Destruir, ela disse: delicadeza e violência na poesia recente de Mônica de Aquino

May 25, 2017 | Autor: G. Silveira Ribeiro | Categoria: Contemporary Poetry, Poesia Brasileira, Poesia brasileira moderna e e contemporânea
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Destruir, ela disse delicadeza e violência na poesia recente de Mônica de Aquino Gustavo Silveira Ribeiro

Desfazer a trama espessa do feminino, suas injunções e limites, seus condicionamentos e pressupostos: um tecido que recobre tudo, que inunda de sentidos os mais pequenos gestos, e que precisa ser decomposto, revisto, talvez mesmo completamente arruinado: essa parece ser, quem sabe?, uma das questões fundamentais, um dos aspectos decisivos, mas às vezes inaparente, de Fundo falso (2017), segundo livro (ainda inédito) de poemas de Mônica de Aquino. Voz que vem do futuro, poesia por vir, todo o livro se arma em torno dessa tarefa negativa, ainda que a violência simbólica nela implicada esteja encoberta pela delicadeza sonora dos versos, pelo corte sutil, pela escolha vocabular que tende à suavização da linguagem. Há como um paradoxo estruturante atravessando de ponta a ponta o volume, em torno do qual os poemas encontram o seu eixo, aquilo que os permite identificar como conjunto formalmente coeso e experiência coerente de pensamento. Longe de ser apenas a configuração de um impasse, o paradoxo é aqui aposta, expressão de um universo ambíguo de afetos e significados para o qual não há tradução linear e direta. A sensação de descompasso que se experimenta, no entanto, vai ora apresentar-se como força, como elaboração sofisticada de uma aporia (o feminino, segundo a própria poeta o vai apresentar), ora como uma barreira, um limiar nãotransposto, algo como um ato estético aquém da sua própria potência. A p ambiguidade, sendo antes de tudo uma súmula do livro, tanto de seus procedimentos poéticos quanto dos temas e questões que pretende fazer girar e expandir. Nela, o foco está, evidentemente, no trabalho noturno, anterior à aurora (portanto íntimo e perigoso)

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que a poeta nos apresenta: no centro de tudo está Penélope, o mito grego e uma espécie de metáfora recorrente de um certo conceito de feminilidade. Apresentada pela tradição como esposa e mãe, Penélope é índice de características associadas inúmeras vezes às mulheres: é paciente, algo silenciosa, fiel. Espera pelo marido, Ulisses, fazendo e desfazendo um manto, fiando ela mesma os contornos de uma ficção, de modo a iludir os seus pretendentes e dissipar as ameaças que recaíam sobre si e seu filho, Telêmaco, uma vez que não apenas o seu corpo, mas o legado do esposo, seu espólio, eram também objeto da cobiça de outros homens. Pois bem: num lance francamente moderno, Mônica de Aquino vai tomar a figura mítica e com ela elaborar um conjunto de poemas que exploram, pela via da subversão, o retrato fixo do feminino construído ao redor da narrativa mítica. São nove textos que apresentam, desde o título, a presença de Penélope e seu trabalho de sapa: cada um deles carrega um adjetivo

ou locução adjetiva

específica (insone, mentirosa, secreta, paciente, assustada etc.) que vai servir como base para o processo de reescrita formal e ideológica por que passa a personagem grega. No , como no mito, o ardil que está em jogo, a malícia da esposa expectante: é o desejo frustrado, é a dificuldade da comunicação e da saída de si o elemento mais importante: a personagem (sobre a qual a voz poética se projeta, talvez a própria autora, em pur

-se na

2017). O tecido, como se vê, não mais protege ou engana: ele é um sinal ambivalente, isto sim, ora apontando para a solidão e a falta, ora para os laços sociais estreitos que impõem comportamentos e expectativas às mulheres. Perdida em possibilidades, pensando no futuro incerto, Penélope se coloca no lugar de Ulisses, do viajante que tem toca/o corpo de um homem, de cem homens//desfaz a mortalha como se destruísse um véu//Fere a carne

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(AQUINO, 2017) Nesse passo não procura evitar o casamento forçado ou as convenções religiosas desfavoráveis: quer conhecer a si, saber do seu desejo, investigar os mecanismos do amor e do desamor.

