Deus não está morto - e Nietzsche estava \"errado\" ...

July 24, 2017 | Autor: Raphael Reis | Categoria: Teologia, Cristianismo, Teologia Contemporânea, Filosofia da Religião, Ciências da Religião
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Deus não está morto – e Nietzsche estava “errado” ... Leiteiro, R.

Há duas semanas1 tive o privilégio de participar de um encontro jovem organizado por alguns integrantes da juventude da IBI2. Na ocasião, assistimos o filme “Deus não está morto”3 – e num programa desse tipo, como de praxe, pipoca e refrigerante não poderiam faltar! Logo em seguida participamos de um momento de reflexão conjunta e debate sobre as ideias expressas no filme, conforme o entendimento pessoal de cada um sobre o mesmo, correlacionando-as com a nossa realidade particular e a nossa vida cristã. Esse segundo momento voltado para discussão sobre o filme foi singularmente interessante, pois permitiu a cada jovem ali presente compartilhar com os demais experiências individuais que, de alguma forma, estivessem em consonância com a temática abordada no vídeo, e também desenvolver possíveis relações entre a proposta do filme, o cotidiano religioso e à vida cristã de maneira geral. Por motivos particulares decidi me omitir durante o momento de discussão sobre o filme, permanecendo atento a todas as reflexões e observações ali proferidas. Porém, através deste texto (que farei de tudo para não se tornar extenso) finalmente dividirei com os demais minhas próprias considerações acerca do filme, de modo mais organizado, refletido, elaborado e coeso. Mesmo que o acesso e/ou o interesse à leitura deste texto não alcancem a todos os presentes no referido encontro, a transcrição de minhas reflexões pessoais já cumpre seu “efeito libertador e transformador” na medida em que registra determinada compreensão da realidade vivida e experiência compartilhada – nem que seja para o próprio autor do texto! E mesmo que não mais exista a oportunidade de contraposição ou de associação às ideias aqui expressas da maneira direta e precisa como seria se esta exposição tivesse sido feita durante o encontro, atento para o caráter humilde e receptivo do meu “prazer pelo aprendizado”, sempre disposto a apreender novos conhecimentos e sempre ansioso por críticas e considerações acerca do que partilho. Portanto, aguardo sequiosamente o retorno desta leitura por parte dos interessados no debate em questão e cientes das colocações que serão apresentadas a seguir!

Sábado, dia 11 de outubro de 2014. O evento foi organizado por jovens líderes, não líderes e ex líderes da juventude da igreja IBI – Igreja Batista em Itacibá. 3 God’s not dead (2014), dirigido por Harold Cronk. 1 2

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Introdução

Embora o filme “Deus não está morto” tenha sido inspirado num caso verídico ocorrido entre um estudante universitário e um de seus professores4 – o qual foi levado à justiça exatamente por supostamente exigir que em sua aula seus alunos renunciassem à fé que tinham – ele retrata muito bem um fenômeno recente que tem ocorrido em algumas universidades dos EUA: o debate acirrado em torno da factibilidade e da objetividade de Deus sob o viés científico, sucedido principalmente entre ateístas5 e teístas6. É provável que isso seja resultado de um ensino superior amplamente voltado para a pesquisa científica. Nos EUA, devido à obrigatoriedade de créditos em disciplinas introdutórias relacionadas a conhecimentos gerais e não específicos, das quais a introdução à filosofia tem profunda relevância, os estudos voltados para a filosofia da ciência têm adquirido intenso destaque nesses debates7. Diferente do cenário universitário brasileiro, onde a filosofia é bastante voltada para os estudos da linguagem, como a hermenêutica8, por exemplo. Além desse eixo principal de discussão em torno do qual se desenvolve todo o enredo do filme – representado pelo confronto entre o jovem universitário Josh Wheaton (Shane Harper) e o professor de filosofia Jeffrey Radisson (Kevin Sorbo) – outras temáticas secundárias também podem ser notadas: o interesse do jovem universitário chinês Martin Yip (Paul Kwo) pelo conhecimento de Deus e, posteriormente, pela fé de Wheaton; a conversão e prática cristãs às escondidas por Ayisha (Hadeel Sittu), jovem oriunda de família tradicionalmente islâmica, e as consequências que ela enfrenta quando seu pai descobre sobre sua nova fé; a “perseguição” que, de certa forma, a blogueira Amy Ryan (Trisha LaFache) empreendia contra cristãos e sua experiência com Deus após descobrir que tinha câncer. Enfim, há outras, mas aqui não irei discorrer sobre essas tramas laterais que se desenrolam paralelamente à trama principal. Tampouco farei síntese da história do filme. O que tentarei fazer da maneira mais precisa possível é expor a seguir algumas reflexões que me ocorreram a partir da compreensão da temática principal do filme e sua relação com a minha

Disponível em: . 5 Aqueles que seguem ou que acreditam no ateísmo – doutrina que nega a existência de Deus, sobretudo a de um Deus pessoal. (Todos os verbetes e conceitos apresentados neste texto foram extraídos de JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.) 6 Aqueles que seguem ou que acreditam no teísmo – doutrina que afirma a existência de um Deus único, onipotente, onipresente e onisciente, criador do universo, tal como na tradição judaico-cristã. 7 Disponível em: . 8 Interpretação ou exegese dos textos antigos (teologia); esforço de interpretação científica de um texto difícil que exige uma explicação (Dilthey); reflexão filosófica interpretativa ou compreensiva sobre os símbolos e os mitos em geral (Ricoeur). 4

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percepção da fé cristã e suas representações nos dias atuais. Sendo assim, partirei do pressuposto de que o leitor tem conhecimento do filme, (o que não impede quem não tem de proceder com a leitura) de modo que farei poucas menções ao enredo (logo, não é preciso se preocupar com spoilers)9 utilizando-o apenas como articulador das ideias aqui apresentadas.

“Deus está morto”? Em “A gaia ciência”10 Nietzsche11 pela primeira vez utilizou a expressão que se tornaria das mais célebres – “Deus está morto”. Segundo Maingueneau12, fora de contexto o discurso não possui um sentido real. E nesse caso não poderia ser diferente, uma vez que a máxima de Nietzsche é comumente usada isoladamente do texto onde está inscrita. A alusão que é imediatamente feita a partir dessa expressão reduzida remonta a um discurso ateísta, ou até mesmo antiteísta, e um antiteísmo claramente cristão, já que o contexto no qual Nietzsche está inserido possui o cristianismo como pensamento predominante e a Igreja cristã como autoridade política e sociocultural determinante. Além disso, a religião cristã é a única cuja referência a uma possível morte do ícone máximo do sagrado (neste caso Deus na pessoa de Jesus Cristo) se faz clara a partir da expressão. Porém, mesmo que Nietzsche fosse um filósofo declaradamente ateu, quando analisamos a referida expressão em seu contexto original (ou ao menos em parte dele) percebemos que a intenção do autor não é pura e simplesmente de crítica à fé, mas há uma variedade de ideias que circundam o seu pensamento: “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue?”13.

Revelação de acontecimentos importantes ou mesmo do desfecho da trama de obras tais como filmes, livros, séries etc. 10 Friedrich Nietzsche, Die fröhliche Wissenschaft (1882). [Ed. bras.: A gaia ciência, São Paulo, Companhia das letras, 2012]. 11 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão nascido na Prússia, um dos pensadores mais originais do século XIX e um dos que mais influenciou o pensamento contemporâneo, sobretudo na Alemanha e na França. (Todas as referências e informações a filósofos e pensadores e autores da teologia foram extraídas de REALE, G; ANTISERI, D. História da filosofia [vols. 1,2 e 3]. São Paulo: Paulus, 1990, e de HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia [trad. L. Rehfeldt e Gládis Knak Rehfeldt]. Porto Alegre: Concórdia, 2003.) 12 Dominique Maingueneau, Analyser les textes de communication (Paris: Dunot, 1998). [Ed. bras.: Análise de textos de comunicação, São Paulo: Cortez: 2002 – trad. Cecília P. de Souza e Silva e Décio Rocha], p. 20. 13 Gott ist tot! Gott bleibt tot! Und wir haben ihn getötet! Wie trösten wir uns, die Mörder aller Mörder? Das Heiligste und Mächtigste, was die Welt bisher besaß, es ist unter unsern Messern verblutet - wer wischt dies Blut von uns ab? 9

