Deslocamentos e reinvenção do passado no documentário autobiográfico argentino: uma análise de Los rubios (2003), Fotografías (2007) e Familia tipo (2009)

May 29, 2017 | Autor: Sandra Coelho | Categoria: Autobiography, Migration Studies, Documentário
Share Embed


Descrição do Produto

Capítulo II – Cinema – Cinema

Deslocamentos e reinvenção do passado no documentário autobiográfico argentino: uma análise de Los rubios (2003), Fotografías (2007) e Familia tipo (2009) Sandra Straccialano Coelho UFBA, Brasil

Abstract Part of a broader investigation on autobiographical Latin American documentaries from 1980’s focusing on family memories of exile and displacement, this communication aims to develop an analysis of the main audiovisual strategies used on three Argentine movies: Los rubios (Albertina Carri, 2003), Fotografías (Andrés Di Tella, 2007) and Familia tipo (Cecilia Priego, 2009), from which filmmakers reinvent the recent past. A reinvention that highlights how inseparable are the individual (biography; family) and the collective (society; nation), which has constituted the landmark of a contemporary artistic production often identified as part of a “subjective turn” (SARLO, 2005) or the configuration of “past-present” cultures (HUSSEYN, 2003). Keywords: documentary, autobiography, displacement, memory, Argentine cinema.

Introdução O artigo que aqui se apresenta resulta de uma primeira aproximação e exercício de análise na segunda etapa de uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo traçar uma cartografia do cinema documentário autobiográfico que tematiza experiências de migrações e deslocamentos identitários, segundo tendência que tem sido observada com maior intensidade especialmente a partir dos anos de 19801990. Uma tendência que, se para Nichols se inclui no escopo do “documentário performativo” (NICHOLS, 2005), segundo Michael Renov poderia se ver incluída, em grande parte, em uma das faces mais instigantes da produção documental contemporânea, a qual o autor intitula como “etnografia doméstica”: A etnografia doméstica é um modo de prática autobiográfica que une o autoquestionamento à preocupação da etnografia em documentar a vida dos outros, em particular, membros da família que servem como espelho ou contraste para o eu. Devido aos laços de parentesco, sujeito e objeto estão atados um ao outro. O resultado é um autorretrato refratado através de um outro familiar. (RENOV, 2014: 42)

Na primeira etapa dessa pesquisa, realizada durante estágio pós-doutoral junto ao Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta de Lisboa (CEMRI/UAb) em 2014, o foco de análise se viu circunscrito especialmente a cenários de produção europeus, possibilitando observar que a grande maioria dos autores que tem se dedicado ao estudo da temática nesse contexto específico tem se mostrado interessada na análise de problemáticas relativas a diferentes cenários inter- e transculturais

que parecem se tornar a cada dia mais complexos – sobretudo a partir do panorama que se configurou depois da independência das últimas colônias europeias na África e na Ásia e, mais recentemente, daquele decorrente das intensas dinâmicas migratórias para o continente europeu impulsionadas por diferentes cenários de crise econômica e guerra. Frente a esse contexto complexo, se observou a predominância de análises culturalistas e, sobretudo, vinculadas ao panorama dos estudos pós-coloniais na abordagem dessa filmografia em questão. Podese destacar, nesse sentido, o trabalho que vem sendo desenvolvido por Hamid Naficy (2001, 2004) sobre accented cinema, por exemplo. Vale ainda notar que a maior parte dessa bibliografia tem sido dedicada à análise de filmes ficcionais, o que confirma a necessidade de um maior investimento sobre essa temática no âmbito da produção documental. A par dessa tendência, se constatou, paralelamente, a predominância de documentários produzidos em território francês ou em coprodução com a França – filmes realizados, em sua maioria, por cineastas nascidos no país cujas famílias são de origem magrebina ou judaica –, seguida pela produção alemã, na qual se observam sobretudo representações de trajetórias de vida vinculadas à migração turca, além de outros cenários migratórios que foram identificados mais pontualmente. Outro cenário de produção relevante percebido nessa primeira fase, mas que ainda merece ser investigado em maior profundidade, se encontra nos EUA – um cenário que se configura, em uma análise preliminar, a partir de uma heterogeneidade maior de contextos interculturais devido à posição particular desse país em termos de acolhimento de diferentes fluxos migratórios. Também nesse primeiro momento da pesquisa se propôs (COELHO, 2015), como metodologia de análise de interesse para o corpus levantado, a perspectiva de análise etnobiográfica, exatamente pelo fato de que esta coloca no centro da análise das narrativas (auto)biográficas as diferentes dinâmicas de alteridade que nelas estão em jogo. Segundo essa perspectiva, o interesse da etnobiografia estaria justamente na possibilidade de problematizar, simultaneamente, [...] as experiências individuais e as percepções culturais, refletindo sobre como é possível estruturar uma narrativa que dê conta desses dois aspectos na simultaneidade. (GONÇALVES, 2012: 20).

