Destacamento e montagem em suporte móvel de uma pintura a fresco do Salão Nobre da Câmara Municipal de Vila franca de Xira

September 22, 2017 | Autor: J. Inácio Caetano | Categoria: Fresco, Wall Paintings, Pintura mural, Pintura mural arrancada, Conservación Pintura Mural
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Destacamento e montagem em suporte móvel de uma pintura a fresco do Salão Nobre da Câmara Municipal de Vila franca de Xira1

Joaquim Inácio Caetano ARTIS - Instituto da História da Arte da FL-UL

Introdução

O objecto, alvo desta intervenção, é uma pintura de Lino António assinada e datada de 1949, com 2,30 x 4,00 m (Fig. 1), cuja temática está relacionada com Vila Franca de Xira do ponto de vista das suas actividades tradicionais em função do rio Tejo (as fragatas e a lezíria com as suas searas, campinos, cavalos e touros) e com a actividade industrial.

Fig. 1 – Pintura de Lino António assinada e datada de 1949, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.

A pintura estava localizada numa das paredes do Salão Nobre dos Paços do Concelho da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, em bom estado de conservação mas, devido a obras de ampliação deste espaço, houve necessidade de a destacar do seu local original para ser reposta na parede correspondente do novo espaço. O destacamento de uma pintura mural é uma operação de grande risco para a pintura e só se deve decidir pela sua realização se não houver soluções 1

Trabalho realizado em 2000 pela empresa Mural da História para a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.

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alternativas para a sua conservação. Os motivos que, normalmente, justificam este procedimento estão relacionados com o mau estado de conservação da estrutura arquitectónica, por se encontrar em ruína ou com um grande teor de humidade de resolução impossível ou ainda devido à demolição da estrutura de suporte, como é o nosso caso. Este procedimento é, também, aconselhável em situações de pintura mural descoberta em escavações arqueológicas porque a exposição repentina das pinturas, ou fragmentos, a valores de humidade e temperatura muito diferentes acelera a formação de sais contidos no suporte (reboco e estrutura arquitectónica).2

O destacamento de uma pintura

O método de destacamento baseia-se em fazer um corte, paralelo à parede, entre a estrutura arquitectónica e o reboco de suporte da pintura, transpondo a pintura para um contramolde que servirá para a apear e de suporte durante todas as operações complementares. O êxito da operação deve-se, em grande parte, à maior ou menor friabilidade do reboco e à capacidade de prever os possíveis momentos de risco e tentar anulá-los ou minimizá-los, escolhendo os procedimentos e materiais correctos. Podemos definir três fases distintas da operação: fase preparatória, corte do reboco e aplicação do suporte artificial.

Fase preparatória

Começa-se por remover o reboco na área envolvente superior e inferior da pintura (Fig. 2), até uma distância mínima de 50 cm. O objectivo é permitir que o instrumento de corte, um cabo de aço, possa fazer os seus movimentos, ascendentes e descendentes, sempre na vertical e o mais profundamente possível, pois se isso não acontecer há tendência para desgastar o reboco em direcção à superfície. Além desta operação, procedeu-se também ao corte da pintura em três partes seguindo a própria composição, que está organizada como um tríptico uma 2

Sobre este assunto veja-se: CAETANO, Joaquim Inácio, “Conservação de pintura mural em sítios arqueológicos”, in Workshops APA – Conservar em Arqueologia, Associação Profissional de Arqueólogos, 2003, pp. 43-51.

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vez que o seu tamanho, e o consequente peso depois de destacada, dificultariam muito as operações.

Fig. 2 – Remoção do reboco na zona envolvente da pintura.

De seguida, e como medida de protecção da superfície pictórica, aplica-se um facing duplo, consistindo esta operação na colagem de duas telas sobre a superfície pictórica. A primeira é uma gase de algodão e para o segundo facing usa-se, habitualmente, uma tela de cânhamo por ser mais forte e resistente, não se devendo deixar quaisquer excessos tela para além da área de pintura a destacar. A colagem da segunda tela só deve fazer-se após a secagem completa da primeira colagem (Fig. 3). Como cola podem usar-se resinas acrílicas removíveis ou uma cola à base de carboxilmetilcelulose, produto que preferimos por ser facilmente removível e por não deixar resíduos. Além da protecção da superfície, os facings permitem, em caso de fissuração do reboco, manter a posição relativa dos vários fragmentos constituintes da pintura.

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Fig. 3 – Aplicação de facing duplo sobre a superfície da pintura.

