Desvios morais e linguísticos na obra de Mia Couto : uma batalha de valorização do Moçambique

September 3, 2017 | Autor: Fernanda Vilar | Categoria: Postcolonial Literature
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Desvios morais e linguísticos na obra de Mia Couto : uma batalha de valorização do Moçambique Fernanda Vilar Université de Paris Ouest Nanterre VILAR, F. S.; “Desvios linguísticos e morais na obra de Mia Couto”. In: Sylvie HanicotBourdier, Nicole Fourtané, Michèle Guiraud. (Org.). Normes et déviances dans le monde luso-hispanophone, Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 2014, p. 12-19.

Introdução



A emergência e a criação da teoria póscolonial surge da necessidade de tratar de maneira mais adequada as complexidades e os valores culturais de obras provenientes de países que sofreram o processo da colonização1. O cerne dessa literatura é o reexame de todos os pressupostos da época colonial e a proposta de um contra-discurso crítico de sua herança. Essa prática de contra-ataque criou uma estética de ruptura em relação aos cânones ocidentais dos países colonizadores e justamente por isso muitos teóricos associam o termo póscolonial ao de pósmoderno2. Na realidade os dois termos compartilham uma mesma corrente crítica que procura subverter toda forma autoritária e monocultural que dominam o gênero, o discurso e a história. As práticas formais que buscam a discontinuidade, a polifonia, a fratura da língua ou seja, tudo aquilo que procura desfazer os métodos antigos, são estéticas das duas escolas. Mesmo assim, é importante ressaltar que essas duas práticas não visam o mesmo efeito de leitura3. O póscolonialismo nutre uma relação mais estreita com um discurso político e histórico, enquanto o pósmodernismo está ligado a uma problematização baseada sobretudo na estética. Por conseguinte, nos caberia pensar a produção pócolonial como uma maneira de escrever que visa a desconstrução de uma pretensa universalidade dos modos ocidentais a partir de um certo posicionamento político e histórico onde a contravenção das normas traria o desejo de individualização. Nesse sentido, muito discutiu-se no campo dos estudos literários póscoloniais as formas de ruptura e desvios de normas. Georges Ngal4 e Pio Nkashama5 são dois 1



O primeiro sentido de póscolonial é essencialmente histórico. Ele nasce a partir da independência da Índia, em 19471, e designa o período que sucede as independências. Esse sentido da palavra, em relação a uma ruptura histórica, é hoje escrito com um traço que separa o prefixo do nome: pós-colonial. Já o termo póscolonial, sem traço de separação, se refere a uma escola teórico-crítica que trabalha sobre obras que têm um objetivo comum: destruir ou contestar os códigos coloniais. Cf. Jean-Marc MOURA, Littératures francophones et théorie postcoloniale, Paris, Presses universitaires de France, 2005. Bill ASHCROFT, Gareth GRIFFITHS et Hellen TIFFIN, The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literature, Routledge, Paris, 1989. Ian ADAM et Helen TIFFIN, Past the last post : theorizing postcolonialism and post-modernism, Calgary, University of Calgary press, 1990. 2 Jacqueline BARDOLPH, Études postcoloniales et littérature, Paris, H. Champion, 2002. 3 Ibidem, p. 46. 4 Georges NGAL, Création et rupture en littérature africaine, Paris, Éd. L’Harmattan, 1994. 5 Pius Nkashama NGANDU, op. cit.

