Deve Haver Uma Desmilitarização da Polícia Brasileira? SIM.

June 6, 2017 | Autor: Ana Maura Tomesani | Categoria: Desmilitarização, Military Police
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SOCIOLOGIA CRIME

GRANDES TEMAS DO CONHECIMENTO SOCIEDADE ∙ PENSADORES ∙ VIOLÊNCIA ∙ MINORIAS ∙ TEORIAS SOCIAIS ∙ POLÍTICAS ∙ CRIANÇAS ∙ CAPITALISMO ∙ SOCIALISMO ∙ ANARQUIA ∙ REPÚBLICA ∙ DEMOCRACIA

SOCIOLOGIA

POLÍCIA

DESMILITARIZAR A POLÍCIA Diversas organizações de direitos humanos, a OEA e várias lideranças sociais clamam que a PM perca sua característica militar. Mas o que isso significa?

USP

ANTROPÓLOGA CHEFIA A USP Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer

assume o comando da Guarda Universitária e traz uma nova abordagem à ideia de segurança institucional e democracia

MANICÔMIOS

OCTÁVIO IANNI A trajetória deste intelectual essencial ao pensamento sociológico brasileiro

ARompendo LUTAa cultura ANTIMANICOMIAL do medo e do controle, os doentes são reintroduzidos no convívio humano e social

ÍNDICE

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Notas

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UMA ANTROPÓLOGA À FRENTE DA GUARDA

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AS METAMORFOSES DE OCTAVIO IANNI

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DEVE HAVER UMA DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA BRASILEIRA

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A LUTA ANTIMANICOMIAL

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AS EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS “DAS QUEBRADAS”

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RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

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A INSTITUCIONALIZAÇÃO PSIQUIÁTRICA NO CINEMA

ERVING GOFFMAN E SUA ANÁLISE DE QUADROS

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LANÇAMENTOS LIVROS

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Mythos Editora Diretor-Executivo: Helcio de Carvalho Diretor-Financeiro: Dorival Vitor Lopes Editor-Executivo: Alex Alprim ([email protected]) Revisão: Melissa Correa Produtor Gráfico: Ailton Alipio Colaboradores: Fabricio Basílio, Leticia Chaves, Juliana Vinuto, Ana Maura Tomesani, Samira Bueno, Maysa Rodrigues, Lucas Amaral de Oliveira, Ailton Teodoro, Flávia Cristina Silveira Lemos e Karina Fasson Gerente de Vendas/Livros: Adriana Ferreira S. Costa Coordenação de Consignação: Mônica A. Silva Números Atrasados: Fabiana Dionísio Circulação: Antonia B. Coelho Impressão: Gráfica São Francisco Distribuição Nacional: Fernando Chinaglia

Sugestões, Reclamações, Dúvidas: [email protected]

(PRODUÇÃO, PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E PUBLICIDADE) Paco´s Serviços Gráficos Dir. Executivo/Projetos: Alex Alprim Dir. Financeiro: Paula Francisquini Designer-Chefe: Percila Souza Designer-Júnior: Pedro Faria Estagiária: Mayara Santos

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NOTAS

Aprovado o Plano Diretor de São Paulo Na edição passada, fizemos uma longa entrevista com o relator do Plano Diretor da cidade de São Paulo, aprovado no fim de junho após nove meses de negociações na Câmara dos Vereadores PV e do PSOL. Para atingir o consenso político, as principais alterações em relação à versão original foram a relativização da regra de restrição da altura dos prédios em bairros pouco verticalizados; a regularização de Igrejas e pequenos comércios; a transferência de pontos polêmicos para a próxima versão da Lei de Uso do Solo, que deverá ser votada pela Câmara em agosto.

Foto Divulgação: Flickr-Rena Lombardero

Em 30 de junho, a lei que altera o antigo Plano Diretor da cidade foi aprovada por 44 dos 55 vereadores. Este foi o segundo turno da eleição, iniciada no fim de abril quando a Plano recebeu a primeira aprovação. Desde então, o projeto de lei sofreu 26 alterações que por fim garantiram a sua aceitação definitiva no legislativo. Os votos contrários foram de parlamentares do PSDB, do

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Foto Divulgação: Flickr-Diego3336

NOTAS

O novo Plano Diretor garante incentivos fiscais para instalação de empresas em zonas mais periféricas da cidade – próximas às Avenidas Jacu Pêssego, Cupecê, Anhanguera e Raimundo Pereira de Magalhães. Desincentiva a construção de garagens e cria “cota de solidariedade”, de tal forma que grandes empreendimentos tenham de doar 10% do valor do terreno para projetos de moradias populares. Além disso, regulamenta as Zonas de Interesse Social, que prevêm moradia para a população de baixa renda em locais mais

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centrais da cidade. Regulariza também quatro espaços ocupados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) – inclusive o terreno chamado de “Copa do Povo” em Itaquera –, contemplando o movimento social que se manteve ativo durante todo o processo de tramitação do Plano. Na data da aprovação, os integrantes do movimento, que acampavam durante os últimos meses em frente à Câmara para pressionar a votação, realizaram uma grande comemoração com churrasco.

GRANDES NOMES

AS METAMORFOSES DE

O I V A T C O

IANNI Conheça a trajetória deste intelectual central no pensamento sociológico brasileiro.

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M 4 DE ABRIL DE 2014 COMPLETARAM-SE DEZ ANOS DO CREPÚSCULO DE UMA DAS MENTES MAIS BRILHANTES DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA. Seu nome: Octavio Ianni. Não obstante, em que pese a grandeza do sociólogo paulista, sua herança sociológica fica oculta sob a memória de curto alcance que reina nas universidades. Nesse sentido, a pedido da Revista Sociologia e a contrapelo dessa tendência, procuramos esboçar aqui um perfil intelectual em homenagem ao sociólogo. Filho de imigrantes italianos provenientes de Castellabate, seus pais ganhavam a vida como tripeiros vendendo, de porta em porta, miúdos de carne em uma carroça em Itu, interior de São Paulo. Eram muito raros os casos de imigrantes que podiam formar um pecúlio e com ele conduzir um

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GRANDES NOMES

Fotodivulgação: WikimediaCommons - Tipografialeone

pequeno negócio – algo que os diferenciava dos demais estrangeiros que chegavam ao Brasil pela via da imigração subvencionada e eram enviados diretamente para a grande lavoura, onde trabalhariam por contrato até que as dívidas com passagens, hospedagem e víveres fossem quitadas.[1] Não por isso as coisas foram mais fáceis para Octavio Ianni. Antes dos 13 anos perdera os pais e ficou sob a tutela do irmão mais velho, Constantino. Em 1948, mudou-se para Osasco, onde montou uma pequena tipografia, e, no ano seguinte, ingressava na Universidade de São Paulo para um curso de quatro anos em Ciências Sociais. Era preciso conciliá-lo com o trabalho, já que não podia dar-se ao luxo de apenas estudar. Mesmo assim, em decorrência de dificuldades financeiras, abandonou o curso por um ano e o concluiria apenas em 1954, o que denota um perfil bastante diferente do público seleto e elitista pelo qual e para o qual a USP fora criada em 1934. O ano de 1954 é particularmente importante para a permanência de Ianni na carreira acadêmica, pois marca algumas mudanças na Cátedra de Sociologia I[2], à qual o recém-formado sociólogo permaneceria ligado até 1969. Desde 1938, o professor que ocupava a Sociologia I era o francês Roger Bastide. Entre 1951 e 1953, ele e Florestan Fernandes coordenaram uma pesquisa encomendada pela Unesco sobre as relações raciais em São Paulo[3]. A pesquisa rendeu alguma projeção a Florestan, e quando Bastide decidiu voltar à França, em 1954, entregou a regência da cátedra ao aluno. Na regência, Florestan reconfigura a estrutura da cátedra, nomeando Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni como assistentes. A oportunidade oferecida a Ianni foi aceita imediatamente, pois assim seria possível dedicar-se à especialização (equivalente hoje ao mestrado), defendida em 1957. Intitulada Raça e mobilidade social em Florianópolis, era fruto de uma pesquisa realizada no mesmo espírito do Projeto Unesco, no Brasil Meridional, e em parceria com Fernando Henrique. O texto foi publicado em Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960) e os dados foram aproveitados Um ano antes de entrar na Universidade de São Paulo, montou uma pequena tipografia em Osasco.

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GRANDES NOMES

por ambos em seus doutorados, publicados sob a forma de livros em 1962, sob os títulos As metamorfoses do escravo (Ianni) e Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (Cardoso). Neles, os autores “procuram valer-se, cada qual ao seu modo, de versões do materialismo histórico, refinadas pelo contato com as demais vertentes clássicas da análise sociológica, para buscar captar ao mesmo tempo um grande processo histórico e as diferenças mais finas que ele engendra no interior da sociedade”. [4] Importante para essa escolha analítica foi, sem dúvida, a ativa participação no Seminário d’O Capital, de Marx.[5] Mais tarde, em 1964, Ianni inscreveu-se no concurso para a vaga de catedrático que se abria com a aposentadoria de Fernando de Azevedo, da Sociologia II. Para isso, preparou um estudo sobre a natureza da intervenção do Estado na economia brasileira, mas foi vencido pelo primeiro assistente de Fernando de Azevedo, Ruy Coelho. O estudo, publicado em 1965 como Estado e capitalismo, era fruto de um amplo projeto de pesquisa formulado

por Florestan denominado Economia e sociedade no Brasil. Dele participaram, além de Ianni, Fernando Henrique, que desenvolveu uma monografia sobre o empresariado brasileiro, intitulada Empresário industrial e desenvolvimento econômico (1964); Luiz Pereira, responsável por pesquisar a natureza da qualificação na empresa industrial, do qual resulta a sua livre-docência, Trabalho e desenvolvimento no Brasil (1965); e Paul Singer, que doutorou-se em Sociologia com um estudo em perspectiva comparada do desenvolvimento econômico de cinco cidades brasileiras, publicado com o título Desenvolvimento econômico e evolução urbana (1968). Tratava-se de uma época de incertezas. O golpe militar de 1964 colocava fim à emergência política das classes populares[6] com a cínica justificativa de que era preciso salvaguardar a mesma democracia que acabava de violentar. A despeito dos efeitos perversos do golpe, a ruptura na ordem política provoca mudanças bruscas na agenda das Ciências Sociais da USP. Octavio Ianni, em particular, publicaria em

Com o golpe militar de 1964, em uma época de incertezas, foi interrompida a emergência política das classes populares.

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GRANDES NOMES

por ambos em seus doutorados, publicados sob a forma de livros em 1962, sob os títulos As metamorfoses do escravo (Ianni) e Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (Cardoso). Neles, os autores “procuram valer-se, cada qual ao seu modo, de versões do materialismo histórico, refinadas pelo contato com as demais vertentes clássicas da análise sociológica, para buscar captar ao mesmo tempo um grande processo histórico e as diferenças mais finas que ele engendra no interior da sociedade”. [4] Importante para essa escolha analítica foi, sem dúvida, a ativa participação no Seminário d’O Capital, de Marx.[5] Mais tarde, em 1964, Ianni inscreveu-se no concurso para a vaga de catedrático que se abria com a aposentadoria de Fernando de Azevedo, da Sociologia II. Para isso, preparou um estudo sobre a natureza da intervenção do Estado na economia brasileira, mas foi vencido pelo primeiro assistente de Fernando de Azevedo, Ruy Coelho. O estudo, publicado em 1965 como Estado e capitalismo, era fruto de um amplo projeto de pesquisa formulado

por Florestan denominado Economia e sociedade no Brasil. Dele participaram, além de Ianni, Fernando Henrique, que desenvolveu uma monografia sobre o empresariado brasileiro, intitulada Empresário industrial e desenvolvimento econômico (1964); Luiz Pereira, responsável por pesquisar a natureza da qualificação na empresa industrial, do qual resulta a sua livre-docência, Trabalho e desenvolvimento no Brasil (1965); e Paul Singer, que doutorou-se em Sociologia com um estudo em perspectiva comparada do desenvolvimento econômico de cinco cidades brasileiras, publicado com o título Desenvolvimento econômico e evolução urbana (1968). Tratava-se de uma época de incertezas. O golpe militar de 1964 colocava fim à emergência política das classes populares[6] com a cínica justificativa de que era preciso salvaguardar a mesma democracia que acabava de violentar. A despeito dos efeitos perversos do golpe, a ruptura na ordem política provoca mudanças bruscas na agenda das Ciências Sociais da USP. Octavio Ianni, em particular, publicaria em

Com o golpe militar de 1964, em uma época de incertezas, foi interrompida a emergência política das classes populares.

