(Des)subjetivação em dispositivos midiáticos online: o (des)controle dos algoritmos e as subjetividades numéricas

Share Embed


Descrição do Produto





(Des)subjetivação em dispositivos midiáticos online: o (des)controle dos algoritmos e as subjetividades numéricas1 SALGADO, Tiago2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Minas Gerais Resumo: Este trabalho investiga a produção de subjetividades numéricas por meio de processos de dessubjetivação implicados nas relações entre a ação de algoritmos em dispositivos midiáticos online e as pessoas que os utilizam. Entendemos que a produção dessas subjetividades está atrelada ao controle algorítmico dos dispositivos em uso, os quais evidenciam a lógica capitalista e digital atual que incide na transformação dos sujeitos em dados estatísticos que podem ser recuperados e armazenados em bancos de dados. Trata-se, então, de uma reflexão de ordem teórica por meio de revisão de literatura específica sobre o tema e sua delimitação. Palavras-chave: algoritmo; dessubjetivação; dispositivos midiáticos online; processos de subjetivação; subjetividades numéricas. Introdução Cada vez mais as mídias participam dos modos como nos relacionamos, não apenas intermediando esses processos, mas também os constituindo e os moldando. Quem somos ou o que temos nos tornado são questões que podem e devem ser respondidas à luz deste fenômeno de intensa preferência pelos meios de informação e comunicação como modos privilegiados de interação, nomeado como midiatização (BRAGA, 2006). Nesse sentido, os diferentes modos de ser e estar no mundo se atrelam às tecnologias infocomunicacionais, crescentemente digitais e online. O uso recorrente desses meios evidencia o intenso acesso cotidiano a variadas produções textuais e imagéticas que se fazem presente e circulam em diversos aparatos técnicos. Estes dispositivos midiáticos, como iremos compreender ao longo deste trabalho, enredam seres vivos (humanos) e suas relações mútuas, bem como entrelaçam relações entre 1

Trabalho apresentado no GT Redes Sociais e Tecnologias, do III Simpósio ArTecnologia, 2016. Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista pela CAPES. Doutorado sanduíche no GSPR da EHESS (Paris, França). Pesquisador pelo Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon) vinculado ao Centro de Convergência de Novas Mídias (CCNM). E-mail: [email protected]. 2





humanos e não humanos. Estes últimos, de maneira gradual, assumem o controle daquilo que visualizamos em nossas telas, sejam elas do computador, do smartphone ou do tablet que utilizamos. Dessa maneira, os conteúdos que a nós se apresentam não são aleatórios, mas fortemente sugeridos por sistemas de recomendação algorítmica que se fundamentam nas maneiras pelas quais agimos online e nos rastros digitais deixados por essas ações. Estocados em bancos de dados e novamente cruzados com um gigantesco volume de informações arquivadas (Big Data), nossos dados pessoais servem para a confecção e delimitação de perfis comerciais que visam nos sugerir aquilo que devemos consumir (BRUNO, 2012, 2013, 2016). Nesta lógica capitalista, intensamente vinculada à cálculos matemáticos, a subjetividade deixaria de se produzir pela diferença e passaria a ser produzida pelo achatamento de preferências, previstas por sistemas de recomendação algorítmica. Neste controle algorítmico, o individual cederia lugar ao dividual, como destaca Deleuze (1992), uma vez que o sujeito passa a ser fracionado em conjuntos de dados que servem de amostra e manipulação (no sentido manual do termo) por empresas que visam um consumo calculado e previsível, em que nada parece escapar à antecipação de condutas em função do que se fez e do que se pode fazer online. Em vista disso, este trabalho procura investigar como a ação algorítmica em dispositivos midiáticos online conforma subjetividades numéricas por processos de dessubjetivação. Assim sendo, buscamos caracterizar os meios de informação e comunicação como dispositivos midiáticos, especificando a ação algorítmica nesses dispositivos. Igualmente, intentamos atentar para as subjetividades numéricas, efeitos decorrentes do tensionamento entre os processos de subjetivação e dessujetivação implicados nas relações entre humanos e dispositivos. Para tanto, organizamos este texto em mais quatro seções. A primeira delas se dedica à conceituação de dispositivos midiáticos online, recorrendo principalmente aos trabalhos desenvolvidos por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben. A segunda seção se volta para a definição do termo “algoritmo” e como os dispositivos midiáticos online se orientam por uma lógica algorítmica, de controle dos corpos e das subjetividades. Em seguida, a terceira parte especifica o que entendemos por





