Desoneração da folha de pagamento e sua conformidade com o princípio da solidariedade

May 18, 2017 | Autor: Rodrigo Tomiello | Categoria: Tributação, Orçamento Público, SEGURIDADE SOCIAL, Princípio da Solidariedade
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Fundação Getúlio Vargas – Escola de Direito de São Paulo

Rodrigo Tomiello da Silva

DESONERAÇÃO DA FOLHA DE PAGAMENTO E SUA CONFORMAÇÃO DIANTE DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Campinas, 2016

Rodrigo Tomiello da Silva

DESONERAÇÃO DA FOLHA DE PAGAMENTO E SUA CONFORMAÇÃO DIANTE DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Trabalho de Conclusão de Curso do MBA em Direito Tributário como requisito para a obtenção do título de Especialista em Direito Tributário.

Fundação Getúlio Vargas – Escola de Direito de São Paulo

Campinas, 2016

SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 3 Metodologia adotada ................................................................................................................ 4 Capítulo 1 – Desoneração da folha de pagamento ................................................................. 5 1.1 – A Emenda Constitucional 42/2003 ........................................................................ 7 1.2 – A destinação do produto da arrecadação como critério de distinção entre espécies tributárias e a consequência para a Contribuição patronal .......................................... 10 1.3 – A necessária distinção entre previdência e seguridade social ............................... 9 1.4 – A destinação do produto arrecadado e o vínculo com o princípio da solidariedade ........................................................................................................................................ 9 Capítulo 2 – Teoria das causas das contribuições sociais ................................................... 12 2.1 – A teoria das causas e finalismo ............................................................................ 15 2.2 – Causas das contribuições do art. 195 ................................................................... 17 Capítulo 3 – Efeito do rompimento da causa da contribuição sobre a folha de pagamentos .. 22 3.1 – A repristinação do tributo sem causa e sua conformação com o modelo de contribuições sociais .................................................................................................... 23 3.2 – A renúncia fiscal e as causas ............................................................................... 24 3.3 – As consequências: a possibilidade de escolha de tributação mais favorável e a repetição de indébito .......................................................................................................................... 24 Conclusão ................................................................................................................................ 28 Bibliografia .............................................................................................................................. 29

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Introdução

A desoneração da folha de pagamento, medida adotada a fim de combater os efeitos da crise econômica mundial, no âmbito do denominado Plano Brasil Maior, foi introduzida pela Medida Provisória 540/2011. Na prática houve uma transferência da base de financiamento da seguridade social. A contribuição a cargo de quem contrata o trabalhador (art. 195, I, “a” da Constituição Federal CF) foi substituída – para alguns setores – pela incidência de contribuição sobre receita bruta (art. 195, I, “b” da Constituição Federal). O mote desta pesquisa é avaliar a desoneração da folha de pagamentos e sua conformação constitucional. A constitucionalidade da utilização do instrumental impositivo do art. 195 da CF como política fiscal. A resposta à indagação reflete diretamente nos efeitos da norma impositiva para aqueles que se encontraram onerados pela alteração do tributo assim como para o próprio ente detentor da competência, visto que encontra limites na lei de responsabilidade fiscal. Por essa razão, a análise da construção histórica dos institutos jurídicos é indispensável para compreensão da atualidade. A superficialidade dos conceitos, por vezes, repristina velhas doutrinas jurídicas, incompatíveis com os tempos de constitucionalismo contemporâneo. Com sábia ironia o saudoso José Saramago traduziu essa questão em romance:

Não quero entrar em vãs filosofias, mas responda-me se vê alguma ligação entre o facto de um macaco ter descido duma árvore há vinte milhões de anos e a fabricação de uma bomba nuclear. A ligação é precisamente, esses vinte milhões de anos. SARAMAGO, 2013. p. 231.

É justamente o transcurso do tempo que liga o direito tributário entendido como garantia ligada intrinsicamente aos direitos individuais à visão de Estado Fiscal descrita por Nabais2. As relações fisco contribuinte evoluíram a ponto do constitucionalismo do segundo pós-guerra, atendendo a cobranças às promessas descumpridas da modernidade, elevar a tributação a um dever de cidadania.

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SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. NABAIS, José Casalta. Dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998.

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Parece, no entanto, que a cláusula de solidariedade acabou por ser entendida como limitação – à quase extinção – dos limites do Estado em sua competência impositiva. Heidegger alertou para necessidade de manutenção dos conceitos primevos: A tradição assim predominante tende a tornar tão pouco acessível o que ela “lega” que, na maioria das vezes e em primeira aproximação, o encobre e esconde. Entrega o que é legado à responsabilidade da evidência, obstruindo, assim, a passagem para as “fontes” originais, de onde as categorias e os conceitos tradicionais foram hauridos, em parte de maneira autêntica e legítima. A tradição até faz esquecer essa proveniência. Cria a convicção de que é inútil compreender simplesmente a necessidade do retorno às origens. HEIDEGGER, 1989 V. I p. 493

A provocação ao debate de José Maria Arruda, indica a necessidade de reflexão, proposta por Schoueri, arrimado em STIGLITZ, sobre a incidência econômica tributária através de políticas fiscais. O tema ganha relevo na medida em que o tributo instrumento da política fiscal é informado e conformado pelo princípio da solidariedade. A solidariedade como princípio parece possuir um valor semântico, logo não parte de um grau zero de sentido4, como se o legislador ordinário estivesse liberto das condições que a Constituição estabeleceu para financiamento da Seguridade Social.5 A desoneração da folha de pagamentos, em tese, reduziu o montante devido pelos agentes econômicos na contratação de mão-de-obra. Ocorre que, a causa que justifica a criação das contribuições é vinculada, e a própria espécie tributária é marcada pelo destino do produto da arrecadação. A matriz normativa dessa espécie é gravada pelo princípio da solidariedade e resta avaliar se a medida preserva a norma constitucional.

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Petrópolis: Vozes, 1989. No fundo, a adequabilidade nada mais faz do que pretender acoplar universalizações a “coisas particulares”. É como se um ente (o “fato concreto”) pudesse existir sem o ser (sentido). Ora, os sentidos não estão à disposição do intérprete. Não pode haver cisão entre compreensão e aplicação. O ser não pode ser visto. O ser não é um ente. Daí a importância da diferença ontológica entre ser e ente e entre texto (que não é apenas um enunciado linguístico) e norma, que vem a ser o texto em forma de enunciados, isto é, aquilo que se diz sobre ele, tese que trago para o âmbito da teoria do direito, procurando superar os problemas relacionados à interpretação nesta etapa de inexorável crescimento do papel da jurisdição. Cf. STRECK, Verdade e Consenso. p. 135 5 Canotilho enfrentando o tema frisou os limites do Estado: “Olhados com mais de trinta anos de distância e com várias suspensões reflexivas de permeio, talvez seja legítimo dizer que os neocontitucionalistas fundadores transportavam, no seu bojo, algumas das preocupações do positivismo iluminista. A positivação dos valores democráticos e sociais na constituição convertia-os através dessa mesma positivação, em valores internos. Isso justificaria a ideia de “concretização” e “actualização” das normas constitucionais como esquema metodológico cognitivo (cf. Ingo W. Sarlet (org.), A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado, Porto Alegre, 2000.) o “dever ser” estava agora “constitucionalizado” ocupando o lugar cimeiro da validade. Cumpria agora assegurar a aplicação directa da constituição, e restringir, ao mesmo tempo, os arbítrios interpretativos dos órgãos políticos, sobretudo dos órgãos legislativos e de governo. CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 49. 4

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Isso porque se verifica na prática um aumento paulatino da carga tributária, especialmente nas contribuições sociais expressamente conformadas pelo princípio em questão. Derivado do ideário revolucionário francês, o princípio pode ter se tornado álibi retórico para romper o equilíbrio federativo ampliando as receitas da União sob argumento de promoção de justiça social. Nesse contexto que “desoneração” pode ser vista como ato contraditório à escalada de exações a este título. À margem das críticas ao modelo de repartição de arrecadação adotado pela Constituição, intenta-se adentrar especificamente na força normativa do princípio da solidariedade e suas possíveis limitações quando utilizado para fundamentar exações. Para isso, parte-se da conceituação das contribuições sociais e sua matriz constitucional em confronto com a teoria das causas; passando pela referibilidade aplicada às contribuições sociais. Analisa-se, por fim a eventual quebra do nexo de causalidade e sua influência na legitimidade do instituidor da contribuição. A desoneração da folha de pagamento, alterando a causa das contribuições constitucionalmente conformadas, será fio condutor da análise da solidariedade, atentando para o possível desvio do “direito” de tributar para o “poder” de tributar dos modelos estatais primevos. A perspectiva limitadora do poder do Estado trazida implicitamente pelas Constituições democráticas e o garantismo tributário são objeto de estudo para, ao fim, tentar retornar às origens do Direito Tributário e buscar o fundamento argumentativo para concluir se há limite ao dever de solidariedade no ordenamento jurídico brasileiro.