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GRANDES NOMES

Mesmo preocupado em incentivar os alunos a ter o rigor apaixonado que ele nutria pelo conhecimento científico, nunca permitiu que suas ideias ficassem apenas dentro dos muros da universidade.

convite foi feito a Florestan Fernandes, Maurício Tratenberg e Paulo Freire, que o aceitaram de prontidão. A PUC foi um grande refúgio para os intelectuais caçados, que nela encontrariam um ambiente muito favorável aos seus próprios posicionamentos políticos, isto é, a oposição à ditadura. Com a anistia, sancionada em 1979, Ianni tentou ser reincorporado à USP, mas sentiu-se hostilizado pelos novos professores. Mesmo assim, preferiu deixar o Cebrap entre 1979 e 1980. Divergências teóricas, ideológicas e políticas, principalmente com Fernando Henrique, cultivadas desde 1970, motivaram sua decisão. Em 1986, deixa também a PUC-SP para ser incorporado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde desenvolvera a temática do globalismo e permaneceria atuante na pós-graduação até poucos dias antes de sua internação definitiva e falecimento, vitimado por um câncer devastador.

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Para concluir, creio que os brilhantes frutos da trajetória intelectual de Ianni ganham pleno significado se concebidos no espírito da sociologia pública. Além de um autêntico scholar, preocupado em incentivar os alunos a incorporar o mesmo rigor apaixonado que ele próprio nutria pelo conhecimento científico[9], jamais permitiu que suas reflexões encontrassem limites nos muros da universidade. Era preciso que ganhassem o mundo sem submeter-se aos despotismos do mercado e do Estado. Para ele, a ciência era elemento e condição da práxis humana, uma das manifestações do modo de existir dos homens. Nesse sentido, se não puder servir à humanidade, voltar-se-á irremediavelmente contra ela como forma de dominação. (*) Ailton Teodoro cursa mestrado em Sociologia na USP e desenvolve pesquisa no campo do pensamento social brasileiro.

MOVIMENTOS SOCIAIS

A T U L A manicomial

i t n A

A luta contra os manicômios diz respeito a todos nós e não apenas a um grupo restrito. A clausura institucional é sintomática da forma como encaramos a nós mesmos: como seres passíveis de serem rotulados como doentes e controlados quando se desviam dos comportamentos padrões

A

GRADEÇO PELO CONVITE DA REVISTA SOCIOLOGIA PARA TRATAR BREVEMENTE DO TEMA CUJO TÍTULO VISA EXPRESSAR A LUTA INCESSANTE PELA PRODUÇÃO DE SAÚDE COLETIVA E MENTAL NA ATUALIDADE. E tentarei dialogar com o leitor a respeito, em algumas linhas que possam fazer vibrar as forças heterogêneas que marcam os movimentos de resistência antimanicomiais.

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MOVIMENTOS SOCIAIS

Falar de movimento antimanicomial não é algo natural porque o objeto do qual ora nos detemos também não o é. As palavras têm história e os movimentos sociais também têm, pois são práticas sociais e só se materializam como resultado de muitas outras práticas conjuntas, chamadas de vizinhas, mas que são diferentes e sem relação de causalidade. As práticas que constituem os movimentos de questionamentos dos manicômios passaram a ser nomeadas como antimanicomiais para alguns grupos, para outros, puderam ser denominadas de reforma psiquiátrica, e para outros ainda de antipsiquiatria. Cada um destes termos remonta a lutas diversas e discursos descontínuos, portanto, apesar de serem agrupadas muitas vezes como se fossem uma mesma prática, não o são. Reforma psiquiátrica foi um movimento apropriado pelo Brasil, no aspecto de gestão da saúde, em nível da esfera do Estado, ao final da década de 1980 e início dos anos 1990. Lutas de trabalhadores na saúde, na educação e na justiça, movimentos de universidades, resistências de familiares e usuários de políticas de saúde mental interrogavam as maneiras de cuidar, consideradas por eles estigmatizantes e até mesmo violentas, segregativas e tutelares de espaços, como os hospitais psiquiátricos, também chamados de asilos. Estas lutas foram aglutinadas no termo reforma psiquiátrica em função de terem sido organizadas a posteriori como uma política de Estado, no âmbito da saúde sob a insígnia de psiquiátrica, o que implicou em negociações com ganhos e perdas para os movimentos de resistência. Se um dos pontos de luta era a crítica ao hospital psiquiátrico e se demandava seu

“COMO PENSAR EM SAÚDE MENTAL SEM OBSERVAR AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONÔMICAS, A EDUCAÇÃO, A ASSISTÊNCIA SOCIAL, OS DIREITOS FUNDAMENTAIS, AS SOCIABILIDADES E OS PRECONCEITOS QUE PRECISAM SER ALVO DE RUPTURAS?” 12

fechamento, esta não era a única bandeira de luta. Claro que foi e é fundamental fechar e criticar este lugar que se assemelha a presídios e pouco opera com dignidade e afirmação de direitos das pessoas atendidas, porém, é importante propor e pensar na atenção psicossocial em saúde e na rede de integralidade das políticas de cuidado, intersetorial e de equidade para além da política pública de saúde. Eu quero dizer que promoção de cuidado não é apenas uma reforma psiquiátrica e não se restringe a uma área específica somente. Como pensar em saúde mental sem observar as desigualdades sociais e econômicas, a educação, a assistência social, os direitos fundamentais, as sociabilidades e os preconceitos que precisam ser alvo de rupturas? Como organizar maneiras de cuidar sem criar trancamentos e exclusões ou inclusões perversas? De que modo romper com interesses da indústria farmacêutica e das empresas que forjam o mercado da saúde e dos corporativos profissionais? De que forma potencializar a participação social das pessoas que poderão ser atendidas, da comunidade, das famílias e de movimentos variados sociais sem institucionalizá-los em programas pasteurizados e reproduzidos aletoriamente porque foram chamados de boas práticas em outros países e lugares sem especificar acontecimentos que afetam singularmente cada corpo e subjetividade? Enfim, são muitas perguntas e desafios a fazer e que podem deslocar discursos instalados e acomodados, repetidos como retóricas abstratas, que esvaziam a força das lutas e a potência dos movimentos sociais. Assim, o outro termo - luta antimanicomial - ganhou vivacidade e ampliou o escopo da crítica ao trazer de modo mais

MOVIMENTOS SOCIAIS

Com a democratização do cuidado e criação de práticas de atenção básica, a reforma sanitária também teve lugar para funcionar além da rede substitutiva de atenção psicossocial.

radical a proposta de desinstitucionalização para o cenário da política pública e para a sociedade mais complexa o que estava em jogo dentro, fora e nos entremeios dos hospitais psiquiátricos e dos serviços que o cercavam, além dos discursos e interesses que atravessavam este campo de tensão e atualização de forças. A luta antimanicomial passou a compor grupos, entidades, famílias, usuários de políticas públicas variadas, profissionais, gestores, associações, movimentos, conselhos de direitos e universidades que fizeram a crítica ao manicômio não apenas nas paredes dos hospitais psiquiátricos, mas também em outros equipamentos de atendimento. Esta perspectiva alargou a maneira de lidar e operar as políticas de cuidado e possibilitou analisar a complexidade das questões em foco que extrapolava a saúde mental. Assim, a reforma sanitária teve lugar também na democratização do cuidado e criação de práticas de atenção básica que poderiam funcionar além da recém-inventada rede

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substitutiva de atenção psicossocial. Quero falar de saúde coletiva, de estratégias comunitárias, de educação em saúde, de políticas sociais, de unidades de saúde e não apenas dos centros de atenção nomeados de CAPs. Trato de algo que vai além do fechamento dos hospitais psiquiátricos, que implica um modo de organizar trabalho e promoção de saúde em redes. Romper com pensamentos e valores de trancamento e internação. Isto não foi simples, a luta antimanicomial se propôs a tentar resistir à prática centenária de fechar pessoas em lugares afastados em que se acreditava que isolar era um tratamento adequado e ideal. Neste sentido, a antipsiquiatria permitiu colocar em xeque discursos vinculados aos saberes que sustentavam sobre os corpos, ou seja, o trancar e internar era subsidiado por verdades fabricadas historicamente que inventaram o doente mental como objeto de clausura e como suposto indivíduo perigoso. Realizar a problematização dos saberes produtores dos corpos doentes mentais se tornou crucial para derrubar estigmas, fechar hospitais

MOVIMENTOS SOCIAIS

psiquiátricos e abrir campos de possibilidades de existência para pessoas que foram internadas em função de tantos preconceitos de nossa sociedade e ainda por discursos chamados científicos, valorizados como verdades inquestionáveis e, portanto, balizadores de poderes estranhos como estes de trancar por décadas corpos em asilos. A desinstitucionalização assinalou que os discursos e poderes em cena não eram apenas os psiquiátricos, mas traziam pedagogias, psicologias, justiças, assistências, histórias e tantos jogos entrecruzados e agenciados em dispositivos de internação que deveriam ser quebrados não apenas Ainda existem movimentos contrários aos já citados e que visam não apenas manter o funcionamento dos manicômios, mas ampliá-los.

em seus muros de trancamento, mas também em seus muros outros, os das verdades das várias ciências, da exclusão da miséria, das profissões neutras, dos interesses econômicos, entre outros. Assim, os movimentos sociais puderam se apropriar de muitas ferramentas para organizar lutas locais (micropolíticas) e macropolíticas simultaneamente, fazendo vibrar atualizações e invenções de outros modos de cuidar. Porém, ainda há movimentos contrários a estes que citamos e que visam não só manter manicômios como ampliar os mesmos, algo como alienistas com suas casas verdes, como já analisava Machado de Assis. Estas lutas são nossas e dizem respeito a todos nós, não são apenas de um setor e de um grupo somente. Elas nos atravessam e dizem dos modos da gente viver, sentir, pensar e agir no tempo em que existimos. Por isto, todos podemos interrogar os manicômios que prendem a tantos e que também nos aprisionam em vidas limitadas à sobrevida de clausuras variadas, além das que operam pelos muros de equipamentos de isolamento. No Brasil, o Movimento de Luta Antimanicomial (MLA) é um dos movimentos expressivos de resistência que tem travado embates importantes na busca de pautar os acontecimentos em jogo nesta matéria e abrir fendas para a criação de políticas de atenção psicossocial. Movimentos de saúde coletiva, como o de associações, tais como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e outras vêm ganhando força e vivacidade desde o início da década de 1980. Outros grupos, associações, movimentos, entidades de classe, profissões e setores se organizam também para lutar nas relações entre saúde coletiva, mental e direitos humanos e ganham vigor nos últimos anos. Assim, não deixemos de sonhar e de lutar acreditando que há possíveis maneiras de criar alianças para forjá-los mesmo em tempos difíceis. (*) Flávia Cristina Silveira Lemos é psicóloga pela UNESP, mestre em Psicologia Social e doutora em História Cultural pela mesma universidade. É professora de Psicologia Clínica e Social em universidade federal. É também bolsista de produtividade em pesquisa/CNPQ-PQ2.

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MOVIMENTOS SOCIAIS

O MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL PARA A SOCIOLOGIA Luiza Andrade*

Apesar da luta antimanicomial ser uma das mais importantes e relevantes no Brasil contemporâneo, há grandes desafios no que se refere ao tema do aprisionamento de indivíduos rotulados como “loucos”. Um deles, como argumentam Lüchmanni e Rodrigues (2007) é a quase ausência, no vasto campo da produção teórica sobre os movimentos sociais no Brasil, de estudos sobre o movimento da luta antimanicomial. Nesse sentido, mostra-se importante fomentar trabalhos teóricos e empíricos no que se refere a este campo, construindo um processo de compreensão e visibilidade do problema. Apesar disso, a teoria dos movimentos sociais mostra-se como importante possibilidade de análise para compreender o movimento da luta antimanicomial, já que o pensa como uma ação coletiva a partir de suas configurações múltiplas e heterogêneas. Dessa forma, os movimentos sociais relacionam-se com mobilizações e reivindicações que objetivam mudanças sociais, a partir da luta por causas particulares ou grandes projetos de mudança social (GOHN, 1997). Assim, a luta antimanicomial pode ser vista como um movimento que articula conflito, solidariedade e denúncia, objetivando transformações de relações e discursos sobre o controle do “louco”, fazendo emergir tensões sobre compreensões consolidadas e consideradas legítimas e a possibilidade de mudanças culturais (KRISHCKE, 2003). Se concordarmos com Melucci (1989), que argumenta que os movimentos sociais propiciam aspirações de emancipação ao denunciar contradições sociais e desafiar códigos dominantes, é possível compreender que a ruptura com o modelo manicomial permite despatologizar comportamentos desviantes. De acordo com Abou-Yd & Silva (2003), o referido movimento contrapõe a negatividade patológica construída na segregação, articulando noções e conceitos como a de incapacidade, de periculosidade, etc., e permitindo compartilhar o território a partir de uma cidadania ativa e efetiva. Para Soalheiro (2003), o movimento da luta antimanicomial é “um conjunto de estratégias que exigem iniciativas políticas, jurídicas e culturais que criam, possibilitam e marcam a presença da loucura na cidade”. Assim, é possível compreender tal movimento a partir da configuração de diversos atores e instituições, como profissionais, usuários e seus familiares, etc., evidenciando inúmeros conflitos, mas que, mesmo assim, permitiram mudanças significativas na prática dos atores. O Movimento da Luta Antimanicomial ainda não é considerado um objeto legítimo de estudo para a Academia, dado o baixo número de trabalhos sobre o tema, mas a luta se fortalece e deve utilizar de todas as ferramentas, inclusive, se apropriar do discurso acadêmico. (*) Luiza Andrade é cientista social.