intelectuais africanos que analisaram a questão de maneira interessante. Nkashama associa a ruptura à renovação temática, estrutural e estilística da criação literária. Na mesma linha, Ngal vê a ruptura como o « motor da criação literária »6 e propõe uma discussão em que associa a palavra criação (invenção, novidade) ao sentido de ruptura como modificação formal ou estilística do texto e da língua. Essas modificações, explica Ngal, estariam em relação com a conjuntura histórica, funcionando como uma espécie de espelho. Dessa maneira, a ideia de originalidade de cada período, em relação à ruptura com o precedente, corresponderia ao elo da literatura com as crises sucessivas da civilização. Se pensarmos genéricamente a história literária dos países colonizados, veremos que num primeiro momento valorizava-se a escrita de acordo com as normas e preceitos estabelecidos pela metrópole. A emancipação desse tipo de escrita se dá antes das independências, veja-se o movimento da Negritude e a vontade de Césaire “d’infléchir le français, de le transformer pour exprimer, disons : ce moi, ce moinègre, ce moi-créole, ce moi-martiniquais, ce moi-antillais 7”. Na década de 50, o fazer literário tem como centro das preocupações o protesto político, quando ocorre a segunda ruptura, de acordo com Ngal. É somente no período pós-independências que a emancipação se afirma de maneira mais clara e a palavra será um antídoto terapêutico que permitirá repensar o passado criticamente e propor uma construção de futuro, conforme explica Nkashama: L’écriture de la violence et de la transgression a donc pour fonction majeure de briser les mythes, d’ébranler les certitudes, de démystifier les vérités uniques, de régler leur compte aux contre-vérités, de rompre l’opacité et la non-transparence dans la communication, de briser la loi du silence, de combattre la langue de bois8.

Será somente na década de 80 que o escritor póscolonial poderá pensar mais universalmente e estéticamente no seu trabalho e se emancipar das amarras que o prendiam a um discurso engajado. Dessa maneira, escolhemos analisar nesse trabalho um livro do moçambicano Mia Couto, O último voo do flamingo, escrito em 2000. A produção desse autor começa na década de 1980 e se afirma nas décadas seguintes. Couto é conhecido sobretudo pelas suas inovações linguísticas, contudo muito ignorou-se das formas discursivas póscoloniais que ele desenvolve em seus livros. Por isso, na sua produção recente, ele escolheu trabalhar menos os neologismos da língua para não desviar a atenção do leitor de seu discurso. Nesse artigo pretendemos dialogar com essas duas formas de rupturas que o autor propõe. Num primeiro momento analisaremos as transgressões linguísticas para, em seguida, observar a contestação de normas e tabus da sociedade ocidental.

Brincriar9 a língua O debate sobre o uso da língua pelo autor póscolonial é bastante prolífico. O conceito de literatura menor criado por de Deleuze et Guattari para analisar a produçaõ de Kafka é muito interessante para iniciar um debate sobre a língua literária póscolonial. O autor tcheco, que opta por escrever em alemão, é o ponto de partida para a definição das condições de autonomia de toda literatura. A literatura menor seria, segundo os filósofos, uma desterritorialização cultural praticada numa

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Georges NGAL, Ibid, p. 8. 7 Aimé CESAIRE, Entretien avec J. Leiner, cité par Ngal, op.cit, p.24. 8 Mwatha Musanji NGALASSO, “Langage et violence dans la littérature africaine écrite en français ». In : Penser la violence. Notre Librairie, n.148, juillet-septembre 2002. 9 Escolhemos um neologismo próprio ao autor para designar o seu trabalho com a língua, ao mesmo tempo ele brinca com e cria as palavras.