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Para um ateu não há interesse em saber se Deus está morto ou não, afinal, para um ateu Deus não existe. Logo, tentar conceber a morte de uma entidade divina máxima não faz sentido no discurso ateísta. Então, por que Nietzsche se preocupa com isso? O ateísmo de Nietzsche nesse caso é mais um “ateísmo religioso”, haja vista que ele está essencialmente preocupado em entender o fenômeno religioso na vida dos indivíduos de seu tempo. Para ele pouco importa se Deus existe ou não, (afinal, isso é fato negativamente consumado para o filósofo alemão) isso não vem ao caso. O que ele percebe é que a modernidade14 afasta cada vez mais os indivíduos em relação ao sagrado, contribuindo assim para que as instituições religiosas deixem de cumprir o seu papel de mediadoras entre os indivíduos e o sagrado e suas representações. Marx15 contemplava um mesmo contexto no que diz respeito à relação entre os indivíduos e o sagrado, só que propício para finalidades distintas, como a emancipação e a libertação das amarras sociais e políticas. Um trecho muito conhecido de seu “Manifesto do Partido Comunista”16 é: “Tudo que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas”17. Talvez o advento da modernidade, e o egoísmo (individualismo) e o dinamismo inerentes a esse processo, realmente tenham contribuído para que a ideia de um sagrado estático e permanente se esgotasse. E essa subjetivação excessiva consequente da modernidade talvez tenha acometido a própria fé, incidindo inevitavelmente sobre a Igreja (enquanto instituição social responsável pelos fenômenos relacionados à fé) e fazendo com que esta detenha cada vez menos poder e controle sobre o espiritual. Habermas18, por outro lado, percebe a modernidade como um projeto inacabado que necessita ser levado adiante através da valorização da razão crítica, possibilitando ao homem a emancipação da ideologia e da dominação político-econômica. Para ele, na modernidade a vida religiosa, o Estado e a sociedade, assim como a ciência, a moral e a arte transformam-se igualmente em personificações do princípio da subjetividade. Porém, apesar da diluição das forças reconciliadoras e totalizantes entre os indivíduos, há sim a possibilidade de se encontrar a partir da razão objetividade e um poder unificador em meio ao amálgama de subjetividade e Característica daquilo que é moderno. Em um sentido geral, a modernidade se opõe ao classicismo, ao apego aos valores tradicionais, identificando-se com o nacionalismo, especialmente quanto ao espírito crítico, e com as ideias de progresso e renovação, pregando a libertação do indivíduo do obscurantismo e da ignorância através da difusão da ciência e da cultura em geral. 15 Karl Heinrich Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão nascido em Trier de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra teve um grande impacto em sua época e na formação do pensamento social e político contemporâneo. 16 Karl Marx, Manifest der Kommunistischen Partei (Londres, 1848). Disponível em: < http://copyfight.me/Acervo/livros/MARX,%20Karl.%20Manifesto%20do%20Partido%20Comunista,%2 0Gotha.pdf >. 17 Alles Ständische und Stehende verdampft, alles Heilige wird entweiht, und die Menschen sind endlich gezwungen, ihre Lebensstellung, ihre gegenseitigen Beziehungen mit nüchternen Augen anzusehen. 18 Jürgen Habermas (1929- ) é um filósofo alemão pertencente à chamada “segunda geração” da escola de Frankfurt. 14

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diversidade. Em sua obra “O discurso filosófico da modernidade”19, ele apresenta Hegel20 como primeiro filósofo a desenvolver um conceito claro de modernidade. Hegel se percebeu participante de um período de clara ruptura histórica com o momento imediatamente anterior. Atualmente, é possível perceber que tais elementos acabam incidindo de forma inconteste sobre o fenômeno religioso. E isso Ricoeur21 esclarece muito bem em sua análise crítica à fenomenologia da religião22. Mesmo com a relativização e a delimitação tênue da religião de modo geral e do sagrado em relação ao profano, é bastante possível observar nas relações e nas representações sociais cotidianas a presença de uma força unificadora dos sujeitos em função da sacralização de determinados paradigmas, não diretamente ligados ao fenômeno religioso (pelo contrário, no mais das vezes longe disso!). Creio não haver no Brasil, por exemplo, um poder reconciliador entre os indivíduos mais evidente e efetivo do que o futebol! Força que muitas vezes transcende o âmbito da racionalidade. Os clubes, os elencos, os ídolos, os signos, (como hinos e brasões) os estádios, o calendário anual, os horários de jogos, os campeonatos, as rivalidades. Enfim, tudo isso se faz sagrado para o torcedor. Nem mesmo as polêmicas de arbitragem e as duvidosas tramitações entre CBF23, STJD24 e clubes impedem que o torcedor mantenha sua “fé” no sistema esportivo futebolístico e na própria dinâmica do desporto. A rivalidade é tamanha que muitos torcedores se confrontam fisicamente (algumas vezes até à morte) em defesa do seu time! Por isso, mesmo que as formas e as categorias racionais não sejam absolutas e nem bem definidas, isso não significa que as representações e os anseios, quer sejam individuais quer sejam coletivos, acerca do sagrado e do profano, do particular e do público, do subjetivo e do objetivo ainda não permaneçam imersos e interpolados em meio à sociedade moderna e em seus múltiplos contextos e realidades histórico-sociais. É a partir dessa perspectiva da sociedade contemporânea e da religiosidade cristã que prosseguirei em minhas considerações sobre o filme e sobre a fé de maneira geral e de maneira pessoal, relacionando isso ao contexto recente de atividades na IBI no que concerne à espiritualidade, à juventude e à Missões.

Jürgen Habermas, Der philosophische diskurs der modern (Frankfurt: Suhrkamp Verias, 1985). [Ed. bras.: O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes, 2002 – trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento]. 20 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi o mais importante filósofo do idealismo alemão póskantiano, e um dos que mais influenciou o pensamento de sua época e o desenvolvimento posterior da filosofia. 21 Paul Ricoeur (1923-2005) foi um dos mais fecundos filósofos de nossa época. Preocupou-se em atingir e formular uma interpretação do ser, tomando como seu problema próprio o da hermenêutica – extração e interpretação do sentido. 22 Paul Ricoeur, Lectures 3: Aux frontières de la philosophie (Seuil, 1992). [Ed. bras.: Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, São Paulo: Loyola, 1996 – trad. Nicolás Nyimi Campanário], p. 165-205. 23 Confederação brasileira de futebol. 24 Superior tribunal de justiça desportiva. 19

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“Deus não está morto” ... A primeira atitude do professor Radisson que vale a pena destacar ocorre logo ao início de sua primeira aula de filosofia, na qual ele apresenta uma série de filósofos com os quais concorda em pelo menos um aspecto: a opinião na não existência de Deus. Sublinhei deliberadamente o termo porque, por convenção “todo ateu é, na verdade, um agnóstico25 que tem por opinião o ateísmo”. Ora, da mesma maneira que a existência objetiva e imediatamente verificável de Deus não pode ser corroborada a partir de métodos convencionalmente racionais, o oposto também ocorre. Na perspectiva heideggeriana26, da mesma forma como não é possível provar a existência de Deus, também não é possível provar sua inexistência – e isso o sr. Wheaton deixa claro logo na primeira exposição em defesa de sua fé. Quando, então, o professor lista no quadro uma série de filósofos que vai desde Demócrito27 até Chomsky28 e Dawkins29, – este último considerado por muitos como o grande pensador do ateísmo militante contemporâneo – deliberadamente considera aqueles pensadores com os quais concorda em detrimento de importantes filósofos da história do pensamento ocidental indo desde Platão30 até Descartes31 e Plantinga32, os quais assumem um posicionamento efetivamente contrário ao ateísmo. Em suma, o objetivo do professor não era simplesmente deixar o debate (ateísmo x teísmo – a ótica cristã acaba assumindo posição preponderante nos embates em vista da posição teísta) de lado para que outras questões filosóficas mais relevantes pudessem ser mediadas. Ele pretendia na verdade solapar a própria reflexão finalizando-a como conclusa negativamente, isto é, ele pretendia partir do pressuposto inexorável de que o ateísmo era absolutamente a “verdade”. A “tacada de mestre” da abordagem proposta pelo filme em sintonia com o próprio título da obra não está na expressão “Deus não está morto” como uma concepção conclusivamente atestada e como um axioma definitivo, e sim em sua inesgotável capacidade de meditação. Quer Indivíduo que declara ser incognoscível tudo o que se encontra para além da experiência sensível. Referente a Martin Heidegger (1889-1973) – um dos filósofos alemães mais importantes e influentes do século passado. 27 Demócrito (c.460-c.370 a.C) foi um filósofo grego (nascido em Abdera) atomista e considerado o primeiro pensador materialista. 28 Noam Chomsky (1928- ) é um linguista e filósofo estadunidense, (nascido na Filadélfia) professor do Massachusetts Institute of Technology, (MIT) e criador da gramática gerativa-transformacional, uma das principais correntes teóricas da linguística contemporânea. 29 Clinton Richard Dawkins (1941- ) é um etnólogo, biólogo evolutivo e escritor britânico (nascido em Nairóbi). Ateu declarado, vice-presidente da Associação Humanista Britânica e bem conhecido por suas críticas ao criacionismo e ao “design inteligente”. 30 Platão (c.427-c.348 a.C) foi um dos mais importantes filósofos gregos. Foi discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles. Fundou a Academia e originou o pensamento que recebeu seu nome – platonismo. 31 René Descartes (1596-1650) foi um matemático e filósofo racionalista francês, de origem nobre, segundo o qual a metafísica é fundadora de todo saber verdadeiro. 32 Alvin Carl Plantinga (1932- ) é um filósofo estadunidense (nascido em Michigan) dedicado ao campo da epistemologia, da metafísica e da filosofia da religião. 25 26

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dizer, como o próprio Wheaton faz ao citar a conclusão de Hawking33 sobre o papel da filosofia, (de acordo com o qual a filosofia não teria valor útil) a filosofia deve ser encarada não pelo seu papel estritamente metodológico e utilitário, mas sim pelo seu valor cognoscível de buscar o conhecimento pelo próprio conhecimento em si, pelo prazer no aprendizado de maneira constante e indiscriminada – como condução à sabedoria. Tanto que existe uma filosofia da ciência, na medida em que a própria Ciência necessita refletir sobre seus objetivos, seus métodos analíticos e sobre a própria compreensão de si. Ou mesmo a sociedade necessita refletir sobre o papel da Ciência (cada vez mais capital) na atualidade. Por isso talvez fosse muito mais pertinente substituir o termo “Deus” presente no título do filme pelo seu referente propriamente dito associado à conclusão pretendida pela exposição cinematográfica em questão: “o debate não está morto”. E, aí sim, nos aproximaríamos muito mais tanto da crítica feita por Nietzsche (uma crítica menos teológica e mais histórico-contextual) quanto das críticas feitas por boa parte dos filósofos da modernidade em relação ao “esvaziamento” do sagrado no nível das representações. O filme não pretende “provar” a existência de Deus utilizando-se de argumentos opostos ao discurso empirista e cientificista. O filme pretende demonstrar que a existência ou não de Deus independe das estruturas impostas pela ciência ou por quaisquer parâmetros cognitivos fundamentalmente empíricos. Exatamente por isso no campo da filosofia, ao menos, o debate está longe de ter qualquer tipo de resposta conclusiva – e o “fim” filosófico não se trata disso impreterivelmente! *** A religião de um modo mais amplo e o cristianismo especificamente funcionam a partir de um dispositivo compreensivo intrínseco que escapa à ciência: a fé. Na religião cristã protestante isso é ainda mais notável através da tradição luterana e os conceitos de Sola fide34 e de Sola scriptura35. Na epístola aos Hebreus está inscrita uma máxima bastante conhecida pelos cristãos: “Ora, sem fé é impossível agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se aproxima de

