por estímulos do meio. O processo educativo desenvolve-se em torno da aprendizagem efetiva, considerando-se a informação apenas uma parte desse processo; a sua finalidade é conseguir que ocorram mudanças estáveis de comportamento em pessoas pertencentes a grupos de risco. Aqui a abordagem continua a ser claramente preventiva, mas de foro mais individual; não se espera, porém, que o indivíduo intervenha na sociedade na qual se move, mas sobretudo que ele se ajuste às prescrições de quem sabe mais e melhor. A comunicação pretende, normalmente, ser persuasiva e recorre-se usualmente à culpabilidade; podemos incluir nesta geração o modelo de crenças da saúde (Health Belief Model). A crítica mais usual é que se apela usualmente a racionalidade („bom-senso‟) dos indivíduos, desvalorizando outras das suas dimensões (como a emotivo-afectiva, a volitiva, a moral, a ética ou a espiritual, tão importantes, como a raciocinativa para a manutenção, produção de saúde (Santos, 2000; Valadez et al., 2004).

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A terceira geração, designada “educação para a saúde crítica” surgiu na década de noventa do século passado, associada a uma cultura democrática com preocupações sociais. Estabelece relações entre, por um lado, a morbilidade e mortalidade e, por outro, as estruturas socioeconómicas, apostando em mudanças sociais significativas, o que, crê-se, reduziria as desigualdades, promovendo a participação comunitária (Moreno, Garcia e Campos, 2000). Foi influenciada, entre outras, pelas correntes humanistas e de psicologia grupal (no que se refere à Psicologia), pela educação problematizadora de Freire, pela conceção de empowerment (advindo das ciências sociais, desde a economia ao serviço social), desviando-se pois das perspetivas, sobretudo fisiobiológicas, das gerações anteriores. O poder político é responsabilizado pela saúde dos cidadãos, e a estes cabe intervir na modificação das condições socioeconómicas que promovam a desigualdade e falta de equidade nos cuidados de saúde. A educação/promoção da saúde desta geração pretende estabelecer uma relação horizontal entre educandos-educadores, e – pelo menos teoricamente – procura-se que os indivíduos, e sobretudo as comunidades, sejam ativas no significado que se atribui à vida, nela se incluindo as questões de saúde e de doença. A história de vida das pessoas (e todas as suas dimensões), bem como a história das comunidades, devem ser tidas em conta. Estas características apontam para o papel relevante que educadores não formais e informais podem desempenhar. Para tal precisam, no entanto, de formação específica, nomeadamente em educação permanente e comunitária (life long learning). Infelizmente, muitos dos projetos que se reclamam teoricamente desta geração, apresentam modos de atuação característicos de uma das outras gerações, pois falta capacidade e formação (além de vontade, por vezes) de estabelecer relações baseadas na confiança mútua, nas quais por vezes cabe ao pretenso educador saber ouvir e calar, comunicando não verbalmente a sua empatia. Saber apagar-se para que o outro avance na sua vida pode aprender-se em contextos informais, mas sem dúvida que a formação específica ajuda bastante, ainda que esta, sem crença verdadeira naquilo que se defende ideologicamente, nada vale. 5. Níveis de prevenção e educação em saúde Como vimos, os conceitos „educação para a saúde‟ e „promoção da saúde‟ são usados quase sempre indiscriminadamente ao nível das práticas comunitárias de prevenção da doença. Não existindo consenso sobre os tipos de prevenção existentes, podemos, ainda assim, avançar com indicadores genéricos, praticamente aceites por vários especialistas (Tones e Tilford, 2001; Gérvas, 2004; Almeida, 2005; Kuehlein et al., 2010; Jamoulle, 2011). A prevenção básica, dita primária (expressão criada por Leavell e Clarck em 1940), não se refere especificamente a nenhum público determi-

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nado, mas antes a toda a população de um país, ou até a população transnacional. Pretende prevenir o surgimento de determinada patologia, fornecendo indicadores de vigilância, ou de indicadores que se acredita prevenirem aquela patologia específica, ou que previnem patologias em geral. Temos como exemplos a campanha de uso de preservativo (para prevenção de SIDA) ou de campanhas que apelam ao exercício físico diário („pela sua saúde, mexa-se‟). A nível secundário, a prevenção pretende retardar o desenvolvimento de uma patologia em fase inicial, ou até invertê-lo. Aplica-se a pessoas que já possuem uma patologia diagnosticada; pretende responsabilizar as pessoas pelo seu autocuidado e controle, como na toma de medicamentação adequada e controle de alimentação de tensão arterial em doentes coronários, por exemplo. Dirige-se pois usualmente a grupos específicos. Ao nível terciário, a prevenção reporta-se usualmente a doentes crónicos, visando a sua reabilitação e a sua reintegração comunitária. O que se pretende é que as pessoas aprendam a viver o melhor possível com as limitações que as suas doenças lhes trazem; aplica-se a diabéticos, doentes oncológicos em fase de remissão, fibromiálgicos, etc. A prevenção terciária aplica-se também a grupos específicos (como a secundária), e, preferencialmente, a indivíduos. Alguns autores têm vindo a chamar a atenção para a „cultura do risco‟ que as sociedades ocidentais criaram com uma patogenização crescente; em princípio, alguém enferma de algo (illness) até prova em contrário (Gérvas e Fernández, 2006; Norman e Tesser, 2009)! O mínimo desconforto/sofrimento (ainda que na hipótese do possível) tem que ser imediatamente travado, mesmo que não venha a existir, ou ainda que o alívio desse pequeno desconforto possa acarretar danos pesados ao nível biológico, ou psicológico (é o caso, por exemplo, da medicação de mulheres em perimenopausa com hormonas de substituição, em função do princípio a priori de que a mulher ficará com menor qualidade de vida nesta fase da sua vida). A força da indústria farmacêutica e do paradigma biomédico revelam-se bem nesta obsessão pelos riscos (isolados, ou cruzados, mais a gosto dos epidemiólogos), com a qual muitos identificam a educação/promoção da saúde. Na especialidade médica de Medicina familiar, sobretudo, tem-se vindo a falar de „prevenção quaternária‟; esta expressão surgiu pela primeira vez num poster de uma conferência Wonca (Jamoulle e Roland, 2005). Desde essa data que surge no dicionário oficial da mesma organização internacional (Dicionário Wonca de Prática Clínica), originalmente em francês, utilizado por vários autores norte-americanos, espanhóis, portugueses (Melo, 2007; Mendes e Moreira, 2009) e brasileiros. O significado desta expressão remete para uma prevenção das prevenções primária, secundária e terciária, ou seja, pretende alertar para o excesso de medicalização (e de farmacalização, digo eu) pois, em muitos casos, pode ela gerar mais prejuízos que benefícios. Se os três tipos de prevenção menci-

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onadas anteriormente se fundam sobretudo na noção de equidade e justiça social, tão queridos aos mentores da OMS da promoção da saúde, a prevenção quaternária exige que não seja esquecido um dos princípios éticos mais antigos e fundamentadores das práticas de saúde: o princípio de não maleficência (Jamoulle, 2011), sendo a prevenção quaternária definida como iniciativa para identificar doentes em risco de sobre medicalização, para os proteger de novas invasões médicas e para lhes sugerir intervenções eticamente aceitáveis” (Jamoulle e Roland, 2005). Ela visa ainda (no entender de Jamoulle, médico de família e de comunidade, belga) criar critérios e propostas concretas dirigidas para o uso excessivo de intervenção e medicação, tanto diagnóstica como terapêutica. Esta expressão tem vindo, pouco a pouco, a assumir relevância entre médicos de família, dada a sua importância para a saúde pública e para os Sistema Nacionais de Saúde, nomeadamente no que concerne ao eventual excesso de rastreios, à imensidão de pedidos de exames auxiliares de diagnóstico, bem como à medicação dos fatores de risco. Quanto à eficácia de uma prevenção quaternária, ela exige um trabalho em equipa efetivo, formação médica contínua e reestruturação profunda da formação académica médica. Caso ela venha a ser efetiva no que respeita aos médicos, ela terá repercussão em todos os âmbitos, contextos e níveis da „promoção da saúde‟ (mais corretamente: da doença, neste caso). Isto deve-se a dois fatores: o poder do modelo biomédico na efetiva consecução dos programas/projetos de educação/promoção da saúde, e ao facto de ser a classe médica a única que tem poder de prescrição de medicação em quase todos os países do mundo ocidental. 6. Conclusão À mudança de expressões no âmbito da OMS subjazem razões de vária ordem. Uma delas foi a tentativa de descentrar as questões da educação para a saúde do âmbito médico para a esfera das ciências sociais. Com tal, pretendia-se obter vários resultados, entre outros: responsabilizar a sociedade pelas questões da doença e da saúde (com especial ênfase na classe política); obter-se um mundo mais justo e equitativo no que respeita às questões de saúde/doença; conseguir uma atuação mais rápida e mais eficaz junto de populações de risco. Esta vertente coletiva no âmbito da prevenção da doença, e da promoção da saúde, trouxe imensos benefícios às sociedades ocidentais, nomeadamente no que respeita à prevenção primária e à secundária, e sem dúvida da agenda política de qualquer sociedade fazem hoje parte fundamental as questões da doença/saúde. No entanto, ela foi também uma das causas para a vinculação cada vez crescente, ainda que não assumida, da saúde à ausência de enfermidade de origem bioquímica e, por consequência,

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ao descuramento do sofrimento humano, o qual possui sempre uma vertente pessoal muito forte, mesmo quando nela se inclui a dimensão comunitária. Por que o paradigma biomédico se manteve, inclusive na atuação dos técnicos de Promoção da Saúde com formação no âmbito das ciências sociais? Por que razão o público em geral considera que tem havido uma desumanização crescente, nomeadamente nos serviço de saúde, e de promoção da saúde, nomeadamente por parte de (alguns) profissionais de saúde? As principais causas por nós identificadas como tendo provocado a desumanização crescente dos cuidados de saúde, sobretudo ao nível da medicina ocidental são os seguintes: o mecanicismo na Física; o evolucionismo biológico; o liberalismo económico; a biologia molecular; o sucesso antibacteriano; a analgesia na Medicina ocidental; a tecnologia sem limites éticos; o mito da cura. Consideramos, com muitos epistemólogos, que a criação da ciência, enquanto invenção humana como área organizada do saber, ocorreu no ocidente entre os séculos XVI e o XIX, portanto na Idade Moderna, identificando-se o início da Idade Contemporânea com a publicação do primeiro artigo de Einstein (1905) sobre a teoria da relatividade. A formação médica oscilou sempre entre a discursividade argumentativa das universidades escolásticas e a arte da prática clínica, o que faz com que seja considerada epistemologicamente uma ciência aplicada (Caraça, 2001). Esta situação modificou-se contudo substancialmente (ao nível da formação) com a criação no século XIX das academias, dirigidas sobretudo à investigação científica. O paradigma então em vigor era o do mecanicismo newtoniano e foi adotado, naturalmente, nestes centros de investigação médica, alicerçados pelas teorias biológicas mais significativas da época, a saber: o criacionismo e o evolucionismo. Ainda que o criacionismo tenha mantido algum estatuto científico dentro da Medicina até antes da II Guerra, ele foi diminuindo substancialmente face ao prestígio das teorias evolucionistas, sobretudo o darwinismo, especialmente a partir do momento em que se descobriu que ele poderia ser articulado com a teoria genética de Mendel, que tão desprezado fora na sua época. Darwin fora explicitamente influenciado pelo liberalismo económico de Malthus; o ambiente de expansão deste modelo económico no século XX favoreceu imensamente a aceitação do darwinismo-mendelnismo como teoria dominante dentro da biologia e, por extensão, na Medicina. […] The Struggle for Existence amongst all organic beings throughout the world, which inevitably follows the high geometrical ratio of their increase, will be considered. This is the doctrine of Malthus, applied to the whole animal and vegetable kingdoms (Darwin, 1998:3). O desenvolvimento tecnológico concomitante à II Guerra proporcionou a construção de microscópios eletrónicos e atómicos, focalizando a investigação biológica no mundo intracelular.

