Desmobilização política: dúvidas e questionamentos.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Crónica, Ação Popular
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DESMOBILIZAÇÃO POLÍTICA: DÚVIDAS E QUESTIONAMENTOS







Iraci del Nero da Costa

São Paulo, abril de 2006










Segundo alguns, nos defrontamos no Brasil dos dias correntes com
uma marcante desmobilização política da qual uma das evidências é a
grande indiferença de muitos segmentos sociais, marcadamente os mais
populares, com respeito às práticas ilícitas desenvolvidas no seio do
poder executivo central e na Câmara Federal por integrantes da cúpula
dirigente do PT. Esta leniência para com os crimes cometidos por
petistas e parlamentares de outros partidos seria, assim, apenas o
sintoma mais grave e visível da falta de mobilização que abarcaria a
vida política em geral.

Há analistas para os quais a apatia denunciada acima não é um
fenômeno recente, mas tem raízes mais profundas em nossa sociedade.
Assim, alguns pesquisadores explicam a carência de mobilização com base
no ônus nela envolvido; segundo esse raciocínio, para as camadas menos
privilegiadas de nossa sociedade, o custo de ações reivindicatórias
revelar-se-ia muito alto em face dos benefícios alcançados. Ou seja, a
análise "custo/benefício" é, para tais segmentos, desfavorável à
mobilização. A meu ver essa idéia é questionável e simplista, pois se
define, de pronto, como um argumento tautológico. Creio necessária uma
ampliação do leque analítico concernente ao tópico em foco bem como
nele investir mais tempo de reflexão a fim de melhor esquadrinhá-lo dos
pontos de vista sociológico, histórico e psicológico.





Das "Diretas já!" ao momento presente.

Com referência às "Diretas já!" houve intensa e persistente
mobilização popular, participação similar ocorreu quando do impeachment
de F. Collor, mutatis mutandis o mesmo poder-se-ia dizer da eleição de
Luiz Inácio da Silva: a população respondeu à altura a anos de engodo,
marasmo e ortodoxia votando a favor das almejadas mudanças e contra o
candidato de FHC.

E agora, estaríamos vivendo uma quadra marcada pela
desmobilização? Ao procurar resposta para esta indagação é preciso ter
em conta a campanha eleitoral já desencadeada e em relação à qual, ao
menos por ora, parte da população, justamente a menos privilegiada e
conhecedora da pobreza, simplesmente está apoiando o atual presidente
da República. Teria ocorrido um descolamento da assim chamada "voz do
povo" com respeito à opinião pública, à qual aquela primeira sempre
tenderia a ajustar-se; com relação a esse fenômeno veja-se crônica de
minha autoria intitulada A voz do povo.

De outra parte, e aqui ainda nos postamos no terreno das
campanhas eleitorais, também devemos pensar numa eventual mudança que
estaria ocorrendo nesse campo há já algum tempo. A "mobilização", em
tempos de eleições, pode ter passado por um processo de globalização e
de "terceirização". Não é mais necessário sair às ruas e comparecer a
comícios, os quais se tornaram dispensáveis, basta comparecer ao
colégio eleitoral; as coisas acontecem como se tudo estivesse
profissionalizado: o candidato tornou-se um ator submetido ao
marqueteiro, a este cabe a tarefa de "agitação e propaganda", restando
ao eleitor, apenas, o asséptico ato de votar. É interessante verificar
que, do ponto de vista psíquico, não parece ter havido, em termos
genéricos, um "cansaço" quanto à participação, centenas de milhares de
pessoas concorrem a shows e bailes de fim de semana e mostram invejável
disposição de "participação"; ficam horas dançando e gritando, cantam
juntos músicas cujas letras são absolutamente vazias, enfim eles
"participam". Mais adiante retomaremos esta última assertiva ao
considerarmos as condições psicológicas de um grupo de eleitores
particularmente afetados pelo desempenho do PT e do governo federal.

Em face de tais circunstâncias eleitorais é-se levado a afirmar
estarmos a vivenciar um momento especial de nossa vida política,
momento esse preso à campanha em curso e às próximas eleições. Não
obstante tal afirmativa mostrar-se plenamente razoável, o travo amargo
da dúvida não nos abandona e somos tentados a considerar a hipótese
segundo a qual as alterações não dizem respeito tão-somente a aspectos
formais, mas também atingem os elementos referentes ao "conteúdo" da
participação política. Não existe mais o mundo socialista a encarnar
um ideal redentor apto a catalisar os anseios por melhoras dramáticas
da vida social. A queda da URSS e de seus satélites tornou longínqua,
impossível mesmo, para imensa parcela da humanidade, a expectativa de
ruptura imediata do modo de produção capitalista. De outra parte, no
momento atual clamam alguns poucos, aqui no Brasil, pela luta por
objetivos demasiadamente "refinados" (ética, moral etc.) para a grande
massa que se dá por feliz por participar do Bolsa-Família e ganhar 100
reais por mês; montante esse só desprezível, diga-se com ênfase, aos
olhos de pedantes acostumados a uma vida mais do que remediada! Enfim,
embora possamos estar a nos defrontar com uma fase particular e
passageira de nossa história política, são inegáveis as transformações
de fundo ocorridas na área da participação política da população, em
geral, e dos eleitores, em particular. De toda sorte, talvez cometam um
grave erro de avaliação as pessoas para as quais as condições ora
vigentes se confundem com imobilismo político. Vejamos alguns
argumentos que negam uma pretensa passividade absoluta e qualificam
melhor as particularidades de nossa sociedade.