Stephen William Hawking (1942- ) é um físico teórico e cosmólogo britânico, um dos mais consagrados cientistas da atualidade. 34 Sola fide (somente a fé) é um conceito luterano segundo o qual a justificação da vida cristã ocorre tão somente pela fé. Ocorre não com base no mérito humano, mas apenas por causa da justiça de Cristo. Esse conceito tem sua principal base bíblica em “concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei” (Rm 3:28). Aqui, entretanto, fazemos referência a esse conceito devido ao corolário da fé nesse aspecto, de não estar sujeita a ações ou recursos que lhe são externos. 35 Sola scriptura (somente a Escritura) é um conceito que remonta à Reforma e que diz respeito à Teologia da Palavra, isto é, somente a Escritura Sagrada é capaz de definir os parâmetros de fé e de prática cristãs, independentemente da tradição. Aqui nos interessa a característica que imputa ao texto sagrado autoridade de compreensão sobre si mesmo, sem a necessidade de mediações externas. 33

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Deus creia que ele existe [...]”36. A satisfação divina é claramente associada à fé, sem a qual o crente não pode agradar a Deus. O texto vai ainda mais longe ao expandir a necessidade da fé, inclusive, à própria existência divina. Antes de agradar a Deus e se aproximar dEle, é preciso acreditar que ele existe, e isso requer fé. A própria Palavra entende que Deus não pode ser contemplado sem o recurso da fé. E ela mesma predispõe seus termos acerca desse recurso. Ainda em Hebreus, no primeiro versículo do mesmo capítulo: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem”37. A certeza segura naquilo que se espera ser verdade, factível, verossímil (portanto, anterior a qualquer intervenção racional, o que não a torna necessariamente irracional) é a própria confirmação dessa certeza não visível, que escapa ao sentido imediato. Ou seja, a própria fé legitima a si mesma. Apesar de haver uma infinidade de excelentes estudos sobre a fé tendo como base a Bíblia em sua integralidade, esta breve reflexão por não pretender avançar nesse sentido devido à finalidade e à viabilidade, perscrutará apenas o âmbito do próprio texto sagrado, como recomenda Spurgeon38. Dessa forma, se como afirma o escritor da epístola a fé é uma certeza segura em si mesma que deve necessariamente servir como base de si sem que haja alguma mediação externa de reforço, isto é, sem visibilidade imediata que lhe sirva de sustento e, ao mesmo tempo, sem ela é impossível agradar a Deus, (que seria o fim mesmo do ser humano) “provar” ou “tentar provar” a existência de Deus, quer seja pelos meios filosóficos quer seja pelo método científico, seria justamente ir contra o próprio princípio de fé do cristianismo. Na medida em que a fé se basta em si mesma, a busca de meios externos que lhe sirvam de assimilação está em completo desacordo com o que as Escrituras estipulam acerca da fé, logo, em pleno desacordo com a própria fé. A fé cristã, dessa forma, não tem conveniência de se justapor no âmbito da cientificidade. E tentar recorrer a esse ingresso no campo da razão é para o crente não apenas irrelevante como também proceder contrariamente à sua própria fé. Muitos “charlatães” têm usado atualmente conhecimentos avançados em disciplinas, pesquisas e descobertas científicas para refutar discursos contrários ao criacionismo39 e promover pseudo comprovações de que os acontecimentos bíblicos podem ser verificados à luz da ciência. Sem nos aprofundarmos na retenção do conceito de ciência enquanto método

Hb 11:6. Todas as referências bíblicas deste texto foram extraídas da versão online da Bíblia João Ferreira de Almeida atualizada, Disponível em: . Acesso em 18/10/2014. 37 Hb 11:1. 38 Charles Haddon Spurgeon, All of Grace (1984). [Ed. bras.: Tudo de graça, São Paulo: Ministérios Refúgio, 2010 – trad. Wadislau Martins Gomes]. Spurgeon (1834-1892) foi um importante pregador batista reformado britânico. 39 Doutrina teológico-metafísica de inspiração judaico-cristã, segundo a qual não somente Deus tirou o universo do nada, (ex nihilo) isto é, o produziu sem matéria preexistente, mas criou para cada indivíduo uma alma imortal. 36

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científico, somente a possibilidade de verificação, da constatação de algo que deveria ser única e exclusivamente objeto da fé, já tornaria tais exercícios escusos. E o que é pior: esses ditos “doutores” e especialistas nos eventos bíblicos à luz da Ciência têm arregimentado um grupo considerável de crentes que pensa estar aditando sua fé, quando na verdade a estão minando. Numa lógica grosseira poderíamos compreender a fé em relação à comprovação científica do seguinte modo: quanto mais comprovação científica menos fé, sendo que o inverso não ocorre inevitavelmente. O problema não é se os eventos bíblicos podem ou não ser comprovados através da Ciência moderna. O problema é que a presença hipotética de tal comprovação aja a priori no entendimento do indivíduo. Uma vez que o indivíduo passe a acreditar na Palavra e na tradição religiosa cristã porque há um sentido racional que acompanhe e sustente essa aceitação, ele não mais se baseia única e exclusivamente na fé, a qual independe dessa base, para fazê-lo. A fé não permite que outro dispositivo lhe sirva de estrutura para sua existência a não ser ela mesma. Quem crê em algo porque esse algo é possível, ou melhor, é factível a partir de determinados procedimentos analíticos empiricamente observáveis (como o método científico, por exemplo) não crê de fato, mas tem plena certeza ou certeza razoável de que o procedimento funciona ou de que satisfaz as aspirações propostas. Nesse caso, o que há na realidade é uma maior “credibilidade” no meio pelo qual se chegou a determinada conclusão do que na conclusão de fato. Isso não é fé. A fé não age conclusivamente, mas sim fundamentalmente. Ela serve de base, de pressuposto para a própria aceitação. Por isso, pensar, por exemplo, numa situação ideal em que toda a Bíblia, porventura, tenha sido comprovada cientificamente, me leva a indagar se os indivíduos cristianizados a partir de então seriam convertidos pela fé (através do Espírito Santo) ou pela Ciência (através de métodos testados e comprovados objetivamente, portanto, visíveis e imediatamente averiguáveis)! Eu arriscaria dizendo – e deixo claro que isso é um posicionamento absolutamente particular! – que o crente (o indivíduo que tem fé) é justamente aquele que não se importa com a factibilidade dos eventos bíblicos, isto é, com a tradução da Bíblia à luz da Ciência. O crente não precisa saber se aquilo que aconteceu no “Velho Testamento” (ou no Novo) foi testado e comprovado por cientistas contemporâneos ou se os debates acadêmicos atuais sobre a existência ou não de Deus levaram o pensamento teísta a um resultado favorável. O crente simplesmente crê naqueles eventos e na veracidade do pensamento cristão através da fé. E isso lhe é suficiente. Enfim, discussões no âmbito da razão e seus resultados para a confirmação ou contestação do sagrado pouco influem na fé. Se influir, não é fé. Sendo assim, o crente não deve se preocupar com esses tipos de debate. Eles sempre interferem de modo negativo na fé, não na

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medida em que a abalam ou podem vir a abalar, mas na medida em que tornam a fé individual objeto – logo, suscetível a reforços cognitivos que lhe são externos – e não causa. *** Ao contrário do “eu conheço Deus pelo desconhecimento” presente na teologia negativa40 de Pseudo-Dionísio, o Areopagita41, por exemplo, que acaba tornando o sagrado algo distante de nós, o desconhecimento de Deus em sua totalidade (uma vez que é ser perfeito e infinito) é suprido a partir do conhecimento ínfimo, porém satisfatório e imensurável, que nos é possível por meio da experiência individual e especial com Deus. Experiência essa que não se resumiria à observação imediata, clara e objetiva dos fenômenos e do objeto, mas, muito além disso, se concretizaria através da compreensão subjetiva dos mesmos levando em conta a percepção singular e o sentido individual da realidade. É por isso que cada um tem sua própria experiência com Deus: as representações de intimidade com o divino e a apreensão do sagrado são processos únicos, mas não necessariamente irrepetíveis. Sem incorrer em um discurso modernizante do sagrado alijando-o ao próprio egoísmo decorrente da modernidade – afinal, Deus e a presença de Deus podem ser percebidos objetivamente pelos crentes em situações determinadas e através de fenômenos e representações específicas (como num culto, numa música, num filme) – cada experiência com Deus é singular, individual, especial e pode ser bem melhor identificada através desse exame subjetivo. Se a fé, portanto, funciona como dispositivo fundamental sobre si mesma sem depender de mecanismos externos de reforço e de legitimação, somente “a fé prova a fé”. Por isso, quando essas experiências particulares e o autoexame sobre a própria fé e as suas representações cotidianas (testemunhos de vida, livramentos, provações, milagres etc) são compartilhados com outros irmãos em Cristo por meio da comunhão, não só a fé e a adoração comunitárias se desenvolvem mas também a fé particular de cada ouvinte dessas experiências alheias. Um professor de filosofia medieval42 com quem tive aulas costumava citar o exemplo da cartilha de catequese, que com o intuito de ensinar os iniciados na fé católica a aprender sobre Deus, tinha o obscuro desafio de tentar conceituar e definir Deus: “‘Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra’. Ele é Senhor e Pai. Amigo e Companheiro. Deus é um espírito [...]”. Enfim, através de uma série de categorias abstratas o objeto se torna gradualmente