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Na descrição deste DNA com estrutura físico-química, utilizou-se como quadro explanatório 3 a teoria da informação, impondo-se a partir de então o paradigma da biologia molecular, vinculado à causalidade mecanicista de tipo newtoniano, e suportado pela perspetiva neodarwinista. (Oliveira, 2004, Oliveira e Costa, 2012; Oliveira, 2008). O sucesso antibacteriano foi no entanto bastante devedor ao paradigma molecular na Biologia (para além da dívida de toda a humanidade a Pasteur), tendo-nos criado a ilusão de que seríamos capazes de curar e controlar quase todas as patologias. É claro que esta situação ainda não se deparara com o surgimento de novas doenças, sobretudo as de tipo crónico, já referidas anteriormente. A luta pelo controlo da dor foi um outro êxito (imensamente tardio, face à Medicina oriental) da biologia pós-guerra, tendo tido, porém, um efeito perverso no modo como a sociedade em geral, e os profissionais de saúde em particular, compreendem o sofrimento humano, reduzindo-o usualmente à dor. Para a ilusão de que o sofrimento humano se encontrava resolvido com o controlo da dor, muito contribuiu o extraordinário aumento da tecnologia nos últimos 40 anos; se hoje vivemos (alguns de nós, melhor dizendo) mais anos que os nossos avós, cabe-nos agradecer aos cientistas e engenheiros que nos proporcionaram os exames auxiliares e as técnicas de diagnóstico atuais. Eles acarretaram contudo questões éticas complexas, como a da eutanásia ativa, a distanásia, a clonagem, as células estaminais, etc. Este conjunto de fatores, entre outros, veio reforçar o mito da cura que contamina sobretudo a classe médica, sustentando muitas vezes (de forma não consciente) a discriminação no atendimento de doentes com possibilidades de cura a curto prazo face ao de doentes crónicos (Groopman, 2007). Com esta abordagem epistemológica, pretendo sensibilizar o leitor para a importância da educação quaternária, acima explicitada, sobretudo na formação técnica e académica de profissionais de saúde. Sem esse investimento, dificilmente conseguiremos mudar substancialmente o panorama da humanização dos cuidados de saúde, e de doença. Eles são os atores a quem mais legitimidade o cidadão reconhece nestas questões, pelo que é neles que devemos apostar o nosso investimento social. Tal não é contudo fácil, devido aos avanços que se têm verificado na biologia molecular, com repercussões nos vários domínios da Medicina. Essas novidades científicas servem de pretexto, compreensivelmente, para que a formação académica de foro científico se imponha e ocupe cada vez mais espaço na formação de profissionais de saúde, em todo o mundo, apesar do movimento de inclusão das Humanidades neste tipo de formação (Oliveira, 2009). Ainda que os programas de Educação/Promoção da saúde de grande parte dos profissionais com formação nas ciências sociais possam ser deline3

Um princípio explanatório, em epistemologia, é uma espécie de mapa conceptual organizado e lógico que estrutura a explicação que se faz a partir dele.

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ados com um enquadramento teórico diferenciado, as suas práticas enfermam muitas vezes, também, de vícios próprios do paradigma mecanicista aplicado à saúde/doença, ou seja, o modelo biomédico. Isso ocorre muitas vezes sem consciência de tal, e decorre também da formação académica deste tipo de profissionais. Urge pois mudar o paradigma formativo dos educadores/promotores de saúde, isso implicando um investimento muito forte ao nível da educação quaternária. Mas não nos iludamos: segundo Kuhn (1962) a instauração de um novo paradigma exige a sua distanciação total do paradigma anterior; exige pois uma metateoria organizada e estruturada que paulatinamente vá conquistando terreno em todas as formas de explicação científica de uma determinada época. Men whose research is based on shared paradigms are committed to the same rules and standards for scientific practice» (Kuhn, 1962: 11). Anteriormente ao paradigma mecanicista, na nossa cultura, podemos identificar o ptolemaico-euclidiano-aristotélico; não era propriamente científico, mas continha uma uma epistemê articulada, lógica e com carácter explanatório. Qualquer paradigma se alicerça em pressupostos, crenças de tipo histórico-cultural, sendo eles que indicam as questões que se podem colocar, que fazem sentido, dentro desse paradigma 4. Assim, os métodos nele adotados alicerçam-se, e reforçam, as crenças aceites axiomaticamente. New paradigms arise with destructive changes in beliefs about nature (Kuhn, 1962: 98). A investigação, e práticas, sobre a saúde/doença humana inseriram-se, claro, no paradigma das épocas históricas, e daí o modelo biomédico ser de natureza mecanicista, salientando o método causal de tipo eficiente, ou formal nas suas explicações, o que acarretou, como já afirmámos, imensos benefícios para a humanidade. A medicina evidence-based (explicitamente defendida pelos promotores da saúde, segundo a OMS), baseia-se explicitamente no método experimental-dedutivo, tal como se encontra estabelecido e ratificado desde o século XIX. Os médicos de medicina geral e familiar são aqueles que mais têm vindo a público a dar conta da mudança da prática clínica, nomeadamente quanto à prevenção quaternária, mas na leitura de seus textos não se percebe muito bem como se pode articular uma medicina estatística (que muitos benefícios nos traz, note-se) com a premissa da relação médico-doente ser a base da prevenção quaternária. Ainda que tal possa ser viável, parece-me importante que estes especialistas aprofundassem explicitamente a POEM (evidência orientada ao paciente e a que tem importância) (Norman; Tesser, 2009). Kuhn também nos alertou para o principal 4

Por exemplo, no paradigma mecanicista, a teleologia (ou causalidade final, como lhe chamava Aristóteles) nos sistemas físicos e nos biológicos, deixou de existir, tendo sido apenas mantida em algumas teorias filosóficas (a Filosofia não pode ser considerada, rigorosamente falando, uma ciência.

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meio de divulgação e de aceitação da ciência normal, a educação, e daí a ênfase que nela se coloca neste capítulo, especialmente no que se refere à educação de tipo quaternário. No final do séc. XIX, a algumas áreas das Humanidades foi reconhecido o estatuto de scientia; na mesma época, a Medicina reconhecia-se sobretudo como ciência de cariz bioquímico. Ainda nesse século, porém, começaram a emergir teorias pré-paradigmáticas (Kuhn, 1962: 18), tanto na Física, como na Matemática (mecânica quântica, geometrias não euclidianas, Godel, entre outros). Foi preciso esperar por Aaron Antonovsky até se detetar uma dimensão pré-paradigmática na Medicina, centrada na explicação da patogenia, e da sua prevenção, sobretudo secundária; somente no pós-guerra as prevenções primária e terciária ganharam importância, como acima explicitámos. O conceito de salutogenia, tal como teorizado por Antonovsky, caracteriza-se por envolver uma pesquisa de cariz holista (Rorty, 1989; von Quine, 1969), onde a causalidade eficiente deve ser compreendida, e encaixada, em causalidades múltiplas (a compreensão da salutogenia tem implícita vários fatores, devido ao seu cariz complexo), causalidades de tipo retroativo (pois o equilíbrio homeostático é fulcral na compreensão de fenómenos salutogénicos, nomeadamente quanto ao sentido interno de coerência), e causalidades teleológicas dado que a salutogenia tem em conta, e constrói, o bem-estar global da pessoa (e não só do organismo). Assim, além de diminuir o impacto da casualidade eficiente do modelo biomédico, Antonovsky distancia-se também dele ao recusar a visão dualista típica do mecanicismo (sujeito/objeto; sujeito/natureza; mente/corpo; espírito/mente, etc). Uma das preocupações para que as várias declarações sobre Promoção da saúde remetem é a ecológica; ela, contudo, exige também uma abordagem não mecanicista, se a queremos efetivamente ver concretizada. Exige ver-nos inseridos em patamares de complexidade crescente, com co-dependência mútua (Bateson, 1972). Daí ela revelar outra das lacunas do movimento da Promoção da Saúde: a quase omissão da dimensão moral e ética das pessoas, e das comunidades, com exceção dos princípios bioéticos de justiça (como equidade social) e de autonomia. Sem a acuidade do princípio de responsabilidade (Jonas, 2006) não é possível concretizarmos projetos favorecedores de equilíbrio ecológico, e sem generosidade, altruísmo e confiança, também não. Se não premiarmos explicitamente na educação familiar, escolar, profissional, comunitária, atitudes de generosidade e altruísmo, não podemos esperar que as pessoas pensem em outras pessoas (ou em outros seres vivos) no momento em que lhes dizem que o seu consumo aditivo lhes é prejudicial. Programas que esperam mudanças de comportamento por meros condicionalismos punitivos já demonstraram ser muito pouco eficazes, ainda que não inúteis. Mera informação, por si só, não garante mudanças de estilo de vida, como também já sabemos. Para que isso aconteça, têm que estar en-

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quadrados em relações de confiança no educador para a saúde; daí a necessidade de as relações serem pessoais, e não coletivizantes, sobretudo ao nível das prevenções secundária e terciária (Neto, Aitken, Paldron, 2004; Oliveira, 2004). Não se respeita quem nos ofende, ainda que racionalmente consideremos que erramos; pois a maior parte dos estilos de vida não saudáveis não resultam de uma má vontade, ou teimosia simples, das pessoas. A absoluta necessidade de respeitar a dignidade humana de quem opta por formas de vida consideradas menos saudáveis é a única possibilidade de sermos por elas escutados (Oliveira e Fonte, 2009).

Se culpabilizar, por si, só leva a resultados a curto prazo (dado o ser humano ser bem mais complexo que um cão de Pavlov), a paternalização infantilizante das populações também não produz reais consequências nem na promoção da saúde, nem sequer na prevenção da doença; a desresponsabilização individual e comunitária em nome de diferenças tem também que ser questionada. Ser responsável pelas consequências dos nossos atos é algo problemático nesta área, sobretudo por termos tendência em cair em duas ciladas: culpar a vítima, ou tudo perdoar à vítima. Existe o pressuposto que quem é vítima não é responsável, não possui deveres, mas apenas direitos. Do ponto de vista comunitário, isto é muito sério, e radica na crença de que quem sofre de uma patologia, é alguém superior, em termos éticos. Infelizmente, nem sempre assim é, e devemos responsabilizar as pessoas/comunidades (sem as culpabilizar somente, também) pelas consequências de seus atos, base de qualquer ato educativo baseado na justiça social. Intervir comunitariamente ao nível da saúde não pode ter implícito não promover a mudança. Em nome de idiossincrasias grupais, ou de direitos (sem deveres) de quem sofre, em parte devido às suas próprias opções. Se não queremos que as pessoas nem as populações mudem, então não somos precisos para nada, a não ser que tenhamos a visão de que os promotores da saúde devem desempenhar um papel assistencialista, no pior sentido. Assim, se eu tenho autonomia para consumir drogas ilegais em salas de chuto não deverei ser responsável por esse acto quando ele me acarretar problemas de ordem financeira, por exemplo, aquando me quiser reabilitar? (Oliveira e Fonte, 2009). Considero pois que a expressão «promoção para a saúde» é importante, pelas razões anteriormente apontadas. Defendo, contudo, que devemos continuar a utilizar a expressão «educação para a saúde» quando pretendemos contribuir para que pessoas concretas, em contato direto com o educador, construam projetos de vida com sentido, que nele incluam a resistência à frustração, ao sofrimento, ao erro, à derrota, bem como à fruição da beleza e da alegria. Isso implica investirmos, pela educação permanente e comunitária, na construção de sentido interno de coerência interna das pessoas