A guinada proposta é grande e baseia-se na recusa. O gesto de lançar-se ao mundo e à incerteza reverte leituras e interpretações assentadas, sem resvalar na pura exposição da dessemelhança como faz, por exemplo, James Joyce em Ulisses (1922): ali, Molly Bloom/Penélope ainda mente e dissimula, entregando-se, entretanto, ao turbilhão de pensamentos e sensações que a invadem: acompanhando a voz da própria personagem através da técnica do stream of consciousness, invadimos uma realidade confusa e inextricável, feita fundamentalmente de volúpia e engano, de uma mulher que se sente dividida entre o matrimônio e a aventura. No poema de Mônica de Aquino, por sua vez, tal não se dá: a reversão irônica da tradição não é único elemento presente, na medida em que há uma abertura para a procura de si, para a perscrutação da própria identidade da poeta (e também da própria condição feminina, muito mais ampla) que torna complexo o procedimento em foco. Na mesma direção seguem os demais poemas da série, quase

(AQUINO, 2017). A mentira, nomeada no segundo texto da seção, bem como a paciência e o segredo, são em Fundo falso outros nomes para a mesma vontade reflexiva, para o deslocamento operado pela autora

que se dedica a pensar sobre a força bruta

dos encontros, a ameaça contida nas potencialidades do amor e do sexo. O aspecto

exemplo: Primeiro, desfiz a mortalha como de hábito Mas a noite ainda era vasta.

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Inventei, então, um presságio há muito a destruir: colcha, tapete, rede este vestido de renda a trama da cadeira a cama a mesa posta. A agulha é lenta, lenta a tesoura é lenta o amor é lento destruir me rouba a noite e as estrelas. (AQUINO, 2017) A fúria sutil, espécie de profecia que não visa apenas o futuro, mas está também prenhe de lembranças, atinge principalmente os objetos cotidianos, as coisas da casa. O espaço reservado à intimidade e às funções do corpo (alimentação, descanso, passagens do erotismo) serão submetidos aqui a uma outra economia

isto é, a uma outra lei doméstica,

conforme nos ensina a etimologia grega do termo: ao invés da conservação e do cuidado, da calma estável daquilo que é feito para permanecer, a urgência da crítica, o trabalho noturno da demolição. Desfazer-se de um mundo de referências assim como faz a poeta/personagem é dar corpo a uma ética bastante particular, feita da necessidade premente da escolha, do colocar em crise os valores estabelecidos, mesmo que eles se localizem em lugares e objetos aparentemente insignificantes. A epígrafe geral do livro,

há outro jeito,/ mas o que rejeito é mais numeroso,/mais denso, mais insistente do que

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distância) vai na mesma direção, acrescentando sentidos ao que Mônica de Aquino propõe em sua poesia: a rejeição é sinônimo evidente da necessidade de destruir, da violência do não: a predominância anunciada e o seu misturar-se às experiências cotidianas dizem da força do gesto, do quão disseminado está por todos os lados: tudo, ou quase tudo, precisa vir abaixo.

Todo o restante livro, suas seções e insistências, está marcada por um mesmo ethos, pela mesma frequentação a um certo imaginário no qual a lembrança da morte parece infiltrar-se em tudo, disseminando-se e tomando múltiplas formas, ganhando corpo de modos distintos ao longo do conjunto dos poemas. A única passagem de Fundo falso em

reunião de textos escritos a partir da leitura de Lewis Carroll, de cuja Alice a autora se aproxima. Revelando nesse ponto alguma familiaridade com a literatura infanto-juvenil (e vale lembrar que Mônica de Aquino vem escrevendo, nos últimos anos, várias histórias para crianças), os poemas dessa seção voltam a interrogar o feminino e a elaborar os caminhos que levam

ou não

ao conhecimento de si. Alice é, como se sabe, um ser

interrogante e intempestivo: habitante do paradoxo, é grande e pequena, adulta e criança: pensar o feminino a partir dela é pensar tanto as energias imensas de uma condição desviante quanto os laços aprisionantes que o mundo (qualquer mundo, ficcional ou não)

privilegiado pela poeta, no qual o desejo se mistura sutilmente à violência e à perda, num processo que desemboca, como nos poemas que tinham Penélope como centro, numa meditação contida sobre o sofrimento e o resguardo, a contenção do que se sente e os traumas que o corpo (a memória) podem carregar.

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Em dois poemas muito distintos como os que se seguem, numerados, cada um deles constando numa parte diferente do livro, é possível perceber semelhanças e traçar o roteiro de um inquietação profunda, transformada em figuras e ritmo. O primeiro tem como foco o arranjo do próprio corpo, o lugar ocupado no mundo pelo sujeito poético. O segundo, por sua vez, volta-se para o país da infância, para o período formativo em que as lembranças se gravam a fogo na memória. [1] Ser mínima. Cortar cabelo unha pele mas sem o cálculo da cutícula. Despir-se de tudo o que não dói. Ultrapassar toda carne roer o osso canina roer o próprio rabo. Roer, ainda, os próprios dentes agudos rentes (AQUINO, 2017)