Metodologia adotada

A partir da provocação realizada pelo Professor José Maria de Andrade em sua coluna em revista eletrônica, passa-se à verificação da norma que introduziu essa política fiscal denominada: “desoneração da folha de pagamentos”. A norma introdutora, sua repercussão econômica, conjugada com a análise da situação financeira da seguridade social, notadamente marcada por sucessivas “reformas”. Será realizada uma investigação sobre a teoria das causas, vinculação do produto de arrecadação das contribuições, referibilidade, rompimento de nexo causal e suas consequências. Adiante, serão pesquisadas as espécies de contribuições do artigo 195 da Constituição Federal adentrando especificamente na contribuição desonerada (contribuição sobre o total

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da remuneração paga ou credita ao trabalhador) e aquela que a substituiu (contribuição sobre receita bruta). Nesse momento que se persegue a adequação (no sentido de integridade que emprega Dworkin) das normas indutoras de comportamento e intervenção na economia (SCHOUERI) com contribuições marcadas pelo princípio da solidariedade. Com isto, pretende-se identificar o rompimento do vínculo causal entre o mandamento constitucional de ampla base de financiamento da seguridade social e a utilização desta espécie tributária como política fiscal. Então serão abordados os efeitos desse possível rompimento para buscar a resposta da indagação que move essa pesquisa. Quais são as possibilidades de alterações da matriz tributária que foi constitucionalmente delineada e os efeitos de sua inobservância. Cabe, por fim, lembrar a lição de Ernildo Stein quando alerta: O ser humano que pretende a reflexão total é um ser existente no espaço e no tempo, limitado, dotado de características temporais e caráter histórico. Ele é historicidade.6

Desoneração da folha de pagamento

A ideia de diminuir o impacto da tributação sobre os rendimentos pagos ou creditados a quem lhe preste serviços é de fonte europeia como bem demonstra a análise técnica sobre a desoneração da folha de pagamentos, expedida em abril de 2015 pelo Ministério da Fazenda7. A desvalorização fiscal promovida por Portugal permite entender algumas premissas que justificam a medida em tempos de desequilíbrio econômico que justifiquem a atuação do Estado na economia para incentivar a volta do crescimento. O paralelo traçado entre as ações de Portugal e do Brasil se justifica pela semelhança entre os modelos de seguridade social dos dois países. Ambos são marcados pela solidariedade e pela diversidade da base de financiamento, além de outras equivalências. A disciplina da Previdência, especificamente, em Portugal para a fonte de receitas é bifronte: contribuição dos empregados e dos empregadores para formação do capital necessário a fazer frente a necessidade de substituição da renda do trabalho quando há ocorrência dos riscos cobertos pelo seguro social. O princípio contributivo do modelo

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STEIN, Ernildo. Racionalidade e existência: uma introdução à filosofia. São Paulo: L&PM Editores, 1988.p.70-71. 7 http://www.spe.fazenda.gov.br/noticias/arquivos-de-noticia/desoneracao-versao-abril-2-2-1.pdf

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português é refletido pela relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações8. A desvalorização fiscal em Portugal buscou a neutralidade tributária de forma a transferir a receita obtida pelas contribuições a cargo dos empregadores pela contratação de mão-de-obra para imposto sobre consumo (IVA)9. A implementação desse tipo de medida parece se justificar no ambiente macro econômico, em países com união monetária. Isso porque a desvalorização cambial – relevante elemento de ganho de competitividade – não esta disponível a esses países. A competição no comércio internacional para países que competem sob a mesma moeda – caso de Portugal – reduz as possibilidades de atuação do Estado na economia para incremento de competitividade. Na ausência do cambio flutuante os olhos voltam-se a incentivos fiscais como meio de indução a comportamentos. A razão para implementação da substituição da oneração da folha por acréscimo no imposto sobre consumo (IVA) parece ser justificável para o caso português. Já no Brasil, o que ordinariamente ficou conhecido como desoneração da folha de pagamento é deliberadamente renúncia fiscal introduzida no âmbito do Programa Brasil Maior pela Medida Provisória nº 540/2011 convertida na lei 12.546/2011. A norma, segundo o balanço do programa, instituiu a sistemática de eliminação da contribuição patronal de 20% sobre a folha de pagamentos para 15 setores econômicos intensivos em trabalho [...] Essa contribuição foi parcialmente compensada pela nova alíquota sobre o faturamento bruto da empresa. 10 As leis 12.715/12, 12.794/13 e 12.844/13 ampliaram o número de setores abrangidos pela medida que passou a atingir cinquenta e seis. A previsão inicial de término da medida era dezembro de 2014 conforme dispunha a redação do artigo 7º da lei nº 12.546/2011. Entretanto, o que seria provisório tornou-se permanente através da Medida Provisória nº 651 de 09/07/2014 e da lei 13.161/2015. O Balanço do Programa estima a inclusão de mais de setenta mil contribuintes que substituíram a contribuição sobre a folha de pagamentos para a receita bruta e que tais contribuintes são responsáveis pela contratação de mais de treze milhões de vínculos formais de trabalho.

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Relatório de desvalorização fiscal de autoria do Banco de Portugal, Ministério das Finanças Ministério da Economia e Emprego e Ministério da Solidariedade e Segurança Social Disponível em: http://www.portugal.gov.pt/media/150503/rel_desvalorizacao_fiscal.pdf. Acesso em 20/01/2016. 9 Considerando que a contribuição sobre receita bruta no Brasil se assemelham, tanto quanto possível, ao IVA, pode-se afirmar que a política brasileira segue o parâmetro português. 10 http://www.brasilmaior.mdic.gov.br/images/data/201411/f97a72083144d28b26013b7261e7e06b.pdf

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José Maria de Arruda Andrade11 não chega a criticar a alteração na fonte de custeio, mas questiona a falta de critérios para ampliação dos setores envolvidos e, em percuciente análise, aponta o significativo impacto nas receitas públicas que a medida causou. O Balanço estima renúncia fiscal na ordem de 42 bilhões de reais para o período entre 2011 e 2014. A exposição de motivos da MP nº 540/2011, como bem relata Andrade,

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atribui à

desoneração a tarefa de aumento de competitividade em cenário de retração econômica mundial, redução de consumo nos países emergentes e consequente impacto na balança comercial, inclusive a perda no valor das commodities. A lei nº 12.546/2011 no inciso IV do seu artigo 9º prevê a compensação, pela União, ao Fundo do Regime Geral da Previdência Social no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária oriunda da desoneração, de forma a não afetar o resultado do Regime Geral de Previdência Social. Em suma a desoneração é política econômica concretizada através do sistema tributário, especialmente através de contribuição previdenciária. A ampliação da sistemática não parece ter sido precedida por análise acurada de seus impactos e resultados como o governo federal manifestou em nota de análise em abril de 2015.13 A manutenção de empregos durante o ciclo econômico recessivo e aumento das exportações não foram validamente verificados. Alguns setores, inclusive, diminuíram seus vínculos formais de emprego o que representa a ineficácia da medida para os fins que inicialmente se propusera. A nota do Ministério da Fazenda apresenta o grau de ineficiência do modelo adotado:

Posto de outra forma, os recursos despendidos pela política seriam suficientes para pagar os salários de todos os trabalhadores cujos empregos foram gerados/preservados pela desoneração, e ainda sobrariam amplos recursos para serem alocados para outros fins, no caso, teoricamente, incorporados às margens de lucros da empresas, ou distribuídos como aumento de salário aos trabalhadores. Grifo pessoal.