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PLANO DE AULA

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RELAÇÕES

RACIAIS

NO BRASIL Questão central nas discussões sobre cidadania no Brasil, as relações raciais precisam ser tema de sala de aula se quisermos progredir neste debate

T

ENDO EM VISTA O OBJETIVO DESTA SEÇÃO, APRESENTAREMOS AO LEITOR UM PANORAMA REFERENTE ÀS RELAÇÕES RACIAIS E O RACISMO NO BRASIL, ALÉM DE SUGESTÕES DE EXERCÍCIOS PARA SEREM REALIZADOS NAS AULAS DE SOCIOLOGIA. A discussão sobre as relações raciais em nosso país tem grande importância. De acordo com o Censo de 2010, 50,7% da população brasileira se declara preta ou parda. Apesar de formarem, então, o maior segmento

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populacional, negros e pardos no Brasil, de modo geral, se encontram em condições socioeconômicas menos favorecidas em relação à população que se declara branca. Exemplo disso está no fato de que o total da população negra e parda ganha o equivalente a 57% do salário da população branca (diferenças são encontradas, inclusive, entre os grupos de 12 anos ou mais de estudo: nesse caso, o salário da população negra é 68% o da população branca).[1] Como veremos, a tese de que no Brasil há uma “democracia racial”, sendo possível a ascensão socioeconômica de negros e

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mulatos da mesma forma que a de brancos, foi desmontada a partir da década de 1950. Ainda assim, no Brasil contemporâneo, vemos que se reproduz o discurso de que não há preconceito racial em nossa sociedade, e isso não se restringe ao senso comum. Livros como o do sociólogo Ali Kamel (2006), por exemplo, endossam a visão de que, desde a abolição, não há barreiras que impeçam a ascensão social do negro. O que geraria preconceito seria a pobreza, e não a cor da pele, dada a existência, segundo ele, de um “classismo” no Brasil. Portanto, apesar de nem sempre reconhecida ou discutida, a desigualdade entre negros e brancos prevalece na sociedade brasileira. Daí a importância de se discutir na sala de aula, do ponto de vista das ciências humanas, os conceitos de raça, racismo e a maneira com que se dão as relações raciais em nosso país. Além disso, o ambiente escolar em si, tendo em vista sua importância no processo de socialização entre os pares, desempenha um papel relevante na reprodução de estereótipos raciais presentes na sociedade, sobretudo na forma de gozações e xingamentos (Fazzi, 2006).

RAÇA E RACISMO AO LONGO DA HISTÓRIA Sobre as origens da chamada ideologia racista na história do pensamento, Munanga (2004) afirma que, no século 18, filósofos iluministas, diante de uma diversidade humana recém-descoberta, passaram a utilizar o conceito de raça existente nas ciências naturais para dar conta de explicar tal variedade, tendo argumentos racionais como princípio. A partir de então, utilizou-se o conceito de raça não apenas para classificar a diversidade, mas para hierarquizá-la. Surge assim o racismo, embasado posteriormente na teoria pseudocientífica da raciologia no século 20, e a propagação, para além da academia, de doutrinas que tinham como base a hierarquia das raças. Nessa hierarquização, a raça negra é posicionada como “a mais escura de todas, considerada, por isso, como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e, portanto, a mais sujeita à escravidão e a todas as formas

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A partir da década de 1950 começou a ser desmontada a tese de que existe uma “democracia racial”, onde é possível a ascensão socioeconômica de negros e mulatos da mesma maneira que a de brancos.

de dominação”. (MUNANGA, 2004, p. 21). Contudo, sabe-se, desde o século passado, por meio de estudos na área da genética, que não existem raças biológicas. Experimentos mostraram que dois indivíduos antes considerados de uma mesma raça podem ter patrimônios genéticos mais distantes do que outros dois considerados de raças distintas. Isso não impede, contudo, que encontremos ainda hoje em dia manifestações de racismo. Segundo Munanga (2004), o conceito de raça que impera atualmente é ideológico, pressupondo as relações de poder e dominação implícitas. Assim, o racismo é, segundo Munanga, “uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural” (2004, p. 24). Portanto, a existência do racismo não se dá simplesmente pela crença na existência

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de raças, mas pela hierarquização dessas raças – seja no sentido biológico, como no século 18, seja no sentido ideológico, como contemporaneamente. A prática do racismo está associada à noção de estereótipo, que opera no sentido de representar a diferença racial. Segundo Hall (1997), o estereótipo reduz, essencializa e fixa a noção que temos do outro: na visão de quem estereotipa, o sujeito é reduzido àquilo que o estereótipo diz que ele é. O racismo atua no sentido de criar e legitimar certos estereótipos, portanto. Percebemos o estereótipo em relação ao negro em trabalhos como o de Oracy Nogueira (1985). Fazendo uma ressalva à afirmação de outros autores que acreditavam que a cor da pele seria apenas mais um dos fatores para classificar o status de um indivíduo, Nogueira lembra: “Embora a cor ou as marcas raciais representem apenas um dos componentes do status no Brasil, deve-se atentar para o fato de que a aparência

negroide numa pessoa com outros fatores favoráveis é sempre um fator de incongruência de status” (NOGUEIRA, 1985, p. 22). Trazendo a teoria de Nogueira para a contemporaneidade, basta lembrar-se do caso do morador de rua da cidade de Curitiba, que foi alvo de comentários inconformados nas redes sociais no final de 2012, por se tratar de um rapaz loiro e de olhos azuis morando nas ruas[2]. Nas palavras de Nogueira, “Duvido que um brasileiro branco de camada média para cima não faça diferença entre um pobre preto e outro branco. (...) A miséria é menos surpreendente em negros do que em brancos” (1985, p. 22).

RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E A DISCUSSÃO SOBRE RAÇA No que diz respeito à produção acadêmica sobre as relações raciais no Brasil, em

O racismo tem sua prática associada na noção de estereótipo, que trabalha como uma forma de representar a diferença racial.

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PLANO DE AULA

Algumas teses, dentro da academia, refletem a crença que existia na sociedade brasileira, e no restante do mundo, de que no país não havia preconceito racial.

meados do século 20 no Brasil, a convivência entre brancos e negros era endossada como harmoniosa desde os anos 1930 por autores como Gilberto Freyre (2003) em referência à escravidão, e, posteriormente, se desdobrou na noção de que não havia linha de cor que impedisse a mobilidade social de negros no Brasil, em trabalhos como o de Donald Pierson (1971). Essas teses, na academia, refletem a crença que existia na sociedade (não só brasileira, mas por todo o mundo) de que não havia preconceito racial no país. Notamos que essa crença foi desmontada posteriormente, por meio de estudos que denunciam a existência do preconceito racial e revelam as dificuldades de ascensão do negro na sociedade brasileira, tendo como marco importante parte dos estudos de relações raciais realizados pelo projeto UNESCO entre 1950 e 1953, com trabalhos como o de Florestan Fernandes (1955), por exemplo, que enxergava o preconceito racial como parte do sistema capitalista.

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Tal fato era visível na sociedade como um todo, também, por meio da articulação de movimentos que denunciavam a existência do racismo e lutavam por igualdade de condições. Um marco importante, nesse sentido, seria a formação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, criando o que Telles (2003) chama de “política negra moderna” em contraposição aos movimentos anteriores, que vê como de cunho culturalista, não expressando as demandas por igualdade de condições. Mesmo com a derrubada da noção de paraíso racial, contudo, percebemos mais contemporaneamente que ainda há certa resistência em discutir questões relativas ao preconceito racial no nosso país. Nesse sentido, Telles (2003) trata do temor do governo brasileiro, no final dos anos 1990, de ver desmoronado o mito da democracia racial na Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Outras Formas de Intolerância ocorrida em 2001,

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quando o país inclusive se recusa a sediar a reunião preparatória na América Latina. Esse exemplo mostra a dificuldade que há, ainda no Brasil, de se falar sobre raça e racismo, e reflete a etiqueta do caráter disfarçado da discriminação no país. A referência que Nogueira faz a Frazier em relação a um trabalho do sociólogo nos anos 1930 pode ser transposta para a atualidade: “Há no Brasil pouca discussão a respeito da situação racial ou de cor. Parece haver um entendimento não expresso entre todos os elementos da população para não discutir a situação racial, pelo menos como fenômeno contemporâneo” (NOGUEIRA apud FRAZIER, 1979, p. 42). Hoje, portanto, as teorias raciais não têm mais legitimidade para a ciência. Ainda assim, a raça permanece no pensamento social brasileiro, nas relações sociais, apesar de não ser discutida abertamente como então. Segundo Schwartcz (1995), há hoje uma “filosofia racista” que utiliza da experiência vivida para afirmar que diferentes raças possuem diferentes capacidades - daí o racismo contemporâneo.

SUGESTÕES DE ATIVIDADES Elaboramos aqui duas sugestões de atividades para que o professor possa trabalhar em sala de aula questões sobre estereótipo e racismo.

ATIVIDADE 1 – PRECONCEITO RACIAL E RELAÇÕES DE PODER O objetivo desta atividade é trabalhar com os alunos a questão do preconceito racial dentro das relações de poder em uma sociedade para conceituar preconceito como hierarquização de determinadas diferenças. Os recursos necessários são o documentário Blue Eyed (1996, Bertram Verhaag, 93 minutos), televisor e aparelho de DVD (ou computador e projetor). O tempo para desenvolvimento da atividade são duas aulas de 50 minutos, sendo a primeira para exibição de trecho do documentário e a segunda para discussão. Sugerimos que o professor comece contextualizando rapidamente o documentário, explicando que se trata de um workshop

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Mesmo sem ter nenhuma legitimidade para a ciência, a raça está no pensamento social do brasileiro, apesar de não ser discutida abertamente.

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realizado por uma professora norte-americana que separa pessoas de olhos claros e escuros e submete pessoas de olhos azuis a situações de discriminação e inferiorização por conta dessa característica física. Depois, sugerimos a exibição de trechos selecionados do documentário Blue eyed (Blue Eyed, 1996, Bertram Verhaag, 93 minutos). O tempo de exibição é de 30 minutos. Após a exibição, levantar com os alunos os temas que aparecem no filme para discussão na aula seguinte (5-10 minutos) das seguintes questões: - Discussão de como determinadas características físicas podem ser utilizadas para definir relações de poder. Na dinâmica realizada por Elliot, é utilizada a cor dos olhos, mas poderia ser utilizada qualquer outra característica física ou comportamental. - Discutir como essas relações de poder se reproduzem – no caso do filme, Elliot cria um mito em relação às pessoas de olhos azuis, e dissemina a ideia, dentro do grupo, de que a opinião delas é errada.

- Trabalhar com os alunos a ideia de que as diferenças – sejam elas físicas, culturais, comportamentais, etc. – por si só não geram preconceito: o que gera o preconceito é hierarquizar essas diferenças, valorizá-las de maneira diferente. Mostrar como outros casos de preconceito que vemos na sociedade também derivam da hierarquização das diferenças (preconceito contra homossexuais, por exemplo).

