Desterritorialização e Identidade: as possibilidades de contorno da escuta psicanalítica no contexto da imigração

July 19, 2017 | Autor: Ana Gebrim | Categoria: Etnopsychology, Psicanálise, Imigração, Imigração e Clínica
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DESTERRITORIALIZACAO E IDENTIDADE: AS POSSIBILIDADES DE CONTORNO DA ESCUTA PSICANALITICA NO CONTEXTO DA IMIGRACAO Cristina Rocha Dias Ana Gebrim

Propor um espaço de intervenção e escuta no contexto migratório é um dos aspectos que marca o Projeto Migração e Cultura, vinculado ao Laboratório Psicanalise e Sociedade do IP USP e ao núcleo Psicanalise e sociedade da PUC. Dentre as atividades desenvolvidas, destacamos o atendimento a imigrantes e refugiados que acontece na instituição Casa do Migrante, trabalho da missão religiosa Escalabriniana, com capacidade para 100 pessoas, situada no centro da cidade de São Paulo. A partir do trabalho de acompanhamento e escuta realizado na Casa por estagiários supervisionados por psicanalistas e coordenado pela Prof. Dra Miriam Debieux Rosa, entendemos que as experiências vividas por essa população, apesar das diferenças culturais, estão marcadas por fatores sociais e políticos que levam a exclusão e segregação, cujo resultado é a emigração ou exilio do pais de origem e a busca por refugio em pais estrangeiro. A quebra de laços sociais e de vínculos afetivos caracteriza uma das inúmeras e mais significativas perdas sofridas no contexto migratório, onde além da necessidade de garantir condições mínimas de sobrevivência, implica também que o sujeito se veja diante um intenso trabalho de reconstrução e elaboração de outras formas de viver, numa situação nova e quase sempre adversa. Assim, a experiência de desterritorilização, de se ver obrigado a partir em direção ao desconhecido, coloca em cena a suspensão das referencias de origem no pais estrangeiro e a incerteza quanto ao futuro, como aspectos que marcam sua identidade. Pensar a função da escuta psicanalítica nesse contexto implica, em alguma medida, também considerar um certo deslocamento do setting analítico tradicional para situa-lo num contexto de acolhimento onde oferecemos escuta nos diversos espaços da Casa e em diferentes contextos de atendimento (individual, grupal, infantil). Neste caso, o contato com os moradores pode configurar uma primeira aproximação, uma conversa ou um atendimento com encontros regulares durante a permanência do imigrante na Casa, ainda que fora de uma “sala de atendimento” ou de um consultório. De todo modo, estamos nos referindo à escuta de sujeitos em sofrimento, imersos numa situação de crise, provocada por sucessivas rupturas. Diante disso, nos perguntamos: o que constitui o enquadre de um atendimento clínico nesse contexto singular? Poderia a escuta analítica ter a função de contorno numa experiência de desterritorilização e desenraizamento? Em primeiro lugar, destacamos que o contexto da imigração e da crise vivida por esse deslocamento muitas vezes forçado, acaba desvinculando os acontecimentos da história pessoal, familiar, institucional, social e política dos sujeitos e resulta numa espécie de suspensão e silenciamento de uma historia que não pode ser contada, permanecendo assim, destituída de sentido. (Vicentin, Gramkow & Rosa, 2010) Assim, na tentativa de elucidar essas questões, partiremos de um caso clínico acompanhado pela equipe,