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http://www.conjur.com.br/2015-set-27/estado-economia-politica-economica-desoneracao-folha-pagamento Desde a crise financeira internacional em 2008, a economia global vem atravessando uma série de turbulências que colocam em dúvida a capacidade dos países desenvolvidos se recuperarem e voltarem a exibir um crescimento econômico robusto e sustentável. Esse quadro não só tem possibilitado o aumento do peso dos países emergentes, mas também tem lhes permitido atuarem como motor da economia mundial. 3. No entanto, esse novo alinhamento tem trazido uma série de desafios à execução da política econômica. Um desses desafios é a manutenção da competitividade externa. Com efeito, a redução da demanda externa por parte dos países desenvolvidos tem desestimulado nossas exportações. Esse efeito aliado ao forte ciclo dos preços das commodities e de redirecionamento dos fluxos de capitais em direção aos países emergentes, que tem causado forte valorização da taxa de câmbio, acaba por reduzir a competitividade da indústria nacional e deteriora o saldo comercial brasileiro. 13 http://www.spe.fazenda.gov.br/noticias/arquivos-de-noticia/desoneracao-versao-abril-2-2-1.pdf 12

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Notadamente os resultados da desoneração da folha de pagamentos não justificam a política econômica, ao menos não para os fins constantes da Exposição de Motivos da MP 540/2011. Contudo, o escopo do presente estudo não se limita a verificar a eficácia da desoneração para os fins que se propusera, mas verificar se tal alternativa esta a disposição do legislador ordinário ou do Poder Executivo em seu confronto com os dispositivos constitucionais sobre o tema e, especialmente, pelo caráter contributivo da previdência social e o princípio da solidariedade ligado à seguridade social em suas três feições. A desoneração foi precedida de mutação constitucional que possibilitou a alteração no custeio da seguridade social que não manteve a restrição do art. 167, XI da Constituição. A substituição do tributo incidente sobre a folha de pagamentos para a incidente sobre a receita bruta foi viabilizada pela previsão constitucional, introduzida pela Emenda Constitucional nº 42 de 19 de dezembro de 2003 que inseriu o §13 ao artigo 195 da Constituição e deu suporte a alteração da fonte de custeio da seguridade. Cumpre, portanto, verificar as possibilidades de conformação da mutação constitucional com o texto precedente da Carta, diante do princípio da solidariedade e da vinculação específica das contribuições previdenciárias. 1.1 – A Emenda Constitucional 42/2003

A Emenda Constitucional em comento introduziu reformas no sistema tributário. As modificações não foram expressivas como verifica Ricardo Lobo Torres14, contudo, uma alteração interessa a pesquisa por sua extrema relevância. A Proposta15 encaminhada ao Presidente da República pelos Ministros da Fazenda e da Casa Civil em abril de 2003, continha a justificativa para a proposta de emenda dentre as quais destaca-se:

No caso da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários tem se apresentado como um encargo que não estimula o emprego formal. Portanto, impõese mudar a lógica de financiamento da seguridade social para estimular a 14

TORRES, Ricardo Lobo. IN: CASTRO, Paulo Rabello de Castro; MARTINS, Ives Gandra da Silva; MARTINS, Rogério Vidal Gandra da Silva. (org.). O direito tributário no Brasil.2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.106. No mesmo texto o autor critica duramente o modelo adotado pela Constituição para financiamento da seguridade social: “Não obstante as modificações introduzidas pela EC 33/2001, o sistema de contribuições sociais continuou a denotar a irracionalidade econômica que o conspurcou a partir de 1988.” 15 Exposição de Motivos Interministerial número 84 de 30 de abril de 2003, disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8738520B0B7FBCAC03EE6111EF 6A7D56.proposicoesWeb2?codteor=129816&filename=PEC+41/2003 acesso em 17/03/2016.

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formalização das relações de trabalho, incentivando os setores que empregam mais trabalhadores e contribuindo, até mesmo, para torná-los mais competitivos.

A Proposta detalha a substituição da contribuição sobre a folha de pagamentos por outra a incidir sobre a receita bruta como se lê no mesmo texto:

Outra relevante alteração no Capítulo da Seguridade Social reside na opção criada pelo § 12 do art. 195, que possibilitará a substituição, total ou parcial, da contribuição social sobre a folha de salários por outra que incida sobre receita ou faturamento, de forma não cumulativa.

O texto aprovado que passou a integrar a Constituição da República foi: § 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) § 13. Aplica-se o disposto no § 12 inclusive na hipótese de substituição gradual, total ou parcial, da contribuição incidente na forma do inciso I, a, pela incidente sobre a receita ou o faturamento.

Em suma a Emenda autorizou, por razões econômicas, que a contribuição sobre a folha de pagamentos fosse substituída por outra incidente sobre a receita ou faturamento. A questão é saber se a vinculação do destino da arrecadação dessa alteração na fonte de custeio manteve-se, de forma a preservar o disposto no artigo 167, inciso XI que veda a utilização dos recursos arrecadados pela contribuição sobre o total das remunerações pagas para fins diversos ao pagamento de benefícios da previdência social. Antes, no entanto, de adentrar essa problemática, cumpre destacar a natureza das contribuições sociais a fim de atingir o objetivo final da pesquisa. 1.2 – A destinação do produto da arrecadação como critério de distinção entre espécies tributárias e a consequência para a Contribuição patronal

As contribuições de financiamento da seguridade social são espécie tributária distinta das demais. O critério de distinção em relação aos impostos é justamente a vinculação obrigatória do produto de sua arrecadação as ações de saúde, assistência e previdência social16 (art. 194 da CF).

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Entendimento semelhante a Eurico Marcos Diniz de Santi e Vanessa Rahal Canado: O mesmo se diga das contribuições: a existência de finalidades específicas a que elas se propõem é seu diferencial constitucional. É irrelevante que o Código Tributário Nacional, em seu artigo 4º, proíba a consideração da destinação do produto da arrecadação como critério para identificação das espécies tributárias, já que este diploma normativo é anterior às Constituições que trouxeram a possibilidade de instituição das contribuições. IN: DE SANTI, Eurico Marcos

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Cabe ressaltar então que duas contribuições nominadas do art. 195 da Constituição possuem uma dupla vinculação. Isso se dá por duas razões: as contribuições previdenciárias – a cargo do trabalhador e do tomador – além de estarem vinculadas a seguridade social como cláusula geral dessas contribuições, sua arrecadação só pode ser destinada a custear benefícios da previdência social a teor do artigo 167, inciso XI da Constituição. Ou seja, além da vinculação a que todas contribuições do artigo 195 estão sujeitas, essas possuem como único destino possível o custeio dos benefícios da previdência social. Trata-se da manifestação expressa do caráter contributivo e solidário da previdência social brasileira que reuniu os antigos institutos de previdência e unificou os “seguros sociais” em torno de um regime geral de filiação compulsória administrado e organizado pela União. Misabel Derzi há muito denunciou a utilização dos tributos afetados à destinação específica para suprimento de deficiências de caixa da União.17 A análise promovida pela autora abarca todas as contribuições destinadas ao custeio da Seguridade Social (artigo 195 da CF) e fez um alerta, citando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal18, que as contribuições que passaram a ser geridas pela União não entregaram os recursos para a finalidade constitucionalmente determinada. A criação de fundos e a desvinculação das receitas da União legitimaram o “assalto” ao cofre da seguridade social que se acentuou com o tempo. A autora profetizou o que viria a ocorrer. Inicialmente as Emendas Constitucionais que introduziam as desvinculações das receitas deixavam intactas as receitas provenientes das contribuições sobre a folha de pagamentos e aquela paga pelo trabalhador descontada de seus vencimentos. A Desvinculação das Receitas da União não contemplava, inicialmente, as contribuições do artigo 195, inciso I, alínea a e inciso II da Constituição. No entanto, o dispositivo inserto no art. 195 pela Emenda Constitucional nº 42/2003, abriu o caminho para substituir a contribuição sobre a folha de pagamentos para a incidente sobre a receita bruta. A proposta, como visto, tinha por objetivo reduzir custos para formalização do emprego. Ocorre que, ainda que reflexamente, a substituição tal qual preconizada pela lei que introduziu a desoneração arrimada nos parágrafos 12 e 13 do artigo

Diniz (coord.) Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008.p.616. 17 DERZI, Misabel Abreu Machado. A causa final e a regra matriz das contribuições. op.cit. 18 RE 138284-8. Rel. Min. Carlos Velloso. j.01 de julho de 1992. O Supremo por unanimidade exarou entendimento que a contribuição integrar o orçamento da União, desconsiderando o orçamento específico da seguridade social, não é relevante mas sim, a destinação do produto da arrecadação ao financiamento da seguridade social.

