DEUS QUAERENS - Introdução à metafísica da interioridade de Santo Agostinho nas leituras de São Boaventura e Heidegger

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Roberto Carlos Pignatari

D e u s Quaer ens Introdução à metafísica da interioridade de

Santo Agostinho

São

nas leituras de Boaventura e Heidegger 1ª edição 2015

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Diretor Geral: Jair Canizela Diretor Editorial: Vítor Tavares Revisão: Roberto Carlos Pignatari Capa e diagramação: Telma Custódio Edições Fons Sapientiae é um selo da Distribuidora Loyola de Livros Rua Lopes Coutinho, 74 – Belenzinho 03054-010 São Paulo – SP T 55 11 3322 0100 F 55 11 4097 6487 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Edições.

ISBN: 978-85-63042-24-8 © Copyright 2015: 1ª edição - Edições Fons Sapientiae

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Prefácio Este livro resulta, após as devidas adaptações e atualizações, bem como eventuais modificações e acréscimos, de trabalho de conclusão de curso, desenvolvido com vistas à obtenção da graduação no curso de Filosofia (Licenciatura Plena), no Centro Universitário Assunção – UNIFAI, em 2009. Como tal, o texto se propõe, essencialmente, a ser uma introdução a um dos temas centrais do pensamento de Santo Agostinho (354-430 d.C.): a interioridade humana como o momento e o âmbito, por sua própria natureza e excelência, do conhecimento da presença divina, a partir da qual são vislumbrados e percebidos, igualmente, os sinais exteriores desta mesma presença na realidade criada. Temática agostiniana de imensa riqueza, a interioridade humana como lugar da presença de Deus ao ser humano, noutras palavras: a metafísica da interioridade humana, foi interpretada ao longo da história por numerosos pensadores, tendo originado várias releituras e novas conceituações. Neste estudo, tratamos introdutoriamente de duas grandes interpretações do tema clássico agostiniano, levadas a efeito por pensadores de épocas bem diferentes, e com motivações igualmente diversas: São Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), franciscano que viria a ser superior geral da ordem, professor na Universidade de Paris, e autor de uma das mais sublimes e profundas sínteses filosófico-teológicas de toda a história do cristianismo; e Martin Heidegger (1889-1976), pensador fundamental de nosso tempo, autor de obra que se tornou marco referencial para a história da filosofia, na qual procura nova fundamentação da ontologia, levando adiante uma releitura de todos os grandes momentos do pensamento ocidental – entre os quais o cristianismo primitivo, bem como o pensamento de Santo Agostinho e a mística medieval – com o fito de restaurar e clarificar o sentido originário (que teria se perdido no curso histórico da filosofia) da pergunta Prefácio

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pelo ser. Reafirme-se o caráter introdutório de nosso presente texto, prestando-se – assim o cremos e propomos – a um primeiro contato e iniciação ao estudo do pensamento agostiniano, na ótica de dois de seus grandes intérpretes. No contexto de origem deste trabalho, tive oportunidade de expressar gratidão a pessoas que me foram importantes no período de pesquisa e redação, às quais gostaria de, agora, relembrar e reiterar meus agradecimentos; bem como estendê-los a outras pessoas que, no decorrer destes seis anos, pude conhecer e que, igualmente, tornaram-se importantes e estimadas: aos Profs. Drs. Roque Frangiotti, Domingos Zamagna, José Maurício Mazzucco e Joel Gracioso, do meu período de graduação no Centro Universitário Assunção – UNIFAI, pelo aprendizado nas aulas de História da Filosofia Medieval; Linguagem e Fenômeno Religioso; e História da Filosofia Contemporânea, além das orientações nos vários trabalhos dos Grupos de Estudo e Pesquisa, e pelas sugestões e apontamentos quanto aos projetos neles desenvolvidos. Também ao Prof. Dr. Edelcio Ottaviani e à Profa. Dra. Neide Boechat, coordenadores do Curso de Filosofia do UNIFAI, pelo apoio e incentivo constante à participação e perseverança no itinerário filosófico acadêmico. Aos meus professores e mestres na pós-graduação na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP: em primeiro lugar ao meu orientador, Prof. Dr. Lorenzo Mammì, pela generosidade, atenção e disponibilidade à escuta constante, aconselhamento e conversação, nestes anos todos; como também pela sensibilidade no direcionamento e consecução de minha pesquisa no mestrado e, agora, no doutorado; ao Prof. Dr. Moacyr Ayres Novaes Filho, pela receptividade e atenção diligente na elucidação de dúvidas e conceituações, pelo exame minucioso e avaliação positiva de meus textos, bem como pelo incentivo na continuação dos estudos; e ao Prof. Dr. Pedro Calixto Ferreira Filho, pela sensibilidade ao espírito norteador e ao traço essencial de meu trabalho; pelo incentivo à continuidade das pesquisas, bem como pelo apoio e oportunidade na divulgação de meus esforços; e ainda pela postura exemplarmente acessível e dialogal com que permitiu nossos contatos. 4

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Ao Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, pela generosidade e solicitude ímpares, com que sempre me atendeu, ensinou e orientou, nos meus projetos iniciais sobre o pensamento de São Boaventura; pelo inestimável apoio e pelo incentivo, em momentos cruciais; pela experiência com que permanentemente exerceu sua compreensão em relação aos meus trabalhos. Ao Prof. Dr. Luis Alberto De Boni, pela receptividade e pronta disposição com que me atendeu, nas tentativas de contato; pela motivação e apoio durante nossa correspondência (que me foi fundamental, apesar das poucas ocasiões) e, sobretudo, pela generosidade em ler o projeto inicial de minha pesquisa sobre São Boaventura, assim como pela avaliação positiva do mesmo, além das sugestões a respeito. A toda a equipe da Livraria Loyola - Unidade Senador Feijó, São Paulo/SP, na pessoa de seu gerente comercial, Rogério Reis Bispo, pela oportunidade e pelo apoio na tentativa de publicação de nosso trabalho, que ora se concretiza pelas Edições Fons Sapientiae, bem como pelas consultas, indicações de livros e boas conversas em todos estes longos anos de convívio e amizade. Por fim, quero deixar registrado o agradecimento, de todo meu coração e vida, a duas pessoas preciosas por demais, referências maiores na minha existência e que, embora sem o saber e por motivos diversos, foram diretamente responsáveis pelo início de todo o percurso acadêmico de retomada de meu curso de Filosofia (no qual este trabalho, e toda sua preparação, foi momento fundamental), mas que já não estão mais aqui, e com as quais, infelizmente, não poderei partilhar da alegria de um trabalho consumado e publicado, que jamais teria conseguido alcançar sem a presença de ambas em minha história: Milton Schwantes, falecido em março de 2012, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, biblista maior e professor de exegese e teologia das Escrituras Hebraicas (AT), mestre e conselheiro; e minha mãe, Maria Aparecida dos Santos Pignatari, falecida em agosto de 2013, a quem dedico esta pesquisa. A dor, a melancolia e a saudade se tornaram companheiras constantes, e teriam mesmo me impedido de prosseguir na pesquisa acadêmica, não fosse a herança de dedicação, amor e confiança que dela recebi. Ela me deu a concreta lição de viver, Prefácio

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até o fim e mesmo diante do nada iminente e prestes a lhe tragar deste mundo, na fé, esperança e caridade, no sentido pleno do (agostiniano e calvinista) cor meum tibi offero, Domine, prompte et sincere, na serenidade santa às portas da eternidade. Hoje, conforta-me poder dizer: “ego autem iam sanato corde ab illo uulnere, [...] fundo tibi, deus noster, pro illa famula tua longe aliud lacrimarum genus,...” (Confissões IX, xiii, 34), mas sobretudo a graça – da qual ela me foi exemplo único – me levanta, sustenta e me põe a caminhar no itinerário da mente, da alma e do coração, em Deus! Lux lucet in tenebris (Jo 1,5) SOLI DEO GLORIA São Paulo, agosto de 2015 R.C.P.

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Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo,sim, que Vos conheça como de Vós sou conhecido. Ó virtude da minha alma, entrai nela, adaptai-a a Vós, para a terdes e possuirdes sem mancha nem ruga. [...] Vós amastes a verdade, pelo que quem a pratica alcança a luz. Quero-a também praticar no meu coração, confessando-me a Vós. – SANTO AGOSTINHO, Confissões, X, i, 1. Quando a alma ascende íntima e gradualmente através das partes da alma, onde começa a aparecer algo que não nos é comum com os animais, é então que começa a razão, e onde já se reconhece o homem interior. – SANTO AGOSTINHO, A Trindade, XII, viii, 13. Ora, se o não-ser não se pode inteleccionar senão pelo ser, e o ser-em-potência senão pelo ser-em-ato, e dado que a existência designa o próprio ato puro de ser, segue-se que a existência é aquilo que a inteligência primeiramente conhece, e essa existência é a que é ato puro. Tal existência, por sua vez, não é uma existência particular, pois esta é uma existência reduzida, por estar misturada com limite; nem é uma existência análoga, porque esta tem o mínimo de realidade, por isso mesmo que tem o mínimo de existência. Resta pois que tal existência é a existência divina – SÃO BOAVENTURA, Itinerário da mente para Deus, V, 3. Na busca deste algo como Deus, passo eu mesmo a desempenhar um papel totalmente distinto. Não sou tão-somente aquele do qual se parte (em busca), [...] ou no qual se dá a busca, senão que o próprio ato de buscar é algo intrínseco a ele mesmo. – HEIDEGGER, M. Agostinho e o neoplatonismo. Mas todo instante, como ato de uma vontade livre, inicia uma série temporal sem ter uma causa anterior necessária (cf. o Livro II do De libero arbítrio [de Santo Agostinho]). E todo instante, enquanto união do presente da memória, presente da atenção e presente da esperança, contém em si o tempo como um todo, e é portanto uma figura da eternidade. - MAMMÌ, Lorenzo. STILLAE TEMPORIS

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– Interpretação de uma passagem das Confissões, XI, 2 in PALACIOS, Pelayo M. (org.) Tempo e Razão – 1.600 anos das Confissões de Agostinho, São Paulo: Loyola, 2002, p. 61. O espírito humano, ao investigar o mundo e ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta trajetória [...] Se nele [no conjunto da criação] está impressa a sabedoria divina, o princípio ordenador, nele se começará a busca. A partir daí, a atenção volta-se para o homem interior, lugar privilegiado do reconhecimento da presença divina. ‘Reconhecimento’, bem entendido, pois não se deve esperar que o homem apreenda completamente o que é Deus: as pretensões do esforço confessional são de certo modo inalcancáveis.” – NOVAES Fº, Moacyr Ayres. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho, São Paulo: Discurso Editorial, 2007, p. 190. O itinerário do conhecimento, em Agostinho, é muito mais assunção que ascensão – NOVAES Fº., Moacyr Ayres. Aula ministrada em 31.03.2011, no curso Ontologia e Moral em Agostinho, disciplina de História da Filosofia Medieval - FFLCH-USP.

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A meu pai, Miguel Pignatari, e à minha mãe, Maria Aparecida dos Santos Pignatari­ [ambos in memoriam], cuja piedade e a caritas de sua devoção mariana sempre foram, ao meu coração protestante, o exemplo maior da interioridade que se dispõe ao fiat mihi segundo omnia uerba que o Senhor permite conferre in corde suo (Lc 1,38 e 2,19).

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Sumário Prefácio....................................................................................................... 3 Introdução................................................................................................ 13 a) Busca e Vontade............................................................................................... 13 b) A maturidade do saber.................................................................................. 15 c) Filosofia e culminância histórica............................................................... 17 d) Releituras e convergências.......................................................................... 20

1. Santo Agostinho e a noção de interioridade...................................23 § 1 - Gênese da noção........................................................................................ 29 § 2 - Influências históricas e biográficas..................................................... 30 § 3 - O maniqueísmo........................................................................................... 36 § 4 - Herança filosófica e teológica.............................................................. 38 § 5 - Constituição e cristalização do locus Dei na Interioridade/ Intimidade............................................................................................................... 47

2. O Locus Dei: a habitação/doação do ser divino na interioridade humana.....................................................................................................49 § 6 - Confissões..................................................................................................... 49 § 7 – A Verdadeira Religião.............................................................................. 55 § 8 – A Trindade................................................................................................... 59

3. São Boaventura: Deus Est e a luz face à cegueira .......................... 63 § 9 - A síntese necessária do saber I: panorama histórico.................... 63 § 10 - A síntese necessária do saber II: Summa e Breviloquium........ 68 § 11 – Boaventura de Bagnoregio: franciscanismo e agostinianismo ..................................................................................................... 69 § 12 - A síntese seráfica: Deus imediato é.................................................. 71 § 13 - Itinerarium mentis in Deum................................................................ 79

Sumário

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4. Heidegger: interioridade e esquecimento do ser...........................87 § 14 - Introdução.................................................................................................. 87 § 15 - Os anos de teologia em Freiburg....................................................... 92 § 16 - Fenomenologia e filosofia medieval................................................ 95 § 17 - Agostinho e o neoplatonismo: leitura do livro X das Confissões............................................................................................................... 97

Conclusão...............................................................................................115 Referências bibliográficas....................................................................121 I – Bibliografia Específica ..............................................................................121 II – Bibliografia Geral.......................................................................................127

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Introdução a) Busca e Vontade Deus em busca, Deus que me busca. A busca de Deus me dispõe e me conduz à sua busca, meu desejo foi por ele querido. Deus me é buscado, faz-me caminho de sua busca. Na relação entre o humano e o divino, entre a fugacidade e a eternidade, a magnitude e a miséria, o fenômeno e o ser, caminhou a história do pensamento humano, pode-se mesmo dizer, em sua totalidade, ocidente e oriente. Se, pela limitação formal de nosso presente estudo, havemos de no ater unicamente ao primeiro, teremos ante o olhar histórico a metafísica ocidental na sua trilha binomial ser e ente. A relação entre os polos do binômio foi inúmeras vezes relegada a plano secundário, ou deslocada, em favor da postulação de um deles como o fundamento ou limite da investigação e busca em torno do ser. A busca em si foi, no mais das vezes, pouco esclarecida ou inquirida. A relação entre os polos fenomênico e ontológico – ou seja, a busca do ser - entendeu-se resolvida, no mais das vezes, indo de encontro a um dos seus extremos, ora na ontologia que impede – ou mesmo nega – o acesso ao ser ou à essência, ora neste detendo-se para dissolver – ou mesmo identificar num “esquecimento” – sua manifestação no próprio ente. Poucos foram os momentos em que se tangenciou a relação em si mesma, em sua instância própria de ocorrência e verificação1. Nesses poucos marcos situados

A trajetória da metafísica ocidental como esquecimento do ser, ora no polo ôntico, ora no plano essencial, é sabidamente o ponto de partida da refundamentação da ontologia celebremente trilhada por Heidegger em Sein und Zeit – cf. Ser e Tempo, tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes/Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006, p 37. No presente trabalho, tentaremos pontuar e situar a posição heideggeriana quando de nossa apresentação de sua leitura fenomenológica do livro X das Confissões de Santo Agostinho, compondo o capítulo 4 de nosso estudo. Para uma discussão crítica da análise heideggeriana,

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na história do pensar ocidental, temos o cristianismo na base de sua pesquisa e investigação. Em seu início uma pregação salvífica, o pensamento cristão caminha para se estabelecer e sustentar-se no embate com o pensar grego, de forma a apresentar “as razões da esperança”2 na qual creem os cristãos, as quais pregam como críveis, portanto de maneira argumentativa e racional. Mas a própria mensagem salvífica cristã traz em si o rompimento com categorias do pensamento grego, tais como as compartimentações entre a idéia e o movimento; a substância e o acidente; infinito e limitado; imutabilidade e devir; etc. Mais que uma doutrina ou sabedoria, a salvação é a própria vida, a morte e a proclamada ressurreição (inconcebível para o pensamento grego) de uma pessoa que encarna Deus – onipotente e absoluto – na humanidade. A um só tempo, têm-se a divindade no seio do ser humano, o ser dado a se conhecer no ente que o revela. Na intimidade da relação Pai e Filho, Deus se mostra como o amor que se entrega e perdoa, como a vida que se dá e ressurge. O locus Dei (o lugar de se conhecer a Deus) passa a ser não mais o nous ou noético (conhecimento espiritual) interceptado pelo logos/logoV (verbo; palavra) que a tudo preside e governa, mas o mesmo logoV é theós/QeoV (Deus) e sarkós/sarkoV (carne, corpo) num só tempo, por sua vez não mais situada em kronos/kronoV (tempo medido, cronológico), e sim kairós/kairoV – graça, busca amorosa e incondicional. Pai, Filho, intimidade, amor, vida, morte, carne, graça – e busca. Tal universo localiza o ser – a divindade – no humano, e nele vê o do ponto de vista cristão, mais especificamente tomista, vide as obras temáticas e discursivas de Etienne GILSON, entre as quais El Ser y La Esencia, Buenos Aires, Ediciones Desclée de Brouwer, 1951 (especialmente o capítulo VIII – La existencia contra la filosofia, p. 207-230, em que analisa e discute os principais postulados kierkegaardianos, tomados como referenciais por Heidegger); e O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 53-84. Cf. ainda a clássica obra de Jacques MARITAIN Les Degrées Du Savoir, 6ª édition revue et augmentée, Paris: Desclée de Brouwer, 1959, p. 194-196 (na qual analisa também o que qualifica como “realismo crítico” de Husserl e sua fenomenologia); ID. A Preface to Metaphysics – Seven lectures on Being, New York: Mentor Omega Book, 1962, p. 48-57. Vide ainda, para um posição existencialista confessional cristã, a obra de Gabriel MARCEL Foi et Réalité, Paris: Éditions Aubier-Montaigne, 1966, p. 12-27. 2 1 Pedro 3,15: “... logon peri the en umin elpidon, ...”, literalmente: “...palavras [razões] a respeito da vossa esperança, ...” - Novum Testamentum Graece, Nestle-Aland 27ª edição, Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1993.

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ente que acessa à sua manifestação e ao seu dar-se. O ser é estudado e investigado a partir do ser humano. A metafísica vem a ter por base a antropologia. Em certo sentido, trata-se de uma inversão das escolas clássicas da filosofia grega, que culminavam a especulação sistemática do pensamento no estudo da filosofia primeira, a do “ser enquanto ser” aristotélico, ou das ideias/formas platônicas da realidade. Da primeiridade ou caráter primordial da metafísica, dependiam evidentemente todas as demais áreas do saber, ou nela estavam ancoradas; ou ainda na instância metafísica encontravam seu ponto de partida para sua definição própria e constituição. No pensar cristão, a metafísica está situada na instância antropológica por primeiro, e o Ser é acessado na dimensão humana. É tão-somente a partir do interrogar humano e sua manifestação, que temos a elucidação da metafísica. O ser humano torna-se o centro filosófico da realidade, posto que nele se dá, em simultaneidade, o absoluto e o contingente, o eterno e a temporalidade, a infinitude da busca e a limitação da queda. Se o pensamento grego como que dicotomizava a ser humano à luz da dualidade idéia e materialidade, ou substância e acidente, no cristianismo – herdeiro do caráter concreto do pensamento do judaísmo, na justa intersecção com a filosofia grega – a busca de um se dá e se ilumina na manifestação do outro. Busca e querer, manifestação e presença.

b) A maturidade do saber É pois na simultaneidade do querer o que se me dá; de perquirir o que me fundamenta; de perguntar pelo ser na revelação do ser que me questiona, numa palavra: buscar o que me buscou, procurar pelo que me põe a procurar – é nesta relação vital em simultaneidade que podemos localizar o dado específico do pensar cristão em sua irrupção na história do pensamento humano. A especificidade acentua o elemento salvífico – o kerigma primitivo – apologizado nas categorias gregas da especulação filosófica. Em certo sentido, os Padres Apologistas “venceram” a tendência dos Padres Apostólicos do segundo século. Historicamente Orígenes terminaria, se não materialmente, ao menos em seus propósitos formais, por “sobrepujar” a Tertuliano. Mas a maturidade Introdução

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do pensar cristão como que se recusaria a caminhar e formar-se com base na priorização de uma à outra das tendências acima. A bem da verdade, faltava como que a síntese que desse conta da antropologia cristã como fundante da metafísica da realidade, porém na perspectiva teológica – teologia integrando e consumando a filosofia primeira, ontologia, esta na culminância da antropologia que, por sua vez, ilumina a ética como a busca pelo summun bonum – as duas pontas da realidade do pensar completando-se no abarcar o real num só olhar. Tal amadurecimento viria a ser obra de um dos últimos Pais da Igreja, homem como que talhado para a síntese, efetuada não à mercê da mera soma ou recolhimento da herança filosófico-teológica dos três primeiros séculos, mas sim o fermento dos elementos até então cultivados para conceituar uma nova categoria do pensar – o intimus, a interioridade, o imediato que me é manifestado perenemente. Santo Agostinho culmina trajetória de duas caminhadas fundantes do mundo intelectual ocidental, na exata medida de se tornar, ele próprio, o mestre do ocidente por excelência3. Nele se vislumbra a tradição platônica, via Plotino e Porfírio, a sedimentar e possibilitar se pensar o locus Dei, o “lugar”, a habitação de Deus, na alma que busca o amor que a buscou primeiro, na interioridade que me dá o ser que minha finitude, minha corporeidade, minha carne, teimam em sentir e usufruir na dissolução do efêmero, na fugacidade nela experimentada. Mas o platonismo em Santo Agostinho não encobre o mundo material como prisão ou imperfeição, posto que as ideias - agora como expressão da mente divina, da inteligência e sabedoria criadora -, ainda que arquetípicas e sendo expressão da eternidade, o são unicamente na medida em que se iluminam (manifestam) pela presença, na interioridade do ser que busca (ou seja: humano), da divindade que se dá – encarna – na busca da perda e da queda. Graça e luz: o pensamento agostiniano permeia-se pela herança grega, mas no eixo do imperativo do kairos ou temporalidade da graça, que condiciona a humanidade a ser buscada e BOEHNER, Philotheus e GILSON, Étienne História da Filosofia Cristã, 4ª edição, Petrópolis: Vozes: 1988, p. 139; cf. LIMA VAZ, Henrique C. A Metafísica da Interioridade – Santo Agostinho, in Ontologia e História – Escritos de Filosofia VI, 2ª edição, São Paulo: Loyola, 2001, p. 77.

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tomada, perpassada e atravessada (transcendida) pela incondicionalidade. O eterno divino na efemeridade humana; a busca sendo a própria eternidade na temporalidade; a simultaneidade que abarca e imediatiza o dar-se ou mostrar-se do ser (divino) ao (e no) ente (humano). A busca que me busca. O Deus que me busca4.

c) Filosofia e culminância histórica Um pensamento de culminância, como o de Santo Agostinho, certamente que haveria de se converter na própria fermentação de uma nova expressão ou maneira de buscar o ser último. Momento convergente a fundar nova época do pensar, o pensamento agostiniano fez-se a influência seminal de todo o período medieval latino e, em certa acepção, até mesmo do pensar ocidental moderno. O conceito de subjetividade como instância originária da investigação filosófica traz certamente herança de Agostinho5. Por outro lado, sendo um pensa Em torno à milenar temática da busca correlacional entre o sagrado e o humano, desejamos ressaltar, nos limites desta nossa obra de iniciação, e nesse ponto específico de nossa introdução, leituras próximas ao eixo temático de nosso estudo, em âmbito existencial-fenomenológico e na esteira da tradição ocidental, bem como, ainda, no lastro judaico-cristão. Nesse sentido, no imenso cruzar de trilhas e de inumeráveis leituras e escolas, citamos, entre outras, obras que compõem paralelo explícito com nosso presente objeto de estudo: os textos do teólogo judeu Abraham Joshua HESCHEL, trabalhados na reciprocidade polar inerente à temática em questão: Deus em busca do Homem, São Paulo: Edições Paulinas, 1975; e O Homem à procura de Deus, São Paulo: Paulinas, 1974; como também os trabalhos de Emmanuel LÉVINAS, sobretudo De Deus que vem à ideia, Petrópolis: Vozes, 2008, particularmente importante a nosso estudo devido a Lévinas partir da fenomenologia husserliana, como também da leitura heideggeriana, para o desenvolvimento de sua obra. Para uma exposição sistemática dos eixos constituintes da pesquisa antropológica do fenômeno religioso, vide MESLIN, Michel. Fundamentos de antropologia religiosa: a experiência humana do divino, Petrópolis: Vozes, 2014; FORTE, Bruno. La eternidad em el tiempo: ensayo de antropologia y ética sacramental, Salamanca: Edicioness Sígueme S.A., 2000; LIMA VAZ, H.C. Antropologia Filosófica, vols. I e II, Sáo Paulo: Loyola, 1991-1992; ID. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, Sáo Paulo: Loyola, 2001. Igualmente, referenciamos as duas maiores obras teológicas de nosso tempo: Teologia Sistemática, de Paul TILLICH (São Paulo: Paulinas/ São Leopoldo: Sinodal, 1984); e Curso Fundamental da Fé, de Karl RAHNER (São Paulo: Paulinas, 1988). 5 Asseveramos que, não obstante o parentesco e mesmo influxo direto, na tradição ocidental, do pensamento ancorado na subjetividade, a noção fundante da 4

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mento ancorado em síntese, nele convivem, inicialmente, elementos díspares que fomentam novas tendências igualmente díspares, ainda que situados em harmonia como elementos da síntese originária. Se permitiu a inauguração de nova tradição do pensar tomando por base a interioridade, o pensamento agostiniano igualmente fomentou a via da uoluntas, a anterioridade do ato volitivo, ou da vontade, para com o racional, posto que a busca, segundo nosso autor, é iniciada pelo quaerere, pelo querer, pela sede da busca por Aquele que me busca. Igualmente no Medievo, bem como na Modernidade, e ainda na época contemporânea, temos vários exemplos de escolas que remontam ao pensamento agostiniano como matricial aos seus postulados. Se os pensamentos anselmiano e boaventuriano situam-se no primeiro período, o cartesianismo, a filosofia pascaliana e o idealismo do período moderno poderiam constituir exemplos da segunda fase aludida, ao passo que o existencialismo kierkegaardiano perfilha a terceira. Nesse sentido, e não obstante o predomínio de outras correntes que, embora longe de se posicionarem sistematicamente contra Agostinho, dele porém divergiram em aspectos essenciais (tomismo), temos no Medievo o exemplo de uma nova síntese que opera a convergência entre a filosofia agostiniana e a insurgente mística franciscana, renovadora de toda a espiritualidade medieval. São Boaventura será autor de obra lapidar, refinada pela assimilação da herança agostiniana no espírito da presença divina cósmica que movia São Francisco de Assis, somada ao rigor aristotélico da pesquisa das ciências da natureza, embora não tome este último (pensamento aristotélico) como estrutura axial de seu pensamento. Mais que mover-se na esteira herdada do pensamento agostiniano, São Boaventura caminha para sua amplitude, e mesmo sua renovação, não somente pela presença do já citado elemento aristotélico em sua síntese, porém pelo repensar e aprofundar traços basilares do agostinianismo, tais como a filosofia da história, a doutrina da iluminação, e sobretudo a própria interioridade como

interioridade agostiniana guarda ampla distância da mesma. Vide adiante, no capítulo I, notas 12 e 13, nossa tentativa de fornecer elementos introdutórios para delinear e clarificar tal contrastação.

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o locus Dei por excelência, dado que Boaventura trabalha na trilha de outra influência que haveria de se revelar poderosamente fermentadora: a ratio anselmi, o célebre argumento a simultâneo desenvolvido por Santo Anselmo no século anterior, e do qual trataremos adiante, por ocasião da apresentação de sua reformulação no interior da síntese filosófico-teológica que então leva a efeito. Boaventura irá situar a interioridade de forma a convergir o locus Dei da intimidade na ratio simul, da simultaneidade que presentifica o ser no/ao ente, de forma a romper a temporalidade característica da realidade contigente, a qual Santo Agostinho analisa magistralmente no livro X de suas Confissões. Com a filosofia seráfica de Boaventura, a matriz agostiniana amplia-se para incluir o que em seu início declinara (aristotelismo); aprofunda-se nas razões eternas e seminais como que presentes a simultâneo, em superação do paradoxo temporal; e delineia a busca humana como itinerarium que abarca o real a perfazer-se no divino – a filosofia é em e a partir de Deus, e não simplesmente ou unicamente nele finalizada. O conhecimento é n’Ele iniciado, realizado e consumado, como seu mover-se perene e imediato, e não como um fundamento substancial que se oculta e se desvela enquanto ser, no fenômeno. É perene mostrar-se à intimidade, na iluminação que abstrai a atemporalidade na temporalidade; o absoluto como luz que permite reconhecer e significar a contingência. Mais adiante na perfilha histórica, o existencialismo e a fenomenologia, enquanto correntes filosóficas, igualmente caminham (ainda que não em termos essenciais) em sendas agostinianas. É na confluência de ambas as escolas que Martin Heidegger, na trilha inicial da teologia, irá proceder leitura refundante da filosofia agostiniana, na redescoberta, via intencionalidade essencial, da interioridade como ver fenomenológico que acessa o ser no dado das coisas em si, no mundo vivencial e por mim significado no ver (intimus) interior. Heidegger lê Agostinho dentro de sua proposta de refundamentação da metafísica ocidental, para despí-la da veste onto-teo-lógica e permitir-lhe o ver, no jargão husseralinao, “as coisas em si mesmas”, o ser em sua manifestação originária. Para Heidegger, se Agostinho de fato herda, via neoplatonismo, o esquecimento do ser em que caíra a filosofia desde Introdução

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as construções platônica e aristotélica, por outro lado reconhece no mestre patrístico a dimensão da uoluntas como desveladora do ser em sua manifestação originária ao ser humano que interroga – busca – pelo ser.

d) Releituras e convergências Santo Agostinho nas leituras de São Boaventura e de Heidegger. Eis nosso espectro conceitual, no qual intentaremos visualizar a convergência da matriz fundacional agostiniana, em sua essencial continuidade na síntese boaventuriana, bem como na releitura fenomenológica heideggeriana, as quais, ampliando ou renovando o elemento fundante, atualizam a atitude espiritual que permeia todo o pensar agostiniano, tratando de mostrá-lo como busca eterna – vivência perene no instante do ser eterno, portanto sem início e fim, sem começo ou sentido, sem o que busca e o que é buscado. A busca é o instante perene que manifesta e plenifica a doação originária do ser, ainda que desconhecido, para mover-me à sua busca, consumando-se no conhecer como sou conhecido, busca temporal enquanto realização e consumação eterna; na perenidade do instante; na intimidade do imediato; na simultaneidade do buscado que me busca; no fenômeno da existência e do ser, que institui o dar-se e encarnar-se do divino no humano. Delineia-se pois o caminho para, a partir do pensamento matricial, nossa tentativa ser encaminhada para a captação da leitura da interioridade agostiniana na síntese de São Boaventura, constituída a partir do conhecimento interior do Deus imediato, manifesto na perenidade e na simultaneidade de seu dar-se como fundamento, como itinerarium, como fim, na qual a antiga metafísica de cunho aristotélico se apresenta como a própria cegueira da visão, turva ante a doação manifesta divina; bem como, na leitura heideggeriana, captar a intimidade como o ver que desvela o ser que se mostra – fenômeno – à busca da existência humana caída, esquecida do ser. O caminho de nossa tentativa tomará por início a caracterização, em suas linhas gerais, da noção essencial e orignária da interioridade na obra de Agostinho, tendo por base as Confissões em seu livro 20

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X, capítulo 1, cujo mote inicial irá nos fornecer o fio estrutural de nosso estudo. Aludiremos ainda aos tratados A Verdadeira Religião e A Trindade, porém tão-somente como elementos corroborantes à sedimentação verificada na abertura do livro X das Confissões (ainda que, cronologicamente, tal ordem de leitura soe, afinal, anacrônica). Ao mesmo tempo, tentaremos verificar a possível herança grega de tal noção-base, em suas origens e em seu condicionamento teológico; e ainda a constituição da interioridade como o locus Dei vivencial no/ ao ser humano em queda, no resgate de sua inversão (metafísica aristotélica) da busca que lhe realiza, pelo que busca sua realização. Num segundo momento, tentaremos delinear o pensamento de São Boaventura, iniciando por situá-lo em seu contexto histórico imediato e sua importância à época, caracterizada justamente pela busca da síntese necessária do saber, almejada e preparada há séculos e progressivamente trilhada no curso do pensamento cristão, expondo a seguir a refundamentação da interioridade agostiniana dentro do exemplarismo boaventuriano, que trabalha, a um só instante (e aliando a tentativa de somar os elementos positivos que identifica no pensamento aristotélico), a iluminatio em consonância à abstractio, as quais comporão o movimento da ratio anselmi em simultâneo na revelação, ou melhor, na manifestação perene do Deus imediato face à cegueira da pretensão racional humana, desmascarada e desvelada pela luz divina. Para tanto, teremos por base o capítulo V do Itinerarium mentis in Deus, bem como trechos do Breviloquium, passagens exemplares da síntese efetuada por São Boaventura. Na terceira parte, tomaremos a leitura fenomenológica do livro X das Confissões, que Heidegger leva a efeito sobretudo em seu seminário de 1921 intitulado Agostinho e o Neoplatonismo, procurando evidenciar, de início, seu ponto crítico em relação ao esquecimento do ser que, na herança neoplatônica, permeia ainda o discurso do agostinianismo, porém apontando à sua superação dentro do mesmo movimento de iluminação do ver interior, aproximado na intentio fenomenológica que visualiza a essência no dar-se/ mostrar-se do fenômeno. Por fim, procuraremos convergir as duas leituras da matriz agostiniana quanto à simultaneidade da iluminação agostiniana que, pela via boaventuriana, conduz ao imediato divino, Introdução

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o qual, pela via fenomenológica da leitura heideggeriana, mostrara-se no vivido factual da existência, que intima e interioriza à luz (fenômeno), na imediação do ser que se dá (busca) a conhecer a quem o busca. Terminaremos, ainda, com a tentativa de situar possível paralelo entre as leituras heideggeriana e boaventuriana, com relação à crítica da metafísica em seus termos originários no pensamento grego, intentando aproximação entre ambas com base no vértice da interioridade enquanto momentum fundante da imediaticidade/simultaneidade do absoluto em mim (Boaventura), bem como culminância, na memória, do ver as coisas mesmas (fenômeno) enquanto busca do ser (Heidegger).