Doutrina segundo a qual não podemos ter um conhecimento direto de Deus e de seus atributos, dados os limites da razão humana, porém podemos conhecê-lo através de seus efeitos na criação. 41 Autor desconhecido a quem foi atribuída uma série de escritos de finais do século V inspirados na direção da filosofia neoplatônica adaptada às exigências cristãs – servida da terminologia dos mistérios. Primeiramente foi identificado como Dionísio Areopagita, transformado pela pregação de Paulo no Areópago de Atenas, mas a crítica interna e externa dos escritos tornou impossível sua datação nesse período. 42 Jorge Augusto da Silva Santos, (“Bento” da Silva Santos) professor do Departamento de Filosofia (UFES). 40

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mais complexo e distante, já que é mediado exclusivamente a partir do intelecto. Sem a experiência um objeto não pode ser verdadeira e totalmente conhecido. Por outro lado, ao abordar um pouco sobre a filosofia medieval, o professor Bento atentava para o fato de os grandes filósofos desse período, preponderantemente ligados à Igreja, desde Agostinho43 até Eckart44, já tentarem conhecer Deus para além de categorias objetivas pouco esclarecedoras, e sim através da fé em sua abordagem prática, como a oração, a leitura da Palavra, o jejum, a meditação e o exercício do aprendizado – o conhecimento de Deus pelos seus atributos intimamente percebidos a partir da experiência pessoal. Para aqueles pensadores era imprescindível entender Deus por intermédio da experimentação, do contato particular com o desconhecido, com o “Deus de mistério”. Somente a intimidade, constante e exercitada, indo além de doutrina e tradição, poderia trazer ao indivíduo o verdadeiro conhecimento de Deus e não somente das representações do divino. Essa “experiência individual com Deus” possibilitaria ainda acesso ao sagrado de maneira única, facultando a cada crente um conhecimento singular e especial de Deus. Isso era algo bastante perigoso de ser ensinado no contexto medieval, visto que o domínio do sagrado e da salvação por parte da Igreja e do ministério da fé e de suas representações pelas autoridades eclesiásticas eram incontestáveis e difíceis de ser contornados sem que houvesse repreensões. O mistério divino, entretanto, levado às últimas consequências com Calvino45 tornava o mundo e tudo que lhe envolve inseridos dentro de uma racionalidade que escapa ao ser humano. Agostinho, por exemplo, já no século V havia percebido que muitos fieis, por mais piedosos, fervorosos e verdadeiros seguidores da fé cristã que fossem, ainda assim enfrentavam toda uma vida de males e de sofrimento. Muitos morriam em estado de completa miséria e abandono. Sua conclusão, ao refutar aqueles que questionavam a existência do mal no mundo apesar de este ter sido criado pelo Sumo Bem que é Deus, foi a de projetar a existência do mal no livre arbítrio da vontade humana e afirmar categoricamente que a “cidade dos homens”, em oposição à “cidade de Deus”, era um período momentâneo e passageiro pelo qual todos os indivíduos passariam. O verdadeiro sentido da vida era obter a salvação para passar a eternidade ao lado do Pai: a vida terrena não tinha importância, somente a vida eterna é que importava46. Portanto, todos os sofrimentos referentes à vida terrena não tinham relevância. A verdadeira vida (a eterna) é que

Aurélio Agostinho, Santo Agostinho ou Agostinho de Hipona, (354-430) foi um bispo da igreja cristã, cidade de Hipona, e um dos mais importantes filósofos do período patrístico. 44 Johann Eckhart (1260-1327) foi um místico cristão alemão medieval, considerado um dos iniciadores da filosofia alemã e um dos forjadores do idioma alemão como linguagem filosófica e teológica. 45 João Calvino (1509-1564) foi um teólogo e reformador francês. Humanista, rompeu com a Igreja de Roma em 1533 depois de uma experiência religiosa em que acreditou ter recebido a missão de restaurar a Igreja a sua pureza primitiva. 46 Augustinus, De civitati Dei (413-427). [Ed. port.: A cidade de Deus, Lisboa: Gulbenkian, 1996 – trad. J. Dias Pereira]. 43

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deveria ser considerada. E esta só seria efetivada ao lado de Deus após a morte da carne e a consequente “libertação” do espírito para que este passasse toda a eternidade ao lado do Pai47. Isso lembra bastante um sermão do pr. Julio Brotto que certa vez ouvi num culto matutino: nós não aceitamos a Jesus Cristo e o adoramos para passar em concursos, para ter o carro do ano, para não ser acometido por câncer ou mesmo para não ser atingido por balas perdidas, nós O aceitamos como único e suficiente salvador para sermos salvos do pecado e obtermos a vida eterna. É claro que oração e fé ao que espera no Senhor pode sim proporcionar conquistas como um bom emprego, bens materiais e livramentos e curas de doenças impossíveis à medicina. Entretanto, isso tudo não se trata do fim último de nossas vidas como cristãos, mas consequências possíveis ou não de uma vida de amor e intimidade com Cristo48. Obviamente posso não ter utilizado exatamente as mesmas palavras do pastor na ocasião, mas a reflexão por ele conduzida jamais me escapou à memória. Lutero49, como bom monge agostiniano que era, retomou muito do pensamento de Agostinho. Contudo, ao contrário do bispo, prescindiu a razão do processo, tornando a fé o dispositivo excepcional da teologia cristã (protestante). Os principais reformadores, como Lutero e Calvino, entendiam a razão como perigosa para a compreensão da fé e declaravam decisivamente que a razão humana não poderia servir como base para se compreender Deus e sua Palavra. O homem é imperfeito, Deus é perfeito. Logo, a razão de Deus é inconcebível ao homem. Isso serviu de ponto articulador entre a fé e a moralidade: se uma criança tão jovem passa seus primeiros anos de vida a padecer doente e morre tão nova, todo esse mal escapa ao livre arbítrio e atinge a Deus, não como forma de demonstrar uma suposta crueldade e injustiça da parte divina, “mas foi para que nela se manifestassem as obras de Deus”50. Os motivos de Deus são, dessa forma, incompreensíveis à mente humana. Sua razão, imperscrutável. Como ser perfeito, Seu entendimento da totalidade do universo não pode ser reduzido à assimilação tão restrita que o homem, finito e imperfeito, tem de si mesmo e do mundo que o cerca. Mais uma vez Deus é idealizado como o Totalmente Outro. O desconhecido. O mistério. Incapaz de ser concebido pelo mero e reduzido entendimento humano. Se, no entanto, o sagrado se torna inacessível pela razão, é pela fé que o indivíduo pode ter acesso a esse mistério, por meio da experiência pessoal – da intimidade com Deus. Não desvendando-o, mas deleitando-se nEle. Ou seja, não é possível conhecer Deus indiretamente,

Agostinho, talvez devido seu passado maniqueísta, acreditava que o corpo físico (carne) era um mero receptáculo (“prisão”) do espírito; as concupiscências e tendência para o mal (devido ao pecado original) atreladas à carne deveriam ser superadas pelo espírito. 48 Basta lembrar do apóstolo Paulo que, apesar do exemplo de intimidade com Deus e de toda dedicação à Sua obra, ainda assim teve que conviver durante toda sua vida com um “espinho na carne” (2 Co 12:7). 49 Martinho Lutero (1483-1546) foi um monge agostiniano e teólogo alemão – um dos principais artífices da Reforma Protestante. 50 Referência à passagem de Jo 9:3. 47

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seja por categorias abstratas seja por intermédio de outrem, mas somente diretamente, mediante a experimentação particular. Assim, cada um tem necessariamente uma experiência diferente e única com Deus, que pode ser compartilhada, mas jamais reproduzida. Tal experiência permite a qualquer um ter acesso a Deus e conhecê-Lo em determinada dimensão e realidade. A abstração de qualidades de Deus, isto é, a definição de Deus pelos seus atributos pode auxiliar a percepção do sagrado para aqueles cuja experiência com o divino é distante. No entanto, como essa experiência íntima e inexprimível não pode ser retratada sob as formas de representação dos sentidos socialmente reconhecidas pelas pessoas, (dentre as quais a linguagem ocupa lugar primordial) quando alguém diz “Deus é amor”, uma pessoa que nunca amou ou que nunca tenha tido uma real experiência de ser amada ou de ter amado alguém (e as pessoas demonstram o amor de maneiras variadas) irá desconhecer Deus à maneira que lhe foi exibida. Ao abstrair de Deus qualidades isoladas que impedem a compreensão da dimensão total do Real, a função de Deus enquanto paradigma totalizante e reconciliador das diversas subjetividades deixa de existir e, concomitantemente, há ainda o risco de ser muito menos preciso do que se pretende ao apresentar Deus àquele que não O conhece. “Deus é justo”. Ora, quem não conhece a justiça [como um brasileiro, por exemplo!] não tem a real dimensão da justiça divina ou mesmo da personalidade de Deus enquanto justo. Nem preciso falar sobre “Deus é perfeito” ... Para Descartes esse axioma racional categoricamente estabelecido por si só já provaria a existência de Deus, uma vez que toda a ideia submetida à razão estabelece por si só uma conexão com o Real (é o famoso cogito ergo sum)51. No entanto, o desconhecimento do que é perfeito, pelo contrário, nos afastaria de sua realidade. Portanto, saber que Deus é perfeito em nada nos ajuda a conhecer a Deus, porque somos imperfeitos e desconhecemos a perfeição. A intimidade, por sua vez, é que nos permite conhecer Deus, jamais em sua plenitude, mas nos pode saciar completamente. Por isso um ateu não pode conceber a existência de Deus: lhe falta intimidade, ou seja, lhe falta aproximar-se de Deus. E para aproximar-se de Deus é preciso crer que Ele existe. E para isso é preciso ter fé. E é importante não confundir ateu com cristão decepcionado com Deus. Nesse sentido eu até admito ter um ponto de vista distinto do meu amado pr. Julio Brotto: diferentemente do que é possível perceber em algumas de suas pregações, já tive a oportunidade de conhecer pessoas que se diziam decepcionadas com Deus e não necessariamente com a igreja ou com os irmãos em Cristo. O que me faz refletir: ou elas nunca tiveram uma real experiência com Deus e por isso se dizem decepcionadas (não com Deus, a quem nunca conheceram, mas com a ineficácia de sua religiosidade individual) ou elas já tiveram e mesmo assim, em sua intimidade, se decepcionaram de alguma maneira, com a decisão de Deus sobre suas vidas. Não podemos nos 51

“Penso, logo existo”.