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195 não contemplou a manutenção do destino da arrecadação ao pagamento de benefícios previdenciários como comanda o artigo 167, inciso XI, da Constituição. Com isso, a Emenda Constitucional nº 42/2003 possibilitou o esvaziamento da vedação de tredestinação dos recursos arrecadados pelas contribuições destinadas especificamente ao custeio dos benefícios da previdência social para quaisquer fins que a União pretenda e mais: possibilitou que isso seja feito por lei ordinária. A Desvinculação das Receitas da União que foi o mecanismo até então utilizado para “liberar” recursos para o caixa da União se dá por Emenda Constitucional de rito complexo e exigência de maior negociação política, enquanto a desoneração da folha chegou ao mesmo objetivo através de Medida Provisória.

1.3 A necessária distinção entre previdência e seguridade social.

O título pode transparecer uma obviedade descomunal. No entanto, a distinção é relevante na medida em que as contribuições do art. 195 da Constituição diferenciam-se justamente pelo regime que as informa: se previdenciária ou de seguridade social. Ao definir seguridade social a Constituição expressa, em seu art. 194, assistência social, previdência e saúde como ações que compõem o modelo de atuação do Estado na ordem social. Assim, a previdência social é somente uma das ações. A conclusão mantém a simplicidade do quanto dito até aqui, contudo, em matéria tributária, a distinção não parece tão clara. Isso porque, as contribuições tipicamente previdenciárias possuem destinação específica. A contribuição a cargo da empresa incidente sobre a folha de salários e aquela a cargo do trabalhador estão vinculadas ao custeio de benefícios da previdência social. Esta é a dicção – pouco lembrada – do art. 167, XI da Constituição Federal.19 A contribuição que sofreu a desoneração é historicamente vinculada ao custeio da previdência. Desde sua previsão na Constituição de 1934, a contribuição sobre o total da remuneração paga ao trabalhador é fonte de custeio dos benefícios da Previdência Social.

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Art. 167. São vedados: (...) XI - a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

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Atualmente, a arrecadação da contribuição é vertida ao Fundo Nacional de Previdência Social e, como visto, a política fiscal que desonerou a folha de pagamentos já prevê a compensação do Fundo pelo orçamento da União. A motivação da adoção da medida fiscal expõe a renúncia de receitas especialmente na previdência social que possui lógica diversa das demais ações de seguridade, notadamente pelos princípios específicos que a informam: equilíbrio atuarial, caráter contributivo20 e a solidariedade. O caráter contributivo diz respeito aos segurados e, portanto, não será objeto de análise. A solidariedade será estudada em tópico adiante, restando a lógica atuarial como objeto de estudo, neste momento. O desenvolvimento da pesquisa levou a um confronto de conceitos e origens normativas, a tal ponto que avançar depende da separação epistêmica entre contribuição previdenciária e contribuições sociais. A idealização de um orçamento próprio para a seguridade social veio sendo sufragada a medida em que o Tesouro enfrentava problemas de caixa. Com vistas a preservar o orçamento previdenciário a Emenda Constitucional 18/98 inseriu o inciso XI no art. 167 e “travou” o destino da arrecadação das contribuições previdenciárias. A distinção entre as espécies de contribuições sociais é relevante diante da substituição da fonte de custeio promovida pela desoneração da folha de pagamento. A contribuição sobre o total da remuneração creditada pelo tomador ao trabalhador encontra antecedente histórico na Constituição de 1934 e manteve a sua incidência intrinsecamente vinculada ao sistema previdenciário. A lógica que informa a o regime previdenciário é atuarial e a Emenda Constitucional 18 preservou essa lógica. A causa, a finalidade da contribuição previdenciária é de manutenção do regime que tem caráter contributivo e filiação obrigatória. A leitura do art. 195 conjugada com a do art. 167 da Constituição conduz a conclusão de que nem todas as contribuições do art. 195 estão destinadas à universalidade da cobertura e do atendimento. Algumas – aquelas expressamente consignadas pelo artigo 167, inciso XI – são criadas e arrecadadas para custear os benefícios do regime geral de previdência social e não comportam sua tredestinação.

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O vocábulo merece destaque como se verá adiante. O caráter contributivo da previdência social; a exigência de carência para concessão de alguns benefícios; a utilização do salário de contribuição para cálculo do salário de benefício são traços que distinguem a Previdência Social das demais ações de seguridade e importam em hermenêutica diferenciada do princípio da solidariedade.

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O modal deôntico do artigo 167 consigna expressamente a vedação. Interpretar o artigo 195 como se todas as contribuições exigidas com base no princípio da solidariedade fossem vertidas indiscriminadamente à seguridade social é relativizar o regime previdenciário trazido pela Constituição e abre perigoso precedente para relativizar inclusive as vinculações orçamentárias para a saúde ou educação. Afinal, se a arrecadação motivada pelo custeio dos benefícios previdenciários pode ser destinada a outros fins qual razão imporia vinculação às demais áreas de atuação estatal? O voto do Ministro Joaquim Barbosa no AgRg no AI 724.582/SP21 resume o quanto se pretende nesse tópico quando expõe que “a existência de contribuições somente se justifica se preservadas sua destinação e finalidade.” O desenvolvimento do princípio da solidariedade e sua aplicação às contribuições de seguridade social em especial as tipicamente previdenciárias, mostra-se nesse ponto. As contribuições destinadas a custear os benefícios do Regime Geral de Previdência Social são marcadas pelo princípio da solidariedade em menor grau do que as outras contribuições sociais nominadas no artigo 195. Não há relação direta entre receita bruta e pagamento de benefícios, tampouco entre o concurso de prognósticos e os benefícios, como não há relação entre o lucro e os benefícios pagos pela Previdência Social. No entanto, há relação constitucionalmente estabelecida entre a contribuição paga pelo tomador de serviços sobre a totalidade dos valores pagos ou devidos a quem lhe preste serviços e aquela descontada de quem entrega sua mão-de-obra em troca de remuneração. A relação fica evidente quando consideradas as contribuições referentes a cobertura de risco de acidentes do trabalho – RAT cuja matriz constitucional se encontra no artigo 7º, inciso XXVIII regulamentado pelo artigo 22, inciso II da Lei nº 8.212/91; as destinadas a cobrir os custos com aposentadoria especial prevista pelo §1º do artigo 201 da Constituição regulamentado pelo §6º do artigo 57 da Lei nº 8.213/91 com o artigo 22, inciso II da Lei nº 8.212/91. Essas contribuições são acréscimos percentuais na contribuição patronal do artigo 195, inciso I, alínea a, da Constituição. A relação existente entre a contribuição patronal e o pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência é evidente. Não bastasse a já citada regra do artigo 167, inciso

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no AgRg no AI 724.582/SP. Relator: BARBOSA, Joaquim. P. DJe 06-04-2011. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28724582%29&base=baseAcordaos&u rl=http://tinyurl.com/gr7x8le.