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(começando pela dos formadores, na educação quaternária), de modo a identificarem, criarem e gerirem eficazmente os seus recursos gerais de resistência (Antonovsky, 1988). Defendo que a Educação para a Saúde deve ter como principal finalidade compreender como se produz e se mantém saúde em seres que trazem consigo a marca da morte termodinâmica no ato do seu nascimento. Tal equivale a assumir a existência de seres vivos que produzem significados positivos (para si próprios) face a situações muito perturbadoras do seu equilíbrio, transformando-as em fatores de aprendizagem acrescida. Compreender como estes fenómenos auto-organizativos ocorrem surge como especialmente importante quando as grandes preocupações da saúde mundial se deslocam progressivamente para as doenças crónicas, situação para a qual a formação de profissionais de saúde parece encontrar-se ainda bastante deficitária (Oliveira, 2004). 7. Agradecimentos Muitos destes pensamentos emergiram de conversas, algumas ocorridas há mais de meia dúzia de anos, com a Professora Doutora Fernanda Navarro. Mantenho comigo, bem guardados, todos os apontamentos dessas conversas ocorridas ao longo dos anos, bem como documentos por ela a mim endereçados, sobre estas questões. Além da experiência nacional que possui nestas matérias, é uma interlocutora privilegiada por ter pertencido à equipa da OMS. 8. Referências. ALMEIDA, L. (2005), “Da prevenção primordial à prevenção quaternária”, Revista Portuguesa de Saúde Pública, 23(1): 91-96. ANTONOVOSKY, A. (1988), “Unraveling the Mistery of Health”, in ANTONOVSKY, A. (1996), The Salutogenic Model as a Theory to Guide Health Promotion, Health Promotion International, 11(1): 11-18. BATESON, G. (1972), Steps to an ecology of mind, London, Chandler publications. CARAÇA, João (2001), Ciência, Coimbra, Quimera. CASSELL, E. (2004), The nature of suffering and the goals of medicine, Oxford, Oxford University Press. DARWIN, C. (1998), The Origin of Species, London, Senate (Cox and Wilman). ERIKSSON, M; Lindstrom, B. (2008), “A salutogenic interpretation of the Ottawa Charter”, Health Promotion International, 23(2): 190-199. FEIO, A. (2011), O futuro no presente: contributos do pensamento de Hans Jonas em Educação para a Saúde, Dissertação de Mestrado em educação para Saúde, Instituto de Educação, Universidade do Minho, Braga. FREIRE, P. (1976), Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

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CAPÍTULO 4 EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE COMO ESTRATÉGIA DE PROMOÇÃO DE SAÚDE NA GRAVIDEZ: UM ESTUDO QUALITATIVO Maria de Fátima da Silva Vieira Martins Escola Superior de Enfermagem Universidade do Minho

Resumo O presente capítulo tem como objetivo discutir, os significados de vivências associadas à gravidez e os contributos das práticas educativas desenvolvidas pelas enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica no âmbito da vivência da gravidez. O enfoque seguido é o da pesquisa qualitativa. A amostra teve uma construção intencional e foi obtida pelo critério de saturação de informações. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas a 50 mulheres grávidas do noroeste português e posteriormente tratadas através da análise de conteúdo. Desta análise, obtivemos duas categorias: “vivências da gravidez” e “contributos das práticas educativas para o bom desenvolvimento da gravidez”. Dos resultados, concluímos que a gravidez representa para a mulher um remoinho emocional que leva ao aparecimento de ambivalências e de dúvidas que se manifestam por sentimentos de medo, de insegurança e de desânimo. As práticas de educação para a saúde realizadas durante a vigilância pré-natal permitiram à gravida adquirir novos conhecimentos e viver a gravidez de forma mais saudável. Acreditamos que os resultados obtidos possam contribuir para que o enfermeiro especialista em saúde materna e obstétrica tome consciência de que é uma figura-chave no âmbito da educação para a saúde e que deve desenvolver ações educativas mais integradas e dirigidas. Desigualdades Socioterritoriais e Comportamentos de Saúde, Lisboa, Edições Colibri, 2013, pp. 75-91.

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1. Introdução A Saúde foi, é e será sempre, estudada e analisada em todas as sociedades como um direito fundamental da pessoa humana, muito embora, tendo em conta as épocas e os contextos sociais, a valorização e a preocupação com a saúde assumam interesses e importâncias distintas. Hoje, podemos constatar que viver com saúde é também objecto de aprendizagem. Neste processo é necessário que o ser humano seja colocado no centro, de forma a poder atingir um estado completo de bem-estar, sendo ainda necessário que este esteja apto a identificar as suas necessidades e a modificar os seus comportamentos para promover estilos de vida mais saudáveis (Antunes, 2008). É na persecução deste objetivo que a saúde da mulher grávida constitui uma preocupação dos profissionais de saúde. Um dos aspetos mais característicos da gravidez é, sem dúvida, o seu carácter dinâmico, situando-a num processo de mudanças permanentes. Sem risco de exagerar, pode-se afirmar que esta é um paradigma de mudança biológica, construtiva e criativa, que afeta os indivíduos no seu processo de saúde em todas as áreas que integram a pessoa (Colomer, 2000). Assim, a gravidez é considerada como um período de tensão, determinado biologicamente, que se caracteriza por complexas mudanças metabólicas. Configura, ainda, um estado de desequilíbrio temporário devido às grandes perspetivas de mudança de índole social, à necessidade de novas adaptações e de reajustamentos intrapsíquicos e interpessoais. O período pré-natal é, deste modo, uma época de preparação física, psicológica e social da mulher e da sua família para a gravidez, para o parto e para a maternidade. Por isso, constitui um período de intensa aprendizagem para os pais sendo considerado uma oportunidade única para os profissionais de saúde poderem influenciar a saúde da grávida e da sua família através de um atendimento adequado e de orientações específicas, aumentando os conhecimentos relativos à saúde. A reflexão sobre a problemática da educação para a saúde que nos propomos levar avante no presente capítulo, não constitui propriamente uma questão nova. Todavia, surge da constatação que as práticas educativas realizadas pelas enfermeiras especialistas são, quase sempre, executadas de forma casual e segmentada, social e culturalmente indeterminada e pouco preocupadas com a preparação da grávida para a gravidez, para o parto e para a maternidade. Não podemos esquecer que the nurse interacts (interaction) with a human being in a health/illness situation (nursing client), who is in integral part of his sociocultural context (environment) and who is in some sort of transition or is anticipating a transition (transition). The nurse-patient interactions are organized around some purpose (nursing process, problem solving, holistic assessment, or caring actions), and the nurse uses

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some actions (nursing therapeutics) to enhance, bring about, or facilate health (health) (Meleis, 2007: 466). Desde logo, uma questão se levanta: será que as práticas educativas desenvolvidas pelas enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica, no âmbito da vigilância pré-natal nos cuidados de saúde primários, contribuem para o bom desenvolvimento da saúde da grávida? 2. A Educação para a Saúde durante a gravidez A gravidez manifesta-se como o período, com cerca de quarenta semanas, que decorre entre a conceção e o parto (Leal, 1990). É considerada uma fase temporalmente bem definida onde aparecem alterações físicas que acarretam, do ponto de vista psicológico, vivências muito particulares permitindo, de uma forma lenta mas gradual, a preparação para ser mãe. Esta preparação permite empreender cognitivamente papéis e tarefas maternas possibilitando que o seu projeto de maternidade se continue a construir e a consolidar de forma progressiva. A vivência desta fase vai permitir a incorporação existencial de um filho na identidade de mãe. É importante que este processo se desenvolva de uma forma harmoniosa, dentro de um contexto saudável, de modo a permitir uma vivência feliz e agradável da gravidez. A educação para a saúde desempenha neste âmbito um papel de importância capital. Assim, educação e saúde são lugares de produção e utilização de saberes necessários ao desenvolvimento humano. Ao longo dos tempos, a educação para a saúde manifestou-se como uma das principais estratégias utilizadas pelo poder para possibilitar o progresso de intervenções de controlo e prevenção de doenças. Foi, essencialmente no início do século passado, que este tipo de estratégias foi desenvolvido, assumindo a educação para a saúde uma forte preocupação no estabelecimento de normas de conduta moral, de convívio social e de higiene (Martins, 2004). Estas estratégias eram necessárias para provocar uma mudança de comportamentos, susceptível de permitir aos indivíduos uma adaptação às novas realidades da sua vida. Contudo, não se pode desprezar que o que alicerçava os argumentos de atendimento à saúde era a noção de que esses danos ampliavam os índices de mortalidade. Dentro deste cenário, foi valorizada a função educadora da enfermeira e da família, sobretudo da mãe, sobressaindo, porém, ambiguidades sobre o tipo de educação que devia ser executada. É ainda de salientar que a profissão de enfermeira especialista em saúde materna e obstétrica tem vindo a transformar-se através das mudanças demográficas, provocando uma reestruturação dos cuidados de saúde através do desenvolvimento das tecnologias de informação, levando mesmo à alteração na organização dos serviços de saúde. Ces changements s’inscrivent également dans le contexte

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de la mondialisation qui pose un problème de réglementation de la profession tout en limitant l’assurance et l’accès aux soins à des valeurs éthiques, politiques sinon à des restrictions économiques (Benoit et al., 2004: 59). Destacamos o facto da Ordem dos Enfermeiros em 2001 na definição dos Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem ter salientado a importância do desempenho do papel de agente de educação para a saúde ao referir-se que na procura permanente da excelência no exercício profissional, o enfermeiro ajuda os clientes a alcançarem o máximo potencial de saúde, através de: • identificação da situação de saúde da população e dos recursos do utente/família e comunidade; • criação e aproveitamento de oportunidades para promover estilos de vida saudáveis identificados; • promoção do potencial de saúde do utente através da otimização do trabalho adaptativo aos processos vitais, crescimento e desenvolvimento; • fornecimento de informação geradora de aprendizagem cognitiva e de novas capacidades pelo utente. Resulta daqui que a realização de ações educativas no decorrer de todas as etapas do ciclo grávido-puerperal é fundamental para o secesso da gravidez. No âmbito da consulta de vigilância pré-natal, a educação para a saúde surge como um meio facilitador no sentido de preparar as grávidas para um papel ativo na saúde. Pretende-se que as grávidas se sintam capazes para colaborarem nos processos de mudança, com vista à adopção de estilos de vida saudáveis que sejam também promotores de saúde. Neste sentido, as sessões realisadas podem ajudar as mulheres grávidas a desenvolverem a sua capacidade na tomada de decisão, responsabilizando-as não só pela sua saúde, mas também, pela saúde do seu filho. 2.1 O conceito de Educação para a Saúde versus Promoção de Saúde O conceito de educação tem sofrido, ao longo dos tempos, diversas transformações que acompanham, de algum modo, a evolução das sociedades. Embora por vezes denominada “Educação ao Paciente”, grande parte dos fundamentos da Educação para a Saúde já existem desde a antiguidade como se pode comprovar nos escritos de Hipócrates. Não obstante esta referência histórica, o seu grande impacto apenas se fez sentir, de forma centuada, após a II Guerra Mundial (Martins, 2007). Rodrigues, Pereira e Barroso (2005) afirmam que a educação para a saúde é um processo que serve de ligação entre a informação de saúde e as práticas de saúde, considerando o indivíduo como centro da educação. Por