língua maior. Língua maior entendida como língua de dominação, mais valorizada em detrimento de outras. O que é escrever em português (ou francês, inglês, alemão) em África senão buscar descrever outra cultura numa língua de dominação? É um exercício de minoração. Segundo Deleuze e Guattari o lugar da marginalidade em relação ao(s) centro(s) e a prática de falar na e para a cultura dominante (ou língua maior) em termos que a cultura dominante não possa assimilar imediatamente é o desafio da literatura menor. A missão dessa literatura é a de mudar as regras do jogo. A minoração é um devenir ou um processo pelo qual um povo, um grupo ou um indivíduo se separa da lei da maioria. Nesse processo, a minoração permite ao grupo de pôr um termo em relação a um conjunto definido em relação à maioridade, instaurando um devenir no qual a maioria não se reconhecerá mais10. Ao alterar a língua do colonizador, Mia Couto eleva o que no princípio era menor, a literatura de uma ex-colônia, a uma criação maior « ce qui existe n’est donc pas le majeur en soi, mais le procès d’admiration, de normalisation ou de domination qui élève tel variable à la position de majeur 11». O uso menor da língua por Mia Couto é o que define seu estilo. O crítico africano Ngalasso explica que « La violence sur la langue comme participation active à son élaboration, à son évolution et à son enrichissement, commence par le refus de la langue classique, excessivement normée, diffusée par l’école au détriment de la langue vivante propre à notre temps et à notre milieu 12». Esse ponto de vista se assemelha ao conceito de minoração de Deleuze et Guattari e explicita a operação realizada por Couto no seu desejo de tornar a língua mais viva e adequada ao seu tempo e seu meio. Muitos autores póscoloniais utilizam termos africanos, recriam o léxico, invertem a sintaxe, de maneira a que a língua estrangeira empregada pelo colonizado se torne estrangeira aos falantes nativos : « Caliban force la prison qu’est la langue de Prospéro […] Caliban continuera à comprendre la langue de Próspero. Mais la langue sera désormais propre à Caliban, Prospéro ne la comprendra plus que partiellement 13». As modificações na língua inseridas por Mia Couto no seus textos não pretendem de maneira nenhuma complicar ou hermetizar o discurso mas, pelo contrário, permitir que as palavras se encontrem e desvelem seus novos significados, mostrando-se mais adequadas às situações. Num primeiro momento, essas transgressões linguísticas nos causam estranhamento, efeito de minoração da língua. Em seguida, verificamos que esse trabalho compõe o estilo do escritor, caminhando em direção a majoração do menor. Nesse trabalho nos interessaremos pelos neologismos e o dividiremos em quatro tipos. Verificaremos como eles darão especificidade ao discurso e traduzirão de maneira mais precisa determinada ação, sentimento ou objeto. 1- Formação de verbos a partir de substantivos ou adverbios pela aglutinação de dois verbos: Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens: -Alguém que apanhe… a coisa, antes que ela seja atropelada.

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Jean Paul ENGELIBERT, Aux avant-postes du progrès- Essai sur l’œuvre de J. M Coetzee. Ed. Pulim, Limoges, 2003, p.72. 11 Anne SAUVAGNARGUES. Deleuze et l’art, PUF, Paris, 2005, p. 165. 12 Mwatha Musanji NGALASSO. “Langage et violence dans la littérature africaine écrite en français ». In : Penser la violence. Notre Librairie, n.148, juillet-septembre 2002. 13 Apud Mwatha Musanji NGALASSO, Ibidem.