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XI da Constituição, os acréscimos decorrentes de condições especiais de trabalho, que aumentem o risco para o trabalhador, incidem sobre a mesma base de cálculo. José Maria de Arruda Andrade que motivou esse estudo conclui nesse sentido:

A existência de regimes excepcionais apenas para certos produtos ou setores econômicos, em um tributo cujo incidência dever ser generalizada (custo da exploração do trabalho humano), a inexistência, até então, de uma regra de opcionalidade para as empresas que foram prejudicadas e passaram a recolher mais tributos sem poder permanecer no regime original; a desigualdade por setor econômico na distribuição do benefício, certamente, são pontos que comprometem a medida.22

O retorno às causas como propõe Misabel Derzi23, conduz à conclusão que a origem da contribuição sobre a folha de pagamentos é utilização da mão-de-obra e a assunção do risco social pelo Estado se deve justamente a necessidade de preservação dos trabalhadores em face de infortúnios que possam dificultar sua subsistência. A evolução do modelo de previdência no Brasil indica essa preocupação em socorrer os trabalhadores quando atingidos por fato que lhe dificulte ou impossibilite a sua manutenção e a de sua família. Desde a Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo nº 4.682 de 24/01/23) que criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões nas empresas de estradas de ferro 24, a fonte de financiamento da aposentadoria se dava por contribuições dos trabalhadores, das empresas e do Estado. Historicamente os benefícios previdenciários sempre estiveram ligados a essas fontes de custeio. Houve vinculação, desde o surgimento da ideia de proteção social, dos tomadores com os eventos segurados pelas leis de proteção social. Não por outro motivo a base de cálculo das contribuições previdenciárias manteve-se ligada ao total das remunerações pagas aos trabalhadores. Há liame lógico entre a base de cálculo e os benefícios que a Previdência Social poderá ser chamada a pagar.

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ANDRADE; José Maria de Arruda. http://www.conjur.com.br/2015-set-27/estado-economia-politicaeconomica-desoneracao-folha-pagamento#_ftn10 sem grifo no original. 23 “Após o advento da Constituição de 1988, afirmamos que, no caso das contribuições, a destinação passou a fundar o exercício da competência da União e que, sem afetar o tributo às despesas expressamente previstas na Constituição, faleceria competência à União para criá-las. É que, diferentemente da solidariedade difusa ao pagamento de impostos, a Constituição prevê a solidariedade do contribuinte no pagamento de contribuições e empréstimos compulsórios e a consequente faculdade outorgada à União de instituí-los, de forma direcionada e vinculada a certos gastos. Inexistente o gasto ou desviado o produto arrecadado para outras finalidades não autorizadas na Constituição, cai a competência do ente tributante ou a legitimidade para legislar e arrecadar. Op.cit.p.649. 24 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 18.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.p.39.

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Essa conexão não se verifica, contudo, na contribuição sobre a receita bruta. A receita não esta diretamente ligada ao pagamento de benefícios pela Previdência Social; não guarda relação com a utilização de mão-de-obra. Não se nega o caráter solidário dessa espécie de contribuição, contudo, não parece contemplar a causa da contribuição sobre a folha de pagamentos além da já apontada crise instaurada pela substituição dessa fonte específica que possui aplicação restrita, a teor do já citado artigo 167, XI. Em suma, a contribuição sobre a receita bruta não atende a carga valorativa e finalística da contribuição sobre a folha de pagamentos, rompendo com a tradição jurídica de vincular o tomador de mão-de-obra à cobertura dos riscos que os prestadores estão sujeitos na atividade. Necessário, pois, que se retorne às origens para buscar as causas de forma a preservar a natureza dos institutos que fornecem o mínimo solo linguístico para dogmática jurídica. 1.4 – A destinação do produto arrecadado e o vínculo com o princípio da solidariedade

O princípio da solidariedade marcado pela cidadania fiscal descrita por NABAIS, deve ser interpretado com cautela nas contribuições previdenciárias. A afirmação tem suporte na diferenciação promovida pelo texto constitucional entre o sistema previdenciário a seguridade social pós Emenda 18/98. Basta considerar a universalidade de acesso, princípio informador da saúde enquanto ação integrante do conceito de seguridade social; e o caráter contributivo e obrigatório do regime previdenciário, com suas específicas nuances de carência e perda de qualidade de segurado próprias da previdência social. Grosseiramente pode-se dividir: à previdência tem direito aquele que presta serviço remunerado desde que não sujeito a regime próprio; à saúde, todos têm direito indistintamente e; à assistência social tem direito aqueles que dela necessitarem, ou seja situação de hipossuficiência econômica. Por mais que possa parecer óbvio e aqui vale a citação de Darcy Ribeiro tantas vezes reproduzida por STRECK: “Deus é tão treteiro faz as coisas tão recônditas e escondidas que ainda precisamos dessa categoria de pessoas, os cientistas para desvelarem as obviedades do óbvio”, a seguridade social não pode ser vista integralmente quando se aborda o custeio. A Constituição de 1988 foi pródiga em travar o orçamento e, com isso, retirou das mãos do

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administrador e do legislador ordinário, a possibilidade de alterar o destino de muitas receitas.25 A clareza da distinção entre as ações de seguridade social não são reproduzidas na sua fonte de custeio. A solidariedade que impõe a distribuição da carga social a todos, não está presente com a mesma intensidade em todas ações de seguridade social. Basta que se verifique a referibilidade entre as contribuições vertidas ao custeio. Para as contribuições dos empregados (art. 195, II) a referibilidade é quase direta, ou seja, a contribuição serve para calcular o benefício a que faz jus o contribuinte/segurado uma vez cumprida a carência e verificado o direito. A contribuição a cargo das empresas sobre a folha de salários possui uma referibilidade diretamente ligada ao fato gerador (custo da exploração do trabalho) sem, contudo, refletir em benefício do contribuinte (empregador) mas sim para aquele que colaborou para o desenvolvimento da empresa com a entrega de sua força de trabalho. Há solidariedade na contribuição sobre a folha de pagamentos, mas o fato gerador é vinculado à relação mantida entre o tomador de serviços e o prestador. A Constituição dirigiu o produto dessa arrecadação para o custeio de benefícios da previdência social justamente para manter hígida a ideia de justiça distributiva e garantia de sustento do trabalhador e sua família em caso de infortúnio. A distinção é apontada por TORRES que as distingue por autênticas (previdenciárias) e anômalas ou exóticas as demais.26 O mesmo autor lembra a vinculação expressa dessa receita ao pagamento de benefícios do regime geral de previdência social. A Constituição prevê, portanto, que o financiamento da seguridade social se dará pela arrecadação das contribuições anômalas, posto que a referibilidade é difusa e a solidariedade se verifica plenamente. As contribuições destinadas a essas finalidades não são associadas ao seu fato gerador. A contribuição sobre a receita bruta não tem relação histórica ou social com a saúde ou a assistência social. Nela pode ser encontrado o princípio da solidariedade em sua plenitude. O contribuinte não tem contato direto com a causa que deu origem a exação. A

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O “orçamento impositivo à brasileira” nos termos do Professor Fernando Facury Scaff em artigo publicado sítio de internet: Retrospectiva 2015: O ano da redescoberta do Direito Financeiro no Brasil disponível em http://www.conjur.com.br/2015-dez-29/retrospectiva-2015-ano-redescoberta-direito-financeiro acesso em 30/12/2015, promovido pela Emenda Constitucional 86/15 é mais um passo na direção de vincular receitas a despesas limitando a ação do Executivo. O tema, contudo, foge ao debate nesse momento. 26 TORRES, Ricardo Lobo. Comentário ao art. 167. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p.1781.

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motivação política e social da contribuição é o dever de contribuir, a sensação de pertença ao grupo, solidariedade própria dos Estados Fiscais. Na investigação das causas que se identifica a diferenciação necessária à essa pesquisa.