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precipitar e generalizar afirmando peremptoriamente que todas as pessoas que se dizem decepcionadas com Deus nunca tiveram uma real experiência com Deus. Ora, por um lado o oposto não ocorre necessariamente. Eu, por exemplo, apesar de ter nascido e de ter sido criado na igreja e na comunhão dos irmãos só fui ter uma real experiência com Deus muito mais tarde, inclusive após conversão e batismo. E mesmo assim, antes disso nunca me senti decepcionado com Deus. Por outro lado, seria insensatez afirmar que todos aqueles que já tiveram uma real experiência e intimidade com Deus jamais se sentiram abandonados e desamparados, insatisfeitos com Deus de alguma forma, seja por falta de exercício da fé seja por falta de longanimidade ou por outros motivos. Um exemplo modelar é o de Jesus no ápice da crucificação, sentindo-se desamparado pelo Pai em meio a tanto sofrimento52. Sentir-se sozinho, desamparado e abandonado por Deus, não significa propriamente descrer nEle. Por um momento, nos sentimos impacientes e atordoados, quando, entretanto, nos recordamos dos muitos momentos difíceis que tivemos e que ao esperar em Deus perseveramos como nunca imaginávamos conseguir, deixamos a angústia de lado e exercitamos nossa fé simplesmente entregando nossos problemas a Cristo e esperando integralmente nEle. E é nesse exercitar, nesse agir, nesse praticar que temos cada vez mais oportunidade de conhecer verdadeiramente a Deus. E, no mesmo instante, possibilitamos que outros também O conheçam através de nossas vidas, mais do que pelo exemplo, pelas nossas atitudes de amor.

“Pra concluir...” – como disse Jackson53 É importante evitar a postura generalizante de afirmar que “todo ateu é, na verdade, uma pessoa que tem problemas com Deus ou odeia Deus ou tem problemas com a religião ou com a religiosidade”. São situações diferentes. Há ateus sinceros (talvez a maior parte verdadeiramente o seja) que realmente descreem da existência de uma divindade una, perfeita, responsável pela criação de todo universo e em relação íntima potencial com cada criatura. A verdade é que o posicionamento ateu não possui um atributo proselitista intrínseco, de maneira que a maior parte dos ateus não se preocupa em convencer as pessoas a comungarem sua ótica particular de que “Deus não existe”. Mas há, é claro, o ateísmo militante, bastante em voga atualmente. Sua postura engajada a fim de obter sucesso nos debates acerca da existência ou não de Deus com o intuito de difundir o pensamento ateísta é muito mais um reflexo de posturas particulares contrárias à religião e à religiosidade em geral, não necessariamente Referência à passagem de Mc 15:34. Brincadeira que remete ao encontro jovem: Jackson iniciou sua fala dando a ideia de conclusão sobre todas as reflexões apresentadas e isso gerou divertimento em todos ali presentes porque ainda havia pessoas para falar. Sigo seu exemplo e me dirijo às considerações finais, sem mais delongas! 52 53

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contra Deus. Afinal, para eles “Deus não existe”, portanto, não haveria motivo para serem contrários a algo que, para eles, não passaria de “lenda” ou “algo existente somente no imaginário coletivo”. E há também, obviamente, muitos indivíduos pouco críticos, pseudo intelectuais ou simplesmente que não creem na existência de Deus e agem de forma agressiva e muitas vezes desrespeitosa para com as religiões e para com a religiosidade das pessoas. No caso do filme, o professor Radisson se revelou um indivíduo que tentava propriamente “crer em sua descrença”. Alguém que já havia crido e recorrido a Deus, mas que uma vez não atendido tentou de todas as formas omitir de sua vida a crença em tal divindade. Mas pensar no ateísmo estritamente a partir da abordagem proposta pelo filme seria incorrer num reducionismo pueril. Ora, assim como há muitos indivíduos que se dizem ateus e na realidade pouco sabem sobre o assunto ou nunca pararam para refletir verdadeiramente sobre a existência de Deus, (o que não torna sua escolha pessoal menos legítima) há também muitos indivíduos que se dizem crentes (cristãos, por exemplo) e que frequentam igrejas, inclusive, mas nunca tiveram uma real experiência com Deus ou sequer sabem o que fazem por lá! (O que, da mesma forma, não torna sua decisão menos legítima) E mais, muitos vestem seus “trajes de crente” enquanto estão em momento litúrgico, (culto coletivo) porém, na vivência cotidiana subvertem – sem reconhecer suas falhas e sem estabelecer com Deus um propósito de mudança – tudo o que a Palavra ensina e o que ouvem nas mensagens pregadas, nos cânticos e hinos entoados e nas orações procedidas, acabando por desacreditar a Igreja de Cristo e tudo que ela anuncia. Mas ainda assim a Igreja acolhe a todos. Pois, uma vez que fazemos parte do Corpo de Cristo, mesmo com nossos problemas e defeitos pessoais, é somente na comunhão da igreja, por meio do amor ensinado por Cristo, que podemos ajudar uns aos outros, superar os desafios, exercitar a fé e melhorar como indivíduos, aprendendo a amar o próximo, independentemente da situação. Afinal, Jesus veio para os enfermos e não para os sãos54 (se é que há algum são entre nós!). O que falta ao ateu é o fundamental: fé. Pensar Deus rigorosamente pela razão lhes impede de conhecê-Lo verdadeiramente, isto é, como Ele quer se mostrar a nós. Somente através da experiência pessoal, da intimidade, que se é possível alcançar a Deus. E experimentar Deus não é um percurso unilateral pelo qual apenas nós nos colocamos em vista do sagrado – seja pela leitura, meditação e prática da Palavra, seja pelo exercício da fé nas relações e nas representações cotidianas, individuais ou coletivas – é também uma contrapartida de Deus que a todos quer salvar e, portanto, ao encontro de todos se dispõe55. E para isso é necessário ter fé, se esvaziar de tudo que é apreendido cognitivamente, concretamente e patologicamente e se deixar 54 55

Referência à passagem de Mc 2:17. Referência à passagem de 1 Tm 2:4.

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ser usado pelo Espírito Santo. O conhecimento de Deus, por conseguinte, depende da fé a priori, porém também necessita da vontade livre – pois não basta a Deus querer salvar a todos através do Espírito Santo, é necessária também uma assertiva do homem em relação a Deus – e, por fim, da instrumentalidade do Espírito em sua atuação na particularidade onde age; haja vista que só podemos conhecer e experimentar Deus da maneira e na proporção em que Ele se nos apresenta. Por isso, e nessa perspectiva concordo enfaticamente com Agostinho, é que a verdadeira liberdade só é possível àquele que tem o livre arbítrio inteiramente voltado para Deus. Disso decorre que se aproximar de Deus tendo uma verdadeira experiência com Ele não é submeter nossa vontade livre à vontade de Deus, abrindo mão do livre arbítrio, mas, pelo contrário, quando nos predispomos unicamente à vontade de Deus (e essa vontade só pode ser percebida a partir da experiência íntima) é que podemos ser realmente livres. Essa liberdade se constitui não somente em relação às inclinações da natureza que nos aprisionam mediante as emoções, as paixões, ao desejo do ser humano, mas também em relação às diretrizes da razão. Afinal, outro efeito evidente da modernidade: os indivíduos estão cada vez mais escravizados à racionalidade. Kant56 relega ao desejo (às propensões da natureza do ser humano) a maior parte da culpa dos desvarios concernentes à ética e assegura que somente o dever moral, obtido a partir da razão, (absoluta e universal) poderia pressupor a liberdade. Isto é, não sabemos se somos realmente livres, pois frequentemente agimos submetidos ao desejo, às inclinações da natureza humana, portanto, somente o cumprimento da lei moral – anteriormente instituída – concede aos homens estabelecidos socialmente o estatuto da liberdade. A moral kantiana suprime a vontade em proveito de uma racionalidade totalizante por meio especificamente da qual os indivíduos podem ser livres: porque todos se despem de suas vontades individuais em favor do bem comum, possível exclusivamente através de uma lei moral universal e racionalmente constituída. A modernidade, entretanto, contribuiu para que a razão mesma sofresse as consequências do individualismo e do relativismo. De modo que não apenas o fardo extremamente consistente imputado à razão de determinar a vontade se tornou impraticável, como a razão em si se encontra subordinada aos variados universos particulares e, em tudo, relativa a tais espaços de relação e de representação. A filosofia antiga já havia se encarregado de prescindir da vontade o efeito sobre a ética, uma vez que o convívio social harmônico entre os homens dependia de que cada cidadão usufruísse de seus direitos sem violar os dos demais. A filosofia moderna conseguiu desvincular totalmente a ética da fé (da religião). A filosofia medieval, porém, não se restringiu de modo algum a reduzir a moral aos ordenamentos bíblicos Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão (nascido na Prússia) e um dos pensadores que mais profundamente influenciou a formação da filosofia contemporânea. 56