ATIVIDADE 2 – RACISMO NO BRASIL E ESTEREÓTIPO Nesta atividade propomos trabalhar com os alunos a noção de estereótipo, e como os estereótipos relacionados ao negro legitimam o preconceito racial. São necessários artigos de jornal que trazem casos de preconceito racial, e precisamos de uma aula com 50 minutos para desenvolver a proposta. Sugerimos aqui trabalhar com duas matérias: a primeira, recente, sobre cartazes divulgados pela Polícia Militar no município de Ribeirão Preto (SP); a segunda, mais antiga, sobre homem negro espancado por seguranças no estacionamento de um supermercado, acusado de roubar o próprio carro. Os dois textos podem ser acessados pela internet, conforme links indicados no box. Após a leitura dos artigos em grupos de 4 a 5 alunos, que deverá durar dez minutos, propomos a discussão também em grupo das seguintes questões (20 minutos): - O que há de comum entre os dois casos? - Nas duas notícias, que características são associadas ao negro? - Que outras características são associadas ao negro que você já tenha ouvido? Elas são verdadeiras? Por quê? Após a discussão, haverá exposição das ideias de cada grupo para a sala, com discussão mediada pelo professor (20 minutos). Em seguida deverá ser introduzida a noção de “Após a exibição, levantar com os alunos os temas que aparecem no filme, para discussão na aula seguinte (5-10 minutos), em que propõem-se a discussão das seguintes questões.”

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Fotodivulgação: Flickr - André Gustavo Stumpf

PLANO DE AULA

MATÉRIA 1: MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL ACUSA POLÍCIA MILITAR DE ATO RACISTA EM CARTAZ

“Peça publicitária foi afixada em ônibus de Ribeirão Preto e mostra mulher branca observada por negro; polícia vê exagero em denúncia” Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com. br/noticias/geral,mpe-acusa-pm-de-ato-racista-em-cartaz,1513815

MATÉRIA 2: CARREFOUR INDENIZA VÍTIMA DE RACISMO EM OSASCO

“Januário Alves de Santana foi espancado por vigilantes da rede de supermercado em 2009” Disponível em: http://noticias.r7.com/sao -paulo/noticias/carrefour-indeniza-vitimade-racismo-em-osasco-20100319.html

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estereótipo aos alunos: O estereótipo reduz, essencializa e fixa a noção que temos do outro: na visão de quem estereotipa, o sujeito é reduzido àquilo que o estereótipo diz que ele é. O racismo atua no sentido de criar e legitimar certos estereótipos, portanto. Deverão ser apresentados outros estereótipos associados a determinadas características físicas e relativizá-los, a fim de ilustrar melhor a noção de estereótipo. (*) Karina Fasson é cientista social (bacharel e licenciada) pela Universidade de São Paulo (USP) e pósgraduanda em Gestão Pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Trabalha com opinião pública e política e atua como voluntária, desde 2012, no Cursinho Popular Mafalda, como educadora e consultora.

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PLANO DE AULA

RELAÇÕES

RACIAIS

NO BRASIL Questão central nas discussões sobre cidadania no Brasil, as relações raciais precisam ser tema de sala de aula se quisermos progredir neste debate.

T

ENDO EM VISTA O OBJETIVO DESSA SEÇÃO, APRESENTAREMOS AO LEITOR UM PANORAMA REFERENTE ÀS RELAÇÕES RACIAIS E O RACISMO NO BRASIL, ALÉM DE SUGESTÕES DE EXERCÍCIOS PARA SEREM REALIZADOS NAS AULAS DE SOCIOLOGIA. A discussão sobre as relações raciais é nosso país tem grande importância. De acordo com o Censo de 2010, 50,7% da população brasileira se declara preta ou parda. Apesar de formarem, então, o maior segmento popula-

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cional, negros e pardos no Brasil, de modo geral, se encontram em condições socioeconomicas menos favorecidas em relação à população que se declara branca. Exemplo disso está no fato de que o total da população negra e parda ganha o equivalente a 57% do salário da população branca (diferenças são encontradas, inclusive, entre os grupos de 12 anos ou mais de estudo: nesse caso, o salário da população negra é 68% o da população branca).[1] Como veremos, a tese de que no Brasil há uma “democracia racial”, sendo possível a ascensão socioeconomica de negros e mulatos da mesma forma que a de brancos, foi des-

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montada a partir da década de 1950. Ainda assim, no Brasil contemporâneo, vemos que se reproduz o discurso de que não há preconceito racial em nossa sociedade, e isso não se restringe ao senso comum. Livros como o do sociólogo Ali Kamel (2006), por exemplo, endossam a visão de que, desde a abolição, não há barreiras que impeçam a ascensão social do negro. O que geraria preconceito seria a pobreza, e não a cor da pele, dada a existência, segundo ele, de um “classismo” no Brasil. Portanto, apesar de nem sempre reconhecida ou discutida, a desigualdade entre negros e brancos prevalece na sociedade brasileira. Daí a importância de se discutir na sala de aula, do ponto de vista das ciências humanas, os conceitos de raça, racismo e a maneira com que se dão as relações raciais em nosso país. Além disso, o ambiente escolar em si, tendo em vista sua importância no processo de socialização entre os pares, desempenha um papel relevante na reprodução de estereótipos raciais presentes na sociedade, sobretudo na forma de gozações e xingamentos (Fazzi, 2006).

RAÇA E RACISMO AO LONGO DA HISTÓRIA Sobre as origens da chamada ideologia racista na história do pensamento, Munanga (2004) afirma que, no século XVIII, filósofos iluministas, diante de uma diversidade humana recém-descoberta, passaram a utilizar o conceito de raça existente nas ciências naturais para dar conta de explicar tal variedade, tendo argumentos racionais como princípio. A partir de então, utilizou-se o conceito de raça não apenas para classificar a diversidade, mas para hierarquizá-la. Surge assim o racismo, embasado posteriormente na teoria pseudocientífica da raciologia no século XX, e a propagação, para além da academia, de doutrinas que tinham como base a hierarquia das raças. Nessa hierarquização, a raça negra é posicionada como “a mais escura de todas, considerada, por isso, como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e, portanto, a mais

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“Como veremos, a tese de que no Brasil há uma ‘democracia racial’, sendo possível a ascensão socioeconomica de negros e mulatos da mesma forma que a de brancos, foi desmontada a partir da década de 1950.”

sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação”. (MUNANGA, 2004, p.21). Contudo sabe-se, desde o século passado, por meio de estudos na área da genética, que não existem raças biológicas. Experimentos mostraram que dois indivíduos antes considerados de uma mesma raça podem ter patrimônios genéticos mais distantes do que outros dois considerados de raças distintas. Isso não impede, contudo, que encontremos ainda hoje em dia manifestações de racismo. Segundo Munanga (2004), o conceito de raça que impera atualmente é ideológico, pressupondo as relações de poder e dominação implícitas. Assim, o racismo é, segundo Munanga, “uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural” (2004, p. 24). Portanto, a existência do racismo não se dá simplesmen-

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te pela crença na existência de raças, mas pela hierarquização dessas raças – seja no sentido biológico, como no século XVIII, seja no sentido ideológico, como contemporaneamente. A prática do racismo está associada à noção de estereótipo, que opera no sentido de representar a diferença racial. Segundo Hall (1997), o estereótipo reduz, essencializa e fixa a noção que temos do outro: na visão de quem estereotipa, o sujeito é reduzido àquilo que o estereótipo diz que ele é. O racismo atua no sentido de criar e legitimar certos estereótipos, portanto. Percebemos o estereótipo em relação ao negro em trabalhos como o de Oracy Nogueira (1985). Fazendo uma ressalva à afirmação de outros autores que acreditavam que a cor da pele seria apenas mais um dos fatores para classificar o status de um indivíduo, Nogueira lembra: “Embora a cor ou as marcas raciais representem apenas um dos componentes do

status no Brasil, deve-se atentar para o fato de que a aparência negróide numa pessoa com outros fatores favoráveis é sempre um fator de incongruência de status.” (NOGUEIRA, 1985, p. 22). Trazendo a teoria de Nogueira para a contemporaneidade, basta lembrar-se do caso do morador de rua de Curitiba, que foi alvo de comentários inconformados nas redes sociais no final de 2012, por se tratar de um rapaz loiro e de olhos azuis morando nas ruas[2]. Nas palavras de Nogueira, “Duvido que um brasileiro branco de camada média para cima não faça diferença entre um pobre preto e outro branco. (...) A miséria é menos surpreendente em negros do que em brancos” (1985, p. 22).

RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL E A DISCUSSÃO SOBRE RAÇA

“A prática do racismo está associada à noção de estereótipo, que opera no sentido de representar a diferença racial.”

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“Essas teses, na academia, refletem a crença que existia na sociedade (não só brasileira, mas por todo o mundo) de que não havia preconceito racial no país.”

No que diz respeito à produção acadêmica sobre as relações raciais no Brasil, em meados do século XX no Brasil, a convivência entre brancos e negros era endossada como harmoniosa desde os anos 1930 por autores como Gilberto Freyre (2003) em referência à escravidão, e, posteriormente, se desdobrou na noção de que não havia linha de cor de impedisse a mobilidade social de negros no Brasil, em trabalhos como o de Donald Pierson (1971). Essas teses, na academia, refletem a crença que existia na sociedade (não só brasileira, mas por todo o mundo) de que não havia preconceito racial no país. Notamos que essa crença foi desmontada posteriormente, por meio de estudos que denunciam a existência do preconceito racial e revelam as dificuldades de ascensão do negro na sociedade brasileira, tendo como marco importante parte dos estudos de relações raciais realizados pelo projeto UNESCO entre 1950 e 1953, com trabalhos como o de Florestan Fernandes (1955), por exemplo, que

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enxergava o preconceito racial como parte do sistema capitalista. Tal fato era visível na sociedade como um todo, também, por meio da articulação de movimentos que denunciavam a existência do racismo e lutavam por igualdade de condições. Um marco importante, nesse sentido, seria a formação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, criando o que Telles (2003) chama de “política negra moderna” em contraposição aos movimentos anteriores, que vê como de cunho culturalista, não expressando as demandas por igualdade de condições. Mesmo com a derrubada da noção de paraíso racial, contudo, percebemos mais contemporaneamente que ainda há certa resistência em discutir questões relativas ao preconceito racial no nosso país. Nesse sentido, Telles (2003) trata do temor do governo brasileiro, no final dos anos 1990, de ver desmoronado o mito da democracia racial na Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Ou-

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tras Formas de Intolerância ocorrida em 2001, quando o país inclusive se recusa a sediar a reunião preparatória na América Latina. Esse exemplo mostra a dificuldade que há, ainda no Brasil, de se se falar sobre raça e racismo, e reflete a etiqueta do caráter disfarçado da discriminação no país. A referência que Nogueira faz a Frazier em relação a um trabalho do sociólogo nos anos 1930 pode ser transposta para a atualidade: “Há no Brasil pouca discussão a respeito da situação racial ou de cor. Parece haver um entendimento não expresso entre todos os elementos da população para não discutir a situação racial, pelo menos como fenômeno contemporâneo” (NOGUEIRA apud FRAZIER, 1979, p. 42). Hoje, portanto, as teorias raciais não têm mais legitimidade para a ciência. Ainda assim, a raça permanece no pensamento social brasileiro, nas relações sociais, apesar de não ser discutida abertamente como então. Segundo Schwartcz (1995), há hoje uma “filosofia racista” que utiliza da experiência vivida para afirmar que diferentes raças possuem diferentes capacidades - daí o racismo contemporâneo.

SUGESTÕES DE ATIVIDADES Elaboramos aqui duas sugestões de atividades para que o professor possa trabalhar em sala de aula questões sobre estereótipo e racismo.

ATIVIDADE 1 – PRECONCEITO RACIAL E RELAÇÕES DE PODER O objetivo desta atividade é trabalhar com os alunos a questão do preconceito racial dentro das relações de poder em uma sociedade, para conceituar preconceito como hierarquização de determinadas diferenças. Os recursos necessários são o documentário Blue Eyed (1996, Bertram Verhaag, 93 minutos), televisor e aparelho de dvd (ou computador e projetor). O tempo para desenvolvimento da atividade são duas aulas de 50 minutos, sendo a primeira para exibição de trecho do documentário, e a segunda para discussão. Sugerimos que o professor comece

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Nos sistemas Parlamentáristas, a única instituição democraticamente legítima é o Parlamento, e cabe a ele escolher o chefe do governo, no caso o Primeiro Ministro.