Teoria das causas e as contribuições sociais

2.1 Teoria das causas e finalismo

Misabel Derzi fez um apelo pelo regresso à valorização das causas, ao finalismo na dogmática jurídica e na interpretação do direito tributário27. O abandono denunciado no texto da doutrinadora se refere a todas as ciências, mas naturalmente, inclui esse contexto nas relações de competência impositiva e sujeição tributária. A autora reflete que todas as espécies tributárias poderiam ser finalísticas a depender a ideologia dominante. A par das pequenas discordâncias com o texto referido, em grande parte é difícil não sentir esse distanciamento da dogmática jurídica com as causas finais das normas impositivas. Vele ressaltar que não se esta intentando relegar o art. 4º do CTN ao ostracismo, antes o contrário, a tentativa é de aplicar em sua integridade a Constituição como até então foi defendido. A teoria das causas distingue, segundo Martinez, causa do poder de tributar e causa da relação jurídica de imposto. O autor português atribui a primeira à soberania do Estado enquanto a segunda seria o motivo de cada vínculo tributário concreto. Ao explicitar o entendimento da causa da relação jurídica do tributo, Martinez, conclui, seguindo Vanoni, pela justificação finalística da imposição aproximando a causa da relação jurídica com a causa do poder de tributar. Esse é o ponto. Uma vez atingida a maturidade democrática para criação e manutenção de um Estado Fiscal28 no qual os contribuintes anuíram expressamente com a tributação na configuração contemporânea do no taxation without representation, a causa da relação que submete o particular a uma subtração de seu patrimônio privado em prol da coletividade deve, obrigatoriamente, estar amparada pelo pacto constituinte. A conformidade com a Carta da República é a obediência aos consagrados princípios que regem o Direito Tributário e debatidos criteriosamente pela doutrina. Contudo, para além 27 28

Op.cit. Direito Tributário e finanças públicas... Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas indutoras e intervenção... CASALTA NABAIS

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dos princípios que regem a relação jurídico tributária, parece necessário, para fins de integridade da aplicação do direito tributário, que se busque uma integração do direito tributário com o direito financeiro/orçamentário. Esse imbricamento entre os estudos é prudente devido a destinação vinculada das contribuições como já exposto acima. Quando Misabel Derzi aponta que todos os tributos poderiam ser finalísticos, fica evidente que alguns já são e essa imposição constitucional precisa ser observada. Martinez alerta para a incerteza que a aplicação incontinenti da teoria das causas implicaria para as relações fiscais considerando a ampliação das discussões acerca da legitimidade dos comandos tributários. No entanto, ao concluir sua análise da teoria das causas, o autor afirma que a observância das causas pode melhorar a apreciação de situações que consistam em tributação abusiva e que: razões de justiça fossem sacrificadas pelas exigências de certeza.29

2.2 Causas das contribuições do art. 195

As contribuições nominadas do art. 195 têm como destino o orçamento da seguridade social, aplicar o produto de sua arrecadação nas finalidades estabelecidas pela Constituição é traço distintivo dessa espécie tributária. Marco Aurélio Greco30 lembra a relação entre a formação do dever de solidariedade insculpido no art. 195 e o objetivo fundante da República em construir uma sociedade livre e justa nos termos do art. 3º, I. O mesmo autor reflete sobre a natureza tributária de todas as contribuições no que é seguido em parte por Marcus Orione Gonçalves Correia. Os autores identificam traços das contribuições sociais que não se amoldam perfeitamente ao conceito de tributo. Greco afirma que se o constituinte pretendesse criar nova espécie tributária bastaria estender o regime jurídico aplicável aos tributos às contribuições sociais, coisa que não fez, e, portanto, as contribuições seriam imposição diversa dos tributos ainda que parcialmente regida pelos mesmos princípios. Correia31, por sua vez, ressalta importante aspecto sobre as

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MARTINEZ, Pedro Mario Soárez. Direito Fiscal.p.199. GRECO, Marco Aurélio. Comentário ao art. 195.In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p.1917 31 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Comentário ao art. 195.In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p.1910. 30

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contribuições previdenciárias – diferenciando-as das demais de seguridade social – que na visão de Félix Pippi são salário social diferido. Em que pese a relevância dos argumentos dos autores parece que a natureza das contribuições de seguridade social é de tributo visto que a não conformação dentre as três espécies previstas originariamente pela Constituição pode ter outras explicações como por exemplo, a competência das três esferas de poder para instituição dos tributos enumerados, enquanto as contribuições para seguridade social são exclusivas da União. Merece, no entanto, reflexão, a diferença entre as contribuições vertidas pelo empregado. Nesse caso, em que pese a natureza solidária do regime geral de previdência, há referibilidade entre as contribuições vertidas e a perspectiva de recebimento de benefício em caso de necessidade. Nesse caso, o questionamento se sustenta porque mesmo que se aponte exceções para exação previdenciária que não repercute em benefícios – como aquela disposta no §7º do artigo 28 da Lei nº 8.212/91 – a regra é que só incide contribuição previdenciária para o segurado quando tal desconto repercutir no cálculo de eventual benefício. A questão mereceria ainda mais destaque mas trata-se de elemento para a pesquisa proposta e não seu objeto. O Supremo Tribunal Federal assentou a natureza tributária das contribuições descontadas dos servidores públicos na ADI 310532 ao que, por enquanto segue inalterada a natureza dessa espécie de exação. A posição trazida serve para embasar a proposta desse estudo. Verificar a compatibilidade da desoneração com a Constituição Federal e o princípio da solidariedade. As contribuições sociais, como gênero, são instituídas para financiar as finalidades eleitas pela Constituição como geradoras do bem-estar garantido às pessoas pelo compromisso firmado no pacto constituinte As contribuições previdenciárias, contudo, possuem destinação diversa. A causa que originou a contribuição do art. 195, I, “a” é a utilização de mão-de-obra. A base de cálculo da contribuição é a folha de pagamentos e há uma razão para isso. O cálculo dos benefícios previdenciários, via de regra, toma por base o salário de contribuição. O salário de contribuição é base de cálculo para a contribuição descontada do trabalhador (art. 195, II) e o somatório de todas os pagamentos em prol do trabalhador servem para calcular o montante devido pelo tomador. A causa da relação jurídica tributária é clara e especificada na Constituição. O tomador sabe que irá contribuir para o seguro, a cargo do Estado, que será acionado em caso de

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http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=363310

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necessidade do trabalhador que lhe presta serviço. Abandonou-se a teoria da responsabilidade subjetiva do tomador para a ideia de responsabilidade partilhada por toda sociedade. A forma de custeio dos benefícios é cristalina na Constituição: contribuições do trabalhador e do tomador e a participação do Estado para cobrir insuficiências financeiras. As contribuições não podem ter destinação diversa do custeio de benefícios como já frisado no decorrer do trabalho. A causa, portanto, das contribuições previdenciárias, é o custeio dos benefícios do art. 201 da Constituição. A solidariedade que se verifica nessas contribuições se dá pela redistribuição dos riscos sociais horizontalmente (entre grupos profissionais) e verticalmente (pelo equilíbrio atuarial)33, diferente do que ocorre com os demais tributos que estão fundamentados na solidariedade própria do Estado Fiscal como discorre Marciano Seabra Godoi34. Se a sujeição a tributação é fundada no princípio da solidariedade em sua vertente do segundo pós-guerra, parece que as contribuições previdenciárias mitigam esse princípio, justamente por não poderem ser destinadas a quem não contribui para o sistema. Os benefícios previdenciários são destinados somente a quem exercer atividade remunerada e seus dependentes. Logo, é possível concluir que a Constituição e a lei geral de benefícios excluem a parcela da população que não é dependente ou segurada da Previdência Social. A seleção de pessoas é mitigação clara do princípio da solidariedade como manifestação do Estado Fiscal. Com isso, é possível concluir que o princípio da solidariedade se manifesta de duas maneiras no direito tributário: uma como dever fundamental dos cidadãos em contribuir para o financiamento do Estado; outra como distribuição do encargo social para cobertura dos riscos oriundos do exercício de atividade remunerada. A primeira não distingue os cidadãos senão pela sua capacidade contributiva; a segunda somente atinge pessoas determinadas, escolhidas pela lei para serem contribuintes ou beneficiárias da cobertura de riscos pela Previdência Social. A quebra dessa lógica será estudada a seguir com o estudo da desoneração da folha frente a solidariedade das contribuições previdenciárias.

Efeito do rompimento da causa da contribuição sobre a folha de pagamentos

33 34

Op. Cit. Manual de direito previdenciário. GODOI, Marciano Seabra. Solidariedade social e tributação.p.156-157.