subjetividades numéricas e como a produção delas está atrelada ao tensionamento entre processos de subjetivação e dessubjetivação operados pelos dispositivos midiáticos online. Por fim, apresentamos algumas considerações finais que retomam o que desenvolvemos neste artigo e alguns breves apontamentos para investigações futuras. Dispositivos midiáticos online As mídias digitais com acesso à internet podem ser compreendidas como dispositivos midiáticos online. Compreendê-las desta maneira implica em considerarmos a multidimensionalidade delas (Klein, 2007). A diversidade de dimensões dos meios de informação e comunicação se refere aos enredamentos discursivos que ultrapassam a mera e simples compreensão deles como suportes ou aparatos técnicos (Bruck, 2012). Esse entendimento se fundamenta nas proposições de Michel Foucault acerca da noção de dispositivo (objeto da descrição genealógica), disseminadas a partir dos anos 1970 em várias áreas do conhecimento. Essa noção foi elaborada por este pensador francês no intuito de incluir o não discursivo em suas análises acerca das relações de poder implicadas nas diferentes epistemes (objeto da descrição arqueológica) (Castro, 2016). Segundo Foucault (1996, p. 244-245), o dispositivo é [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos... [e entre estes] existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes, [cuja finalidade] é responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.

Essa noção sintetiza, conforme destaca Castro (2016), o nexo entre esses elementos heterogêneos mencionados por Foucault (1996), os quais se inscrevem nas articulações entre poder e saber. Esse enredamento de linhas que compõem o dispositivo é especificado por Deleuze (2003), quem aponta quatro dimensões distintas que o integram, como sistematizam Alzamora e Silva (2014): a) Linhas ou curvas de visibilidade e de enunciação: produzem formas de ver e de se falar a respeito de algo; b)





Linhas de forças: referem-se à dimensão assimétrica do poder e estabelecem jogos estratégicos de poder; c) Linhas de subjetivação: remetem à subjetividade e à abertura de dinâmicas criativas e ao potencial de modificação e rompimento com o dispositivo de origem; e d) Linhas de brecha, fissura ou fratura: oriundas das linhas de subjetivação e concorrem para a transformação do dispositivo. Esses fios explicitados por Deleuze (2003) reforçam a dimensão multidimensional abordada por Foucault (1996) e revelam a articulação entre o visível e o não visível ou pouco visível, bem como entre o dito e o não dito. Nas palavras do primeiro, o dispositivo diz respeito a uma meada, a um conjunto de múltiplas linhas de natureza distintas. Estas linhas revelam ainda o cruzamento entre elementos materiais (suportes) e imateriais (sentidos e discursos). Nesse tensionamento de pares complementares (visível/não visível, dito/não dito, material/não material), estão implicados jogos de poder, os quais remetem à dimensão assimétrica própria às linhas de força que conformam o dispositivo, as quais, igualmente, atuam na produção de subjetividades. As subjetividades são produzidas, nesse sentido, no entrelaçamento entre seres vivos (humanos) e dispositivos (não humanos). Essa é a defesa empreendida por Agamben (2005) na revisão sobre o termo dispositivo a partir dos trabalhos de Foucault. Segundo esse autor italiano, o dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, determinar, interceptar, modelar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben, 2005, p. 13). Ao ordenar e dispor os elementos que o tecem, o dispositivo modela as experiências, operando como máquinas de produzir subjetivações. Contudo, na atual fase do capitalismo, tal como sublinha este pensador, os dispositivos não agem mais pela produção de um sujeito, mas por processos que podem ser nomeados como de dessubjetivação. Agamben (2005) exemplifica esses processos de dessubjetivação, que conferem abstração às relações pessoas, com dispositivos midiáticos, sobretudo, o celular. Ao usálo, o sujeito se torna um número por meio do qual ele pode ser controlado, assim como o telespectador passa a ser índice de audiência. Retomaremos este aspecto e o aprofundaremos na terceira seção deste trabalho, quando atentaremos para as sociedades de controle descritas por Deleuze (1992).