O MST não abandonou sua luta.

Representaria grande falta de sensibilidade não reconhecermos a
exuberante mobilização de centena de milhares de pessoas de nosso meio
rural; pessoas essas congregadas no MST o qual, inegavelmente,
apresenta-se como movimento político articulado. A este respeito cumpre
lembrar que, embora mais focado no problema agrário, esse movimento
jamais deixou de preocupar-se com outros elementos da vida política
nacional. Trata-se, pois, como avançado, de uma pujante e concatenada
participação com teor popular da qual muitos de nós – citadinos e
integrantes da classe média –, por não recebermos dela influxos
diretos, não tomamos plena consciência.

Serão levados os dirigentes do MST a compor com o atual governo em
relação à reeleição do presidente da República? Romperão com um governo
distribuidor de "migalhas" (importantes para os que as recebem)
incapazes de fugir a assistencialismo caracteristicamente eleiçoeiro;
denunciarão os grandes corruptores que se alojaram no PT? Adotarão uma
linha pragmática de acordos e compromissos espúrios com o poder?
Decidirão não declarar apoio a nenhum candidato? Todas essas portas
estão abertas e ainda não é possível antever-se qual será a escolhida;
opção esta da mais alta relevância a fim de se qualificar com precisão
a direção deste verdadeiro partido político cujas ações, embora não se
mostrem todas imunes a eventuais reparos, têm merecido o respeito da
maioria das pessoas de esquerda.

Seja como for, o MST está vivo e atuante; ademais, como anunciado
por suas lideranças, pretende estender suas bases ao meio urbano como
forma de ganhar a simpatia dos moradores das cidades; ampliar-se-á,
pois, ainda mais, sua ação política.





Uma pitada de História.

O fato de havermos descartado na abertura deste escrito a idéia
segundo a qual a apatia teria raízes profundas em nosso passado não
implica negar as peculiaridades de nossa sociedade nem as particulares
feições que a natureza de nossa formação histórica imprimiu às formas
assumidas entre nós pela participação política e às relações entre as
camadas subalternas e as elites.

A meu ver, para nós, brasileiros, a mobilização precisa apresentar
um perfil muito bem determinado e não pode ater-se, tão-só, a elementos
apenas avaliáveis por uma camada mais preparada do ponto de vista
educacional. De outra parte, a mobilização por objetivos muito
concretos vinculados à melhoria de vida também não se estabeleceu
fortemente entre nós, pois criaram-se, no correr do tempo, outros
mecanismos sociais para encaminhar tais reivindicações. Assim, para a
massa menos abonada abre-se o apelo aos "coronéis" tenham eles a cara
de proprietários de terras, de políticos ou mesmo de membros do clero.
Nessa esfera, o objetivo perseguido é uma benesse qualquer: de uma
ajuda do tipo do Bolsa-Família a empregos públicos de baixa remuneração
e pouco exigentes quanto ao preparo escolar. Já as camadas médias
também se servem do mesmo expediente, socorrendo-se de políticos e
amigos influentes para conseguirem boas colocações no emprego público,
matrícula em escolas de superior qualidade para seus filhos etc.

Não sei até que ponto esse universo de favores continua a operar
generalizadamente dessa maneira hoje em dia, mas até há pouco era assim
que se procurava, em primeira instância, alcançar uma melhora das
condições de vida; o recente caso de um ex-presidente da Câmara Federal
o qual se jactava de defender bêbados infratores e é tido como
patrocinador de um Ministro está a indicar o quão fortes ainda se
mostram as práticas aqui referidas.

Como se pode imaginar, tais modos de agir tendem a arrefecer tanto
a luta por melhorias de caráter geral como atuam no sentido de fazer
socialmente "aceitáveis" comportamentos menos rígidos por parte dos
políticos e do poder executivo; pois, "com base neles poderemos
alcançar nossos objetivos" pensariam os que pretendem buscar a ajuda
dos "donos do poder"! Enfim, tento caracterizar aqui o quadro
secularmente imperante entre nós, valendo ele, não só para a classe
média, mas também para as camadas menos privilegiadas. Não obstante
isso, foi notável a mobilização pelas "Diretas já!" e contra a
continuidade de F. Collor no poder; como avançado, tais movimentos
giraram em torno de questões muito bem determinadas e que se
distinguiam por sua generalidade, vale dizer, diziam respeito à vida de
largas parcelas da população, embora fugissem de aspectos imediatamente
vinculados à elevação do padrão material de vida.