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Capítulo 1

Santo Agostinho e a noção de interioridade Na historiografia do pensamento medieval, mais especificamente entre os estudos agostinianos, o consenso firmado em relação à expressão metafísica da interioridade, bem como à sua centralidade na obra de Santo Agostinho, é dos mais estáveis e, possivelmente, a torna um dos marcos referenciais de toda a história da filosofia1. Com efeito, têm-se na sua busca interior pela presença da verdade e de Deus, a própria essência do seu ensinamento e, quiçá, seu valor original como filósofo em relação às correntes de ideias às quais deu assentimento2. Desde a sua origem, o agostinianismo é visto como Embora não tenha sido seu criador, foi sem dúvida Étienne Gilson quem cristalizou a expressão e a tornou conceito referencial aos estudos agostinianos. Pe. Lima Vaz, em seu célebre artigo a respeito, lembra-nos que tal expressão – “admiravelmente justa” – é do historiador da filosofia neokantiano Wilhelm Windelband, que a cunhou originariamente como “metafísica da experiência interior”, sendo posteriormente retomada por Gilson no artigo L’avenir de la métaphysique augustienne, escrito para a Revue de Philosophie em 1930 – LIMA VAZ, Henrique C. A metafísica da interioridade – Santo Agostinho in Ontologia e História – Escritos de Filosofia VI, 2ª edição, São Paulo: Loyola, 2001, p. 77. Vide ainda, com relação ao desenvolvimento trabalhado pelo filósofo francês acerca da interioridade no pensamento agostiniano, sua Introdução abaixo relacionada. 2 Dentro da incomensurável bibliografia dos estudos agostinianos, destacamos, entre os títulos de caráter geral (que abrangem o pensamento de Santo Agostinho como um todo, ou em vários de seus aspectos), primeiramente a clássica monografia de Étienne GILSON Introdução ao estudo de Santo Agostinho, São Paulo: Paulus/Discurso Editorial, 2007 (com acento no capítulo II da Introdução: O itinerário da alma para Deus, p. 31-57, e na Primeira Parte – A busca de Deus pela inteligência, com destaque para as p. 139-159). Além de Gilson, chamamos a atenção para o trabalho fundamental de Moacyr Ayres NOVAES Fº. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho, São Paulo: Discurso Editorial, 2007 (sobretudo seu capítulo 1

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o pensamento da interioridade, da introspecção, do recuar-se à sua própria presença interior, na busca pelo princípio da realidade, a fim de encontrar o fundamento do ser e da unidade interiormente, face à realidade exterior esfacelada e pulsional, instável e enganadora3. 4: Interioridade na cosmologia agostiniana, p. 167-208). Igualmente notamos, como leitura referencial, a obra de Jean-Luc MARION Au lieu de soi, Paris: Presses Universitaires de France, 2008. Observamos ainda, como textos basilares: GIRAUD, V. Augustin, les signes et la manifestation, Paris: P.U.F., 2013; HORN, C. Agostinho: conhecimento, linguagem e ética, seleção de textos, introdução, tradução e edição de Roberto H. Pich, Porto Alegre: Edipucrs, 2008; DOUCET, D. Augustin: l’experience du Verbe, Paris: Librairie Philosophique J.Vrin, 2004; BLÁZQUEZ, N. Filosofía de san Agustín, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C), 2012; BOUTON-TOUBOULIC, Anne-Isabelle. L’ordre caché – La notion d’ordre chez saint Augustin, Paris: Institut d’Etudes Augustiniennes, 2004; OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Ser – Ontologia da relação em Santo Agostinho, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007; SCIACCA, M. F. Sant’Agostino essenziale, Porto Alegre: Instituto de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul (atual UFRS), 1956; JASPERS, Karl. Saint Augustin in ID. Les grands philosophes, 2ª partie, Paris: Librairie Plon, 2009, p. 163-305. MORIONES, F. Teologia de San Agustín, Madrid: B.A.C., 2011. Com relação a estudos de caráter específico (voltados para um aspecto, ou obra específica, da filosofia agostiniana), temos em conta, primeiramente, o artigo de Pe. Lima Vaz citado na nota anterior; o ensaio seminal de Lorenzo MAMMÌ STILLAE TEMPORIS – Interpretação de uma passagem das Confissões, XI, 2 in PALACIOS, Pelayo M. (org.) Tempo e Razão – 1.600 anos das Confissões de Agostinho, São Paulo: Loyola, 2002, p. 55-61; o artigo programático de Moacyr Ayres NOVAES Fº Interioridade e inspeção do espírito na filosofia agostiniana in Analytica, Revista de Filosofia do IFCS-UFRJ, volume 07/01 (2003), p. 97-112; o estudo sistemático de Johannes BRACHTENDORF “Confissões” de Agostinho, tradução de Milton Camargo Mota, São Paulo: Loyola, 2008, além de seu artigo Augustine on the Glory and the Limits of Philosophy in CARY, P; DOODY, J.; and PAFFENROTH, K. (eds.) Augustine and Philosophy, Maryland (UK): Lexington Books, 2010, p. 3-21; e os textos de: CARON, M. Être, Principe et Trinité in ID. (dir.) Saint Augustin – Les Cahiers d’Histoire de la Philosophie, Paris: Éditions du Cerf, 2009, p. 591-636; e FALQUE, E. Après la métaphysique? Le “poids de la vie” selon Augustin in DE LIBERA, A. (ed.) Après la métaphysique: Augustin? – Actes du coloque inaugural de l’Institut d’Études Médiévales de l’Institut Catholique de Paris, 25 juin 2010, Paris: Vrin, 2013, p. 111-128. Por fim, com relação às pesquisas de caráter histórico-sistemático, referenciamos inicialmente: MORESCHINI, C. História da Filosofia Patrística, São Paulo: Loyola, 2008, p. 440-483; GILSON, E. La Philosophie au Moyen-Age, 2ª edition revue et augmentée, Paris: Payot, p. 125-138 et all; SCIACCA, M. F. História da Filosofia – vol. I – Antiguidade e Idade Média, 3ª edição, São Paulo: Mestre Jou, 1967, p. 169-191; TILLICH, P. História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE, 1988, p. 105-131. 3 Confissões I, vi, 9: “Em ti permanecem estáveis as causas de todas as coisas instáveis, permanecem imutáveis os princípios de todas as coisas mutáveis, permanecem eternas as razões de tudo o que é temporal e irracional”; Vide ainda, no livro VII, i, 1: “Com

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Agostinho busca a verdade em si mesmo. Busca a si mesmo, é certo, posto que, para ele, a verdade é manifesta in confessio4, na atitude confessante, qual seja: a exposição da interioridade enquanto momento fundante da atitude perceptiva e cognitiva, apreensiva e judicativa face a exterioridade5, cujo lastro significa o desvendar do quem todas as forças da minha alma, eu te considerava incorruptível, inviolável, imutável, pois, embora ignorando a causa e o modo desta certeza, via claramente e estava certo de que tudo aquilo que é sujeito à corrupção é certamente inferior àquilo que não o é”. Para o presente estudo, todas as citações das Confissões são remissivas à tradução de Maria Luiza Jardim Amarante, 3ª edição, São Paulo: Paulus, 2006, salvo quando indicarmos outra tradução, ou remetermos ao texto latino. 4 Confissões X, i, 1: “Mas Vós amastes a verdade, pelo que quem a pratica alcança a luz. Quero-a também praticar no meu coração, confessando-me a Vós, e, nos meus escritos, a um grande número de testemunhas”. Vide também X, 2, 6. BOEHNER-GILSON observam que Agostinho trabalha com o duplo matiz de confessio: 1) expor-se enquanto alma pensante, e 2) dispor-se enquanto coração crente, ou seja: os aspectos intitulados pelos comentadores de “autobiográfico” e “teológico”, respectivamente – cf. História da Filosofia Cristã, 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1988, p. 140. Ressalte-se que, como teremos adiante ocasião de expor (capítulo II), a confessio é manifestada e realizada na entrega conducente e na atitude ouvinte à presença de Deus: confesso porque invoco; invoco porque creio – “Que eu Vos procure, Senhor, invocando-Vos; e que Vos invoque, crendo em Vós [...] Senhor, invoca-Vos a fé que me destes” (Confissões. I, i, 1; vide I, v, 5). A “circularidade” de tal atitude desvela, em verdade, o fio condutor de todo o pensamento metafísico agostiniano [acerca da qual a tese de Daniel Napier oferece-nos um exaustivo quadro referencial - NAPIER, D. From the Circular Soul to the Cracked Self: a genetic historiography of Augustine’s anthropology from Cassiciacum to the Confessions, tese de doutorado, Universidade Livre de Amsterdam, 2010, p. 41-56; trabalho revisado e republicado sob o título En route to the Confessions, Leuven: Peeters, 2013 (http://dare.ubvu.vu.nl/bitstream/handle/1871/16368/dissertation.pdf)], com reflexo fundante por todo o Medievo (vide o capítulo III de nosso estudo, sobre o pensamento boaventuriano). De resto, é a confessio o próprio instanciar-se da interioridade enquanto locus ueritas, o que, para Agostinho, equivale ao locus Dei por excelência. Vide, nesse sentido: RATZINGER, J.. Originalité et tradition dans le concept augustinien de “confessio” in CARON, M. (dir.) Saint Augustín – Les Cahiers d’Histoire de la Philosophie, Paris: Éditions du Cerf, 2009, p. 9-36 (publicado originalmente em 1957); NOVAES, M. A. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho, op.cit., p. 168-172. Vide a respeito, ainda, as análises fundamentais de UCCIANI, 1998: 43-59; e MARION, 2008: 29-40. 5 Cf. BOEHNER-GILSON, op. cit., p. 146; 149; e sobretudo p. 161-163. A intersecção entre o exterior para com o (e face ao) interior, ou mais propriamente a exterioridade apreendida e significada, na sua doação principial e em sua totalidade, na interioridade, enquanto momento originário da manifestação do ser, caracteriza o traço fundamental do agostinianismo como pensamento independente e original, bem como será o elemento crucial de sua assimilação por parte dos medievais escolásticos, notadamente os agostinianos dos séculos XII e sobretudo XIII, dos quais sobressai-se São Boaventura, cuja herança agostiniana da interioridade converge à

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sou e, principalmente, por que sou6. Mais: se, ao contrário da dúvida alimentada pelos céticos, verdade é certeza e esta advém da segurança e estabilidade, em que outro lugar haveria de ser encontrada, senão na minha própria presença da certeza, a qual evidentemente não me pode sobrevir da efemeridade das coisas múltiplas e contraditórias entre si, porém me é dada em meu íntimo, pela voz que (me) certifica a mim mesmo e a Si própria? Mas o caminho para tanto não foi curto, nem rápido, tampouco fácil. Ao longo de suas principais obras, notadamente em suas Confissões, Agostinho delineia sua trajetória filosófica até concluir pela interioridade como locus Dei e habitação essencial (enquanto essência da verdade que fundamenta a ratio, razão, humana) do ser divino. Deus está em mim, não na minha mente apenas [no nous grego (espírito inteligível universal) que em mim se manifesta como ratio], mas no meu interior como persona, ou seja, como vontade, razão e decisão, vale dizer: no meu intimus, na minha intimidade. Aqui reside, precisamente, o rasgo fulcral do agostinianismo: mais que o recolher-se à reflexão e inquirição da própria razão na mente; mais que a disciplina ascética de autocontrole imposta pela alma, enquanto expressão da verdade (ueritas) eterna, face ao corpo evanescente integrante da caducidade mundana exterior; ou, ainda, mais que tão-somente o locus in essentia, ante a matéria, da ratio em sua mimesis (memória fundamental e recorrente do conhecimento, na tradição platônica) noética, por sua vez remissiva às theorein7 (contemplação/visualização na utilização de elementos aristotélicos, compondo a simultaneidade em reverso iluminatio/abstractio como vértice de sua síntese, do que trataremos adiante em nosso estudo (cap. III). Cf. OLIVEIRA, Manfredo A. O Ocidente enquanto encontro entre a metafísica da natureza e a metafísica da liberdade: o exemplo de Agostinho in FELTES, H. P. e ZILLES, U. (orgs.) Filosofia: diálogo de horizontes, Caxias do Sul: Educs/Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 221-235. Vide também BRACHTENDORF, J. ”Confissões” de Agostinho, op.cit., p. 34-37 (em que o autor ilustra a fonte neoplatônica à interioridade); e 135-155. Cf. ainda LIMA VAZ, H. C. A metafísica da interioridade – Sto. Agostinho, op.cit., pp. 81-84. 6 Confissões X, iv, 6; vide também I, vi, 7. 7 O que de per si estabelece, desde sua origem até sua cristalização, o viés essencialmente diverso do pensamento de Santo Agostinho em relação aos paralelos históricos, anteriores e posteriores (vide, entretanto, MORESCHINI, C. op.cit., p. 443), que

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ideias eternas, no pensamento platônico), é a interioridade muito mais a presença dialogal e, sobretudo, vocativa da verdade iluminadora à receptividade responsiva da criatura. A verdade que chama e conclama a razão a responder-lhe e nela engajar-se. Muito mais “passionalidade” (expressão do desejo e da atitude de busca) que racionalidade. E, fundamentalmente: antes de ser a atividade do sub-jectum substancial e despersonalizado, componente de mero exercício racional face ao ob-jectum, ou em outros termos: antes que unicamente subjetividade, a interioridade agostiniana é, máxime e primordialmente, intimidade8. Tal equação, sendo a própria essência do pensamento

usualmente se lhe tecem, sobretudo para com as freqüentes tentativas de aproximar as doutrinas agostinianas e cartesianas quanto à cogitatio, mas igualmente para com as correntes idealistas do pensamento moderno. Nesse sentido, Pe. Lima Vaz, em breve digressão, traça o diferencial decisivo em relação à filosofia cartesiana: “O ‘cogito’ agostiniano não tem entretanto a evidência estática da idéia cartesiana [...] a evidência desta intuição assume um caráter dinâmico, ela opera imediatamente a passagem à Verdade transcendente [...] Ora, a Verdade transcendente, assim descoberta no mais íntimo da razão, é Deus [...] E justamente porque Deus é presença antes de ser idéia, descobrir o Deus-Verdade é necessariamente, para Agostinho, entregar-se ao Deus-Amor” – LIMA VAZ, H.C. A metafísica da interioridade – Santo Agostinho, op.cit., p.85. Em relação à presença (e consequente influência) da teoria de Platão, tal constituirá precisamente tópico de nosso próximo item, porém aqui referenciamos apenas os clássicos textos do Fédon, 65b–66d; A República, VII; e ainda (para eventual paralelo acerca do amor na relação com a Verdade) O Banquete, 188c-d. No tocante ao pensamento de Descartes, assinalamos tão-somente a referência obrigatória ao Discurso sobre o Método, parte III. 8 A par dos possíveis paralelos e aproximações, nossa exposição esforça-se, outrossim, por delinear o contraste cortante e de base entre as intuições principiais de Agostinho e Descartes, como tentamos caracterizar à nota 12. Por outro lado, referenciamos estudos que caminham no sentido, se não propriamente inverso, ao menos diverso do que tentamos expor. Assim, Juan Antonio ESTRADA, em Deus nas tradições filosóficas – volume 2: Da morte de Deus à crise do sujeito (São Paulo: Paulus, 2003, p. 44-58), adota precisamente a categorização da subjetividade para expor o pensamento agostiniano, remetendo-se inclusive à expressão referencial a que aludimos, redefinindo-a como metafísica da subjetividade, e entendendo que “na filosofia cristã se produz, desde o primeiro momento, um giro antropológico [...] Já não é a objetividade do cosmo o marco referencial em que se integra o homem [...] senão que o sujeito reflete sobre sua própria interioridade” (p. 44), além de referir-se a Agostinho como “grande mestre da subjetividade” (p. 45). Que Juan Estrada esteja tomando subjetividade como inserida (ou componente) no corpo semântico próprio de interioridade, parece-nos claro (além de possível opção de tradução do texto). Entretanto, o uso de terminologia moderna para exposição do pensamento cristão patrístico e, mais especificamente, agostiniano,

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agostiniano, ao mesmo tempo que recolhe e ilustra sua dívida para com matizes semelhantes dentro do pensamento grego clássico e, sobretudo, neoplatônico, marca igualmente a diferença fundamental para com tais heranças. Enquanto para o pensamento platônico a interioridade, talhada na herança socrática do oráculo délfico, vem a ser essencialmente definida como alma racional na qual se dá a reminiscência das ideias ou formas contempladas em seu mundo próprio (pelo que, ao buscar a essência das coisas, descobre-as voltando-se a si mesma para se conhecer enquanto ela mesma é originária de tal mundo suprassensível9, para o pensamento de Santo Agostinho a interioridade é o espaço da uoluntas - catalizada e sobretudo epigonizada no quaerere -, da vontade que busca, com suas paixões e razões, que se dão na luz que a ilumina e a torna o local de manifestação da palavra íntima do Criador, posto que sua própria origem e fim, portanto sua real vida e verdade, aquilo que a toma e estremece, compõe seu afeto recôndito e bem-querer, seu prazer e alegria, seu juízo e destino, numa palavra: aquilo que lhe perfaz e perpassa por inteiro, lhe faz temer e tremer, ou seja: o que reverencia e reconheçe como o absoluto e verdadeiro. Na interioridade agostiniana o conhece-te a ti mesmo socrático transmuta-se, por assim dizer, em conhece ao tu outro10, no íntimo diálogo dado na minha interioridade e realizado por quem me é a própria intimidade e essência: Deus Pai.

parece-nos impróprio, além das evidentes margens de ambigüidade e dúvida que podem gerar. Insistimos que a categorização da subjetividade, tal qual matizada pelo pensamento cartesiano, e moderno em geral, parece-nos contrastar fundamentalmente com a interioridade pessoal e voluntarista agostiniana (notas 9 e 11). Salientamos, entretanto, que tal discordância pontual em relação ao texto de Estrada não nos impede de avaliar e reconhecer sua excelência e grande valor ao nosso presente estudo. 9 Vide referências a textos platônicos basilares na nota 12. Trataremos mais detidamente da caracterização do pensamento platônico, no tocante à sua influência no agostinianismo, no item 2 do presente capítulo. 10 Cf. GILSON, E. O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 278-303, onde Gilson trabalha o paralelo entre o oráculo délfico socrático e o autoconhecimento cristão a partir da Imago Dei, para tratar do que intitula “socratismo cristão” (vide especialmente, no tocante a Sto. Agostinho, as p. 283-288; 293294; e 300-301). Vide ainda COSTA, M. R. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho, São Paulo: Loyola, 2008, p. 23.

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§ 1 - Gênese da noção Toda a obra de Santo Agostinho é, propriamente falando, diálogo e escuta, introspecção e aprofundamento no recolhimento interior11. Mas são as Confissões que melhor ilustram a origem e o desenvolvimento da noção de interioridade como intimidade em sua trajetória filosófico-teológica12. O caminho percorrido por Agostinho passa pelo início no sensualismo hedonista, avança para o embate com os maniqueus (cujo dualismo ontológico, inversamente projetado, favorece o questionamento individual e interiorizado)13, detém-se por breve período (porém de modo intenso) no ceticismo acadêmico, passa pela assimilação reluzente e como que libertadora do neoplatonismo para, finalmente, culminar na entrega plena e apaixonada à fé cristã. Tal trajetória foi percorrida, desde os acerbos prazeres da juventude até os debates com os céticos, com angústias e sofrimentos: “... sua vida intelectual estava povoada de dúvidas e de inquietações.”14 Percebe-se que, desde seu início, a trajetória de Agostinho é marcada pela angústia e inquietação que o levam, sempre mais, à busca integral pela verdade, com ímpeto vital e com todo seu ser, vale dizer: sentimento e paixão, razão e emoção. Mas a paixão e a angústia

Cf. LIMA VAZ, H.C. A metafísica da interioridade – Santo Agostinho, op.cit., p. 83. Vide ainda GUARDINI, R. La conversión de Aurélio Agustín, Bilbao: Desclée De Brouwer, 2013, p. 35-43; OLIVEIRA E SILVA, 2007: 139-140. 12 “... ‘interior intimo meo’ [Confissões III, vi, 11] – interior ao meu íntimo. Formula-se aqui um programa agostiniano da procura de Deus: a partir do conhecimento de si, o homem pode chegar ao conhecimento de Deus. É preciso que o homem faça o esforço de conhecer a si mesmo, para então atingir algum conhecimento do princípio que o transcende. Convém, então, percorrer esse itinerário, que conduz à introspecção (investigação do homem interior), e depois à sua transformação em conhecimento de Deus.” – NOVAES Fº, M. A. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho, op.cit., p. 174. 13 Cf. BOEHNER-GILSON, História da Filosofia Cristã, op.cit., p. 143. 14 FRANGIOTTI, R. História da Teologia – Período Patrístico, São Paulo: Paulinas, 1992, p. 79. Para um rápido transcurso do caminho filosófico de Agostinho, cf. BOEHNER-GILSON, op.cit., p. 143-151. Com vistas a um aprofundamento no trajeto pessoal e intelectual agostiniano, vide os grandes ensaios biográficos: BROWN, P. Santo Agostinho: uma biografia, 7a. edição, Rio de Janeiro: Record, 2012; e LANCEL, S. Saint Augustin, Paris: Fayard, 1999; vide ainda a concisa biografia de Giuliano VIGINI Santo Agostinho: a aventura da graça e da caridade, Paulinas: 2012. 11

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que derivam do caráter evanescente da realidade corporal, à qual dera tanta atenção e na qual vivera seus maiores prazeres, o impedem de adquirir aquilo que se lhe afigura como a própria razão e sentido do existir: ser feliz. Felicidade é perenidade. Ser feliz é ser eterno15. A futilidade e vaidade (uanitas) – cujo fruto pertinaz consubstancia-se na vã curiosidade que obscurece o verdadeiro conhecimento - percorrem os mais intensos prazeres, trazendo angústia e vazio na mesma proporção de intensidade. Ou seja: a mentira se revela intensa tanto quanto a vã busca de realização na corporeidade, na efemeridade da carne. Decididamente, a certeza – caráter e definição da verdade que leva à felicidade – não pode estar situada na matéria. Esta, por sua vez, é a instância daquilo que é passageiro e fugaz, sobretudo do insuficiente e irrealizado. É neste sentimento que encontramos a gênese da interioridade agostiniana: a inquietude advinda da insuficiência da realidade material. A busca íntima da certeza (realização) eterna: eis pois a matriz com a qual Agostinho trabalhará na formação e cristalização de seu conceito de interioridade.

§ 2 - Influências históricas e biográficas Em sua origem e desenvolvimento, o conceito de interioridade advém, no pensamento agostiniano, do próprio transcorrer da vida de Santo Agostinho16. Sua matriz primeira é, efetivamente e como anteriormente dissemos, sua própria experiência da insuficiência e da efemeridade de todo ser conhecido que se origina neste mundo, e para ele se volta e se restringe em sua busca de realização e do sentido do Com vistas ao caráter eudaimonístico (realização em felicidade, vida feliz) fundamental da filosofia agostiniana - sobretudo em sua ética e moral – vide o trabalho de Marcos Roberto Nunes COSTA Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho, op.cit. [notadamente, para nosso estudo, o capítulo 1 – O eudaimonismo antropológico de Santo Agostinho, p. 19-50 (sobretudo 20-26)]. Cf. BRACHTENDORF, J. “Confissões” de Agostinho, op.cit., p. 14-15. 16 “A força do pensamento agostiniano surgiu da sua própria experiência vital.” – SARANYANA, J-I A Filosofia Medieval, op.cit., p. 68; “Para bem compreendermos o conceito agostiniano de Deus, teremos de examinar [...] os antecedentes deste conceito na própria vida do nosso autor.” – BOEHNER-GILSON, História da Filosofia Cristã, op.cit., p. 142. 15

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ser. A influência de sua história pessoal, em consonância à vivida pelo cristianismo em um momento histórico decisivo (final do período romano, esvaziamento do pensamento helenístico)17, fornece o manancial para que se tenha origem e tome corpo a noção de interioridade/ intimidade em seu pensamento. É com base primeiramente nos seus dramas pessoais, sempre vividos de modo total e febril; bem como, num segundo momento, operando como pastor de almas e no embate com os desafios postulados à fé da Igreja (que são, em última instância, os embates que trava consigo mesmo), que Agostinho comporá suas obras, das quais suas Confissões tornam-se o retrato de identificação e guia para mapearmos sua construção18. Não obstante a desnecessidade de repisar a ênfase no arcabouço bíblico-teológico do pensar de Agostinho19, vale relembrar o contex-

Cf. BOEHNER-GILSON, op.cit., p. 139; FRANGIOTTI, R. Introdução às Confissões, op.cit., p. 12-13. 18 Na retenção e delineamento, a partir de sua importância filosófica e teológica, dos tópicos essenciais do contexto histórico, pessoal e eclesiástico de Agostinho, valemo-nos, além das obras já referenciadas de MORESCHINI [p. 441-448] e BRACHTENDORF [p. 11-29], primeiramente da excelente exposição de Justo L. GONZALEZ em sua obra Uma História do Pensamento Cristão – volume 2: De Agostinho às vésperas da Reforma, traduzida a partir da segunda edição inglesa de 1987, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 15-54, valiosa pela agudeza da análise teológica a partir da herança biográfica e filosófica de Agostinho, lastreada por sólida erudição e sobretudo pelo forte teor dialogal e interdenominacional cristão. Vide também, para uma análise protestante do itinerário filosófico-teológico de Agostinho (e seus reflexos nas tradições luterana e calvinista): HÄGGLUND, Bengt História da Teologia, 3ª edição, Porto Alegre/São Paulo: Concórdia Editora, 1986, p. 95-118. Cf. ainda, os excertos correspondentes ao contexto histórico-eclesiástico, nas grandes biografias: “Como quer que fosse, Agostinho sempre vivera suficientemente inserido na esfera do cristinanismo para que sua imaginação fosse captada tanto por um apóstolo quanto por uma sábio pagão: para ele, ambos eram vigi magni, os ‘Grandes Homens’ de seu passado curiosamente misto. [...] Com efeito, era um convertido entusiástico à ‘Filosofia’, mas essa ‘Filosofia’ já deixara de ser um platonismo independente. Fora ‘ fortalecida’, de maneira sumamente individual, pelos ensinamentos mais sombrios de São Paulo e, num nível muito mais profundo, passara a se identificar com a ‘religião entranhada em nossos ossos na infância’ – ou seja, com a sólida devoção católica de Mônica.” – BROWN, 2012: 123-127; cf. LANCEL, 1999: 130-132. Vide igualmente: BLÁZQUEZ, 2012: 34-46. 19 “Todo o pensamento agostiniano [...] gravita em torno de Deus.” – BOEHNER-GILSON, op. cit., p. 142. Relembremos entretanto o que anteriormente foi dito, à nota 20, sobre o eudaimonismo praticado e vivenciado por Agostinho, o qual constitui, segundo vários estudiosos, o eixo conceitual de toda a sua reflexão. Nesse sentido, 17

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to eminentemente voltado à doutrina cristã, insurgente e fio conducente-estruturador de toda sua obra. Mas a busca de Agostinho, mais que limitada às suas próprias dúvidas e inquietações, representou um momento próprio da Igreja, epitomizando toda uma época de conceituações e, sobretudo, de sedimentação doutrinal após séculos de disputas em torno de definições, clarificação e esmiuçamento dos conteúdos cridos e “depositados” sob a fé apostólica. Numa palavra: Agostinho é a síntese e culminância da Patrística20. Em seu pensamento, ocorre a confluência das duas grandes correntes de pensamento patrísticas: a apostólica e a apologética21. Sua doutrina ética e seus desenvolvimentos espelham com precisão a época de sua escrita. Outrossim, não somente pelo momento de transformação, que compõe um dos marcos epocais da história ocidental, mas sobretudo pelo curso doutrinário e teológico interno do cristianismo, mais especificamente da Igreja Latina, é que o contexto histórico de Agostinho representa, para a compreensão da feitura de seu pensamento, elemento de fundo e vértice fundamental. O entendimento praticamente uníssono de que a obra de Agostinho ilustra “o fim de uma era” advém quase que exclusivamente face à queda do Império de Roma, e o próprio momento imediato da morte de Agostinho – invasão pelos bárbaros - como que traduz literalmente o declínio da civilização romana clássica. Uma de suas obras, talvez a mais conhecida depois das Confissões, verte emblemática e precisamente o empenho agostiniano na discussão ética e atentando à centralidade da temática ético-antropológica, portanto eminentemente filosófica, na obra agostiniana, Brachtendorf afirma que “... o tema das Confissões [...] é a felicidade do ser humano. [...] Com o tratamento dessas questões [acerca da felicidade do ser humano], as Confissões de Agostinho estão em continuidade com a ética antiga, em geral, e com a filosofia helenística e neo-platônica, em particular.” – BRACHTENDORF, J. “Confissões” de Agostinho, op.cit., p. 4. Vide ainda COSTA, Marcos R. N. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agositnho, op.cit., p. 19-20; MORESCHINI, C. História da Filosofia Patrística, op.cit., p. 442-446. 20 “Agostinho representa o final de uma era, bem como o começo de outra. [...] As principais correntes da teologia clássica convergiram nele...” – GONZALEZ, J. L. op.cit., p. 15; “... a imensa obra de Santo Agostinho significou a acolhida, a assimilação e a transmissão da cultura greco-romana e judaico-cristã para a Idade Média.” – SARANYANA, J.-I. A Filosofia Medieval: das origens patrísticas à escolástica barroca, São Paulo: I.B.F.C.R.L, 2006 ., p. 71. 21 Cf. MORESCHINI, C. op.cit., p. 480.

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política, à luz da vivência peculiar do enfraquecimento progressivo de Roma (pelo que solicita-se a Agostinho – então autor já célebre – uma defesa do cristianismo diante de novas mas recicladas acusações): A Cidade de Deus (De ciuitate Dei)22. Assim, ante a necessidade de uma como que retomada da apologética, agora sob nova feição (o cenário político então reinante); ante o trabalho eminentemente pastoral, cuja atuação, contrastando com as gerações que o precederam, deve agora levar em conta os três séculos de disputas e discussões teológicas que terminaram, por assim dizer, estabelecendo definitivamente a ortodoxia doutrinal da vivência eclesiástica23 – ainda que o entendimento praxiológico estivesse longe, o que levaria ainda séculos, como por exemplo a doutrina sacramental da ceia24 – assim é que Agostinho reestabelece a própria relação entre a fé e a especulação racional, não somente através de uma espécie de recapitulação, ou reordenação, de seu itinerário convergente à conversão, mas pela perenidade da própria interioridade (enquanto locus Dei a espelhar a Imago Dei, em sua manifestação primordial de revelação e palavra à escuta do coração humano dela necessitado), fazendo como que esta – a razão - seja em verdade o itinerário da alma à Deus, ou seja, a própria feitura e perfazimento, na interioridade, do entendimento e sabedoria (portanto, da filosofia), em sua verdadeira acepção e definição. É na relação crer/inteligir, definida e celebrizada uma vez por todas e que viria a se tornar mote talvez o mais influente de toda a história do pensamento cristão (posto que, sendo a própria catálise de toda uma era, funda o entendimento relacional das seguintes), que verificamos cristalizada a influência maior da vivência pessoal de Agostinho no mote fundamental: crede ut intelligam. Crer para inteligir bro Cf. COSTA, M. R. op.cit., pp. 11-12. MORESCHINI, C. Idem, ibidem. 24 Permitimo-nos aqui a referência à nossa tentativa de exposição, acerca da doutrina eucarística de São Boaventura, na qual traçamos breve panorama acerca de tais disputas – PIGNATARI, R.C. A doutrina da eucaristia no Breviloquium de São Boaventura: uma leitura introdutória a aspectos filosófico-teológicos para aproximações ecumênico-libertárias (1ª. Parte), Grupo de Estudo e Pesquisa em Filosofia Medieval do Centro Universitário Assunção – UNIFAI, São Paulo, 2008 (https://gruposdeestudounifai.files.wordpress.com). 22 23

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ta, na reflexão agostiniana, mais da história pessoal e particularmente apaixonante de seu autor, que de qualquer outra influência ou herança que lhe fosse externa. Crede ut intelligam é na verdade o princípio princeps atuante da interioridade enquanto locus Dei, portanto enquanto audição primordial do coração humano à uox Dei (voz divina)25.

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Vide nossa tentativa de aprofundamento a respeito: PIGNATARI, R.C. Plenitudo Principii – O itinerário da mente em Deus nos diálogos de Santo Agostinho, São Leopoldo: Oikos Editora, 2015, p. 68-101, em que, no capítulo 1 - Articulação credere-intellegere na pleromarquia de princípio, intentamos apontar para a localização determinante, no contexto das assim chamadas “provas da existência de Deus” presentes no período dos diálogos de Cassicíaco-Roma, da polaridade credere-intellegere enquanto articulação primeira e ensejante da exposição relativa à ascensão do conhecimento humano, levada a efeito por Agostinho no livro II d’O Livre-Arbítrio, igualmente um tópico reiterativo na fase inicial (A Grandeza da Alma xxxiii, 70 – xxxvi, 81; A Ordem II, x, 25-37; A Verdadeira Religião, xxix, 52 – xxxv, 67), bem como nas composições intermédias (Confissões VII, xv-xviii; IX, x); e ainda nos grandes tratados dogmáticos (A Trindade XII, i, 1 – iv, 4; XV, i, 1 – ii, 3). Procuramos expor como a polaridade fé-intelecção, contemplando a postura cética da suspensão do juízo cogniivo partilhada por Evódio (O Livre-Arbítrio II, ii, 5ss), qualifica a ambos os polos do binômio como assentados em relação de referência recíproca, vale dizer: na simultaneidade própria aos polos binomiais, que se mostrará como essencial ao desenvolvimento da visão agostiniana do conhecimento, matizando a articulação como atitude principial para a feitura cognitiva da realidade, consubstanciada, em nosso texto-base, no itinerário intelectual, via universo, àquele cujo conhecimento prévio no dado assentido in credere enseja sua consumação in intellegere. A concepção agostiniana, a partir da nota criacional e providencial exposta em O livre-arbítrio II, i, 1 – ii, 6, fundamenta sua visão de síntese na articulação fé-intelecção, cuja reciprocidade essencial interna faz apontar para a visão imediata de uma composição na simultaneidade, não mais restrita à hipóstase da Inteligência criadora, como no sistema plotiniano, mas essente e perceptível na presença do absoluto e eterno na realidade criada em sua totalidade, na qual todas as suas partes ostentam vestígios e sinais do Criador (cuja presença fora antecipada no credere), compondo mais a visão de um mosaico em expansão (ou feitura) horizontal (antecipada no intellegere), do que a visão verticalizante de uma escada. Se na filosofia plotiniana as realidades inferiores encontram-se situadas nos degraus superados, distanciados e/ou afastados da realidade inteligível, no pensamento agostiniano a criação em totalidade, desde seus níveis mais elementares e sensíveis até as realidades mais espirituais, consuma-se in totum e em simul, num quadro completo e mosaicizado da atividade noética sem exclusões, mas ostentando a plenitude (pleroma) de tudo incluso (intelecção) na percepção do todo (assentimento em fé), possibilitando-nos visualizar a estruturação da realidade universal, em Agostinho, mais como pleromarquia [pleroma/pleroma: plenitude; arch/arché: princípio] principial (presença plena e imediata) enquanto fundamento do ser, do que uma hierarquia estrutural (representação progressiva e processual) enquanto estamento dos entes. Metaforicamente, a escada verticalizante da estruturação em hierarquia não permite a visão

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Nesse sentido, tentemos repassar brevemente seu percurso intelectual, facilitado pelo dramático, mas resoluto caminho narrado nas Confissões. A vivência de sua juventude e início da vida adulta, perpassada pelo sensualismo voluptuoso, bem como pelo materialismo de cunho maniqueísta, formou-lhe nítida visão a respeito do alcance e limite de tais posturas e, sobretudo, permitiu-lhe agudizar a experiência de insuficiência da sensação e da matéria para perceber que, encerradas em si mesmas, o desfecho de ambas compõe vaidade e nulidade, mas sobretudo a fugacidade da realidade exterior sensual e material. O “reino da efemeridade” não traz felicidade. Esta, em sua medida verdadeira, anseia pela eternidade e a perenidade em sua vivência. A experiência, a partir da sua insuficiência vital e de modo intenso, da fugacidade dos corpos e seres em sua materialidade, define a noção matricial com a qual Agostinho irá se pautar em sua busca e, acima de tudo, vivência da verdade. Tal matriz - conceito recorrente e permeante de toda a reflexão e escrita agostiniana - por si mesmo aponta para a sua própria superação: a infelicidade da ausência e da perda, dão-se unicamente à luz da ânsia vital pela eternidade. Ora, esta não seria reconhecida (traço platônico) ou, mais propriamente ao espírito agostiniano: sentida e vivenciada, não estivesse ela própria condicionando a experiência da fugacidade radical da realidade material. Nesse sentido, a experiência da insuficiência vital da realidade material e sensível remete - não por si mesma, mas como por reflexo - à intencionalidade própria da condição humana, que aspira sua realização essencial enquanto existência temporal26. Aqui se situa outro grande eixo do pensamento agostiniano: a insuficiência da materialidade reclama e incita – intenciona – ao recolhimento do eterno em mim, noutros termos: a experiência da fugacidade e insuficiência da realidade exterior, conduz à realidade interior, remete de imediato à interioridade. Toda a passionalidade, e mesmo a exuberância, das experiências vividas nas páginas autobiográficas dos livros I-IX das Confissões, mais

de seus polos ao mesmo tempo, ao passo que a visão em mosaico da realidade em horizontalidade, própria da pleromarquia agostiniana, permite o simul total de imediato, possibilitado na antecipação prefigurativa da articulação crer-inteligir. 26 BRACHTENDORF, op.cit., p. 14.

