\"Desnortear” e “reorientar\", dois movimentos da Igreja de Francisco

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dois movimentos da Igreja de Francisco

rancisco, o papa que veio “quase do fim do mundo”, está indicando novos caminhos e horizontes possíveis. Não só para a Igreja, mas também para a sociedade como um todo. E o ano de 2015 começou mostrando que os gestos e as palavras de Jorge Bergoglio (1936-) podem abalar as estruturas eclesiais e também sociais, de norte a sul e de leste a oeste do planeta. Na véspera do Natal passado, na Itália, Vittorio Messori, um renomado jornalista católico, no jornal Corriere della Sera, chamou Francisco de “imprevisível”. Para ele, trata-se de um papa que “perturba a tranquilidade do católico médio”, por causa de seus gestos “contraditórios”, que deixam o jornalista “perplexo”. Conhecido por um livro-entrevista com o então cardeal Joseph Ratzinger (1927-) e por outro em coautoria com São João Paulo II (1920-2005), Messori levantou uma onda de réplicas e tréplicas por causa desse artigo, em que também critica certas escolhas pastorais do papa Francisco, que seriam “pouco oportunas, talvez suspeitas de um populismo capaz de obter um interesse tão vasto quanto superficial e efêmero”. O Mensageiro de Santo Antônio

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Março de 2015

Já no Brasil, logo após os atentados de Paris, o colunista Reinaldo Azevedo, que também afirma ser católico, intitulou uma coluna na Folha de S.Paulo com um convite bem preciso (e, no mínimo, indelicado) ao pontífice: “Francisco, por que não te calas?” Contraditoriamente, o tema abordado pelo jornalista era justamente a defesa da liberdade de expressão... E censurava o pontífice: “Francisco tem cabeça e postura de cura de aldeia, não de papa. Suas entrevistas ambíguas são detestáveis. [...] Suas opiniões sobre o atentado e a liberdade de expressão são covardes, imprecisas e politiqueiras”. Por que tanta perplexidade, impaciência e insatisfação em relação ao papa Francisco? O que o pontífice faz ou diz que incomoda tanto certos setores da sociedade, que esses jornalistas representam? Por que se sentem tão desnorteados? Uma explicação pode estar nas próprias palavras dos articulistas. O papa Francisco age e fala como um “cura de aldeia”. Mas aquilo que parece ser uma crítica, no fundo, é um belo elogio: ele não corresponde a certo estereótipo pontifício, marcado por protocolos rígidos e mecânicos, por trejeitos fortemente romanos, italianos,

europeus, por gestos régios, imperiais, majestáticos, que foi sendo construído historicamente ao redor da figura papal. Mais do que “populista”, Francisco é, sim, um papa popular, pois o povo é central em seu pontificado. Esse pontífice máximo se “rebaixa” ao nível do homem e da mulher comuns, fazendo-se próximo deles. Ele desnorteia certos bien-pensants, porque conhece o povo, seu linguajar, sua realidade, porque sente um “prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas”, como escreveu na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium (EG n. 268). Como pastor, ele sabe que deve “pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir” (EG n. 154). Dessa forma, o papa Francisco remodela a práxis da autoridade papal: não superiora e intocável, mas servidora e próxima. Uma autoridade “que é sempre um serviço ao povo” (EG n. 104). Com seus gestos e palavras, o pontífice também “des-norteia” a Igreja e a sociedade em um sentido bastante literal: apontando para as periferias do mundo. Ele se volta para os povos do sul menosprezado, na Igreja e na sociedade, tirando da agenda eclesial a centralidade do norte. E, ao mesmo tempo,