-Atropelada ou atropilada ?14 Nesse trecho da primeira página do romance notamos a presença de três neologismos. Vocabulir : vocalizar + bulir, para ilustrar a maneira em que os personagens se aproximavam do pênis e se perguntavam baixinho e lentamente o que poderia ter acontecido. Num dado momento alguém instantaneia uma ordem. A palavra é criada por um advérbio, instante, seguido do sufixo de verbo ar. O verbo significaria a rapidez da ordem dada, no mesmo instante em que se percebe a confusão. A última palavra, atropilada, deriva de um jogo de palavras entre o verbo atropelar, e o vocábulo pila, sinônimo de pênis. Um personagem ironiza a situação do pênis na rua e fala do perido de ser atropelado, ou melhor atropilado. Uma outra criação verbal interessante deriva de varanda e ilustra a atividade preferida da tia de um dos personagens, que era de passar o dia sentada na varanda a observar o mundo: «Mas, tia, por que se varandeia tanto, de manhã até à noite 15?» 2 - Prefixação ou sufixação para criar substantivos com o significado inverso ao expresso pelo nome : «E logo-logo a multidão se irresponsabilizou. Não valia a pena empernar na confusão. (….) E desfalavam :16». Nesse trecho temos a criação do verbo irresponsabilizar pela adição do préfixo i- ao verbo responsabilizar, criando um verbo com o sentido inverso ao original, o mesmo processo de criação se encontra na fórmula desfalar, no qual o prefico des- altera o significado do verbo falar. Um outro neologismo do tipo ilustra o leito onde a mãe do narrador dorme sem a presença do marido : «leito desconjugal» (46), o prefixo des- mais uma vez inverte o significado original da palavra. 3-Substantivos e adjetivos formados por aglutinação e obtenção posterior de um duplo-sentido : « A gentania se agitava, bazarinhando17.» Gentania é uma palavra formada por gente e ventania. A palavra ganha melhor sentido na frase pois é acompanhada pelo verbo agitar, dessa maneira temos a imagem de uma multidão se agitando como um vento forte, correndo para ver o ocorrido no meio da rua. Um outro caso interessante de observar é : « Não é você que fala afluentemente as outras línguas ?». A aglutinação da palavra afluente (cursos de água que desanguam em outro maior) e da palavra fluência (relacionado a capacidade de se expressar em línguas estrangeiras) gera uma nova palavra de significado abundante, relacionando-se à incrível capacidade de fluência do narrador. Quando Mia Couto descreve o passado do administrador, em tempos de combate, ele cria uma nova palavra, outrísmos. Essa criação reside na tradução da palavra latina alter e dá mais clareza ao vocábulo, enfatizando a capacidade de se dar aos outros: «Era um homem que se entragava aos outros, capaz de outroísmos »18. 4- Adaptação da língua africana às egras morfológicas ou fonológicas da língua europeia

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Mia COUTO, O último voo do flamingo, São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 15. 15 Ibidem, p. 64. 16 Ibidem, p. 16. 17 Ibidem, p. 15. 18 Ibidem, p. 160.

« O motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente frustradas. O representante do mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma mão generosa para tchovar a viatura» 19. De acordo com o glossário que se encontra no fim do romance, nhenhenhar-se quer dizer emperrar e tchovar empurrar. Na realidade Mia Couto opera um aportuguesamento da língua africana ao acrescentar a partícula da desinência verbal AR à palavras africanas. Outro verbo do mesmo gênero é « quizumbar», formado por quizumba, que significa hiena, e a partícula verbal AR («dorme com os ouvidos de fora, quizumbando, sempre à espreita20»).

O riso a puta e o pinto Ao utilizar temas tabus da sociedade, muito ligados a uma moral religiosa cristã, Mia Couto consegue alcançar o objetivo da crítica pelo humor, recurso muito utilizado na escrita africana subsaariana para denunciar abusos na sociedade. Simédoh21 acredita que «le rire constitue une arme contre l’oppression, l’injustice et une dédramatisation du tragique et aussi un regard sur soi (…). On dénonce sans accuser, on réfute sans s’imposer, on déconstruit sans établir une autre vérité. Le rire devient un moyen de désarticuler la représentation de l’histoire africaine, de la conception intellectuelle et réactionnaire de l’être africain issue de la Négritude». Em Cheeky Fictions22, Reichl e Stein brincam com o título de uma das obras fundadoras dos estudos póscoloniais para defender a ideia que «The empire laughs back», porque a «laughter has always been seen as arising out of some kind of incompability or some incongruity23». Ora, Mia Couto com muita inteligência utiliza várias formas de discurso relacionadas ao humor para desenvolver suas críticas. O humor recai muitas vezes sobre desvios de normas, e por isso gera o riso, por usar o que não é esperado das convenções sociais. Jean Marc Moura, no seu livro Le sens littéraire de l’humour 24, explica como funcionam os mecanismos do humor. No caso de Couto, temos recorrentemente a sátira, que é um riso punitivo, onde leitor e escritor tomam distância do sujeito ou situação e o riso acaba constituindo uma correção moral com relação aos valores da sociedade. Dois casos podem ilustrar o propósito: a pensão onde se hospedará o italiano se chamava Martelo Proletário, ao acabar o regime socialista o novo governante dá seu nome, Jonas, ao hotel, guardando a palavra Martelo: pensão Martelo Jonas. Na narração desse episódio encontramos uma paródia do verso de Camões, «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», que Mia Couto modifica para «Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades», para indicar que o socialismo não faz diferir nada nos instintos humanos. Acabadas as regras do regime, a apropriação dos locais do Estado pelo atual chefe de Estado não é senão 19