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sua vez, Green, Kreuter, Deeds e Partridge (1980) descrevem a educação para a saúde como uma combinação de experiências de aprendizagem planeadas, com o objectivo de facilitar a mudança voluntária de comportamentos saudáveis. A educação para a saúde sofreu uma rápida mudança paradigmática acompanhando a evolução das Ciências da Saúde e da Educação, podendo ser definida como um processo contínuo e gradual de educação e aprendizagem que se inicia na primeira infância e se amplia ao longo da vida, implicando motivação, comunicação e tomada de decisões. Inicialmente, foi marcada pela visão biomédica em que os factores ligados ao processo saúde/doença eram mais valorizados tendo os factores psico-sócio-culturais um papel mais secundário. A educação para a saúde limitava-se, nessa fase, aos conselhos emanados pelos técnicos de saúde, partindo do princípio que a saúde melhoraria se agissem de acordo com essas recomendações. Embora o Comité de Peritos em Educação Sanitária, em 1954, tenha referido a importância da cultura, da religião e da sociedade sobre o comportamento do indivíduo, estes factores raras vezes foram tidos em conta no planeamento das actividades de educação para a saúde (Pestana, 1996). Na opinião de Sanmarti (1988), podemos distinguir duas grandes etapas na evolução do conceito da educação para a saúde. A primeira, denominada de clássica, vai desde os princípios do século XX até meados da década de setenta, na qual a educação para a saúde visava essencialmente a promoção de condutas saudáveis através de acções educativas dirigidas exclusivamente ao indivíduo, sem qualquer intervenção no ambiente. Na segunda etapa, a partir dos anos setenta, os conceitos e objectivos sofreram uma mudança apreciável. Para além de incidir sobre o indivíduo, considerava-se que a educação para a saúde deveria promover mudanças ambientais e sociais para poder alterar uma determinada conduta. Hoje em dia, os aspectos físicos, psicológicos e sociais não podem ser percebidos como isolados. Mais recentemente, a educação para a saúde abriu-se aos aspectos sociais, ambientais e culturais das pessoas, intervindo nos conhecimentos, nos valores e nos comportamentos. Entendendo a educação para a saúde como um meio de dar a informação necessária para alterar uma série de hábitos e atitudes pouco saudáveis ou de contribuir para um melhor nível de saúde e bem-estar, parece-nos que este conceito pode significar a disponibilização de informação, mas visa, sobretudo, a corresponsabilidade das utentes nas tomadas de decisão. Neste sentido, a educação para a saúde precisa de proporcionar um conjunto de meios ou de instrumentos que permitam aos indivíduos encontrar a solução adequada à sua personalidade e cultura. Desta forma, os indivíduos tornam-se co-produtores activos da transformação do seu perfil. Precioso (1999) salienta que a educação para a saúde não se deverá restringir às actividades tradicionais, nem se limitar, apenas, às informações sobre saúde.

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Por vezes, confunde-se “educação para a saúde” e “promoção de saúde” embora esta última se tenha vindo a diferenciar como sendo mais ampla. Sendo uma definição mais abrangente, a promoção de saúde envolve a participação de toda a população no contexto da sua vida quotidiana e não apenas as pessoas em risco de adoecer. Essa noção está baseada num conceito de saúde também mais amplo, isto é, como um estado positivo e dinâmico na procura de um bem-estar que integra os aspectos físico, mental, ambiental, pessoal e emocional, como a auto-realização pessoal e afectiva, e, não menos importante, os aspectos sociais, tendo como referência o paradigma da igualdade social. No manual de educação para a saúde, a Direcção-Geral da Saúde, citando dois autores Green e Kreuter (1991), define a Promoção de Saúde como qualquer combinação planeada de suportes educativos, políticos e organizacionais para ações e condições de vida que conduzem à saúde dos indivíduos, grupos ou comunidades (Russel, 1996: 5). Nesta perspectiva, a educação para a eaúde está incluída na promoção da saúde. A promoção da saúde deve, deste modo, aparecer como um processo que visa a criação de condições para que as utentes adquiram capacidades que lhes permitam controlar a saúde, responsabilizando-se por ela e agindo sobre os fatores que a influenciam. Os programas de prevenção devem centrar-se, essencialmente, na modificação de comportamentos e atitudes. 2.1 Bases teóricas da Educação para a Saúde A educação para a saúde tem sido considerada internacionalmente como parte integrante dos esforços para prevenir a doença e promover a saúde. Como processo, a educação para a saúde é encarada como uma educação permanente e progressiva, ou seja, uma aprendizagem que dura vários anos e que se inicia na primeira infância, amplificando-se ao longo da vida (Araújo, 2004). A Educação para a Saúde tem sido descrita como a inter-relação entre as ciências biológicas e as ciências do comportamento (Russel, 1996). Desta forma, quatro pilares formam as bases da Educação para a Saúde como se pode observar no Quadro 1. As Ciências da Saúde têm por base uma conceção holística do homem como ser biopsicossocial e desenvolvem a sua ação de forma a atuar aos três níveis de prevenção, remetendo-nos para as disciplinas de Medicina Clássica e suas especialidades ou para as Medicinas Paralelas como a Nutrição, a Fisioterapia, a Saúde Comunitária e as Ciências Sociais. As Ciências do Comportamento conduzem-nos à análise, compreensão e explicação da origem e factores causais de diferentes comportamentos. A Psicologia debruça-se sobre o comportamento individual e a Sociologia analisa o comportamento dos indivíduos inseridos em grupo, consoante o

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Quadro 1 – Bases teóricas da Educação para a Saúde Objectivos

Bases teóricas

Melhorar a saúde

Ciências da Saúde

Produzir adaptação de comportamentos

Ciências do Comportamento

Facilitar a aprendizagem

Ciências da Educação

Comunicar com as pessoas

Ciências da Comunicação

Sectores específicos de actividades Promoção da saúde Prevenção da doença Tratamento e reabilitação Psicologia Sociologia Antropologia Pedagogia Andragogia Comunicação

Fonte: Elaboração própria (Martins, 2004), adaptado de Rochon (1992, 6).

papel que desempenham na família, no emprego ou na própria comunidade em que se inserem. A Antropologia estuda os diferentes modos de vida, cultura, crenças, tradições e hábitos dos indivíduos, vivendo em sociedade. Estas ciências, na medida em que permitem observar os comportamentos individuais e colectivos, tornam-se um precioso auxílio no processo de Educação para a Saúde (Martins, 2007). As Ciências da Educação ocupam também um lugar de destaque no processo de Educação para a Saúde devido ao forte contributo das disciplinas de Pedagogia e Andragogia que, dispondo de uma gama de saberes, permitem analisar e compreender os diferentes processos da aprendizagem e interpretação dos comportamentos humanos ao longo da vida e nos diferentes contextos onde se produzem. Finalmente, as Ciências da Comunicação, valendo-se dos mais variados meios escritos, orais e audiovisuais, representam um efectivo suporte de transmissão da mensagem à comunidade, de modo a que sejam atingidos os objectivos pretendidos (Martins, 2007). A educação para a saúde não poderá nunca resultar de uma única concepção teórica, mas sim do cruzamento destas várias filosofias e áreas do saber. Isto significa que os profissionais devem desempenhar um novo papel de educadores, investir e fazer um grande esforço para ajudar os indivíduos a tomar as atitudes certas e eficazes a favor da sua saúde, analisando com eles as situações que permitam auto determinar-se e agir. Como podemos analisar no Quadro 2, observámos também que, na prática, persistem diversos modelos de educação para a saúde (Modelo Informativo, Modelo Persuasivo-Motivacional, Modelo Político-Económico-Ecológico), os quais condicionam as diferentes práticas, muitas das quais, reducionistas (Rodrigues, Pereira e Barroso, 2005).

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Quadro 2 – Comparação entre o modelo informativo, persuasivo-motivacional e político-económico-ecológico

Metodologia

Papel do profissional

Modelo Informativo Transmissão de conhecimentos; paternalismo

Modelo Persuasivo-Motivacional Persuasão comportamental

Prescritivo: ditadura do expert

Controlador do processo de aprendizagem

Modelo Político-Económico-Ecológico Participação. Intercâmbio; aprendizagem contextual Mediador com a comunidade. O formando é protagonista

Fonte: Rodrigues, Pereira e Barroso (2005: 106).

Sabemos que as enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica, durante ou após a sua formação académica, estabelecem um corpo de conhecimentos científicos passíveis de aperfeiçoar a saúde das pessoas. Esse conjunto de conhecimentos arquitecta no profissional um misto de significados que lhe conferem uma visão e uma explicação dos fenómenos diferentes da visão que as pessoas possuem sobre os mesmos acontecimentos (Sousa, 2006). Esta constatação permite a uniformização de algumas práticas educativas, uma vez que constatámos que as intervenções educativas ainda permanecem centradas na transmissão de conhecimentos fundados nas concepções dos profissionais que, nem sempre, têm em consideração os saberes familiares, a existência de práticas populares ou as representações sobre o processo saúde-doença-corpo (Martins, 2007). Apesar dos profissionais terem intenção de orientar os cuidados para a saúde, transmitem conhecimentos elaborados cientificamente, dificultando a compreensão da grávida. O relacionamento, muitas das vezes dá-se de forma assimétrica, coercitiva, confirmando somente as opiniões do profissional, faltando informações sobre o significado que essas pessoas atribuem ao processo saúde-doença (Queiroz e Jorge, 2004: 72). Assim, encarar a educação como um simples instrumento de transmissão de informações, é olhar a grávida como um recipiente passivo do conhecimento. Mendes (2009) reconheceu que a maioria das acções educativas se canalizam para a prevenção das doenças e a responsabilidade individual, o que indica que as causas sociais da falta de saúde não têm sido consideradas com a devida importância. Numa perspectiva idealista, a educação para a saúde na vigilância pré-natal deveria iniciar-se antes da gravidez (e.g., na consulta pré-concepcional) ou precocemente na gravidez e prolongar-se até três meses após o parto. Redman (2003) realça que o ensino formal precoce na gravidez, tem sido descurado e que as aulas do segundo trimestre de gravidez são quase inexis-

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tentes. A maior parte das vezes, o ensino pré-natal surge no terceiro trimestre, inserido na vertente de preparação para o parto. Normalmente, o aumento da informação durante a gravidez contribui para aumentar os conhecimentos e o bem-estar da mulher, evidenciando menor ocorrência de complicações e problemas. A intervenção em grupo pode funcionar como um suporte que permite as trocas de vivências e a reflexão sobre as mesmas (Nascimento, 2003; Mendes, 2009). Além disso, uma consciencialização colectiva sobre as condições de vida é resultante do diálogo estabelecido (Mendes, 2009). Não podemos omitir que cada cidadão [grávida] assume assim um papel inelutável de actor e de educador de saúde, pelo que a educação se deve centrar nas disposições e capacidades individuais e grupais, oferecendo conhecimentos, influenciando modos de pensar, gerando ou clarificando valores, ajudando a mudar atitudes e crenças, facilitando a aquisição de competências e produzindo mudanças de comportamento e estilos de vida (Rodrigues, Pereira e Barroso, 2005: 19). 3. Metodologia Neste trabalho, demos prioridade às técnicas de pesquisa qualitativa, na medida em que constitui uma modalidade de investigação cada vez mais utilizada no domínio da saúde. Esta técnica metodológica é particularmente vantajosa para o estudo de questões ligadas à vida das pessoas e aos significados que as mesmas atribuem ao contexto social que as rodeia. De facto, a abordagem qualitativa trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes, ou seja, com um conjunto de fenómenos que fazem parte da realidade social (Minayo, Deslandes e Gomes, 2007). Assim, nesta abordagem, a existência de um propósito comum consiste em analisar com profundidade o significado atribuído pelos sujeitos aos factos, às relações e às práticas desenvolvidas. A entrevista semiestruturada foi a técnica usada, uma vez que, constitui uma técnica de colheita de dados regularmente empregue na investigação e relacionada com paradigmas interpretativos ou compreensivos. Esta é, não raras vezes, considerada como uma interação verbal ou uma conversa com sentido. Em termos cronológicos, as entrevistas foram realizadas durante a 6ª semana após o parto, tendo como alvo cinquenta (50) mulheres que tinham acabado de viver a sua gravidez. Em termos geográficos, o presente estudo circunscreveu-se aos municípios de Braga, Vila Verde e Vieira do Minho e proporcionou-nos obter a opinião das utentes relativamente ao contributo/utilidade das práticas desenvolvidas durante a gravidez. Os dados recolhidos pelas entrevistas foram submetidos à análise de conteúdo, técnica que nos pareceu mais adequada para o tipo de investigação que desenvolvemos, uma vez que parte do pressuposto de que, por detrás do