Nem exercício essencialmente subjetivo, nem pura racionalização da experiência vivida, considera-se, assim, desde essa perspectiva, que o relato de vida (seja de si ou do outro) é constituído no intrincado encontro entre sujeitos, decorrendo, necessariamente, de um 1

AVANCA | CINEMA 2016

exercício de construção narrativa onde a invenção de si como personagem, a imaginação e a criatividade não podem se ver excluídos do horizonte da análise. Dessa forma, a consideração de relatos (auto) biográficos pelo viés da etnobiografia teria como uma de suas tarefas principais o desvendamento da construção desse relato, considerado, sobretudo, em seus aspectos textuais (estratégias discursivas, literárias ou audiovisuais utilizadas, a depender do meio como se apresenta) e performáticos (no sentido das dinâmicas de alteridade constituídas na narrativa). Na etapa atual dessa pesquisa, agora desenvolvida na Universidade Federal da Bahia1, o principal objetivo é a ampliação desse mapeamento preliminar no sentido de incluir, na cartografia pretendida, produções latinoamericanas que correspondam a essa tendência da produção documental autobiográfica contemporânea. Para além da ampliação do corpus fílmico, por meio da pesquisa de títulos em diferentes bases de dados, pretende-se ainda investigar referenciais teóricos pertinentes para a abordagem dessa produção, tendo em vista suas especificidades culturais, históricas e políticas. Em outras palavras, parte-se da hipótese inicial de que os documentários de interesse a essa pesquisa, realizados no contexto latino-americano, não só se vinculam a questões outras do que aquelas observadas na primeira etapa de investigação, como podem demandar, para sua análise, o acionamento de novos olhares e arsenais teóricos. Nesse percurso, recentemente iniciado, o que aqui se apresenta é um primeiro exercício de análise que, a partir da consideração de estratégias audiovisuais presentes em três filmes argentinos recentes – Los rubios (Albertina Carri, 2003), Fotografías (Andrés Di Tella, 2007) e Familia tipo (Cecilia Priego, 2009) – pretende testar essa hipótese. Para tanto, se propõe um percurso que compreende: (1) a breve apresentação de algumas particularidades da produção autobiográfica documental recente na Argentina, com especial atenção para seu lugar nas dinâmicas contemporâneas da memória; (2) a análise de estratégias utilizadas em cada um dos três filmes, de modo a perceber como cada um deles propõe um ponto de vista distinto sobre a memória e a possibilidade de reconstrução do passado que se coloca a partir do exercício desta.

Documentário autobiográfico argentino e o resgate de um passado recente Ainda que se saiba que as narrativas do eu não são uma exclusividade contemporânea ou da sétima arte, e que muito menos pertencem a discursos nacionais específicos, acredita-se que a análise de suas diferentes materializações requer a consideração de certas especificidades. Os contextos mais gerais que costumam ser evocados na tentativa de explicar a proliferação atual de vozes subjetivas no campo da arte dizem respeito desde à descrença pós-moderna nos grandes sistemas explicativos da realidade (e consequente proliferação de micronarrativas do cotidiano), passando pela 2

constituição de um espaço biográfico que perpassa diferentes espectros do campo cultural contemporâneo (ARFUCH, 2010), chegando até à constatação de uma configuração que tem incentivado diferentes estratégias de espetacularização do eu (SIBILIA, 2008). Especificamente no que diz respeito ao cinema documentário, a vertente autobiográfica pode se ver vinculada, ainda, a movimentos como o dos cinemas de vanguarda ou à tradição francesa do filme de autor, tendo se tornado especialmente numerosa, nas últimas décadas, devido ao acelerado desenvolvimento de tecnologias leves e cada vez mais acessíveis de registro audiovisual. Nesse espectro de múltiplos fatores, interessa aqui, particularmente, compreender o vínculo existente entre a proliferação contemporânea dessas narrativas do eu e a chamada “guinada subjetiva” (SARLO, 2005) que acabou por configurar uma cultura que tem privilegiado diferentes formas de ativação e de registro da memória. Autores como Andreas Husseyn (2003) chegam a entender esse privilégio como uma forma de resistência em que a obsessão contemporânea pela memória, materializada na edificação de memoriais, monumentos e diferentes obras de arte, se destinaria a […] provide a bulwark against obsolescence and disappearance [and] to counter our deep anxiety about the speed of change and the ever-shrinking horizons of time and space. (HUSSEYN, 2003: 22)

Enquanto Husseyn se dedica à análise da presença desse discurso da memória (e consequentemente do esquecimento) sobretudo no espaço urbano, a análise de Beatriz Sarlo deseja discutir o lugar (e a validade) do testemunho na reconstrução do passado que tem resultado dessas dinâmicas contemporâneas da memória. No caso específico do cinema documental autobiográfico argentino que aqui se quer analisar, essa via de análise desenvolvida por Sarlo parece ser de especial interesse, tendo em vista que a feição característica com que esta produção se apresenta, especialmente nas últimas décadas, muitas vezes tem um vínculo estreito com um momento traumático da história do país que se quer resgatar. Nesse contexto, de certa forma compartilhado entre diferentes países da América Latina que viveram sob regimes militares ditatoriais mais ou menos no mesmo período, [...] a rememoração opera sobre algo que não está presente, para produzi-lo como presença discursiva com instrumentos que não são específicos do trabalho de memória, mas de muitos trabalhos de reconstituição do passado: em especial, a história oral e aquela que se apoia em registros fotográficos e cinematográficos. (SARLO, 2005: 99)

Ao considerar o surgimento da primeira pessoa no documentário contemporâneo na Argentina, Piedras (2010) entende que o projeto cinematográfico de orientação política que norteou as primeiras realizações documentais no país entre os anos 1950-1960, e que se viu interrompido pelo golpe de estado em 1976, se viu de certo modo reatualizado a partir da abertura