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3.1 A repristinação do tributo sem causa e sua conformação com o modelo de contribuições sociais

Aceitar o tributo, segundo o constitucionalismo moderno, é a aprovação da imposição tributária pelos representantes do povo eleitos. A Constituição descreveu as hipóteses que poderão fazer surgir a exação assim como as limitações para a exigência do sacrifício patrimonial do particular deixando a cargo do legislador a criação e conformação do tributo com seu texto. A Constituição definiu a forma de custeio da Seguridade Social e especificou o formato básico da Previdência Social como ação integrante da Seguridade Social. Nesse contexto a representação popular no Congresso anuiu com o financiamento da Previdência Social através da contribuição incidente sobre a folha de pagamentos e sobre a remuneração do trabalhador. A concordância do cidadão com a tributação – relação jurídica de competência – teve por fundamento a causa subjacente do tributo. Justamente por isso, a Emenda Constitucional 20 de 1988, restringiu a aplicação dos recursos recolhidos na forma do art. 195, I, “a” e II, ao pagamento dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Em suma, a razão de ser do tributo, nesse caso, fez parte de sua natureza. A redação original da Constituição não continha a restrição de aplicação dos recursos arrecadados por essas contribuições, (art. 167, XI) contudo, diante da ampliação das contribuições do art. 195, e as subsequentes insuficiências financeiras da Previdência Social, a Constituição foi emendada para garantir a destinação da arrecadação ao pagamento dos benefícios de Previdência Social. A alteração do custeio promovida pela desoneração da folha de pagamentos não carregou a restrição do art. 167, XI, desvinculando aquela receita do pagamento de benefícios da Previdência Social. Ocorre que a União, alegando insuficiência no caixa da Previdência Social e a futura impossibilidade de honrar com os benefícios do art. 201 da Constituição, promove, de tempos em tempos, reformas na previdência, alterando, especialmente, benefícios e requisitos para sua concessão. Ou seja, sangra-se o caixa da Previdência com tredestinação da arrecadação para depois, sob o fundamento da carência orçamentária, reduzir ou dificultar o acesso a benefícios. A sucessão de alterações no Regime Geral de Previdência Social associado ao saque no orçamento da Previdência, fundamenta a tese de que a contribuição sobre a receita bruta que pretendeu substituir a incidente sobre a folha de salários é incompatível com a

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Constituição se o produto de sua arrecadação não estiver vinculado ao pagamento de benefícios do art. 201 da Constituição. A alteração no custeio da Previdência Social sem a correspondente vinculação repristina o velho dogma - pretensamente superado pelas constituições democráticas – de tributação com base no poder de império e não fundado em sensação de pertença, no princípio da solidariedade,35 no Estado de cidadania fiscal.

3.2 A renúncia fiscal e as causas.

O primeiro capítulo dessa pesquisa já demonstrou que houve renúncia fiscal na medida que transformou o custeio da Seguridade Social. A ideia inicial quando do início desse trabalho era analisar o princípio da solidariedade com a obra de Schoueri sobre normas tributárias indutoras e intervenção do Estado na economia, e o avanço do estudo deixou claro que seria tema extenso demais para o propósito desse espaço. No entanto, a indispensabilidade de citação do Professor da USP se mostrou a todo instante de forma que não haveria como discorrer sobre o tema sem citar a obra de Schoueri que já no prefácio, assinado por Alcides Jorge Costa, se encontra a manifestação que suporta o quanto defendido no transcorrer dessas páginas: “E se admitida como causa das normas tributárias a consecução de meios financeiros pelo Estado e se as normas tributárias indutoras tem causa (justificação) diversa, então deve ser investigada a causa que lhes seja própria”. Tomando tudo quanto dito até aqui é possível estabelecer que a desoneração da folha de pagamento é uma medida de incentivo à formalização de empregos e medida anticíclica devido aos efeitos da crise econômica mundial. Pode-se dizer ainda que, regra geral, se traduz em incentivo fiscal (nem sempre verificável) e importa em renúncia fiscal visto que já prevê a compensação do Orçamento da Seguridade pelo Orçamento Fiscal. Importa saber então, como aponta o prefácio na obra de Schoueri, se a renúncia fiscal em estudo está justificada adequadamente e por adequada entenda-se constitucionalmente conformada. Vale lembrar que a desoneração não é a única medida que importa em transferência da incidência da alíquota sobre o total das remunerações pagas aos trabalhadores para o faturamento. O SIMPLES também cumpre o mesmo papel. Parece, contudo, que a tributação

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Op.cit. GODOI, Marciano Seabra. Solidariedade social e tributação.p.159.

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simplificada encontra respaldo no texto constitucional desde seu texto original e mais é opcional ao contribuinte. Ao passo que a desoneração da folha de pagamentos, como alerta José Maria Arruda Andrade, não possui essa hipótese. Transcendendo a questão da possibilidade de escolha pelo contribuinte, exsurge o problema dos critérios de aferição da equivalência de condições para averiguar o respeito a isonomia tal qual conclui Schoueri no estudo do direito alemão. 36Assumindo posição um pouco diferente do mestre das Arcadas, não se admite a perquirição do móvel do legislador para criação da norma no intento de se desprender da exegese metafísica de mens legis e mens legislatoris como propõe Streck.37 O que se busca é a possibilidade do Estado Fiscal intervir na economia – medidas anticíclicas – e usar da espécie tributária em estudo – contribuições previdenciárias – para atingir aos fins pretendidos. O fundamento, a justificação, a causa, enfim, das contribuições previdenciárias é a utilização da mão-de-obra. Há vínculo histórico nítido entre o tomador e o trabalhador que se traduziu em norma de cunho constitucional para financiamento do seguro social deste trabalhador. Utiliza-se a expressão seguro social porque justamente, para além das aposentadorias – manifestação mais clara da previdência – o Estado garante a subsistência do trabalhador e de sua família em situações diversas: doenças, acidentes, morte, constituindo-se em segurança de manutenção do segurado e de sua família na adversidade. A política fiscal introduzida por meio de quebra desse liame histórico entre o explorador da mão-de-obra e o obreiro não se coaduna com a proposta constitucionalmente expressa de solidariedade entre o tomador e o trabalhador. O princípio da solidariedade não admite qualquer aplicação. A cisão entre interpretação e aplicação – denunciada por Streck – parte da dogmática que se pretendeu superar com a crise do positivismo que teima em manter-se em voga diante das posturas voluntaristas e dos subjetivismos solipsistas dos juristas que não admitem o rompimento com a filosofia da consciência e do esquema sujeito-objeto. A solidariedade deve emergir do texto constitucional e encontrar sua aplicação de forma que não se desprenda de um mínimo admitido pela expressão do termo na linguagem jurídica que carrega em si a tradição e a historicidade do vocábulo. O texto constitucional impôs a todos os contribuintes o deve de contribuir para manutenção da Seguridade Social. As reformas que se sucederam no texto constitucional

36 37

SCHOUERI, Luis Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção do Estado na economia.p.7. STRECK, Lenio Luis. Crítica Hermeneutica do Direito.

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trouxeram uma nova imposição: os trabalhadores e os tomadores financiarão a Previdência Social e eventuais insuficiências de recursos serão cobertas pelo orçamento da União. A desoneração da folha de pagamentos, em que pese possuir previsão constitucional pela Emenda 42/2003 como dito alhures, não encontra o respaldo necessário no restante do texto a uma porque não prevê a vinculação do produto de sua arrecadação com o financiamento da previdência pública; a duas porque não permite ao contribuinte optar pela tributação nesse formato; finalmente: o princípio da solidariedade não admite renúncias totais ou parciais. O sistema tributário, especialmente para as contribuições que se destacam por sua vinculação finalística, não admite revogações em prol de políticas econômicas. A intenção do legislador pode ser a ampliação da formalização de empregos - que redundaria em acréscimo na arrecadação das contribuições – mas a relativização do princípio da solidariedade não esta a disposição do legislador se não houver previsão constitucional para tanto. Princípios são normas e vinculam tal qual. A produção normativa não pode dirigir-se para o desrespeito a princípio constitucional. Nem se diga que a contribuição sobre receita bruta também é informada pelo princípio em comento e, portanto, a norma estaria preservada. Como visto, a solidariedade que informa as contribuições previdenciárias é diversa das demais. A Constituição previu dessa forma e não cabe ao legislador, ainda que constituinte derivado, alterar essa previsão. A justificativa teleológica – crescimento no número de empregos formais – além de não ter se confirmado na prática, representou renúncia fiscal justamente para custeio da Previdência que novamente está em pauta para sofrer com as mudanças motivadas pelo déficit orçamentário. O debate travado aqui é jurídico e a representação econômica dessa afirmação está em gráfico anexo que demonstra que a União sequer conseguiu honrar com a complementação financeira devida pela renúncia fiscal. Cabe observar ainda, dentro da teoria dos motivos determinantes, que o motivo da alteração da fonte de custeio da seguridade, desde a exposição da proposta que originou a Emenda 42/2003, é a redução de custos para formalização dos empregos. Nunca se viu, no entanto, salvo a iniciativa promovida pelo SIMPLES, a proposta de redução da alíquota da contribuição sobre a folha de pagamentos ou a desburocratização das obrigações acessórias. Partiu-se diretamente para a quebra do vínculo causal entre a contribuição e o financiamento dos benefícios a que se destina. A tributação sem a sensação de dever de colaboração, o tributo como poder de império, como referido acima.