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contextualizando rapidamente o documentário, explicando que trata-se de um workshop realizado por uma professora norte-americana, que separa pessoas de olhos claros e escuros e submete pessoas de olhos azuis a situações de discriminação e inferiorização por conta dessa característica física. Depois sugerimos a exibição de trechos selecionados do documentário “Blue eyed” (Blue Eyed, 1996, Bertram Verhaag, 93 minutos). O tempo de exibição é de 30 minutos. Após a exibição, levantar com os alunos os temas que aparecem no filme, para discussão na aula seguinte (5-10 minutos), em que propõem-se a discussão das seguintes questões: - Discussão de como determinadas características físicas podem ser utilizadas para definir relações de poder. Na dinâmica realizada por Elliot, é utilizada a cor dos olhos, mas poderia ser utilizada qualquer outra característica física ou comportamental. - Discutir como essas relações de poder se reproduzem – no caso do filme, Elliot cria

um mito em relação às pessoas de olhos azuis, e dissemina a ideia, dentro do grupo, de que a opinião deles é errada. - Trabalhar com os alunos a ideia de que as diferenças – sejam elas físicas, culturais, comportamentais, etc. - por si só não geram preconceito: o que gera o preconceito é hierarquizar essas diferenças, valorá-las de maneira diferente. Mostrar como outros casos de preconceito que vemos na sociedade também derivam da hierarquização das diferenças (preconceito contra homossexuais, por exemplo).

ATIVIDADE 2 – RACISMO NO BRASIL E ESTEREÓTIPO Nesta atividade propomos trabalhar com os alunos a noção de estereótipo, e como os estereótipos relacionados ao negro legitimam o preconceito racial. São necessários artigos de jornal que trazem casos de preconceito racial e precisamos de uma aula com 50 minutos para desenvolver a proposta. Sugerimos aqui trabalhar com duas matérias: a primeira, recente, sobre cartazes divulgados pela Polícia Militar no município de Ribeirão Preto (SP); a segunda, mais antiga, sobre homem negro espancado por seguranças no estacionamento de um supermercado, acusado de roubar o próprio carro. Os dois textos podem ser acessados pela internet, conforme links indicados no box. Após a leitura dos artigos em grupos de 4 a 5 alunos, que deverá durar dez minutos, propomos a discussão também em grupo das seguintes questões (20 minutos): - O que há de comum entre os dois casos? - Nas duas notícias, que características são associadas ao negro? - Que outras características são associadas ao negro que você já tenha ouvido? Elas são verdadeiras? Por quê? Após a discussão, haverá exposição das ideias de cada grupo para a sala, com discussão mediada pelo professor. (20 minutos). “Após a exibição, levantar com os alunos os temas que aparecem no filme, para discussão na aula seguinte (5-10 minutos), em que propõem-se a discussão das seguintes questões.”

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Fotodivulgação: Flickr - André Gustavo Stumpf

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MATÉRIA 1: MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL ACUSA POLÍCIA MILITAR DE ATO RACISTA EM CARTAZ

“Peça publicitária foi afixada em ônibus de Ribeirão Preto e mostra mulher branca observada por negro; polícia vê exagero em denúncia” Disponível em: http://sao-paulo.estadao. com.br/noticias/geral,mpe-acusa-pm-de-ato-racista-em-cartaz,1513815

MATÉRIA 2: CARREFOUR INDENIZA VÍTIMA DE RACISMO EM OSASCO

“Januário Alves de Santana foi espancado por vigilantes da rede de supermercado em 2009” Disponível em: http://noticias.r7.com/sao -paulo/noticias/carrefour-indeniza-vitimade-racismo-em-osasco-20100319.html

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Em seguida deverá ser introduzida a noção de estereótipo aos alunos: O estereotipo reduz, essencializa e fixa a noção que temos do outro: na visão de quem estereotipa, o sujeito é reduzido àquilo que o estereótipo diz que ele é. O racismo atua no sentido de criar e legitimar certos estereótipos, portanto. Deverão ser apresentados outros estereótipos associados a determinadas características físicas e relativizá-los, a fim de ilustrar melhor a noção de estereótipo. *Karina Fasson é cientista social (bacharel e licenciada) pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-graduanda em Gestão Pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Trabalha com opinião pública e política e atua como voluntária, desde 2012, no Cursinho Popular Mafalda, como educadora e consultora.

FOTO-INSPIRAÇÃO

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.

Nelson Mandela

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TEORIA

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Erving Goffman e sua análise de quadros

Quadros da Experiência Social, o livro de maior fôlego escrito por Goffman, se mostra ferramenta fundamental para compreender a teoria sobre os quadros que orientam a ação social

E

RVING GOFFMAN NASCEU EM ALBERTA, NO CANADÁ, EM 1922, MAS PASSOU A MAIOR PARTE DE SUA VIDA PROFISSIONAL NOS ESTADOS UNIDOS, TENDO MORRIDO NA FILADÉLFIA, EM 1982. É um dos sociólogos mais reconhecidos na atualidade, tendo vários livros traduzidos para o português e reeditados diversas vezes. Porém, seu livro de maior fôlego, Quadros da Experiência Social, ainda é desconhecido de grande parte do público. É neste contexto que se situa este artigo, com o objetivo de desenvolver um debate sobre a referida obra e iluminar como esta se localiza na trajetória profissional de Goffman.

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VIDA ACADÊMICA DE GOFFMAN Goffman iniciou sua trajetória acadêmica demonstrando interesse em química, mas entre 1943 e 1944 começa a se interessar por sociologia. Nesse período, se mudou para Ottawa e trabalhou na indústria cinematográfica no National Film Board, uma agência pública do Canadá que produz e distribui diversos tipos de filmes. Foi neste trabalho que teve a oportunidade de conhecer Dennis Wrong, que incentivou seu interesse por sociologia. Já em 1945, Goffman se matriculou na Universidade de Toronto, onde, sob a orientação de William Hart e Ray Birdwhistell, graduou-se em sociologia e mudouse para a Universidade de Chicago, onde concluiu

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seu mestrado (1949) e doutorado (1953) em sociologia (FINE; MANNING, 2003). Em 1958, Goffman passa a integrar o corpo docente da Universidade da Califórnia após um convite de Herbert Blumer, tendo sido promovido a Professor Titular já em 1962. Ingressou na Universidade da Pensilvânia em 1968, onde foi professor de Antropologia e Sociologia. Além disso, Goffman também foi nomeado como o 73º presidente da American Sociological Association, tendo falecido antes de tomar posse. No Brasil, seu trabalho é conhecido principalmente por três livros, que são internacionalmente chamados de The Big Three: A Representação do Eu na Vida Cotidiana, tendo sua primeira publicação nos Estados Unidos em 1959; Manicômios, Prisões e Conventos, publicado em 1961; e Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, publicado em 1963. Foram esses os livros mais famosos que mantiveram Goffman por mais de 20 anos como o autor mais referido no Social Citation Index (LUCCA, 2009). É neste contexto que a obra Frame Analysis: na essay on the organization of experience foi publicada pela primeira vez, em 1974: Goffman estava então com 52 anos e com muitos livros publicados. Este é o mais extenso e ambicioso trabalho do sociólogo, no qual trabalhou por LIVROS ESCRITOS POR ERVING GOFFMAN TRADUZIDOS PARA O PORTUGUÊS A representação do eu na vida cotidiana – Editora Vozes Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos – Editora Vozes Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada – Editora LTC Manicômios, prisões e conventos – Editora Perspectiva Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise – Editora Vozes Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face – Editora Vozes

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uma década e esperava que se transformasse em sua principal obra. Porém, apesar da importância dada pelo autor a este trabalho, ele não teve a mesma receptividade acadêmica e comercial. Um dos motivos usualmente levantados para a menor receptividade do livro é o fato desta ser muito mais extensa e complexa do que os livros anteriores, se constituindo como uma tentativa de síntese de toda a trajetória goffmaniana. Talvez por esses motivos é que apenas em 2012 tivemos uma tradução da mesma para o português, cujo título é Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise, publicado pela Editora Vozes. Apesar da espera, agora o público brasileiro tem a oportunidade de conhecer um dos mais instigantes trabalhos produzidos por Erving Goffman.

OS QUADROS DA EXPERIÊNCIA SOCIAL Goffman faz uso do conceito de frame, muito utilizado na linguagem cinematográfica, a fim de compreender a dimensão relacional do significado, focando-se nas formas como os atores organizam sua experiência. Afirma que tomou o conceito emprestado de Gregory Bateson, mas muito provavelmente sua experiência no National Film Board também influenciou o uso desse e de demais conceitos oriundos do cinema para melhor compreender

TEORIA

a sociedade. Nesse sentido, Goffman define a forma que se utilizará do conceito de frame, traduzido para o português como quadro. Segundo o autor (GOFFMAN, 2012, p. 307): “Em vista da compreensão que eles têm daquilo que está acontecendo, os indivíduos adaptam suas ações a esta compreensão e em geral descobrem que o mundo em curso dá sustentação a essa adaptação. Designarei estas premissas organizacionais – apoiadas tanto na mente quanto na atividade – como quadro da atividade.” Para Goffman, o quadro utilizado pelos atores não organiza apenas o sentido que estes dão à sua experiência, mas também o envolvimento dos mesmos. Porém, o autor também ressalta que, mesmo no plano das interações face a face, as instituições têm grande influência no comportamento dos atores, sendo importante compreender a relação do quadro com seu mundo circundante. Nesse sentido, um quadro é um conjunto de perspectivas que organizam experiências e orientam as ações de indivíduos, grupos e sociedades, já que a forma de enquadrar determinadas questões não são problemáticas individuais, mas típicas de grupos, que influenciam o indivíduo a enquadrar tais questões da mesma maneira que fazem seus pares. Assim, a forma como o ator enquadra suas atividades influencia as maneiras possíveis do mesmo organizar, viver e compreender suas experiências. Porém, as possibilidades de enquadramento não são únicas ou fixas, pois qualquer experiência pode ser vista a partir de vários tipos diferentes de quadros, que se relacionam uns com os outros de diversas formas. Além disso, Goffman afirma que a organização da experiência a partir dos quadros existentes se relaciona com as percepções das pessoas envolvidas em cada uma das situações produzidas, evidenciando a dimensão relacional do significado. É este o contexto que permite ao autor compreender a relação das aparências e desempenhos com as realidades compreendidas pelos atores, construindo um diálogo com o conceito de definição da situação. A primeira utilização deste conceito ocorre em um texto de William e Dorothy Thomas: “se os homens definem as

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De acordo com Goffman, o quadro que os atores utilizam não só organiza o sentido que eles dão às suas próprias experiências, mas ao seu envolvimento também.

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AS METÁFORAS GOFFMANIANAS Uma das principais preocupações de Erving Goffman foca-se no estudo da interação face a face, esforçando-se por definir conceitos relativos à copresença e suas consequências. Para trabalhar esse aspecto, o autor utiliza diversas metáforas, como a de quadros e de enquadramento, que advém do cinema. Goffman mobiliza diversas outras metáforas, oriundas de outros contextos: Metáforas relacionadas à dramaturgia: Goffman argumenta que as interações face a face podem ser encaradas a partir da ideia de performance/representação, onde há cenários, palcos, atores e público. O indivíduo, segundo Goffman, representa diversos “eus” a depender do local e da situação em que esteja, bem como dos seus objetivos durante a interação. Metáforas relacionadas ao jogo: ao utilizar tais metáforas, Goffman quer salientar como os indivíduos tentam influenciar a impressão de terceiros durante a interação, controlando informações pessoais. Nesse processo, pode-se ganhar ou perder, ou seja, alcançar ou não os objetivos na interação, e é possível exibir diversos atributos respeitados socialmente, como inteligência, coragem, simpatia, etc. Metáforas relacionadas ao ritual e às cerimônias: para Goffman, a interação pode ser compreendida como uma série de ritos e regras cerimoniais que visam articular a consideração do outro e de si.

situações como reais, elas serão reais em suas consequências” (THOMAS e THOMAS, 1938, p. 572). Goffman (2009; 2012) também lança mão desse conceito, afirmando que se trata de um processo social: “Em geral, as definições da situação projetadas pelos diferentes participantes são suficientemente harmoniosas a ponto de não ocorrer uma franca contradição” (GOFFMAN, 2009, 18). Ou seja, os envolvidos na interação não criam definições de situação, mas, ao contrário, avaliam corretamente o que a situação deveria ser e usualmente agem de acordo com o que é esperado pelos outros participantes da interação. É neste contexto que Goffman argumenta que a definição da situação é uma prática coletiva, e, portanto, a unidade analítica não é o indivíduo, mas suas relações.