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discurso aparente, simbólico e polissémico, se mascara um sentido que convém desvendar (Bogdan e Biklen, 1994; Bardin, 1995; Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut, 1999; Guerra, 2006). 4. Analise dos relatos: um olhar sobre a gravidez e a educação para a saúde 4.1. Como vive a grávida a sua gravidez? A gravidez desencadeia no organismo materno uma série complexa de fenómenos fisiológicos que, no seu conjunto e interdependência, asseguram as condições adequadas para o normal desenvolvimento e crescimento do feto. As alterações devem-se a um processo fantástico no qual uma célula germinal, o zigoto, origina uma estrutura organizada e altamente complexa, formada por biliões de células. Deste modo, a maioria dos autores ressalta que, a gravidez constitui, para cada mulher, um momento particular da sua vida, em que mudanças fisiológicas envolvem quase todos os órgãos e sistemas, podendo surgir alguns distúrbios e desconfortos (Burroughs, 1995; Graça, 1996; Colomer, 2000). Esta fase é, ou deveria ser, um feliz acontecimento com momentos de alegria e de tristeza que afectam o corpo da mulher mas que também despertam nela desejos e fantasias. Assim, aceitar a gravidez como um tempo de preparação para a maternidade sem que nada suceda é impossível porque é um período demasiado longo. Neste sentido, a gravidez não é uma experiência imóvel, mas um tempo pleno de vida e de significado simbólico, de transformação e de desafio. Colomer (2000) salienta um dos aspetos mais característicos da gravidez e que é, sem dúvida, o seu carácter dinâmico, situando-a num processo de mudanças permanentes. Podemos, desde já, salientar que uma gravidez bem acompanhada terminará certamente com sucesso, dando, assim, origem a uma nova vida. Quando questionadas sobre este período e referindo-se à vivência da gravidez, a maioria destas mulheres relata sentimentos positivos aquando do diagnóstico de gravidez, mesmo quando a mesma não foi planeada. O primeiro impacto foi começar a chorar. (…) comecei a chorar mas era um choro de alegria. Toda a gente perguntava porque é que eu chorava …, Estava tão feliz … (Branca, 30 anos, unida de facto, 12º ano de escolaridade, 2ª gravidez).

Há problemas diferentes em cada gravidez e cada uma é geradora de medos e preocupações distintos, como consequência das inevitáveis alterações que ocorrem durante aquele período. A história de gravidezes anteriores e o facto de não terem planeado a gravidez, são aspetos relevantes nestas vivências. Contudo, o sentimento dominante e comummente referido é um

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sentimento de profunda alegria. Este sentimento é muito peculiar e simboliza, de algum modo, um tipo de beleza feminina. A gravidez torna-se, assim, na concretização de um sonho, na realização de um projeto de vida que não raras vezes, permite a unificação do relacionamento conjugal, tornando-o mais forte e mais intenso. Ah!…. Acho que foi um turbilhão de emoções. Alegria, …claro. Primeiro fiquei muito contente, depois fiquei em estado de choque. Mais tarde comecei a chorar, e pensei se conseguiria dar conta do recado, mas o sentimento que perdurou foi a alegria porque era uma coisa que eu queria muito. (…) Acho que é uma experiência única. É muito bonito. É mais uma etapa da minha vida e talvez a mais bonita, embora depois, também deva ser muito bom. Acho que é uma coisa a que só nós, as mulheres, conseguimos dar aquele valor que ela merece porque só nós é que a conseguimos sentir. (…) Acho que é um sentimento, um sentimento muito nosso (Berta, 24 anos, casada, 12º ano de escolaridade, 1ª gravidez). Algo muito importante, o concretizar de um sonho que eu sempre quis. Chegava a dizer: posso vir a não ser nada na vida, mas de ser mãe, gostava muito (Débora, 33 anos, casada, Licenciatura, 1ª gravidez). Principalmente e em primeiro lugar, a felicidade. Estou felicíssima. Acho que, neste, considero-me a mulher mais feliz do mundo. E, depois, a nossa união ficou mais forte. Ela já era forte, mas acho que ainda ficou mais forte com esta gravidez (…) (Beatriz, 27 anos, casada, 9º ano de escolaridade, 1ª gravidez).

A vivência da gravidez é um fenômeno complexo no qual estão presentes diversos aspetos que compõem a realidade de cada mulher. Lembramos que a gravidez é um processo biológico com dimensões emocionais, sociais e culturais. A experiência da gravidez envolve sentimentos que podem ser simultaneamente gratificantes, frustrantes, ou mesmo confusos. Todavia, como a gravidez é para as mulheres um período de mudanças físicas e psicológicas, quase sempre acompanhado pela vivência de ansiedades, fantasias, temores e expectativas, a maternidade não deixa de ser percebida como um motivo de satisfação e realização pessoal, mesmo que daí possam advir algumas dificuldades e restrições (Nazario e Turato, 2007; Buchabqui, Abeche e Brietzke, 2010). O medo foi um dos principais sentimentos detetados no estudo e complementou o espaço que poderia ser de sentimentos positivos, tal como o sentimento de alegria ou de realização pessoal. 4.2. Contributos das práticas educativas desenvolvidas Na perspetiva de promoção da saúde, as práticas educativas deveriam assumir um novo enfoque, uma vez que o seu eixo norteador é o fortaleci-

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mento da capacidade de escolha das pessoas, neste caso, as mulheres grávidas. No entanto, é necessário que haja um processo de interação entre o conteúdo teórico e a experiência de vida de cada uma e o estabelecimento da confiança e da vinculação da mulher ao serviço de saúde e à enfermeira (Guimarães e Aerts, 2011). Da análise dos relatos, ressaltaram três categorias da contribuição das práticas de educação para a saúde durante a vigilância pré-natal: “pouco contribuíram”, “adquirir novos conhecimentos” e “viver a gravidez de forma mais saudável”. Resulta desta análise que duas grávidas mencionaram que as práticas educativas «pouco contribuíram» para a mudança de comportamentos durante a gravidez, uma vez que, já antes deste período, tinham comportamentos saudáveis pelo que não sentiram necessidade de mudar os seus comportamentos. Desta forma, e reportando-nos essencialmente à variável nutrição, verificamos que os ensinos transmitidos no âmbito da educação para a saúde não foram percebidos pela grávida como necessários. Constatamos ainda que as grávidas que veicularam esta opinião residiam em áreas predominantemente urbanas. Este tema foi assumido por algumas enfermeiras como importante e, por isso, não deixou de ser abordado em cada uma das consultas. A enfermeira especialista deve ter discernimento suficiente para perceber as necessidades evidenciadas pela grávida, desvendando as situações que a estão incomodar, bem como, o motivo prioritário que a levou à consulta. A informação transmitida não pode partir do pressuposto que as grávidas que se apresentam são “seres vazios” onde o profissional de saúde é aquele que as “enche” de conteúdos. A educação para a saúde deve ser um processo de transformação contínuo e progressivo como salientava Paulo Freire. Uma outra grávida relatou que a ausência de ensinos, ou a sua superficialidade, contribuiu para que vivesse a sua gravidez de forma mais ansiosa. Esta mesma grávida alertou, ainda, para a necessidade das enfermeiras abordarem determinados temas de forma mais pormenorizada como, por exemplo, o trabalho de parto e parto. Vejamos a seguinte narrativa. Vivi a gravidez sempre muito ansiosa. O último mês foi o pior de todos. São os formigueiros que aparecem durante a noite (…). Não se consegue dormir e, depois (….) nunca mais chega a hora do nascimento. E, durante o dia, estava sempre a pensar. Sonhava muito com o parto. Aquela ansiedade. Se me tivessem explicado, se calhar ficaria um bocadinho mais sossegada (Graça, 23 anos, unida de facto, 9º ano de escolaridade, 1ª gravidez).

Das cinquenta mulheres entrevistadas, dezanove salientaram que as práticas educativas desenvolvidas pelas enfermeiras especialistas permitiram «adquirir novos conhecimentos». Os mais destacados foram as alterações corporais e os cuidados com o corpo (n=24), a alimentação (n=19), os cuida-

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dos com o recém-nascido (n=16), a amamentação (n=15), o desenvolvimento fetal (n=12), o parto (n=12), a sexualidade (n=7), o pós-parto (n=5) e a toma de medicação (n=3). Da observação efetuada a diversas consultas, verificamos que a educação para a saúde oscila entre momentos de informação e momentos de esclarecimento sobre aqueles temas. Sim, aprendi coisas sobre a sexualidade, sobre o exercício, isto é, como me baixar e evitar pesos. (Amélia, 25 anos, casada, 9º ano de escolaridade, 1ª gravidez). Aprendi muitas coisas novas. Quase tudo. Relembrar só se foi em termos do crescimento embrionário, mas em termos do que se sente, do que fazer, que cuidados ter, isso foi tudo novo. (Cecília, 28 anos, casada, Licenciada, 1ª gravidez). Temos falado de muita coisa, embora algumas coisas não me sejam estranhas porque já vivi uma experiência. Temos falado da epidural, como dar banho ao bebé (…) O enxoval, como se deve preparar os peitos. Tudo isso (Érica, 30 anos, divorciada, 9º ano de escolaridade, 2ª gravidez).

A adoção dos diferentes tipos de comportamentos em função dos conhecimentos adquiridos, manifestou-se claramente na opinião das mulheres. As restantes entrevistadas (n=32) aludem que os ensinamentos efetuados contribuíram para «viver a gravidez de uma forma mais saudável». Estes aspetos lembram-nos a definição de educação para a saúde de Rochon (1991) explicitada no enquadramento teórico e que alude ao facto desta se destinar a facilitar as mudanças voluntárias para uma vida saudável. O modus vivendi das grávidas foi-se alterando à medida que estas foram recebendo os conteúdos científicos na educação para a saúde como, por exemplo, passar a comer legumes, fazer refeições mais equilibradas, controlar os esforços, evitar pegar em pesos, não fumar, não beber bebidas alcoólicas, criar um ambiente calmo com poucas atividades, sempre com o objetivo de promover uma melhor qualidade de vida mas, essencialmente, com o objetivo de proteger a criança que se encontra no seu ventre. No estudo realizado por Valentini (1987), no Québec, esta autora descreve que as prescrições e as interdições estão bem presentes nos discursos dos profissionais de saúde durante a vigilância pré-natal. Esta autora descreve que estas prescrições e proibições são apresentadas no discurso pré-natal como um constrangimento a que a mulher deve ser sujeita, sugerindo-lhe ainda o abandono de “coisas más” e a adoção ou consumo de “coisas boas”. Os meus comportamentos mudaram. Eu costumava ser uma pessoa muito ativa, aliás, trabalhava quase 14 horas por dia porque eu era trabalhadora independente. Então, tive mesmo de parar porque não era possível.

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Antes, dormia apenas 5 horas por noite e agora, durmo ente 8 e 10 horas. Estas mudanças são notáveis porque eu não costumava estar muito tempo em casa. Temos que pensar mais no nosso filho. (Cecília, 28 anos, casada, Licenciatura, 1ª gravidez). (…) Sou uma pessoa que vive muito o stress. Ando sempre a correr. (…) Agora saio de casa, ando a pé, faço piscina ao sábado à noite para aliviar um bocadito, mas as aulas e todo este acompanhamento, ajudaram-me a ficar mais calma (…) (Flávia, 22 anos, casada, 12º ano de escolaridade, 1ª gravidez).

