DESORDENS E ASCENSÃO SOCIAL DA POPULAÇÃO DE COR NA MARIANA SETECENTISTA

July 22, 2017 | Autor: Rogéria Cristina | Categoria: History, Slavery, History of Slavery, História de Minas Gerais, Minas Gerais século XVIII
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DESORDENS E ASCENSÃO SOCIAL DA POPULAÇÃO DE COR NA MARIANA SETECENTISTA Rogéria Cristina Alves1 Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: As reflexões que esboçamos neste texto são partes da dissertação de mestrado intitulada: “Mosaico de Forros”: Estratégias de ascensão econômica e mobilidade social entre os libertos – Mariana, século XVIII. Na dissertação, analisamos uma série de questões que foram tomadas como indícios da ascensão econômica e da mobilidade social que foi, em algum grau, experimentada pelos libertos, que habitaram a cidade de Mariana e seu Termo. Nesta comunicação, analisamos algumas tentativas de controle, por parte da população de Mariana, sobre a atuação da população de cor naquela cidade. As tentativas de controle sobre as ações da população de cor das Minas, por parte das autoridades e colonos brancos, ocorreram desde o início do século XVIII. O que acontecia, na realidade, era que a presença massiva de negros e mulatos libertos punha em xeque a própria hierarquia social, organizadora das relações na colônia. O aumento da bastardia, expressa pelo crescente número de mulatos libertos e livres e a falta de controle sobre negros de ganho e alforriados, colocava em evidência os arranjos existentes no interior das relações entre senhores e escravos. Na intenção de controlálos, os administradores coloniais mobilizaram-se através de intervenções públicas. O principal objetivo desta comunicação é analisar como algumas destas complexas relações se desenrolaram em Mariana setecentista. Utilizamos como fonte documental, as petições elaboradas pelos oficiais da Câmara de Mariana, nas quais se relataram as desordens, incômodos e desassossegos causados pela população de cor que habitava a cidade de Mariana no século XVIII. PALAVRAS-CHAVE: Alforrias, Libertos, Minas Colonial.

Expõem na presença de Vossa Majestade Fidelíssima os oficiais da Câmara da cidade de Mariana os contínuos incômodos e desassossego que experimentam os vassalos de Vossa Majestade Fidelíssima deste termo e mais comarcas deste Estado do Brasil pela imensidade, que nela há de negros, negras, e mulatos forros e por esta rezão [SIC] continuos os insultos que fazem os negros fugidos, não só nos viandantes, mas sim também, nos moradores existentes em suas casas, com roubos de suas fazendas, vidas e honras; servindo-lhes aqueles (como em tudo semelhantes a estes) de darem saída ao que roubam, dando lhes todo o necessário para o poderem fazer; como são armas, pólvora e chumbo e tudo o mais que tem precisão.2

O trecho citado integra uma petição que foi elaborada pelos oficiais da Câmara 1

Licenciada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Mestranda em História Social da Cultura, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do CNPq. Email: [email protected] 2 AHU. Projeto Resgate – Documentos relativos à Capitania Mineira. Caixa 67, documento 61.

da cidade Mariana, em maio de 1755, e enviada ao monarca português no mesmo ano. No documento, relata-se que a população liberta existente na capitania mineira era extensa. E ainda narra-se que negros e mulatos libertos, que habitavam a cidade de Mariana mantinham contato com escravos fugidos. Tal documento que localizamos no fundo de documentos avulsos relativos à Capitania de Minas Gerais, do Arquivo Histórico Ultramarino, é apenas um exemplo de como ocorriam as tentativas de controle por parte das autoridades e colonos brancos sobre a população liberta das Minas. E segundo Marco Antônio Silveira: Governadores e conselheiros logo se deram conta da potencialidade explosiva da conjugação de três importantes fatores. O primeiro era a tendência de multiplicação do número de mestiços devido à falta generalizada de mulheres brancas. O segundo dizia respeito à possibilidade bastante concreta de que muitos dos filhos ilegítimos produzidos nas relações consensuais herdassem os bens de seus pais brancos. O terceiro fator, por sua vez, implicava a opinião de que nas Minas as alforrias eram concedidas facilmente.3