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Assim, sendo as relações sociais o foco de estudos que objetivem compreender as definições das situações existentes, torna-se mais explícito os padrões de comportamento que usualmente ocorrem nas interações, já que as diferentes possibilidades de definir uma mesma situação são perpassadas por relações de poder, pois algumas definições da situação são consideradas mais legítimas do que outras. Como afirma Goffman (2012, p. 34): “Pressuponho que as definições de uma situação são elaboradas de acordo com os princípios de organização que governam os acontecimentos – pelo menos os sociais – e nosso envolvimento subjetivo neles; quadro é a palavra que uso para me referir a esses elementos básicos que sou capaz de identificar”. Em resumo, a relação entre a análise de quadros goffmaniana e a definição da situação

TEORIA

proposta por Thomas é sintetizada por Gilberto Velho (2008, p. 147): “A questão condutora de Goffman em Frame Analysis é ‘o que está acontecendo aqui’ (what is it that’s going on here). Trata-se da busca de frames que sustentem a definição de situação como aquela proposta por William Thomas e elaborada por Schutz, por sua vez acompanhando Wiliam James. Para Goffman, era importante não só reconhecer a definição de situação como real, mas também verificar como se chegou a ela e, sobretudo, identificar os frames que possibilitam ou viabilizam diferentes definições.”

OS DIVERSOS TIPOS DE QUADROS Dada a existência de vários quadros para compreender a experiência, que têm uma existência latente para o ator, é importante compreender como os mesmos são mobilizados por este de acordo com o contexto vivido. Assim, Goffman define diversos tipos de quadros, que permitem experiências distintas a quem os instrumentaliza. O ato de atribuir significado a algo que em um primeiro momento estaria desprovido de significação, de dar sentido a algo sem a necessidade de recorrer a outros enquadramentos, é nomeado por Goffman de esquema primário. Segundo o autor, existem dois grandes grupos de esquemas primários, os naturais e os sociais, sendo os primeiros de caráter biológicos, sem interferências humanas, enquanto os segundos explicam os acontecimentos a partir justamente das intervenções dos indivíduos. Segundo o próprio Goffman (201, p. 49): “Resumindo: tendemos, portanto, a perceber os acontecimentos em termos de esquemas primários, e o tipo de esquema que utilizamos proporciona uma maneira de descrever o acontecimento ao qual ele é aplicado. Quando o sol se levanta, temos um acontecimento natural; quando se desce a persiana para impedir a entrada de luz, temos uma ação guiada”. Assim, vale lembrar diferentes contextos sociais e históricos que tendem a gerar diferentes repertórios de esquemas primários (NUNES, 1993). Os esquemas primários podem ser transformados, recebendo, como nomeia

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Um exemplo de acontecimento natural é o nascer do sol, enquanto o ato de descer a persiana para impedir que sua luz entre é um exemplo de ação guiada.

TEORIA

Goffman, novas laminações, ou seja, novas camadas de significados. Porém, a existência de laminações não significa a perda de sentido do esquema primário, mas, ao contrário, o núcleo do quadro continua sendo o acontecimento ao qual refere-se à laminação. Assim, a laminação é um processo no qual um esquema primário é visto como modelo para criarem-se diferentes tipos de cópias adaptadas. Tais laminações podem ser de dois tipos. A primeira é de tonalização, ou seja, quando os participantes de uma atividade reconhecem que está em curso uma alteração sistemática de um esquema primário, por exemplo, quando se imita alguém em tom de brincadeira. Assim, a tonalização altera ligeiramente uma atividade prática, mas modifica totalmente aquilo que os participantes falarão da mesma atividade. Ou seja, se o indivíduo afirma estar acontecendo

uma briga no esquema primário, ele pode afirmar que está ocorrendo uma luta esportiva, um treinamento, uma interpretação teatral ou uma brincadeira, no caso de tonalizações. A segunda laminação é de maquinação, cujo objetivo é o esforço intencional de induzir uma falsa convicção, uma manipulação de um enquadramento, produzindo o engano de outros indivíduos. Dessa forma, ao contrário da tonalização, quando a maquinação é descoberta, acarreta-se em descrédito para os maquinadores. Porém, nem toda maquinação é considerada má em si mesma, por exemplo, quando se tem a intenção de dar uma “lição moral” ou quando se faz experimentos nos quais os atores não podem saber quais atividades estão em curso. As laminações citadas evidenciam os limites de um enquadramento e a

Nem toda maquinação pode ser considerada má em si mesma, como, por exemplo, quando existe a intenção de dar uma “lição de moral” ou ao fazer um experimento onde os atores não podem saber das atividades que estão ocorrendo.

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TEORIA

GOFFMAN E O INTERACIONISMO SIMBÓLICO O interacionismo simbólico é uma abordagem que compreende as interações humanas como um dos principais objetos da sociologia. O termo, criado por Hebert Blumer, objetiva compreender a influência, durante a interação social, das atribuições de significados construídas pelo indivíduo a partir de diversos processos interpretativos. Assim, caberia à sociologia compreender os processos e os arranjos que os indivíduos utilizam para se colocarem em interação, bem como os significados que emergem durante as interações. Tal abordagem é usualmente vinculada a pesquisadores da Escola de Chicago, que é o nome atribuído a uma tradição de pesquisa formada por professores e pesquisadores da Universidade de Chicago que surge a partir dos anos 1920. Uma das principais características dessa escola para a sociologia é a rejeição das explicações totalizantes e estruturais, muito em voga na época, fortalecendo uma nova forma de teoria social com ênfase nas relações face a face e no trabalho empírico. Apesar de essa denominação aparentar heterogeneidade dentre os pesquisadores, é fato que estes tiveram objetivos de pesquisa muito diversos. O que usualmente é visto como o unificador desse grupo é o modo específico de fazer pesquisa, com a valorização da pesquisa de campo se opondo a discussões eminentemente teóricas. Nesse sentido, apesar dos trabalhos de Goffman se distanciarem de muitos outros autores vinculados à Escola de Chicago, tal preocupação com o processo de pesquisa de campo acaba por vincular o autor a essa escola. Alguns dos principais expoentes da Escola de Chicago são Robert Park (1944-1944), Louis Wirth (18971952), Everett Hughes (1897-1983), William I. Thomas (1863-1947) e Howard Becker (1928 -).

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vulnerabilidade da experiência enquadrada. Assim, o que delimita o sentido de uma faixa de atividade é o enquadramento utilizado pelo ator participante. Como ressalta Goffman, existem quadros dentro de quadros dentro de quadros, e até os maiores esforços para fugir de enquadramentos são constrangidos por outros quadros: “Em suma, sempre que vestimos um uniforme, provavelmente vestimos uma pele. Pertence à natureza do quadro estabelecer o limite para seu próprio reenquadramento” (GOFFMAN, 2012, p. 691). Obviamente as 720 páginas de Quadros da Experiência Social complexificam as poucas categorias expostas aqui, além de construir, aprofundar e exemplificar diversos outros pontos levantados por Erving Goffman em sua análise de quadros. O objetivo do trabalho apresentado aqui é o de apenas introduzir os conceitos mais importantes definidos pelo autor e situar esta obra em sua trajetória intelectual. Dessa forma, espera-se que essa introdução à teoria goffmaniana dos quadros consiga demonstrar como esta pode ser um recurso iluminador para a investigação sociológica da vida cotidiana, além de possibilitar repensar o ofício de sociólogo e nossos caminhos, tanto teóricos quanto metodológicos. (*) Juliana Vinuto é graduada em ciências sociais e mestranda em sociologia, ambos pela Universidade de São Paulo. Também faz parte do NADIR-USP (Núcleo de Antropologia do Direito da USP).

ENTREVISTA

UMA

ANTROPÓLOGA À FRENTE DA

GUARDA 33

ENTREVISTA

Em abril deste ano, a antropóloga Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer passou a responder pela Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária da USP, anteriormente ocupada pelo Coronel reformado Luiz de Castro Junior.

N

OS ÚLTIMOS ANOS, OS PROBLEMAS ENVOLVENDO SEGURANÇA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) ESTIVERAM PRESENTES NA MÍDIA. Foram casos de estupro, tanto na capital quanto no interior, situações de roubos e um episódio de assassinato no estacionamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEAUSP), em 2011. Todavia, parte da comunidade universitária é contrária à presença da Polícia Militar no campus, denunciando abuso e repressão por parte de seus agentes. Esse é o tamanho do desafio que a antropóloga Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer tem de enfrentar desde que começou a responder pela Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária da USP: zelar pela segurança pessoal da comunidade universitária e, ao mesmo tempo, preservar o diálogo e os princípios democráticos. Ana Lúcia passou a responder pela Superintendência em abril deste ano, sendo nomeada pelo atual Reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago. Substituiu o Coronel reformado Luiz de Castro Junior, que foi superintendente na gestão do Ex-Reitor João Grandino Rodas. Além de cientista social e antropóloga pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Ana Lúcia é formada em Direito pelo Largo de São Francisco. Desde 2003, é professora do Departamento de Antropologia da USP e coordena o Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (NADIRUSP). É também membro da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) e pesquisadora sênior do Núcleo de Estudos da Violência (NEV). A sua nomeação para responder pela Superin-

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ENTREVISTA

tendência de Prevenção e Proteção Universitária da USP, substituindo Luiz de Castro Junior, policial militar reformado, indica avanços democráticos da gestão de Marco Antonio Zago em relação à do Ex-Reitor João Grandino Rodas? Penso que minha nomeação sinaliza outra proposta de compreender o que é segurança. Claro que segurança envolve reflexões sobre o papel da polícia na sociedade civil e o tipo de relação que ela deve ter com os cidadãos, mas vai muito além disto, pois também diz respeito a regras mínimas e consensos sobre o que é bem-estar, convivência, respeito, dignidade. Isso ultrapassa questões que envolvem repressão, “Penso que minha nomeação sinaliza outra proposta de compreender o que é segurança.”

Fotodivulgação: WikimediaCommons - Gaf.arq

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punição, ou mesmo prevenção policial. Como estão sendo os primeiros momentos de trabalho no novo cargo? Estou tomando conhecimento da situação porque passei a responder pela Superintendência em 15 de abril. Estou adotando uma estratégia antropológica, que é ouvir os funcionários da Superintendência para, a partir de seus pontos de vista, entender como ela está estruturada. Até agora privilegiei conversar com as lideranças das três equipes e com alguns agentes da Guarda Universitária que fazem rodízio durante as 24 horas do dia. Conversei também com o pessoal administrativo, com um colega que faz a interface com os campi do interior, pois a Superintendência abrange todos os campi da Universidade. Mas é claro que não estou meramente na posição de antropóloga. Também ocupo uma posição de direção na própria instituição que me proponho a conhecer, e esta é uma posição implicada e complicada. Essa estratégia de ouvir as pessoas e perceber seus distintos pontos de vista, alguns bastante conflituosos entre si, está me permitindo montar um mosaico de opiniões, que ainda está incompleto. Todavia, já foi possível dar início a um grupo de trabalho interno, que eu espero que se torne um Conselho Deliberativo. Até o momento, a Superintendência obedece a um organograma muito centralizado e hierarquizado. Entre uma pequena cúpula e a base faltam canais de comunicação e de decisão. Assim, a primeira medida, que já está em andamento, é rever esse organograma, sem ilusão de que ficará perfeito. Acredito que vários dos que trabalham na Superintendência convergem nesse aspecto: é preciso mudar a estrutura de poder interna. Eu também tenho a missão, que foi me passada pelo Reitor, de montar um outro grupo de trabalho, que estou chamando de Grupo de Trabalho Externo. Espero que, futuramente, ele se torne um Conselho Consultivo. Esse grupo está se formando e terá como missão trazer informações sobre o que se está pensando em outros campi universitários a respeito de segurança, convivência, modos de ampliação do debate e de participação da comunidade. Além disso, também pretendo fazer uma pesquisa de opinião sobre questões que envolvem a segurança dentro dos campi. Acredito que uma pesquisa amadurecida, que ouça vários setores da Universidade, pode ser muito importante

ENTREVISTA

para subsidiar as ações da Superintendência. Há alguma relação entre a segurança da Cidade Universitária com o seu entorno, a partir da temática da segurança pública? Sem dúvida a Universidade está integrada à cidade. Por exemplo, moradores de bairros e comunidades vizinhas frequentam o campus por diversos motivos, como estudar, trabalhar ou ser atendidos nos serviços oferecidos pela Universidade. Há também aqueles os que vêm para cometer furtos e roubos, mas esse não é um problema exclusivo da Universidade. Os problemas de segurança universitários têm que ser pensados levando-se em conta as especificidades de um campus, onde majoritariamente circulam pessoas da comunidade universitária, com seus horários de aula, equipamentos a ser resguardados, etc., mas há muito em um campus que é típico de uma cidade. É importante pensar quais são as regras básicas de convivência dentro do campus e como ajustamos essas regras aos princípios de uma convivência cidadã, o que também inclui pensar uma polícia cidadã. Portanto, sem dúvida, a Universidade faz parte da cidade e deve ser pensada como tal. A Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária da USP já decidiu como irá lidar com algumas questões delicadas, como a cultura do consumo da maconha no campus e a rejeição por uma parte dos estudantes à entrada de policiais militares no campus? Queremos trabalhar a partir das informações e do diálogo com os grupos de trabalho que estão se formando. Essas são questões de cunho interdisciplinar, que não envolvem apenas a polícia e a repressão. O uso de drogas é algo que existe em todas as Universidades do mundo, portanto é algo que deve ser pensado a partir dessa complexidade, pois faz parte de uma linguagem, e temos que compreender o que isso comunica. Essa é a minha postura e a postura que vou tentar implementar nas discussões que envolvam drogas na Universidade, ou seja, tentaremos compreender a complexidade das variáveis envolvidas e lidar da melhor maneira possível com o bem-estar de todos. Essa questão não é um problema apenas do campus, e, aliás, não é sequer uma questão meramente contemporânea, pois ela faz parte da

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“POR EXEMPLO, MORADORES DE BAIRROS E COMUNIDADES VIZINHAS FREQUENTAM O CAMPUS POR DIVERSOS MOTIVOS, COMO ESTUDAR, TRABALHAR OU SER ATENDIDOS NOS SERVIÇOS OFERECIDOS PELA UNIVERSIDADE.”