É precisamente neste contexto que a necessidade de falar dos seus medos é primordial. Porém, parece-nos que as práticas educativas não respondem sempre a esta procura. La compréhension et la prise en conte des états émotionnels intrinsèques à l’état de grossesse sont pour beaucoup de professionnels, méconnus; cela peut entrainer soit un déni, soit une banalisation des souffrances (Association Sages-femmes et Recherches, 2000, 310). Comparando os resultados obtidos, constatamos que foram as mulheres seguidas no Centro de Saúde de Braga e de Vila Verde que, de forma mais acentuada, manifestaram a opinião de que as práticas educativas lhes permitiram adquirir novos conhecimentos (40%), quase o dobro das manifestadas pelas grávidas seguidas em Vieira do Minho que não foi além de 23%. Na terceira dimensão, viver a gravidez de uma forma mais saudável, estas diferenças não se verificaram. Não podemos esquecer que a comunicação em enfermagem constitui-se um instrumento básico para o cuidado de enfermagem no âmbito da vigilância pré-natal que deve ser utilizada de modo terapêutico de forma a permitir o atendimento da grávida em todas as suas dimensões. Nestes termos, a educação para a saúde deve ser percebida como uma relação entre sujeitos. 3. Conclusão A necessidade de preparar a mulher grávida para ser mãe, em todas as vertentes do seu novo papel, pondo em relevo o facto de que, antes de ser mãe, é mulher, e que, durante a vivência da gravidez, há cuidados específicos que deve ter consigo própria e para os quais deve estar bem informada e preparada, é salientado por diversos autores (Ziegel e Cranley, 1986). Ao analisar os dados apresentados, observámos que a gravidez, quer seja desejada, ou não, representa para a mulher um remoinho emocional que leva ao aparecimento de ambivalências e de dúvidas que se manifestam por sentimentos de medo, de insegurança e de desânimo. Pensamos que são as experiências, as vivências e o significado que a gravidez assume para cada mulher que devem orientar os processos e as práticas dos enfermeiros, com as necessárias implicações na organização da prestação de cuidados de saúde.

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As acções educativas nas consultas são direccionadas sobretudo para a grávida e caracterizam-se por serem essencialmente prescritivas. Tal como diversos dos autores referidos têm sustentado, são introduzidos por expressões do tipo: “tem que”, “não deve” ou “deve”, “evite” e tentam transmitir normas de cuidados, sem saber as condições concretas de vida da sua interlocotora, o que pode condicionar, de algum modo, a promoção de saúde. De igual modo, sendo a abordagem centrada na mulher como grávida, significa que a enfermeira especialista destaca particularmente as questões ligadas à gravidez, sem considerar as vivências e as experiências que envolvem o ser mulher, como, por exemplo, a relação do corpo com a sexualidade, o relacionamento familiar ou o relacionamento com o marido/companheiro e com outros filhos dendo em conta o processo de gestação. Pedrosa (2003: 24) assinalou que as actividades educativas dos programas incrementados pelas instituições e pelas unidades de cuidados de saúde, são, frequentemente, prescritivas, individualistas e autoritárias, voltadas, principalmente, para a mudança de hábitos cuja referência é o estilo de vida idealizado de pessoas e famílias que parecem viver num mundo sem conflitos e sem contradições. É como se o indivíduo fosse culpado por hábitos insanos e deve modificar-se, adoptando-se a regras consideradas normais. Concordamos com o referido autor quando alude à importância de considerar as práticas educativas numa construção partilhada de saberes, respeitando a visão de cada um dos intervenientes no processo, potencializando o protagonismo das pessoas. Para que o desenvolvimento de práticas educativas seja sensível à dimensão psicossocial e cultural é imprescindível integrar a família nos cuidados. Neste campo de acção, necessitamos de pensar a saúde numa perspectiva de participação social. Assim, este estudo aponta para que, apesar das dificuldades encontradas, é necessário a persistência das enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica no sentido de que sejam implementadas atividades que visem à melhoria das ações educativas. 5. Referências ANTUNES, M.C. (2008), Educação, Saúde e Desenvolvimento, Coimbra, Almedina. ARAÚJO, I.M. (2004), Aprendem na doença, Educam para a Saúde, Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade do Minho, Braga. ASSOCIATION SAGES-FEMMES ET RECHERCHES (2000), «Étude de l´impact de la préparation à la naissance sur la grossesse et accouchement», Les Dossiers de L´Obstétrique, Se préparer à l´accouchement, à la naissance, à la parentalité, Editions E.L.P.E.A.: 308-310. BARDIN, L. (1995), Análise de conteúdo, Lisboa, Edições 70. BENOIT, M. et al. (2004), «La sociologie et les sciences infirmières: Réflexions pour une approche interdisciplinaire», Revue Recherche en Soins Infirmiers, 79: 59-67.

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CAPÍTULO 5 AMBIENTE, COMPORTAMENTOS E OBESIDADE NA POPULAÇÃO PORTUGUESA Helena Nogueira Departamento de Geografia CIAS Universidade de Coimbra

Ana Lourenço Departamento de Geografia Universidade de Coimbra

Resumo Este capítulo inicia-se com uma breve análise teórica sobre a evolução sofrida pelo conceito de saúde, dado que essa evolução justifica um novo paradigma em saúde, fundamentado nas inter-relações entre os indivíduos e os seus lugares. Oportunidade, vulnerabilidade e risco, decorrem não apenas das características individuais, mas também das condições de vida quotidiana. Apresenta-se o exemplo da obesidade, cuja evolução nas últimas décadas tem conduzido os investigadores ao conceito de ambiente obesogénico. Utilizando dados da Organização Mundial da Saúde e dos Inquéritos Nacionais de Saúde, termina-se com uma análise aos comportamentos dos portugueses implicados no aumento de peso e aos níveis de obesidade observados na população, comparando-se alguns indicadores com outros países europeus. 1. Introdução Ao longo do tempo, os conceitos de saúde e de doença têm evoluído sob a influência de diferentes paradigmas, destacando-se o paradigma mecanicisDesigualdades Socioterritoriais e Comportamentos de Saúde, Lisboa, Edições Colibri, 2013, pp. 93-114.

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ta, newtoniano e o socioecológico ou ambiental, hipocrático. O primeiro, mecanicista, reducionista, racionalista e positivista, tem sido o principal estruturante do conhecimento científico desde o século XVI. Esta matriz, subjacente ao modelo biomédico, dominou a prática médica ocidental, sobretudo a partir da eclosão da “revolução bacteriológica”. Neste modelo, o universo e todos os seres vivos são metaforicamente comparados a sistemas mecânicos, cujo funcionamento obedece a leis matemáticas. Cada máquina que existe no universo é composta por peças que podem ser separadas em componentes, progressivamente menores e mais simples. O corpo humano é, pois, uma máquina, entendendo-se saúde como “bom funcionamento”, ou seja, ausência de doença e doença como “avaria”, ou desvio da normalidade; a medicina é normativa e normalizadora, ignorando especificidades e singularidades. A evolução ocorrida no perfil epidemiólogo das populações, e a crescente importância das patologias crónico-degenerativas e psicossociais, para as quais se reconhecem múltiplas causas, sem que alguma seja considerada simultaneamente necessária e suficiente (Meade et al., 1988), sublinhou as insuficiências da abordagem biomédica. A partir da década de 70 do século XX, o paradigma socioecológico, presente na filosofia e na prática médica de Hipócrates, reemerge e torna-se dominante. Neste modelo, para além da dimensão biofísica, a saúde adquire uma dimensão social, cultural e económica, devendo ser entendida de uma forma holística. A medicina torna-se progressivamente ambiental e relacional e os conceitos de saúde e de doença cada vez mais vivenciados, sensíveis, particulares. A mudança que ocorre no conceito de saúde é radical, sendo este cada vez mais entendido como progresso, capacidade, recurso e potencial. Torna-se então um conceito expansivo e inclusivo, culturalmente determinado e dependente da posição social dos indivíduos; longe de ser normativo, sublinha particularidades e singularidades, apresentando-se como um conceito percecional – baseado nas perspetivas e expetativas individuais – e adaptativo/funcional – relacionando-se com a capacidade de desempenhar papéis. O conceito de saúde deixa de ser entendido num modelo patogénico, passando a ser perspetivado num modelo salutogénico (Charlton, 1994): a saúde cria-se, conquista-se, é um recurso que deve ser explorado, um potencial a desenvolver. 2. Saúde, indivíduos e contexto Fundamentando o novo conceito de saúde está a mudança no perfil epidemiológico dos países desenvolvidos, progressivamente marcado pela relevância de novas patologias, de evolução prolongada e etiologia complexa, que vêm reforçar o papel dos comportamentos e estilos de vida na saúde.

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Hábitos, comportamentos e exposições, atuais e passadas, bem como o prolongamento dessas exposições, ganham relevância enquanto fatores determinantes da saúde e das desigualdades em saúde (Power, 1998; Holland et al., 1999). Acresce que o impacte dos comportamentos e exposições na saúde apresenta-se como um processo que atua por acumulação e interação, sendo frequente verificar-se sobreposição entre diferentes fatores de risco. Assim, é usual, até esperado, que o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e de tabaco da mãe grávida, o baixo peso ao nascer, a sobrelotação e más condições de habitabilidade das habitações e as infeções pulmonares ocorram em sobreposição, afetando o desenvolvimento pulmonar das crianças. Porém, estas desvantagens e exposições iniciais tendem a acumular-se durante a vida (Holland et al., 1999) e a combinar-se com modelos tardios de comportamentos pouco saudáveis: o declínio da função pulmonar agrava-se com o hábito de fumar, a poluição e o baixo consumo de vegetais e frutos frescos (Power, 1998). A perspetiva comportamental da saúde e da doença responsabiliza cada indivíduo pelo seu estado de saúde. Esta focalização no indivíduo deve ser entendida no âmbito do quadro político dominante no final da década de 70. De facto, a par da afirmação do modelo da transição epidemiológica, enquanto teoria explicativa do perfil de saúde das populações (Omran, 1971), ocorre a ressurgência política do liberalismo, nos anos 80, com o Presidente Regan, nos EUA e a Primeira-ministra Tatcher, no Reino Unido. O neoliberalismo de Margaret Thatcher, bem expresso por esta num famoso dito – “não há tal coisa de sociedade, há apenas indivíduos” – não deixa margem a quaisquer equívocos relativamente ao papel e à responsabilidade atribuída a cada indivíduo singularmente considerado (Macintyre et al., 2002). No entanto, sabe-se que exposições e comportamentos não são sempre, nem necessariamente, o resultado de opções individuais, mas antes o resultado de oportunidades e constrangimentos estruturais. À semelhança do que acontecia com os riscos para a saúde associados às doenças infeciosas no século XIX, também agora se argumenta que os novos riscos para a saúde devem ser entendidos como função da estrutura social. Assim, considera-se que oportunidades e constrangimentos são modelados pelo estatuto socioeconómico, estando, por isso, embutidos nas estruturas sociais (Costa e Faggiano, 1994). Situações de pobreza precoces, vividas na infância, determinam exposições perigosas tardias e tendem a acumular-se nas classes sociais mais baixas. A exposição ao risco, avaliada por fatores como o hábito de fumar da mãe grávida, o peso à nascença, os comportamentos tabágicos, o baixo consumo de vegetais e de legumes frescos e as más condições de habitabilidade, é maior para as classes socias mais baixas (Macintyre, 1997). Para além das estruturas sociais, os comportamentos individuais são também um resultado do contexto socioecológico em que cada indivíduo opera. A reorientação contextual da ação individual acentua a importância