Ibidem, p. 31. 20 Ibidem, p. 73. 21 Vincent Kokou SIMÉDOH, L’humour et l’ironie en littérature francophone subsaharienne : des enjeux critiques à une poétique du rire, New York ; Washington, D.C.-Baltimore , P. Lang, 2012, p. 146. 22 Susanne REICHL et Mark STEIN, Cheeky fictions : laughter and the postcolonial, Amsterdam ; New York, Pays-Bas, Rodopi, 2005. 23 Ibidem, p. 8. 24 Jean-Marc MOURA, Le sens littéraire de l’humour, Paris, France, Presses universitaires de France, 2010.

uma «desnudação» de suas vontades: se apropriar dos bens públicos. Esse recurso à sátira de Couto demonstra como o humor é inteligente arma de denúncia. Em relação aos personagens, os pênis decepados e a puta serão o princípio do desvio das normas feitos por Mia Couto no livro. Num primeiro momento serão enumerados numa série de sinônimos, para criar o riso, em seguida cada um revelerá sua força simbólica. O pinto representará a ruptura com a influência externa, a puta será a primeira voz marginalizada a ser escutada quanto ao misterioso caso de explosões de soldados da ONU. A partir da abertura dada pela puta, em seguida se ouvirão outras vozes subalternas, como a do velho Sulplício e a do feiticeiro Zeca Andorinho. Nesse sentido, Couto prolonga a discussão iniciada por Spivak25 sobre a possibilidade ou não do subalterno falar e de sua palavra ser ouvida. O discurso dos marginalizados será determinante para anular o discurso do poder e revelar verdades há muito veladas. Nos livros de Mia Couto abre-se o espaço para que o subalterno fale sem intermédio de uma voz da autoridade. A série de nomes que ilustram as diversas maneiras que temos de tratar temas ligados à sexualidade são traduzidos na sociedade em eufemismos para mostrar um certo pudor ou respeito. Mia Couto, por sua vez, se refere a eles de maneira bastante criativa e irônica, o que dá uma coesão bastante especial ao texto e ao potencial crítico que ele almeja. Uma série de referências ao pênis ilustra o propósito logo no início do livro: «apareceu um pénis decepado (…) sexo avulso e avultado (…) a coisa (…) o gajo ficou manco central (...)26». A primeira referência se dá com o nome mais coloquial, pênis, em seguida se diz do seu tamanho e utiliza-se a palavra sexo e depois coisa. Logo que o fato começa a se tornar mais popular, um cidadão não tarda em fazer disso uma piada, dizendo ser a pessoa que perdeu aquele membro um ¨manco central¨. Mais adiante um outro episódio, no qual as autoridades discutem, ocorre um episódio de humor ao se tratar do caso do pênis encontrado: « Refiro-me à questão pendente, ..., não fossem os estrangeiros pensar que o martelo não tinha cabo 27». Ao utilizar frases de duplo sentido, Mia Couto gera o cômico que não deveria haver em tal situação. Duas vezes se faz a menção à questão pendente, em clara relação ao problema. Em seguida uma alusão de que todo martelo tem um cabo, e assim o pênis sem dúvida pertenceria a alguém. Metáforas, ironia, sátira, todos os recursos relativos ao humor são utilizados para tratar do caso. Ao se referir à puta temos as seguintes fórmulas « Ana era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades, mulher bastante descapotável. (...) perita em medicina ilegal… desmeretriz »28 ou « Ela é uma má-vidista, mulher de prontopagamento»29. Nenhuma dessas fórmulas são utilizadas na linguagem corrente para se referir a uma prostituta. Somente a palavra desmeretriz e má-vidista se aproximam dos únicos sinônimos usuais aos quais podemos nos referir, mas com inversões nos prefixos que tornam mais real o significado das palavras. Meretriz é associado a um mérito, ser puta não seria mérito nenhum, por isso uma desmeretriz. Todos dizem das prostitutas de levarem boa vida, quando na verdade não sempre é assim, por isso Mia Couto utiliza a palavra má-vidista. Depois esse nome é associado aos termos da saúde pública: especialista e medicina-ilegal, devido ao fato de não