chama a atenção do mundo para a vida viva e vivida no Oriente, ignorado pelo Ocidente autorreferencial. E, assim, “re-orienta” a Igreja. São inúmeros os sinais disso no pontificado de Francisco. A começar pela escolha dos lugares a visitar como pontífice: Albânia, Brasil, Coreia do Sul, Terra Santa, Turquia e, no início deste ano, Filipinas e Sri Lanka. Pouco Ocidente, poucos países do “centro” do mundo. Muito Oriente, muitos países periféricos no cenário internacional. E, mesmo quando as viagens são no interior da Itália, as periferias têm prevalência: as paróquias dos subúrbios romanos e as cidades mais esquecidas, principalmente Lampedusa, a “periferia europeia”, aonde chegam os incontáveis botes superlotados de migrantes e refugiados africanos. Outro sinal foram os novos cardeais nomeados em 2014 e 2015. Poucos europeus, quase nenhuma “sede cardinalícia” histórica. Muitos prelados do sul do mundo, especialmente asiáticos, latino-americanos e africanos. Entre os escolhidos, o papa Francisco também criou cardeais em países inéditos, quase esquecidos, que nunca haviam recebido uma púrpura em toda a sua história, como Cabo Verde, Haiti, Ilhas Tonga, Mianmar e Panamá. Mas o desejo de “des-nortear” e a necessidade de “re-orientar” a Igreja não são apenas um jogo de palavras. O Anuário Pontifício de 2014, que contabiliza oficialmente os dados eclesiais do mundo inteiro, retrata uma Igreja cada vez mais “des-norteada”: a Europa é a região menos dinâmica, com apenas 2% de crescimento no número de católicos e com uma clara diminuição, em comparação com o restante do mundo, no número de padres, de religiosos e de religiosas. O crescimento eclesial está se “re-orientando” fortemente: a Ásia desponta como a região do globo onde está o maior crescimento de vocações sacerdotais e religiosas. E o continente africano é o que apresenta o maior aumento no número de católicos em todo o mundo, segundo o documento vaticano. Nessas regiões do planeta geralmente escanteadas, a Palavra de Deus vai encontrando uma acolhida cada vez maior e mais significativa. Atento a essas realidades, o pontífice traz essas várias expressões culturais cristãs para o centro do olhar da Igreja. Ele já deixou claro na sua exortação apostólica: “Não podemos pretender que todos os

povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adotadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não pode ser confinada dentro dos limites de compreensão e expressão de uma cultura” (EG n. 118). Segundo o papa, mesmo tendo uma manifestação histórica romana, “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural”, e mais: “Não faria justiça à lógica da encarnação pensar em um cristianismo

mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador” (EG n. 117), pois “é indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (EG n. 118). Por isso, para os parâmetros deste mundo, o pontífice “perturba a tranquilidade” dos acomodados ao status quo, dos conformados com o sistema, dos incomodados com as mudanças sociais. Porque ele desloca o eixo da Igreja, apontando para novos horizontes, especialmente o sul marginalizado e o Oriente

Menino decide juntar-se à Papa Francisco durante discurso do Pontífice, outubro de 2013, L’Osservartore Romano

monocultural” (EG n. 116). Portanto, não se trata apenas de uma mera estratégia de geopolítica eclesial: acima de tudo, esse “des-norteamento” e essa “re-orientação” são um chamado a perceber o valor das culturas, de cada uma e de todas elas, especialmente as periféricas. Na simbologia do papa, as culturas não são vistas como uma esfera, todas iguais, equidistantes ao centro, mas como um poliedro, em que as diferenças, harmonizadas, contribuem para o enriquecimento de todas. “Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra a beleza deste rosto pluriforme” (EG n. 116). Em 19 de janeiro, o papa Francisco criticou a colonização ideológica, que invade, avassala e tenta sujeitar as culturas e os povos. Como disse na entrevista coletiva no voo de retorno da Ásia, “é importante globalizar”, contanto que “cada povo, cada parte mantenha a sua identidade, o seu ser, sem acabar colonizada ideologicamente”. Mas a crítica também se volta à colonização eclesial: “Às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode

esquecido. O sul oferece à Igreja o “Evangelho dos pobres”. Como disse o papa ao clero e aos religiosos filipinos no dia 16 de janeiro, “os pobres estão no centro do Evangelho. Se tirarmos os pobres do Evangelho, não podemos entender plenamente a mensagem de Jesus”. São eles “a mensagem que a Igreja dá hoje”. Já o Oriente é o antigo e constante sonho missionário da Igreja, especialmente para os jesuítas, desde São Francisco Xavier (1506-1552) e Matteo Ricci (1552-1610). Basta pensar na difícil relação atual da Igreja Católica com a China, um dos países mais populosos do mundo. Sobre esse tema, o papa afirmou no retorno das Filipinas que a Igreja faz as coisas “passo a passo, como se fazem as coisas na história”. Parafraseando o artista uruguaio Joaquín Torres Garcia (1874-1949), em tempos de Francisco, passo após passo, o “norte” da Igreja é o sul do mundo. Moisés Sbardelotto Jornalista, autor do livro E o verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na internet (Santuário)

Arquivo pessoal

“Desnortear” e “reorientar”

Padre africano, Peter Williams/WCC

IGREJA & COMUNICAÇÃO

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