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e à instituição da Igreja: por boa parte do medievo a autoridade eclesiástica foi questionada de maneiras diversas, principalmente dentro do próprio clero, e tais desdobramentos culminaram na gradual perda do poder político da Igreja e mesmo na grande querela no âmbito religioso por ocasião da Reforma Protestante nos séculos XVI-XVII. Todavia, no período moderno é que se consolidou a obliteração da fé em prol da razão no domínio da ética. A consequência instantânea desse processo talvez seja a dificuldade de se fixar uma moral universal e absoluta por meio de uma razão que já não se faz totalizante e reconciliadora entre os indivíduos, e sim fragmentada, particularizada e relativa – o que ocorre é a coexistência simultânea de uma diversidade de éticas, que por vez ou outra se chocam. Isso não significa efetivamente que um retorno à fé como estipuladora dos valores morais seja a solução clara e precisa. Ora, a fé uma vez inserida no paradigma da modernidade também está sujeita aos fatores intrínsecos e condutores deste último, assim como a razão. Atualmente, a fé também se encontra adstrita à individualidade, ao dinamismo e à relativização. Rorty57 e Vattimo58 concordam com a ideia de que Deus está querendo deixar de nos tratar como servos para nos tratar como amigos. Sermos tomados como amigos é sermos considerados como aqueles que não têm de obedecer, mas como aqueles que podem viver sob uma única lei, a do amor59. E em plena modernidade o amor (em sua essência cristã) talvez seja um dos poucos parâmetros que possibilita aos indivíduos além de uma força reconciliadora, mesmo com a alienação da fé, um reconhecimento coletivo e social do sagrado capaz de contornar as esferas da individualidade, do dinamismo e da relativização enquanto frutos negativos da modernidade. O amor não busca aos seus próprios interesses60 (foge à subjetividade), é paciente61 (foge ao dinamismo utilitário) e está alheio a tudo e direcionado a todos62 – (não pode ser, portanto, relativo) é absoluto em todos os sentidos. Isso pode servir de complemento para a excelente ponderação feita por Rodolfo no encontro jovem, após o filme, e talvez respondesse às suas inquirições. É claro, é improvável que ele concorde comigo em tudo, porém, ainda assim, arrisco que a sua reflexão tinha como ponto fulcral o amor entre os irmãos em Cristo e entre crentes e não crentes de modo equânime. E justamente nessa perspectiva, alguns exemplos mencionados naquele encontro jovem vêm precisamente ao encontro da análise acima descrita.

Richard Rorty (1931-2007) foi um filósofo estadunidense que “representa o pós-empirismo de caráter pragmático dos EUA”. 58 Gianteresio Vattimo ou Gianni Vattimo (1936- ) é um filósofo e político italiano, um dos expoentes do pós-modernismo da Europa latina. 59 Paulo Ghiraldelli Jr., In: Santiago Zabala (Org.), O futuro da religião (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006), p. 9-17. 60 1 Co 13:5. 61 1 Co 13:4. 62 1 Co 13:7. 57

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A exposição efetuada pelo “Seco”, por exemplo, acerca do seu convívio familiar caracterizado pela diferença de credos entre ele e a maior parte de sua família esboça muito mais do que uma fé pautada em oposição ferrenha de discursos e de práticas ou mesmo em um proselitismo inveterado mais motivador de beligerância do que de união. Demonstra um testemunho de fé e do amor de Deus baseado em atitudes sinceras e efetivas. O engajamento de sua parte em tentar a todo custo levar seus familiares a participarem da mesma comunhão religiosa que ele deu lugar à confiança de que sua intimidade com Deus possibilitada pela fé o tornaria reflexo de transformação e de amor verdadeiro. Isso sim, por sua vez, atuaria como movente de busca por essa transformação e amor nas pessoas em sua volta e como exemplo da atividade concreta de Cristo em sua vida. Aqui a paciência é o atributo mais claro que pude perceber em sua abordagem. E o fato de ele ser um referente fundamental em seu círculo familiar atesta a eficácia de que o amor tem atuado no seu lar como força objetiva e reconciliadora, embora a fé neste caso seja subjetiva e relativa. Outra fala que me chamou a atenção naquele encontro foi a do Coelho. Quando ele citou o exemplo de vida familiar da Patrícia, cheguei a duas conclusões: a primeira foi que o fato de eu desconhecer o testemunho por ele apresentado significa que eu (autor deste texto) bem como todos aqueles que também não o conheciam precisamos trabalhar mais a nossa comunhão na igreja, – estar há tanto tempo na mesma igreja e não conhecer os desafios pessoais e familiares de nosso irmão tão próximo é, no mínimo, negligência – se desconhecemos os problemas daqueles com que há anos convivemos, como queremos e/ou podemos ajudar aqueles que estão fora de nossa comunhão e convívio?! A segunda foi que o exemplo de vida da “Patty” (aliás, muito parecido com o do “Seco”) tem se caracterizado por atitudes práticas de suporte e eventualmente de sofrimento, além de paciência e fé, na medida em que as divergências de credo no interior da sua casa despontadas sob a forma de resistência e confronto lhe imputam a necessidade de não apenas demonstrar amor aos seus entes como também continuar demonstrando amor apesar de possíveis respostas avessas a essa afetividade. Neste caso, a fé individual tem sido exercitada a partir de um amor que tudo suporta e tudo sofre, e ainda assim tudo espera e tudo crê. O fato de já ter sido realizados cultos em sua casa revela a eficácia dessas atitudes práticas de fé e o reflexo do amor de Cristo que o seu testemunho tem sido para sua família – já muito mais receptiva tanto à sua fé individual quanto à comunhão onde está inserida. Aqui, mais uma vez o amor se mostra reconciliador e totalizante, embora a fé seja divergente. No caso de Tharcys e seu testemunho de fé ligado à figura de sua falecida avó, é possível observar como a fé individual é capaz de revitalizar a fé de outrem pela mediação do amor. Tharcys compartilhou com os demais durante o momento de reflexão pós-filme que a fé do jovem Wheaton e o desejo particular dele em defender sua experiência íntima com Deus – uma vez que ali não se tratava puramente da defesa da fé cristã de maneira geral como defesa da

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crença, afinal para o jovem universitário Deus se fazia bem vivo em sua vida – remetiam diretamente ao efeito que a fé da avó dela produzia em sua vida cristã. Aqui, fica evidente como dois universos de fé extremamente particulares coadunam-se através de sua aplicação aparente. A representação da fé em sua concretização externa, neste caso específico, pode ser aferida ao espaço social onde está circunscrita como interseção entre ambas as subjetividades da credulidade. O amor à comunhão, à igreja e às pessoas do convívio próximo servem de junção entre a experiência de vida cristã de Tharcys e a experiência que ela identifica como em associação com a de sua avó. Tudo que esta última significava para sua família, para as pessoas próximas e para os irmãos em Cristo como exemplo de vida cristã e de fé é imediatamente incorporado à noção de intimidade com Deus pretendida e/ou vivida por aquela primeira. Isso torna o amor um sentimento prático bastante vívido, concreto e presente na vida dela, servindo como movente inseparável de sua experiência com Deus e de sua relação com o próximo. Muito além de uma circunstância em que a avó de Tharcys servisse unicamente como modelo de vida íntima com Deus, ela é uma memória aprazível de que o amor é a maior das obras (na medida em que se dá através da relação com o outro) inerentes à própria fé. Outra reflexão bastante válida feita durante o debate pós-filme foi dada pela Amanda. Ela relatou a história de um tio que sofria um mal que lhe prejudicava totalmente a memória, mas ainda assim algumas práticas de fé permaneciam intactas na vida dele, confirmando o fato de sua experiência com Deus ter sido efetiva, por mais que não nos seja possível determinar e medir a fé dele – como a de qualquer outro – já que a fé enquanto dispositivo singular e íntimo, portanto imperscrutável a outrem, se encontra fora do alcance diverso, a não ser pelos signos que lhe conferem sentido fenomenal. Mesmo que todos os cristãos andassem com tarjas com uma cruz [ou com uma estrela de Davi!] no braço ou em outra parte do corpo para indicar aqueles que estão incluídos na fé, sua determinação real seria impossível – alguns seriam incluídos sem sinceramente estarem em comunhão com Deus, outros seriam excluídos tendo uma vida de verdadeira intimidade com Deus. Esse entendimento escapa às pessoas, pois só Deus é quem pode conhecer o coração do homem63. Isso me lembra aquela trilogia dos anos 2000, baseada na série de livros de Tim LaHaye e Jerry Jenkins, sobre os últimos sete anos na Terra após o arrebatamento da Igreja de Cristo: “Deixados para trás”64 – bastante perturbador aliás. O jovem pastor Bruce Barnes não havia sido arrebatado e era um dos poucos que compreendia o que ocorria no mundo, como o desparecimento de milhões de pessoas, a mudança drástica no panorama político global etc. Num momento em que a Igreja enfrenta uma série de transformações ou tem que ter muita 63 64

Referência à passagem de 1 Sm 16:7. Left Behind (2000, 2002, 2005), produzido pela Ten Cloud Pictures.