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colocando em cena dois elementos da clinica psicanalítica, presentes em nossa pratica: a transferência e a escuta analítica. Sandra é o nome fictício que daremos a uma mulher vinda de Angola. Chegara ha pouco de Luanda com o marido e três filhas ainda crianças. Atendida por uma psicanalista da equipe durante alguns meses, ela se aproxima do grupo de psicólogos num primeiro contato para contar de problemas de saúde. Problemas no corpo. Dizia que estava com uma ferida no braço. Que aquilo lhe dava febre. Que não estava bem. Podemos imaginar que Sandra deveria saber pouco sobre a função de um psicólogo ou psicanalista. No entanto, talvez o mais importante ela soubesse. Havia ali, com aquelas pessoas, um espaço para falar de dor, de mal-estar, do que não estava bem. Assim, uma escuta especifica e bastante singular parecia garantida e era a partir desse sentido, de que se pode, por exemplo, escutar uma dor mais além do corpo, que os atendimentos se estabeleciam. O atendimento individual de Sandra se inicia meses depois desse contato inicial, quando procura uma psicanalista da equipe que já encontrara antes, para comunicar a partida de uma moradora. E lhe diz dessa partida, mas também sobre a dor de partir, sobre a dor da imigração, a dor do que é a saudade, a dor inexorável e irremediável provocada por uma perda. Esse seria o primeiro de vários encontros entre Sandra e a analista. De pé nos corredores, sentadas nos bancos da Casa, no vestiário em volta de muitas outras moradoras, em seu quarto, foi-se abrindo neste encontro um outro espaço. Paradoxalmente, vivendo em uma Casa onde tudo é compartilhado, o espaço em que se pode falar de alguma coisa que não podia ser dita antes, e que, sobretudo, não podia ser dita a qualquer um, delimita o contorno da escuta e de um lugar bastante particular na transferência. Nos atendimentos, Sandra conta que viveu, desde muito pequena, separada dos pais. Cresceu na casa de parentes, o que experimenta com muita magoa. Um dia, Sandra muito ansiosa, diz a analista: “Te procurei por todas as partes. Quero muito te mostrar uma coisa. Vem comigo”. E guiando-a através dos corredores, chega até seu quarto e entrega-lhe um pedaço de papel. “Saiu meu protocolo. Veja ai”. A família tinha sido considerada pelo governo brasileiro como refugiada, o que indica que a situação deles em Angola era bastante precária: a casa situada na periferia e uma realidade de profunda violência configuravam uma ameaça constante. Nesse sentido, podemos pensar na importância de um documento oficial numa situação transitória de imigração, numa vivencia de desterritorilização: um papel que atesta a permanência, que garante a sobrevivência, que reconhece a presença. Essa havia sido uma conquista de Sandra: um pedacinho de papel com seu nome assinado pelo governo brasileiro. Mas, somente mais tarde, foi possível entender a importância dos papeis e do reconhecimento para ela. Nos atendimentos, ao falar das dores no corpo, Sandra conta de como era forte (a dor), e de como ela era forte, de como gostava de ser auto-suficiente e não queria depender de ninguém. Dizia estar acostumada a resolver tudo sozinha, posição bastante marcante em sua infância e adolescência que, em alguma medida, parecia também marcar seu lugar na Casa. Assim, falar da dor significava por um lado, a possibilidade de suporta-la, mas ao mesmo tempo de lhe dar novo lugar e sentido, especialmente quando endereça essa fala a analista.

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Embora trabalhasse em Luanda, no Brasil, desde que chegara, não havia buscado trabalho. Esperava a carteira de trabalho, esperava regularizar sua situação e conseguir matricular sua filha pequena, Laila, na escola, e, finalmente, esperava ter sua própria casa. No entanto, toda essa espera era vivida com muita apatia e desanimo. Não conseguiam uma casa porque o salario do marido não era suficiente. Não podia trabalhar porque Laila não estava na escola. Em um atendimento em que a filha mais nova estava presente ao lado da mãe, a analista lhe pergunta: “Laila, você tem vontade de ir para a escola?” E surpreendentemente, ela respondeu: “Não”. Nesse sentido, de forma sintomática, a relação mãe e filha respondia a dificuldade de Sandra se estabelecer no Brasil e de poder pensar em seus projetos individuais. Laila respondia a essa dinâmica se comportando de forma muito regredida, encenando constantemente a brincadeira de ser um bebe e, à medida que tentavam elaborar uma separação (também física), Laila tapava os ouvidos, os olhos e a boca da analista, dizendo claramente que não queria que conversasse com sua mãe. Depois de um período de férias, quando a analista volta a Casa, acontece uma sessão decisiva em todo o processo, onde podem tocar em pontos, lugares e espaços nunca antes abordados. Naquele dia, Sandra conta que tem medo de sonhar e que pensa constantemente que alguém de sua família pode estar doente. Desde que chegou no Brasil, nunca falou com seus pais. Apenas uma vez, muito rapidamente, com um irmão. Ainda assim, sofre muito pensando no que pode estar acontecendo com todos. Diante desse temor, aponta uma saída: “Gosto de viver na fantasia. Não aguento lidar com os problemas ou ficar muito tempo pensando neles, então finjo que não esta acontecendo nada e fico na fantasia”. Curioso notar que para Sandra, sonho não é fantasia, mas pressagio. No entanto, sonhar (fantasiar) acordada é o que lhe permite escapar da dura realidade que retorna nos sonhos. Nesse mesmo atendimento, a analista lhe pergunta sobre sua vida escolar em Angola. Então ela diz: “Isso é uma coisa muito difícil”. E suspira fundo. Conta que não foi a escola, sabe apenas escrever seu nome e de suas filhas. Entendemos que aquilo que Sandra conta sobre ser analfabeta, opera quase como uma revelação. “Tenho muita vergonha disso. Ninguém sabe aqui na Casa. Você é a única pessoa a quem estou contando isso”. Então, ali, a analista refaz o contrato e diz sobre a confidencialidade. Sandra conta do sonho de um dia poder estudar e sobre seu grande sonho de vir ao Brasil para trabalhar e poder ir à escola. O analfabetismo é vivido por ela com muita dor, e frente a essa vivencia envergonhada, Sandra disfarça. E muito bem. Ninguém imagina que pudesse ser analfabeta, pela forma que fala, pela linguagem que emprega, e pensamos o quão custoso deveria ser o esforço em esconder algo tão presente. Terminamos a sessão ali. Estávamos, ambas, diante dessa revelação, mas também do desafio de sustentar um projeto, um sonho que revela uma posição desejante. Nas semanas que seguiram, Sandra não quis conversar com a analista, que diante de mais uma recusa, aponta o quão difícil foi a ultima conversa que tiveram, ao que ela responde: “Difícil não, mas... Eu não quero repetir”. Algumas semanas depois, Sandra parece muito satisfeita e diz a analista: “Quero muito te contar uma novidade. Vem comigo”. E a conduz, novamente, para seu quarto. “Comecei a estudar. Entrei na escola.