Por ora, cabe completarmos, de acordo com essas perspectivas que temos abordado, que as mídias podem ser consideradas como dispositivos por operarem enquanto matrizes que ordenam sentidos. Conforme indica Mouillaud (2002), o dispositivo distribui e organiza elementos materiais e imateriais visando constituir uma rede de relações que orientam o sentido. Como ele elucida, “os dispositivos estão encaixados uns nos outros” (Mouillaud, 2002, p. 32) e nos esclarece que essa rede “não impõe ao mundo apenas uma interpretação hegemônica dos acontecimentos, mas a própria forma do acontecimento” (Mouillaud, 2002, p. 32). Os dispositivos midiáticos são, dessa maneira, matrizes que impõem formas aos textos, apresentando elementos estáveis que possibilitam a ordenação do sentido e a estruturação do tempo e do espaço, bem como pertencem a lugares institucionalizados, ou seja, a instituições de poder e saber (Mouillaud, 2002; Alzamora; Silva, 2014). De modo mais claro, os dispositivos midiáticos são um meio em que relações de agendamento são construídas, de modo a realizar a gestão da dimensão comunicacional das práticas coletivas (Antunes; Vaz, 2006). A fim de clarear este argumento, pensemos em um aplicativo de leitura pelo celular (smartphone). Ao abrirmos esse aplicativo, podemos identificar um livro ou um jornal em função de elementos estáveis que eles apresentam. O livro se ordena por capítulos, por uma capa. O jornal se organiza, por sua vez, por títulos, colunas, imagens, entre outros itens que concorrem para a sua identificação. O celular, por seu turno, tomado como dispositivo, refere-se aos vários fios que o enredam, como sua materialidade (elementos físicos que o compõem) e as imaterialidades (sinais luminosos, rede de telefonia, frequências, luminosidade etc.). Além disso, o celular é composto pelos discursos que o atravessam, como as produções textuais e imagéticas que por ele circulam e a tematização desses conteúdos nos aplicativos de “redes sociais” nele instalados, que reconfiguram os sentidos de origem das mensagens e produzem outros à medida que as conversações pessoais acontecem. Ademais, cada vez mais digitais e com acesso à internet, os dispositivos midiáticos online, operam por cálculos matemáticos que atuam na recomendação, classificação, seleção, filtragem e visibilização de conteúdos em nossas telas. Os algoritmos, essas fórmulas matemáticas que seguem protocolos para a execução de uma





tarefa específica (Gillespie, 2014a, 2014b; Manovich, 2015a, 2015b), agem na configuração de condutas e preferências e na antecipação delas. Tudo isso se dá em função da manipulação e cruzamento de dados pessoais estocados em imensos e complexos bancos de dados que traçam perfis que permitem a sugestão de conteúdos “adequados” e “adaptados” a cada pessoa (Manovich, 2015a, 2015b; Bruno, 2012, 2013, 2016; Jurno, 2016) que utiliza as plataformas midiáticas online (Gillespie, 2010), como o YouTube, o Facebook, o Twitter, entre outras. Nessa interseção entre dispositivos midiáticos online e pessoas que os utilizam, como vimos segundo Agamben (2005), subjetividades são produzidas não mais simplesmente por processo de subjetivação, mas por processos de dessubjetivação. Antes, entretanto, de adentramos neste ponto de produção de subjetividades numéricas, competenos clarearmos a lógica algorítmica dos dispositivos midiáticos online e seu atrelamento à condição capitalista que é condição para o que Deleuze (1992) nomeia como “sociedades de controle”, em que a vida é reduzida à sua dimensão numérica. O (des)controle de algoritmos Nas sociedades de controle, que sucedem as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares, o indivíduo é cindido. Seu fracionamento em números (registros de identificação como RG e CPF), senhas, cifras, dígitos e transações econômicas, conforme alega Deleuze (1992), configura-o como ser dividual, ou seja, divisível. Essa qualidade divisora é operada por um poder exercido sobre as populações e o seu atrelamento ao conhecimento sobre essas populações por meio de dados estatísticos sobre elas. A esse poder sobre os corpos e seus fluxos territoriais, Foucault (1988) atribui o nome de biopoder. Nesse poder, exercido hoje sobre as vidas, o saber (conhecimento sobre as pessoas por meio de seus dados arquivados em bancos de dados) se atrela ao poder (regência das condutas, uma ação sobre a ação de outrem). Assim, quanto mais saber, mais poder. Quanto mais informações a respeito das pessoas, mais se pode agir sobre suas condutas. O que observamos hoje é um saber oriundo de fontes computacionais, que operam por cálculos matemáticos. Outrossim, o poder praticado sobre este saber se configura em