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dos locais de residência e de trabalho nos comportamentos e na saúde individual. Vários estudos revelam que os atributos do contexto são determinantes dos comportamentos individuais, exigindo uma compreensão contextualizada desses comportamentos. O homem é um agente de transformação do meio, interagindo com esse meio, ele próprio sempre em evolução e em contínua mudança, de formas diferentes, em diferentes tempos (Duncan et al., 1996). 2.1 Lugares e saúde Investigações desenvolvidas em diferentes contextos mostram que os resultados em saúde dependem não só de quem se é, mas também do lugar em que se vive, variando em função dos bairros, dos lugares, das vizinhanças (Brimblecombe et al., 1999; Gatrell et al., 2000; Walczac, 2002; Cummins et al., 2004, 2005; Wilson et al., 2004; Nogueira, 2008), o que enfatiza a necessidade de considerar o espaço geográfico e social nos estudos de saúde. Estudando variações em saúde na Área Metropolitana de Lisboa, Nogueira (2008) refere-se à emergência de territórios de oportunidade, cujas características os tornam capazes de promover a saúde da sua população, mas também de territórios de vulnerabilidade e risco, marcados pela acumulação de problemas e complexificação das necessidades sociais, com impactes negativos na saúde da população. A privação socioeconómica, o acesso a recursos (equipamentos e infraestruturas) necessários ao quotidiano, a disponibilidade e acessibilidade ao transporte público, a coesão e o capital social são alguns dos fatores que podem promover a saúde da população; uma das vias de conexão entre estes atributos e a saúde são os comportamentos. Vários estudos têm analisado as inter-relações entre ambiente e comportamentos relacionados com a saúde, sobretudo consumo de álcool, tabagismo, dieta e atividade física. Lawlor et al., (2003) sublinham o impacte do ambiente nos níveis de atividade física, atribuindo especial importância à qualidade e segurança de espaços apropriados à prática de exercício físico regular. Neste sentido, vários autores entendem que a qualidade, segurança e localização de vias pedonais e ciclovias, a disponibilidade e segurança de espaços públicos abertos, o desenho urbano e a estética ambiental, entre outros aspetos, condicionam a prática de exercício físico, como andar a pé ou de bicicleta e o desenvolvimento de atividades lúdicas no exterior (Barton e Tsourou, 2000; Lawor et al., 2003; Wheeler, 2004; Banister, 2005; Van Lenthe et al., 2005). Também a disponibilidade e a qualidade das oportunidades locais pode influenciar positiva ou negativamente a saúde. Recursos locais de qualidade, acessíveis por meio de deslocações a pé ou de bicicleta, incrementam os níveis de atividade física e diminuem a utilização do transporte privado,

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melhorando a saúde (Wheeler, 2004; Banister, 2005). O tipo de comércio que existe num dado lugar parece também influenciar hábitos de consumo. Refiram-se os trabalhos de Weitzman et al., (2003), que concluem pela existência de correlações positivas e significativas entre a densidade de lojas de bebidas alcoólicas e hábitos de consumo excessivo de álcool; Chuang et al., (2005), que apontam conclusões semelhantes para a relação entre pontos de venda de tabaco e hábitos tabágicos; Macintyre et al., (1993, 2002) e Cummins (2005) que, em Glasgow, concluem que a proximidade de lojas alimentares e a disponibilidade de alimentos frescos e saudáveis condicionam a dieta individual e familiar. Van Lenthe et al., (2005) concluem ainda que a disponibilidade e qualidade das infraestruturas desportivas pode ser um fator promotor da prática de exercício físico. O estudo da interação das determinantes comportamentais, individuais, e contextuais da saúde revela que os comportamentos, apesar de serem entendidos como uma opção individual, devem também ser perspetivados como o resultado do jogo dos fatores ambientais. Por exemplo, o comportamento sedentário ou, em oposição, de atividade física, para além de ser influenciado por fatores individuais (como o género, a idade e a ocupação), é-o também pelas infraestruturas de lazer e desporto disponíveis, o acesso ao transporte público e ao transporte ativo, as condições para caminhar e andar a pé (desde a existência de passeios até à sinalização e iluminação), a segurança, real e percecionada, tanto a rodoviária (relacionada com a intensidade e velocidade do tráfego automóvel), como a criminal, dependendo esta última, muitas vezes, do ambiente social, nomeadamente da coesão social e do capital social (Cohen et al., 2006). A este propósito, O’Donnell (2005) refere que uma abundância de oportunidade pode minimizar a necessidade de educação e motivação, enquanto uma ausência de oportunidade provavelmente impede a prática de um estilo de vida saudável, mesmo para uma pessoa informada e motivada. Os comportamentos promotores de desigualdades em saúde são, pois, comportamentos contextuais, já que dependem das condições de vida quotidiana, ou seja, dos atributos dos lugares em que se vive e trabalha. Porém, para o caráter único e irrepetível dos lugares, para a sua singularidade, contribuem também as pessoas que o habitam e nele desenvolvem as suas vidas, os seus comportamentos e estilos de vida. Lawson (2001) refere que os lugares são “contextos comportamentais” uma vez que, influenciando os comportamentos individuais, são também, simultaneamente, uma extensão desses próprios comportamentos. Sendo os comportamentos, comportamentos contextuais, também os contextos são contextos comportamentais, dado que comportamentos saudáveis criam lugares saudáveis, capazes de gerar comportamentos progressivamente mais saudáveis, podendo desencadear-se uma cadeia de efeitos retroativos e cumulativos, com grande impacte positivo na saúde individual e coletiva (Nogueira, 2009). Note-se, no entan-

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to, que a cadeia pode desenrolar-se em sentido oposto, conduzindo à emergência de espaços segregados, promotores de vulnerabilidade e risco para a saúde. 2.2 Ambiente Obesogénico As doenças crónicas e degenerativas dominam o perfil epidemiológico dos países desenvolvidos. Estas patologias, apesar de diversificadas, partilham os mesmos comportamentos de risco – inatividade física, dieta desequilibrada, tabagismo. Dois destes comportamentos estão diretamente implicados na tendência mundialmente verificada de aumento de peso, revelando-se este aumento de peso, e a obesidade, como importantes contributos para o acréscimo das doenças crónicas. A obesidade é hoje um dos maiores problemas de saúde pública da humanidade. É-o pelo seu impacto na mortalidade e na morbilidade, dado o seu papel potenciador, ou mesmo desencadeador, em várias doenças crónicas e é-o também pelas suas elevadas prevalências, tendo sido designada como a pandemia do século XXI. Trata-se de uma patologia característica de perfis epidemiológicos modernos, revelando-se como um problema multifatorial, cujo desenvolvimento tem sido atribuído a uma interação entre os genes e o ambiente. De facto, e apesar do reconhecido papel dos fatores genéticos como promotores de “suscetibilidade” a esta patologia, o aumento das prevalências entre populações geneticamente estáveis destaca o papel dos fatores ambientais e do seu efeito “obesogénico”. Resultando a obesidade de um desequilíbrio entre a energia consumida e a energia despendida, a comunidade científica tem procurado saber que fatores do ambiente promovem o aporte calórico e/ou desencorajam o gasto de energia na atividade física quotidiana (Calthorpe e Fulton, 2001; Jochelson, 2004; Kim et al., 2006; Poortinga, 2006), tendo sido já apontados vários fatores, físicos e imateriais, como promotores de ambientes obesogénicos. 2.2.1 Aporte calórico

Vários estudos mostram que a adoção de uma dieta variada e saudável é mais fácil se o mercado local responder a essa necessidade, disponibilizando alimentos saudáveis a preços acessíveis. No seu relatório anual de 2002, a OMS sublinha a associação entre o pior acesso a alimentos saudáveis, ou o melhor acesso a alimentos pouco saudáveis, com as doenças relacionadas com os comportamentos alimentares: obesidade, mas também diabetes, cancro e doenças cardiovasculares (OMS, 2002). O tipo de lojas disponíveis na área de residência influencia a dieta, uma vez que certos alimentos são mais característicos de determinadas lojas,

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sendo por isso mais consumidos nas áreas em que estas são mais abundantes. Segundo Morland et al. (2002), os residentes em áreas com maior disponibilidade de supermercados têm maior probabilidade de adotar uma dieta saudável; o consumo de fruta e vegetais é maior entre aqueles que compram os seus alimentos em supermercados, por comparação a quem compra em lojas mais pequenas (lojas de conveniência), sugerindo-se a existência de uma relação entre a disponibilidade de certos alimentos, associada a determinado tipo de comércio alimentar, e a dieta. Nos EUA, Kwate et al. (2009) relacionam a elevada prevalência de obesidade em populações Afro-Americanas ao ambiente alimentar das suas áreas de residência, com destaque para a densidade de restaurantes de “fast food. Na Holanda, Kamphuis et al. (2007), sugerem também a existência de uma associação entre disponibilidade e consumo de alimentos frescos (frutos e legumes). 2.2.2 Dispêndio energético

Se é verdade que se têm verificado mudanças alimentares, com consequências no aumento de peso, é também verdade que tem havido uma mudança progressiva dos estilos de vida, para modelos caracterizados por maiores níveis de sedentarismo, mudanças estas que têm sido imputadas a alterações sociais e tecnológicas que afetam os comportamentos dos indivíduos nos locais de trabalho, em casa e nos modos de transporte (Cerin et al., 2009). Uso do solo, desenho urbano, organização social e segurança, ambiente sociorelacional, são alguns dos fatores ambientais implicados na formação de comunidades caminháveis (walkable community), definidas como aquelas em que as características do ambiente físico e social contribuem para a adoção de estilos de vida ativos e saudáveis. Numa “comunidade caminhável”, segurança, suporte e coesão social, propiciam o desenvolvimento da atividade física formal e informal, sobretudo a que resulta de caminhar e andar de bicicleta, tanto por necessidade (deslocações para o local de trabalho e para aceder a recursos), como por lazer (prática de desporto e atividades recreativas) (Leslie et al., 2007). Em relação ao ambiente construído, vários fatores têm sido relacionados com a atividade física. Densidade, uso do solo, desenho urbano, conetividade, entre outras características, contribuem para a pedonização dos lugares (Nogueira, 2009). Ao nível do uso do solo, a diversidade – mixed de funções urbanas, como a residencial e comercial – associa-se ao aumento da atividade física, sobretudo a informal, resultante do caminhar (Frank et al., 2006); a disponibilidade e qualidade de infraestruturas e equipamentos de suporte ao desporto e ao lazer (Giles-Corti e Donovan, 2002), como ginásios, centros recreativos, espaços verdes, parques e espaços abertos atrativos, particular-

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mente quando estes possuem equipamentos destinados ao lazer e ao desporto, como cafés e circuitos de manutenção. A densificação urbana tem sido também associada ao aumento da atividade física, considerando-se que áreas densas, caracterizadas pela proximidade de pontos de interesse, proporcionam e potenciam acessos pedonais; em oposição, aponta-se a dispersão urbana, referida na literatura como sprawl urbano, relacionando-a com a diminuição da atividade física (Frank et al., 2006), pelo uso crescente do automóvel que lhe está associada. 3. Comportamentos e obesidade na população portuguesa Efetua-se, nesta parte do texto, uma análise a alguns dados disponíveis, que permitem caraterizar comportamentos da população portuguesa implicados no ganho de peso, comparando alguns valores com os observados noutros países europeus. Refere-se, em particular, o exemplo dos adolescentes, quer pela maior disponibilidade de informação para esta faixa etária, quer pela importância da adolescência enquanto fase de transição entre comportamentos adquiridos na infância e assunção de novos comportamentos, com provável prolongamento para a vida adulta, quer ainda porque muitas das patologias que se manifestam na vida adulta têm as suas raízes na adolescência. Termina-se com uma análise da prevalência da obesidade na população portuguesa, sublinhando-se as variações socioterritoriais que esta patologia apresenta. 3.1 Comportamentos alimentares Em 1989, segundo a Organização Mundial de Saúde (2012), Portugal apresentava um consumo calórico médio de 3348 kcal por pessoa/dia, valor excessivo mas não o mais alto da Europa (Hungria, Turquia e Grécia). Em 2009, o valor tinha subido para 3617 kcal 1, refletindo um aumento de 616 kcal face a 1970 (OMS, 2012). Em Portugal, no período 2009/2010, à semelhança do que era reportado em outros países da Europa, o consumo de vegetais e legumes encontrava-se muito aquém do desejado, uma vez que apenas 27,5% dos adolescentes ingeriam este tipo de alimentos diariamente 2 (Currie et al., 2012). Refira-se 1

Este valor ultrapassa largamente o valor médio recomendado para o consumo diário de um adulto (2000 a 2500 kcal). 2 Em 2009/2010, segundo o Health Behaviour in Shool-aged Children Study, a Bélgica (51,8%), Ucrânia (45,3%), França (45,5%) e Suíça (42,5%) referiram os valores percentuais mais elevados de adolescentes a consumir uma ou mais porções de vegetais por dia. Já os piores valores foram referidos pela Estónia (20%), Espanha (21,5%) e Croácia (24%) (Currie, et al., 2012).