Na tentativa de manter o controle social, em 1719, o então governador da capitania das Minas, o Conde de Assumar, condicionou a concessão das alforrias à sua autorização. Sabe-se que cativos podiam ser libertados gratuitamente, nas chamadas alforrias incondicionais; ou condicionalmente, quando eram estabelecidas certas obrigações ao cativo até que ele obtivesse sua carta de liberdade. Existia também a alforria de pia batismal, quando uma criança nascida de mãe escrava poderia obter sua liberdade no momento do batismo, que geralmente acontecia nos primeiros dias de vida. E apesar de existirem adultos emancipados dessa forma, geralmente eram os ingênuos os mais favorecidos por esta modalidade de alforria. Ressaltamos que as alforrias são entendidas por nós, como resultado da articulação de estratégias cotidianas e de uma série de investimentos individuais e coletivos dos cativos. E mesmo quando um proprietário resolvia alforriar incondicionalmente seus cativos, “em virtude dos bons serviços que estes lhes prestaram”, “por caridade”, “por amor”, entre outros motivos – a alforria pode ser entendida como resultado de uma série de investimentos que não eram somente econômicos.4 A situação de submissão e dominação implícita na relação entre senhores 3

SILVEIRA, M. A. Soberania e luta social: negros e mestiços libertos na Capitania de Minas Gerais (1709-63). In: Território, conflito e identidade. CHAVES, C. M. das G. & SILVEIRA, M. A. (orgs.). Belo Horizonte, MG: Argvmentvm; Brasília, DF: CAPES, 2007. P. 27. 4 PAIVA, Eduardo F. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716 – 1789. Belo

e escravos, embora guardasse em si um potencial de conflito, admitia também, a existência de canais de negociação. E ainda que tais canais fossem mantidos mais por necessidade e conveniência do que por laços de amizade e respeito5, eles existiram e permitiram a possibilidade de diálogo entre senhores e escravos.6 Existiu também uma forma muito particular de alforria, especialmente comum na região das Minas: a coartação. Tal prática também existiu em diversas áreas escravistas da América e se definia por: […] Com base em acordos firmados diretamente entre proprietários e escravos, esses últimos passavam a buscar, por meio de inúmeras atividades e ocupações, as oitavas de ouro em pó necessárias para saldarem as prestações da liberdade. A coartação era, portanto, o acordo que permitia ao escravo ou à escrava parcelar o valor total de sua alforria e saldar as prestações semestrais ou anuais em três, quatro ou cinco anos. O arranjo, na maioria das vezes era informal, mas, em muitos casos, foi registrado em documento, que era chamado de Carta de Corte. Nele constavam as bases destes acordos, o grau de autonomia do coartado ou coartada e o prazo para que a dívida fosse extinta e a Carta de Alforria fosse passada ao (à) liberto (a).7

No século XIX, se o acordo entre o senhor e escravo se tornava inviável, seja pela resistência do senhor em libertar seu cativo ou pela discordância das partes sobre um “valor justo”, o escravo poderia buscar meios de sustentar judicialmente sua causa.8 A principal justificativa para o alto número das coartações nas Minas era a existência de várias oportunidades econômicas acessíveis aos escravos, que permitiram muitas vezes, a obtenção do dinheiro necessário para compra da própria liberdade. Objeto de estudo de vários trabalhos,9 a coartação é vista como o emblema do universo complexo e instigante dos processos de alforria e da vida dos forros nas Minas.10 As alforrias condicionais e os processos de coartação geravam a liberdade dos Horizonte: Editora da UFMG, 2001. 5 PAIVA, Eduardo F. Depois do cativeiro: a vida dos libertos em Minas Gerais no século XVIII. In: RESENDE, Maria Efigênia L. de & VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais - As Minas Setecentistas. Vol.1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. P 508. 6 REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 7

PAIVA, Eduardo F. Depois do cativeiro: a vida dos libertos em Minas Gerais no século XVIII. In: RESENDE, Maria Efigênia L. de & VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais - As Minas Setecentistas. Vol.1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. P. 506 8 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. P.183 9 Sobre esta temática destacam-se os seguintes trabalhos: GONÇALVES, 1998; PAIVA, 1995; SOUZA, 1999; e PAIVA, 2001. 10 PAIVA, Eduardo F. Depois do cativeiro: a vida dos libertos em Minas Gerais no século XVIII. In: RESENDE, Maria Efigênia L. de & VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais - As Minas Setecentistas. Vol.1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. P. 506