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que apontar à sua própria culminância e “justificação” descritas no livro X, são na verdade definidas e como que rememoradas à luz deste. Em realidade, não são os primeiros nove livros das Confissões que caminham e apontam para a autorreflexão em interioridade do livro X, mas sim este é quem permite e na verdade fomenta a escrita rememorada daqueles. É a atemporalidade em prelúdio da eternidade, fazendo-se presente e conduzindo à interioridade, quem ilumina a insuficiência e transitoriedade do caminho percorrido até então. Numa palavra: vivenciamos a presença da eternidade em nossa interioridade e, na verdade, de pronto tateamos perdidos até cair em si, ou melhor: na eternidade-verdade-divindade, ou ainda: na interioridade. A eternidade é que me possibilita/presentifica experimentar e saber da fugacidade do mundo, e esta só é vivida como tal porque somos feitos à eternidade, “e nela vivemos e nos movemos” (Atos dos Apóstolos 17, 28).

§ 3 - O maniqueísmo Mas seria unicamente a fugacidade, e o caráter pueril de tudo que está em seu domínio temporal, os únicos “responsáveis” pelo fato da matéria e da sensação não possuírem o “dom” de eternizar a alegria e o prazer? Por quê identificar a verdadeira felicidade à perenidade e, mais que tudo, ao eterno? Sobretudo, por quê a verdade, não se instanciando na matéria e na sensualidade, haveria de se situar no recôndito humano? Responde-nos mais uma vez as Confissões, ou seja, a trajetória pessoal de Agostinho, com sua passagem talvez a mais famosa: “... fizete-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” [I, 1]. Entretanto, para que tenhamos claro o motivo pelo qual Agostinho situa no recolhimento, ou recuo ao interior, o movimento essencial da inquietude em busca querente a Deus, situando nesta o locus Dei = locus ueritas), convém relembrar que Agostinho esposou, primeira e explicitamente, o maniqueísmo como escola de pensamento, na verdade um conjunto de crenças e traços traditivos de origens diversas. É, de fato, este conjunto que, em certa medida, vem a moldar, ou permite delinear, o caráter da busca agostiniana até então, e que na verdade permanecerá mote recorrente até sua maturidade cristã. 36

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Assim, ao lado de sua herança patrística (à qual Agostinho irá sintetizar e conferir a definitiva feição às gerações futuras, e sobretudo à Igreja, já em sua tarefa episcopal), o contato e posterior embate com os maniqueus foi certamente a influência pessoal mais significativa para talhar o quaerens agostiniano. Nesse sentido, podemos perguntar: qual o valor, e sobretudo a eventual “herança” que permaneceu no pensamento agostiniano, do seu envolvimento no maniqueísmo? Qual seu significado para o posterior desenvolvimento intelectual de Agostinho? Para se ter um posicionamento claro acerca de tais pontos, convém expor aspectos basilares de tal movimento, melhor clarificados após estudos e pesquisas das últimas décadas27. Sumarizados seus aspectos fundamentais, parece-nos ressaltar, da feitura geral do maniqueísmo, que seu dualismo essencial coaduna-se perfeitamente ao quadro geral das grandes sínteses ancoradas em cosmo/antropovisões libertárias quanto à situação humana “encarnada” e “caída”. A doutrina maniqueia propunha uma ascese e disciplina voltadas à redenção cósmica de todo o universo, na qual a libertação humana compõe movimento sincronizado ao do universo em si. Assim, o maniqueísmo apresentava-se como um movimento de convergência e síntese de caráter fundamentalmente soteriológico antes que especulativo – oferecia ampla visão explicativa do universo, na qual o dualismo cósmico expresso no “Princípio do Bem/Princípio do Mal” era, mais que alicerce, um como que corolário compreensivo de toda a síntese das grandes sabedorias de libertação espiritual. Por vezes, tal dualismo é caracterizado como pura e simplesmente um embate de vetores opostos, na luta cósmica e eternal. Porém – e esse talvez seja o traço mais importante a ressaltar para nossa verificação da influência 27

Nossa caracterização do princípio estrutural do maniqueísmo tem por base a exposição que dele nos oferece Justo GONZALEZ em Uma História do Pensamento Cristão – volume 2: De Agostinho às vésperas da Reforma, traduzida a partir da segunda edição inglesa de 1987, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 17-20, com ampla indicação bibliográfica. Cf. o verbete de COYLE, J. K. Manés, Maniqueísmo in FITZGERALD, A. D. (dir.) Diccionario de San Agustín (San Agustín a través del tiempo), traducción de Constantitno RuizGarrido, Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2001, p. 831-838 (sobretudo p. 832-835). Vide ainda os sumários doutrinais fornecidos por BROWN, 2012: 57-70; e LANCEL, 1999: 64-67.

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e eventual presença de elementos componentes da cosmo/antropovisão maniqueia na síntese agostiniana da maturidade - o maniqueísmo compõe mosaico de lutas in uoluntas, ou seja: são princípios cuja feição de atuação ocorrem voluntariamente, em decisão de um face (ou contra o) ao outro. Há como que um voluntarismo de base no quadro cosmológico maniqueísta que, se não se verifica como influxo direto no pensamento agostiniano, certamente lhe forneceu um motivo para trabalhar de modo mais acurado o vetor da uoluntas na inquietude do coração humano. O traço biográfico fundamental de Agostinho é a inquietude da busca. O anseio de ver e sentir o real, o verdadeiro. Sua busca pela verdade compõe, não um exercício isento e restrito à ratio, mas um empenho, um cuidado, uma pré-ocupação28. A verdade – e consequentemente, a felicidade – não está situada na definição e nas Ideias unicamente, a compor um mundo à parte do sentimento, mas sim, e precisamente, na disposição gerada pela paixão e pelo desejo, posto que a verdade, mais que contemplada ou sabida, ou ainda conhecida, há de ser vivida e saboreada. Numa palavra: a verdade me realiza. Uma verdade que me distanciasse de sua vivência e sentido; que me julgasse mais que me acolhesse, não seria de pronto verdadeira.

§ 4 - Herança filosófica e teológica a) Platão e a filosofia socrática: alma como essência ideal O trajeto pessoal e sua influência na obra de Agostinho traz, como já o fizemos notar, a referência de base da tradição platônica para a elaboração de seu pensamento. Com efeito, é a escola neoplatônica quem irá lhe fornecer instrumental determinante em um momento que lhe 28

São tais categorias vivenciais, tomadas à base da atitude filosófica de Agostinho, que Heidegger irá referenciar como existenciais, tomando-as como norte de análise à sua leitura do livro X das Confissões, bem como percorrendo seu traço histórico permeando a composição do conceito de angústia na filosofia ocidental, mormente em Lutero e Kierkegaard, do que trataremos adiante, no capítulo IV de nosso estudo.

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foi crucial: o de sua conversão do ceticismo (ao qual fora como que “induzido” a nele incursionar, dada a frustração com o maniqueísmo) à visão da possibilidade da existência da verdade, ou seja, preparou-o intelectualmente ao crer cristão29. Tomada em uma acepção generalizada, a noção de interioridade remete primeiramente, dentro do pensamento ocidental, à Sócrates e ao platonismo. Ao trabalhar a herança dos mitos órficos, somada à filosofia de Pitágoras, a tradição socrático-platônica define a tarefa do filósofo como busca pela essência ideal da realidade, voltando-se para a instância que transcende a multiplicidade e o devir contínuo, revelado pelo conhecimento sensível das coisas deste mundo: a psiché, alma, a qual está voltada, através da reminiscência, para o conhecimento das Idéias anteriormente contempladas no Mundo Ideal. O conhecimento verdadeiro é, portanto, o rememorar as Ideias que são a verdadeira realidade, das quais as coisas desse mundo material são projeções limitadas e imperfeitas30. Urs von Balthasar acentua categoricamente que “o neoplatonismo e o cristianismo apresentam-se em uníssono aos olhos de Agostinho: a forma filosófica e a doutrina cristã que ele recolheu e estruturou, justamente nesta forma filosófica. Seus primeiros escritos dão testemunho, com igual força, de uma e de outra.” – VON BALTHASAR, H.U. Gloria: una estética teológica, volume 2, Madrid: Ediciones Encuentro, 1986, p. 98. Antes, Von Balthasar pontuara que “... já nos escritos de Cassicíaco se reconhece Agostinho como absolutamente cristão e crente, e, como demonstrou Courcelle, Agostinho conheceu Plotino nas pregações milanesas de Ambrósio, e em suas relações com o sacerdote Simpliciano, que era cristão neoplatônico.” – Idem, ibidem. 30 Com relação ao pensamento platônico, tendo em vista uma aproximação introdutória, bem como o tema específico deste capítulo, elencamos primeiramente a obra de Thomas M. ROBINSON A psicologia de Platão, tradução de Marcelo Marques, São Paulo: Loyola, 2007, referência para se avançar na temática precisa da alma e conhecimento interior na tradição platônica, sendo a tradução baseada na 2ª edição ampliada de 1995, contendo vasta e atualizada bibliografia, além de prefácio do autor à edição brasileira. Na contrastação entre platonismo e agostinianismo, mormente no tocante às noções de intelecção da alma e interioridade metafísica, respectivamente fundamentais aos dois sistemas, seguimos com relação ao primeiro a pesquisa de Robinson, que se nos revelou fonte a mais segura e lúcida de que pudemos ora dispor. Outrossim, objetivando aproximação inicial à filosofia platônica, igualmente elencamos o texto clássico de Victor GOLDSCHMIDT Os diálogos de Platão – Estrutura e método dialético, São Paulo: Loyola, 2002 (sobretudo, para nosso presente estudo, o capítulo I da Segunda Parte: Os diálogos acabados – Sofista, Fédon, Protágoras, p. 157-208); ID. A Religião de Platão, São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963; DIXSAUT, Monique. Platon, Paris: Vrin, 2003; PRADEAU, J.-F. 29

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A descrição acima, evidentemente sumária e rudimentar, procura tão-somente pontuar, no âmbito temático de nosso estudo, um dos traços mais característicos da filosofia platônica: a alma como a instância do conhecimento verdadeiro, posto que superior aos sentidos e capaz de alcançar a essência ideal da realidade material31. Voltar-se ou deter-se na alma vem a ser, efetivamente, a missão do sábio filósofo em sua busca pelo reconhecimento e definição da verdade das coisas, juízos, valores, enfim: a ética e a moral32. A verdade está na alma que vislumbra, por sua própria natureza e essência, o Mundo das Idéias, (coord.) Platon: les formes intelligibles, Paris: P.U.F., 2001; MORAVCSIK, Julius. Platão e o platonismo, São Paulo: Loyola, 2006, p. 23-67; LIMA VAZ, Henrique C. Contemplação e dialética nos diálogos platônicos, São Paulo: Loyola, 2012; ID. A ascensão dialética no Banquete de Platão in ID. Escritos de Filosofia VIII – Platonica, São Paulo: Loyola, 2011, p. 49-67 (texto originalmente publicado em 1959); PERINE, Marcelo. Platão não estava doente, São Paulo: Loyola, 2014; BRISSON, Luc. Leituras de Platão, Porto Alegre: Edipucrs, 2003; MARQUES, Marcelo P. Platão, pensador da diferença, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 39-62 e 113-134; SOARES, Marcio. A ontologia de Platão, Passo Fundo: Editora Universitária, 2001, p.116-128; SZLEZÁK, Thomas Alexander. Platão e a escritura da filosofia, tradução de Milton Camargo Mota, São Paulo: Loyola, 2009. Enfim, particular e majoritariamente interessante ao nosso presente desenvolvimento (vide capítulo IV adiante), são os imprescindíveis ensaios que firmaram a interpretação heideggeriana de Platão – cf. HEIDEGGER, M. A teoria platônica da verdade in ID. Marcas do Caminho, tradução de Enio P. Giachini e Ernildo Stein, Petrópolis: Vozes, 2008, p. 215-250; ID. Ser e Verdade – 2. Da essência da verdade, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 134-271; ID. Parmênides, Petrópolis: Vozes, 2008, p. 170-186. 31 Será predominantemente no grupo de diálogos conhecidos como socráticos que se dará a exposição explicitada e formal da visão platônica da psiché em consonância à realidade das Formas, numa palavra: o delineamento do conhecimento efetuado na – e pela - alma como a essência da verdade – cf. ROBINSON, T. op.cit., p. 39-57. Para a ligação entre o conhecimento da alma e a verdade essencial, ou seja, a correlação gnosiologia-metafísica na teoria das Formas platônica (relação essencial na feitura de todas as correntes “herdeiras” da tradição platônica, o que bem pode incluir o agostinianismo), vide SOARES, M. op.cit., 123-125. Cf. ainda: CARDOSO, Delmar. A alma como centro do filosofar de Platão, São Paulo: Loyola, 2006 (sobretudo o capítulo III, p. 111-156). 32 Com relação ao ideal ético-epistemológico platônico, vide a contribuição de Michael Erler quanto a uma leitura situada da imagem alegórica da Caverna (ícone da paideia platônica em sua dimensão moral e política), no contexto da “propedêutica ética” na qual, “em continuação daquela praeparatio philosophica que Sócrates recomenda no Górgias e ilustra no Fédon [...] Platão primeiro ilustra e depois discute nos diálogos [a tentativa] de impelir ‘os homens como eu e você’, prisioneiros da caverna das ilusões, a virar-se e a mudar a direção do seu olhar.” – ERLER, M. “Sócrates na caverna” in MIGLIORI, M. e VALDITARA, L.M.N. (orgs.) Plato Ethicus: a filosofia é vida, São Paulo: Loyola, 2015, p. 134-135 (o artigo compreende as p. 121-135 do compêndio).

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contrapondo-se ao mundo sensível que nos é conhecido pelo corpo e pelos sentidos33. O vislumbre da essência que forma a realidade conhecida compõe a teoria, a contemplação da verdade, pelo que a qualificação do platonismo, em seu eixo constitutivo, como teoria das Formas ou Ideias, não deixa de expressar certa redundância, posto que a teoria é a própria atividade de conferir ou vislumbrar a forma (ou o seu eidos) da materialidade captada pelos sentidos. A atividade teorética é originada no Mundo Ideal, onde a essência humana – sua psiché – é igualmente originada, sendo a atividade da alma, antes de somar aos sentidos – de se encarnar, portanto – essencialmente contemplação. Já inserida na realidade material, a alma reconhece a essência ideal do mundo material pela retomada de sua atividade originária exercida na instância das Formas , ou seja, a alma retoma sua memória da vivência essencial do Mundo Ideal. Ela atua em reminiscência. O reminiscer, por assim dizer, a realidade é, de certa forma, abarcar, no conhecimento gradual e processual dos níveis de ser dos entes e coisas, todo o real contemplado em eternidade e absolutidade, em transcendência à limitação espacial-temporal. Numa palavra: a alma é como que o lugar do real essencial das coisas conhecidas, ou do que é verdadeiramente conhecido em sua essência34. Tal caracterização do platonismo, em seu traço mais marcante, permanecerá como herança própria de todos os movimentos de aprofundamento e introspecção espirituais posteriores35, como também irá caracterizar as correntes filosóficas posteriores ao apogeu do pensa-

Vide os diálogos Fédon; Fedro; na fase posterior: Parmênides. Noutra vertente de interpretação, porém, aduz Jaime Paviani: “se a relação entre a reminiscência, as Formas e a aprendizagem nos três diálogos mencionados [Mênon, Fédon e Fedro] é evidente, em A república, Platão argumenta a partir da teoria das Formas, porém sem mencionar a reminiscência. Entretanto, um dos objetivos de A república é o projeto educacional da polis justa. Nessa altura, Platão parece ter abandonado a teoria da reminiscência, aliás, como mais tarde parece abandonar a teoria das Formas. O que ele deseja continuamente é construir um projeto educacional e, nesse sentido, a hipótese provável está no aperfeiçoamento ou na substituição da teoria da reminiscência pela visão noética, como sem encontra exposta em A república, livro VII.” – PAVIANI, J. As origens da ética em Platão, Petrópolis: Vozes, 2013, p. 126-127. 35 Cf. LIMA VAZ, H. C. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, São Paulo: Loyola, 2000, p. 30-37 33

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mento grego dos séculos V e IV a.C. Entretanto, para a finalidade de nossa pesquisa, tentaremos expor um breve resumo acerca da corrente de pensamento que, de modo sistemático, recolhe a herança platônica numa ampla construção especulativa, formando uma síntese com elementos de outras correntes e religiões – entre as quais o próprio aristotelismo, visto desde a origem como antítese por antonomásia do platonismo – que permanecerá como a suma por excelência, aos olhos de Agostinho, de toda a filosofia grega no que tem de melhor e, acima de tudo, legitimamente em consonância às melhores aspirações da fé cristã: Plotino e o neoplatonismo. Agostinho assimila o pensar de Platão pela via plotiniana.

b) Plotino e o neoplatonismo A exposição de Plotino acerca da atividade da alma36, enquanto conhecimento da realidade última transcendente e imutável, pode ser melhor compreendida atentando-se à sua funcionalidade dentro da concepção do universo como realidade estratificada pelos diversos níveis de ser e verdade. Da multiplicidade verificada no universo material, o conhecimento sensível se avulta como primeiro nível de tomada de contato com a realidade emanada do Uno, porém fragmentado, efêmero e limitado. De tal nível primário é a alma impulsionada a conhecer a realidade permanente e única, não sujeita a mudanças e à transitoriedade características da materialidade. Plotino afirma haver

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Com relação ao pensamento plotiniano, com vistas a uma primeira leitura e aproximação, vide: NARBONNE, Jean-Marc. La métaphysique de Plotin (suivi de Heidegger-Plotin: Henôsis et Ereignis), 2a. édition revue e augmentée, Paris: Vrin, 2001 (tradução portuguesa: A metafísica de Plotino, São Paulo: Paulus, 2014); ULLMANN, Reinholdo A. Plotino: um estudo das Enéadas, 2ª edição, Porto Alegre: Edipucrs, 2008; SZLEZÁK, Thomas A. Platão e Aristóteles na doutrina do Nous de Plotino, São Paulo: Paulus, 2010; PANERO, Alain. Introduction aux Ennéades: l’ontologie subversive de Plotin, Paris: L’Harmattan, 2005; LACROSSE, Joachim. La philosophie de Plotin, Paris: P.U.F., 2003; HADOT, Pierre. Plotin ou la simplicité du regard, Paris: Gallimard, 1997; FATTAL, Michel. Plotin face à Platon suivi de Plotin chez Augustin et Farâbî, Paris: L’Harmattan, 2007; BAL, Gabriela. Silêncio e Contemplação: uma introdução a Plotino, São Paulo: Paulus, 2007; BEZERRA, Cícero C. Compreender Plotino e Proclo, Petrópolis: Vozes, 2006.

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o desejo da alma de conhecer o que o nível sensível material meramente vislumbra: as substâncias verdadeiras dos seres materiais. Anseia a alma por inteligir tais essências, acessando a inteligibilidade da qual o mundo sensível é mera expressão figurativa, além de – e sobretudo imperfeita37. A intelecção supõe anseio, ou desejo expresso, por parte da alma em adentrar na essência da realidade que tange sua vivência corporal38. Neste aspecto, o sensível ou a corporalidade fornece à alma a alteridade a partir da qual irá se sentir tocada e desejosa de alçar-se à sua essência, pois sua condição atual - ou “situação humana” – a impede de ver-se enquanto tal, embora lhe possibilite, ainda que indiretamente (devido à sua limitação e mutabilidade), a experiência de ultrapassagem de seu nível para ascender intelectualmente rumo às Ideias (platonismo acadêmico) e ao Uno39. A alma deseja unificar-se, ou vivenciar sua essência no mundo inteligível, vale dizer: deseja reintegrar-se ao Uno, via Inteligência. Já a visualização de tal meta remete a uma aspiração de identificação com a realidade unificadora inteligível e verdadeira, por um lado; e ao desejo de superação e libertação, por parte da alma, da materialidade “Il est très fréquent que, dans les Ennéades, Plotin présente la hiérarchie ontologique comme une hiérarchie des niveaux de la vie, et, de même, qu’il utilise, pour distinguer les termes de cette hiérarchie, l’analogie de la lumière plus ou moins intense.” - CHIARADONNA, R. Connaissance des intelligibles et degrés de la substance – Plotin et Aristote in Études Platoniciennes III – L’âme amphibie: études sur l’âme selon Plotin, Paris: Les Belles Lettres, 2006, p. 80; “... a realidade deste mundo também é boa, por depender, em última análise, do Bem primeiro – o prôton agathón -, representando, porém, apensas uma pálida imagem deste, mas harmonicamente constituída.” – ULLMANN, R. Plotino: um estudo das Enéadas, op.cit., p. 136. 38 “Na Enéada VI, 7, 34, Plotino declara que é o amor e o desejo intenso pelo Um que dá o impulso para que a alma percorra todo o caminho de supressão da alteridade [...] Em VI, 9, 9, o amor ao Um é apresentado como inato à alma, pois ela necessariamente deve amar aquele que é sua origem [...]Finalizando seu discurso sobre o amor na Enéada VI, 9, Plotino pede ao leitor que compare os dois tipos de amor, para que perceba a superioridade do amor ao Um e, assim, odeie os ultrajes daqui e se purifique. O amor ao Um, segundo ele, é melhor que o dirigido ao mundo sensível porque não se volta para as coisas passageiras e pode alcançar uma maior plenitude: se amamos o Um, podemos nos unir realmente a ele e não apenas o abraçar com o nosso corpo, como fazem os amantes daqui” - BRANDÃO, Bernardo Guadalupe S.L. A contemplação mística do Um em Plotino in Sapere Aude, Revista de Filosofia da PUC-MG, Belo Horizonte, I/2, setembro/2010, p. 9-10. 39 Cf. Enéada II, 1 (40), 2-3. 37

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sensível. Desta forma, a ascensão rumo ao inteligível configura um ideário de afastamento, via superação (mas não abandono imediato), de tudo que implique em limite e dualidade, ou ainda possua caráter ôntico determinado, com forma e ato, ou seja, limite e tempo40. Ao reconhecer-se como desejosa de reintegração ao Uno, a alma igualmente percebe-se como aspirante a um determinado resgate, por parte da inteligibilidade, de sua condição de estranha ou limitada ao mundo dos objetos e formas, limites e fugacidades. E, reconhecendo-se necessitada de tal resgate, anseia a alma pelo mesmo como libertação de sua condição de atrelamento ao sensível e material, para ser resgatada ao Uno, sua fonte e origem. Trata-se de um resgate para reintegração, retorno, retomada identitária. A relação uno/múltiplo em Plotino assenta-se, pois, sobre a característica (que lhe é inerentemente ontológica) de superação para recuperação e reproposição da uma relação essencial e originária: a alma e o Uno. A visão, para Plotino, é a de processão da realidade emanada do Uno, em distenção ou separação, ou ainda distanciamento e perda. A percepção do todo emanado ocorre numa intuição da verticalização da ordenação ontológica, em que a disposição interna de seus elos e segmentos é dada como relação de superação causal, a partir da matriz originária. Visualiza-se, metaforicamente, uma escada ascendente e excludente de cada degrau superado 41. Cf. CASTELLAN, A. Plotin: l’ascension intérieure, Paris: Michel Houdiard Éditeur, 2007, p. 51. 41 Para uma tentativa de verificação dos contrastes entre o sistema plotiniano e o pensamento agostiniano, no tocante à epistemologia teleológica (consubstanciada na conceituação da ascensão plotiniana do conhecimento humano ao absoluto e eterno; e no itinerário agostiniano da mente em Deus), vide nosso estudo: PIGNATARI, R.C. Plenitudo Principii – O itinerário da mente em Deus nos diálogos de Santo Agostinho, op.cit., p. 64-65; 99-101; e 277-284. Termos sumários, podemos aduzir que, ao contrário do trajeto plotiniano (o qual, na feitura interna de seus passos, privilegia a ascensão interior em detrimento do exterior sensível), as descrições agostinianas do itinerário da mente em Deus ostentam a imediaticidade do dado crido e assentido em fé (Deus), que impulsiona a feitura cognitiva do exterior enquanto vetor para o interior, da realidade sensível tornada sinal da inteligível, num abarcamento em mosaico da realidade, que perfaz o todo conhecido, simultaneamente à sua existência dada (como esse) em totalidade ordenada. A descrição plotiniana aponta para uma região de exclusão interiorizante, ao passo que as descrições agostinianas caminham para a inclusão, na interioridade, do aspecto cognitivo do exterior, na confluência entre a ontologia e a cosmologia (a partir do 40

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c) O matiz teológico Não obstante toda a herança da filosofia grega verificada no desenvolvimento de sua trajetória intelectual, Santo Agostinho deixa claro que a validade do pensamento “dos platônicos”, como se refere à tradição platônica via Plotino e as obras neoplatônicas, advém daquilo que os aproximam da fé e, em última instância, do evangelho 42, ao

dado ontológico primordial: imediaticidade do esse à simultaneidade da ordo rerum et cognoscendi). Vide ainda a nota 31 deste livro. 42 “Suponhamos que Platão vivesse atualmente e não se recusasse às minhas perguntas [...] suponhamos que algum discípulo seu, no tempo em que ele vivia, o interrogasse sobre essa questão. Receberia a seguinte explanação: que a verdade não se capta com os olhos do corpo, mas com a mente purificada; [...] que ao conhecimento da verdade nada se opõe tanto quanto a corrupção dos costumes e as falsas imagens corpóreas [...]; que, pela mesma razão, antes de tudo deve-se cuidar da alma, para que possa contemplar o exemplar imutável das coisas e a beleza incorruptível [...]; que, entre todos os seres existentes, só foi dado à alma racional e intelectual, o privilégio de encontrar suas delícias na contemplação da divina eternidade [...] Suponhamos que Platão tenha persuadido seu discípulo de tais ensinamentos, e que ele lhe perguntasse: ‘no caso de um hoomem excelente e divino convencer os povos dessas verdades [...] julgarias ser ele digno de honras divinas?’ Penso eu que Platão teria respondido que isso não poderia ter sido feito por simples homem, mas só se a força e a sabedoria de Deus tivessem escolhido alguém [...] E quanto à resposta sobre as honras divinas que tal homem mereceria, eu julgo supérflua a pergunta, por ser fácil compreender quanta honra de fato merece a sabedoria de Deus, visto que é sua ação e governo que valeram a esse homem a verdadeira salvação do gênero humano, e merecimento pessoal imenso. Ora, essas suposições já estão realizadas e são celebradas em escritos e monumentos.” - A Verdadeira Religião, iii, 3-4 (Paulus). Cf. ainda iii, 5 – iv, 7. Vide a respeito o artigo de Gouveln MADEC Si Plato uiueret... (Augustin De uera religione, 3.3) in Néoplatonisme – Mélanges offerts à Jean Trouillard, Le Cahiers de Fontenay no. 19/22, Paris, 1981, p. 231-248. Com vistas à discussão ampla e exaustiva sobre as relações entre a herança filosófica greco-romana e o desenvolvimento do pensamento agostiniano, vide: BOYER, Charles. Christianisme et néo-platonisme dans la formation de Saint Augustin, Paris: Beauchesne, 1920, p. 193-195; MADEC, Goulven. Saint Augustin: du libre arbitre à la liberte par la grace de Dieu, Paris: I.E.A. (Lectures Augustiniennes), 2001; HARRISON, Carol. Rethinking Augustine’s early theology: an argument for continuity, Oxford University Press, 2008, p. 20-23; DUPONT, A. Continuity or Discontinuity in Augustine? in Ars Disputandi [http://ArsDisputandi.org.], volume 08 (2008), p. 67-79; um sumário da discussão (até o início dos anos 2000) em BOUTON-TOUBOULIC, A.-I. L’approche philosophique de l’oeuvre d’Augustin au miroir de la R.E.A. in Revue d’études augustiniennes et patristiques, vol. 50 (2004), p. 326-329; cf. também BRACHTENDORF, J. “Confissões” de Agostinho, op.cit., p. 147ss. Remetemos ainda para o volume organizado por Phillip Cary e outros, mencionado na nota 7 deste livro, sobretudo para os artigos de Brachtendorf (p. 3-21) e de Frederick Van Fleteren (p. 23-40).

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mostrarem a necessidade da alma de se afastar da realidade corporal e seus prazeres carnais temporários e efêmeros, fonte de toda sorte de erros, ilusões, mentiras e infelicidades. Podemos entender que, na filosofia agostiniana, a herança filosófica do “pensamento que se volta às realidades superiores” dos neoplatônicos, é incorporada muito mais pelo movimento da alma em voltar-se a si mesma, que pela essência de sua interioridade. Com efeito, não é propriamente a noção de verdade na interioridade que Santo Agostinho herda, posto que tal instância não era ainda conceituada pelos gregos. Nesses, a alma era pensada mais em sua relação com a objetividade do Mundo das Idéias, e portanto muito mais na exterioridade de sua origem que na interioridade, vivida em intimidade, de sua essência. A diferenciação entre as noções de interioridade agostiniana e de psiché grega – ainda que seja evidente o uso que Agostinho faz desta última em suas obras – se afigura bem mais clara, em seu pensamento, quando verificamos o matiz teológico na composição da primeira. Das Escrituras Sagradas, Agostinho extrai a ideia de Deus como criador por amor e, conseqüentemente, um Deus que se relaciona com sua criação 43. Ora, o relacionamento de alguém que ama é em si mesmo amor, e amor é entrega e confiança. Nesse sentido, amar é diálogo e relação, fala e expressão, ou seja, linguagem e sentimento. E como não amo senão por saber-se amado, só posso amar voltando-me para quem me ama no meu mais íntimo. E como o amor somente se realiza em sua plenitude e verdade, na reciprocidade entre o que ama e o que é amado, clarifica-se que o amor verdadeiro ocorre quando a alma se volta para 43

Dentre a vasta literatura e bibliografia, no âmbito dos estudos agostinianos, a respeito da essencialidade divina como caritas, aqui nos atemos à preciosa e lúcida apresentação de seu pensamento trinitário efetuada por Alexandre GANOCZY em Il Creatore Trinitario – Teologia della Trinità e sinergia, Brescia: Editrice Queriniana, 2003, uma das principais obras a respeito do dogma trinitariano na atualidade. Ganoczy trabalha o lastro histórico, na Igreja ocidental, sob a ótica do conceito chave de sinergia (sinergeia), elencando autores que lhe são próximos à tal matriz conceitual. Nesse sentido, Ganoczy nos mostra que Agostinho estabelece a sinergia correlacional entre as pessoas divinas, no ato criativo e perene, como caritas, pelo que a essencialidade de Deus, enquanto trino e criador, é relacional, no que o ser humano, Imago Dei, lhe é reflexo e dele originário, bem como por ele vocacionado, ou seja, chamado à palavra, portanto à relação – p. 61-72 (sobretudo 64-65).

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quem a ama em seu mais íntimo ser: Deus, amor criador que é pai, que se presentifica à alma em sua intimidade, sua interioridade. É da filiação das criaturas ao Deus Pai, originada e realizada pelo Verbo Eterno encarnado em Jesus Cristo, que Agostinho extrai a intimidade de filho com o pai, estabelecendo a interioridade como espaço de habitação de Deus e de diálogo entre o efêmero e o eterno, entre infinito e finito. Assim, do caráter dialogal que perpassa toda a expressividade espiritual e teológica da tradição judaica e cristã; da compreensão escriturística e revelacional de Deus como ser pessoal, que evoca e traz sua palavra à escuta e interpelação do ser humano, Agostinho lapida e cristaliza a conceituação de interioridade/intimidade como a presença plena, imediata e verdadeira da sabedoria a que aspiram todos os que a buscam, posto que é a própria verdade eterna, o próprio ser eterno que habita no íntimo-interior da alma humana, em relação criatural-filial.

§5-C  onstituição e cristalização do locus Dei na Interioridade/Intimidade Pelo acima delineado, podemos perceber como se dá, na estruturação do pensamento agostiniano, a cristalização da interioridade como intimidade, enquanto instância ontológica ou presencial da divindade, o locus Dei (habitação e manifestação de Deus) à humanidade. É à luz de toda a narrativa de suas Confissões que se clarifica a interioridade agostiniana como origem, como expressividade fontal da correlação absoluto-contingente, eterno-temporal, imutável-transitório, numa palavra: divino-humano, que qualificará o interior do pensamento e da ratio como sendo, essencialmente, dialogal. É como responsiva à palavra e ao chamado divinos (uocatio, vocação), que a busca é iniciada, perpassando a exterioridade, e se consumando na interioridade enquanto chamada perene e eterna, para a resposta ante o Deus eterno, vivente, absoluto e imutável. A chamada, na forma de uocatio, consubstancia a vocação, ou aptidão – poder-se-ia conceituar destino – do ser humano como tendo sido criado para o diálogo no/e com o amor divino. Aqui, como anteriormente já o notamos, uma das diferenças vitais para com a herança platônico-socrática: se, nesta, o Santo Agostinho e a noção de interioridade

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voltar-se à alma como verdadeira realidade humana, posto que originária no Mundo Ideal (Platão), ou no Uno principial (Plotino), compõe movimento de intelecção e reminiscência solipsista, sem reportar-se correlativamente – tampouco afetivamente – a um Tu que impele a alma e a interpela, no pensamento de Agostinho a interioridade é a própria perenidade e absoluto, enquanto locus Dei em manifestação correlacional, que me condiciona, por minha própria criação, a responder-lhe vocativamente. No desenvolvimento de nosso estudo, tentaremos expor essa constituição da interioridade como habitação essencial de Deus e de sua comunicação com o ser humano, na relação íntima e filial do Criador para com a criatura, ao apontar para as conceituações que Agostinho leva a efeito no tocante à manifestação do sagrado como iniciativa primeva e fontal. É a palavra de Deus na intimidade que move o ser humano a buscá-lo, e a se comunicar com ele na audição de sua voz íntima. Essa palavra irá se revelar como a própria fonte de seu ser, na medida em que a verdade e a eternidade nela residem, e portanto o que de verdadeiro e real há na alma humana, encontra nela sua origem e sua criação.