Capítulo II – Cinema – Cinema

democrática ocorrida nos anos de 1980, configurando obras que tiveram, como principal característica, um caráter revisionista baseado, em grande parte, na lógica do testemunho e dos discursos de acusação. Com o estabelecimento de novas leis de estímulo à produção cinematográfica no país, observado especialmente a partir das décadas de 1990 e nos anos 2000, e a crescente valorização do documentário na cena nacional que a elas se seguiu, práticas subjetivas, até então desenvolvidas em formatos não comerciais e marcadas pela experimentação estética, se tornaram a marca de uma produção documental argentina recente que se apresenta em consonância com uma tendência global. Nesse contexto, em que concorrem múltiplos fatores, o autor acredita que […] it is possible to think that the repeated use of the first person in Argentine documentary film in the last decade is based on the impossibility of classic documentary film to tell a historic truth about the traumatic events of recent history. Giving a new meaning to the reading of the past through the filmmaker’s own subjectivity, subjective documentary film has partial, tentative and provisional truths that are deeply ingrown and operative for the construction of a close memory that passes from the individual to the collective sphere, thus reversing the parabola of the militant political cinema of the seventies (PIEDRAS, 2010: 9)

Dessa forma, enquanto na produção documental autobiográfica europeia recente predominam questionamentos identitários e resgates históricos realizados por uma geração de filhos de migrantes de ex-colônias ou de descendentes de sobreviventes do Holocausto, no contexto latino-americano, e mais especificamente no argentino que aqui nos interessa, as experiências mais recorrentes nesse domínio do documentário remetem, em grande parte, ao tema do exílio político e da violência do Estado. Especialmente a partir do século XXI, é possível identificar o aumento de produções documentais realizadas por filhos de ex-militantes que foram vitimados pela ditadura em diferentes países latino-americanos. Nesse sentido, apesar da perspectiva extremamente crítica que é adotada por Sarlo frente ao valor de verdade que normalmente se vê atribuído às narrativas em primeira pessoa que tem sido produzidas nesse contexto, a autora se vê obrigada a identificar o inevitável paradoxo que caracteriza essa produção, já que A primeira pessoa é indispensável para restituir aquilo que foi apagado pela violência do terrorismo de Estado; e, ao mesmo tempo, não é possível ignorar as interrogações que se abrem quando ela oferece seu testemunho daquilo que, de outro modo, nunca se saberia, e também de muitas coisas em que ela, a primeira pessoa, não pode demonstrar a mesma autoridade. (SARLO, 2005: 116)

Tendo em vista a identificação dessa importante particularidade histórico-política a que se vincula o documentário autobiográfico argentino em questão, as análises que se seguem refletem a decisão por readequar o escopo da pesquisa nessa sua segunda

fase, com a inclusão, no corpus de análise, de documentários autobiográficos que, apesar de não tematizarem explicitamente experiências de migração, tenham sido realizados por filhos de vítimas da ditadura. Acredita-se que essa decisão se justifica tendo em vista a hipótese inicial (e o posicionamento metodológico que dela deriva) de que os documentários autobiográficos latino-americanos de interesse a essa pesquisa não só se vinculam a questões distintas do que aquelas observadas na primeira etapa de investigação, “como podem demandar, para sua análise, o acionamento de novos olhares e arsenais teóricos”. Nesse sentido, acredita-se que deixar de fora do corpus essa significativa parcela da produção autobiográfica documental latino-americana poderia ter como resultado uma visão incompleta, já que ignoraria suas principais particularidades. Seguindo essa lógica, deseja-se que os três filmes analisados a seguir representem uma amostra da diversidade do documentário autobiográfico contemporâneo argentino que tematiza experiências de migração e de deslocamentos identitários segundo o ativar de memórias que transitam entre o pessoal e a história coletiva. Sendo assim, enquanto Fotografías (Andrés Di Tella, 2007) e Familia tipo (Cecilia Priego, 2009) se vinculam a trajetórias de migração familiar distintas, Los rubios (2003), de Albertina Carri, tem como foco imediato a violência do regime ditatorial vivida pelos pais da diretora, encenando, com muita particularidade, as dificuldades de acesso a uma possível verdade sobre o passado.

Familia tipo e as superfícies da memória Dos três filmes a serem analisados, é possível dizer que Familia tipo é o que apresenta uma linha narrativa mais linear. Filha de um imigrante espanhol radicado em Buenos Aires, a realizadora Cecilia Priego é surpreendida, quando jovem, pela descoberta de que tem uma irmã mais velha na Espanha, fruto de um primeiro casamento do pai de que nunca tivera notícia até então. A partir desse fato, que promove uma espécie de ruptura biográfica para Priego, a “família típica” na qual crescera precisa ter sua história ressignificada. Essa ressignificação se cumpre, para ela, por meio dos recursos cinematográficos que coloca em ação ao realizar um documentário que, a princípio, deve ajudá-la a desvendar os mistérios que cercam esse passado desconhecido. A partir desse intuito, a narrativa fílmica que organiza segue, em grande parte, os moldes de uma investigação, lançando mão de estratégias que visam captar a curiosidade do espectador e manter certo suspense desde o princípio. Aquilo que se vê primeiro na tela, em Familia tipo, é um fundo negro sobre o qual se inscreve uma definição de família: 1 - Familia: conjunto de ascendientes, descendientes, colaterales e afines de una linaje. Ao longo do filme, outras definições desse substantivo, supostamente retiradas de um dicionário, irão pontuar 3