cativos em longo prazo: a escravidão dos mesmos permanecia até que todas as condições, ou o pagamento do próprio valor, fossem satisfeitos para obter a carta de alforria. Estas modalidades de alforria criaram uma categoria de pessoas em situação intermediária entre a escravidão e a liberdade.11 E o escravo coartado, poderia ser definido “como não sendo um mero escravo, nem tampouco se igualava ao escravo liberto situando-se, de fato, num meio-caminho entre uma condição e outra.” 12 Sabe-se que existiu entre as autoridades e a população branca da região das Minas, uma sensibilidade maior com relação à legislação incidente sobre os escravos, libertos e seus descendentes. E embora a historiografia referente à temática tenha conseguido estabelecer alguns consensos no que tange a maneira como eram concedidas as alforrias, as localidades que mais concentravam libertos e o perfil dos proprietários que alforriavam e dos libertos, muitas questões em torno da alforria continuam sendo debatidas e novos estudos que não necessariamente venham a somar forças aos referidos consensos, estão sendo construídos. Assim, a concessão das alforrias sempre foi uma constante nas Minas e a petição dos oficiais da Câmara de Mariana, escrita trinta e seis anos depois do referido edito do Conde de Assumar, alertava para o crescimento de delitos e crimes que segundo eles, tinham suas más raízes na maneira desordenada de se conceder alforrias nas Minas. Os oficiais chegaram a sugerir a forma mais certa de se conceder a liberdade aos cativos: que seria a alforria incondicional, feita por caridade e não por interesses financeiros, como era o caso – segundo eles - da coartação. Sendo assim, a petição traz uma crítica indireta à prática da coartação que, segundo os oficiais, levavam os cativos a lançarem mão de meios indecorosos para ajuntarem o valor da própria liberdade: E sem embargo, que o zelo dos governadores, e mais justiça de Vossa Majestade Fidelíssima: senão descuido de darem providência, que julgam necessária para evitar semelhantes ruínas e castigar com rigorosidade os cúmplices, que acham nestes delitos; e contudo sempre os vemos continuados e repetidos, e só terão fim mandando a Vossa Majestade Fidelíssima, senão dê mais alforrias a negros, negras e mulatos, pelos meios que nestes Estados se usam, que são os de comprarem negras e destas se utilizarem-se alguns anos e findos estes, arbitrar lhe avultado preço ao seu valor e, mandar lhe procure dentro do tempo, que se ajustam, o que fazem por termos indecorosos, a o serviço de Deus e da Vossa Majestade Fidelíssima, pois com o interesse da sua liberdade, a tudo se sujeitam, 11

SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. P.208 12 PAIVA, Eduardo F. Escravos e libertos em Minas Gerais: estratégias de resistências através dos testamentos. Belo Horizonte: Annablume, 1995. P.86-87.

vivendo entre os católicos, como se ainda existissem nas suas gentilidades, vindo a ficar obra do desagrado de Deus, aquela mesmo que devia se reputar por boa, se fosse fundada na caridade, e não na conveniência própria; como são todas as alforrias, que nestes Estados se fazem, de que presentemente resulta dano aos vassalos de Vossa Majestade Fidelíssima; e poderá ser maior para o futuro pelas circunstâncias que podem sobrevir de tantas liberdades, se apiede de Vossa Majestade Fidelíssima não lhe der providência necessária, mandando que se não forre mais negras, negros e mulatos por semelhantes modos, mas sim querendo alguém fazer seja gratuitamente por esmola, ou pelos bons serviços que os escravos tenham feito, extinguindo-se de toda esta má introdução solapada com o título de caridade, em que os senhores dão licença aos seus escravos para procurarem o seu valor sem mais agência para poderem adquirir do que a soltura do seu mal viver com escândalo, tanto das leis divinas como as de Vossa Majestade Fidelíssima.13

A população forra nas Minas alcançou um número consideravelmente grande ao longo do século XVIII. Segundo informações do Códice Costa Matoso, entre os anos de 1735 e 1749, as taxas relativas à população forra em Minas giravam em torno de 1% a 1,5% do total da população. Carlo Guimarães Monti constatou - em uma pesquisa que levantou 348 cartas de alforrias para a cidade de Mariana e seus arredores – que entre os anos de 1750 a 1759, 2% do total da população cativa da região, obteve alforria. 14 Em 1835, segundo Waldemar de Almeida Barbosa, numa população de 170.000 mulatos em Minas, apenas 40.000 eram escravos e já havia 55.000 alforriados.15 E de acordo com Eduardo França Paiva, na segunda década do século XIX os libertos e seus descendentes formavam a maior parcela da população das Minas Gerais, em pleno auge do escravismo brasileiro.16 Na referida petição de maio de 1755, os oficiais da Câmara de Mariana, sugeriram ao rei uma maneira de controlar o número de libertos e também de evitar que cativos fugidos se passem por libertos:

Também suplicamos a Vossa Majestade seja servido mandar que em cada freguesia haja um livro e nele assentados todos os forros de qualquer qualidade ou sexo, que sejam e que querendo alguns destes ir de uma para 13

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AHU. Projeto Resgate – Documentos relativos à Capitania Mineira. Caixa 67, documento 61.

MONTI, Carlo G. Por amor a Deus: o processo da alforria dos escravos de Mariana (1750 – 1759). Revista do Centro Universitário Barão de Mauá, v.1, n.1, jan/jun 2001. http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/jornal/v1n1/por_amor.html, site consultado em 22/01/2010, às 23h00min. 15 BARBOSA, Waldemar de A. Decadência das minas e a fuga da mineração. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1971. 16 PAIVA, Eduardo F. Depois do cativeiro: a vida dos libertos em Minas Gerais no século XVIII. In: RESENDE, Maria Efigênia L. de & VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais - As Minas Setecentistas. Vol.1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. P. 506

outra freguesia o não o possa fazer sem levar o escrito de alguma pessoa, de alguma pessoa da freguesia de que vai, e sendo para persistir de morada em outra qualquer, será obrigado a dar entrada para se lhe fazer assento no livro para evitar grande confusão, com que muitos se querem introduzir forros, não sendo, de que tem sucedido andarem anos e anos com este título, sendo cativos, o que não sucederá, se houver a prevenção, em aparecendo algum desconhecido de que se lhe procure a carta de alforria, ou outro qualquer instrumento por donde mostre é livre, e do contrário segurar se até o verdadeiro conhecimento, proibindo lhe toda a qualidade de armas, não só para o seu uso preciso, mas sim também, de que a não possam ter em suas casas, por não socorrerem com elas os negros fugitivos, todas as vezes que estes carecerem delas.17

Os oficiais da Câmara de Mariana encerraram a petição, expondo outra sugestão ao rei. Para eles, o castigo aos escravos fugidos precisava ser mais eficaz, servindo de “exemplos bons de terror a outros”: (...) mandando lhe picar por cirurgião, um nervo que tem no pé de forma que sempre possam servir aos senhores, e só tenham o embaraço de não poderem correr, o que alguns senhores costumam fazer e não fazem todos por temor da justiça de Vossa Majestade Fidelíssima, o que se deve entender, andando para cima de seis meses, ou achando-se em quilombos, que os ministros tomem contam disto em ato de correção, perguntando se os senhores faltam a fazer estes castigos, pois com ele se evitará muitas ruínas que sempre costumam suceder. Deus Guarde a Augusta e Real pessoa de Vossa Majestade Fidelíssima por muitos [?] anos [?] Mariana em Câmara de 5 maio de 1755.18

Mas tudo indica que a petição elaborada em maio de 1755 surtiu pouco ou nenhum efeito: em dezembro do mesmo ano, os oficiais da Câmara de Mariana, novamente escreveram ao rei. Na petição de dezembro de 1755, além de relatarem o crescente número de alforriados na cidade, os oficiais também se queixavam da ascensão econômica experimentada por parte da população de cor, liberta e livre, que habitava Mariana:

Novamente expõem na presença de Vossa Majestade Fidelíssima, os oficiais da Câmara da Cidade de Mariana, a muita desenvoltura com que vivem os mulatos, sendo tal a sua atividade que não reconhecendo superioridade nos brancos, se querem igualar a eles, faltando lhe com aquelas atenções, que a baixeza de seu nascimento lhe permite, trajando galas e ostentando lurimentos [sic] que são impróprios ao seu estado [...].19 17

AHU. Projeto Resgate – Documentos relativos à Capitania Mineira. Caixa 67, documento 61.

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AHU. Projeto Resgate – Documentos relativos à Capitania Mineira. Caixa 67, documento 61. AHU. Projeto Resgate. Documentos relativos à Capitania de Minas. Caixa nº 68, Documento 98.