A empresa como uma grande família.

Uma outra ordem de raciocínio diz respeito ao que se tem visto
ocorrer entre os trabalhadores das empresas privadas. Nos quadros de
uma economia com baixo crescimento e na qual prevalece um alto nível de
desemprego as práticas neoliberais encontraram um campo fértil para
espraiarem-se. Assim, dá-se a generalização de técnicas desenhadas para
incorporar às relações entre os trabalhadores e as empresas
comportamentos próprios dos existentes no âmbito da amizade ou na
esfera familiar. A empresa passa a definir-se como uma grande família,
com respeito à qual deve, o trabalhador, preocupar-se em grau
semelhante ao que dedica a seus familiares. No Brasil alguns
"consultores" têm proposto uma forma de ação surgida na Inglaterra a
qual propõe a substituição do cumprimento formal pelo abraço, pois tal
tipo de confraternização eliminaria as barreiras existentes entre a
direção e o trabalhador direto, agindo sobre este último de sorte a
torná-lo um parceiro efetivo dos proprietários dos negócios; o
interessante é que, ao "medirem" os efeitos da introdução deste método,
os ditos consultores o fazem em termos de aumento de produtividade,
baixa no número de empregados despedidos por motivo de choques com
quadros dirigentes superiores e queda no número de faltas decorrentes
de estresse. Como sabido, nessa área a idéia básica é fazer o
trabalhador "vestir a camisa" da empresa. Assim, a sorte do
trabalhador, sua estabilidade no emprego e o bem-estar de sua família
confundem-se com o desempenho e com os lucros da empresa. Como os
trabalhadores diretos, os quadros diretivos também vêem-se pressionados
a "aproximarem-se" daqueles primeiros.

De outra parte, a constituição de equipes relativamente autônomas
de trabalho visa, como sabemos, a substituir parte substantiva dos
controles; tais equipes, ademais, atuam no sentido de rebaixar o
absenteísmo, o número de horas extras trabalhadas (quando ocorre uma
falta cumpre aos próprios membros da equipe dar conta da atividade do
elemento ausente), de aumentar a produtividade e de estabelecer um
ambiente de autocontrole, enfim tudo funciona com o objetivo central de
baixar os custos de produção. Pois bem, em face desse panorama não há
qualquer dúvida sobre o fato de vivermos uma quadra caracterizada pela
existência, na esfera das empresas, de uma ação explícita e programada
de desmobilização generalizada dos trabalhadores. A pergunta a fazer
reza: em que medida tais formas de atuação agem sobre a mobilização
política da massa de trabalhadores? Sentir-se-ão eles menos motivados a
lutar por reivindicações de fundo mais genérico? Embora nossa resposta
não possa ser categórica, um "talvez sim" nos parece plausível.




Uma consideração de ordem psicológica.

A par das alterações em curso na forma e no conteúdo da
participação política da população brasileira vivemos, além de outros
aspectos já referidos acima, um momento histórico profundamente vincado
pela imensa decepção causada pelo PT e pelo atual governo central.
Assim, o sentimento de desmobilização e de apatia, que toma a muitos,
certamente está penetrado por um expressivo componente de teor
psicológico. Nesse sentido não parece descabido pensar-se numa
"desmobilização psicológica" a qual estaria a refletir nossa sensação
de impotência quanto à possibilidade de chegarmos a mudanças
significativas na vida política nacional.

Destarte, a impressão de que a mobilização política deixou de
existir decorreria de vários fatores: de nossa frustração com um
partido e um governante que se perderam na inação, renunciaram a seu
passado, a seus compromissos e enlearam-se em uma repugnante teia de
crimes econômicos e políticos; do aludido sentimento de impotência
quanto à efetivação de mudanças e, por fim, da falta de perspectivas
concretas de encontrarmos agentes políticos (e aqui penso tanto em
pessoas como em organizações políticas) capazes de canalizarem e
conduzirem ordenadamente a luta política pela superação da situação
hoje reinante. Vale dizer, a "desmobilização" refere-se tanto ao
passado recente como ao futuro imediato, ambos esvaziados pela defecção
petista.

Creio desnecessário lembrar que não estou a tratar a assim chamada
"desmobilização psicológica" como mera ilusão de eleitores desalentados
e desvairados; vinculei-a, bem claramente, a fatos cuja existência
revela-se insofismável.




Fecho para um discurso inconcluso.

Como se depreende de seu título, não busquei expor neste breve
texto conclusões relativas a um tema com respeito ao qual tenho muitas
dúvidas e nenhuma certeza.

Deixo inconcluso, pois, este texto, ficando no aguardo dos que
possam esmiuçar mais percuciente e detidamente os problemas aventados.

Aventurei-me a divulgá-lo visando a expor minha ignorância,
permitindo-me, assim, o direito de lançar um repto aos mais capazes:
tomem para si a incumbência de encarar os questionamentos aqui
reportados.
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