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Gayatri SPIVAK, Can the subaltern speak? : reflections on the history of an idea, New York, Columbia University Press, 2010. 26 Mia COUTO, op. cit., p. 15. 27 Ibid, p. 27. 28 Ibid. 29 Ibid, p. 167.

reconhecimento da profissão e sua tarefa de pronto atendimento é referida como pronto pagamento. Apresentando inicialmente esses personagens de maneira divertida, Mia Couto passa a adentrar questões de cunho político. Ana Deusqueira será a primeira a contestar a presença do investigador italiano para a resolução do mistério das explosões: « Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos cá. Agora, desapareceram cinco estrangeiros e já é o fim do mundo ?30». Essa questão, que ficará sem resposta, encerra o primeiro capítulo do livro e terá continuidade numa série de discursos proferidos pelos outros dois personagens marginalizados, Sulplício e Andorinho. Desvios pelas margens: a voz dos subalternos Sulplício foi exilado da sociedade por haver, no tempo colonial, trabalhado para os portugueses. Ele era fiscal de caça, profissão que continuou a seguir após a independência. Entretanto, um dia ele multa o afilhado do administrador da província, o que lhe causa muitos transtornos e a conseguinte exclusão social. Ao saber do contato de seu filho com a presença estrangeira, ele reaparece na cidade e questiona porque ele iria se juntar aos que lhe arruinaram a vida: os estrangeiros e os chefes? A partir desse momento se desfiam uma série de denúncias em relação ao tempo colonial, de transição e ao atual. Consciente dos desafios que iriam trazer as independências, Sulplício adverte à família: « Quando chegaram os da Revolução eles disseram que íamos ficar donos e mandantes. Todos se contentaram. Minha mãe, muito ela se contentou. Sulplício, porém, se encheu de medo. Matar o patrão ? Mais difícil era matar o escravo que vive dentro de nós. Agora, nem patrão, nem escravo » 31. Esse discurso revelador da condição do africano está em consonância ao do feiticeiro da vila, Zeca Andorinho: « Falam muito do colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam a nós acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós » 32. Os dois personagens revelam que o grande problema da colonização não foi a ocupação da terra, mas a colonização do pensamento dos africanos. Uma vez instalado o discurso colonial de inferioridade do negro e do africano, seria muito difícil ao povo assumir sua autonomia. Parafraseando o feiticeiro, a liberdade somente virá quando o sol secar a madeira e a fizer incendiar. O livro trata exatamente do momento que esse sol voltará a brilhar. Uma vez esclarecido o mistério das explosões, o administrador foge da cidade e pede ao seu assistente para abrir a barragem e deixar inundar a vila para apagar todos os traços que foram deixados por ele. O povo, ao descobrir o plano, se mobiliza para impedir que o desastre aconteça. O italiano quer participar do trabalho, mas é categoricamente impedido pelo pai do narrador, Sulplício, que diz que o problema de agora em diante será sempre resolvido pelos moçambicanos. Já senhores de si, eles poderiam assumir toda a resposabilidade de seus atos. Nesse sentido, podemos entender a metáfora das explosões. Os governos locais de Moçambique sempre receberam muita ajuda externa para que a pobreza e miséria fossem combatidas. Essa iniciativa, que num primeiro momento era para o bem, acabou criando um ciclo de dependência. A miséria era essencial para que o governo enriquecesse, como nos mostra o discurso de Estêvão Jonas, o administrador:

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Ibid, p. 34. 31 Ibid, p. 137. 32 Ibid, p. 154.