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ainda que este consumo é diferenciado por género, com os adolescentes do sexo feminino a relatarem quer um maior consumo, quer um consumo mais precoce, ou seja, em idades mais jovens (Figura 1). Observa-se ainda que o valor percentual de adolescentes a consumir uma ou mais porções de vegetais diminui com o aumento da idade, em ambos os sexos. Figura 1. Prevalência de consumo de vegetais e legumes em Portugal, segundo o género e a idade, 2009/2010

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2012).

Considerando o consumo de fruta, verifica-se que Portugal está no conjunto dos países europeus com valores mais altos, acompanhado pela Dinamarca (48,8%), Arménia (48,5%) e Suíça (42,8%) (Currie et al., 2012). Segundo o Health Behavior School-aged Children Study, em 2009-2010, cerca de 43,8% dos adolescentes portugueses referiam ingerir uma ou mais porções diárias de fruta, sendo a frequência nas raparigas muito superior à observada nos rapazes, independentemente da idade (Currie et al., 2012). Os resultados deste estudo mostram, por outro lado, um decréscimo na frequência de consumo de frutas com o avanço da idade, em ambos os sexos (Figura 2). Refira-se ainda que o mesmo relatório (HBSC 2009/2010) sublinha o impacte do estatuto socioeconómico do agregado familiar no padrão de consumo de fruta dos adolescentes de ambos os sexos. Rapazes e raparigas de elevado estatuto socioeconómico consomem diariamente mais fruta do que aqueles que pertencem a famílias mais desfavorecidas. Relativamente ao consumo de chocolates e doces, Portugal apresenta valores mais altos, quando comparado com a Finlândia (8,9%), Dinamarca (13,5%), Suécia (13,5%) e Noruega (15,7%). Segundo os dados do Health Behaviour in School-aged Children Study, em 2001-2002, cerca de 22,6% dos adolescentes portugueses ingeriam chocolates e doces uma ou mais vezes por dia (Currie et al., 2004). Refira-se ainda que o menor consumo

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Figura 2. Consumo de frutas em Portugal, segundo o género e a idade, 2009/2010

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2012).

diário destes alimentos de baixo valor nutricional registava-se nos adolescentes de 11 anos e do sexo feminino (Currie et al., 2004). Este resultado é concordante com o diagnóstico efetuado pelo Health Behavior in School-aged Children Study de 2009-2010, que indicava que 21,1% dos adolescentes portugueses declaravam beber refrigerante pelo menos uma vez por dia, sendo a frequência na população masculina superior à observada na população feminina (Currie et al., 2012). Uma vez mais, é entre os adolescentes de 11 anos que a ingestão destes alimentos é menor (Figura 3). O mesmo estudo refere ainda que o consumo de refrigerantes é menor entre os adolescentes pertencentes aos agregados familiares de elevado estatuto socioeconómico, diferença que se acentua para o sexo masculino. A atividade física é outro comportamento, para além dos alimentares, com importância no aumento de peso (More et al., 1995). A este nível, Portugal apresenta valores mais baixos de prática regular, quando comparado com a Noruega (69,5%), Luxemburgo (70%), Dinamarca (70,1%) e Holanda (93,2%). Em 2009-2010, somente 38,3% dos adolescentes portugueses referiam prática de exercício físico, de intensidade vigorosa, pelo menos duas vezes por semana (Currie et al., 2012). De acordo com o Health Behavior in School-aged Children Study, os rapazes (49,3%) referem ser mais ativos do que as raparigas (27,3%) (Figura 5). Este estudo refere ainda que os jovens mais velhos praticam mais frequentemente atividade física do que os jovens mais novos. Segundo o Health Behaviour in Shool-aged Children Study (2009/2010), a prática desportiva é também um comportamento diferenciado segundo o estatuto socioeconómico, verificando-se maior frequência desportiva entre os adolescentes do topo da hierarquia social (Currie et al., 2012).

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Figura 3. Consumo de doces e chocolates em Portugal, segundo o género e a idade, 2001/2002

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2004).

Figura 4. Consumo de refrigerante em Portugal, segundo género e idade, 2009/2010

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2012).

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Desigualdades Socioterritoriais e comportamentos em saúde

3.2 Comportamentos de atividade física e sedentários Figura 5. Participação em atividades físicas de intensidade vigorosa, segundo género e idade, 2009/2010

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2012).

De acordo com a informação publicada pela Organização Mundial de Saúde, em 2009-2010, 66,3% dos adolescentes portugueses declaravam ver televisão duas ou mais horas por dia, sendo este comportamento menos frequente nos adolescentes de 11 anos e do sexo feminino (Figura 6) (Currie et al., 2012). Os valores mais elevados são observados na Estónia (69,1%), Figura 6. Visionamento televisivo em Portugal, segundo género e idade, 2009/2010

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2012).

Ambiente, comportamentos e obesidade na população portuguesa

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Lituânia (71,1%), Croácia (71,5%), Ucrânia (72%) e Eslováquia (72,5%) (adolescentes com consumos televisivo diário de pelo menos uma hora). Este comportamento apresenta-se também diferenciado segundo o género, registando-se menores consumos televisivos nas raparigas pertencentes a agregados familiares de elevado estatuto socioeconómico, contrariamente ao observado nos rapazes (Currie et al., 2012). Ainda em relação aos comportamentos sedentários, e segundo o Health Behavior in School-aged Children de 2009-2010, refira-se que 35% dos adolescentes afirmavam jogar computador ou consola pelo menos uma hora por dia, valor que coloca Portugal muito próximo dos países com os maiores valores da Europa 3 (Currie et al., 2012). O Health Behavior in School-aged Children de 2009-2010 revela, por outro lado, a existência de padrões de consumo diferentes segundo género e idade. De acordo com este estudo, são os adolescentes de 15 anos do sexo masculino que referem passar mais tempo a jogar computador e consola, contrariamente ao revelado pelos adolescentes do sexo feminino (Currie et al., 2012). Figura 7. Uso de consola de jogos e de computador, segundo género e idade, 2009/2010

Fonte: Elaborado a partir de Currie et al. (2012).

3.3 Obesidade na população portuguesa Em Portugal, o excesso de peso e obesidade na população adulta atingem valores preocupantes em ambos os sexos. Torres et al., (1989) com base numa amostra de 1249 indivíduos com mais de 20 anos, residentes na área do Grande Porto, descrevem prevalências de obesidade de 59,5% no sexo 3

Em 2009/2010, a Roménia, a Escócia e a Estónia referem os valores mais altos, respetivamente, 60%, 47% e 46,3%.

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Desigualdades Socioterritoriais e comportamentos em saúde

masculino e de 54,8% no sexo feminino, tendo sido neste último grupo que se registaram as formas de obesidade mais severas. Em 1990, baseado nos registos da inspeção militar de 1983, Cardoso e Vieira (1990) mostram que 10% dos mancebos portugueses com 20 anos são obesos. Num estudo realizado com base nos registos das inspeções militares, relativos ao período de 1960/1990, Castro et al. (1998) verificam que a percentagem de jovens obesos (IMC≥30 Kg/m2) aumentou de 0,9% para 2,9%. Por sua vez, um estudo realizado com dados relativos ao período entre 1985 e 1998, utilizando uma amostra de 741476 recrutas nascidos entre 1988 e 1979, mostrou um aumento da prevalência de excesso de peso de 10% para 13,5% em 13 anos de intervalo (Padez, 2000). Num estudo realizado no distrito de Setúbal no âmbito do programa CINDI, Martins, et al., (1993) concluíram que 49,1% dos homens e 37,7% das mulheres tinham excesso de peso e que 15,3% dos homens e 20,3% das mulheres apresentavam obesidade. Padez (2002), com base numa amostra de 6201 estudantes matriculados na Universidade de Coimbra, encontrou valores de excesso de peso em 20,3% dos rapazes e 10,5% das raparigas e de obesidade de 2,7% e 1,3%, respetivamente em rapazes e raparigas. Num estudo realizado em Portugal Continental, com uma amostra representativa da população portuguesa entre os 18 e os 65 anos. Carmo et al. (2008) concluíram que, em 2003/2005, 34,4% das mulheres e 45,2% dos homens apresentavam excesso de peso e que 13,4% das mulheres e 15,5% dos homens apresentavam obesidade. Este estudo revela, por outro lado, que a prevalência de excesso de peso e obesidade entre 1995/ 1998 e 2003/2005 aumentou de 49,6% para 53,6% 4 (Carmo et al., 2008). Em 2005/2006, de acordo com o Inquérito Nacional de Saúde (INSA, 2009), 15,2% da população residente em Portugal Continental com mais de 18 anos era obesa 5, sendo a prevalência de obesidade no sexo feminino superior à verificada no sexo masculino (15,9% vs. 14,4%). Comparando os resultados dos dois últimos Inquéritos Nacionais de Saúde, verifica-se que a prevalência de obesidade aumentou 3,2 % nos últimos 7 anos; a Região Norte e a Região de Lisboa e Vale do Tejo registaram os aumentos mais acentuados (11,1% e 12,9% em 1999 para 14,9% e 16,8% em 2005, respetivamente) (INSA, 2001; INSA, 2009). Ao analisar a prevalência de obesidade em 2005/2006 desagregada segundo as cinco regiões plano, observa-se a existência de diferenças geográficas relevantes, com a região do Alentejo (15,5%) e Lisboa e Vale do Tejo (16,8%) a registar a maior proporção de obesos, em oposição ao Algarve (12,0%) (Figura 8) (INSA, 2009). 4

Estes dados sugerem que, apesar de a obesidade ter sido identificada como um problema de saúde pública há uma década atrás, os esforços desenvolvidos até à data não surtiram grandes efeitos. 5 No inquérito referido foram consideradas obesas todas as pessoas com um IMC≥30Kg/m2 (INS, 2005/2006).

Ambiente, comportamentos e obesidade na população portuguesa

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Figura 8. Prevalência de obesidade em Portugal Continental por Região, 2005/2006

Fonte: Elaborado a partir de INSA, 2009.

O Inquérito Nacional de Saúde de 2005/2006 revelou, por outro lado, que a proporção de indivíduos com obesidade vai aumentando à medida que aumenta a idade, até atingir os 74 anos, diminuindo ligeiramente a partir daí. Tanto nos homens como nas mulheres, a prevalência de obesidade aumenta gradualmente, sobretudo a partir do escalão etário 25-34 anos, com o pico da prevalência a registar-se entre os 55-64 anos (mulheres: 24,3%; homens: 22,0%) (Figura 9). Figura 9. Prevalência de obesidade em Portugal Continental, segundo género e idade, 2005/206

Fonte: Elaborado a partir de INSA, 2009.

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Ainda segundo este inquérito, a proporção de indivíduos pré-obesos e obesos aumenta com a diminuição da escolaridade, tendência esperada face ao padrão social dos comportamentos relacionados com o ganho de peso, anteriormente analisados, e possivelmente responsável pela maior prevalência de obesidade em comunidades socialmente desfavorecidas (Quadro 1) (INSA, 2009). Quadro. 1.População inquirida com pré-obesidade e obesidade, segundo anos de escolaridade completos e género, em Portugal Continental, 2005/2006 Escolaridade Menos de 5 anos De 5 a 9 anos De 10 a 12 anos De 13 a mais anos

Pré-obesidade (IMC≥27Kg/m2 e
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