Fotodivulgação: WikimediaCommons - Hamilton B Furtado

ENTREVISTA

vida em sociedade. Outra questão recorrente na Universidade durante a gestão do Ex-Reitor João Grandino Rodas foram as ocupações da reitoria como forma de protesto por parte dos estudantes, que tiveram como resposta a obtenção de ordem judicial para a PM realizar a desocupação. A Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária da USP tem a possibilidade de intervir nestas questões ou as prerrogativas são exclusivas da reitoria? A Superintendência responde à Reitoria, então é claro que a voz do Reitor é uma voz de comando. Eu entendo que o Reitor, ao me indicar para essa função, espera que questões conflituosas possam ser resolvidas de forma negociada. A aposta é que, por meio do diálogo e de negociações, consigamos enfrentar questões mais difíceis, e, somente esgotados todos os meios de fazer composições, outras medidas sejam tomadas, até porque não estamos livres de leis. Todos os dirigentes da

Universidade, embora haja autonomia universitária, também respondem ao Poder Judiciário diante de problemas que envolvem a depredação do patrimônio ou danos pessoais entre usuários dos campi. Chega um ponto dos conflitos em que é preciso, eventualmente, fazer uso de medidas que escapam ao âmbito universitário. Mas ressalto que o melhor antídoto contra a violência é a abertura para o diálogo, pois ele nos obriga a pensar enquanto a violência, embora seja uma linguagem, dificulta as reflexões e tomadas de decisões ponderadas. Recentemente, o Reitor Marco Antonio Zago enviou uma carta aberta à comunidade universitária expondo os problemas orçamentários da USP. Esta questão irá interferir no orçamento e no funcionamento da Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária? Isso afeta a toda a Universidade, e obviamente afetará a Superintendência. Como ela presta serviços essenciais, iremos negociar para que nada de relevante

“Mas ressalto que o melhor antídoto contra a violência é a abertura para o diálogo, pois ele nos obriga a pensar enquanto a violência, embora seja uma linguagem, dificulta as reflexões e tomadas de decisões ponderadas.”

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Fotodivulgação: Flickr - Gaf.arq

ENTREVISTA

“A Antropologia me possibilita compreender outros pontos de vista e como as relações profissionais estão permeadas por questões como noções de respeito e dignidade e reconhecimento.”

falte, desde coisas mais domésticas, como substituição dos uniformes da guarda universitária, manutenção das viaturas que fazem as rondas, até outras mais estruturais, como a revisão das guaritas de segurança, atualmente insalubres e mal posicionadas. A sua área de pesquisa, a Antropologia do Direito, pode ajudar a pensar a atividade da Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária? Já está me ajudando imensamente. A Antropologia do Direito compreende o Direito

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como algo que ultrapassa situações judicializadas e alcança todo um conjunto de regras de convivência. Assim, vejo que é preciso compreender quais são as regras que já estão atuando na Superintendência, ou aquelas que não estão fluindo devido a problemas de comunicação. Por isso ouvi muitas pessoas, fazendo o que seria um trabalho de entrevistas em trabalho de campo. A Antropologia me possibilita compreender outros pontos de vista e como as relações profissionais estão permeadas por questões como noções de respeito e dignidade e reconhecimento. Por isso estou convencida de que gestões centralizadoras e autoritárias criam um ambiente de trabalho desfavorável e disfuncional. Elas produzem a sensação de que os saberes que alguns poucos membros do grupo detêm importam mais do que as experiências da maioria. Eu pretendo mostrar, e acredito que já estou mostrando a todos que atuam na Superintendência, que eles detêm um saber fundamental e, em muitos casos, bem mais embasado que o meu. O que me compete, essencialmente, é articular aspectos desse saber e facilitar sua fluidez. As pessoas da Guarda Universitária, por exemplo, têm um grande saber acumulado e constroem modelos sobre quem são os estudantes e como lidar com eles. Podemos até não concordar com alguns desses modelos, mas temos que conhecê-los. Há pessoas na Guarda abertas a uma proposta democrática de convivência, já outras são mais militarizadas. Mas, se não conhecermos todas essas posições, como iremos trabalhar com elas? Por fim, a Antropologia também ajuda a compreender questões relacionadas à identidade dos grupos. Por exemplo, há certa rejeição por parte dos guardas universitários a ser chamados de agentes de segurança. Alguns sentem que é importante recuperar a identidade de guardas, e seria um absurdo que eu, como antropóloga, interferisse nisso. O que me cabe é compreender o que representa para eles serem guardas universitários e, então, colocar em discussão eventuais opiniões distintas no interior do próprio grupo. Devemos afinar divergências internas, não para que elas sumam, mas para que a heterogeneidade não traga cisões que impeçam a convivência. (*) Juliana Vinuto é cientista social e mestranda em Sociologia pela USP. (**) Maysa Rodrigues é jornalista, cientista social e mestranda em Sociologia pela USP.

DEBATE

e v e D

a m u r e v ha

o ã ç a z i r li ita

m s e d

polícia brasileira ? da

Instaurada em 1969, durante o Regime Militar, a Polícia Militar continua sendo a principal força armada do país. Enquanto para alguns a sua dissolução é urgente se queremos uma polícia mais próxima da população, para outros a desmilitarização não resolveria o problema do abuso policial, além de causar um problema de gerência dentro das forças policiais

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SIM – NÃO FAZ SENTIDO MANTERMOS UMA POLÍCIA CRIADA PARA PROTEGER O ESTADO E NÃO A SOCIEDADE Ana Maura Tomesani*

Creio que antes de expor argumentos pródesmilitarização, talvez seja importante resgatar as razões que fazem emergir este debate tão polêmico: a necessidade premente de reformas

DEBATE

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fragmentadas. Segundo porque esta era a polícia que estava nas ruas. Diferentemente dos membros das Forças Armadas, que viviam aquartelados, a Força Pública realizava patrulhas, conhecia a comunidade e fazia parte dela. E isso era precioso para o regime. A recém-criada Polícia Militar tinha o objetivo de ser os

“E AS AÇÕES RECENTES – E DESMEDIDAS – DA POLÍCIA MILITAR COM RELAÇÃO AOS PROTESTOS CONTRA A COPA DO MUNDO NÃO PODERIAM OFERECER MELHOR ILUSTRAÇÃO.”

Fotodivulgação: Flickr - andresumida

profundas na polícia. Vale destacar que este não é um debate recente e nem exclusivamente brasileiro. Vários trabalhos demonstram que a reabertura política nos países do continente latino-americano se deu de forma mais ou menos similar. Houve, de imediato, a extinção dos órgãos oficiais de repressão do regime autoritário; esta ação, porém, não foi acompanhada da esperada transformação da cultura organizacional das instituições policiais. Ou seja, existe o reconhecimento formal dos direitos à vida, à integridade física e à liberdade de expressão, bem como houve também a criminalização da tortura e da discriminação racial e de classe. Contudo, a violência policial continua muito presente nestes países de democracia recente. Isso não é grande novidade, as manchetes diárias não nos deixam mentir. E as ações recentes – e desmedidas - da polícia militar com relação aos protestos contra a Copa do Mundo não poderiam oferecer melhor ilustração. A questão é: em que a desmilitarização colabora para o enfrentamento destes desafios? Para responder a esta questão, vamos resgatar brevemente as razões que levaram à militarização das polícias estaduais. A polícia militarizada surgiu nos estados em 1969, mediante o Decreto-Lei federal 667/69, fundamentado no Ato Institucional nº 5, assinado pelo presidente Costa e Silva. Até então, o trabalho policial era realizado pelas delegacias de polícia, que tinham à sua disposição um destacamento armado, que era a Força Pública. A Força Pública era uma espécie de reserva do Exército, muito embora não houvesse nenhum dispositivo legal que a tratasse desta forma, e seguia, em cada município, as orientações do delegado ao qual estava subordinada, para a realização de rondas e apreensões. O AI-5 tornou estas polícias oficialmente subordinadas ao Exército, e elas deixaram então de trabalhar como apoio dos delegados locais - que constituíam a maior autoridade policial local - para receberem ordens da recém-criada Inspetoria Geral das Polícias Militares. Elas tiveram treinamento militar e passaram a se enquadrar dentro dos padrões da hierarquia das Forças Armadas. Não é difícil entender a razão pela qual o governo à época apostou nesta ideia. Primeiramente, considerando que se tratava de um governo militar e autoritário, era preciso ter o controle direto das forças de segurança do país, que se encontravam

DEBATE

olhos do poder ditatorial nos limites do quarteirão, do bairro, do município. Era ela a responsável por identificar e desconcertar quaisquer tentativas de contravenção, já que estava mais próxima das atividades do dia a dia dos cidadãos – o que lhes conferia enorme poder de vigilância. A PM surgiu, portanto, com o claro intuito de servir aos propósitos do Regime Militar. Ela não tinha finalidade de proteger os cidadãos. Ela tinha a finalidade de defender o Estado, em nome de um suposto “interesse nacional”, dos “contrarrevolucionários” subversivos. Ela era o sustentáculo local sobre o qual se apoiava o governo federal. Quais os riscos de manter atualmente uma polícia militarizada nos moldes descritos acima? Exatamente aqueles que observamos hoje nas PMs brasileiras: uma polícia que se vê exclusivamente como uma força de repressão, que reluta em aceitar e mesmo entender a importância do controle externo, que se vê no direito de torturar e matar com o respaldo da

Justiça Militar - outra excrescência do período dos generais - que garante a elas a impunidade ou a certeza de penas leves, não condizentes com os crimes praticados. Em resumo, uma polícia que não protege o cidadão e que continua buscando, de maneira doentia, a “guerra” a enfrentar, o “inimigo” a abater – que curiosamente (ou não) é quase sempre negro e morador de periferia. A polícia militar dos anos sombrios de ditadura invocava a segurança nacional para exercer seu poder repressivo. E hoje, em nome de que ou de quem age esta polícia? O perigo de se treinar uma polícia para uma guerra urbana é o de que esta polícia buscará o amparo de um discurso belicoso para legitimar sua ação, um discurso que “pregue” a existência de um “inimigo interno” que ameaça a ordem e que precisa, portanto, ser aniquilado. Como se trata de uma polícia formada para servir quem está acima e não ao lado, os superiores e não o cidadão comum,

Fotodivulgação: Flickr - Rafa.ela Ely

A polícia militar surgiu com o objetivo claro de servir aos propósitos do Regime Militar,e por isso não tinha a finalidade de proteger os cidadãos.

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DEBATE

(*) Ana Maura Tomesani graduou-se em Ciências Sociais, fez mestrado em Ciência Política e é doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Centro Ibero-Americano da USP (CIBA) e estuda a Cooperação Internacional para a Segurança Pública na América Latina.