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agilidade para permanecer leal aos seus mais importantes ideais éticos e doutrinários enquanto a sociedade se altera radicalmente em seu redor, – consequência direta e nítida da modernidade – a subjetividade da fé acaba engendrando sobre os pilares de sustentação de muitas denominações, gerando uma série de “teologias pessoais” ou “teologias de presbíteros”, abrangendo o fenômeno financeiro que incide brutalmente sobre as igrejas e submete a fé ao materialismo (como a “teologia da prosperidade” acaba por constituir). Daí, o fato de um pastor ser “deixado para trás” durante o arrebatamento da Igreja até que não surpreende... Se por um lado, contrapondo uma vertente marxiana, a fé não se “desmancha no ar” totalmente, – se é que em algum momento histórico o sagrado tenha sido realmente estável e sólido! – por outro, suas representações “vão para o espaço”, na proporção em que já não podem absolutamente determinar com precisão sua atuação e compreensão nas relações e na concepção dos indivíduos. Não há como saber se tal presbítero é realmente sincero em sua abordagem, se tal cantor gospel é verdadeiramente transparente em sua comunhão, se tal irmão realmente teve a experiência com Deus que alega em testemunhos. Enfim, temos que também ter cada vez mais “fé” uns nos outros, porque o sagrado não está circunscrito aos símbolos. Não basta saber quantas vezes um pregador fala o nome de Cristo ou sobre salvação para determinar a “quantidade” da sua fé. Não basta saber quantas vezes a letra de uma música menciona Deus ou passagens bíblicas para ter certeza que tal artista se enquadra no rótulo de evangélico ou gospel. Não basta saber quantas vezes um missionário pronuncia línguas estranhas ou tem profecias ou revelações sobre a vida de algum irmão na congregação para ter certeza de que ele está sendo realmente usado por Deus naquele momento (até por que, mais do que “aquele momento” de representação do sagrado o Espírito Santo passa a morar em nós permanentemente depois que O aceitamos, de modo que passamos então, ou deveríamos passar, a ser usados por Ele integralmente) – já ouvi relatos de missionários que utilizam redes sociais para descobrir fatos da vida de irmãos de determinadas igrejas aonde têm oportunidade de atuar (e o verbo atuar cai aqui como uma luva!) para utilizá-los em suas “revelações”. Como a fé a partir de suas representações e relações entre os indivíduos não se faz mais tão precisa no que concerne ao reconhecimento imediato de Deus, aqui novamente o amor assume posição primordial. No exemplo da Amanda, independentemente do que a ciência, por meio da medicina ou da psicologia, venha a afirmar sobre a permanência de certos comportamentos (habituais ou reflexos) em seu tio apesar da parte cognitiva referente à memória estar afetada, quando essas atitudes de fé servem de reforço à própria fé, seja individual seja alheia, a experiência com Deus pode ser assomada à comunhão e agregada às múltiplas credulidades particulares interferindo positivamente na intimidade com Deus de cada um que teve acesso a tal exemplo de vida cristã. Mas aqui então não teria sido a fé o poder reconciliador e totalizante entre os indivíduos? Não, porque nós não temos acesso à fé do outro,

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mas à exposição (através das representações) e à concretização da fé subjetiva por meio de atitudes práticas e concretas de amor, este sim responsável por unificar os indivíduos, mesmo com suas especificidades e diferenças conforme é compartilhado. Na Grécia Antiga, Aristóteles65 já havia pensado a ética sob a perspectiva da experiência, por meio de uma ação concreta. Como alcançar a justiça? Sendo justo. Como alcançar a piedade? Sendo piedoso. Não é pela idealização que se consegue obter certa virtude. Tampouco somente pela apreensão cognitiva. Há indivíduos que detêm o conhecimento para determinada aplicação, mas não exercem esse conhecimento de maneira prática. Esse exercício prático sob a forma de ação e experimentação é fundamental. Não basta ter o saber pedagógico, é preciso educar os filhos: o pedagogo detém o conhecimento sobre como melhor educar uma criança, mas isso não significa indispensavelmente que ele possui o interesse ou a destreza e paciência que a educação de uma criança exige em sua abordagem prática. Então, como alcançar o amor? Amando. Como entender a dificuldade do outro? Se colocando no lugar dele. Isso me lembra claramente um outro encontro também promovido pela juventude da IBI, porém, desta vez relacionado a Missões. Na casa de Adílio66 tivemos a oportunidade de debater alguns temas, dentre eles a importância de se fazer Missões por parte das igrejas para obtenção de sustento dos missionários em campo através de cada irmão: indo, orando e/ou contribuindo financeiramente. Nessa ocasião, Hellem fez uma indagação que me levou a meditar intensamente: por que não sentimos prazer em contribuir com os missionários durante as campanhas de Missões? – essa é uma indagação crucial. Diferentemente de tentar entender por que não contribuímos, (o que poderia remeter a fatores diversos desde a falta de recursos até a falta de oportunidade) quando tentamos entender a falta de prazer em contribuir com Missões nos deparamos com um problema ainda maior e bastante específico relacionado à fé. Esse problema é grave na medida em que a contribuição deve ser essencialmente feita com amor. Aqui, a “ética da intenção” é fundamental. E se partimos do pressuposto de que orar pelo missionário e ajudá-lo na seara seja indo seja contribuindo materialmente são também formas de adoração a Deus e que toda adoração deve ser feita em “Espírito e em verdade”, se não há prazer em fazer Missões tudo o que é feito é inútil. Pelo menos no que diz respeito a Missões como forma de adoração, já que com ou sem a intenção almejada (em amor e em verdade) toda oferta financeira é bem vinda e será com certeza muito bem gasta na obra de Deus! O problema aqui é outro: se cremos em Deus, em sua Palavra, temos intimidade com Ele e pretendemos agradá-Lo – e agradar a Deus é seguir seus mandamentos, e um deles é o de “ir e pregar o

Aristóteles (384-322 a.C) foi um filósofo grego nascido em Estagira, Macedônia. Discípulo de Platão na Academia e diz-se preceptor de Alexandre Magno. Em oposição ao “ideal” platônico, realizando as ideias nas coisas, o aristotelismo primava pela experiência. 66 Encontro jovem na casa de Adílio relacionado a Missões Nacionais, dia 20/09/2014. 65

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evangelho a toda criatura”67, função fundamental de Missões – por que não nos sentimos incomodados a contribuir para essa obra ao mesmo tempo específica e basilar? Minha inquietação em relação a essa questão, por outro lado, foi momentânea. No mesmo evento, o Cris propôs um recurso magistral com o intuito de solucionar o problema posto. Como entender a dificuldade do outro? Se colocando no lugar do outro. Ao apresentar essa solução para o problema, o Cris entende perfeitamente que nossa compreensão do Real está limitada ao contexto no qual estamos inseridos e à nossa realidade subjetiva, as demais realidades são ônticas, portanto, transcendem a nossa percepção de verdade e de totalidade e se nos apresentam apenas de modo aparente. Levinás68, por sua vez, um importante filósofo da alteridade, indica que a necessidade de compreender o outro inverte a própria ética subjetivista do “não fazer com os outros o que eu não quero que os outros façam comigo”. Neste sistema, o centro das relações ainda é o “eu”: “eu não vou fazer o que eu não quero que façam comigo”. Independentemente de a psicanálise69 trazer novos problemas (como o da relação sadomasoquista, por exemplo, que seguindo tal lógica possibilitaria aos indivíduos imporem sofrimento físico e moral aos outros na expectativa de que recebessem o mesmo em contrapartida ou de que satisfizessem um prazer intrínseco pela dor) esse filósofo estipula que a ética contemporânea para que seja efetiva deve ser baseada na vontade do outro sobre si mesmo e não de mim em relação ao outro: “eu não devo fazer com os outros o que eles não querem que lhes seja feito”. Afinal, eu posso determinar, em certa medida, o quero, mas não o que o outro quer. Isso somente ele é quem pode determinar. Somente o outro é capaz de compreender sua própria circunstância. Quem nunca passou fome nunca irá entender precisamente o que sofre um etíope ou um somali, por exemplo, que têm que conviver com a ausência de recursos alimentares todos os dias. E mesmo alguém que tenha passado fome pelo menos uma vez não conseguiria conceber essa desesperadora realidade daquela mesma maneira. Lhe faltaria estar lado a lado com o faminto em questão. De forma similar, não nos motivamos a contribuir séria e emotivamente com os missionários ao redor do mundo porque não temos sequer ideia dos desafios cotidianos que eles enfrentam. Para nós é muito mais fácil ajudar quem está desempregado, quem está estudando para passar em concursos, quem está passando por problemas familiares, pessoais ou amorosos, quem está depressivo, porque conseguimos compreender aquilo que está mais próximo de nossa própria realidade. Enfim, todos esses desafios estão diretamente atrelados à nossa realidade e à nossa rotina, de vida cristã ou de vida pessoal e social. Quando nos Mc 16:15. Emmanuel Lévinas (1905-1995) foi um filósofo judeu (nascido na Lituânia), professor honorário na Universidade de Paris-Sorbonne e praticante de uma filosofia rigorosa e difícil com rara profundidade metafísica dos pressupostos do pensamento e da atenção às coisas. 69 Um saber reivindicando o estatuto de uma teoria científica da psique, que se ocupa de investigar os processos inconscientes, uma “psicologia das profundezas” ou uma “doutrina do inconsciente psíquico”. 67 68

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deparamos com o desafio de ajudar quem está numa realidade completamente diversa da que estamos habituados, falhamos. Porém, somente colocando-nos no lugar do outro, do missionário que está em missão, (entrando em contato direto com ele, e com sua família; pesquisando sobre seu trabalho no campo missionário; procurando conhecer seus problemas diários e principais desafios; visitando-o, se possível; ouvindo testemunhos de vida de pessoas alcançadas por ele e integrantes da mesma realidade que ele etc.) é que conseguiremos compreender ao menos um pouco de sua realidade e o tamanho da necessidade que ele tem de nossas contribuições e orações. Mesmo com fé, amor e intimidade com Deus, esse exercício nos fornece um suporte bastante eficaz para que haja real motivação em fazer Missões. *** Apesar de a fé enquanto dispositivo fundamental para o conhecimento de Deus não poder ser mensurada, tampoco percebida por outrem sem a mediação de representações, ela é quantificável. Porém, a ciência dessa quantificação só está disponível em sua condição real para Deus (que é capaz de conhecer nosso coração e a nós melhor do que nós mesmos)70 e em sua condição contingente para nós mesmos (através do autoexame e da reflexão subjetiva de vida pessoal com Deus). Assim, a fé pode ser pouca ou muita (tomando como referência as oscilações de credulidade dos discípulos de Cristo durante seu ministério), absoluta (caracterizando Jesus enquanto homem) e mesmo nula (caracterizando um descrente, como um ateu, por exemplo). Nós só temos acesso à externalização da fé, quando ela se concretiza mediante as obras, das quais a mais eficaz é o amor – o qual é capaz de operar inclusive positivamente sobre a fé particular dos outros. Dessa forma, se por um lado os signos funcionam apenas como uma tentativa por parte dos indivíduos de suprir a falta de sensibilidade da presença do sagrado, – assim como o povo hebreu necessitou de ídolos para adorar em contraposição ao acesso a Deus por intermédio único e exclusivo do Profeta71, a sociedade romana tardo antiga tornou as igrejas católicas centros sagrados submersos em imagens e representações icônicas, apesar das diversas oposições de autoridades eclesiásticas e movimentos contrários conduzidos por minorias72 – por outro, acabam agindo como categorias que solidificam a percepção do sagrado, prescindindo dos indivíduos a possibilidade de conhecer intimamente a Deus em sua plenitude (no sentido de potencialidade). Certa vez, tive uma oportunidade única de participar de um retiro espiritual voltado para os músicos da IBI cuja preletora73, de uma sabedoria imensa, nos instruiu sobre a utilização da música como instrumento de adoração. Ela deu um exemplo bastante lúdico acerca disso: a Agostinho, Confessiones (397-401), III, 6, 11: “Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo [...]”. [Ed bras.: Confissões, Bragança Paulista: São Francisco, 2008 – trad. J. O. Santos e A. A. de Pina]. 71 Referência à passagem de Ex 32:4. 72 Como o Concílio de Elvira (século IV) e o movimento iconoclasta (século VIII). 73 Westh Ney Rodrigues Luz, atualmente professora do curso de música do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (STBSB). 70