AVANCA | CINEMA 2016

uma narrativa cujas imagens e sons parecem afirmar, pelo contrário, a impossibilidade de se acreditar em uma definição simples. A essa primeira inscrição, se segue toda uma sequência de abertura composta de imagens de arquivo em preto e branco acompanhadas por uma música instrumental a qual se mistura o som de um projetor. Sobre elas, frases vão sendo inscritas aos poucos, para: (1) identificar uma voz narrativa feminina em primeira pessoa: “Soy hija de un inmigrante español”; (2) localizar as origens das imagens, que foram recuperadas junto a familiares da diretora durante uma viagem à Espanha realizada por ela em 2008; (3) estabelecer o objetivo geral do documentário, que é conhecer o passado dos ascendentes espanhóis desse eu feminino; (4) indicar o percurso realizado de que o filme é resultado e que vai da visita aos lugares em que o pai da diretora havia vivido na Espanha ao retorno para Buenos Aires; (5) estabelecer, por fim, um mistério, quando afirma, como objetivo último desse trajeto, desejar entender as razões pelas quais o pai “tomó las decisiones qui tomó” (sem nomear, contudo, que decisões foram estas). A essa sequência de abertura, se segue toda uma primeira parte do filme em que a estratégia principal de Priego para desvendar esse mistério se baseia no questionamento direto aos pais, de acordo com uma estratégia bastante recorrente em muitos dos documentários que tem sido investigados nessa pesquisa. Contudo, o espectador é avisado de antemão que tal estratégia não foi muito bem sucedida, já que os títulos inscritos sobre as imagens nos previnem de que teria sido muito mais fácil para a diretora ter realizado o filme se seus pais não estivessem vivos, já que estes ainda preservavam seus segredos. De maneira geral, as vozes do pai e da mãe vão se sobrepor a diferentes fotografias da família durante essa primeira parte, segundo uma estratégia de utilização das imagens de arquivo que é recorrente ao longo de todo filme. Algumas vezes, contudo, essas vozes se tornam sincrônicas com as imagens, e o que se vê são momentos distintos em que Priego entrevista cada um dos pais de acordo com uma mise-en-scène que ajuda a evidenciar não apenas a impenetrabilidade do segredo, como a distância que por ele se vê criada entre pais e filha. Sentados ao redor de uma mesa, eles cumprem uma lógica de encenação que é própria da entrevista ou mesmo do interrogatório, criando um espaço fílmico onde o afeto familiar parece se ver restrito às imagens do passado. Impossibilitada de resolver o mistério por meio do questionamento direto aos pais, a diretora resolve partir para a Espanha junto ao irmão. A partir dessa decisão, se inicia uma segunda parte da película. Nesta, ainda que muitos dos recursos de montagem utilizados continuem os mesmos (notadamente, a predominância da utilização das imagens de arquivo do passado familiar), o filme adquire um dinamismo maior ao se aproximar da lógica de uma narrativa de viagem cujo motor é a investigação – também serão comuns nessa parte, por exemplo, sequências de estrada que foram registradas do interior de um veículo em movimento. A investigação que é realizada pelos dois irmãos 4

na Espanha se resume à visita aos lugares em que o pai vivera, assim como a encontros com familiares e moradores atuais desses locais de memória. Muitas vezes, as imagens registradas pela câmera são comparadas a fotos antigas que foram recuperadas ao longo do processo de realização do filme. Nesses momentos, a mão de Priego segura fotografias para que o olhar da câmera as enquadre, tendo como fundo o local que estas re-apresentam. Dessa forma, presente e passado de um mesmo lugar surgem em um único enquadramento, porém quase nada além de sua superfície nos é dada a ver – são imagens habitadas por fachadas, portas e janelas que não se transpõe, ou ainda pela rua deserta de onde se vê o local em que um dia se registrou o último encontro entre o pai e o avô da diretora. A investigação, em alguma medida, se frusta frente à desconcertante mudez desses espaços. As lacunas do passado paterno, contudo, vão sendo parcialmente preenchidas nos diferentes encontros que ocorrem durante essa viagem e que acabam por vinculá-lo à própria história do país. Diferente dos momentos já citados em que Priego entrevista os pais, muitas das conversas travadas na Espanha pela diretora ocorrem ao redor de mesas onde se compartilha o vinho de um farto jantar, ou no aconchego de sofás nos quais os parentes se acomodam para rever juntos os álbuns de família. Do ponto de vista das dinâmicas de alteridade que são estabelecidas ao longo do filme, se evidencia, nessas imagens, uma maior proximidade na cena entre o eu narrativo com parentes a princípio distantes do que entre ele e os membros próximos de seu núcleo familiar. Até mesmo o irmão, que decide acompanhar Cecilia na viagem, tem o que se poderia chamar de uma “presença ausente” no filme, devido à forma silenciosa e quase sempre discreta com que acompanha a investigação. Em última análise, no entanto, a própria superfície do eu a partir do qual o filme se organiza parece resistir ao olhar do espectador em Familia Tipo. Disperso em diferentes camadas da narrativa, ele se vê materializado seja em corpo, seja em som (na voz da diretora que, por vezes, se sobrepõe às imagens), seja nas muitas inscrições que acompanham as imagens de arquivo em preto branco que preenchem o filme. Nestas últimas, justamente onde não resta traço algum do corpo, é que curiosamente ele se desvela mais, expressando alguns de seus desejos e frustações. Quando se torna corpo, pelo contrário, sua atuação é sobretudo discreta, marcada talvez pelo pudor de ferir o desejo dos pais em silenciar o passado. Junto à irmã espanhola, Belén, que finalmente se presentifica na tela – e em cuja casa se encerra a viagem, sem que com isso se converse abertamente sobre os conflitos familiares – a tentativa de reconciliação com o passado parece enfim se cumprir da única forma como é possivel: discretamente. Frente às dificuldades de recompor a história familiar, Familia tipo se apoia, assim, sobretudo nas superfícies do passado para, a partir destas, contruir uma memória possível a partir da qual o eu pode seguir em frente.