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Para os oficiais da Câmara de Mariana, muitos homens brancos declaravam os filhos ilegítimos tidos com as negras, na hora da morte. E temendo perder a salvação da própria alma, ainda legavam a estes filhos “copiosas heranças” em disposições testamentárias, que, segundo os oficiais, eram “dissipadas brevemente”: (...) dissipando em breves tempos copiosas heranças que adquirem talvez de seus supostos pais, por ser indecisa e suspeitosa a certeza de quais sejam, pela relaxação [sic] e desenvoltura em que vivem as mães, estando pela vileza da sua natureza, promistas [SIC] a todo o interesse dando os filhos, que pelo ato pecaminoso, adquirem ao que mais lhe franqueia a conveniência mudandosos [SIC], de um a outros pais, conforme o Estado em que os conserva a fortuna. Ocultando os que verdadeiramente o são por resto do senhor em cuja casa assistem, ou outro qualquer por cuja conta estão (se é que a multiplicidade de suas maldades lhe permite esse conhecimento) o que significa por muitas vezes darem a seus filhos com diferente cor, do que antes afirmavam, ser como mostram tantos exemplos oculares, que cada dia se experimenta e por esta razão: Suplicamos a Vossa Majestade como legislador de seu reino, seja servido por serviço de Deus e bem das almas, ordenar se dê sobre esta matéria nova forma, pois por falta desta se veem muitos na hora da morte com a consciência inquieta, e o ânimo alterado com o risco evidente de sua salvação na consideração de verem fica o que possuem a muitos que brevemente o destroem sem dele se utilizar mais.20

No entanto, é preciso destacar que o fato de possuir um pai branco nem sempre foi um pressuposto para a ascensão econômica ou social dos mulatos, haja vista os casos de filhos mulatos que nunca foram reconhecidos por seus genitores brancos e daqueles que não foram alforriados gratuitamente por seus “pais-proprietários”. Eduardo Paiva relata em seus estudos sobre os libertos, um caso de uma cativa que pagou ao seu proprietário, amante e pai de seu filho, o preço pela própria liberdade e pela liberdade de seu filho. Relata ainda, outro caso, em que a mãe cativa e o filho foram reescravizados pelo proprietário, que também era o amante e o pai do filho da cativa, e que o dito proprietário e pai, ainda ameaçou vender o próprio filho.21 Localizei, em meus estudos casos de mulatos livres que herdaram consideráveis quantias de bens, não de seus genitores brancos, mas de suas mães libertas. Para nos servir de exemplo, lanço mão da documentação pertencente à preta forra Quitéria de

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AHU. Projeto Resgate. Documentos relativos à Capitania de Minas. Caixa nº 68, Documento 98. PAIVA, Eduardo F. Escravos e libertos em Minas Gerais: estratégias de resistências através dos testamentos. Belo Horizonte: Annablume, 2009. P. 122. 21

Souza, que elaborou seu testamento no ano de 174722. Quitéria vivia no Termo de Mariana, no arraial de Bento Rodrigues, era solteira, mas possuía uma filha mulata (provavelmente fruto de um relacionamento com um homem branco), chamada Ana Maria de Souza, que foi nomeada herdeira de todos os bens que a mãe possuía. A mãe de Ana Maria, Quitéria, possuía uma quantidade significativa de bens materiais, entre estes, escravos, ferramentas, móveis, muitas roupas, tachos de cobre, jóias e era também uma pequena comerciante: possuía uma venda. Quitéria mantinha relações de crédito com várias pessoas, de variadas condições sociais e qualidades: capitão, padre, feitor, negociantes e outros alforriados. Para nós, Quitéria foi um exemplo de liberta que experimentou a ascensão econômica e social, em algum grau, na sociedade em que vivia. Não sabemos ao certo, se tal ascensão foi obtida com a ajuda de algum homem branco – a exemplo do que sugerem alguns estudos. No entanto, sabemos que a alforriada criou meios e estratégias para assegurar o seu patrimônio e ainda legá-lo à sua descendência. Ana Maria, a mulata livre filha de Quitéria, estava herdando os bens não de um suposto pai branco – aos moldes do que sugeriram os oficiais da Câmara, na petição de dezembro de 1755 – mas herdava as posses da mãe alforriada, que possuía uma quantia considerável de bens. Diante deste caso e de outros que localizamos, cabe nos questionar qual era mesmo a origem dos bens herdados pelos mulatos livres – os mesmos mulatos que foram vistos pelos oficiais da Câmara de Mariana, como aqueles que não reconheciam o seu devido lugar. Mas afinal, qual era o lugar social ocupado por esta população de cor, liberta e livre, que dia a após dia parecia se multiplicar? A solução proposta pelos oficiais para que os mulatos não mais utilizassem de forma “errada” as heranças que recebiam, era a regulamentação da quantia máxima que cada um poderia receber.