territórios não apenas físicos, mas, sobretudo, informacionais (digitais). Nesses territórios numéricos, os algoritmos regem as condutas, pois se fundamentam nos rastros digitais de ações efetuadas online com o uso de dispositivos midiáticos (Bruno, 2012, 2013, 2016). Valendo-se desse estoque de informações sobre as condutas das pessoas que utilizam os dispositivos e as plataformas midiáticas, os algoritmos são ajustados e refinados a fim de que recomendem conteúdos específicos para quem utiliza esses serviços. Nessa lógica, ações de visualizar, curtir, comentar e compartilhar conteúdos de pessoas conhecidas ou não incidem nas maneiras pelas quais novas mensagens serão oferecidas em nossas telas e contas no YouTube, Facebook, Twitter e outros. Nestas duas últimas plataformas, o quanto interagimos com outros perfis (conversar pelo chat do Facebook ou o quanto curtimos um tweet ou mencionamos algum perfil) dita aquilo que iremos receber como recomendação pelos algoritmos das plataformas em uso (Jurno, 2016). Do mesmo modo, se não interagimos com outros perfis e conteúdos, eles não são por nós visualizados. Ocorre, dessa maneira, um processo de invisibilização, em que tendemos a ver apenas aquilo que “gostamos” (curtidas, likes), o que Pariser (2012) denomina “filtro bolha”. Dessa maneira, aquilo que somos ou nos tornamos, ou seja, a nossa subjetividade, produzida na confluência entre instâncias individuais (nós, pessoas, seres vivos), coletivas (relações e associações com outros humanos e mesmo com algoritmos) e institucionais (instituições de mídia, as empresas e os serviços), depende cada vez mais de ações calculadas em rede presentes em máquinas infocomunicacionais. Esse entrelaçamento triplo é discutido por Guattari (2012) e assumido, segundo ele, pelos “meios de comunicação de massa” (mass media). Contudo, como temos abordado, essa articulação passa a ser assumida, principalmente, pelas mídias digitais ou dispositivos midiáticos online. A ação calculada por algoritmos, portanto, passa a reger nossas vidas, paulatinamente vinculadas ao capitalismo algorítmico e à biopolítica algorítmica de nosso tempo (Salgado, 2016a, 2016b). Nesse processo de produção de subjetividades ou subjetivação, o sujeito nos parece perder seu devir outro, ou seja, sua condição diferenciante e diferenciadora, uma vez que a diferença é ofuscada pela homogeneização





de escolhas e preferências, em que o novo e a novidade são suprimidas por recomendações padronizadas e pasteurizadas. Dessubjetivação e subjetividades numéricas Nessa dinâmica de recomendação algorítmica, em que ações humanas se associam a ações máquinas em agenciamentos híbridos, humanos e algoritmos aprendem mutuamente (Alzamora; Cortez, 2015). Os primeiros se familiarizam com a interface dos dispositivos midiáticos e das plataformas midiáticas e, os segundos, adequam-se e se aprimoram segundo as ações realizadas pelos primeiros. É nesse sentido que as autoras afirmam haver agenciamentos híbridos, ou seja, a mútua afetação entre entidades diversas. A recomendação dos algoritmos torna-se cada vez mais específica, posto que cada perfil receberá sugestões de acordo com o modo como a pessoa que detém a conta agiu na plataforma. Esses sistemas de recomendação algorítmica agem no sentido de combinarem padrões de usuários/as e pela predição de conteúdos que possam interessalos/as (Alzamora; Cortez, 2015). A similaridade de gostos e preferências, como temos ressaltado, acaba por planificar as possibilidades inventivas e tonais (tom, tonalidade – sentido musical) dos sujeitos que, como afirmamos outrora, deixam de ser produzidos pelo coeficiente de variação e diferença e passam a ser fabricados por achatamentos de escolhas via previsibilidade calculada. É esse processo e processamento de dados que conforma a dessubjetivação. Dessubjetivar é, segundo nosso entendimento, ancorado nas referências que debatemos, produzir formas pré-moldadas e efeitos antecipados por cálculos. Não se trata de não produzir um sujeito, mas de se produzir um sujeito previsível, cujo devir é antecipado pela previsibilidade calculada. Se o sujeito para Foucault (2012, p. 268) “não é uma substância. É uma forma, e esta forma não é, sobretudo nem sempre, idêntica a si mesma”, esse sujeito é um sujeito subjetivado, ou seja, produzido na relação com outros seres vivos (humanos) em arranjos de poder e saber. Os modos de subjetivação em Foucault, portanto, são precisamente as práticas de constituição do sujeito (Castro, 2016). Essa forma modulável e mutante