Capítulo II – Cinema – Cinema

Los rubios e as ficções da memória Los rubios, realizado em 2003 por Albertina Carri, também encena para o espectador as dificuldades do processo de reconstrução de um passado familiar desconhecido. Porém, não só as razão dessas dificuldades aqui são outras, como as estratégias audiovisuais que são utilizadas para encená-la revelam um posicionamento distinto do eu que organiza a narrativa fílmica com relação à memória. Em 1977, quando Carri tinha apenas quatro anos de idade, seus pais desaparecem, vitimados pela perseguição política do estado ditatorial. Na lembrança da diretora, que a partir daquele momento deixa Buenos Aires e passa a ser criada no campo por familiares, pouco ou quase nada restou da presença desses pais. Anos mais tarde, agora uma jovem cineasta recémformada, Carri começa a elaborar o projeto do filme que, segundo suas próprias palavras, nascera do seu interesse em pesquisar as “ficções da memória”: In 1999, I started researching on “the fiction of memory” - objective facts faced to fantasies, pieces of stories confronted to the impossibility of remembering certain things and the totally randomized impossibility of forgetting some details. In that moment, I entered that tunnel, and that erratic, ambitious and desperate search turned into the first half-hour of The Blonds. While I was trying to rip my parents’ absence (as if it were a corpse), I managed to put the past together with the present. Linking my present as a film director with my past, which is marked by this absence, seemed to be not only an ambitious work to do, but also an impertinent and challenging one. […] This was not understood by any fund or producer that read my project. History, for them, lies in my parents’ “disappearance” and not in my constitution as a person starting from an absence. (CARRI, 2016)

As palavras de Albertina Carri deixam claro, assim, que Los rubios não só não tem a pretensão da reconstituição histórica de um passado via exercício da memória, como desconfia dessa. No contexto aqui já citado, segundo o qual o cinema documental argentino de uma determinada época tem sido considerado por muitos como ferramenta importante na prestação de contas com o passado, é fácil entender a incompreensão dos produtores e as dificuldades de encontrar financiamento que a princípio foram enfrentadas pela diretora (em um determinado momento do filme, inclusive, essa dificuldade é encenada para o espectador por ela e sua equipe). Do ponto de vista da análise que aqui se deseja construir, interessa, sobretudo, perceber as diferentes estratégias audiovisuais que foram utilizadas por Carri para encenar essa desconfiança – ou, utilizando suas próprias palavras, para colocar em cena as ficções dessa memória familiar. A sequência de abertura do filme já é uma afirmação desse caráter ficcional ao optar por recursos de animação. Vemos, inicialmente, o cenário de uma fazenda de brinquedo da qual se aproxima um boneco Playmobil montado a cavalo que supostamente está retornando para casa (podemos imaginar, pelo

tamanho dos bonecos, que se trata de uma criança que retorna para junto dos pais). A essa animação em stop motion se seguem planos de uma fazenda real, “El Campito”, enquanto ouvimos, ao longo de toda a sequência, um diálogo em que uma voz feminina tenta ensinar para outra como se monta a cavalo – também já somos prevenidos, nesse início, da existência de uma possível filmagem no espaço fora de campo que é ocupado por essas vozes, quando uma delas pergunta se pode avançar sem ser vista no quadro. A essa primeira sequência no ambiente rural, se segue a imagem de uma rua com tráfego intenso vista de cima, marcando assim a transição para um cenário urbano. Segue-se a ela a imagem de uma jovem com óculos de aros grossos e negros que lê em voz alta trechos de um livro sobre a vida de Isidro Velásquez (espécie de “Robin Hood” local a respeito do qual Roberto Carri, sociólogo e pai da diretora do filme, publicara uma obra). Dessa forma, a encenação dessa leitura nos primeiros minutos do filme fornece pistas importantes do que virá a seguir, ao conter, simultaneamente: (1) o tema da ação revolucionária, simbolizado pela referência à figura de Isidro Velásquez; (2) a perspectiva autobiográfica, materializada na relação existente entre a autoria do livro que é lido com a autoria do filme; (3) a indicação da adoção de uma abordagem distanciada com relação ao tema em questão, pois, apesar de pessoal, ele se vê aqui mediado pelo discurso intelectual/acadêmico que é representado por essa leitura. Surge, enfim, o título do filme na tela. Depois dele, toda uma primeira parte é organizada sob a lógica da investigação, assim como ocorre na segunda parte de Familia tipo. Veremos, a princípio, a diretora de câmera na mão percorrendo ruas nas quais vivera seus primeiros anos junto aos pais, em busca de moradores que poderiam ajudá-la a conhecer os detalhes do que ocorrera no passado. Contudo, logo em seguida ocorre uma ruptura no filme que desestabiliza essa investigação e nos impede de nos identificarmos plenamente com a busca da diretora, já que a mesma figura feminina que antes surgira lendo o livro sobre Isidro Velásquez em voz alta se identifica, agora, como sendo uma atriz contratada para interpretar o papel de Albertina Carri ao longo do filme. É essa Albertina ficcional que será abraçada por antigos companheiros dos pais da diretora que ela visita em busca de informações (o que, portanto, denuncia não só a encenação profissional da atriz, mas também a dos sujeitos históricos que com ela contracenam no filme). Também é ela que muitas vezes iremos ver encenando diferentes etapas da realização cinematográfica, por vezes frente a uma televisão onde assiste entrevistas que pouco esclarecem sobre o passado ao surgirem de forma fragmentária em monitores que se multiplicam, por vezes tomando notas ou trabalhando em frente ao computador. Os outros, cujo testemunho nesse tipo de documentário de investigação costuma ser a principal fonte do que se revela sobre o passado, sequer são 5