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música “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui”74 poderia ser usada durante um louvor comunitário numa igreja? Dificilmente. Por quê? Porque como toda enunciação está diretamente ligada ao lugar social75 de onde parte, essa música, apesar do conteúdo evidentemente religioso, remete primeiramente não à instância com o sagrado (o componente emotivo que nos é acionado não é o da experiência pessoal com Deus do autor da canção) mas à instância com o profano. Nossa resposta imediata ao ouvir a melodia da música é associá-la a um cantor secular, espírita e ligado a um movimento e uma história voltados para o entretenimento aberto das massas e não propriamente para a adoração – não me entendam mal, isso não significa, de modo algum, que a música enquanto louvor sincero dirigido a Deus por parte do cantor referido não seja legítimo, só quer dizer que podemos muito bem dirigir louvor a Deus de modo privado através dessa canção se ela despertar em nós qualidades emotivas de adoração e intimidade, porém, como louvor comunitário, por não termos certeza das percepções subjetivas de cada indivíduo com relação à canção, seria uma escolha insensata utilizá-la durante um culto dirigido exclusivamente para adoração a Deus. O mesmo aconteceria com canções cujos autores e/ou intérpretes detêm o rótulo de cantor evangélico, cristão ou gospel. Muitos ministérios de música se preocupam em associar ostensivamente os louvores dirigidos em cultos à vida cristã de seus agentes. Isso é bem perceptível em determinados meios musicais: basta a vida pessoal de algum artista considerado gospel estar em discordância com a comunhão evangélica para suas canções serem praticamente extinguidas dos momentos de adoração da mesma. Mas, é claro, no Brasil o universo musical ainda está bem delimitado quanto ao mercado secular e ao “mercado gospel”. De modo que qualquer artista declaradamente inserido neste último estaria apto a ter suas músicas utilizadas em louvor comunitário. Ainda assim, o próprio fato de a música evangélica ter se agrupado necessariamente numa categoria de mercado já exibe as dificuldades da fé cristã nestes tempos assolados pelo interesse financeiro e material. Aqui, o sagrado é literalmente profanado, “debaixo de nossos narizes” e por vezes dentro de nossas igrejas! Em contrapartida, músicas que precipitadamente poderiam ser consideradas profanas – já que os signos e as representações regulares da fé se encontram ali ausentes e a percepção de experiência e de intimidade se mostra ou no título, ou na poesia, ou na melodia, ou mesmo no gênero musical claramente sacro – trazem consigo mensagens profundas de paz, de amor, de adoração, capazes de envolver o ouvinte de maneira tal que lhe remete diretamente ao louvor a à sensibilidade do sagrado, tanto pela experiência com Deus que é aludida por meio dos códigos da arte quanto pela essência mesma das canções.

Erasmo Carlos e Roberto Carlos, Jesus Cristo (1970). Michel de Certeau, Lecriture de l’histoire (Paris: Gallimard, 1975). [Ed. bras.: A escrita da história, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982 – trad. Maria de Lourdes Meneses]. 74 75

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Essa é uma característica, por exemplo, do chamado “Novo movimento” ou “Hope rock”76, que mesmo se mantendo ainda bastante restrito em igrejas ou em comunidades evangélicas ou cristãs de modo geral, conseguiu ingressar em meios não cristãos específicos justamente devido ao seu lado “profano”, servindo objetivamente a propósitos de divulgação de uma mensagem determinada com o intuito de despertar no público o interesse pela experiência ali descrita e pelo louvor ali subscrito. Muito mais do que servir para a propagação de certa mensagem em um meio que já a conhece bem e para a expansão de um mercado em potencial, (em grande potencial!) culminando num intenso processo de comercialização da fé, de veneração de artistas gospel e de enriquecimento de gravadoras, produtoras e instituições religiosas, esse movimento musical recente produzido predominantemente de modo independente tem acertado o alvo, que é exatamente apregoar a Palavra àqueles que ainda não a conhecem, no lugar onde estes residem: sem esperar um movimento contrário de busca, mas investindo no movimento solidário de ida, sendo a adoração relativa à própria arte, a qual é conduzida por indivíduos que não se preocupam em justificar sua vida cristã e experiência pessoal com Deus através de meras representações. E se não nos é possível verificar a fé de cada um, para que precisamos nos preocupar com isso? A nossa fé não nos escapa, então, é através dela que podemos interferir (positivamente) na das pessoas ao nosso redor. Quando ela se concretiza sob a forma de atitudes práticas de amor é que conseguimos alcançar o outro. Quando medito sobre os Evangelhos, algo sempre me intriga: “Bem aventurados os que não viram e creram”77, mas mesmo aos que viam e tinham a oportunidade de em todo o tempo estar ao lado de Jesus, como os discípulos, havia momentos de incredulidade. Estavam próximos de Cristo praticamente a todo momento e puderam acompanhar a maior parte das maravilhas operadas, e ainda assim duvidavam e eram advertidos por Cristo como sendo “homens de pouca fé”78. Conosco acontece o mesmo, presenciamos e experimentamos as maravilhas de Cristo em nossas vidas, mas ainda assim temos vastos momentos de incredulidade. Isso não significa que a intimidade não tenha sido real, apenas que temos exercitado pouco a nossa fé ou que temos deixado a racionalidade incidir fundamentalmente sobre nossa crença individual. Quando é preciso submeter a fé às categorias racionalmente estabelecidas a razão passa a ser o pressuposto da fé e não o complemento. No título de seu livro Credere di credere79, Vattimo se apropria da existência de uma duplicidade de sentido existente na língua italiana (inclusive, também presente na língua portuguesa) no que diz respeito ao verbo “crer”: enquanto a palavra apresenta um sentido de

A respeito desse tema, acessar: . Acessado em 18 de outubro de 2014. 77 Jo 20:29. 78 Mt 8:26. 79 Gianni Vattimo, Credere di credere (Milão: Garzanti, 1996). 76

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convicção, de certeza em relação a algo, também pode significar dúvida, incerteza. A partir disso o filósofo promove um jogo de palavras aproveitando-se de ambos os sentidos possíveis da ação de “crer” a fim de observar um fenômeno comum na modernidade: os indivíduos não têm mais certeza plena da própria fé e procuram a todo tempo recursos externos para sustentar ou revigorar a sua fé individual que não o exercício mesmo da fé através da prática constante e genuína. Disso resulta que as pessoas não mais creem verdadeiramente, mas “creem que creem”! – como sugere o autor – sendo que o primeiro crer aqui apresenta o sentido de dúvida, de incerteza e o segundo de convicção possibilitada pela fé. *** O filme retrata uma história fictícia baseada numa história real cujo fim não foi nada feliz, pois culminou numa ação judicial entre estudante e professor. É claro que numa situação real tal embate desigual jamais penderia favoravelmente para um aluno, fosse ele defensor do cristianismo, do agnosticismo, do ateísmo. Os argumentos filosóficos são frequentemente dispostos conforme a base do pensamento de quem os estipula, sempre tendendo para determinado aporte teórico e ideológico. Uma vez que não há real imparcialidade e nem verdade absoluta, pois como diz outro filósofo, toda verdade é parcial e tenderá necessariamente para o posicionamento político daquele que a apregoa80, não foi à toa que o jovem Wheaton solicitou que o poder decisório sobre os debates fosse repassado para a classe, alegando que caso o professor detivesse o domínio do julgamento dificilmente seria objetivo, imparcial em sua decisão. De fato, a tendência ideológica do professor Radisson já estava bem explícita desde o princípio e a lista de autores exposta por ele na primeira aula ratifica isso. Até mesmo os autores usados pelo jovem Wheaton para contrapor o professor têm seu posicionamento definido diante do problema colocado. Um processo acadêmico contra um docente é válido no momento em que ele pretende restringir a forma de pensar aceita em suas ministrações. Ainda mais quando diz respeito à crenças religiosas e filosofias de vida. Tentar submeter a fé a qualquer exercício analítico e empírico fundamentado nas categorias da razão e do método é algo contraproducente. A intimidade com Deus não pode ser reduzida a um exame desse tipo. É algo sublime, inexprimível, imperscrutável, singular e somente compreendido através do amar o outro.

Slavoj Zizek, First as tragedy, then as farce (Verso Books, 2009). [Ed. bras.: Primeiro como tragédia, depois como farsa, São Paulo: Boitempo, 2011 – trad. Maria Beatriz de Medina]. 80

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