mencionada por Foucault (2012) é possível pelo encontro ente diferenças, pelos agenciamentos, segundo a visada de Deleuze e Guattari (1995). Uma vez que tenhamos agenciamentos maquínicos (Guattari, 2012) cada vez mais regulados por algoritmos, a forma foucaultiana se torna pré-moldável. O molde dos confinamentos (prisões, fábricas, escolas etc.) das sociedades disciplinares, ou seja, os corpos dóceis moldados à serviço do poder industrial e urbano se atualizam para aquilo que Deleuze (1992) chama de modulação, operada pela linguagem numérica. Com suas máquinas próprias, computacionais e algorítmicas, a sociedade atual modula os corpos e as vidas tornando-os corpos-dígitos (Salgado, 2016b), bios-algoritmo e vidas-número. Trata-se, então, da produção de subjetividades numéricas, calculadas, previstas e semiautomatizadas, reguladas algoritmicamente. A tentativa de produzir subjetividades (ao modo clássico), acaba por dessubjetiválas, visto que as relações se tornam abstratas, econômicas, lucrativas, estatísticas, manipuláveis e moldáveis. A tônica (tonalidade) dos sujeitos é digital e digitalizada, binária e numérica. O que importa é ser produzido digitalmente, pelo encontro com dispositivos midiáticos online que, enquanto máquinas de fazer ver e fazer falar, fazem ver vidas tornadas perfis e registros (logins e senhas) e falar, em sua maioria, conteúdos comuns e massificados (leia-se massa, pasta, consistência homogênea). Ao nutrirmos nossas máquinas com dados de nós mesmos, inflamos a biopolítica e o capitalismo algorítmico de nossa época. Encontramo-nos imersos naquilo que Lévy (2015) intitula como meio algorítmico (le medium algorithmique), um ambiente coletivo centrado em dados digitais automaticamente manipulados e difusão massiva (global e por praticamente todos) deles por meio de trocas informacionais via redes. Trata-se de um diagnóstico mais amplo que constata uma condição existencial gerida pela análise de enormes conjuntos de dados digitais. A existência numérica das subjetividades, nomeadas como subjetividades computacionais (subjectivités computationneles) por Berry (2015) e retomadas por Masure (2016), evidencia uma condição de vida que adere sem reservas a todos os dispositivos de assujeitamento e submissão de programas, ainda que esse processo não seja ainda de todo evidente nos agrupamentos coletivos de hoje. As subjetividades numéricas, termo que escolhemos, destacam a dimensão programada dos sujeitos. Em





outros termos, a produção das subjetividades ou subjetivação acontece seguindo scripts escritos previamente. Há um roteiro comercial e capitalista que escreve a vida e se inscreve nos corpos-dígito de maneira a manipulá-las, tratá-las, classificá-las e visualizálas, enquanto dados e amostras, de maneira rápida e eficaz (Bruno, 2013, 2016; Masure, 2016). Logo, vivemos e existimos em uma sociedade da antecipação, conforme pensa Sadin citado por Masure (2016), em que nossos desejos e decisões são inteiramente delegadas às máquinas. Há uma racionalidade algorítmica, ou seja, todo um modo de pensar e produzir pensamentos que se vinculam diretamente aos algoritmos, em que o pensar é feito por máquinas e o consumir é feito pelos humanos. A subjetivação, então, é produzida maquinicamente e, cada vez mais, dessubjetivas, as subjetividades perdem suas singularidades e a condição diferenciante que as fazem sujeitos. A condição dividual dos seres em associação direta aos dispositivos midiáticos é a própria dimensão sociotécnica (humana e não humana) e agenciada desses dispositivos. Não sabemos ao certo, como ensaia Maruse (2016), se de fato se trata de uma subjetividade sem sujeito. Considerações finais Para responder a esta dúvida, talvez valha a revisão da noção de individuação proposta por Gilbert Simondon, bem como um aprofundamento nos modos de existência dos objetos técnicos discutidos por este autor. Valeria também uma discussão mais densa a respeito da técnica a partir de Heidegger e outros teóricos que trabalham sobre a mesma temática, como Bruno Latour e Jacques Ellul. Em síntese, pudemos discutir neste artigo o processo de dessubjetivação pelo qual passam os seres vivos (humanos) em contágio com os dispositivos. Delimitamos nossa investigação aos dispositivos midiáticos online, sobretudos as mídias digitais com acesso à internet e as plataformas midiáticas online, fortemente regidas por algoritmos. Frisamos que a subjetivação ou produção de subjetividade é cada vez mais numérica, aspecto este que reforça a tese de que o sujeito passa a ser dessubjetivado. Isso, por sua vez, não significa assumirmos que há subjetividades sem sujeito, mas sujeitos calculados,