AVANCA | CINEMA 2016

identificados para o espectador, o que diminui ainda mais a potência de seu discurso. Com isso, o próprio processo de realização do filme vai ganhando força enquanto centro da busca da diretora e interesse central em Los rubios, multiplicando-se assim as cenas em que momentos dos bastidores da filmagem são apresentados na tela. Nesse sentido é que, se por um lado os entrevistados são anônimos e confinados a monitores inseridos na cena fílmica, por outro lado, a presença da diretora é duplicada e passa a se apresentar simultaneamente, em uma mesma imagem, nos corpos de Albertina Carri e de Analía Couceyro (a atriz que representa o papel da diretora). Não por acaso, na crítica que faz ao testemunho enquanto fonte histórica, Beatriz Sarlo recorre justamente a Los rubios para sustentar parte de sua argumentação. Segundo a autora: Em um filme sobre a identidade, em que a diretora escolhe representar-se duplamente, por si mesma e através de uma atriz que diz seu nome e diz que representará a diretora, as testemunhas permanecem no anonimato. Pelo que contam, ficamos sabendo que foram amigos, parentes ou colegas dos pais da diretora, mas em Los rubios seu anonimato é um sinal de separação e, até, de hostilidade. A operação de dupla afirmação da identidade de Albertina Carri contrasta com o severo despojamento do nome de outros. Identidade por subtração. (SARLO, 2007: 107)

Mais ou menos na metade do filme, no entanto, uma nova testemunha irá surgir e ser apresentada de maneira distinta. Moradora de uma das casas vizinhas a dos pais da diretora quando estes foram sequestrados, ela revela à equipe de filmagem ter tido sua casa invadida enquanto procuravam os militantes para leválos. Em seu testemunho detalhado, relembra da família de Carri como sendo “todos loiros”, o que nitidamente não condiz com a imagem da diretora e de seus pais e irmãs que vemos ao longo do filme. O caráter não confiável da memória se desnuda nesse momento de maneira evidente e inesperada, reforçando as crenças que parecem orientar a diretora na sua pesquisa sobre as “ficções da memória” de que resulta o filme. Não por acaso, quase no final deste, essa mesma testemunha retorna, vestida e maquiada “como uma atriz”, para registrar seu depoimento frente à câmera e assim repetir mais uma vez sua narrativa sobre os vizinhos loiros. A própria diretora mais tarde admite que, I find the movie when the actress is playing myself as a character, and a woman, a neighbor of fine from the last place I lived with my parents, describes by family as “blond.” And during this looking for a film shape, I find out a new family, the family made from us, those who made the picture. (CARRI, 2016)

A última sequência do filme retorna ao espaço rural da propriedade que agora sabemos ser aquela em que a diretora passara sua infância. O dia amanhece e a equipe acorda para preparar o café aos primeiros raios de sol que surgem no horizonte. Cada um deles, 6

por fim, se incorpora a essa família reinventada no processo de filmagem, ao colocar uma peruca loira. Também seguem em frente, investidos agora da memória ficcional que construíram para si.

Fotografías e os múltiplos espelhos da memória Filho de Torcuato Di Tella, um argentino descendente de italianos, com a indiana Kamala, Andrés Di Tella viajou para a Índia com a mãe uma única vez, aos onze anos de idade. Dessa viagem, e da herança de sua descendência indiana, tem como marca apenas os registros fotográficos que foram guardados pelo pai em uma caixa de papelão, assim como um baú repleto de objetos “exóticos”, dentre os quais ele encontra filmagens que foram realizadas por Kamala no passado. Do encontro com esses traços do passado no presente, e da necessidade de não silenciar para seu filho um legado que percebe quase não conhecer, surge a motivação para realizar o filme. Apesar da lógica da busca e da investigação do passado que perpassa as três obras aqui analisadas, Fotografías se destaca por uma construção narrativa em que essa busca se vê pontuada, constantemente, por diferentes momentos da intimidade do diretor a partir dos quais vai se tornando cada vez mais significativa a dimensão afetiva do filme. Assim, há tempo no interior dessa narrativa para que Di Tella realize uma filmagem com dinossauros de brinquedo que é “dirigida” pelo filho Rocco, por exemplo, ou ainda para que leia uma história em quadrinhos com ele. Momentos como estes, que não cumprem exatamente um papel na economia narrativa do “argumento principal” do filme, tem, contudo, um papel importante na construção da densidade biográfica do eu a partir do qual Fotografías se organiza. Em grande parte deles, se cria, para o espectador, a sensação de poder partilhar dos espaços da intimidade e dos momentos do cotidiano do diretor que, se por um lado normalmente são entendidos como “tempos mortos” que costumam ser excluídos da organização de grande parte dos enredos cinematográficos, por outro constituem uma das matérias primas distintivas do gênero autobiográfico. Assim, do ponto de vista da dimensão autobiográfica, pode-se dizer que Fotografías é o filme mais característico do corpus aqui analisado. Também nele, do mesmo modo como pode ser observado em Familia tipo ou em muitos outros filmes do gênero, a viagem será um recurso importante na descoberta e resgate do passado familiar. Nesse sentido, a segunda parte do filme será dedicada à viagem que Di Tella realiza para a Índia junto com a família e sua equipe de filmagem e na qual se reúne a parentes que praticamente não conhecia. Porém, antes de partir para a Índia, o diretor resolve investigar a história de Ricardo Güiraldes, famoso escritor argentino que ele acaba por descobrir ter deixado um herdeiro de origem indiana. Nesse percurso de investigação inicial, o diretor realiza uma primeira viagem para Epuyen, na Patagônia, no intuito de localizar Ramachandra, herdeiro de Güiraldes.