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A indução de comportamentos, no caso da desoneração, não se verifica, antes uma coação. O modal deôntico é obrigatório. Perde inclusive, o caráter inicial de medida anticíclica.

3.3 As consequências: a possibilidade de escolha de tributação mais favorável e a repetição de indébito

O não atendimento dos preceitos constitucionais de destinação da arrecadação e conformação do modelo de tributação que o constituinte elegeu condena o tributo a margear a Constituição e será repelido pelo controle jurisdicional. A desoneração da folha de pagamento quando gera aumento da carga tributária – como verificado em alguns setores – parece fazer surgir o direito de não se sujeitar a essa forma de tributação. Afinal como sustenta Schoueri sustentado por Ferraz Júnior, a unidade da Constituição representa um articulado de sentido, dentro desse paradigma não é possível sustentar uma alteração no sistema tributário que não seja convergente aos princípios adotados pelo pacto político. O julgamento da ADI 2925 demonstrou que o que se pretende em todo esse estudo. A impugnação promovida por Marco Aurélio Greco ao texto da lei orçamentária que destinava a CIDE a outros fins que não aqueles constitucionalmente previstos, impôs ao Supremo Tribunal Federal o reconhecimento de incompatibilidade do texto com a Constituição. Naquela oportunidade os Ministros conheceram ação que questionava a alteração de destino da arrecadação da CIDE pela lei orçamentária. Consideraram que a alteração à margem do texto expresso da Constituição não poderia ser mantida e mesmo os atos tidos de efeito concreto merecem o controle de constitucionalidade sob pena de transformarem-se em normas acima da Constituição. O Supremo determinou que a arrecadação fosse destinada ao fim constitucionalmente determinado sem, contudo, acolher o pedido de repetição de indébito, brilhantemente formulado pelo peticionário. Os mesmos argumentos esmiuçados na propositura da ADI são aplicáveis à desoneração da folha de pagamentos. As contribuições previdenciárias possuem destinação específica na Constituição. Estão rigidamente vinculadas ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social. A iniciativa de desvincular o produto dessa arrecadação,

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seja por DRU, seja por substituição da fonte de custeio da Seguridade Social, é inconstitucional. A diferença entre a ADI 2925 e a proposta desse estudo é que aqui se intenta sustentar o direito a escolha pela tributação mais favorável. A afirmação se sustenta na própria evolução da legislação que tratou da alteração da fonte de custeio que era impositiva, como alertou José Maria Arruda Andrade, no art. 7º da lei 12.546/2011 e passou a ser facultativa com a lei 13.161/2015. A evolução legislativa fornece indícios suficientes de que os contribuintes que foram forçados a contribuir sobre a receita bruta e sofreram acréscimo de carga tributária podem buscar a repetição desses valores. A própria lei foi corrigida para se livrar da distorção de outrora. Novamente com amparo na teoria dos motivos determinantes, o ato administrativo que encaminhou a projeto de lei ao Congresso para criação da desoneração da folha de pagamentos apontava a necessidade de incentivar a economia em período recessivo. Desonerar não pode significar aumentar, logo os contribuintes que se sujeitaram a carga tributária maior, pela medida anticíclica, parece que têm o direito de revisitar esse pagamento, senão pelo flagrante desvio do produto da arrecadação, mas pelo fato da norma contrariar os fins a que expressamente se propôs.

Conclusão

A utilização da tributação como modo de intervenção indireta do Estado na Economia não é novidade nos Estados Sociais que se formaram no segundo pós-guerra. A ampliação das funções do Estado diante da insuficiência da auto regulação dos mercados e na manutenção do povo foi descrita por Stigilitz em seu Economic of the public sector, no qual apresenta as razões para a intervenção do Estado e aponta os problemas a serem enfrentados pelo seguro social nos Estados Unidos no seu capítulo 14. Schoueri em obra magistral sobre normas indutoras e intervenção do Estado na economia reúne os elementos que foram utilizados para formatar essa pesquisa em torno da desoneração da folha de pagamentos. Mesmo diante de um tema extenso e complexo (talvez mais do que as possibilidades permitiriam) é possível concluir que o princípio da solidariedade que conforma a tributação nos Estados Fiscais ou Steuerstaat, é mais nítido ou presente nas contribuições sociais. Por contribuições sociais entende-se aquelas previstas no art. 195 da Constituição Federal.

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Um elemento novo que foi alcançado pela pesquisa é a necessidade de distinção dogmática das contribuições previdenciárias das demais de seguridade social. A classificação proposta por Ricardo Lobo Torres entre típicas e anômalas não tem sido observada com a devida atenção pelos operadores. A separação entre o direito financeiro e o direito tributário não parece se sustentar diante da existência inconteste de tributos com destinação específica. Misabel Derzi, Eurico de Santi e Marco Aurélio Greco para citar somente estes há muito denunciam a superação do art. 4º do Código Tributário Nacional diante da nova ordem tributária inaugurada pela Constituição de 1988. O crescimento de importância das contribuições sociais impõe o estudo aprimorado dessa espécie tributária especialmente para as contribuições previdenciárias. Sempre que a União precisa promover reformas estruturais a primeira opção é alterar o regime previdenciário. O Regime Geral de Previdência Social tem sofrido constantes alterações para modificar o regime de aposentadorias e concessão dos demais benefícios sempre motivado pela insuficiência financeira e ruptura do equilíbrio pelo envelhecimento da população, queda na natalidade e aumento da expectativa de vida. No entanto, o que se vê na prática é a retirada constante de recursos da Previdência para financiamento de outros fins que não o pagamento de benefícios. A substituição da contribuição típica previdenciária por contribuição anômala, ainda que haja previsão de compensação financeira, demonstra que a Previdência continua servindo de fonte de recursos para o Caixa da União em contraposição a vinculação constitucional. A teoria das causas serve para fundamentar justamente a necessidade de observância do destino do produto da arrecadação. A anuência do cidadão com as contribuições previdenciárias deu-se motivada pelo conhecimento da razão de ser dessas contribuições. Tanto que a arrecadação foi vinculada ao pagamento de benefícios previdenciários. Quando a incidência se desloca da folha de pagamentos para a receita bruta, perde-se esse vínculo entre causa e consequência e a tributação carece de legitimidade democrática. O contribuinte da previdência gostaria de obter minimamente a segurança acerca das possibilidades de benefícios no transcurso de sua vida laboral. As sucessivas reformas da previdência se deram em curto espaço de tempo o que denota a falta de preparo do Estado Brasileiro para promover uma reforma minimamente duradoura que ultrapasse uma geração ao menos. Pode-se afirmar, portanto, com alguma segurança, que a desoneração da folha de pagamentos somente é possível diante de uma interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung) que compatibilize a alteração da fonte de financiamento do

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seguro social com a vinculação da arrecadação ao financiamento de benefícios previdenciários. A quebra da legitimidade para imposição, associada ao regime tal qual imposto nas primeiras normas que trouxeram a desoneração, conduzem a conclusão de que além de inconstitucional, alheia aos princípios informadores da Previdência Social e ineficiente, a desoneração da folha de pagamentos possibilita a repetição de indébito para aqueles que tiveram acréscimo na sua carga tributária com a medida que pretendia incentivar a economia.

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