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Capítulo 2

O Locus Dei: a habitação/ doação do ser divino na interioridade humana § 6 - Confissões A frase com que Santo Agostinho inicia o Livro X das Confissões bem pode ser tomada como o fundamento de toda a metafísica da interioridade agostiniana, ao fornecer-lhe o mote e articulação conceitual: “Que eu te conheça, ó conhecedor de mim, que eu te conheça, tal como sou conhecido por ti. Ó virtude da minha alma, entra nela e molda-a a ti, para que a tenhas e possuas sem mancha nem ruga”1. De imediato, ao mesmo tempo em que elenca os termos essenciais do que desenvolveu até aqui, Santo Agostinho aponta para a alma como locus Dei2 ao evidenciar-lhe enquanto receptividade da ação “‘cognoscam’ te, cognitor meus, ‘cognoscam, sicut et cognitus sum’. uirtus animae meae, intra in eam et coapta tibi, ut habeas et possideas ‘sine macula et ruga’” - Confissões, X, i, 1, texto latino em edição bilíngue latim-português, com tradução de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, 2ª edição, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 436-437, identificando ainda a citação, no corpo do texto, que Agostinho faz de 1 Coríntios 13,12, bem como ainda a alusão a Efésios 5,27. A tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os Pensadores), traz: “Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos conheça como de Vós sou conhecido. Ó virtude da minha alma, entrai nela, adaptai-a a Vós, para a terdes e possuirdes sem mancha nem ruga”. Por sua vez, a tradução de Maria Luiza Amarante (3ª edição, São Paulo: Paulus, 2006), traz: “Ó Deus, tu me conheces, faze que eu te conheça, como sou por ti conhecido. Ó Virtude de minha alma, penetra na minha alma, faze que ela seja semelhante a ti, para que a possuas ‘sem mancha nem ruga’”. 2 “... a conversão de Agostinho implica uma reflexão em segunda potência [...] que envolve justamente a passagem [...] da região da ‘dissemelhança’ [...] ou do pecado, que é uma 1

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divina, que se revela como sua verdadeira constituição ontológica. Enquanto lançada fora de si mesma, por sua própria iniciativa – e aqui temos a uoluntas agostiniana impetuosamente “vaidosa” – o questionamento investigativo, de busca, deve ainda, neste momento de perda e derrocada de si rumo à dispersão e fugacidade da realidade sensível, ser caracterizado como uanitas, vaidade, curiosidade a rebaixar e deitar fora o movimento essencial anímico que, ao centrar a alma em si e dispô-la a ouvir, em si, o chamado da verdade (ou seja: da divindade), torna-se então a real busca pelo ser e a verdade. Porém, no instante em que se dispõe à suspensão do conhecimento externo, a alma se mostra a si mesma, e à luz de seu fundamento manifestado, em sua essência, como Imago Dei. Intui, por conseguinte, ser a própria morada do ser3 e da verdade que buscava fora de si, e o ser nela se manifesta enquanto sua fonte, criador e sustentador. Igualmente, o ser se lhe manifesta como a luz que lhe impulsiona e, na verdade, lhe carrega, lhe conduz e antecipa, na iluminação de si própria à luz da presença do ser supremo, sua própria meta e realização. Sua busca, o seu quaerere, ganha sentido e se compreende tão-somente quando vê que essa mesma busca é originada, alimentada e levada a efeito pelo próprio ser que a criou, e quando intui que sua realidade é realizar-se enquanto manifestação (Imago) daquele mesmo ser. Sua essência é, portanto, o motivo de sua busca e, sobretudo, a sua própria realização. Realizar sua própria essência, ser o que já se é, mas ser em plenitude atemporal o que já se é em atualidade temporal, vale dizer: em gozo eterno. A busca não se efetua perante a iniciativa de um “eu”, ao contrário: a interioridade íntima é conduzida e realizada pelo ser supremo, em sua habitação junto ao ser humano, em seu locus, em sua Imago. Se essa busca se dá pelo conhecimento de si e da realidade, pode-se dizer que este conhecer é, pois, dado à alma, por ela percebido e inteligido enquanto doação, manifestação, fenômeno de imediação e exaurição/ ‘ fuga de Deus’ [...], ao ‘interior’ como lugar privilegiado da Verdade.” – LIMA VAZ, H.C. A metafísica da interioridade – Santo Agostinho, op.cit., p. 79. O livro X consuma os caminhos perquiridos até então – cf. Confissões VII, 16. 3 Num paralelo de antecipação em relação a Heidegger – cf. A Caminho da Linguagem, tradução de Márcia Cavalcante Sá Schuback, Petrópolis: Vozes, 2003, p. 9. Vide adiante, nota 53.

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saturação do ser” [vide MARION, 2008]. O movimento de apreensão. O movimento de apreensão e juízo é conduzido pelo fundamento do ser, e não pelo “eu”. E o que é o “eu” agostiniano? Seria um cogito autógeno ou autossuficiente, em antecipação à intuição cartesiana? Talvez mais apropriado seja caracterizá-lo como polo passivo da ação divina mais que o fundamento do conhecimento, como irá definir-lhe Descartes. Se o movimento do cogito cartesiano tem sua origem na dúvida radical e excludente, a busca da anima agostiniana revela-se como impulsionada pela uirtus divina constitutiva de seu próprio ser. A virtude ou o poder do ser eterno e imutável, presente no íntimo interior da alma e constituindo o fundamento de seu ser, lhe realiza teleologicamente, impulsionando a si mesma para a contemplação e manifestação do ser. Mas como se dá o movimento da anima em direção a si mesma? E como reconhece reconhece, por si, ser ela mesma o lugar apropriado para a manifestação – Imago Dei – da Verdade Absoluta? Impulsionada pela vaidade (uanitas), a alma perde-se e se desvanece na inferioridade da corrupção e da ausência de ser; na temporalidade da efemeridade e do que é passageiro, corruptível e ilusório; daquilo que, por seu caráter mutável e temporário, desagrega-se e deixa de existir, ou seja, de ser. Ora, o que deixa de ser não pode evidentemente constituir o ser verdadeiro, posto que, se o fosse, jamais deixaria de ser. Ao mesmo tempo, se existem – ainda que na vã fugacidade ilusória da temporalidade – é porque o que de ser possuem não lhes foi criado por si mesmos, mas claramente lhes foi dado por outro que, possuindo em si o dom de fazer ser, não pode deixar de ser, donde que o ser que as coisas corruptíveis possuem advém do ser incorruptível, sua existência não tem origem nelas próprias, mas sim concedida pelo ser que é existência incorruptível, portanto eterna, visto que somente o incorruptível pode criar e dar a existir. Como também a medida de ser que experimentam as coisas corruptíveis só pode evidentemente residir na incorrupção que as geram e sustentam na existência. Dado que a alma experimenta e vislumbra tal contorno de eternidade tão-somente quando se afasta do corruptível, segue que a causa de conhecer e experimentar a eternidade e a imutabilidade não estão nas coisas que conhece fora de si, nem em si mesma enquanto fora de si, mas elevando-se a si mesma, ou O Locus Dei: a habitação/doação do ser divino na interioridade humana

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melhor, conduzida e elevada na busca pelo que é sua essência mesma, e que lhe faz conhecer o que não está nem abaixo dela, nem nela própria, e sim acima. Mas se conhece, é porque nela encontra lugar. E se busca, é porque necessita. A necessidade busca a realização própria. E a realização é o ser atualizado, ou seja, consumado em plenitude, feiturado. E se o encontra recolhendo-se a si mesma, é porque então vem a ser ela própria constituída de molde a manifestá-lo e a realizar-se em tal manifestação. Ou seja, vem a ser Imago Dei. Se a frase de abertura do Livro X sintetiza, como acima dissemos, a peculiar metafísica agostiniana, importa nela deter-se para análise elucidativa de seu movimento interno, abrindo caminho para melhor assimilação de todo o restante. Observamos que parece ser expressa intenção de Agostinho, iniciar seu percurso descritivo com o resultado já disposto no início da pergunta-busca metafísica, e não em seu final. Em realidade, trata-se menos de opção estilística e mais da caracterização própria da metafísica agostiniana, que tem seu ponto de partida no ser conduzida – e não conduzir – pelo conhecido mais que pelo conhecedor, papéis que na verdade serão como que trocados reciprocamente no movimento de possuir a verdade, que de fato possui mais que é possuída, encontra mais que é achada, carrega mais que é apreendida. A verdade já é conhecida desde o início, sendo em realidade ela própria quem inicia e eleva, por assim dizer, o ser humano a buscá-la, vocacionando-o e o chamando ao seu encontro. Ser conhecida no início não significa porém ser experimentada, realizada, possuída. Entre a plenitude do ser em princípio, que se doa à interioridade íntima de início, conduzindo-a no conhecimento da exterioridade; e sua consumação e plenificação final, na própria beatitude eterna, há todo o itinerário que perfaz intelectualmente a realidade, há a realização da temporalidade no instante atemporal de conhecimento da verdade, prefigurativo da eternidade4.

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“Mas todo instante, como ato de uma vontade livre, inicia uma série temporal sem ter uma causa anterior necessária (cf. o Livro II do De libero arbítrio [de Santo Agostinho]). E todo instante, enquanto união do presente da memória, presente da atenção e presente da esperança, contém em si o tempo como um todo, e é portanto uma figura da eternidade.” - MAMMÌ, Lorenzo. STILLAE TEMPORIS – Interpretação de uma

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A frase inicia com o passivo absoluto: o pedido para a verdade conduzir, efetivamente, quem a busca no seu conhecimento. Pede-se, portanto confia-se. Entrega-se. Deixa-se conduzir. Mas se pede e se entrega, já se está em diálogo e intimidade, já se partilha a própria necessidade, portanto já se é conhecida e já se conhece, já se torna íntima de quem lhe é primeiramente íntimo. E se é conhecido, o é por alguém. E se é alguém, houve diálogo, deu-se então fala e sentido, verbo e palavra. A palavra me conduz a conhecer quem me faz conhecer-me. É portanto na palavra, na linguagem5, que se dá o Alfa e o Omega6, o principio que é sua própria finalidade, o que impulsiona à sua

passagem das Confissões, XI, 2 in PALACIOS, Pelayo M. (org.) Tempo e Razão – 1.600 anos das Confissões de Agostinho, São Paulo: Loyola, 2002, p. 61. 5 No tratado A Trindade, livro XII, Agostinho esmiuça e aprofunda a noção de linguagem como expressão da ratio enquanto speculum do verbum divino, convergentes portanto em Jesus Cristo, Verbo encarnado de Deus. Vide adiante o parágrafo 8 do nosso presente trabalho. Outrossim, a doutrina agostiniana da linguagem, enquanto instância da interioridade a expressar e manifestar a mens e as ratio aeterni divinas ao ser humano, afigura-se-nos em perfeito paralelo com a posição heideggeriana da linguagem como “morada do ser”. Com efeito, dirá Heidegger que a linguagem originária – manifestada no silêncio místico-poético - vocaciona o ser humano à linguagem secundária, ou seja, à fala, pela qual ele responde ao chamado (do ser) manifesto na diferença ontológica, fazendo da linguagem sua morada – cf. HEIDEGGER, Martin Unterwegs zur Sprache, Pfüllingen: Günther Neske Verlag, 1959, p. 32: “Das Zuvorkommen in der Zurückhaltung bestimmt die Wiese, nach der die Sterblichen dem Unter-Schied entsprechen. Auf diese Wiese wohnen die Sterblichen im Sprechen der Sprache” – em nossa tentativa: “O antecipar em cautela silente destina a maneira (discernimento) em que os Mortais condizem à Di-ferença. Sobre este discernimento moram os Mortais no falar a Linguagem”. A tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback traz: “Antecipar reservando é o modo como os mortais correspondem à di-ferença. Desse modo, os mortais moram na fala da linguagem”: A Caminho da Linguagem, op.cit., p. 26. 6 Teilhard de Chardin desenvolverá, no século XX, a idéia de que não somente nós - nossa alma – mas sim todo o universo caminha para a “realização crística”, para a realização plenificante, no ponto Omega – que é Cristo - do processo criador evolutivo – cf. CHARDIN, P. T. O Fenómeno Humano, tradução de Léon Bourdon e José Terra, 4ª edição, Porto: Livraria Tavares Martins, 1979. Já no século XIII, São Boaventura desenvolvera, em sua máxima explicitude e alcance, a doutrina agostiniana das ratio seminales, razões seminais que contem em si todo o desenvolvimento posterior das formas criadas. De maneira análoga, pode-se dizer que em Santo Agostinho temos semelhante doutrina aplicada também à alma, e sua posse e plenificação por Deus. Apenas que, enquanto Teilhard de Chardin ocupou-se preponderantemente como o ponto final da criação, São Boaventura ocupa-se com todo o processo, a exemplo de Santo Agostinho – cf. adiante o capítulo 3 de nosso estudo.

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realização e presença em minha alma, para esta nele repousar; que se apresenta como o primeiro conhecido, para consumar todo conhecimento em si; que inicia, fundamenta e concretiza todo conhecer veraz, toda intelecção verdadeira. O pedido encerra igualmente, e ao mesmo tempo, entrega confiante, fiança a alguém, ou seja: envolve creditar a alguém o meu valor. Numa palavra: o pedido envolve crer, credere. Nesta acepção, crer é essencialmente atitude de entrega total, de se penhorar e ser creditado por quem me penhora. Passa-se do “me” ao “se”, do “farei” ao “fazei”, do “eu vou” ao “que eu te”; do “conhece-te” ao “que Vos conheça”; do “a ti mesmo” ao “como sou conhecido”. Do dirigir ao ser conduzido, da inquirição à contemplação [do “o que é a verdade” – quid est ueritas? (Jo 18,38) ao “poder e divindade vistos e compreendidos pela criação”conspiciuntur eius uirtus et diuinitas (Rm 1,20 – um das passagens escriturísticas mais citadas por Santo Agostinho ao longo de toda a sua obra)]; da atividade à receptividade. Passa-se da investigação pela verdade da vida, à Verdade que me investiga em minha vida. E mais: se antes perscrutava o sentido que ignorava e procurava a verdade que desconhecia, agora pede – portanto fala ao que lhe excede e suplanta, a quem está acima dela e, por conseguinte, a toma e direciona – a quem é a Verdade, que a conduza ao sentido da vida que lhe deu. E se a excede e suplanta, a ela que vislumbra o infinito, é porque se trata do próprio infinito do ser a lhe conhecer e se revelar, que a ela se mostra e se doa. Essa inversão no conhecimento – não mais “eu conheço” ou “eu alcanço” a verdade, mas ela me é dada e manifestada – prepara o terreno para fazer ganhar corpo e sentido o ato da confessio: não professo meu conhecimento e saber, mas confesso minha busca face à verdade que me toma e conduz, ao ser que me abarca e me faz ser, à eternidade que me compreende e me realiza. O contraste entre o que sou e o ser que busco me clarifica que ele, o próprio ser eterno e imutável, é a própria razão da minha busca de outrora, quando me perdia na fugacidade e mutabilidade das coisas externas em sua caducidade. E, mais importante, me faz ver que se o que busco não está nas coisas fora de mim, é porque a própria busca da minha alma é sua própria medida e veracidade, ou seja: o que ela quer já conhece e busca, só não possui 54

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e tem! E por isso vai atrás... abaixo... se esvazia... se queda... Mas como possuir e ter, se o que se vê fora de si é muito pequeno e raso para ela? Como possuir e ter o que é incapaz de lhe saciar e preencher? Resta, pois, que só posso querer ter e possuir o que vai me preencher e realizar. Ou seja, aquilo que minha alma alcançar. Mas como ser preenchido por qualquer coisa deste mundo passageiro e finito, em minha alma que sente e vê o infinito? Como saciar meu intimo interior, meu mais profundo e originário ser? Somente por algo que seja de molde a me preencher e realizar, ou seja, do mesmo tamanho da minha alma. Mas não experimenta ela o infinito e a sede pela perenidade e eternidade (Eclesiastes 3,11)? Segue-se então que somente o próprio ser infinito e eterno pode me saciar. Mas então eu, que sou finito e fugaz, não posso evidentemente possuir e ter, mas sim ser possuído e tomado. Pedir é necessitar, buscar é querer. Eis então o segundo aspecto do mote inicial de nosso texto: o pedido para que a verdade conduza a uoluntas, a vontade, para ser tomada e preenchida. Talvez mais que qualquer outro pensador antes dele – e mesmo após, em certo sentido – Santo Agostinho entende que a recepção e percepção da ueritas, da verdade, depende essencialmente da uoluntas. O querer a verdade já é por ela ser atraído; já é dela saber ainda que não a conheça; já é vislumbrá-la ainda que não a veja7. Desejar a verdade já é gostá-la. Já é amá-la! E, dado que a uoluntas é a própria alma a se expressar, segue que meu desejo expressa minha essência, e esta, como acima colocado, expressa e manifesta a verdade eterna, infinita e imutável que minha alma buscava nas coisas fora de si. A uoluntas é portanto a própria expressão (uerbum) do princípio que me impele a buscá-lo para, por ele conduzido, nele me consumar.

§ 7 – A Verdadeira Religião Em corroboração do mote inicial do livro X das Confissões, que acima intentamos expor em sua amplitude conceitual quanto à São Boaventura dirá que já se a vê – contemplatio: visão seráfica harmoniosa (seis asas), in Itinerarium, I.

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constituição do locus Dei na interioridade inquieta e em angústia desejante (quaerens), temos, nos tratados A Verdadeira Religião (De Vera Religione) e A Trindade (De Trinitate), as clássicas passagens que sedimentam a doutrina da busca interior, in Deum, levada adiante por Santo Agostinho. Verifiquemos o primeiro dos tratados8. Agostinho identifica a busca interior com a quietude e o recolher-se face à multiplicidade corpórea, vale dizer: da fugacidade própria dos entes finitos e determinados. O caráter múltiplo se lhe afigura como exposição da limitação e conseqüente transitoriedade da matéria, e o deter-se no corpóreo enquanto termo de busca configura verdadeira capitulação da alma interior, sede da razão eterna, face ao caráter passageiro da realidade corporal. O múltiplo é a própria raiz da inquietude, e como tal a antítese da quietude que alcança o simples, o Uno9. Observamos que, para Agostinho, a busca é conduzida, na absoluta simplicidade do coração, contrária à sedução da multiplicidade corpórea que evanesce no efêmero, posto que quebradiço e limitado (múltiplo), temporal e passageiro. Ao contrário, o Uno recolhe-se e se dá na identidade simples da alma que, contrastando com a busca exterior, esfacelada na multiplicidade que intenta alcançar o princípio subjacente nela própria (aristotelismo), toma todo o coração livre no eterno e imutável, ilimitado e infinito10. Assim, a simplicidade da alma, vale dizer: a interioridade tomada em sua intimidade primeira, vem a ser, no imediato primordial dado a si mesma e anterior, portanto, a qualquer busca exterior [e, ainda e consequentemente, igualmente anterior à busca pelas ciências ditas naturais (crítica velada ao aristotelismo), do princípio intrínseco à natureza prescindindo do princípio absoluto e divino, que me é imediatamente mais íntimo que eu próprio], o elemento que funda a reflexão e o pensamento, ou seja, Seguiremos, na exposição das passagens do De uera religione, parte da sequência que Pe. LIMA VAZ delineia no seu A Metafísica da Interioridade – Santo Agostinho, op.cit., pp. 81ss. 9 A Verdadeira Religião, xxxv, 65, tradução de Nair de Assis Oliveira, 2ª edição, São Paulo: Paulus, 2007, p. 90-91. As citações seguintes têm por base esta tradução. 10 Idem, ibidem: “É por certo o Uno que nós procuramos. Não há nada mais simples do que ele. Procuremo-lo, pois, em toda simplicidade de coração. [...] Não se trata do repouso da ociosidade, mas do repouso do pensamento, libertado do espaço e do tempo.” 8

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a filosofia verdadeira em sua busca pela felicidade eterna na sabedoria imutável. Trata-se de verdadeira libertação ao pensamento que busca, bem como à alma em sua inquietude e necessitada do repouso no absoluto e infinito11. Sobretudo, trata-se de contrastação vital para com a sabedoria que julga encontrar, autonomamente, a felicidade principial fora do absoluto divino e eterno, numa palavra: que julga poder alçar-se ao amor à sabedoria, à filosofia, com a sutileza dos raciocínios e elucubrações silogísticas que encobrem a penúria e falsidade dos entes tomados em si mesmos, como objetos da vã curiosidade que se lança ao questionar e pretender investigar a realidade, sem ancorar-se no absoluto que está no fundamento imediato íntimo do conhecimento de toda a realidade, a começar pelo próprio inquiridor e “buscador”, vale dizer: pelo filósofo. A simplicidade de coração contrasta, em Agostinho, com o refinamento das especulações vazias e estéreis que “se transviaram em seus vãos raciocínios e o seu coração insensato se tornou presa das trevas”12. Nesse sentido, a atitude de recolhimento em interioridade, ante a imponência presencial, ou da presença que se (im)põe na intimidade daquele que busca, assume caráter imperativo e metodológico. E como tal, compõe um caminho de transposição dos limites aos quais a alma, enquanto encarnada na realidade finita e transitória, encontra-se presa e necessitando, por sua própria intimidade (que se lança, na interioridade, à sua própria superação para plenificar-se na culminância do encontro e diálogo com o eterno13), transcender-se, em sua intimidade, na própria origem que lhe é fonte da razão, e que a impele e lhe direciona teleologicamente em sua busca.14. Aqui reside o ponto central do itinerário interior agostiniano: o que me valida e, por assim Idem, ibidem. Romanos 1,21 in Tradução Ecumênica da Bíblia - TEB, 1ª edição, São Paulo: Loyola, 1994. A nova edição revista e corrigida, de 1995, bem como a edição revisada de 2010, mantém inalterada tal tradução. 13 Heidegger, seguindo a descrição da memória no livro X das Confissões, irá situar tal culminância nas memorabilia. Cf. adiante o capítulo 4 de nosso estudo. 14 A Verdadeira Religião, xxxix, 72: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém não 11

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dizer, autentica e legitima (assumindo portanto evidente caráter ético, sempre tendo em mente o eudaimonismo agostiniano) o movimento de busca, dentro do recolhimento e repouso na intimidade, é a própria interioridade enquanto atitude ou disposição essencialmente in ratio, ou seja, enquanto o ser próprio que se supera frente à mutilação e instabilidade da realidade material, limitada e temporal, para se deter no eterno e absoluto, ilimitado e infinito. A interioridade, enquanto locus Dei, se autorreconhece em sua essência no ato racional. Importante verificar que não é a ratio que legitima, de per si, o ato pelo qual a interioridade se transcende face à corporeidade que a situa no mundo entitativo, mas sim o seu próprio constituir-se em manifestação primeva do Absoluto e Eterno, que corrobora e autentica a razão no ato de superação, numa palavra: transcendência, face à realidade material e temporal. Nesse sentido, Agostinho pode falar acerca da busca da verdade como uma constatação do já dado anteriormente, ao que a ratio, em sua interioridade como movimento de busca e recolhimento à sua fonte primeva e autenticadora, como que suspende o refletir e inquirir típicos da atitude exteriorizada, para ver as coisas em si mesmas, já dadas, faticamente presentes na intimidade que me perfaz a intimidade primordial e “mais íntima que a mim mesmo” (Confissões III, vi, 11)15.

te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão.” 15 Idem, xxxix, 73: “Não é o ato de reflexão que cria as verdades. Ele somente as constata. Portanto, antes de serem constatadas, elas já permaneciam em si, e uma vez constatadas essas verdades nos renovam.”. Valemo-nos propositadamente do jargão husserliano na apresentação da passagem fulcral, com o fito de justamente realçar o parentesco de fundo entre o agostinianismo, sua continuidade na filosofia boaventuriana, e a fenomenologia existencial, de cujo paralelo e aproximação trataremos justamente no capítulo IV do presente trabalho, dedicado à leitura heideggeriana do capítulo X das Confissões. Vide ainda a elucidativa asserção introdutória de Raimundo Vier a respeito: “A prova racional ou filosófica da presença íntima da noção de Deus à nossa alma – e da consequente possibilidade de o conhecermos com absoluta certeza – São Boaventura a conduz, na ‘prima via’, pelo método da análise fenomenológica dos dados da consciência e, notadamente, a partir das aspirações ou tendências (‘appetitus’) mais fundamentais de nossa natureza. Não se deve pensar que tal método, sistematizado pela fenomenologia moderna, fosse inteiramente desconhecido dos pensadores do passado. É sabido que S. Agostinho fez amplo uso dele, e com grande êxito, nos domínios da psicologia e da teoria do conhecimento. Este método faz parte integrante do precioso legado agostiniano ao pensamento ocidental.” – VIER, R. Da

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§ 8 – A Trindade Se em A Verdadeira Religião observamos o movimento da alma que, no recolher-se à interioridade fundante de sua busca, atinge simultaneamente sua realização enquanto locus Dei, podemos dizer que, de certa maneira, ocorre o contrário no tratado sobre A Trindade (De Trinitate). Nesta obra, Agostinho expõe as célebres analogias da composição anímica/psíquica do ser humano em paralelo simultâneo com a Trindade, tornando a alma humana espelho do ser divino, o qual se revela como trúno justamente na alma, ao mesmo tempo que a manifesta como um seu reflexo. Se em A Verdadeira Religião a ascensão ilustra o itinerário da alma que parte do absoluto e eterno, para neste se consumar16, em A Trindade esta simultaneidade é como que descendente, para o revelar-se da Imago Dei na alma como speculum divino. Não podemos, dentro das limitações de nosso trabalho, tratar de modo detalhado acerca do temário da interioridade e composição da alma, tal como apresentado no De Trinitate. Limitamo-nos a pontuar determinados tópicos nos quais Agostinho expõe o paralelo verificado no binômio Trindade-alma, pelo qual clarifica a essência da alma como radicada na presença e atuação divina imediatas e manifestas ao ser humano. Assim, Agostinho inicia o livro XII d’A Trindade expondo a característica que perfaz o traço diferencial fundamental do ser humano em relação às demais criaturas: sua capacidade de reter lembranças e imagens na memória (tal como irá colocar no livro X das Confissões), projetando-as e representando-as; estabelecendo relações entre umas e outras; distinguindo verossimilhança e falsidade e emitindo, portanto, juízos que configuram, afinal, razões e leis eternas17. Ora, tais racerteza do conhecimento de Deus em São Boaventura in GARCIA, A (org.). Estudos de Filosofia Medieval – A obra de Raimundo Vier, 2ª. edição, Bragança Paulista: Edusf/Petrópolis: Vozes/Curitiba: Edufpr, 2000, p. 36-37. Vide igualmente nosso capitulo seguinte, dedicado a São Boaventura. 16 “O itinerário do conhecimento, em Agostinho, é muito mais assunção que ascensão” – NOVAES Fº, Moacyr Ayres. Aula ministrada em 31.03.2011, no curso Ontologia e moral em Agostinho, disciplina de História da Filosofia Medieval – FFLCH-USP. 17 A Trindade, XII, ii, 2: “... fixar a atenção; reter, além das lembranças captadas espontaneamente na natureza, como ainda as que foram confiadas intencionalmente à

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zões, por sua própria natureza e essência, não podem estar situadas no efêmero e limitado mundo dos entes corpóreos, tampouco no próprio corpo que abriga a alma, e nem ainda na própria alma, que move-se para inquirir e julgar, posto que esta mesma mutabilidade por vezes lhe trai e falseia sua atuação judicativa, mas em um ser superior, que fundamenta a própria possibilidade das razões eternas serem estabelecidas, e dadas a conhecer, pela alma finita e corpórea. Portanto, é no movimento de reflexão da alma que se encontra o dar-se em reflexo da Trindade na revelação e manifestação de si mesma, constituindo-se fundamento e motivo da interioridade humana enquanto locus Dei, e por cuja reflexão – o reflexo e refulgência in speculum, especulante, ou em espelho – a alma humana, como um todo, compõe imagem de Deus no atuar sobre a realidade material18. É precisamente na superação trans/ascendente da alma (como vimos no item dedicado ao De uera religione), e na reciprocidade inerente da presença descendente da Imago Dei (cujo movimento desvela sua própria natureza superior em relação à matéria, na sua efemeridade e futilidade, limitação e fugacidade), que se encontra situada a interioridade; e esta, enquanto lugar e habitação divinas de modo primordial, estabelece o movimento reflexo e imagético da Trindade (a se refletir) na alma humana19. Verifimemória, [...] construir visões imaginárias, [...] ver como, nesse gênero de coisas se distingue o verossimil do verdadeiro, [...] todas e outras operações do gênero [...] não são estranhas à razão, nem são comuns a homens e animais.” Utilizamos a tradução de Frei Agustino Belmonte, 3ª edição, São Paulo: Paulus, 2005, p. 366-367. 18 Idem, XII, iv, 4: “É mister descobrir a trindade na totalidade da natureza da alma. [...] Poder-se-á encontrar não apenas uma trindade, mas ainda a imagem de Deus. E essa somente na parte racional, referente à contemplação das coisas eternas.” 19 “A ideia de Deus [presente] no ato transcendente ao seu próprio fundamento racional, [corresponde] à ideia do Cristo na fé revelada. Este ato transcendente se efetua ao longo de experiências interiores imunes ao curso temporal, orientadas pelo atemporal. [...] Que a fé se torna racional e se confirma na especulação filosófica; que fé e filosofia perfazem não mais que um – é o que concerne propriamente à concepção agostiniana da Trindade. [...] Se, neste sentido, Deus se fez Pessoa, ele se fará necessitado de outras pessoas, a fim de entrar em comunicação com elas. [...] A Trindade, impensável e inimaginável, permanece um grande mistério absoluto, [...] ponto de partida das especulações, e não o seu resultado. [...] A origem e a eficácia das especulações trinitárias são em parte explicáveis, por colocarem em evidência os três tempos da dialética: em todas as coisas, na alma, em toda a realidade. A tríade no pensamento acerca de todo ser compõe uma ilustração da divindade, que

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camos, pois, que é a interioridade a própria intersecção e fundamento do movimento único composto pelos vetores humano ascendente/divino descendente. Interioridade é, por conseguinte, o preciso transpor – e portanto um verbo, uma ação, um movimento de busca – a multiplicidade em sua transitoriedade e perda, para se situar e se desvelar em eternidade fundante, muito embora a queda originária em pecado tenha, segundo Agostinho, afetado nossa visão e imagem das coisas eternas em nossa interioridade20.

pode ser pensada de diversas maneiras. Através das tríades que aparecem e tornam-se símbolos, nós nos elevamos a Deus, que por sua vez, e na realidade de sua Trindade, mostra-se nos inumeráveis ref lexos ternários do ser. [...] Pode-se igualmente enfatizar as categorias pelas quais são pensadas as relações das três Pessoas (identidade, subordinação, contiguidade, consubstancialidade), e considerar a simples relação como a categoria a mais simples, a mais imediata, conforme o objeto. [...] Estes modos formais de transcendência, tais quais uma grande música, parecem ressoar permanentemente através do conteúdo de todo ser.” – JASPERS, K. Saint Augustin in ID. Les grands philosophes, 2ª partie, Paris: Librairie Plon, 2009, p. 221-226. 20 Idem, XII, viii, 13: “Quando a alma ascende íntima e gradualmente através das partes da alma, onde começa a aparecer algo que não nos é comum com os animais, é então que começa a razão, e onde já se reconhece o homem interior.”

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Capítulo 3

São Boaventura: Deus Est e a luz face à cegueira §9-A  síntese necessária do saber I: panorama histórico1 Vimos que, com Santo Agostinho, o pensamento cristão como que se emancipa e articula-se racional e filosoficamente, ganhando assim sua ‘maioridade’ intelectual. Adquire sua justificação e aparato filosóficos, os quais o credenciam e capacitam a falar de igual para igual, por assim dizer, com a sabedoria grega, e não mais ser visto com desdém pelo pensamento esclarecido. Conseguira atingir sua identidade própria, seu rosto, seu caminho2. Mas faltava como que amadurecer, chegar à “idade plena”, à integridade da assimilação das conquistas Com relação ao contexto histórico-filosófico em questão, bem como à utilização de termos, conceitos e temáticas desenvolvidos pelo pensamento grego e herdados do período patrístico, vide, além dos capítulos finais da obra de Claudio MORESCHINI, História da Filosofia Patrística, op.cit., p. 486-770, os trabalhos referenciais de: GILSON, É. La Philosophie au Moyen Age, op.cit., p. 232-258; ID. O Espírito da Filosofia Medieval, op.cit., p. 405-420; SARANYANA, J-I. A Filosofia Medieval, op.cit., p. 151-156; DE LIBERA, A. A Filosofia Medieval, São Paulo: Loyola, 1998, p. 250ss e 281-294; KOBUSCH, Theo (org.) Filósofos da Idade Média – uma introdução, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000, p. 11-26; SCIACCA, M.F. História da Filosofia – volume I: Antiguidade e Idade Média, op.cit., p. 195-200; TILLICH, P. História do Pensamento Cristão, op.cit., p. 138-142; GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão – volume 2: De Agostinho às vésperas da Reforma, op.cit., p. 234-239; LIMA VAZ, H.C. A Função das Universidades e o nascimento da Escolástica, in Escritos de Filosofia I – Problemas de Fronteira, 2ª edição, São Paulo: Loyola, 1998, p. 21-24.. 2 MORESCHINI, C. op.cit., p. 440; SARANYANA, J-I. op.cit., p. 68; GONZALEZ, J. op.cit., p. 15; BOEHNER-GILSON, op.cit., p. 139.