Capítulo II – Cinema – Cinema

Esse encontro, por ser emblemático de outra característica central desse filme, merece aqui ser analisado mais detidamente. Na primeira imagem em que o diretor se reúne com Ramachandra, vemos apenas os pés dos dois personagens que sobem por um terreno cheio de pedras. Ao mesmo tempo, ouve-se a voz de Rama advertindo a Andrés que deve tomar cuidado com o terreno acidentado e escorregadio. A seguir, enquanto caminham lado a lado, ele tenta explicar ao diretor o que seria um guru segundo os princípios da filosofia indiana. Uma de suas primeiras afirmações é, justamente, de que este seria aquele que “pelo menos te ensina os primeiros passos”, caso contrário se poderia “passar o resto da vida tentando encontrar o caminho”. A partir desse primeiro diálogo, Rama se constitui, assim, como aquele que, de algum modo, aponta para o diretor o caminho que ele deve seguir em sua busca. O volume da voz de Ramachandra em seguida diminui de intensidade, ao mesmo tempo em que a voz em off do diretor se sobrepõe às imagens dessa caminhada, narrando outros aspectos desse encontro e refletindo sobre o que Rama lhe falara, segundo um dos recursos de montagem mais recorrentes em produções autobiográficas no campo do documentário. Em um momento seguinte dessa viagem à Patagônia, Di Tella visita a casa do personagem, estabelecendo com ele um vínculo mais estreito. Agora, para além da posição de um “guru”, será possível entender Rama como uma espécie de imagem refletida do próprio diretor e do passado de sua mãe. Um duplo que permite a Di Tella compreender melhor esse passado e o legado que Kamala lhe deixara, pois, assim como Rama e sua própria mãe, ele se sente deslocado por conta de sua herança indiana – um duplo que lhe ajudará, em última análise, a se localizar no presente enquanto um portador dessa herança. Essa primeira sequência de imagens da viagem de Di Tella à Patagônia se encerra com uma conversa entre o diretor e o herdeiro de Güiraldes em um passeio de barco. Nesse momento, a partir da intimidade estabelecida entre eles, a dinâmica da investigação passará a ser conduzida por Rama. Enquanto duplo, ele demanda a Di Tella que lhe conte sobre si, equilibrando, assim, essa relação entre semelhantes. Nesse momento, o diretor irá confessar sua resistência em assumir a cultura indiana como parte de sua identidade, justificando essa atitude como resultado da discriminação que sentira quando vivera na Inglaterra durante a infância. Nesse momento de “revelação”, a câmera enquadra como que fascinada o diretor e os gestos expressivos de suas mãos enquanto ele narra esses fatos simultaneamente para Rama e para o espectador. Ao final dessa conversa, ambos os personagens aparecem reunidos na imagem, desfrutando em silêncio da paisagem grandiosa da Patagônia. A partir de um momento distinto no tempo e no espaço, o diretor vai comentar esse encontro, refletindo sobre o vínculo identitário que o une à figura de Ramachandra. A sobreposição dessa reflexão pessoal às imagens revela, nesse momento, uma sobreposição entre camadas de significados, tempos e espaços que é

bastante característica da utilização do comentário em documentários autobiográficos e que permite encenar, em paralelo, diferentes dimensões da subjetividade da primeira pessoa. Não por acaso, as imagens desse encontro com Ramachandra na Patagônia são intercaladas com breves sequências com Rocco, duplo primordial do eu no interior desse filme – não só para quem Di Tella sente ter o dever de transmitir a herança cultural que tenta restituir ao longo de sua busca, como também aquele que, como ele, realiza filmes domésticos. Do ponto de vista das dinâmicas da alteridade que interessam a uma análise etnobiográfica, percebe-se, assim, que a encenação de diferentes encontros é uma estratégia central em Fotografías. A partir destes, não só a memória de um passado se vê construída, como a própria subjetividade da personagem do diretor e do eu narrativo a partir do qual o filme se organiza se torna gradativamente mais densa e multifacetada. Na maior parte dos casos, esses encontros remetem à lógica da entrevista, como nas conversas que o diretor trava com o pai ou com amigos de sua mãe, porém, em momentos como os que são partilhados com Rocco e Ramachandra, se observa que eles ganham uma nova amplitude, concorrendo para a construção da própria figura de Di Tella por meio de diferentes espelhamentos. Na segunda parte do documentário, em que o diretor enfim empreende sua viagem à Índia com o objetivo de mergulhar ainda mais sobre o passado e as origens de sua mãe, ele passa finalmente a compreendê-la como uma mulher de princípios revolucionários que quis tirar de cima de si o peso da identidade familiar, nacional e étnica. Encontra, nessa compreensão, razões para entender as atitudes dela e com isso talvez ultrapassar a dificuldade em incorporar o legado indiano em sua própria identidade. No encontro afetuoso com o primo Gautam, em cuja casa fica hospedado, Di Tella verá esse legado se materializar na peça de vestuário do avô indiano que o primo lhe transmite como herança e que ele deverá transmitir, um dia, a Rocco. Em Fotografías, a memória e a herança do passado se constroem, assim, sobre o alicerce dos diferentes encontros e afetos que vão sendo estabelecidos pelo cineasta no presente das imagens.