previsíveis, moldáveis e moduláveis por contas matemáticas que, ao anteciparem preferências, tonar homogêneas as escolhas e planificam as singularidades. Trata-se de subjetividades numéricas, binárias e digitais que se produzem de modo controlado pelo capital que, no exercício de seu biopoder algorítmico, rege condutas e comportamentos por meio de uma intervenção antecipada. A vidência das máquinas, alimentadas por dados pessoas e por seus rastros deixados conscientemente ou não nas plataformas em uso, é cada vez mais atualizada e ajustada a fim de que a própria vida seja consumida, esgarçada e deteriorada em relações infocomunicacionais que encobrem as vidas em bolhas de sabão que estouram em discursos de ódio em rede e sufocam liberdades e pensamentos que almejam pela desconexão. Cabe à nós, viventes, convivermos de outra maneira com nossas máquinas, que certamente nos moldam e nos produzem. Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra Travessia, Florianópolis, n. 5, p. 9-16, 2005. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. ALZAMORA, Geane; SILVA, Teresinha. Dispositivo. In: FRANÇA, Vera V.; MARTINS, Bruno G.; MENDES, André M. Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS): trajetória, conceitos e pesquisa em comunicação. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – PPGCom - UFMG, 2014. p. 126-133. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. ANTUNES, Elton; VAZ, Paulo B. Mídia: um aro, um halo e um elo. In: GUIMARÃES, César; FRANÇA, Vera. Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 43-60. BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013. BRUNO, Fernanda. Rastrear, classificar, performar. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 68, n. 1, mar. 2016. Disponível em:





. Último acesso em: 05 dez. 2016. BRUNO, Fernanda. Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Famecos, Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 681-704, set./dez. 2012. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. CORTEZ, N.; ALZAMORA, G. Agenciamento semiósico e intersubjetividade: perfil do gosto e gênero musical nos ambientes de streaming de músicas online. Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 205-213, 2015. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 219-226. DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce q’un dispositf ? In: DELEUZE, Gilles. Deux régimes de fous: textes et entretiens 1975-1995. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. Cap. 50, p. 316-325. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 1. São Paulo: Editora 24, 2011. FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política (Ditos & Escritos V). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2012. p. 258-280. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996. GILLESPIE, Tarleton. Facebook’s algorithm – why our assumptions are wrong, and our concerns are right. Culture Digitally. 04 de julho de 2014. 2014a. Disponível em: . Último acesso em: 15 nov. 2016. GILLESPIE, Tartelon. The Relevance of Algorithms. In: GILLESPIE, T.; BOCZKOWSKI, P. J.; FOOT, K. A. (Eds.). Media technologies: essays on Communication, Materiality, and Society. Cambridge, MA; London, England: The MIT Press, 2014b. Cap. 9, p. 167-193.





GILLESPIE, Tarleton. The politics of ‘platforms’. Nem Media & Society, v. 12, n. 3, p. 347-364, mai. 2010. Disponível em: . Último acesso em: 15 nov. 2016. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012. JURNO, Amanda C. Agenciamentos coletivos e textualidades em rede no Facebook: uma exploração cartográfica. 22 fev. 2016. 1371f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2016. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. MANOVICH, L. 2015a. A Ciência da Cultura? Computação Social, Humanidades Digitais e Analítica Cultural. Matrizes, São Paulo, 9(2): 67-83. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. MANOVICH, L. 2015b. O Banco de Dados. EcoPós, Rio de Janeiro, 18(1): 07-26. Disponível em: . Último acesso em: 05 dez. 2016. PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. SALGADO, T. B. P. Públicos algorítmicos: relevância e recomendação no YouTube. In: ENCONTRO DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DE MINAS GERAUS, IX, Mariana-MG, 2016a. Anais... SALGADO, T. B. P. Regência de ações comunicacionais online: biopolítica e performance dos algoritmos. In: SEMINÁRIO DE ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, XIII, Rio de Janeiro-RJ, 2016b. Anais...

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.