A redução e o corte são aqui duplos, como se pode ver. Os versos curtos, a frase lapidar, confinada às vezes a um só substantivo, são símiles do desejo de apagamento, de autodevoração que se manifesta no poema. O ato proposto quer chegar ao âmago, quer ultrapassar a super aquilo que o vai configurar como resto, como matéria preferencial da paixão (se se recorda, é claro, o significado arcaico do termo: pathos

-se de tudo/o que não

o sofrimento como parte de si, torna-lo possível (e visível) pelo gesto

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tempo, vítima e algoz da violência, alguém que, não podendo controlar o mundo ao redor, refaz no próprio corpo a dor que experimenta ou percebe. O chamado ao essencial que o poema faz, uma espécie de movimento espiritual de recolhimento e autocontemplação se vê radicalizado e até frustrado, uma vez que a revelação buscada, a modéstia anunciada no primeiro verso se transforma em luta aberta consigo mesma, com aquilo que num corpo é força involuntária (o crescimento vegetativo de unhas e cabelos, por exemplo) e necessidade de autopreservação. Como ocorre muito frequentemente na poesia de Orides Fontela, por exemplo, outra referência subterrânea da poesia de Mônica de Aquino, aqui é possível perceber o quão agressivo pode ser o fechar-se sobre si,

incômodo da imagem traduz o que há de insuportável nesse processo, e que se espraia também para a feitura do poema, cuja contenção não será apenas traço estilístico (de resto muito recorrente na poesia de Aquino, presente também no seu primeiro livro, Sístole [2005]), mas ajustamento ensaiado entre forma e fundo: no intuito de apresentar a afecção que marca o sujeito poético, o texto deglute a si mesmo, limitando-se, procurando, no plano específico do verso, um existir mínimo e precário, condição propícia para por à prova sua própria capacidade expressiva: dizer o máximo com o menor número de palavras. [2] Ainda se lembra dos ratos esmagados na bota do avô. Recém-nascidos, eram massa frágil, sem distinção de pele e ossos. Macios como a moleira dos bebês. Não viu os olhos da neta mecânico em seu gesto de aniquilar. O pai capturara uma rata.

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Foi incapaz de matá-la. O animal recusava a fuga contornava a cria e nos olhava, quase humano. O homem acomodou os filhotes numa caixa, sobre um pedaço de pano, levou-os para longe dos olhos da casa. Um homem sem vocação para o nojo e a aversão. Mas ele também usa coturnos. A filha cresceu vira-lata, cadela faminta buscando o amor instintivo dos ratos para sempre o amor impossível do pai. (AQUINO, 2017)

Orientado para a formação de uma sensibilidade, o poema em tela aponta para o passado, procurando ver nele rastros do presente e da voz poética que se ergue. O objeto das lembranças é um evento difícil, ambíguo, no qual ternura e trauma se misturam à presença da morte, seu conhecimento terríve

entendimento de que no mundo há também impiedade e finitude, coisas complexas que se confundem com o amor segundo os olhos de uma menina. O reconhecimento que o eu-

uma nostalgia da inocência, um desejo de pureza que se apresenta com as roupas do afeto ausente. Buscando o amor dos outros, lançando seu corpo no mundo desconhecido, a poeta projeta na incapacidade do pai

na diferença fundamental que ele

a oferta sem limites, puro dom, do amor dos ratos. Os animais, pulsão vital em defesa dos

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próprios corpos em cujo olhar a menina um dia percebeu uma busca de asserção e contato, passaram a representar para ela o contrário das trocas econômicas que caracterizam o universo dos afetos que nos cerca e constitui, um universo baseado no interesse e no cálculo, onde o encontro amoroso é celebrado como um contrato, cheio de cláusulas e contrapartidas. O fato desse aprendizado se confundir com uma lição de morte, com o conhecimento de que uma vida pode (e talvez mesmo deva, em alguns casos) terminar é coerente em Fundo falso: no livro os motivos da solidão, da violência e do desejo apresentam-se inseparáveis, e o mesmo se dá no poema em questão. A morte observada é parte dos deslocamentos operados pela poeta nos discursos e representações do feminino. A tranquilidade perdida, a abertura ao outro, a sede de afetos que não se deixam reger por acordos como os que submetem as mulheres a um lugar (às vezes concreto, às vezes simbólico, mas sempre difícil) de confinamento: tudo isso vai convergir no corpo do poema (dos poemas) como uma mesma questão dolorosa. Ser testemunha (no duplo sentido da palavra: observar e narrar) da aniquilação dos ratos é, talvez, um modo enviesado, metafórico, de dizer o que a série das Penélopes dizia, ou o -

q experiência, é a passagem necessária por que tem de caminhar a poeta, que pretende pela crítica e pela redução lírica do mundo a um conjunto precioso de imagens e conceitos

delicadamente despedaçar os lugares-comuns e as leis que garantem a

permanência das coisas como estão.

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