Considerações finais A análise breve dos três filmes aqui analisados, e que são parte de um corpus mais amplo de pesquisa, apontou para a existência de estratégias bastante distintas na tentativa de encenação de um passado simultaneamente histórico e pessoal. Observou-se que, na tentativa de acesso a esse passado, apenas o recurso da ativação das memórias subjetivas dos cineastas não é suficiente. Apoiados por diferentes materiais de arquivo (notadamente fotografias e filmes de família), eles necessitam, ainda, convocar memórias alheias para preencher as lacunas que restam. O acesso a essas memórias depende, contudo, das dinâmicas de alteridade que irão se concretizar de maneira particular em cada um dos filmes e que 7

AVANCA | CINEMA 2016

acabam por definir diferentes graus de intimidade e de interpessoalidade estabelecidos por um “eu” que é, simultaneamente, personagem e princípio organizador da narrativa. Essa diversidade dentro do corpus escolhido se relaciona, ainda, a graus de (des)confiança distintos nas possiblidades dessas memórias pessoais e alheias como fonte de acesso ao passado, abrindo brechas, muitas vezes, para a ficcionalização e reinvenção explícitas nesse processo de busca. Além disso, vale notar o fato de que as dinâmicas de alteridade observadas nos três filmes analisados, das quais depende a amplitude dessas memórias, se estabelecem não apenas com o “outro familiar” que costuma caracterizar a etnografia doméstica, mas com diferentes personagens aos quais o cineasta recorre em sua busca ou investigação e que, por vezes, podem se mostrar mais próximos deste do que seus parentes mais próximos. De todo esse processo, se pôde perceber, por fim, o efeito que esses diferentes graus de intimidade estabelecidos pelo personagem do cineasta com os outros com quem interege no filme têm na própria densidade biográfica com que ele se apresenta ao espectador. Do ponto de vista da continuidade dessa pesquisa, frente à diversidade de recursos audiovisuais com que essas diferentes perspectivas sobre a memória, sobre o passado e sobre o próprio sujeito se apresentaram em cada um dos filmes, parece interessante investir, especialmente, na análise fílmica de estratégias comuns dessa produção que vão se materializar de maneira distinta a depender da perpspectiva que é adotada pelo cineasta. Nesse sentido, se acredita ser necessário um olhar mais atento ao: (1) uso do material de arquivo; (2) presença do comentário em sua articulação característica com as imagens; (3) estratégias audiovisuais utilizadas na encenação dos diferentes encontros a partir do qual o eu tenta preencher as lacunas do passado; (4) diferentes dimensões a partir do qual a primeira pessoa se apresenta na cena fílmica. Tecidas essas breves considerações, nos resta enfim concordar com Ortega, para quem [...] estas novas formas documentais nos revelam a dificuldade que decorre de, no século XXI, falar do mundo sem falar de nosso lugar nele. Do mesmo modo, a memória pessoal, familiar e coletiva ou a história individual e nacional – e o papel que nelas desempenham as imagens – aparecem cada vez mais difíceis de dissociar [...] o documentário contemporâneo de natureza social foi dotado de uma marca intersubjetiva de retalhos audiovisuais da vida privada e tem fechado sua significação em variantes muito diferentes, criando um novo espaço de jogo. (ORTEGA, 2014: 28)

Notas finais 1 Pesquisa realizada com recursos do Edital 01/2015 do Programa Nacional de Pós-Doutoramento da CAPES (PNPD) junto ao Programa de pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Póscom/UFBA).

8

Referências Bibliográficas ARFUCH, Leonor. 2010. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, Rio de Janeiro: EdUERJ. CARRI, Albertina. 2016. “Director’s Statement” In The blonds: a Womens Make Movies release. Disponível em: http://www.wmm.com/filmcatalog/press/blothe_presskit. pdf Acedido em 13/03/2016. COELHO, Sandra Straccialano. 2015. “Etnobiografia e migração no documentário autobiográfico uma análise de Mare Mater (2013) de Patrick Zachmann”, Atas do I Congresso da Associação Internacional das Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa, Lisboa, p. 3003-3014. GONÇALVES, Marco Antonio. 2012. “Etnobiografia: biografia e etnografia ou como se encontram pessoas e personagens” In GONÇALVES, M. A. & MARQUES, R. & CARDOSO, V. Z. (org.) Etnobiografia: subjetivação e etnografia, Rio de Janeiro: 7 Letras, p.19-42. HUSSEYN, Andreas. 2003. Present pasts: urban palimpsests and the politics of memory, Stanford: Stanford University Press. NICHOLS, Bill. 2005. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus. ORTEGA, María Luisa. 2014. “Supostas e genuínas subjetividades” In Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo, Campinas, SP: Editora Medita, p. 21-30. PIEDRAS, P. & BARRENHA, N. C. 2014. Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo, Campinas, SP: Editora Medita. PIEDRAS, P. 2012. “La regla y la excepción: figuraciones de la subjetividad autoral en documentales argentinos de los ochenta y noventa” In Toma Uno, (N°1): 37-53. PIEDRAS, P. 2011. “Modos de explicar el mundo histórico en documentales argentinos de las últimas décadas” In PolHis, n.8, 2º. semestre, p. 210-223. PIEDRAS, Pablo. 2010. “Considerations on the Appearance of the First Person in Contemporary Argentine Documentary” In Hispanet Journal 3, December. RENOV, Michael. 2014. “Filmes em primeira pessoa” In Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo, Campinas, SP: Editora Medita, p. 31-52. SARLO, Beatriz. 2007. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, São Paulo: Companhia das Lctras; Belo Horizonte,: UFMG. SIBILIA, Paula. 2008. O show do eu: a intimidade como espetáculo. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Filmografia Familia tipo. 2009. De Cecilia Priego. Argentina. Disponível em http://www.cinemargentino.com/ films/914988633-familia-tipo Fotografías. 2007. De Andrés Di Tella. Argentina: Cine Ojo. DVD. Los rubios. 2003. De Albertina Carri. New York: Women make movies. DVD.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.