Fixa-se então o contramolde contra a pintura (Figs. 4 e 5), sendo este constituído por uma placa de aglomerado de madeira, plana se a pintura também o for ou com a curvatura igual à da parede no caso de tratar de uma parede curva e cuja dimensão deve exceder ligeiramente a da pintura a destacar. A sua fixação pode ser feita por parafusos se a estrutura muraria for suficientemente resistente como no caso de alvenarias ou estruturas de madeira. Antes da fixação, o contramolde deve ser revestido por manga plástica para evitar que, durante a colagem do suporte artificial, as eventuais escorrências de resina possam colar-se ao contramolde, o que traria problemas mais tarde. No caso de se tratar de uma área grande, como foi o caso que relatamos, o contramolde deve ser reforçado com travessas de madeira de modo a evitar empenos da placa. O contramolde serve de suporte do reboco que vai ficando destacado da parede à medida que se faz o corte, para apear a pintura após o seu destacamento total e também como seu suporte para todas as operações complementares de tratamento do reverso e colagem do suporte artificial.

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Figs. 4 e 5 – Fixação do contra molde.

Corte do reboco

Após estas operações pode, então, iniciar-se o corte do reboco. Como já referimos anteriormente, o corte consiste em fazer passar um instrumento de corte entre a estrutura arquitectónica e reboco de suporte da pintura de modo a desligá-lo da parede. Uma vez que, na prática, este corte consiste em provocar a desagregação do reboco por acção mecânica, num movimento paralelo à parede, entre os vários utensílios e materiais possíveis (entre outros, folhas de serra circular para corte de madeira) procurámos aperfeiçoar um método que fosse fácil de operar e eficiente. Assim, usámos um cabo de aço fino no qual demos vários nós, espaçados entre si cerca de 10 cm, que fazemos correr em movimentos verticais ascendentes e descendentes, entre a estrutura arquitectónica e o reboco (Fig. 6). À medida que o corte vai progredindo, a porção de reboco que fica desligado da parede é apertado contra o contramolde por meio de cintas de plástico3 (Fig. 7).

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Este processo foi também introduzido por nós, neste tipo de operações, tendo em conta a sua facilidade de operar e resistência das cintas. Trata-se de uma máquina e material utilizados na cintagem de embalagens de cartão em que o aperto das cintas se faz com uma máquina própria, sendo travadas com um selo metálico aplicado e fechado pelo próprio aparelho.

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Figs. 6 e 7 – Corte do reboco e cintagem apos o corte, respectivamente.

Para o processo ser eficaz, o cabo deve ser movimentado por duas pessoas, uma na parte superior e outra na inferior, que o devem manter tenso nos seus movimentos e o mais encostado possível à alvenaria, de modo a evitar o desgaste do reboco no sentido da sua espessura. Quando o corte está completo, e o reboco completamente cintado ao contramolde, apeia-se a pintura, desapertando os parafusos de fixação (Figs. 8 e 9).

Figs. 8 e 9 – Apeamento da pintura.

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Neste caso, destacámos primeiro os painéis laterais e por fim o painel central. Como medida de precaução para o transporte das pinturas já destacadas, e para evitar que se deslocassem no contramolde, cintámos as pinturas no sentido perpendicular ao da operação de corte (Figs 10 e 11).

Fifs. 10 e 11 – Transporte da pintura.

Aplicação do suporte artificial

As operações correspondentes a esta fase são feitas já na oficina e executadas com a pintura destacada apoiada no contramolde. Depois de removidas as cintas, desbasta-se o reboco até uma espessura de cerca de 5 mm, de modo a tornar a superfície do reverso o mais plana possível e aligeirar, também o peso do reboco destacado. Quando o suporte é constituído por duas camadas, uma correspondente ao arriccio e outra ao intonaco4, deve-se remover todo o arriccio e deixar apenas a camada correspondente ao intonaco (Fig. 12). Se existirem algumas pequenas lacunas, devido a uma maior desagregação do reboco, devem ser preenchidas com uma argamassa de cal e areia. Deve também aplicar-se um rebordo de argamassa de cal e areia à volta da pintura para evitar que

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Na pintura a fresco tradicional, onde se aplicam duas camadas de reboco, e usando a terminologia italiana, o arriccio corresponde à primeira camada, sendo esta uma camada preparatória executada com uma areia de grão grosseiro e onde se lança o esquema geral da composição, chamado sinopia. O intonaco é a segunda camada, menos espessa, com areia de grão mais fino e onde é executado o desenho preparatório e aplicada a cor. Estas duas camadas têm as correspondentes designações em português: emboco e reboco, respectivamente.