“[…] com os donativos da comunidade internacional, as coisas tinham mudado. […] Era preciso mostrar a população com a sua fome, com as suas doenças contaminosas. Lembro bem as suas palavras, Excelência: a nossa miséria está render bem. Para viver num país de pedintes, é preciso arregaçar as feridas, colocar à mostra os ossos salientes dos meninos. […] Essa é actual palavra de ordem: juntar os destroços, facilitar a visão do desastre. Estrangeiro de fora ou da capital deve poder apreciar toda aquela coitadeza sem despender grandes suores. É por isso os refugiados vivem há meses nas redondezas da administração, dando ares de sua desgraça” 33.

O plano do administrador de investir dinheiro na desminagem para financiar uma propaganda de interesse de proteção do povo foi desmascarado. A puta presenciou que os mesmos que retiravam, voltavam a pôr as minas. Ninguém se importava com os locais que morriam, o problema começa quando os estrangeiros são vítimas dessa artimanha. No livro não há esclarecimento se os soldados da ONU morrem vítimas dessas minas ou de causas sobrenaturais. A puta e o feiticeiro se declaram autores das explosões, cada um assumindo a responsabilidade. O que mais interessa nesse mistério é saber que os marginalizados estavam conscientes que havia de quebrarse o ciclo de dependência, e que isso só se faria se estrangeiros fossem afetados e afastados. Assim, cada vez que um estrangeiro explodia, diferentemente do que acontecia com os locais, o corpo desaparecia e restava somente o pinto como prova de sua existência. Esse episódio é muito significativo. Ele é o equivalente de um ato de castração, mas que ocorre às avessas. Perde-se o corpo, fica-se com o pênis. A figura do órgão genital é o símbolo de ruptura com o poder estrangeiro e determina o fim da violência infligida por eles (vale lembrar também que os soldados da força de paz da ONU foram várias vezes denunciados por estupros durante a ocupação africana). Em certa maneira uma maneira, podemos nos referir a maneira de lutar incitada por Franz Fanon34, que dizia que a violência só se combate com mais violência em termos coloniais. É no momento em que a ingerência neocolonial assume seu ápice, com invasão de tropas estrangeiras que acabam se sobrepondo ao poder local, que as explosões começam a acontecer. Essas explosões simbolizam a luta pelo fim da dominação, ato final de reinvidicação de independência. Conclusão Ao utilizar figuras consideradas marginais pela sociedade como arma de combate contra os males restantes do colonialismo, Mia Couto indica que a sociedade como um todo está implicada num mesmo ideal. A valorização da fala do velho e do feiticeiro autoriza de alguma maneira resgatar valores da sociedade tradicional que foram negados durante o período de ocupação colonial. Esse resgate de valores antigos é uma maneira de conjugar o antigo tradicional e o moderno colonial na sociedade contemporânea póscolonial. Autorizar a figura da prostituta como uma voz política ativa é uma maneira de alertar para a importância de uma democratização da participação popular que permite estabelecer um equilíbrio e constituir novos modelos. Nesse sentido de quebras de padrões do modelo colonial, o trabalho feito na língua por Mia Couto ilustra igualmente a transição de dois períodos e a cristalização de uma nova sociedade em que a língua está se formando de acordo com a vivência das pessoas. O português de Portugal não pode mais descrever a ex-colônia. É dever da colônia escrever sua própria língua portuguesa para se compreender e se afirmar. Todos os desvios da obra convergem para um mesmo ponto, o da construção e valorização do Moçambique.

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Ibid, p. 77. 34 Frantz FANON, , Les damnés de la terre, Paris, La Découverte, 2002.







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