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da razão somadas à luz da revelação3. Não obstante a genialidade das intuições do pensamento agostiniano - cuja feição marcará definitivamente toda a especulação cristã posterior – o cristianismo irá procurar somar e harmonizar e harmonizar os conhecimentos adquiridos pela humanidade, para possuir um saber amplo e completo, formando um todo orgânico e sistematizado 4 que desse conta de toda a realidade e no qual, perfeitamente integradas e compreendidas, estivessem presentes a sabedoria transcendente de Platão e suas escolas subseqüentes (como o neoplatonismo – o que Agostinho magistralmente já conseguira), mas também – e aqui a lacuna histórica – a ciência natural, a lógica e a física (e, por que não, a metafísica) de Aristóteles, para que então a sabedoria cristã pudesse, em seu esforço para a intelecção e elucidação dos dados da fé, expor a plena confirmação, pela razão, das verdades cridas e assentidas pela fé, e assim justificar-se, em sua pretensão de revelação única e exclusiva de Deus à humanidade, como superior às demais filosofias e correntes de pensamento. A partir de Boécio, entre os séculos V e VI d.C., o pensamento cristão pós-agostiniano intentará construir pois a síntese necessária do saber, sendo que através do legado filosófico boeciano5, o pensamento medieval latino mais e mais irá assimilar a filosofia aristotélica em seu interior. Assim, a busca da sistematização perpassa, nos séculos XI e XII, as construções filosófico-teológicas com o uso crescente do instrumental lógico, bem como da linguagem retórica probatória e categorial, todos de cunho aristotélico. Vários dos tratados teológicos, bem como das discussões dogmáticas – do que é exemplo maior a controvérsia berengariana em torno da presença real e substancial de Cristo na Eucaristia – compõem exemplos do uso da dialética dos universais e da MORESCHINI, op.cit., p. 489. GONZALEZ, J. op.cit., p. 55 e 65-66; MORESCHINI, op.cit., p. 486-487. 5 Acerca do pensamento de Boécio e sua importância histórica para o posterior desenvolvimento filosófico, cf. DE LIBERA, op.cit., p. 250-260; SARANYANA, J-I op.cit., p. 109-123; MORESCHINI, op.cit., p. 486-529. Vide ainda o trabalho de Juvenal SAVIAN FILHO Metafísica do ser em Boécio, São Paulo: Loyola, 2008, sobretudo (em relação ao presente tópico de nosso estudo) o Capítulo 2º - As posições semânticas de Boécio, p. 103-181. Ressaltamos que o trabalho de Savian Filho inclui tradução própria do autor ao De Hebdomadibus de Boécio. 3 4

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lógica das sentenças6. A tentativa de síntese convergia, neste ponto e na mais pura herança de Agostinho, à necessidade da fé em busca de seu entendimento, da linguagem teológica que pede e ratificação. Santo Anselmo busca o aprofundamento no tratado cristológico (Cur Deus Homo), centrando-se na abordagem dialética do finitum ad infinitum, que já anteriormente o levara à tentativa de estabelecer um argumento único (portanto, em caráter de síntese), e por assim dizer perfeito, em relação à existência de Deus, que viria a compor uma das páginas mais lidas e discutidas da história da filosofia ocidental: o célebre texto do Proslogium I-V, no qual expõe sua argumentação com base na ideia de que Deus é a perfeição e infinitude a partir do que nada maior e mais perfeito pode ser pensado, donde a impossibilidade de se pensar que não exista7. Tal argumentação, mais tarde celebrizada como ratio anselmi, será retomada e permanecerá influência constante em praticamente todos os períodos subsequentes8. Ressalte-se, porém,

DE LIBERA, op.cit., p. 291-293; SARANYANA, op.cit., p. 153 e 178-180. Para uma introdução à temática da controvérsia berengariana e do uso de categorias aristotélicas em sua discussão, sobretudo acerca da interpretação boaventuriana de ambas (transubstanciação e aristotelismo), referenciamos, uma vez mais, nosso estudo introdutório: PIGNATARI, R.C. A doutrina da Eucaristia no Breviloquium de São Boaventura – 1ª parte, artigo produzido em 2008 para o Grupo de Estudo em Filosofia Medieval do UNIFAI, em registro no site www.unifai.edu.br/gruposdeestudo. 7 Para o texto do Proslogium, vide Obras Completas de San Anselmo - volume I, edição bilíngue com a tradução castelhana por Julian Alameda, e o texto latino da edição crítica de Schmidt, Madrid: B.A.C., 1953 (reimpressão do final de 2008 como edição comemorativa do nono centenário da morte de Anselmo), p. 361-371. Igualmente dispomos da edição em português: Proslógio, tradução e notas de Ângelo Ricci, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 101-146 (Coleção Os Pensadores). Visando introdução e maior conhecimento da filosofia de Anselmo, cf. VANNI ROVIGHI, Sofia Introduzione a Anselmo d’Aosta, Bari: Editori Laterza, 1987; XAVIER, Maria Leonor L.O. Razão e Ser – Três questões de ontologia em Santo Anselmo, Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999; BARTH, Karl A Fé em busca de Compreensão, São Paulo: Novo Século, 2000. 8 Como mencionado, o argumento único de Anselmo é também referenciado por boa parte dos estudiosos medievalistas, a exemplo dos escolásticos, como ratio anselmi. Entretanto, é igualmente célebre sua definição como argumento ontológico, qualificação dada por Kant em sua crítica ao mesmo. Para a discussão acerca da posição kantiana estabelecida na Crítica da Razão Pura, bem como para uma introdução à temática em geral, perpassando os vários autores que retrabalharam a argumentação anselmiana ao longo da história, vide TOMATIS, Francesco. O Argumento Ontológico – A existência de Deus de Anselmo a Schelling, São Paulo: Paulus, 2003 6

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que a argumentação única desenvolvida por Anselmo tem por contexto idêntica finalidade apologética, tal qual o escopo em que se move toda a argumentação anticética agostiniana, e sua herança da interioridade humana como locus Dei faz-se notória na estruturação do argumento único, na realidade atuando como uma sua cristalização: a presença de Deus me é inegável, enquanto me presencio em minha própria interioridade. Nesta, sou como que posto ante toda a absolutidade e incomensurabilidade que (me) permanecem (interpelando-me) incontornáveis e inexoráveis. A ratio anselmi é herdeira consequente e direta – já a partir de sua base no fides quaerens intellectum - do locus Dei da interioridade agostiniana9. (para Anselmo: p. 11-22; a crítica de Kant: p. 72-84). Cf. ainda: MARTINES, Paulo R. O argumento único do Proslogium de Anselmo de Cantuária, Porto Alegre: Edipucrs, 1997; STREFLING, Sérgio R. O argumento ontológico de Santo Anselmo, 2ª edição, Porto Alegre: Edipucrs, 1997. Por último, como nos lembra SARANYANA [op.cit., p. 163], há estudiosos que preferiram designar o argumento anselmiano como a simultâneo, terminologia que preferimos e esposamos em nosso estudo. 9 Vide GANOCZY, A. op.cit., p. 62; SARANYANA, op.cit., p. 78-79. A proximidade da postulação verificada no livro II d’O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho (em que Evódio condiciona sua admissão de que o ser provado como superior à razão seja Deus, conquanto quo est nullo superior) com o argumento único de Santo Anselmo no Proslogium II (id quo nihil maius cogitari possit), possibilitou que a definição agostiniana tenha sido, por vezes, interpretada como uma primeira formulação da argumentação anselmiana: “A expressão id quo maius cogitari nequit, deriva presumivelmente de santo Agostinho de Hipona (354-430), que no diálogo O livre-arbítrio, leva Evódio a dizer: ‘Admitirei plenamente que seja Deus, se for estabelecido que não existe nada que lhe seja superior (II, 6,14)” – TOMATIS, F. O argumento ontológico: a existência de Deus de Anselmo a Schelling, op.cit., 2003, p. 13. Tomatis alude ainda à formulação agostiniana do De doctrina christiana I, vii, 7 (id quo nihil sit melius atque sublimius illa cogitatio conetur attingere), bem como à possível origem da conceituação em Cícero (De natura deorum II, 7). Com relação à influência do pensamento agostiniano na formulação de Anselmo, Maria Leonor Xavier faz observar o fio contínuo entre ambos, a partir da “metafísica do Êxodo” [expressão cunhada por Étienne Gilson (cf. O Espírito da Filosofia Medieval, op.cit., p. 67, nota 14) acerca da interpretação patrística da revelação do nome de Deus, no texto de Êxodo 3,14 (Ego sum qui sum)]: “Cabe [...] perguntar: qual a postura de Santo Anselmo a respeito da metafísica do Êxodo? [...] Ora, uma teologia da essência suprema privilegia naturalmente a essência entre as possíveis acepçoes do ser em Deus. Santo Anselmo deve, pois, inscrever-se na linhagem de Santo Agostinho, quanto à prevalência de uma metafísica da essência na determinação do ser divino. Com base na correlação dos termos essentia-esse-ens, Anselmo afirma a inter-permutabilidade dos nomes divinos summa essentia – summe esse – summe ens.” – XAVIER, Maria L.L.O. Razão e Ser: três questões de ontologia em Santo Anselmo, op.cit., p. 509-510. Vide ainda MARTINES, P. R. O “argumento

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Se Anselmo permanece na órbita de influência do pensamento agostiniano, Abelardo por sua vez irá explorar o domínio científico lógico, o que, somado à herança boeciana já perpassada pela obra anselmiana, culminará na célebre “questão dos universais”10. Por seu turno, os vitorinos Ricardo, e principalmente Hugo, empreendem aquela que pode ser vista como a primeira tentativa explícita, em âmbito cristão latino, de se compendiar e redigir, numa única obra, a sistematização de forma propedêutica e classificatória (o Didascalicon), do elenco das ciências humanas e divinas11. Com um panorama aberto à penetração do saber natural consubstanciado na lógica e sistemática categorial, representado pelo pensamento aristotélico, compreende-se como a pesquisa filosófica árabe (e mesmo judaica) ganhará corpo e influência no pensamento cristão medieval, somado ao surgimento, no mesmo período, do saber das escolas e das universidades, e à secularização das pesquisas e ciên­cias12. Com efeito, Averróis e, principalmente, Avicena (da tradição único” do Proslogium de Anselmo de Cantuária, op.cit., p. 54-55; STREFLING, S. R. O argumento ontológico de Santo Anselmo, op.cit., p. 24-25. 10 DE LIBERA, op.cit., p. 321-322; SARANYANA, op.cit., p. 182-193. Em relação a Abelardo, dispomos de sua Lógica para principiantes na tradução e estudo introdutório (p. 15-32) efetuados por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, Petrópolis: Vozes, 1994. Igualmente, temos a tradução de seu Sic et Non feita por Luis Alberto De Boni, in ID. Filosofia Medieval – textos, Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 122-135. Para uma exposição ampla e técnica acerca da lógica no período medieval, vide KNEALE, William e KNEALE, Martha O Desenvolvimento da Lógica, 2ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 181-302 (Abelardo: p. 206-229). 11 Cf. SÃO BOAVENTURA Redução das ciências à Teologia, c. 5, tradução de Renato Russo, in DE BONI, L. A . Filosofia Medieval – textos, op.cit., p. 210 (vide também p. 205). No tocante ao pensamento de Hugo de São Vítor, dispomos da edição em portugués do Didascálicon – Da arte de ler, com tradução e estudo introdutório de Antonio Marchionni, 2ª edição, Bragança Paulista: Edusf, 2007. 12 A exposição de Alain De Libera continua sendo a introdução melhor e mais acessível ao universo, ainda pouco disseminado e conhecido, da filosofia árabe medieval, bem como do pensamento filosófico medieval judaico. Os capítulos 2 e 3 de sua A Filosofia Medieval (op.cit.), respectivamente O Islâ Oriental (p. 61-140) e O Islã Ocidental (p. 141-189), e o capítulo 4, dedicado à filosofia judaica (p. 191-245), compõem boa parte desta obra de referência cujo valor recai precisamente na abordagem e apresentação pioneiras, em textos escolares, da tradição árabe filosófica (verificamos, por outro lado, que seu tratamento de autores e/ou escolas dos séculos XII e principalmente XIII, resulta, em nossa visão, inadequado e insuficiente, notadamente no que tange à Boaventura e à escola franciscana). Igualmente, a obra de Josep-Ignasi Saranyana

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árabe), mas também Avicebron (tradição judaica), serão constantes referências aos autores cristãos em sua interação com os pensamentos aristotélico e neoplatônico13.

§ 10 - A  síntese necessária do saber II: Summa e Breviloquium Assim, num contexto em que a meta da harmonização do saber humano-divino, historicamente preparada e amadurecida, fazia-se, mais que um desejo, uma necessidade dos novos tempos, surgem nos séculos XIII e XIV os expoentes máximos da busca pela síntese completa e sumária: Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, por um lado (dominicanos); e Alexandre de Hales, São Boaventura (século XIII) e Duns Scot (sec. XIV), por outro (franciscanos). É a idéia de harmonizar e sumarizar o conhecimento da sabedoria “do alto” ou “celestial” (Platão); das ciências naturais, ou “deste mundo” (Aristóteles); e das ciências divinas [revelação e teologia, com o pensamento de Santo Agostinho como referência principal, com sua síntese teológico (fé que busca)-filosófica (entendimento) cristalizada, sobretudo, no texto do tratado A Trindade, sua obra mais lida no período escolástico], que estará na base das construções especulativas e dos sistemas trabalhados por tais autores, sendo a assimilação em maior ou menor grau do pensamento aristotélico uma das variáveis que irão determinar a orientação geral de cada uma das sínteses trabalhadas. Temos, pois, de um lado a integração do aristotelismo como instrumental teórico auxiliar e elucidativo quanto ao conhecimento humano oferece-nos excelente apresentação das correntes árabo-espanholas: SARANYANA, J. A Filosofia Medieval, op.cit., p. 213-252. Para um primeiro contato com os textos dos autores medievais, dispomos das traduções portuguesas das obras dos filósofos árabes reunidas no compêndio organizado por Luis Alberto DE BONI, Filosofia Medieval – textos, op.cit., contendo O Livro das Letras, de Al-Farabi; O Livro da Ciência, de Avicena; e a Exposição da República de Platão, de Averróis. Para uma introdução ao estudo da filosofia árabe: ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa – A filosofia entre os árabes, São Paulo: Palas Athena, 2002 (especialmente p. 165-332); ABED AL-JABRI, Mohammed Introdução à crítica da razão árabe, São Paulo: Unesp, 1999. 13 Vide como SARANYANA elenca tais referências, quando da apresentação dos filósofos da Alta Escolástica – op.cit., p. 283-355.

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que apreende a realidade, para abstrair-lhe os universais componentes das razões eternas que o conhecimento, antecipado e evidente, da existência de Deus ilumina e harmoniza no intelecto humano (escola franciscana: aristotelismo com características neoplatonizantes, em fundo agostiniano), num movimento recíproco de abstractio/iluminatio na edificação especulativa trabalhada na síntese. Para esta escola, Aristóteles soma à verdade revelada (já conhecida pelo assentimento no crer), no que diz respeito ao conhecimento complementar da realidade natural, e não essencial. Por isso, a sistematização sumária, uma vez concretizada com a summa de Alexandre de Hales, necessitará apenas, posteriormente, da “breve palavra” (Breviloquium) da síntese (per)feita (em São Boaventura). Por outro lado, assume-se o pensamento aristotélico como orientação geral e fio condutor na construção do sistema, caracterizando-se a atitude experimental e abstracionista como a própria base da síntese, na qual as verdades são corroboradas ou ratificadas/garantidas, não por uma certeza advinda de iluminação ou evidência anterior, mas deduzidas, induzidas e/ou abstraídas pelo intelecto agente, independentemente do concurso divino (escola dominicana: aristotelismo “puro”, com influxo aviceniano e influências agostinianas). Nesse aspecto e orientação, a síntese adquire novo sentido, no qual todo o saber é como que revisto e “reconstruído”, tanto para a autocompreensão da sabedoria e fé cristã (obra de Sto Alberto Magno; Suma Teológica de Sto Tomás), quanto para não-cristãos melhor compreenderem a verdade revelada (Suma contra os Gentios, de Sto Tomás). Assim, um é o movimento que inicia na certeza da evidência imediata da existência de Deus, a fim de perfazer a recapitulação do saber à contemplação mística (Redução das ciências à Teologia e Breviloquium, de São Boaventura); outro é o que parte da realidade pela experimentação e abstração, para então demonstrar a existência de Deus à mente e à sabedoria humana (Sumas tomasianas).

§ 11 – B  oaventura de Bagnoregio: franciscanismo e agostinianismo São Boaventura é daqueles autores em que vida e obra se explicam e iluminam mutuamente. A mística da origem do nome far-se-à São Boaventura: Deus Est e a luz face à cegueira

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presente em todos os seus escritos, e estes como que o encaminham, mais e mais, à breve palavra (Breviloquium), à redução à contemplação, à douta ignorância14. Nele, o franciscanismo ganha feição e identidade intelectual próprias, e por ele nosso autor viverá e, pode-se mesmo dizer, morrerá servindo-o. E a posteridade, ao conferir-lhe a alcunha de Doctor Seraphicus, reconhecerá sua alma de fogo e o fervor presente em todos os seus trabalhos, fixando para sempre o caráter de sua vida-obra. Giovanni Fidanza nasceu em Bagnoregio (atual Viterbo), na Itália, em 1217, embora a maioria dos autores situe seu nascimento em 1221. Já em seu início, a vida de Fidanza estará marcada indelevelmente pelo signo do franciscanismo: foi curado, segundo nos relata a maioria dos pesquisadores, de doença grave por intervenção de São Francisco de Assis, sendo que a bem-aventurança (buonaventura) de ser livrado da morte lhe dará o pseudônimo definitivo. Estudante em Paris, entra para a ordem mendicante em 1243, prosseguindo em seus estudos até obter a licença de ensino (licentia docendi) em 1248, e o mestrado em 1253, embora só tenha assumido o ensino de fato em 1257, devido à querela dos mendicantes. Porém, nesse mesmo ano o fato mais marcante de sua carreira acadêmico-eclesiástica ocorreria em fevereiro, com sua escolha e nomeação para Superior Geral da Ordem Franciscana. A partir de então, “encerrou sua produção científica professoral, e suas obras adquiriram um tom mais ascético ou de governo.”15 Em 1273, é nomeado para o cardinalato, e atuando na preparação e trabalhos para a realização do II Concílio Ecumênico de Lyon, vem a falecer em 15 de julho de 1274, apenas quatro meses depois de Santo Tomás de Aquino... Expressão celebremente atrelada ao nome de Nicolau de Cusa, autor de obra homônima no século XV, mas cuja ocorrência já se verifica num dos escritos mais conhecidos de Boaventura: Breviloquium V, 6-8. A expressão ressoa, em verdade, ensinamento de toda a obra atribuída a Dionísio Pseudo-Areopagita, autor desconhecido de provável origem síria e vivência no século V d.C., cujas obras Os Nomes Divinos, A Hierarquia Celeste e Teologia Mística, a partir das primeiras traduções para o latim no século IX d.C., exerceram grande influência nos autores do período escolástico, mormente em São Boaventura e Santo Tomás de Aquino. Cf. PSEUDO DIONÍSIO-AREOPAGITA Obra Completa, tradução da versão francesa para o português por Roque Frangiotti, São Paulo: Paulus, 1994. 15 SARANYANA, op.cit., p. 294. 14

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Espírito fervoroso e sobretudo fiel à Igreja. Assim talvez possamos ver e, sobretudo, entender a vida e a produção intelectual de São Boaventura. Saranyana nota16 (e o próprio Boaventura o afirma) que sua obra é, antes de tudo, um prosseguimento da tradição agostiniana, com a notória influência do aristotelismo neoplatônico via Avicebron, mas também, e principalmente, da alma franciscana. Porém, enganamo-nos se o tomamos como mero continuador de tradições já trabalhadas de antemão. São Boaventura é acima de tudo um lapidador, um mosaicista, um arquiteto a vislumbrar, enxergar e construir, com as “pedras brutas”, jóias e originalidades onde só se poderia esperar repetição17.

§ 12 - A síntese seráfica: Deus imediato é Para a síntese seráfica boaventuriana18, o ponto de partida essencial a qualquer pensamento, seja ele filosófico, teológico, meditativo, Idem, ibidem, p. 295. Em relação ao caráter e estatuto filosófico da síntese boaventuriana, vide a excelente apresentação da discussão a respeito, com tomada de posição própria, em SARANYANA, op.cit., p. 295-297 e 301-304; BOEHNER-GILSON, op.cit., p. 442-443. Para um aprofundamento da temática, vide as obras adiante elencadas, na próxima nota. Como anteriormente aludimos (nota 78), as duas páginas, das quase quinhentas de seu texto, que Alain De Libera dedica ao pensamento de Boaventura, parecem-nos insuficientes e inadequadas por completo, destoando, em nossa visão, do todo da obra, não somente pela exígua e apressada abordagem, mas sobretudo pela (a nosso ver equivocada) qualificação do pensamento boaventuriano como essencialmente anti-aristotélico – DE LIBERA, A Filosofia Medieval, op.cit., p. 402-404. No mesmo sentido, embora moderadamente, com maior abrangência e acuidade e, sobretudo, com maior sensibilidade ao construto boaventuriano como síntese filosófico-teológica de herança agostiniana voltada primordialmente ao dado primordial do conhecimento, assentido e aquiescido in credere, operam GILSON em La Philosophie au Moyen Age, op.cit., p. 439-440; e GONZALEZ, J. Uma História do Pensamento Cristão – vol. 2, op.cit., p. 239-240. 18 Referenciamos como basilares ao nosso estudo, em relação à vida e obra de Boaventura, bem como para uma primeira aproximação ao pensamento boaventuriano, os trabalhos de BOUGEROL, Jacques Guy. Introduccion a San Buenaventura, Madrid: B.A.C., 1984; FALQUE, Emmanuel. Saint Bonaventure et l’entrée de Dieu em théologie, Paris: Vrin, 2000 (sobretudo o capítulo primeiro: p. 3152); GILSON, É. La philosophie de Saint Bonaventure, 3ª edition, Paris: Vrin, 1984; MANNES, João. O Transcendente Imanente – A filosofia mística de São Boaventura, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 38-42 e 51-55; SCHLOSSER, Marianne. 16

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contemplativo, orante, ou ainda discursivo, será sempre e essencialmente o mesmo: a certeza autoevidente e imediata da existência de Deus. Para Boaventura, é tão manifestamente certa a presença (que se dá a perceber e saber) da divindade soberana, que falar em sua demonstração chega a constituir verdadeiro contrassenso. Não obstante, uma tal demonstração deve ser trabalhada e posta em relevo, com o fito de justamente fundamentar, ao mesmo tempo que servir de consumação, a edificação sumarizante e a síntese dos saberes e ciências, as quais não poderiam ter outro alicerce - como também a meta a que se destinam - que não o próprio Criador. Na realidade, São Boaventura não trabalha somente uma demonstração da existência de Deus, mas sim expõe e trabalha um núcleo temático que se desenvolve e expande, por assim dizer, numa seqüência progressivo-recorrente de demonstrações que culminam na própria edificação do sistema. A assim chamada prova da existência divina acaba por se converter, em realidade, na própria construção da síntese, a qual, no movimento reverso em simultâneo, se autofundamenta, evidencia-se, justifica-se e se torna real e inteligível quando resulta na (de)mo(n)stração de Deus. Saint Bonaventure – La joie d’approcher Dieu, Paris: Éditions du Cerf, 2007; SPEER, Andreas. Boaventura – A certeza do conhecimento in KOBUSCH, T. op. cit., p. 239-243; VIER, Raimundo. Da certeza do conhecimento de Deus em São Boaventura in GARCIA, A (org.). Estudos de Filosofia Medieval – A obra de Raimundo Vier, Petrópolis: Vozes, 2ª. edição, p. 39-43; DE BONI, L. A. Apresentação in BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, Escritos Filosófico-Teológicos I, Petrópolis: Vozes/Bragança Paulista: Edusf, p. 38-41; MERINO, José Antonio e FRESNEDA, Francisco M. (coord.) Manual de Filosofia Franciscana, Petrópolis: Vozes, 2006; GARCIA, Antonio C. São Boaventura – Doutor Seráfico, Cucujaes: Editorial Missões, 2008; GANOCZY, A. Il Creatore Trinitário – Teologia della Trinitá e sinergia, op.cit., p. 98-113; BALTHASAR, Hans Urs von Gloria – una estética teológica, volume 2, Madrid: Ediciones Encuentro, 1986, p. 318-334; GILSON, E. La Philosophie au Moyen-Âge, op. cit., p. 439-445; ID. O Espírito da Filosofia Medieval, op.cit.; ID. e BOEHNER, Ph. História da Filosofia Cristã, op.cit., p. 432-443. Para uma apresentação geral da metafísica exemplarista boaventuriana: WOZNIAK, Robert J. Primitas et Plenitudo – Dios Padre en La Teologia Trinitária de San Buenaventura, Navarra: EUNSA (Colección Teológica), 2007; BELLEI, Ricardo J. A questão da interioridade no Itinerarium mentis in Deum de São Boaventura, Dissertação de Mestrado sob a orientação do Prof. Luis Alberto De Boni, Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006 (especialmente p. 24-44).

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a) Herança agostiniana: iluminação e interioridade Para tanto, Boaventura irá trabalhar os matizes herdados dos filósofos gregos, porém sob a ótica preponderante daquele que reconhece como o mestre maior: Santo Agostinho. A linha mestra que fundamenta e perpassa a síntese de nosso autor é a iluminatio divina, posto que, em convergência à metafisica da interioridade agostiniana (que delineamos anteriormente nos capítulos I e II), a luz de Deus vem a possuir, mais que um estatuto ontológico próprio, o poder estatuinte da realidade do mundo criado. A iluminação divina é, então, o momento ontológico essencial e originário. O assumir, no erigir de seu edifício filosófico-teológico, a doutrina da iluminação divina como seu fio condutor, permitirá a Boaventura ajustar na base do sistema duas outras contribuições que, mais que reinterpretadas – e aqui a originalidade do mestre seráfico – serão repensadas e reelaboradas numa formulação inovadora e de imenso alcance para toda a elaboração da síntese: as ideias divinas (que, da herança platônica, herdam seu caráter de forma originária ou arquetípica, porém sem a densidade ontológica que Platão lhes conferia) e, principalmente, o exemplarismo originado na tradição platônica [cuja doutrina da participação (methexis) afirma a relação entre a realidade sensível individual e a Forma imaterial universal em termos de pertença nivelada de acordo com a gradação de cada ente, compondo exemplares variados de um mesmo molde ou forma originária], somado à abstração aristotélica, resultando pois no postulado de que toda criatura é um exemplar das ideias divinas criadoras, que são por sua vez essencialmente atividade do Logos/Palavra de Deus, sendo que na percepção/abstração dos seres criados, identificamos e vemos, à luz do Verbo, o vestígio do Criador, portanto a sua presença. Nesse sentido, “a linguagem e a lógica de nosso pensamento expressam e evidenciam a própria feitura do real pela divindade, na medida em que reproduzem as idéias eternas da mente criadora de Deus”19, como também demonstram o duplo movimento correlato e simultâneo da abstractio/iluminatio. A SARANYANA, op.cit., p. 298.

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abstração somente me é possível porque a inteligibilidade dos entes criados a partir do Logos/Idéia divino, se me afigura ao intelecto agente pela mesma Luz divina presente na criação. Não se explicaria o duplo movimento se este encontrasse sua fundamentação em qualquer outro ser ou instância que não o Criador divino. Porque? Porque Boaventura irá retomar o argumento único de Anselmo numa amplitude que termina por redefini-lo com originalidade e penetração tais que, podemos mesmo dizer, constitui seu maior legado filosófico-teológico. Sumarizando a apresentação da tríplice base onto-teo-lógica da metafísica boaventuriana20, podemos conceituar o exemplarismo boaventuriano de modo lapidar, ou como o próprio corolário de toda a sua síntese, na concisa descrição que nos oferece Josep-Ignasi Saranyana: “Nosso discurso, na medida em que é expressão das coisas, mostra com evidência a existência de Deus, posto que as coisas são essencialmente exemplares das idéias divinas.”21. Para São Boaventura, é tão certa a evidência imediata – a priori - da existência de Deus à alma - por sua vez iluminada pela luz refletida na exemplaridade de Deus - que a argumentação pela exterioridade do universo criado – a posteriori – pode ser considerada como secundária e de caráter corroborante, na verdade um reforço consequente do (e ao) movimento em abstractio-iluminatio22. Antes, porém, de passar à consideração das vias a posteriori da argumentação boaventuriana em favor da existência divina, deve-se notar que, para Boaventura, a conclusão – ou, antes, a constatação ou pura reafirmação racional dado fundante e originário, que

A concepção da metafísica ocidental tornada célebre por Heidegger bem poderia, para o exemplarismo boaventuriano centrado no movimento simultâneo e auto-reverso da iluminatio/abstractio-reductio/itinerarium, ser redefinida como teo-fenomeno-lógica, dado a estrutura, conteúdo e poder estatuinte ontológicos atribuídos, na herança agostiniana, à luz divina em sua composição e fundamentação: Itinerarium mentis in Deum, Prologus, 4; I, 2; para a simultaneidade/reversibilidade: I, 5; para a iluminatio in reductio: De Reductione Artium ad Theologiam 1-8 [Redução das Ciências à Teologia, tradução brasileira pelo Prof. Luis Alberto De Boni, in BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, op. cit., p. 351-358] – vide SARANYANA, J. op. cit., p. 298-299; BOEHNER-GILSON, op. cit., p. 435-440; cf. especialmente GILSON, E. La Philosophie au Moyen Age, op.cit., p. 442-443; e VIER, Raimundo, op.cit., p. 34-37. 21 SARANYANA, ibidem. 22 Idem, p. 298-299 20

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lhe é natural e imediato – pela existência da divindade não pode ser dissociada, ou diferenciada, da que conclui pela existência do Deus pessoal cristão! Não que o mestre seráfico estivesse afirmando, de forma ingênua e acrítica, sua fé cristã; antes, procurava expor as fraquezas da filosofia aristotélica – e aqui a reserva maior de nosso autor frente ao filósofo grego. Para Boaventura, Deus não pode ser pensado, refletido, vislumbrado, sequer discutido ou mesmo negado, a não ser na forma como o define o cristianismo: pessoal e amor puro, criador e sustentador da vida, luz eterna refletida e vista na criação toda. Sem o caráter pessoal e trinitário, Deus sequer pode ser pensado ou buscado, ao passo que, como bem sabemos, para o pensamento aristotélico, a divindade é tida como imóvel, causa motriz do universo, porém não mantendo relação participativa perene com ele, e por isso mesmo.

b) Receptividade e assimilação de noções aristotélicas O caráter imediato do conhecimento de Deus ao espírito humano é, ao mesmo tempo que a luz que o ilumina a si mesmo e ao mundo, também a abertura ontológica do ser humano à expressão divina impressa, por assim dizer, nas criaturas. Nesse sentido, e no escopo de seu exemplarismo - pilar central de sua filosofia – Boaventura apresenta quatro vias de demonstração da existência de Deus pela exterioridade, ou argumentação a posteriori (visto que a evidência imediata à alma humana constitui, como vimos, o centro argumentativo a priori), notavelmente de caráter aristotélico.23 São elas: Tomadas, ao longo de boa parte da historiografia filosófica medieval, por antitéticas ou conflitantes, as relações entre o pensamento de Boaventura e a herança aristotélica têm sido objeto de variadas revisões, permanecendo ainda tema de grandes discussões e estudos. Pressupomos como nosso ponto de vista teórico, na presente pesquisa, não haver rejeição sistemática e categórica, por parte de Boaventura, de todo o pensamento aristotélico, mas sim a assimilação seletiva de grande parte da lógica e da (assim chamada) psicologia aristotélicas, no que diz respeito à operação do intelecto humano in abstractio dos dados empíricos; bem como, ainda, da física aristotélica, no que respeita às teorias da causalidade formal e material, às categorias, às funções taxonômicas da racionalidade ante a multiplicidade real. Para uma introdução ao debate sobre as relações entre os pensamentos de Boaventura e Aristóteles, vide GILSON, E. La philosophie de saint Bonaventure, op.cit., p. 83-100,

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a) Se existe o ser por dependência (ou derivação), deve existir um ser por si, ou seja, que exista por si, sem dependência de qualquer outro para seu ser. b) Como consequência direta da asserção anterior, a segunda via afirma que se existe o ser possível, deve existir o ser necessário. c) Na mesma linha, se existe um ser em potência, há conseqüentemente um ser em ato puro. d) Finalmente, se existe um ser mutável, há necessariamente um ser imutável. Notamos, porém, em todas as quatro vias um como que eixo fundamentador da argumentação, de cunho anselmiano: conhecer o minimum implica, imediata e necessariamente, em conhecer o maximum. Aqui se encontram e se “cruzam”, por assim dizer, as vias neoplatônica (ancorada na tese da participação do ente determinado no ser indeterminado) e aristotélica (dependência, contingência, potencialidade e mutabilidade são remissivas, de modo causal, à ipseidade, absolutidade, atualidade e imutabilidade) pró-existência divina24. Convergindo (ao mesmo tempo que lhes é correlato essencial e fundante) das vias a priori – evidência imediata da iluminatio/abstratio – e a posteriori (4 vias/variações do maximum-minimum), deparamo-nos com a reformulação boaventuriana do argumento ontológico anselmiano, ou, como intitula Saranyana, “prova a simultâneo” da existência de Deus25. A máxima boaventuriana “Se Deus é Deus, Deus é” clarifica que, se tomo por Deus a realidade que vislumbro e penso como infinita, imutável, eterna, necessária, atual, autônoma, e sobretudo, luz criadora e sustentadora do universo, então a existência que é pensada é, na verdade, a iluminação da realidade captada e apreendida na iluminatio/abstractio, através dos vestígios divinos impressos em todo ente. Na realidade, o pensamento que define é a clarificação (reflexão) da percepção imediata, que ilumina a apreensão da realidade expressa 153-161, e 392-396; BOUGEROL, J.G. Introducción a San Buenaventura, op.cit., p. 53-82. Vide ainda as demais obras elencadas nas notas anteriores 83 e 84. 24 SARANYANA, op.cit., p. 299-300 25 Idem, ibidem, p. 300

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no mundo natural. Dado que tal definição decorre da imediaticidade da iluminatio/abstractio que me advém ao intelecto agente, ou seja, somente chego a tal definição pela iluminação divina, sua existência é clara e indubitável, necessária e imediata ao espírito: Ora, se o não-ser não se pode inteleccionar senão pelo ser, e o ser-em-potência senão pelo ser-em-ato, e dado que a existência designa o próprio ato puro de ser, segue-se que a existência é aquilo que a inteligência primeiramente conhece, e essa existência é a que é ato puro. Tal existência, por sua vez, não é uma existência particular, pois esta é uma existência reduzida, por estar misturada com limite; nem é uma existência análoga, porque esta tem o mínimo de realidade, por isso mesmo que tem o mínimo de existência. Resta pois que tal existência é a existência divina.26

O trecho em pauta ilustra, de forma sobremaneira clara, que o movimento da iluminação/abstração, efetivado em reciprocidade e/ou simultaneidade entre seus polos, perfaz a imediaticidade originária com que o ser divino se mostra ao intelecto agente, constituindo o primeiro dado a ser apresentado ao intelecto27, ao mesmo tempo que lhe fundamenta e possibilita o agir em apreensão e abstração, da realidade entitativa exterior que lhe é dada e apresentada. Por sua vez, o caráter de primeiridade, ou momento fundante e originário, supõe a receptividade humana na qual se dá e é manifestado o dado primeiro, ou primeiro ente ou ser conhecido (primum esse). Tal espaço ou instância não pode, evidentemente, constituir momento secundário no agir Si igitur non ens non potest intelligi nisi per ens, et ens in potentia non nisi per ens in actu; et esse nominat ipsum purum actum entis: esse igitur est quod primo cadit in intellectu, et illud esse est quod est purus actus. Sed hoc non este esse particulare, quod est esse analogum, quia minime habet de actu, eo quod minime est. Restat igitur, quod illud esse est esse diuinum. - Itinerarium mentis in Deum, V, 3. Utilizamos a edição bilíngue latim-português, com tradução de António Soares Pinheiro, S.J., 3ª edição, Braga: Faculdade de Filosofia, 1986; bem como a tradução, com notas de estudo, de Jerônimo Jerkovic e Luis A. De Boni, prefácio de Alessandro Ghisalberti, Petrópolis: Vozes, 2012 (versão revisada e modificada das edições anteriores de 1983 e 1999, calcadas na tradução de Jerkovic). Utilizaremos as duas edições para nosso presente estudo, notando-as como (Pinheiro) e (De Boni), respectivamente. 27 Primo esse cadit in intellectu, expressão corrente entre os medievais escolásticos, presente no texto em pauta do Itinerarium. 26

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intelectual e constituinte do exercício da razão, pelo que evidencia-se ser a interioridade (que a um só tempo recepciona a iluminatio – como por ela é instituída - e intelecciona (vê) a realidade exterior in abstractio) o momento instituinte da manifestação e mostração do ser primeiro e divino, imediato e absoluto, ao espírito humano. Nesse sentido, a interioridade constitui, no interior da síntese seráfica, a própria fundamentação e constituição do movimento simultâneo, que recebe a iluminação divina em sua imediaticidade e explicitude; ao mesmo tempo que age e intelecciona, abstraindo-lhe, a realidade exterior por ela iluminada e constituída, ou melhor, estatuída e configurada nos conceitos expressos em nossa linguagem. Em suma, a interioridade vem a ser, na estruturação do pensamento boaventuriano, o ponto basilar à síntese entre a herança matricial da iluminatio agostiniana, e a abstractio herdade do pensamento aristotélico. Assim, afigura-se que o contributo essencial da síntese boaventuriana para com a metafísica da interioridade de Agostinho, reside na assimilação do movimento abstrativo do intelecto, pelo qual a interioridade não somente se recolhe em movimento de refluxo do vetor ascendente, rumo à culminância na eternidade da presença divina através dos memorabilia (conteúdo vivenciado e remissivo, por sua origem permanentemente fundada no primum esse), porém insta-se ao movimento de influxo rumo à realidade exterior que, mercê da iluminação constituinte da interioridade, e instituinte da percepção do ser como primeiro dado ao intelecto (que, como é sabido, a fenomenologia husserliana irá chamar de mundo-da-vida (lebenswelt) instituinte da consciência, enquanto Heidegger postula como dado ao ser-aí, ou simplesmente o ser-no-mundo próprio da existência humana (dasein - vide adiante capítulo IV), é percebida e configurada como tal, unicamente à luz da interioridade. Porém, este duplo aspecto da interioridade não ocorre seqüencial e temporalmente, mas sim em simultaneidade, no que a herança do argumento único de Santo Anselmo é decisiva para estabelecer a imediaticidade e simultaneidade entre a iluminação que se dá e institui-se no vetor descendente divino/humano, e a abstração que se perfaz e constitui-se no vetor ascendente da mens humana, em percepção e iluminação da realidade à luz da manifestação divina, 78

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vendo e iluminando os vestígios e exemplaridades da Trindade divina na exterioridade que se lhe é apresentada. A interioridade, conquanto convergência perceptiva da essência na existência [ou dito de outra forma: simultaneidade entre o dado essencial (iluminação) e existencial (exterioridade – abstração)], instaura-se e se concretiza de modo anterior à temporalidade do conhecimento abstrativo, remetendo-se, portanto, à eternidade do ser divino que lhe habita e a torna locus Dei. Talvez possamos dizer que São Boaventura não se restringiu ao agostinianismo puro, em simples oposição à assimilação da filosofia aristotélica que então se iniciava nos círculos cristãos. Além de tentar mostrar a suficiência do pensamento de Santo Agostinho para a edificação teológica, ele igualmente tentou mostrar que a sistematização das ciências naturais, que ele próprio reconhece ser o traço genial no pensamento aristotélico, não somente é tanto possível dentro da postura agostiniana, como também - e mais afinada à luz da sabedoria sobrenatural, vale dizer: teologia - ela é tanto mais completa nesta última, posto que fundamentada na luz da encarnação do Verbo Eterno. Numa palavra: a sistematização boaventuriana pretende caminhar além da fundamentação aristotélica, ao amparar-se na visão cristocêntrica do labor teológico, tipicamente escriturístico (e agostiniano)28.