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eventuais escorrências da resina usada para a colagem do suporte artificial, possam colar-se à superfície da pintura. Tendo em conta que a superfície do reverso do reboco, devido à acção de desbaste, se torna menos coesa, é necessário reforçá-la colando sobre ela uma tela de algodão, usando como cola caseínato de cal5. Esta camada (tela e cola) tem também a função de impermeabilizar o reverso da pintura de modo a impedir a infiltração da resina através do reboco.

Fig. 12 – Preparação do reverso da pintura.

Após a secagem da camada anteriormente referida, procede-se à colagem do suporte artificial que constituirá a nova estrutura da pintura, transformando-a numa peça móvel e já não integrada na arquitectura6. O material usado para suporte é uma estrutura bastante estável, indeformável e leve, tratando-se de uma sandwich de fibra de vidro e resina epóxica com um núcleo de favos de abelha de alumínio 7 (Fig. 15). A sua colagem ao reverso do suporte faz-se usando uma resina epóxica e interpondo entre os dois (suporte e reboco) uma estrato de fibra de vibro que serve de almofada e garante a aderência total entre as duas superfícies (Figs 13 e 14).

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Cola constituída por cal e caseína, misturadas em determinadas proporções depois de se ter deixado a caseína em água durante 24 horas. 6 Apesar de passar a ser uma peça móvel, não significa que não possa ser fixada numa estrutura arquitectónica de modo a ser lida como se fosse parte integrante da arquitectura, como foi o caso referente a esta intervenção. 7 O nome comercial é HEXLITE, da Excelcomposites.

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Figs. 13 e 14 – Aplicação de fibra de vidro e resina epóxica no reverso da pintura.

Fig. 15 – Corte do suporte artificial.

Após a secagem completa pode retirar-se a pintura do contramolde e trabalhar nela como uma peça móvel, sendo o momento de retirar os facings (Fig. 16), o que se faz usando água, de preferência tépida, uma vez que a cola usada foi

uma

carboximetilcelulose

e

efectuar, então,

os trabalhos necessários de

apresentação estética final. No nosso caso fez-se uma simples limpeza com água uma vez que a pintura não tinha quaisquer repintes nem outro tipo de sujidade além de um ligeiro depósito de poeiras. Foi necessária a reintegração cromática (Fig. 17) de pequenas lacunas da camada pictórica resultantes da pressão de alguns grãos de inertes que durante o processo de corte foram pressionadas no sentido da superfície.

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Figs. 16 e 17 – Remoção dos facings e reintegração cromática, respectivamente.

Para permitir a fixação dos três painéis numa estrutura metálica preparada com esse objectivo (Fig. 18), sem causar danos na pintura, deixou-se o suporte em excesso, cerca de 5 cm, para que a fixação com parafusos à estrutura metálica se fizesse nessa área.

Fig. 18 – Fixação da pintura na estrutura metálica.

Como acabamento final na zona envolvente da pintura foram fixadas, também na estrutura metálica, placas de gesso cartonado formando um só plano com a superfície da pintura. Por fim, colmataram-se as juntas entre as placas e a pintura de modo que simulassem tratar-se do mesmo revestimento parietal (Fig. 19).

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Fig. 19 – Resultado final da intervenção de destacamente e fixação da pintura destacada numa nova estrutura.

A prática de destacamento de pinturas em Portugal

O destacamento de pinturas murais é uma técnica de restauro que, como percebemos, só deve ser levada a cabo em situações onde não existem outras soluções alternativas para conservar as pinturas em bom estado ou quando correm o risco de destruição. Esta prática foi amplamente desenvolvida em Itália a partir dos anos 50, assim como na Catalunha para evitar a destruição e vandalismo das pinturas românicas em pequenas igrejas isoladas podendo, actualmente, serem vistas parte delas no Museu Nacional da Catalunha em Barcelona tendo, no entanto, deixado ser usada como prática sistemática no restauro de pinturas murais. Em Portugal, esta técnica foi desenvolvida pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) entre as décadas de 30 e 708, quando este organismo tutelava não só as intervenções nos edifícios mas, também, as intervenções no património aí integrado, muito mais como consequência do que por razões programáticas.

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Veja-se SOUSA, Catarina Vilaça, “As intervenções da DGEMN no acervo de pintura mural nacional (1929-72)”, in Actas do II Congresso Internacional de História da Arte 2001 – Portugal: Encruzilhada de Culturas, das Artes e das Sensibilidades, Livraria Almedina, 2004, pp. 23-48.