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Quero te mostrar meus cadernos”. Sandra havia se matriculado no curso noturno de alfabetização. Diz estar muito contente, e mostra a analista todos seus cadernos, exercícios, conta dos colegas de classe, da professora, das dificuldades desafiadoras de letra cursiva e da ajuda que recebe de sua filha mais velha. Algumas semanas depois, finalmente a família havia encontrado uma casa, iam mudar-se em poucos dias. Os atendimentos caminham para um encerramento e Sandra passa a compartilhar com os moradores e com a analista sua experiência na escola, os planos para a nova casa e para um espaço próprio. No ultimo encontro, Sandra abraça a analista e lhe entrega também seu telefone e endereço. Mais uma vez, um pedaço de papel que atestava um lugar, um novo pertencimento, mas agora escrito por ela. Tomados como referencia, esses elementos indicam o quanto a escuta psicanalítica exercida numa vivencia subjetiva de suspensão e indefinição, próprios da condição de refugio, pode operar como um elemento que permite articular recursos simbólicos para lidar com a dor da perda a partir da (re)construção de sentidos possíveis para essa experiência, inscrevendo-a, dessa forma, na cadeia de uma historia singular. Considerando que algo do sujeito segue buscando sentido e ancoragem, ainda que em novo território, a aposta clinica na dimensão do desejo permite novos contornos, reinvenções e recomposições identitárias dos sujeitos no pais estrangeiro de exilio. Entendemos que a possibilidade do sujeito produzir uma fala numa situação de crise pode ser pensado como um elemento que, de certa forma autoriza a presença de certos conteúdos que emergem e ressoam em busca de sentido. Mas não se trata aqui de uma fala qualquer, e muito menos dirigida a qualquer pessoa. Transformar um relato em uma narrativa significa inscrever uma experiência de dor e de luto, silenciado e impedido num campo simbólico. Para isso, é necessário dirigi-la a alguém em posição de escuta, o que remete ao lugar de um analista na instituição e de seu lugar na cena transferencial. Podemos pensar que se a fala pode produzir mudança e deslocamento de uma identidade cristalizada numa vivencia de perda e violência, isso implica que falar para um outro, para esse escutador, (que na transferência não é qualquer outro) é também se ouvir e recolocar a experiência na ordem do mundo compartilhado, que localiza o sujeito em uma historia que pode ser reconhecida, ao invés de produzir apenas estranhamento. Nesse sentido, é possível pensar mais no efeito da fala de Sandra para si mesma, do que na intervenção da analista. E isso nos remete precisamente ao nosso lugar de escuta: o da possibilidade e da oferta de condições para que uma narrativa possa emergir a partir do que é vivido como traumático, articulando-se à experiência. Quando Sandra pode falar à analista, pode também se ouvir e dar novo sentido as dores que marcam sua historia, promovendo uma mudança fundamental no posicionamento psíquico em relação ao que viveu, ao que vive no presente e a sua posição desejante. Neste sentido, o acontecido inscreve-se em sua historia singular. Essa mudança de posicionamento diz respeito a possiblidade de Sandra de dar voz, escuta e possibilidade simbólica para o que antes era vivido como silenciamento mortífero, aprisionado e sem significação. Isso permite apropriar-se do que foi vivido, como responsável, autora e narradora da própria historia, reassumindo seu próprio desejo e (re)lançando-se na vida, no pais estrangeiro de exílio, sem que o medo do aniquilamento pela experiência sem significação seja demasiadamente paralisante. E agora, também, com um

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recurso a mais, o da escrita. Quando Sandra diz a analista: “Não quero repetir”, de fato, o faz. Isto é, não repete, não precisa mais repetir. Pois, de algum modo, empoderou-se da possibilidade de em ir busca do desejo. Assim, o atendimento de Sandra, mais do que sobre o encerramento ou condução de um caso, ilustra a aposta clinica na dimensão do desejo, de um trabalho na perspectiva das reinvenções e recomposições identitárias dos sujeitos no pais estrangeiro; explicita uma escuta singular que “se utiliza da presença e da palavra. Presença que o analista é convocado a suportar e servir de mola ao relançamento das significações (Rosa, 2011).

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