§ 13 - Itinerarium mentis in Deum O Itinerário da mente para Deus é a obra mais conhecida de São Boaventura e, possivelmente, aquela em que melhor podemos apreciar sua habilidade na articulação da síntese dos elementos recepcionados de outras correntes filosóficas, para forjar o novo e vislumbrar melhor o alcance destes próprios elementos, na culminância da atitude confiante de entrega total ao mistério, na mística da consumação do ser contingente no ser absoluto. Num primeiro contato com o texto, a ideia ou representação do movimento da alma num crescendo 28

Vide a elucidativa Introdução que Emmanuel FALQUE expõe em seu Saint Bonaventure et l’entrée de Dieu en théologie, op.cit., p. 19-28 (“L’hypothèse phénoménologique et le Breviloquium”).

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evolutivo, como que se impõe naturalmente. Temos por nítida a descrição de sua subida a Deus, numa escalada progressiva pelos graus de crescimento espiritual até culminar em sua consumação de percurso e vivência na divindade. É tal o conceito formado quando, numa primeira leitura, deparamo-nos com termos como ascensão, degraus, escala, subida, inferioridade e superioridade, etc. A começar pelo título, que sugere tratar-se do caminho pelo qual se conduz a progressão da alma ao seu termo superior, posto que do inferior só se pode subir ou progredir. Assim, patenteia-se um quadro de verticalidade evolutiva rumo ao divino e absoluto, configurando-se a própria realização da alma em sua vocação essencial. A subida vem a ser seu destino próprio, seu movimento constitutivo realizador e autenticador, que lhe confere a identidade à qual foi moldada a atingir, passando pela libertação das “amarras” mundanas inferiores, a fim de se deter em sua marcha evolutiva. Mas esta ideia, tão vívida na leitura primeira que se trava com o texto, e compartilhada com várias – e milenares - tradições espiritualistas, talvez não traduza a precisão necessária a se ter em mente para uma adequada leitura do Itinerarium. Parece-nos necessário dizer que tal interpretação, ainda que soe óbvia e aparentemente se imponha de forma natural, mais que insuficiente, seria inadequada para a correta descrição dos ricos conteúdos expressos nesta obra que, para além de sua impostação mística, traça um mapeamento das conquistas do conhecimento humano em suas formas múltiplas, a fim de atentar à sua fonte única. Porém, mais ainda que traçar o mapeamento da conquista, o Itinerarium mostra-se como o escrito da totalidade e da plenitude por excelência. Ora, a realidade em totalidade (o ser-em-plenitude, com o qual talvez possamos traçar paralelo com o Todo-Circunscrevente de Karl Jaspers29) somente Precisamente na percepção do todo abrangente, enquanto realidade dada in totum ao espírito e à interioridade daquele que busca, é que visualizamos a possibilidade de se tentar aproximação com o pensamento jaspersiano, o qual estabelece a presença do ser humano enquanto situado na própria totalidade e realidade circunscrevente - o Dasein - nas situações-limite constituintes do mundo vivencial (lebenswelt) preenchido pelo Todo-Abrangente (Das Umgreifende), o qual comunica o expressível justamente nas Cifras (Chifren) da Transcendência inefável – cf. JASPERS, Karl Philosophie, zweite auflage (2ª edição), Heidelberg: Julius Springer Verlag, 1932,

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se configura – e se perfaz – como tal, na imediaticidade da unidade; no ser princípio da existência, que lhe perfaz o existir como perfazimento ascensional da realidade conhecida, em seu co-intuir a diferença como dialogo e envolvimento (nooumena katoratai: conspiciuntur em Rm 1.20). Tratar-se-ia, nessa revisão do Itinerarium, menos de subida e mais de abarcamento; menos de verticalização e/ou horizontalização, mais de circunscrição; menos de evolução, mais de plenificação; menos de descoberta, mais de tomar posse do que já se tem, como um caçador/buscador de tesouro, o qual dispõe do mapa e já sabe onde se encontra seu tesouro, caminhando por ele até o local, a fim de se envolver com a conquista, possuí-la, na verdade ser por ela possuído. Mas qual a importância de se observar que não se trata de evolução, e sim de plenificação e abarcamento? Por quê ressaltar com tanta precisão que o movimento não é propriamente (ou unicamente) uma subida ou escalada progressiva, mas sim um abarcar plenificante a realidade? E não estaríamos, afinal, falseando o próprio ensinamento de São Boaventura, ao descurar de sua notória hierarquização da realidade, a qual como que ratificaria a idéia da verticalização progressiva da realidade anímica? p. 110-116; e 124-127. Nesse sentido, intentamos em nossa leitura situar as Chifren como instância de convergência e intersecção entre a forma e o todo, ou seja, totalidade in sp(ecie)atium aeterni – no silêncio do limite. Vivenciar as Cifras existenciais como o dar-se indizível da lebensform simultânea ao lebenswelt na comunicabilidade inefável que nos abarca em eternidade. O paralelo se nos afigura mais expressivo ainda, quando nos lembramos da docta ignorantia asseverada por Boaventura em seus escritos – vide, anteriormente, a nota 80 de nosso estudo. Por fim, a aproximação como que converge, quando nos lembramos que, no Itinerarium, bem como em outros escritos igualmente, Boaventura aponta para o estágio final da itinerância ascendente como em superação da ratio e da própria iluminatio na interioridade, para culminar e plenificar-se no Absoluto Divino, ao que chama de apex mentis, no acento místico que lhe configura corolário de busca e caminho (cf. Itinerarium, VII, 4); ao passo que Jaspers categoriza a experiência mística como a efetiva realização da própria transcendência no Absoluto – vide JASPERS, Karl. Psychologie der Weltanschauungen, vierte auflage (4ª edição) Berlin/Heidelberg: Julius Springer Verlag, 1954, especialmente p. 84-90; 440-462 [cf. p. 453: “Im Zentrum der Mystik steht das Erlebnis, das – als Erlebnis – reale Vereinigung mit dem Absoluten ist”, o que tentamos como: “No centro da experiência mística encontra-se – como vivência – a efetiva convergência junto ao (ser) Absoluto”. Jaspers igualmente trabalha a significação do mundo (a Weltbilder, compondo todo o segundo capítulo de sua obra) dentro de sua análise fenomenológico-existencial: cf. a introdução das p. 143-153.

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A resposta está na própria metafísica boaventuriana de herança agostiniana, historicamente em contraste com a tomásica/aristotélica. Mais especificamente, na idéia do ser. No Itinerarium30, o ser divino não somente é o primeiro conhecido (em concordância, aqui, com Santo Tomás e os medievais em sua maioria), mas também a própria realidade percebida/ intuída no ser, o qual traz o real como um todo, pois não se pensa qualquer coisa do real que não o seja no (em-o; possibilitado pelo) ser divino31. O método boaventuriano de redução ou recondução (reductio)32 de todo o conhecimento à presença primor Itinerarium, III, 4; V, 3. No espírito da síntese seráfica boaventuriana, de fidelidade irretrista ao pensamento agostiniano, o itinerário não é unicamente voltado para Deus, como se a mente (mens, ou a ratio) caminhasse tão-somente para encontrar o que ainda desconhece, mas é, sobretudo, perfazido em Deus, por sua vez dado e assentido na fé principial, e ponto de partida (plenitude de princípio) do itinerário; e no qual se delineia, perfaz e é consumado enquanto telos (meta) ou plenificação em absoluto. Na mais recente revisão de sua tradução do Itinerarium seráfico, Luis Alberto De Boni observa que “‘para Deus’ deveria ser traduzido ao latim: ad Deum. O uso da preposição in, em vez de ad, não é casual: o propósito de Boaventura, na presente obra [Itinerário], não é o de somente indicar um caminho de como se chega até Deus, e sim o de ensinar como o homem se une a Deus,...” – DE BONI, L.A. nota ao Prólogo in S. BOAVENTURA. Itinerário da mente para Deus, op.cit., p. 13 (De Boni). No prefácio, Ghisalberti nota que “o verdadeiro itinerário, para Boaventura, deveria partir de Deus, passar pelas criaturas e retornar a Ele, mantendo-se a indiscutível superioridade de perfeição do ponto de partida”. Contudo, se, a exemplo do itinerário matricial agostiniano, a exposição seráfica inicia pelos seres contingentes, é “porque esta modalidade é mais acessível a todos, pedagogicamente capaz de envolver também os simples e os illiterati.” (modalidade esta que, afinal, tanto na origem agostiniana, quanto na continuidade boaventuriana, será iluminada pelos vestígios divinos impressos em todo ente e ser) – GHISALBERTI, A. Prefácio in Itinerário, op.cit., p. 9 (De Boni). Cf. FALQUE, E. Saint Bonaventure et l’entrée de Dieu em théologie, Paris: Vrin, 2000, p. 85-87; GILSON, E. La philosophie de saint Bonaventure, 3ª. édition, Paris: Vrin, 2006, p. 165-182; vide ainda GILSON, 2007: 55-56; PRZYWARA, Erich. Augustin: passions et destins de l’Occident, 2ª. édition, Paris: Du Cerf, 2007, p. 26-27. 32 Tem-se feito notar, entre os estudiosos, as aproximações e paralelos entre o método boaventuriano e a fenomenologia husserliana: “O esforço de redução purificadora da mente, que eleva da apreensão do ser contingente ao ser puríssimo, presente no capítulo V do Itinerarium, sugere-nos um estimulante paralelo entre a ‘redução’ boaventuriana [...] e a Reduktion ou epoché de que tratam os filósofos da Escola Fenomenológica do século XX, em particular a reducão que Husserl expõe no texto Filosofia Primeira – Teoria da redução fenomenológica. O esforço que, para Boaventura, o intelecto deve empreender para aceder, redutivamente, ao ser puríssimo pode bem ser assemelhado à redução transcendental husserliana, onde o processo de epoché ou de redução fenomenológica não é entendido por Husserl como a procura de um núcleo asséptico de 30 31

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dial e fundante do primo cadit in intellectu, ou seja, do ser, traduz a re-leitura da realidade em movimento quase que oposto à progressiva subida. Esta, por sua vez, faz-se presente no Itinerarium, não como via de acesso ou elemento estrutural de uma relação verticalizada entre o Ser divino e a humanidade, porém intenta muito mais a plenificação que perfaz, que aperfeiçoa, ou seja, conduz (ou reconduz, se atentarmos a outro de seus títulos: Reductio artium ad theologiam) o real, ou a realidade dos entes, à perfeição enquanto unidade ou totalidade consumada, realizada, plenificada, vivenciada e iluminada. A apresentação da ascentio mentis, e sua conceituação como expressão da interioridade no movimento simultâneo da iluminatio/abstractio a que anteriormente aludimos, pode ser verificada na maneira como é instaurada, por assim dizer, a itinerância da mente rumo à plenificação no ser divino. Logo em seu início, Boaventura coloca o centro da ascensão da alma, não na mens, tampouco na ratio, mas sim no coração: “Ninguém pode tornar-se feliz se não subir acima de si mesmo, não por ascensão corporal, mas de coração” [(Pinheiro, p. 58-59)]33, asseverando em seguida que de nada adianta os degraus estarem dispostos ante o coração, se este não for elevado por uma força superior. Porém, a superioridade não se nos impõe ou anula, como também não nos exaure, mas nos é dada e presenciada na volição de um coração que se posta humilde e sem resistência, que se volta por inteiro à entrega e busca, numa palavra: um corde humiliter et deuote34. É a atitude de oratio, pois, que conduz a alma em sua ação de consumação da evidência e de objetos presente à consciência, mas como um colocar entre parêntesis das concepções naturais e científicas, para chegar àquele resíduo que ‘se manifesta’, que é a consciência de um sujeito aberto ou escancarado à manifestatividade, isto é, aberto ao real e ao seu manifestar-se. É possível ver a correspondência entre a manifestatividade da consciência transcendental própria da fenomenologia husserliana e a abertura do intelecto provido de um olhar puríssimo, no caminho da ascensão contemplativo-redutiva, descrita no Itinerarium boaventuriano.” – GHISALBERTI, A. Prefácio in Itinerário da mente para Deus, op.cit., p. 11-12 (De Boni); vide ainda: VIER, R. Da certeza do conhecimento de Deus em São Boaventura in GARCIA, A (org.). Estudos de Filosofia Medieval – A obra de Raimundo Vier, op.cit., p. 36-37; FALQUE, E. Saint Bonaventure et l’entrée de Dieu em théologie, op.cit., 20-23. 33 Itinerarium, I, 1: nullus potest effici beatus, nisi supra semetipsum ascendat, non ascensu corporali, sed cordiali. 34 Idem, ibidem.

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realidade, na ascensão rumo à plenitude. De tal maneira que, não por evolução hierarquizante rumo ao ponto supremo inaudito e subsistente à realidade, mas sim pela devoção recolhedora da oração em ação de plenificação, é que se dá o itinerário ascensional que nos ensina Boaventura. A oração, vale dizer: a interioridade que se recolhe no vetor ascensional, é a própria atitude que expressa o abarcamento do real, na itinerância em ascensão rumo ao ser, não porém como hierarquização da realidade fenomênica ou entitativa, porém como imediatização do absoluto a iluminar e plenificar a realidade: “A oração é pois a mãe e a origem do impulso para o alto.”35 Assim, a oração é a disposição na qual a interioridade se lança à presença imediata do Absoluto, que a ilumina e alça no perfazimento vivencial da realidade exterior, no conhecê-la e abarcá-la, penetrá-la e consumi-la. Proclama em seguida São Boaventura: “Por meio desta contínua oração, somos iluminados para conhecer os degraus da ascensão para Deus. Com efeito, a universalidade dos seres, de harmonia com o estado da nossa condição, é uma escada para subir até Deus.” [Pinheiro, p. 60-61]36. A passagem nos clarifica, de maneira explícita, que a universalidade perfaz condição com nossa situação de entes limitados e finitos, porém a oração é justamente a conditio para a iluminação desta mesma realidade, na qual o todo é a própria via de acesso plenificante ao Ser supremo. Ou seja, a oração, enquanto expressão máxima da interioridade que se recolhe em iluminação no vetor ascensional, ao mesmo tempo que se lança em abstração abarcante do real na harmonização para com nossa condição de busca e desejo, é já o momento primordial e fundante, a instância ontológica do absoluto em sua manifestação originária, ou verbalização, dado que a manifestação e revelação máxima do ser absoluto deu-se em Cristo. Boaventura finaliza as dipositio princeps do Itinerarium ao pontuar que É também necessário entrar na nossa mente, que é a imagem eviterna de Deus, espiritual e interior a nós. Nisto consiste entrar na ver Idem, ibidem: Oratio igitur est mater et origo sursum-actionis. Idem, I, 2: In hac oratione orando illuminamur ad cognoscendum diuinae ascensionis gradus. Cum enim secundum statum conditionis nostrae ipsa rerum uniuersitas sit scala ad ascendendum in Deum.

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dade de Deus. É ainda necessário sublimar-se ao eterno, espiritualíssimo e superior a nós, fitando o Primeiro Princípio. Nisto consiste o alegrar-se no conhecimento de Deus, e areverência da Majestade [Pinheiro, p. 61].37

Torna-se claro pelo texto que, para Boaventura, o agir em interiorização configura a atitude de tomar-se e consumir-se em Deus, perfazendo a própria transcendência em direção ao ser supremo, dado que a alma é constituída pela própria presença deste, ou seja, pela Imago Dei. Assim, a interioridade vem a ser, para nosso autor, a contemplação da refulgência da imagem divina na própria imediaticidade do primum esse que nos é dado à mente, ele próprio a força superior que nos move à superação e ascensão, enquanto nos eleva à si mesmo em excelência e excedência de nossa condição temporal e limitada, no movimento único de buscar a realização e consumação final no dado conhecido desde o princípio, no qual visualizamos ocorrer a convergência, na própria interioridade enquanto espaço e momento, por excelência, da doação do ser em manifestação vocativa ao ser humano, compondo a linguagem originária de chamado ao ser, conclamando o ser humano, por sua vez, à linguagem responsiva da imediaticidade/iluminação/abstração. Mais que uma verticalização hierarquizada do real, São Boaventura propugna uma realidade mosaicizada hierofanicamente ou, mais propriamente e no espírito de sua estrita fidelidade ao pensamento agostiniano, pleromarquizante38. O mundo e o ser humano compõem, mosaicamente, a realidade em proporção harmoniosa, posto que o ser é perfeição absoluta, e a existência, em sua concretude, não poderia deixar de espelhar sua inteireza na atitude interior circunspectora (conspiciuntur, do já citado texto de Romanos 1,20). Talvez perpasse a Idade Média o conceito de realidade como construção perfeita e Itinerarium, I, 2: oportet, nos intrare ad mentem nostram quae est imago Dei aeuiterna, spiritualis et intra nos, et hoc est ingredi in ueritate Dei; oportet, nos transcendere ad aeternum, spiritualissimum et supra nos, aspiciendo ad primum principium, et hoc est laetari in Dei notitia et reuerentia maiestatis. 38 Cf. PIGNATARI, R.C. Plenitudo Principii – O itinerário da mente em Deus nos diálogos de Santo Agostinho, São Leopoldo: Oikos Editora, 2015, p. 68-101 (capítulo 1 - Articulação credere-intellegere na pleromarquia de princípio). Vide a nota 30 deste livro, bem como a nota 97. 37

São Boaventura: Deus Est e a luz face à cegueira

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harmoniosa, como templo (em movimento simétrico) em construção. As inúmeras tradições de construtores templários, da maçonaria às ordens iniciáticas diversas, parecem remeter, em sua origem, ao Medievo. Os escritos de itinerários eram comuns na Idade Média, e nosso autor situa a interioridade agostiniana precisamente nesse tomar a realidade em itinerância, na plenificação do mundo em conhecimento da imediaticidade do ser divino, dado na interioridade fontal e originária ao conhecimento como tal, seja em que nível for.

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Capítulo 4

Heidegger: interioridade e esquecimento do ser § 14 - Introdução Presente já nos primeiros textos de sua grande obra, o estudo e o diálogo com o pensamento medieval ocidental, por parte de Heidegger, permanece campo imenso de exploração e discussões aos estudiosos de ambas as áreas1. Embora tenha sido utilizada pretextual Com a progressiva edição das obras completas de Heidegger desde 1975, proporcionalmente cresce a já colossal bibliografia sobre temas específicos de seu pensamento. Dentre os inúmeros trabalhos e pesquisas sobre a relação entre filosofia medieval e pensamento heideggeriano, citamos, em primeiro lugar e sobretudo, a original tese do jesuíta brasileiro João Augusto A. A. MAC DOWELL A Gênese da Ontologia Fundamental de Martin Heidegger, 2ª edição, São Paulo: Loyola, 1993; o imprescindível trabalho de McGRATH, S. J. The early Heidegger and Medieval Philosophy: phenomenology for Godforsaken, The Catholic University of America Press, 2006 (que nos traz a preciosa informação de que “[Hugo] Ott descobriu que, durante a [2ª.] guerra, Heidegger levou a efeito um intensivo estudo do Itinerarium de Boaventura, com Heinrich Ochsner”, citando para tanto o texto de Ott a seguir mencionado – p. 32-33, nota 19]; o ensaio de Hugo OTT Las raíces católicas del pensamiento de Heidegger in CORDÓN, J. M. N. e RODRÍGUEZ, R. (orgs.) Heidegger o el final de la filosofía, Editorial Complutense, Madrid, 1993; D’HELT, Alexandre. Heidegger et la pensée médiévale, Paris: Ousia, 2010; ECHAURI, Raul Esencia y Existencia – ensayo sobre Heidegger y la ontologia medieval, Editorial Cudes, Madrid, 1991; HEBECHE, Luiz O Escândalo de Cristo – ensaio sobre Heidegger e São Paulo, Ijuí: Editora Unijuí, 2005; a fundamental biografia-ensaio de Rüdiger SAFRANSKI Heidegger – um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, tradução de Lya Luft, apresentação de Ernildo Stein, São Paulo: Geração Editorial, 2000; as obras referenciais de John CAPUTO: 1) Heidegger and Aquinas - An Essay on Overcoming Metaphysics, Fordham University Press, New York, 1982; 2) Heidegger and Eckhart (The mystical element in Heidegger’s Thought – part two) in Journal of The History of Philosophy, Volume 13, Number 01, January 1975, p. 61-80, republicado e ampliado em 1986 com o subtítulo por capa; e 3) Desmistificando Heidegger,

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mente para críticas aos seus escritos como ostentando caráter obscuro ou mistificador, a leitura de Heidegger persegue a questão do ser nos termos de uma ontologia sistematizada, nos grandes expoentes da escolástica medieval e da mística latina, dentro do ambiente permeado pela vivência teologal cristã, somado à notória herança das correntes gregas. Sua contribuição quanto a novas interpretações de pontos clássicos do Medievo termina afinal por perpassar e se refletir no próprio desenvolvimento de seu pensamento (e não somente em seu início no período pós-teológico da década de 10), desde o período pré-Sein und Zeit em Freiburg e Marburg, passando evidentemente pela obra seminal, na segunda metade dos anos 20 do século passado, até sua filosofia mais acabada, nos anos 50.2 Uma adequada aproximação, Lisboa: Instituto Piaget, 1998 [para uma apreciação acerca da leitura procedida por Caputo em relação a Heidegger, vide HEBECHE, L. Reabilitando a hermenêutica da facticidade – sobre “Desmitologizando Heidegger” de John Caputo in SOUZA, Ricardo T. e OLIVEIRA, Nythamar F. (orgs.) Fenomenologia Hoje II – Significado e Linguagem, Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p. 173-210 (republicado posteriormente como um dos apêndices na obra de Hebeche acima mencionada)]; BARASH, Jeffrey A. Heidegger e o seu Século, Lisboa: Instituto Piaget, 1997; e ainda o ensaio de Sonia SIKKA Forms of Transcendence – Heidegger and Medieval Mystical Theology, New York, State University Press, 1997, no qual a autora estabelece aproximações com Boaventura, Eckhart, Tauler e Ruysbroec. Embora não guardem relação direta com a temática da influência medieval em Heidegger, as obras de Bernhard WELTE trazem preciosas elucidações a respeito, como o ensaio La cuestión de Dios en el pensamiento de Martin Heidegger, in Teologia, volume 6 (1968), Universidad de Salamanca, p. 25-42; no mesmo sentido, o clássico estudo de William J. RICHARDSON Heidegger – Through Phenomenology to Thought, 2ª edition, Martinus Nijhoff, The Hague, 1967, obra que, de per si monumental e valiosa, torna-se ainda mais inestimável pelo célebre prefácio que Heidegger a ela dedicou (p. VIII-XXII, no qual, entre outros, discorre sobre o papel de Brentano em seu início filosófico), em rara exposição partilhada com um autor acerca de sua própria filosofia, sendo de especial interesse à nossa temática a Parte III – Do Ser ao (Estar)Aí (From Being to There), em que é analisado o influxo das noções de ser, essência e existência características da Idade Média no pensamento heideggeriano [p. 316-320], ainda que Richardson tenha grande ressalva quanto à aproximação entre ambos (vide nota 27 na p. 320: “que se tenha extrema cautela em visualizar-se correlação entre o que Heidegger entende por Ser, e qualquer sentido que os escolásticos, tais como Sto. Tomás de Aquino, dão ao termo”). Dentre os estudos basilares da filosofia de Heidegger, referenciamos uma das primeiras análises tornadas clássicas no âmbito internacional, e das mais importantes: Alphonse de WAELHENS La philosophie de Martin Heidegger, Louvain, ISPH, 1942. 2 MAC DOWELL, J. op. cit., p. 13-17. Em sua tese a respeito da origem da ontologia heideggeriana, publicada pela primeira vez em 1970 (desconhecendo, portanto, os

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pois, para com o pensamento medieval na obra heideggeriana deverá necessariamente levar em consideração o seu papel no interior do desenvolvimento do pensamento de Heidegger, evidenciando que, longe de compor temática episódica, constitui-se verdadeiramente em presença constante e referencial na sua filosofia. Nesse sentido, vale relembrar, a título de breve pontuação introdutória3, que os dois anos de teologia cursados com os jesuítas em Freiburg permitiram-lhe, como o próprio Heidegger reconhece, aprofundar o contato com os textos clássicos do período medieval cristão, por sua vez abrindo-lhe caminho aos gregos, mormente Aristóteles4. Mas é também através da teologia em Freiburg que Heidegger tem contato com a fenomenologia de Edmund Husserl (vindo a se tornar seu aluno na Faculdade de Filosofia), então em plena via de renovação do cenário trabalhos que viriam à luz após 1975, com a edição da Gesamtausgabe do filósofo alemão), Mac Dowell procura se ater ao período da produção juvenil de Heidegger, trabalhando-a, num primeiro momento, desde seus inícios nos anos de seminário teológico até a tese sobre Duns Scot (estipulado no interregno 1907 - 1916); e, numa segunda etapa, abordando o período imediatamente anterior a Sein und Zeit e incluindo-o como seu ápice, marcado pela releitura, dentro do programa de refundamentação do pensar ontológico, dos elementos fundantes da metafísica ontoteológica. Tal classificação nos parece ainda hoje válida, assim como a premissa fundamental e condicionante do trabalho de Mac Dowell, que parte do pressuposto do pensamento cristão presente de forma perene na base da reflexão heideggeriana, não obstante que a publicação das Obras Completas de Heidegger, bem como as de quem caminhou bem proximamente ao filósofo, como Karl Jaspers e Hannah Arendt, embora permita-nos perceber e entender o acerto essencial da tese de Mac Dowell, igualmente nos faz aceitá-la com importantes reservas – vide SAFRANSKI, R op. cit., p. 43ss. 3 Cf. GILES, Thomas R. História do Existencialismo e da Fenomenologia, São Paulo: Edusp/EPU, 1975, p. 187-189; BEAUFRET, Jean Introdução às Filosofias da Existência, São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 130-131; INWOOD, Michael Heidegger, São Paulo: Loyola, 2004, p. 11-13; STEINER, George As idéias de Heidegger, São Paulo: Cultrix, 1982, p. 9-14. Para uma exposição aprofundada e detalhada do período, a biografia de SAFRANSKI permanece o guia mais seguro e abrangente, nos caps. 2 a 4: op. cit., p. 43-101. 4 HEIDEGGER, M. Meu caminho para a Fenomenologia, tradução de Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, p. 495 (Coleção Os Pensadores). Heidegger menciona que o contato com os textos medievais tivera início já nos seus últimos anos de ginásio, através da obra então recém-publicada Sobre o Ser – Compêndio de Ontologia, do professor de Dogma em Freiburg, Carl Braig, a qual trazia, entre outros, excertos de Tomás de Aquino e Suarez, além de Aristóteles. O filósofo menciona também que, mesmo tendo desistido do estudo teológico, frequentará ainda uma aula em teologia: justamente a de Dogma, de Carl Braig.