(...) determinando Vossa Majestade, que se lhe dê alguma coisa, e que o atribuam como obra pia, e esmola, ficado estabelecido por lei, para o sossego das almas, e das consciências e ser o mais seguro meio para a salvação ficando assim na eleição do testador a repartição do mais se deve supor o fará por obras pias, e parentes pobres, que serão mais do agrado de Deus, segundo a necessidade que muitas vezes estes ficam padecendo, faltando-lhe para o sustento corporal, os desperdícios que os mulatos gastam em superfluidades [SIC] e ofensas de Deus.23

22 23

AHCSM. Testamento de Quitéria de Souza. Códice 135, auto 2729. 2º Ofício. AHU. Projeto Resgate. Documentos relativos à Capitania de Minas. Caixa nº 68, Documento 98.

As propostas dos oficiais marianenses, nos dois documentos, tinham claramente a intenção de barrar o crescimento econômico e também a mobilidade social da população de cor liberta e livre, que crescia e criava meios de se articular. A criação de estigmas sobre a cor da pele era outra forma utilizada pela população branca, para barrar a ascensão da população de cor liberta ou livre. As menções à cor da pele tinham o intuito de inferiorizar a condição destes sujeitos e aproximá-los da escravidão, limitando e barrando a liberdade dos mesmos. O que acontecia, na realidade, era que a presença massiva de negros e mulatos libertos e livres, punha em xeque a própria hierarquia social, organizadora das relações na colônia. O aumento da bastardia, expressa pelo crescente número de mulatos libertos e livres e a falta de controle sobre negros de ganho e alforriados, colocava em evidência os arranjos existentes no interior das relações entre senhores e escravos. As fontes documentais que aqui utilizamos - as duas petições redigidas pelos oficiais da Câmara de Mariana - limitam nossas reflexões ao campo das questões administrativas: os documentos que utilizamos lançam luz sobre as tentativas de controle social, por parte das autoridades coloniais, sobre a população de cor, liberta e livre. Assim, os coartados, os libertos e os homens de cor livres eram uma população que escapava do controle escravista, e na intenção de controlá-los, os administradores coloniais mobilizaram-se através de intervenções públicas.24

24

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. P. 279-280.

BIBLIOGRAFIA: BARBOSA, Waldemar de A. Decadência das minas e a fuga da mineração. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1971. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. LIBBY, Douglas Cole. A empiria e as cores: representações identitárias nas Minas Gerais dos séculos XVIII E XIX. In: PAIVA, Eduardo França, IVO, Isnara Pereira & MARTINS, Ilton Cesar. (orgs.) Escravidão, Mestiçagens, Populações e Identidades Culturais. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMG, 2010. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. MONTI, Carlo G. Por amor a Deus: o processo da alforria dos escravos de Mariana (1750 – 1759). Revista do Centro Universitário Barão de Mauá, v.1, n.1, jan/jun 2001. http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/jornal/v1n1/por_amor.html, site consultado em 22/01/2010, às 23h00min. PAIVA, Eduardo F. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716 – 1789. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. ______. Escravos e libertos em Minas Gerais: estratégias de resistências através dos testamentos. Belo Horizonte: Annablume, 1995. ______. Depois do cativeiro: a vida dos libertos em Minas Gerais no século XVIII. In: RESENDE, Maria Efigênia L. de & VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais - As Minas Setecentistas. Vol.1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. SILVEIRA, M. A. Soberania e luta social: negros e mestiços libertos na Capitania de Minas Gerais (1709-63). In: Território, conflito e identidade. CHAVES, C. M. das G. & SILVEIRA, M. A. (orgs.). Belo Horizonte, MG: Argvmentvm; Brasília, DF: CAPES, 2007.

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