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Sendo as intervenções norteadas por opções políticas, onde estava subjacente a ideia de identificar a arquitectura românica com a génese de Portugal, e sendo correntes na Europa as práticas integradas na teoria da “unidade de estilo” de Viollet-le-Duc, importava, sobretudo, repor a pureza arquitectónica do edifício, depurando-o de todo os “acrescentos”, quer arquitectónicos quer de outras manifestações artísticas como retábulos de talha dourada e pinturas a fresco resultantes de “modernizações” impostas por motivos funcionais, de gosto e litúrgicas. É neste contexto que se fazem as intervenções em pintura mural neste período, sem qualquer programa prévio, mas tomando decisões avulso sobre que fazer aos muitos exemplares que foram sendo descobertos com a desmontagem dos retábulos de talha que os escondiam tendo a DGEMN intervindo em 18 conjuntos de pintura mural de que resultou o destacamento de 29 exemplares. À luz do que hoje são consideradas as boas práticas de conservação e restauro, não podemos dizer que estas intervenções tenham trazido benefícios às pinturas destacadas, sendo uma das razões a sua deslocação do local para onde foram realizadas e, a propósito desta questão é oportuno recordar Paolo e Laura Mora: “Ligada ao muro, e por consequência à arquitectura, a pintura adquire um outro estatuto diferente daquele que teria se estivesse ligada a um objecto (por exemplo: madeira, tela). Não são só as condições materiais que diferem mas, com o seu contexto, a natureza íntima da imagem, diríamos mesmo, o seu estatuto de realidade. Nada o mostra melhor que o problema da moldura. Contrariamente ao quadro, a pintura mural não precisa de moldura que a ligue à arquitectura - a sua moldura é a arquitectura ela mesmo, na qual está englobado o espectador. Sempre que aparece um emolduramento numa pintura mural, trata-se ou de separar as diversas cenas de um ciclo ao longo da parede, ou de imitar pelo «trompe l’œil» a moldura de um quadro. A moldura de uma pintura mural é, pois, sempre ou a arquitectura ou uma moldura fictícia feita pela própria pintura. Se esta ligação orgânica se perde, a pintura mural torna-se numa espécie de tapeçaria ou papel de parede.” 9

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Traduzido de MORA, Paolo et Laura, PHILIPPOT, Paul, La Conservation des peintures murales, Centre International d’Etudes pour la Conservation et la Restauration des Biens Culturels, Editrice Compositori, Bologna, 1977, pp. 1,2.

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No caso presente, a conjugação de vários factores levou a que os resultados não fossem os melhores. Por um lado, ainda que a metodologia de destaque de uma pintura mural não tenha sofrido grandes alterações, os utensílios e produtos então disponíveis foram substituídos por outros mais adequados que, actualmente, permitem melhores resultados. Outro factor tem que ver com a característica das pinturas destacadas, comum a todas as pinturas da região Norte de Portugal, onde não existe nunca a primeira camada preparatória (arriccio ou emboco) e os rebocos de suporte da pintura são muito finos, raramente atingindo 5 mm de espessura e, consequentemente, o método de destaque anteriormente descrito para a pintura de Lino António, não pode ser aplicado nestas pinturas. Em vez do corte do reboco paralelamente à parede, era usado um método designado strappo que consiste na colagem de uma tela sobre a superfície da pintura, com uma cola orgânica forte, e, após a sua secagem, a tela é arrancada de baixo para cima numa acção semelhante ao esfolamento de um animal (Fig. 20).

Fig. 20 – Arranque de uma pintura mural pelo processo de strappo

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Imagem do livro: MORA, Paolo et Laura, PHILIPPOT, Paul, La Conservation des peintures murales, Centre International d’Etudes pour la Conservation et la Restauration des Biens Culturels, Editrice Compositori, Bologna, 1977

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É um processo bastante danoso para as pinturas porque, habitualmente, o reboco sai muito fragmentado, e com zonas onde apenas é destacada a película cromática. Também o material então usado como suporte móvel (telas, placas de aglomerado de madeira ou placas de fibrocimento) não era o mais adequado. E, por fim, dado que a leitura de uma pintura muito fragmentada era bastante desagradável, era completamente repintada, beneficiada segundo a terminologia usada na altura. Todo este processo – descontextualização, perda de matéria original e repintura – levava a que os espécimes destacados perdessem autenticidade. Actualmente, é um processo que não se usa pois a disciplina de Conservação e Restauro evoluiu nos seus conceitos e, mais que a prevalência dos valores estéticos, são os de autenticidade que procura preservar relativamente à pintura alvo de intervenção.

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