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filosófico alemão, e mesmo europeu5. Ao mesmo tempo que, por motivações diversas, deixa de prosseguir seus estudos teológicos para fixar-se unicamente na filosofia, Heidegger mais e mais projeta seu caminhar filosófico trilhando o método fenomenológico, de forma tal que viria a se firmar como um de seus grandes expoentes, ainda que às custas de certa desconfiança alimentada por Husserl após a publicação de Sein und Zeit, em 19276. É à luz destas duas influências iniciais – os anos de teologia em Freiburg e os primeiros contatos com a fenomenologia husserliana (às quais se soma ainda o arcabouço do transcendentalismo, oriundo da filosofia neokantiana do início do século XX7) - que Heidegger irá trabalhar, já no âmbito estritamente filosófico e como pesquisa para a obtenção da livre-docência em Freiburg, a composição de sua tese a respeito de um pensador da escolástica medieval tardia: O significado da doutrina das categorias em Duns Scot (Die Kategorien – und Bedeutungslehre des Duns Scotus), laureando-se em 1916. O período em que trabalha a tese sobre Duns Scot marca um primeiro momento na constituição de um novo programa de refundamentação da ontologia clássica por parte de Heidegger, para o qual se vale do instrumental fenomenológico na busca do esclarecimento das estruturas fáticas da existência humana8. Neste período, suas fontes primordiais estão amplamente situadas na tradição cristã, sobretudo no período escolástico9. Numa segunda etapa, Heidegger prosseguirá no novo programa, detendo-se então nas obras dos místicos medievais, sobretudo Mestre Eckhart, buscando esclarecer o que julga encontrar de modo unívoco em tais autores: “... o verdadeiro sentido da vida [...] imagem fiel da experiência fáctica da vida...”10. Heidegger Idem, ibidem. Cf. SCHNÄDELBACH, Herbert Filosofía em Alemania – 1831-1933, Madrid: Ediciones Cátedra, 1991, p. 248-252; BEAUFRET, J. op. cit., p. 131ss. 7 Cf. MAC DOWELL, J. op. cit., pp. 27-35. Já no projeto fenomenológico husserliano, Heidegger trava contato com a perspectiva de uma filosofia transcendental voltada à experiência sensível e à concretude da facticidade da vida no mundo, o que, segundo Mac Dowell, encontra-se em consonância com a tradição escolástica – Idem, p. 36. 8 MAC DOWELL, J. op. cit., p. 26; 9 Idem, p. 126. 10 Idem, ibidem 5 6

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avança em tal busca, procedendo a uma releitura mais ampla dos grandes momentos do pensar cristão, e mesmo da vida religiosa em si, que o leva, no decênio precedente a Sein und Zeit (mais precisamente, no final dos anos 10 e início da década de 20) e sob o influxo das pesquisas de Max Scheler, Adolph Reinach e Rudolph Otto11, a realizar estudos que se consubstanciarão nos cursos semestrais de inverno Os fundamentos filosóficos da Mística Medieval [Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik (1918/1919)] e Introdução à fenomenologia da Religião [Einleitung in die Phänomenologie der Religion (1920/21)]; e ainda no curso de verão Agostinho e o Neoplatonismo [Augustinus und der Neuplatonismus (1921)]12, centrado em uma análise fenomenológica do livro X das Confissões. É pois no contexto da busca pela experiência primeva da facticidade vivencial do ser humano, e localizando-a no testemunho dos místicos cristãos, que Heidegger terminará por remontar ao pensamento de Santo Agostinho, tomado Scheler lançara, no biênio 1917-1918 e em diversas publicações, cinco trabalhos que, reunidos como obra única em 1921, comporiam seu texto mais conhecido: Vom Ewigen im Menschen (tradução espanhola: De lo Eterno en el Hombre, traduzida por Julián Marias e Javier Olmo, Madrid: Ediciones Encuentro, 2007). Reinach, autor de suma importância para os primórdios da fenomenologia (referencial nos desenvolvimentos de Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius, e do próprio Scheler), teve boa parte de sua obra publicada postumamente, dente os quais os manuscritos de Aufzeichnungen, de 1916/1917 (tradução espanhola: Anotaciones sobre Filosofía de la Religión, Madrid: Ediciones Encuentro, 2007). Por sua vez, Otto publicou seu célebre ensaio Das Heilige igualmente em 1917 (tradução portuguesa: O Sagrado, 3ª edição, São Leopoldo: Sinodal, 2015). 12 No presente estudo, utilizamos as traduções espanholas das preleções, publicadas sob os títulos Estudios sobre Mística Medieval, tradução de Jacobo Munóz, Madrid: Ediciones Siruela, 1997 (reunindo Agustín y el neoplatonismo, p. 23-210, referida doravante como AN, tradução da qual igualmente fizemos uso de sua edição pelo Fondo de Cultura Económica, México, 2ª reimpressão, 2003, p. 13-155; e Los fundamentos filosóficos de la mística medieval, p. 213-255, citada sob MM ); e Introducción a la Fenomenología de la Religión, tradução de Jorge Uscatescu, Madrid: Siruela, 2005, mencionada a seguir como FR Ao aludido à nota anterior, observamos que MM reúne anotações de trabalho como preparação à uma recensão de Das Heilige, de R. Otto (p. 186-188, na edição do Fondo de Cultura Económica), bem como uma abordagem sobre o “irracionalismo” em Mestre Eckhart (p. 170-173), e ainda uma análise do manuscrito de Reinach sobre O Absoluto (p. 178-181). Notamos, por fim, que há edição brasileira dos três ensaios (AN, MM e FR), publicada sob o título deste último: HEIDEGGER, M. Fenomenologia da Vida Religiosa, tradução de Enio Paulo Giachini, Petrópolis: Vozes, 2010. 11

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como marco fundante de tal corrente. É certo que, mais tarde, o filósofo entenderá que se deva caminhar mais profundamente ainda em tal busca, até finalmente adentrar no universo neotestamentário tomado em si mesmo13. Nesse sentido, portanto, dado o contexto programático em que surgem tais pesquisas, importa verificarmos com atenção, ainda que sumariamente, cada um destes momentos da fase inicial do pensamento heideggeriano, a fim de obtermos maior clareza quanto à presença matricial do pensamento medieval na filosofia heideggeriana, possibilitando-nos elucidação e aproximação mais precisas em relação à sua leitura do pensamento agostiniano, para a qual iremos nos centrar nos três estudos semestrais mencionados, sem deixarmos, porém, de levar em conta as citações e/ou pontuações trabalhadas por Heidegger em várias de suas obras posteriores, notadamente Os problemas fundamentais da Fenomenologia [Die Grundprobleme der Phänomenologie] e Os fundamentos da Metafísica [Die Grundbegriffe der Metaphysik], além, evidentemente, de Ser e Tempo [Sein und Zeit].14

§ 15 - Os anos de teologia em Freiburg Embora inicialmente dispensado do noviciado em 1909, Heidegger principia, ainda no semestre invernal deste mesmo ano, o curso de teologia em Freiburg, com o fito de ingressar na Companhia de Jesus, cumprindo assim desejo já expresso quando de sua infância15. Preci MAC DOWELL, op.cit., p. 127. Já na segunda parte de FR Heidegger dá mostras de tal incursão no Novo Testamento: “La explicación fenomenológica de fenômenos religiosos concretos tomando por base las epístolas paulinas”, p. 95-182. A obra de Luiz Hebeche anteriormente citada compõe, toda ela, uma ampla análise do percurso heideggeriano neste ponto específico, bem como do uso, por parte de Heidegger, de exegese existencial em relação aos textos paulinos – cf. HEBECHE, L. op. cit., p. 24-70. 14 Vide adiante, para traduções em línguas neolatinas, a nota 113. Para Sein und Zeit, utilizamos a edição em português Ser e Tempo, vols. I-II, tradução de Márcia Cavalcante de Sá Schuback, 1ª edição, Petrópolis: Vozes, 1988, como também a 2ª edição revisada em volume único, pela mesma tradutora, de 2006. Outrossim, referenciamos igualmente a tradução de Fausto Castilho: Ser e Tempo, volume único em edição bilíngue alemão-português, Petrópolis: Vozes/Campinas: Editora da Unicamp, 2012. 15 SAFRANSKI, op. cit., p. 36-42. 13

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samente nestes anos teológicos Heidegger trava seu primeiro contato mais aprofundado com a filosofia cristã, e tal âmbito mostra-se mais revelador do caráter e propósito de seu pensamento do que se acreditava até pouco tempo atrás16. Iniciado no período ginasiano, o contato com a filosofia agora é normativo, e sua formação jesuíta enseja as grandes tradições escolásticas como seu pano-de-fundo (escopo), evidentemente tendo a filosofia tomasiana e sua herança aristotélica como fio condutor. Mas o pensamento medieval lhe é perpassado via o ensino de mestres já em contato com as grandes linhas da filosofia moderna, sobretudo a filosofia kantiana. De todos eles, o já referido Carl Braig “terá, da parte de Heidegger, uma palavra especial de gratidão”17 nas suas lembranças autobiográficas. Esta primeira apresentação do itinerário do filosofar, via escolástica em cotejo com o pensamento moderno, certamente lhe permanecerá como guia em suas reformulações e embates filosóficos, e o tratamento que Braig confere aos autores medievais (sobretudo Boaventura)18, em sua opus magnum, referencia-lhe as grandes temáticas nas quais doravante irá se mover. Mac Dowell lembra que, no frontispício da obra de Braig, cita-se o texto do Itinerarium mentis in Deum de São Boaventura, capítulo V – desenvolvimento 4, cuja apresentação e a própria terminologia como que remetem diretamente às noções tornadas mais conhecidas do pensamento especulativo sobre o nada, desenvolvido por Heidegger sobretudo no período pós Sein und Zeit 19. Compare-se, a título de exemplo, a introdução de Steiner, ou a exposição de Gilles, com o texto de Inwood (sem contar a biografia de Safranski, cuja amplitude assume ares de ensaio no tratamento deste ponto), o que mais uma vez evidencia o pioneirismo da tese de Mac Dowell – vide referências a tais autores e respectivas obras na nota 105. 17 MAC DOWELL, op. cit., p. 25. Vide Meu caminho para a Fenomenologia, op.cit., p. 495. 18 Cf. a já citada informação, na pesquisa de S. McGrath, de que “[Hugo] Ott descobriu que, durante a [2ª.] guerra, Heidegger levou a efeito um intensivo estudo do Itinerarium de Boaventura, com Heinrich Ochsner” - McGRATH, S. J. The early Heidegger and Medieval Philosophy: phenomenology for Godforsaken, The Catholic University of America Press, 2006, p. 32-33. 19 MAC DOWELL, op.cit., p. 26-27. Dentre os textos de Heidegger, citemos, tão somente como amostra, a conferência Was is Metaphysik?, de 1929 (tradução brasileira: Que é Metafísica?, de Ernildo Stein, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril 16

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É portanto no contexto medieval latino que se forma o primeiro arcabouço filosófico com o qual se depara (e se estrutura) Heidegger em seus anos teológicos. A importância deste momento primordial parece-nos residir precisamente na herança da temática ontológica, de cunho escolástico e sobretudo cristão (ou seja, incluindo a tradição mística além do pensamento das Escolas), mas que será desenvolvida, principalmente em seus trabalhos pós-Sein und Zeit, sob as balizas das categorias e da terminologia aristotélicas. Com efeito, no pensamento de Aristóteles, Heidegger identifica proximidades essenciais em relação aos desenvolvimentos fenomenológicos que procurava levar a efeito, ainda que (tal como sinalizara com relação ao retroceder para além da releitura cristã dos místicos medievais, rumo ao próprio Novo Testamento), mais tarde, venha a caminhar para a localização da interrogação pelo ser, em seu sentido mais originário e autêntico, nos Pré-Socráticos, entendendo que a partir dos pensamentos platônico e aristotélico dá-se o “esquecimento do ser”20. Aristóteles, porém, permanecerá sempre presente na especulação heideggeriana da história do pensamento do ser, tendo Heidegger em verdade se tornado um de seus originais intérpretes no século XX 21. A releitura dos místicos medievais levada adiante por Heidegger apresenta, assim, como seu motivo central, o contexto da temática escolástico-aristotélica do ser, voltada à transcendentalidade da experiência imediata da facticidade da vida-no-mundo, sendo que tal Cultural, 1973, p. 233-242, especialmente 234-238). Com relação ao texto do Itinerarium de Boaventura, vide a edição bilíngüe português-latim pela Faculdade de Filosofia de Braga, 3ª edição, 1986, p. 156-159. 20 Ser e Tempo, op. cit., vol. I, p 27. 21 Para uma análise da relação entre a filosofia de Heidegger e o aristotelismo, vide o estudo de Enrico BERTI Aristóteles no século XX, São Paulo: Loyola, 1997, p. 57-137. Igualmente, o ensaio de Franco VOLPI Heidegger e Aristóteles, São Paulo: Loyola, 2013 (com prefácio de Berti). Vale lembrar que o próprio Heidegger destaca de maneira explícita, em conhecida passagem de CF, o papel do pensador grego em sua obra, esclarecendo que o exercitar no método fenomenológico o levara, via as Investigações Lógicas de Husserl, a “uma nova compreensão de Aristóteles”, de tal forma que qualifica o que entende como sendo o traço mais relevante da fenomenologia – o “automostrar-se dos fenômenos” - como tendo sido “pensado mais originariamente por Aristóteles” enquanto Alétheia – vide Meu caminho para a Fenomenologia, op.cit., p. 497-498.

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programa foi idealizado e iniciado tendo, como sua origem e escopo, a apresentação da teologia tomista em diálogo com a modernidade, típica do ambiente acadêmico de Freiburg. Uma obra, porém, com a qual Heidegger já travara conhecimento desde seus tempos ginasianos, irá lhe servir de ponte entre a herança aristotélica e a fenomenologia husserliana, sua outra grande influência de formação juvenil: Sobre os múltiplos significados do ser em Aristóteles, de Franz Brentano, publicada em 1862. Filósofo e professor, em Viena, de várias e ilustres personalidades que se destacariam no século seguinte, entre as quais Freud e Meinong, Brentano teve como aluno igualmente Edmund Husserl. Do contato com tal obra, Heidegger herda não só a temática restauradora do pensar aristotélico, mas também acede à obra de Husserl, que lhe será a influência decisiva em todo o seu caminhar filosófico.

§ 16 - Fenomenologia e filosofia medieval Já no início da fenomenologia husserliana faz-se notar traços originários do pensamento medieval cristão. A rigor, um de seus conceitos mais importantes – a intencionalidade –encontra-se já explicitado na obra do mentor de Husserl, Franz Brentano22. Ao mesmo tempo em que investiga sistematicamente o significado do ser na metafísica aristotélica, Brentano como que redescobre certos traços oriundos do pensamento medieval, ressaltando o conceito escolástico de intentio, pelo qual caracteriza-se uma psicologia dos atos mentais como constitutivos da intencionalidade23. Da redescoberta, por parte de Brentano, da intencionalidade presente na filosofia medieval, Husserl procederá toda a reformulação da questão epistêmico-gnosiológica da filosofia moderna, para ressaltar o Para uma ampla apresentação e discussão das relações entre a fenomenologia husserliana e o pensamento medieval (à qual não podemos avançar, nos limites de nosso estudo), vide MURALT, André de A Metafísica do Fenômeno, tradução de Paula Martins, São Paulo: Editora 34, 1998, sobretudo p. 63-84 e 190-212. 23 BRENTANO, Franz Sui molteplici significati dell’essere secondo Aristotele, tradução de Stefano Tognoli, com prefácio, introdução e tradução dos textos gregos de Giovanni Reale, Milão: Vita e Pensiero, 1995, p. 27-49. Vide SAFRANSKI, op. cit., p. 51-52. 22

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“ir-às-coisas-mesmas” como o leitmotiv de seu projeto fundamental de constituição de um novo método filosófico, que confira rigor não só à filosofia enquanto ciência, mas a toda disciplina que se queira arvorar tal qualificação. Assim, a obra de Husserl intersecciona a herança, via Brentano, do traço ontológico realista medieval, à temática kantiana da refundamentação crítica da validade e alcance da razão24. A um só tempo, Heidegger terá ante si o ser em múltiplas formas segundo Aristóteles, matizado pela leitura escolástica que o vincula ao pensar cristão (no qual o ser é presentificado enquanto fundamento de ser-no-mundo), e recuperado na ótica revisionista da filosofia crítica moderna25.

Da vastíssima produção de HUSSERL, mencionamos, a título de aproximação introdutória: Investigações Lógicas – 6ª investigação, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 19-84; Ideas relativas a una Fenomenología Pura y uma Filosofía Fenomenológica, tradução de José Gaos, 2ª edição (2ª reimpressão), México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 81-84 e sobretudo 198-210; A Idéia da Fenomenologia, tradução de Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 1986, p. 83-93; Lecciones de Fenomenología de la Conciencia interna del Tiempo, tradução de Agustín Serrano de Haro, Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 73-92 (obra essencial ao momento ora analisado em nosso estudo, máxime pela análise que nela procede Husserl, acerca da noção de Brentano sobre o tempo – cf. p. 33-41); e A crise da humanidade europeia e a filosofia, tradução e introdução de Urbano Zilles, 4ª. edição, Porto Alegre: Edipucrs, 2012. Para uma exposição introdutória da fenomenologia husserliana e correntes afins, cf. SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à Fenomenologia, São Paulo: Loyola, 2011; DREYFUS, H.L. e WRATHALL, M.A. (orgs.) Fenomenologia e Existencialismo, São Paulo: Loyola, 2012; KELKEL, Arion L. e SCHÉRER, René Husserl, Lisboa: Edições 70, 1982; vide ainda nesse sentido DARTIGUES, André O que é a Fenomenologia?, 9ª edição revista, São Paulo: Centauro, 2005, p. 13-82; STEIN, E. Mundo Vivido - Das vicissitudes e dos usos de um conceito da fenomenologia, Porto Alegre: Edipucrs, 2004. 25 Cf. RICHARDSON, W. J. op. cit., p. X-XIV (prefácio de Heidegger); MAC DOWELL, op. cit., p. 23-35. Já no período pós Sein und Zeit, Heidegger apresentou como que um balanço de sua leitura de tal herança, enquanto refundamentação da problemática ontológica dentro dos cânones da fenomenologia existencial, em dois textos de 1929: Die Grundprobleme der Phäenomenologie, traduzido ao espanhol como Los Problemas Fundamentales de la Fenomenología, por Juan Norro, Madrid: Editorial Trotta, 2000, p. 109-220 (obra por muitos considerada como o texto da divisão entre o “Primeiro Heidegger” e o segundo, sendo um como que “inventário” do programa refundacional/fenomenológico heideggeriano, tendo sido pois, precisamente devido a esta sua característica, escolhido para compor o primeiro volume de sua Gesamtausgabe, em 1975); e Die Grundbegriffe der Metaphysik, traduzido para o português como Os Conceitos Fundamentais da Metafísica – Mundo – Finitude - Solidão, por Marco Antonio Casanova, São Paulo: Forense Universitária, 2006, p. 31-69. 24

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Eis, sumarizado, o espectro formador e gerador do projeto refundacional da ontologia levado a efeito por Heidegger. Nele irá se mover para reler a mística medieval e, principalmente, o pensamento agostiniano, confluência máxima na síntese entre o pensamento cristão maturado após três séculos de disputas e controvérsias doutrinárias, e o pensamento grego de corte platônico.

§ 17 - A  gostinho e o neoplatonismo: leitura do livro X das Confissões a) As concepções correntes sobre Agostinho: discussão e posicionamento próprio “O agostinianismo significa duas coisas: filosoficamente, um platonismo de timbre cristão contra Aristóteles; teologicamente, uma determinada concepção da doutrina do pecado e da graça (livre arbítrio e predestinação).”26

Heidegger não matiza o tom crítico de sua avaliação acerca da história da teologia cristã, entendida como união sintética da filosofia grega junto à doutrina dogmática e eclesiástica. Sua análise de Agostinho vem emoldurada pela visão de que, se a filosofia escolástica medieval representa a culminância do pensar metafísico que esquece o ser para além do mundo vivido, deve-se pois buscar em seu momento fundante as causas da transmutação sofrida pelo cristianismo, enquanto vivência originária da experiência imediata do Deus que advém, para um pensamento categorial e doutrinário. Ou seja, trata-se de buscar junto à filosofia agostiniana as razões para a perda da vivência primeva cristã, em sua força originária e reveladora27. Enganamo-nos porém se tomamos a releitura heideggeriana como limitada ou condicionada por tal visão histórica, ou pelo entendimento filosófico acerca do pensamento teológico cristão. Se de

AN, p. 13. AN, idem. Cf. MAC DOWELL, op. cit., p. 127.

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fato vê o pensamento de Agostinho como símbolo maior da perda que representa a teologia em relação à experiência primeva, Heidegger não deixa de elucidar a captação do movimento essencial da filosofia agostiniana, estruturada para o dar-se imediato do ser supremo no/ao íntimo daquele que o busca. Sua leitura fenomenológica das Confissões haverá de mostrar, com grande penetração, o paralelo do ver e ir às coisas mesmas husserliano, na interpretação do automostrar-se dos fenômenos (do ser) heideggeriano, para com a intimidade do que me é dado a conhecer e sentir mais que a mim mesmo agostiniano28 Situado dentro do projeto de releitura dos momentos pontuais da investigação metafísica ocidental, o curso semestral do verão de 1921, dedicado por Heidegger à análise do livro X das Confissões, traduz com grande nitidez esta sua particular interpretação do pensamento teológico cristão, qual seja, a relação de perda da experiência fática dos cristãos primitivos face ao esquecimento do ser, cristalizado na articulação e processualidade do pensar teológico (que igualmente já se verificara na filosofia grega, dentro da qual o sistema de Plotino representa o sumário e a epitomização da perda da vivência originária do buscar e interrogar o ser). Ambas as quedas (ou 28

Tivemos ocasião, (vide introdução e nota 106), de aqui explicitar o entendimento que estudiosos têm da obra heideggeriana juvenil (pré-Sein und Zeit), notadamente Mac Dowell (mas também o tradutor Jacobo Muñoz) como estruturada em dois momentos, situando-se a tese sobre Duns Scot como divisor de ambos. Constitui igualmente leitura corrente entre os comentadores, a visão de que o segundo destes períodos, correspondente ao decênio anterior à obra capital, representaria e traduziria o afastamento de Heidegger daquilo que ele próprio classificou como “sistema do catolicismo”, ao mesmo tempo que significaria uma aproximação junto à teologia protestante dialética, então nascente e vigorosa na Alemanha do pós-guerra. De fato, os cursos semestrais que elencamos nessa seção trazem várias referências aos teólogos protestantes e, principalmente, da teologia das religiões do século XIX, a qual esteve na base da reação do movimento barthiano e mesmo da teologia de Rudolph Bultmann. Entretanto, temos conosco que tais aproximações devam ser vistas com prudência e reserva, posto que Heidegger, se realmente deu mostras de se afastar do meio eclesiástico católico, bem como de se aproximar de vários expoentes da teologia evangélica em Marburg (além de Bultmann, lembremos de Eduard Thurneysen), por outro lado jamais deixou de se entender como pertencendo ao universo da fé de Messkirsch – vide SAFRANSKI, op.cit., p. 500. Nesse sentido, parece-nos ocorrer a confirmação, mais uma vez, da tese de Mac Dowell, que trata do cristianismo em Heidegger muito mais do ponto de visa da fé originária e bíblica, que confessional e doutrinária.

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perdas) – do pensar grego do ser, e da experiência fática cristã – são visualizadas no pensamento de Agostinho como o momento máximo cristalizador do movimento da perda, e principalmente como o início da reflexão marcada pela convergência entre ambas as quedas, numa palavra: onto-teo-logia, que marcará todo o Ocidente medieval latino, ainda que Heidegger ressalte, dentro das características do método fenomenológico no qual se move, a necessidade de se “realçar sua historicidade até o (especificamente) genuíno”29 de ambas as filosofias, agostiniana e neoplatônica. Outrossim, a leitura heideggeriana faz notar, logo em seu início, o ver fenomenológico sobrepondo-se às abordagens então correntes da obra agostiniana, que Heidegger elenca na abertura de sua conferência com o fito de, não somente caracterizar a diferenciação em relação à tais interpretações, mas sobretudo elucidar a insuficiência e inadequação das mesmas, face ao especificamente genuíno contido na obra analisada. Com genuíno, Heidegger quer apontar para o em-si inerente ao texto, defronte a quem investiga; a incontornável identidade, inalienável e unívoca, que na fenomenologia compõe o movimento do ir-às-coisas-mesmas, as quais não se reduzem a mero momento de um movimento histórico amplo na formação de uma cultura, consciência ou ciência, que as leituras naturalistas ou “cientificistas” queriam crer, mas restam inapelavelmente únicas, genuinamente elaboradas ou compostas na sua historicidade e temporalidade próprias, impossíveis de “se eliminar do mundo mediante manipulações hegelianas”, remetendo-se, por si, ao elementos prévio de compreensão histórica, com o qual compõe espécie de antevisão circular interpretativa.30 Assim, Heidegger expõe, em resumo, as concepções de Ernst Troeltsch, Adolf von Harnack e Wilhelm Dilthey, para clarificar que tais 29

AN, p. 25. AN, pp. 22-24. Para uma aproximação à hermenêutica fenomenológico-filosófica, vide a caracterização efetuada por Marcia Sá Cavalcante SCHUBACK, no capítulo dedicado à abordagem heideggeriana, em sua obra Para ler os Medievais – Ensaio de hermenêutica imaginativa, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 24-28. Cf. ainda, para uma exposição da hermenêutica de Heidegger juntamente à de Schleiermacher, Dilthey e Gadamer, o ensaio de Richard E. PALMER Hermenêutica, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 129-165. Tanto o trabalho de Marcia Sá Schuback quanto o de Palmer

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interpretações radicam no situar a obra agostiniana numa busca de objetividade historial ou documental, quanto à formação de um todo maior e abrangente, do qual Agostinho seria não mais que um momento ilustrativo, epigonal é certo, mas símile de outros momentos contemporâneos seus, e entendido unicamente neste movimento universal histórico, de nítida inspiração hegeliana, notadamente nas leituras de Troeltsch e Harnack31. A diferenciação das citadas concepções para com a leitura fenomenológica confirma-se, mais diretamente, naquilo que Heidegger qualifica como o “sentido do acesso” à obra de Agostinho, no qual as abordagens em pauta concorrem para formar um ponto-de-vista objetivante e ancorado na história, em que o pensamento agostiniano é tratado enquanto objeto histórico strictu sensu, ou seja, visto de fora, na pretensa objetividade em isenção do movimento histórico, por isso mesmo podendo-se caracterizá-las como assentadas no método histórico-objetivo.32 Se por um lado tratam de pontuar as características de tais métodos em suas diferenciações para com a leitura fenomenológica, as exposições acima possuem, na abertura da interpretação do texto das Confissões, igualmente a função de compor e apresentar o escopo histórico no qual se toma o agostinianismo, e notadamente evidenciar que Heidegger, não obstante o corte agudo que propõe em tais concepções mediante o método fenomenológico, não se sente impedido de fazer uso do instrumental por elas proporcionado, no circundar a obra de Agostinho e, com isso, mostrar-se sabedor de quão ineroxável é o sitz-in-lebem histórico e seu caminhar cultural e científico. Em certo sentido, a postura de Heidegger propositadamente ampara-se na necessária ambiguidade face ao dado histórico-objetivo, reconhecendo seu caráter como imprescindível aos leitores em kronos distintos, porém elucidando sua insuficiência quanto à pretensão de circunscrever, no âmbito do movimento estritamente histórico, o gênio próprio de movem-se nas posições das obras maduras de Heidegger, ao passo que AN, conquanto já aponte para os futuros delineamentos, representa, sabidamente, uma obra juvenil. 31 AN, p. 14-17. 32 AN, p. 19-20.

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toda corrente de pensamento. Nesse sentido, e face sobretudo às considerações tipológicas, procura Heidegger demarcar o terreno próprio de sua leitura fenomenológica, para precisar que O conceito de ‘tipo’, e o nexo de experiência e percepção que lhe serve de apoio, recaem no posicionamento histórico-objetivo da questão. O neoplatonismo e Agostinho não são assumidos como uma discreta amostra do caso (figura-tipo), senão que, em sua consideração, há que se levar em conta sua historicidade até o aspecto genuíno, em cuja efetiva dimensão, todavia, estamos hoje nós mesmos. A História nos afeta, e nós somos ela própria; e, precisamente por não percebermos isto, quando acreditamos possuir e dominar uma consideração objetiva da História até hoje nunca alcançada – precisamente porque assim pensamos, e seguimos imaginando e construindo presumidas culturas, filosofias e sistemas, a toda hora golpeia-nos a história, com força maior, a nós mesmos.33

b) Leitura fenomenológica A leitura é iniciada, a título de “preliminares de preparação”, com uma alusão às Retratações elaboradas por Agostinho próximo ao final de sua vida. Numa observação à margem, e reunida no texto publicado de AN, Heidegger deixa claro a motivação de tal referência: “O Prólogo tem de ser explicado em sentido existencial”34. Tanto as Confissões, quanto seu “julgamento” posterior pelas Retratações, devem ser lidas e entendidas enquanto o olhar do existente (Dasein) a volver-se para o todo de sua existência, no sentido da vivência que compõe cada ato em seu significado para o ser-no-mundo. Não se trata, pois, de um relato cronológico memorativo com a preocupação de alinhavar, na exata ordem seqüencial, os fatos ocorridos e narrados, mas confessar atos vividos, ou seja, intencioná-los em seu significado vivencial à luz da totalidade vivida e existida (e portanto significada), intuída no olhar que se retrata e confessa (que olha fenomenologicamente a vivência

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AN, p. 25. AN, p. 27.

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do existir em seu todo significativo). Se as Confissões como que ratificam e conferem significado ao todo vivido até então, à luz do olhar que visualiza as memórias não mais como fatos desconexos e isolados, unidos tão somente pelo kronos linear e objetivante, mas como fenômenos cujo sentido é conferido unicamente pela intuição que os capta à luz da decisão existencial de autenticar minha vida temporalmente – se assim as Confissões significam os atos memorados, as Retratações por sua vez significam e “ratificam” as Confissões. Já se observa aqui o tempo como sentido da autenticação do vivido, que sabidamente Heidegger desenvolverá em Ser e Tempo.35 Ao trazer as Retratações como preâmbulo à leitura das Confissões, Heidegger nos indica como esta será efetivada: no todo existencial que confere o sentido da vivência in memoris.36 Delineadas as “preliminares preparatórias”, e portanto a trilha fenomenológica hermenêutico-existencial na qual será efetuada, a leitura do texto agostiniano tem início, propriamente, com Heidegger demarcando a necessidade prévia de se traçar um panorama informativo dos 43 capítulos componentes, com o intuito de se evitar a tentação da leitura cronológica, para alçar vista às temáticas que agrupam os capítulos, ainda que por vezes o próprio Agostinho as “desconstrua”37. Heidegger explicita que tal ordenação fornece uma direção rumo ao primeiro passo efetivado, pelo qual é caracterizado o livro X: há que se tratar agora “do que se fala [...], do que realmente está aí”. Se trataram até então do passado, as confissões de Agostinho assumem agora o sentido do vivido como determinante para o presente, para o ser(estar)-aí (Dasein).38 Assim, são agrupados os capítulos em onze temas, com Heidegger tratando os capítulos 1 a 7 como uma introdução, evidenciando-se, em decorrência, a centralidade da exposição relativa à memória, agrupada nos capítulos de 8 a 19. Ser e Tempo, § 61 a 66 (Parte II, p. 93-129). AN, p. 28. Logo a seguir, ao explicitar a metodologia de agrupamento dos capítulos do livro X, Heidegger ressalta que “o largo excurso sobre a memória tem uma função de ordem fundamental” – ibidem. 37 Ibidem. 38 AN, p. 29. 35

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Tal ordenação clarifica a visão do livro X exposta em AN, de resto explicitada pelo próprio Heidegger39: trata-se de um itinerário de ascensão, portanto de transcendência, rumo ao eterno, do qual dá mostras o agir da memória. Tal caminho, porém, só pode ser vislumbrado e trilhado no intimus da interioridade. Mais: somente na inuocatio (invocação) frente ao Eterno, poderei nele me situar de imediato e incondicionalmente para, então livre da temporalidade descendente, caminhar na superação da metafísica do esquecimento (perda, queda) do ser. Em sua exposição, Heidegger como que trilha cada passo ascendente de tal itinerário, a culminar no palácio da memória. E o trilhar heideggeriano tem por finalidade evidenciar a ausência do kronos regulador e limitante daquilo que poderia ser tomado como “partida” e “chegada”, para elucidar que a culminância contida está na inuocatio do Deus imediato que a ela remete e solicita. O seguimento da trilha exposta por Heidegger, passo a passo, na recorrência que cada um deles possui em relação ao simultâneo da inuocatio para com a memoria, ilustra-nos de modo excepcional sua visão fenomenológica da interioridade agostiniana, pelo que importa-nos vislumbrar a trilha, um a um, do itinerário ao âmbito da atemporalidade, prelúdio figurativo da eternidade 40, vivenciado no imediato da (busca) interioridade. 1) Inuocatio - Heidegger apresenta a inuocatio de abertura do capítulo 1 como a introdução que, de imediato, inverte a busca metafísica: se antes, confessadamente, persegui busca na exterioridade de meu corpo e na exterioridade mundana, resta-me, no interior, a conclamação ao Deus imediato 41. Assim, o ponto de partida se perfaz no instante do invocar = buscar, chamar, postar-me e dirigir-me a buscar AN, p. 34: “Em sua ascensão de superação, sempre rumo adiante, Agostinho chega ao amplo campo da memória.” 40 “Mas todo instante, como ato de uma vontade livre, inicia uma série temporal sem ter uma causa anterior necessária (cf. o Livro II do De libero arbítrio [de Santo Agostinho]). E todo instante, enquanto união do presente da memória, presente da atenção e presente da esperança, contém em si o tempo como um todo, e é portanto uma figura da eternidade.” - MAMMÌ, Lorenzo. STILLAE TEMPORIS – Interpretação de uma passagem das Confissões, XI, 2 in PALACIOS, Pelayo M. (org.) Tempo e Razão – 1.600 anos das Confissões de Agostinho, São Paulo: Loyola, 2002, p. 61. 41 AN, p. 30. 39

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o que me busca. A metafísica inicia e se realiza, pois, na interioridade que me é agora, na confissão (na totalidade da vida) ante Deus e os humanos, pela palavra confidente que permanece à escuta orante. A confissão é, em verdade, confiança e fortalecimento. Heidegger mostra que, da confiança advinda do ato confessante, resulta uma ruptura, um “quebrantamento”, que implica, pelo beneplácito divino, no ajustamento do confessante (existente = Dasein), na vivência de sua totalidade confessada (sua vida), frente ao Todo-Poderoso: da finitude e limitação da existência humana ao ilimitado e eterno de Deus42. Num paralelo que repetirá na obra maior de sua maturidade, Heidegger traz citação iluminadora de Kierkegaard: “No caso do ser humano, a compreensão é sua captação do (especificamente) humano, mas crer é sua relação com o divino”43. 2) Caritas - Tal como Boaventura (e toda a mística medieval), Heidegger visualiza a postulação agostiniana do amor a Deus como solo firme da intencionalidade-em-interioridade, a qual, se se percebe e se vê numa Terra difficultatis, reconhece-se a si mesma enquanto na relação de intimidade amorosa para com o que lhe é “mais conhecido e íntimo que a si mesma”. Na realidade, é a imediatez essencial [intuída (buscada) na interioridade de pronto] de Deus que me referencia e me identifica, na confissão de meu interior. Minha identidade advém do imediato divino. Se não sabe tudo sobre si mesma, está segura, entretanto, de amar a Deus44. O amor atua, nesse sentido, como revelação (desvelamento) do ser, pois quando se ama a Deus, a plenitude advinda do ser amado implica na totalidade existencial, na abertura ao ilimitado, mas determinado no amor – Deus (poderoso ante o mundo), amor que “anuncia céus e terra em louvor a Deus”45. AN, ibidem. AN, ibidem. Na célebre nota do § 40 de Sein und Zeit, Heidegger perpassa o conceito de angústia no traço histórico que une Agostinho, Lutero e Kierkegaard, evidenciando o parentesco espiritual na interioridade que confessa e angustia a existência em sua finitude, face ao divino em sua infinitude – Ser e Tempo, op. cit., Parte I, p 254. 44 AN, p. 31. 45 Cf. o paralelo com o capítulo V do Itinerarium de São Boaventura, para quem conhecer o ser do ente implica em apreensão do ser por inteiro, perceber (amar) é já amar o todo, o ser - é já amar a Deus. 42 43

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3) Intuitio - No amor que fundamenta minha interioridade, dada e presentificada, por sua vez, na minha relação com o Absoluto, a atitude amorosa não fixa objetivações nem delimitações, pois não amamos corpo, imagem, odores, luzes, alimentos, etc, porém em tudo e todos, sentimos e vivenciamos o amor a Deus. Tal atitude amorosa compõe a vivência e o ver fenomenológicos por excelência: intuímos a essência do amor divino (o ser) nos entes por ele significados. A intuição das essências capta, movida pelo amor, o ser desvelado no entes que o manifestam46. 4) Interrogatio - O amor essencial a Deus não me instancia na receptividade passiva ante a manifestação entitativa e velada do ser, porém leva-me à pergunta essencial por este, caracterizando a busca essencial originada na interioridade, convertendo-se esta, pois, no locus Dei a me conclamar à sua confissão (confiar-me: responder, pela invocação, à uocatio que me é dirigida pelo ser). No amor, busco o ser que me busca, Deus, levando-me a questionar e perguntar - procurar, no domínio dos entes, o ser amado, pelo que a interrogatio significa a intentio, busca motriz vivencial: “minha pergunta, meu olhar intentado”47. 5) Vocatio - Mas o que deve minha pergunta – minha busca – investigar? O que intenta meu olhar, que pede e quer o ser? Heidegger culmina a ascensio animae agostiniana na instância do amor como busca vivencial, elucidando a intentio investigativa – a busca e inquirição do ser – como radicada e instaurada na (e pela) interioridade. Por que investigar o interior? Porque ele, o humano interior, “é o que julga a notícia”, o dado sensorial da exterioridade, o elenco do vivido enquanto soma e sequência temporal. Exemplo típico e cristalizador de sua leitura, Heidegger lê o juízo do humano interior de que fala Agostinho, nas categorias fenomenológicas de ato vivido e valorado, nos afetos existenciais que nomeiam o ser(estar)-aí (Dasein) do ente, em seu mostrar-se como fenômeno desvelador da presença do ser na AN, ibidem. Sobre a vivência fenomenológica estruturada como conhecimento verdadeiro enquanto ato amoroso, cf. MURALT, A. op. cit., p. 75-76. Muralt evidencia a influência de tal noção em nomes díspares, como Desiré Mercier, Gabriel Marcel e Jean-Paul Sartre. 47 AN, p. 32. 46

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imediaticidade da colocação da pergunta, numa palavra: a interioridade é, finalmente e na culminância do itinerário trilhado, visualizada e clarificada como a imediaticidade do rememorar o ser enquanto o dar-se que me toma; enquanto busca que me insta; enquanto manifestação originária e eternal da uocatio que me faz inserido (inuocatio) no ser que, em seu dar-se, busca-me: o amor é a presença imediata em interioridade, do ser48. Elucidando em leitura fenomenológica a interioridade agostiniana, Heidegger a identifica e postula como o locus Veritas fundante, espaço no qual a verdade vivenciada enquanto logos e ethos traduzem, na esteira do mais lato agostinianismo, o amor como criação e iluminação. Mas “perguntar é já um julgar e estar por sobre”, vale dizer: na interioridade que julga, vivencio o (sentido do) todo e, sobretudo, instancio-me na atemporalidade remissiva à eternidade, pelo fato de, nela, eu me ver penetrado e tomado (buscado). Pois decidir – querer e buscar, ou seja, perguntar pelo ser, e portanto manifestá-lo e compreendê-lo – somente encontra lugar na interioridade. Ilustração máxima do olhar fenomenológico exercitado na interpretação do pensamento agostiniano, Heidegger clarifica agudamente um de seus pilares essenciais em seu arresto platônico, porém no movimento axial da fé cristã: a captação da diferença ontológica essencial na interioridade-eternidade, percepção como que semente do exemplarismo boaventuriano presente no Itinerarium, do qual aproxima-se a leitura heideggeriana quando, avançando em sua exposição, Heidegger postula, quase literalmente em alusão à obra maior de Boaventura, que Deus se me dá quando, no julgar interior, percebo que ele não é céu, nem terra, nem massa corporal alguma, porém todos estes estão a me sinalizá-lo e presentificá-lo no julgamento do humano interior49. Mas o julgar/buscar se me revela na percepção de que, se tais não são Deus, é justamente porque minha interioridade o imediatiza na infinitude do todo superior às partes, tal como o humano interior é infinitamente superior às limitações do corpo. Na transcendência da interioridade em relação à exterioridade corporal – “da alma como atravessando o AN, ibidem. AN, ibidem.

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corpo” – tenho o próprio ascender a Deus como seu itinerário de destino, seu ponto-de-chegada, do qual na verdade partira – a interioridade é a própria instância da atemporalidade que figura a eternidade, portanto o ser, não conhecendo tempo nem espaço: “No transire (transcender) e ascender à Deus, está Deus”50, o que, pontua de modo incisivo Heidegger, “...não necessita ser entendido, como quer Dilthey, em sentido objetivante, greco-metafísico”, mas sim fenomenologicamente: “luz, voz do interior do homem”51. 6) Memoria - Finalmente, a ascensão em superação chega à memória, instância por excelência da atemporalidade e reino figurativo da eternidade, o próprio fundamento do interior humano. Finda-se o itinerário, ou melhor, realiza-se em seu termo de plenitude, na sua totalidade e significação. Se o mover que transpassa e supera, transcendente, da alma em relação ao corpo traduz sua superioridade para com este último, a superação da memória no tocante ao ato consciente, por sua infinitude e atemporalidade, insta-a como fim último da busca interior52. Porém, precisamente ao chegar à culminância do itinerário descrito por Agostinho no reino da memória, Heidegger postula crítica basilar a este pensamento, exemplar de toda sua visão acerca do agostinianismo como momento de elucidação máxima da investigação da vida fática perpassada pela vivência da fé cristã, ao mesmo tempo que visão fundante/determinante da queda da facticidade em categorização e esquematismo doutrinal, conceitualização que caminha na trilha do esquecimento do ser, herdada do pensamento grego. Heidegger observa judiciosamente que “Agostinho se deixa levar e se perde em uma consideração detalhista sobre a memória”53, pela qual entende ter Agostinho procedido objetivação espacial da memória, escapando-lhe assim o conteúdo vivencial fático, para deter-se em descrições categoriais, preocupado com sua mensurabilidade mais que com a imediaticidade factual e intencional54. Tal crítica, ainda que referencial e 52 53 54 50 51

AN, pp. 32-33. AN, p. 33. Para o paralelo com São Boaventura, cf. Itinerarium, V, 5. AN, p. 34. AN, p. 35. AN, ibidem.

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modelar, não impede Heidegger de avançar no perscrutar as narrações agostinianas e em seu entendimento, tomando estas últimas como o exercício da intentio no ordenar, e portanto significar, o conteúdo vivido, perseguindo o fio narrativo como intuição que busca “ir às coisas mesmas”, no jargão husserliano, proporcionando visão essencial não enquanto afastamento – esquecimento – da manifestação do dado factual, mas sim no desvelamento do ser enquanto dar-se fenomênico captado e valorado, significado, no conteúdo da memoria. Assim, a memória se converte, na acepção agostiniana tal como a interpreta Heidegger, no ápice da itinerância da mente, da interioridade enquanto imediaticidade do eterno em sua vivência amorosa (valorada e autenticada – relembrada, em oposição ao esquecimento da queda), do que temos exemplo de tal leitura na transposição terminológica operada por Heidegger, ao descrever o movimento memorial como “não unicamente re-presentação, mas também pre-sentação”, vale dizer: momento do mostrar-se em fenômeno do ser, do desvelar-se do ser na interioridade humana55. Outrossim, ao termo do itinerário, e após reconhecer sua culminância na memória, Heidegger explicita como que um sumário de sua leitura da interioridade agostiniana até aqui efetivada, ao interrogar: “Que significa buscar?”56. Tal pergunta não somente resume, mas principalmente caracteriza, de modo definidor, toda a preleção realizada. Com efeito, trata-se do vértice expositivo da compreensão heideggeriana das Confissões, ao tematizar a interioridade como busca essencial e vital, locus vitae et Dei no qual a memória representa sua culminância na simultaneidade do eterno ao memorado (vivenciado em significado eterno). Dois passos antes, ainda, de enfrentar a questão propriamente, Heidegger estipula o modo como as afeições compõem memória, ilustrando a intentio desta em não se deter ao manifesto experimentalmente, porém ater-se ao expressivo e vivido, pelo que a “memória não é algo à parte da consciência, senão ela própria”57, pontuando que a essência do memorizar consiste no “modo preciso como são tidas as AN, p. 35-36. AN, p. 42. 57 AN, p. 39. 55

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afeições na memória”, completamente diverso “daquele em que são tidas na experiência”58, tendo Heidegger feito notar, em inscrição marginal reunida no texto editado, que tal diferenciação mostra-se verdadeiramente fundamental, visto a memória reter as afeições sem possuí-las nem executá-las, o que implica em vivência do significado essencial, não restrito ao psicologismo empiricista, do que se pode tomar como exemplo a noção de existência59, na qual “o representado em si mesmo não determina a situação de representação”60. E, se as afeições somam como mostra única da memória enquanto vivência existencial, igualmente a linguagem a caracteriza como ordenação do que é possuído, em aprendizagem, para disposição de utilização61. A consideração da linguagem e das afeições no “intervalo” situado entre a caracterização dos passos trilhados no itinerário ascendente rumo à memória, e a reconsideração conclusiva da questão “que significa buscar?”, parece apontar, na leitura heideggeriana, mais que à mera atenção ou estrita fidelidade ao passo literal do texto de Agostinho. Heidegger havia anteriormente já chamado a atenção para certas “desconstruções” operadas pelo próprio Agostinho no curso expositivo da interioridade62, e a “quebra” ou “deslocamento de percurso” aqui representado pelos dois tópicos, certamente não haveria de ser obstáculo à exposição, de maneira uniforme e “pura”, do itinerário em suas etapas rumo à culminância na memória. Ao situar o dizer e o sentir, linguagem e afetos, na pós-culminância do ascender vivencial do humano interior rumo ao eterno da interioridade, Heidegger, muito além da fidelidade literal, sublinha o que visualiza como o modo da existência na factualidade, próprio da vida cristã, em sua real dimensão de vivência como ser-no-mundo à escuta do ser em suas possibilidades e manifestações. Posteriormente, já em Ser e Tempo, será precisamente a recusa a se dispor a linguagem e as afeições na vivência da busca perfazida no itinerário interior, que intenta o ser - ou a mesmo a simples 60 61 62 58 59

AN, p. 38. AN, ibidem. AN, p. 39. AN, p. 37. AN, p. 34.

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recusa em vivenciá-las como possibilidades da existência rumo ao desvelar do ser, e assim não assumir-se em sua realização própria – que irá caracterizar a inautenticidade da existência em seu refugiar-se às “mostrações” do ser na cotidianidade63. Afinal, o que significa buscar? Qual o sentido da busca essencial vivida na interioridade, que caminha mais e mais ao eterno em seu percurso de superação (transcendência) da exterioridade? Numa primeira resposta, de pronto: a força vital64. Enquanto dinâmica de vida, a busca culminante na memória (primeira experiência da atemporalidade que figura a eternidade) é propriamente minha existência em si, minha vida, eu mesmo. Mas a busca intenta..., dirige-se rumo a..., caminha para... onde? “O que desejo?” Resposta única: “Deus, vida verdadeira”65. O que busca então a memória (eu mesmo) quando compõe, dispõe, antecipa, diz, organiza, traz e oculta, enfim: mapeia a realidade, senão o próprio Deus? Segue-se que “devo transcender a memória” rumo à sua superação, no próprio Deus66. Mas a busca exercida e vivida pela transcendência dar-se-ia fora da memória, já que devo superá-la? Deveria pois buscar a Deus fora de suas instâncias? Se assim fosse, fora da memória, seria então esquecimento do ser, e voltaria novamente a buscar fora da interioridade67. Eis o passo incisivo no qual a memória se apresenta como a instância onde a intentio Dei encontra guarida e morada, originária do dizer que possui e dispõe: a própria busca já se revela como “posse” do buscado, como um seu saboreio (sapore, saber), um dar-se imediato de “ti a mim”, um in-timus que me toma a mover-me rumo ascensional e in transitus. É a memória quem atualiza – impulsiona – a busca para a culminância em si mesma, dado que sua atemporalidade impede-a de ceder à tentação de se ultrapassar a si mesma, detendo-se ainda no aspecto temporal, objetando-a ao passado do ser, numa palavra: ao seu esquecimento. A superação da memória é a presença como possibilidade do ser, não Cf. Ser e Tempo, op.cit., § 27-36 (Parte I, p. 178-234). AN, p. 42. 65 AN, ibidem. 66 Idem. 67 AN, p. 43. 63

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como dado catalogado (registrado e contabilizado). Assim, o sentido do transcender, in as-censio (superação – totalidade vivida), revela-se fenomenologicamente, na leitura heideggeriana, não como metafísico (tal qual fora até então na busca ocidental característica do esquecimento do ser), mas como intuído no manifestar o imediato da presentificação, no intimus major, do ser que se manifesta em busca68. Se estou, pois, de alguma maneira “em posse” do buscado, sem ainda “tê-lo”, ou seja, se de um determinado modo digo que tenho (conheço) a Deus, que vem a ser então a busca? Ela é o saber primordial e fundante, originário, da presença enquanto movente, da eternidade enquanto perenidade memorial. Valendo-se da terminologia da filosofia mais tardia e madura de Heidegger, é a busca a própria “clareira” [manifestação fenomênica (fenômeno = fai: luz; noumenon: compreensão)] do ser, antecipação e cuidado da existência como ser-no-mundo (Dasein). Ao buscar, in memoria, aquele que, não obstante o riquíssimo tesouro destas, a tais não sucumbe nem elas se confunde, mostro já possuí-lo e conhecê-lo em sua univocidade, em sua possibilidade única manifesta e dada eternalmente69. Heidegger ressalta que tal maneira de posse não pode ser confundida com objetivação e análise da ratio70. “Assim, [...] quando se busca algo [...] no buscar e no ser buscado, está a memória”71. Revela-se o ser, como o real possuir no sentido do não esquecimento, da não perda. Esta posse se dá em verdade como ter-(o “buscado”)-em-relação, e este relacionar-se supõe possibilidade de perda, o que caracteriza o querer – buscar – como intencionalidade, a atualização da posse ante a possibilidade da perda (ser que se dá ante o Nada)72. Mas, movendo-nos já dentro do escopo do pensamento heideggeriano posterior, como se dá a busca-posse daquilo que, pela inautenticidade, foi esquecido (não dis-põe a memória em atualização do ser)? Ou seja, como resgatar o esquecimento do ser à sua busca e vivência? 70 71 72 68 69

AN, ibidem. Idem. Idem. Idem. Idem.

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Heidegger responde soteriologicamente: na própria memória, que busca o resgate (salvação/libertação) do esquecido. Pois o esquecido, ainda assim, o é em função da busca que dele se res-sente. O esquecimento outra coisa não é que a memória em seu caminhar na temporalidade, em seu perfazimento do real (mapeamento) in totum, no abarcamento do temporal e seu recolhimento à manifestação do ser – eternidade. O esquecimento move à busca, instando à memória como o espaço ôntico a manifestar o ens supremum73. O esquecido resgatado é reconhecido, realizado em sua forma originária, ou seja, mostração ou manifestação fundante junto à memória, à luz da intentio Dei, do próprio resgatado – reconhecer é intuir essencialmente a coisa mesma, ou seja: memória é o ver fenomenológico atualizável temporalmente: “O esquecido não é uma privatio radical da memória, ou seja, possui ainda um sentido intencional de relação. [...] ainda que tenhamos perdido algo, contudo ainda o ‘temos’”74. Dado que o rememorar traduz o mover da intentio que busca o ser rumo à sua própria superação (memória), um esquecimento total significaria uma perda essencial de direção do itinerário, ou seja, ausência de intentio a buscar, numa palavra: ausência da força vital memorial a atualizar o ser em sua busca75. Heidegger finaliza depurando máxima e essencialmente a pergunta original: “De que me é dado ainda dispor, em minha busca?”76. Do próprio Deus como “viver vital”, não à maneira da metafísica ontoteológica, porém num “sentido existencial de movimento”, ou seja, como existência que caminha em busca itinerante, nas possibilidades (atualizações) do ouvir e dizer o ser, como caminho e sentido vital. A busca é pois a minha vida, vivida autenticamente e assumida no desejo vital em meu sentido próprio, na minha factualidade e pré-ocupação última77. Mas meu sentido somente é vivido em seu dar-se por completo temporal e intencionalmente, vale dizer: a busca ocorre em antecipada plenitude de sentido. Vida plena: “Ou seja, na busca deste algo como 75 76 77 73 74

AN, p. 44. AN, ibidem. Idem. AN, p. 45. AN, ibidem.

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Deus, passo eu mesmo a desempenhar um papel totalmente distinto. Não sou tão-somente aquele do qual se parte (em busca), [...] ou no qual se dá a busca, senão que o próprio ato de buscar é algo dele mesmo.”78 Buscar é, afinal, a própria posse e antecipação, encontro amoroso que me ocupa última e maximamente, plenificando-me na atualização memorável do ser (ultimate concern)79, no qual o itinerário da busca ilumina o buscado, fazendo com que busca e buscado sejam, enfim, o ser em sua possibilidade de acesso pleno, o simul de se quaerere debui Deum meum, Deus queritur. Busco o Deus que me busca.

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Idem. Referenciamos aqui, como ilustração de aplicação da investigação fenomenológica heideggeriana ao pensamento cristão, a obra máxima de Paul TILLICH Systematic Theology (tradução brasileira: Teologia Sistemática, por Getúlio Bertelli, São Paulo: Edições Paulinas/São Leopoldo: Sinodal, 1984; 2ª edição revista, São Leopoldo: Sinodal, 2005); ID. Dinâmica da Fé, São Leopoldo: Sinodal, 1981. Lembremos igualmente do texto fundamental de Karl RAHNER Curso Fundamental da Fé, São Paulo: Paulinas, 1989; ID. Teologia e Antropologia, tradução de Hugo Assmann, São Paulo: Paulinas, 1970. Ambas as construções permanecem como marcos elucidativos, dentro da investigação antropológico-filosófica, da visão do ser humano como pré-disposto e pré-ocupado fundamentalmente (Tillich) à escuta (uocatio) da Palavra (Rahner) enquanto possibilidade de ser e plenitude de sentido – Deus como fundamento do ser em sua autocomunicação ao ser humano.

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Conclusão Possível concluir e convergir? Três leituras, três visões, três caminhos, três buscas. Em realidade, na interioridade por Santo Agostinho delineada como orignária e fundante, as leituras de São Boaventura e de Heidegger transitam como em seu espaço ou momento instituinte, no qual reúnem viandantes e passageiros vários, com destinos nem sempre convergentes, trafegando porém todos na mesma via de acesso. Se o kronos de composição e feitura de ambas as leituras impede aproximação mais afinada e elucidativa, a aproximação no espírito cristão é essencial e excepcionalmente tão grande, quanto tentadora para que se proceda identificação de intentos. De fato, Heidegger lê Agostinho na busca do resgate descritivo, elucidado sobretudo fenomenologicamente, do que entende e qualifica como o viver fático do cristão, ao passo que Boaventura, chamando a atenção aos perigos, no século XIII, de uma ratio a si mesma entregue (paralelo à objetivação e tecnicização denunciadas por Heidegger no século XX), clarifica que a busca compõe itinerarium mentis que só pode se dado e vir a ocorrer in Deum, intento motor da busca da mente em sua co-intuição da realidade à luz da manifestatio Dei, ou seja, na luz dos sinais (possibilidades, como Heidegger clarifica) do ser dado fenomenologicamente. Outrossim, ocorre ainda, em nossa visão, uma outra aproximação entre as leituras heideggeriana e boaventuriana da interioridade agostiniana, correspondendo, na verdade, ao movimento pulsional da filosofia de Agostinho. Importa, para melhor esboçar tal aproximação, como que voltar a visão para nosso trabalho, no sentido inverso à sua feitura, repassando pois, de início, a análise heideggeriana. De fato, pudemos verificar que Heidegger se detém nas memorabilia como sendo a culminância da atitude do olhar fenomenológico que intenta o buscar as coisas em si mesmas, significando-as não no fluxo da Conclusão

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temporalidade ou da exterioridade que transita em fugacidade, mas na rememoração que transpõe a finitude para alcançar o eterno dentro em mim. Mas tal rememoração não é dada em sequência cronológica (pelo que estaria voltando a se deter na temporalidade do ascender ao ser absoluto e divino), porém situa-se no imediato da atitude de ver e perscrutar as coisas em si mesmas, ou seja, a intencionalidade que, fundamentada pelo imediato do eterno significado nas memorabilia, igualmente remete à exterioridade tendo-a como fundamento do ver fenomenológico. A memória converte-se, pois, no espaço próprio da interioridade que intenciona o conhecer e ver fenomenológico, na dimensão já dada do ser, cujo sentido, para além da temporalidade própria da exterioridade, como que nesta reincide para iluminar-lhe face ao eterno e absoluto. Numa palavra: a memoria, culminância da interioridade que recolhe e busca, em via ascensional, é na verdade o ponto de partida, e não a finalização, da atitude fenomenológica do ir-às-coisas-mesmas, tornando-se seu fundamento imediato. Uma vez mais, têm-se a imediaticidade do absoluto a principiar e conduzir o ver/conhecer rumo à culminância em si mesmo. Ponto de partida que desvela a própria plenitude a se alcançar. Por sua vez, é precisamente na refundamentação do argumento único de Santo Anselmo que Boaventura irá, por assim dizer, redefinir a amplitude conceitual da interioridade agostiniana para postular-lhe, a exemplo de Heidegger, o abarcar em culminância a realidade e a linguagem como sinais e vestígios, exemplos (na célebre metafísica exemplarista de cunho neoplatônico, mas totalmente revista e redimensionada na síntese boaventuriana) do ser divino que, ao intelecto agente (vale dizer: à interioridade), cai-lhe na condição de primum esse, primeira manifestação, primeiro dado conhecido. Temos, aqui uma vez mais, a imediaticidade do absoluto proporcionada, melhor: instada como momento fundante pela interioridade, a condicionar e fundamentar a busca do conhecimento, e toda a feitura do real, face à intelecção da mens ante a realidade plural e temporal. Imediaticidade e fundamentação: no eixo constituinte do pensar que busca, por um lado, a refundamentação da ontologia em bases da “vida fática”, ou “vivência fática”, ou ainda factualidade (Heidegger); 116

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por outro, a constituição da certitude inerente a toda e qualquer atitude vivencial que se depara ante a realidade, para saborear e plenificar, na certeza mesma, a própria realidade em sua absolutidade e eternidade (Boaventura) – eis a confluência que podemos esboçar entre as duas leituras da metafísica da interioridade de Santo Agostinho, as quais, fieis antes de tudo, e por princípio, ao espírito da atitude agostiniana – a começar pelo título, cuja propositura insta à inversão da metafísica tal como Aristóteles a concebera, dado que projeta-se a ida ao interior, e não ao exterior – buscam no absoluto interior, íntimo e infinito, o fundamento condicionador para toda e qualquer busca, desde a própria individualidade, até a as mais amplas e incomensuráveis conquistas efetuadas pelo itinerário da realidade rumo ao absoluto divino. A atitude fenomenológica característica da leitura de Heidegger, da qual evidencia-se a memória como locus por excelência do vivido e intencionado – e portanto significado à luz do absoluto, vale dizer: do ser – resulta, senão convergente e virtualmente idêntica, pelo menos muito próxima à contuição itinerante que principia pelo imediato absoluto, na visão de São Boaventura, para igualmente significar a realidade vestigial e exemplar das ideias divinas, à luz do primum esse que se dá ao intelecto que age – ato instituinte, tal como a atitude fenomenológica em Husserl, e no próprio Heidegger1. Há ainda outro ponto a unir as duas leituras: o papel da atitude amorosa na interioridade que se recolhe em vetor ascensional, rumo ao Absoluto. Pode-se mesmo dizer que, nas duas leituras, a afetividade desempenha um papel como que de preenchimento, de conteúdo plenificante, ou ainda como a própria linguagem do ser que me insta à fala, no intimus da interioridade que me lança e projeta rumo ao Absoluto. Vimos que para Heidegger, em sua leitura da memoria na descrição agostiniana, a afetividade não é um aspecto secundário da essência desta, mas sim a própria intencionalidade memorial, vale dizer: da interioridade em atitude fenomenológica que significa a realidade recolhida e memorada, não como mero elenco de fatos e imagens, porém como sentido do ser dado à vivência existencial. O Vide anteriormente, nossa nota 98.

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memorado o é, não por mero incidente ou acaso, mas sim pela significação conferida pela afetividade que lhe recolheu, no ínterim das rememorações, à atemporalidade e, portanto, à luz da instância interior do eterno que se me dá em intimidade. De igual modo, para Boaventura é o afeto da devoção, numa palavra: a atitude de oratio volitiva da busca, movida pelo amor, é que alça à força superior que eleva a alma para a contemplação e plenificação do real, no absoluto que lhe é dado. O amor move e realiza, na interioridade imediata e na itinerância da exterioridade, a presença do absoluto, eterno e infinito, que se mostra como sinal e vestígio nas realidades temporais finitas. A afetividade, ou o amor, é a atitude fundante da interioridade que se recepciona como locus Dei, ante a itinerância do real em sua multiplicidade e temporalidade, significando a estas enquanto exemplares do absoluto eterno e uno. Ainda outra possível aproximação: enquanto espaço da linguagem originária (tal como se nos afigurou no capítulo II, a dialogicidade essencial que é experienciada e vivenciada enquanto intimidade no contato e na relação com o absoluto, o qual se lhe desvela como “Tu Outro”), a interioridade corresponde à própria instituição da linguagem como instância da fala originária do sagrado, a me tomar em meu ser para realizar-se no ser e sentido supremo e eterno. Se para Heidegger a linguagem humana (a que chamará posteriormente, em A caminho da linguagem (Unterwegs zur Sprache), de secundária2), enquanto instaurada pela intencionalidade memorial, e portanto significativa, culmina a atitude do projetar-se à realidade do lebenswelt (mundo-da-vida em Husserl; Heidegger na verdade irá cunhar a expressão ser-no-mundo, com o qual situa a existência humana em sua vivência primordial), em audição e fala responsiva à linguagem originária (constituindo-se no dizer fundante da atitude fenomenológica), para São Boaventura a atitude primordial na busca itinerante e consumadora da realidade, é a oratio desejante, o instar-se responsiva e devotamente, vale dizer: em voluntas que responde e fala, dialoga e pede, suplica e ama. Para ambos, a linguagem compõe a própria atitude vivencial e realizadora, Vide anteriormente, nota 53 deste livro.

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enquanto diálogo em busca – e, portanto, no quaerens originário – da interioridade como locus Dei, tal qual definira Agostinho. Sumarizando, enfim, a aproximação entre ambas as leituras, temos como vértice pontual da mesma, a crítica à metafísica aristotélica enquanto saber que se alça ao princípio supremo, sem contudo dele partir e por ele – e nele - iniciar. Tal qual a crítica endereçada por Heidegger à metafísica medieval, como sendo a onto-teo-logia que recai no esquecimento do ser em função de se ancorar no âmbito dos entes, antes de tomar o pensamento centrado em Deus como a indagação primeira, tal será a crítica dirigida por Boaventura à escolástica de seu tempo, quando pretendeu tomar o aristotelismo como fio condutor na edificação da síntese dos saberes. Assim como Heidegger identifica no pensamento cristão pós-apostólico a perda da experiência primeva da facticidade, que me presencia o absoluto vivenciado pela existência-no-mundo, também Boaventura identifica no pensamento aristotélico, uma queda à cegueira do primum esse que está dado de imediato ao conhecimento, do que se seguirá, inexorável e judicialmente, a rejeição à iluminação como fonte primeira do saber. Ambos tomam o pensamento metafísico radicado no categorial substancial e na expressão lógica, como perda e queda. Na verdade, a rejeição é precisamente à onto-lógica, e mesmo à téo-lógica, no caso de Heidegger, enquanto estruturadas dogmática e doutrinariamente. A crítica à metafísica tradicional aristotélica é, portanto, traço unitivo entre São Boaventura e Heidegger, embora o segundo certamente haveria de incluir o primeiro no elenco da doutrina criticada. Se, por ora neste trabalho, pudemos aqui abordar a convergência entre ambos, a abordagem com relação à crítica e afastamento entre eles, já compõe uma outra pesquisa, outra história, outro trabalho, ao qual nos dedicaremos em momento oportuno. Resta-nos finalizar nosso percurso de leitura da metafísica da interioridade agostiniana, em aproximação às releituras levadas a efeito por dois dos maiores pensadores de toda a história, acenando para a validade de um pensamento – agostiniano - que, não obstante sua milenar origem e feitura, continua a fermentar a história das ideias e a busca enquanto tal, do ser humano pelo aclarar, pouco que seja, o mistério de sua vivência enquanto ser que se transpõe, transcende e Conclusão

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se alça ao infinito, sem contudo superar sua contingência e queda, ora na cegueira do ser, permitindo-se tatear à busca não obstante este lhe esteja, de maneira fontal, condicionando-o a essa mesma busca, sem a qual sequer conseguiria certificar-se do real à sua volta, tampouco até de si mesmo; ora no esquecimento do ser para deter-se na inautenticidade que elenca o real como técnica e produto, bem como escolia-se a si mesmo ante a fugacidade e efemeridade da realidade temporal e entitativa, recusando-se ao recolher-se na interioridade fontal do ser que o chama e vocaciona à realizar-se enquanto ouvinte da Palavra. Com efeito, a interioridade agostiniana mostrou-se-nos, acima de tudo, a própria razão e objeto, o próprio motivo e alvo, a própria linguagem e fala, ou mesmo o próprio espaço e forma, da relação Absoluto-contingente, ou Ser divino-ser humano, no diálogo vital e existencialmente vivenciado por toda pessoa, ainda que lhe queira negar e riscar-lhe a presença. Presença: precisamente como tal é a interioridade agostiniana, enquanto remetida ao manifestar-se fundamental do sagrado ao humano, do princípio supremo e absoluto, à contingência existencial própria à nossa condição humana. Imediaticidade e eternidade: a busca, o quaerens essencialmente presente na interioridade humana, revela-se em verdade, na metafísica agostiniana da vida interior, como o próprio buscado a me buscar, a busca que, na verdade, invertendo os papeis, vem a meu encontro, vocacionando-me originariamente – linguagem originária, dizer originário, como nos faz ver Heidegger – a responder-lhe em fala dialogal e amorosa, na culminância da itinerância que me faz abarcar a realidade, à luz da presença em vestígios, sinais e imagem da própria divindade a se manifestar em minha busca, a iniciar em mim. Deus a me buscar, fazendo-se a minha própria busca. Deus em busca, Deus que me busca.

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Referências bibliográficas I – Bibliografia Específica 1. SANTO AGOSTINHO Obras de Sto. Agostinho _____ Texto latino da Opera Omnia, estabelecido segundo o Corpus Sriptorum Ecclesiasticorum Latonorum – CSEL [www.csel.eu; www.degruyter.com] e/ou o Corpus Christianorum Series Latina – CCSL [www.corpuschristianorum.org; www.brepols. net/page], disponibilizado em www.augustinus.it, juntamente com a tradução em alemão, francês, espanhol [Biblioteca de Autores Cristianos – BAC] e italiano [Nuova Biblioteca Agostiniana – NBA, Città Nuova Editrice].

Edições bilíngues _____ Obras Completas de San Agustín, edição bilíngue latim-castelhano em 41 volumes, promovida pela Federación Agustiniana Española, com coordenação de tradução, introduções e notas de Victorino CAPANAGA, 5ª edição, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 2008-2013 (reimpressão). _____ Confessiones, edição bilíngue latim-português, com tradução de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina C.M.S. Pimentel, 2ª edição, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004. _____ De Trinitate, edição bilíngue latim-português, com coordenação da tradução de Arnaldo do Espírito Santo, Lisboa: Paulinas, 2007.

Edições em português _____ A Grandeza da Alma, tradução de Frei Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 2008 (Coleção Patrística – vol. 24). _____ A Ordem, tradução de Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 2008. _____ A Trindade, tradução de Agustinho Belmonte, 3ª edição, São Paulo: Paulus, 2005. _____ A Verdadeira Religião, tradução de Nair de Assis Oliveira, 2ª edição, São Paulo: Paulus, 2007. _____ Confissões, tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os Pensadores). _____ Confissões, tradução de Maria Luiza Jardim Amarante, 5ª edição, São Paulo: Paulus, 1993. _____ Contra os Acadêmicos, tradução de Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 2008. _____ O Livre-Arbítrio, tradução e notas de Nair de Assis Oliveira, 4ª edição, São Paulo: Paulus, 2004. _____ O Mestre, tradução de Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 2008.

Referências bibliográficas

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_____ Sobre a potencialidade da Alma, tradução de Aloysio Jansen de Faria, revisão de Frei Graciano González, 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 2005.

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2. SÃO BOAVENTURA 2.1) Obras de São Boaventura _____. S. Bonaventurae Opera Omnia, Editio Accurate Recognita, Cura et Studio Adolpho Carolo Peltier, Parisis, Ludovi Vivès, Bibliopola Editor, 15 vols., 1681.

2.1.1) Edições bilíngues _____. Obras – volume I, edição bilíngue com tradução em castelhana dirigida e anotada (com introduções) por Leon Amoros, Bernardo Aperribay e Miguel Oromi, Madrid: B.A.C., 2010 (reimpressão, pela série BAC Thesaurus, da 3ª. edição de 1968). _____. Itinerário da mente para Deus, 3ª edição bilíngue latim-português com tradução, introdução e notas de António Soares Pinheiro, Faculdade de Filosofia de Braga, Portugal, 1986.

2.1.2) Edições em português _____ Escritos Filosófico-Teológicos – volume I, tradução e notas de Luis Alberto de Boni (responsável pela apresentação) e Jerônimo Jerkovic, Porto Alegre: EDIPUCRS/ USF, 1999 (reúne as traduções de Breviloquium, Itinerarium, De Reductione e Christus Magister). _____. Itinerário da mente para Deus, tradução e notas de Jerônimo Jerkovic e Luis Alberto De Boni, com prefácio de Alessandro Ghisalberti, Petrópolis: Vozes, 2012 (revisão, com modificações e acréscimos, das edições de 1968, 1983 e 1999).

Referências bibliográficas

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3. MARTIN HEIDEGGER 3.1) Obras de Heidegger _____ A Caminho da Linguagem, tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2003. _____ Estudios sobre Mística Medieval, traducción de Jacobo Muñoz, 2ª edicion, Madrid: Ediciones Siruela, 2001. _____ Introducción a la Fenomenología de la Religión, prólogo y traducción de Jorge Uscatescu, Madrid: Ediciones Siruela, 2005. _____ Los Problemas Fundamentales de la Fenomenología, traducción y prólogo de Juan José García Norro, Madrid: Editorial Trotta, 2000. _____ Marcas do Caminho (ensaios diversos), tradução de Enio P. Giachini e Ernildo Stein, Petrópolis: Vozes, 2008. _____ Ser e Tempo, vols. I e II, tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 1988. _____ Ser e Tempo, tradução revisada, com apresentação, de Márcia Cavalcante de Sá Schuback, Petrópolis: Vozes/Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.

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_____. Ser e Tempo, edição bilíngue alemão-português com tradução de Fausto Castilho, Petrópolis: Vozes/Campinas: Editora da Unicamp, 2012. _____ Unterwegs zur Sprache, Pfüllingen, Neske, 1959.

Estudos sobre Heidegger CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger, Petrópolis: Vozes, 2009. D’HELT, Alexandre. Heidegger et la pensée médiévale, Paris: Ousia, 2010. FRANCK, Didier Heidegger et le christianisme – L’explication silencieuse, Paris: P.U.F., 2004. HEBECHE, Luiz O Escândalo de Cristo – Ensaio sobre Heidegger e São Paulo, Ijuí: Editora Unijuí, 2005. INWOOD, Michael Heidegger, São Paulo: Loyola, 2004. LEVINAS, Emmanuel Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, tradução de Fernanda Oliveira, Lisboa: Instituto Piaget, 1997. MAC DOWELL, João A.A.A. A Gênese da Ontologia Fundamental de M. Heidegger, 2ª edição, São Paulo: Loyola, 1993. McGRATH, S. J. The early Heidegger and Medieval Philosophy: phenomenology for Godforsaken, The Catholic University of America Press, 2006 MATTÉI, J-F. Heidegger – L’enigme de l’etre, Paris: P.U.F., 2004. PÖGGELER, Otto A Via do Pensamento de Martin Heidegger, tradução portuguesa de Jorge Telles de Menezes, Lisboa: Instituto Piaget, 2001. RICHARDSON, William J. Heidegger – Through Phenomenology to Thought, 2ª edition, The Hague, Martinus Nijhoff, 1967. SAFRANSKI, R. Heidegger – Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, tradução de Lya Luft, apresentação de Ernildo Stein, São Paulo: Geração Editorial, 2000. STEIN, Ernildo Compreensão e Finitude – Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Ijuí: Editora Unijuí, 2001. _____. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger, Porto Alegre: Edipucrs, 2002. STEINER, George. As idéias de Heidegger, São Paulo: Cultrix, 1982.

II – Bibliografia Geral BEAUFRET, Jean. Introdução às Filosofias da Existência, São Paulo: Duas Cidades, 1976. BRENTANO, Franz Sui molteplici significati dell’essere secondo Aristotele, tradução de Stefano Tognoli, com prefácio, introdução e tradução dos textos gregos de Giovanni Reale, Milão: Vita e Pensiero, 1995. DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval, São Paulo: Loyola, 1998. ESTRADA, Juan Antonio. Deus nas tradições filosóficas – volume 2: Da morte de Deus à crise do sujeito, São Paulo: Paulus, 2003. FORTE, Bruno À escuta do Outro – Filosofia e Revelação, São Paulo: Paulinas, 2003. FRANGIOTTI, Roque Apparecido. História da Teologia – Período Patrístico, São Paulo: Paulinas, 1992. GILES, Thomas Ransom. História do Existencialismo e da Fenomenologia, São Paulo: Edusp/EPU, 1975. GILSON, Étienne. El Ser y la Esencia, Buenos Aires, Ediciones Desclée de Brouwer, 1951. _____. La Philosophie au Moyen Age, 2ª édition revue et augmentée, Paris, Payot, 1947. _____. O Espírito da Filosofia Medieval, tradução de Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes: 2006.

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