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“PESQUISA DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ANO PASSADO DEMONSTROU QUE 70% DOS BRASILEIROS NÃO CONFIAM NA POLÍCIA.” Fotodivulgação: Flickr - Paulisson Miura

esta polícia vai comprar, no limite, o discurso do “inimigo” criado pelo Estado. O resultado disso é uma polícia que defende os interesses do Estado, ainda que estes interesses estejam em desacordo com os da população que, em tese, ela deveria proteger. Semelhanças com o que ocorria no período da ditadura militar não constituem mera coincidência. O resultado disso é a ausência de confiança nas instituições policiais. O cidadão comum teme esta polícia e não chancela as suas ações. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano passado demonstrou que 70% dos brasileiros não confiam na polícia. A mesma instituição informou também que a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo – 5 cidadãos são mortos por dia pelas forças nacionais de segurança. Em pesquisa recente, a Anistia Internacional (2014) mostrou que 80% dos brasileiros creem que seriam torturados caso fossem detidos pela polícia por qualquer razão. Taxas estarrecedoras, que evidenciam a imagem da polícia como violenta e arbitrária, contribuindo para o descrédito da instituição. Nós não precisamos desta polícia. Segundo Bayley, um estudioso da atividade policial, o que define uma boa polícia é a capacidade de atender aos anseios da coletividade que a legitima e da qual emana seu poder. Em outras palavras, a boa polícia é aquela que serve bem aos seus cidadãos. Arrisco-me a dizer que o problema da PM é estrutural e que a natureza militarizada de suas atividades impede que ela seja capaz de dialogar com a sociedade e de ver cidadãos como iguais. Não, não sou ingênua a ponto de imaginar que desmilitarizar as polícias acabará com todos os problemas. Será um longo processo até atingirmos patamares que consideramos adequados para uma polícia democratizada e respeitadora dos Direitos Humanos. Mas acredito fortemente que a desmilitarização seja um ponto crucial e incontornável na reforma desta instituição.

DEBATE

Samira Bueno*

Desde as manifestações que tomaram as ruas de diversos estados brasileiros no ano passado, o tema da desmilitarização das polícias tem sido objeto de discussão da população, em muito derivado da incapacidade das polícias administrarem demandas sociais legítimas nas ruas. Na ocasião, uma série de agressões e abusos foi documentada pela imprensa e pelos movimentos sociais, de tal forma que o debate sobre PEC-51 veio à tona. Em linhas gerais, a emenda constitucional PEC-51, proposta no ano de 2013 pelo senador Lindbergh Farias (PT), propõe uma ampla reforma das polícias brasileiras, cujas mudanças mais polêmicas são a desmilitarização das polícias militares, a criação de polícias de ciclo completo (estabelecimento de forças policiais que sejam responsáveis pelas tarefas de policiamento ostensivo e investigação criminal, dando fim à divisão entre polícia civil e militar) e carreira única (apenas uma porta de entrada e possibilidade de ascensão dentro da carreira). Pelas mudanças propostas, a PEC-51 tem sido frequentemente chamada de PEC da desmilitarização, embora inclua em sua redação uma série de outras mudanças no modelo de organização da segurança pública brasileira. Não há dúvida de que o modelo de segurança pública brasileiro está falido e que necessitamos de reformas profundas urgentes, e o número de pessoas mortas pela ação das polícias é uma das evidências desta falência. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2012 ao menos 1.895 pessoas foram mortas por policiais civis e militares em serviço, nas ocorrências comumente chamadas como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”. “Ao menos”, pois o estudo destaca que na maior parte dos estados brasileiros esta ocorrência não é computada de forma adequada e sistemática, e, portanto, os números certamente estão subestimados. Ainda que haja uma subnotificação, a informação é alarmante: cinco pessoas morrem todos os dias, vítimas da ação policial.

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Contudo, se estamos diante de um quadro grave que ameaça a existência do Estado Democrático de Direito e viola direitos fundamentais, é um equívoco pensar que a desmilitarização das polícias é a panaceia para os problemas relacionados à violência policial no Brasil. Não estou aqui negando os efeitos perversos do processo de excessiva militarização, que criou em muitos casos forças policiais insuladas em suas próprias crenças e valores, refratárias ao controle externo e formadas a partir de um paradigma de combate ao inimigo, e não de proteção ao cidadão. Argumento, porém, que este problema não deriva exclusivamente do processo de militarização pelos quais passaram as polícias estaduais brasileiras.

Fotodivulgação: Flickr - pagina3

NÃO – A DESMILITARIZAÇÃO SOZINHA NÃO É CAPAZ DE ALTERAR OS ABUSOS POLICIAIS E PODERIA TORNAR INGOVERNÁVEL AS FORÇAS POLICIAIS

Após as manifestações do ano passado, a desmilitarização das polícias é um dos objetos de maior discussão da população devido à percepção da dificuldade das polícias em administrar as demandas sociais legítimas nas ruas.

DEBATE

França, com a Germanderie, e Itália, Espanha e Chile, com os carabineiros, adotaram o modelo militar de policiamento como resposta ao momento político, quando de sua criação. Mesmo a polícia inglesa, considerada modelo de corporação civil, foi organizada com base em paradigma militar, tendo como primeiro chefe de polícia um oficial do exército britânico. O que diferencia as nossas polícias militares A compreensão desse padrão autoritário implica no reconhecimento da violência policial como fenômeno multicasual, que reflete na formação da sociedade brasileira.

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das acima citadas é seu padrão de atuação que, mesmo após 30 anos de democracia, mantémse violento e produzindo muitas mortes. Compreender esse padrão marcadamente autoritário implica reconhecer a violência policial como fenômeno multicausal, refletindo sobre o processo de formação da sociedade brasileira. Autores clássicos do pensamento social brasileiro, com destaque para Sérgio Buarque de Holanda (1958), Gilberto Freyre (1933) e Victor Nunes Leal (2012), entre outros, já descreviam em suas obras como as diferentes culturas ameríndias, africanas e europeias participaram da formação da sociedade brasileira tendo a violência como parte constituinte das relações sociais. A violência, como referencial empírico de uma sociedade profundamente fraturada e hierarquizada, sempre foi assumida como resposta possível para a administração estatal de conflitos sociais (BUENO, 2014). Somado a esse quadro, embora formalmente sejamos uma democracia política há três décadas, a democracia brasileira consolidou direitos políticos e sociais, mas não foi capaz de efetivar os direitos civis para toda a população (O’Donnell, 1998; Carvalho, 2001; SANTOS, 1987). E, neste contexto, houve um processo de deslegitimação dos direitos humanos no debate público, constantemente vinculado a direitos de bandidos (CALDEIRA, 2000). Esse discurso entrou com eco na sociedade, que constantemente tem exigido punições mais severas para os criminosos e tolerado execuções sumárias pelos policiais. Neste sentido, a violência como mecanismo regulador das relações sociais é amplamente aceita, inclusive pelos formuladores de políticas públicas e governantes. E, neste diapasão, as polícias militares têm servido como instrumento político a serviço de muitos governantes. Na gestão de Marcello Alencar no governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foi adotada a remuneração faroeste: os policiais eram premiados pelo número de “bandidos abatidos”, e a política contou com o aval de percentual significativo da população. Não esqueçamos, porém, que o papel assumido pela Polícia Civil em nossa história não é muito diferente. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e o Destacamento de Operações de

DEBATE

Fotodivulgação: Flickr - dfactory

“SE A MILITARIZAÇÃO É VARIÁVEL FUNDAMENTAL PARA ENTENDERMOS A FORMA VIOLENTA COM QUE OPERAM MUITAS DE NOSSAS POLÍCIAS, A DESMILITARIZAÇÃO POR SI SÓ NÃO SERIA CAPAZ DE ALTERAR O PADRÃO DE ABUSOS DA AÇÃO POLICIAL.”

Informações – Centro de Informações de Defesa Interna (DOI-Codi), instituições responsáveis por muitas torturas e assassinatos durante o regime militar, eram de gestão das polícias civis. Se a militarização é variável fundamental para entendermos a forma violenta com que operam muitas de nossas polícias, a desmilitarização por si só não seria capaz de

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alterar o padrão de abusos da ação policial. Os defensores da tese de desmilitarização das polícias (MACHADO, 2003; SOARES, 2000) argumentam que a subordinação ao exército combinada à interiorização da ideologia de guerra produz um quadro na corporação que só seria rompido com a efetiva desmilitarização do corpo policial. Se, por um lado, as críticas favoráveis à desmilitarização propugnam que as estruturas de comando militares resultam numa hierarquia e obediência cegas, por outro, extingui-las completamente tornaria ingovernável forças policiais com mais de 10 ou 20 mil funcionários, como são os casos das polícias militares da Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, dentre outras. Alguns dos fatores que mais produzem assimetrias e impunidade são a manutenção do Tribunal de Justiça Militar e o Regulamento Disciplinar, em muitos casos cópias fiéis dos regulamentos disciplinares do exército. Contudo, estes poderiam ser, nesta sequência, extintos e alterados sem uma profunda desmilitarização. As polícias militares também poderiam ser desvinculadas das forças armadas sem deixarem de ser militares. Diante do quadro exposto, deixo uma questão para reflexão do leitor: se a polícia civil assumisse hoje a tarefa de policiamento ostensivo, seria menos violenta do que a polícia militar? Se as polícias brasileiras sustentam um padrão de atuação violento até hoje é responsabilidade também do Judiciário e do Ministério Público, que deveriam ser de fato ativos no controle da atividade policial, de modo a coibir abusos. Em alguns países é comum a responsabilização civil dos escalões superiores ou do poder público por arbitrariedades policiais. Em suma, o desafio de tornar nossas polícias mais respeitadoras de direitos e próximas da população passa, por um lado, por amplas reformas no modelo de segurança pública brasileiro, mas também pela desconstrução de paradigmas que permeiam a sociedade e influenciam na conformação das instituições responsáveis pela manutenção da lei e ordem. (*) Samira Bueno é socióloga, doutoranda em administração pública e governo pela EAESP/FGV e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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As experiências

l iterárias

“das quebradas” Os saraus poéticos e a literatura periférica são experiências literárias privilegiadas para reflexões sobre arte, classes sociais e identidade coletiva

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Á MAIS DE UMA DÉCADA, TEM SIDO POSSÍVEL OBSERVAR NAS PERIFERIAS DE SÃO PAULO DOIS FENÔMENOS CULTURAIS CONCOMITANTES. De um lado, a projeção literária de escritores oriundos de bairros mais negligenciados da capital paulistana, que atribuem a si próprios e a seus produtos os adjetivos “marginal” e/ou “periférico” – a ponto de ser possível falar hoje, inclusive, na existência de um novo movimento literário. De outro, o surgimento e a proliferação de instâncias de criação, circulação e consumo de produtos literários, os chamados “saraus”, que reúnem regularmente centenas de pessoas em diversas regiões de São Paulo e que vêm modificando as dinâmicas artísticas desses espaços e as representações acerca da própria periferia – estabelecendo, assim, um modelo de transmissão

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e valorização de bens culturais neles gerados por parte dos moradores desses bairros. O primeiro fenômeno vem ecoando pelos quatro cantos da cidade e se consagrando pelo país afora já como importante movimento literário, muitas vezes acompanhado de indistintas rubricas: marginal, periférica, suburbana, divergente, de denúncia social, da violência, engajada, “literarua”, hip-hop, testemunhal. Na verdade, o uso das categorias que classificam obras que compõem o movimento segue certos critérios... muitas vezes, trata-se da produção de escritores oriundos da periferia, de textos que exploram tópicos como violência, pobreza, drogas, prostituição, etc., e compõem a produção material de indivíduos, tidos como “contraventores”, que narram suas vivências em margens sociais e simbólicas. Já o segundo fenômeno, o sarau, pode ser caracterizado como uma reunião artística envolvendo moradores e visitantes de determinada região que, por motivos

Fotodivulgação: Flickr - Preliminares 2013

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Fotodivulgação: Flickr - Beraldo Leal

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Para as pessoas que expõem nesses espaços, que podem ser “botecos”, Centros Educacionais Unificados, espaços culturais teatros ou escolas, é dada liberdade para se expressar da forma que se sentir mais à vontade, mas a declamação de poesias é mais frequente.

diversos, querem expor seus textos ao público, discutir literatura, expressar produções poéticas ou apenas ouvir o que os outros têm a dizer ou a cantar. Os que se expõem nesses espaços – em sua maioria “botecos”, mas também Centros Educacionais Unificados, espaços culturais, ocupações, teatros e escolas – têm liberdade de expressão, mas a declamação de poesias é dominante. Mais do que as características individuais de integrantes de um movimento (ou gênero) literário, as agitações culturais nas periferias em torno dos saraus – em São Paulo, sobretudo –, bem como as ações que delas derivaram, de início, parecem encerrar um cálculo consequencialista em função da falta de estruturas institucionais que deem conta da carência de equipamentos e incentivos. Por isso, o modo de articulação desses saraus é uma atitude proativa, agindo a partir da comunidade e privilegiando políticas pedagógicas de estímulo à leitura e criação de textos autorais, de modo que podem ser tidos como instâncias de difusão literária, consumo de bens e práticas localmente produzidas e promoção de novos escritores. Nessa medida, a despeito das dificuldades no acesso a bens culturais por parte de moradores de bairros pobres de São Paulo, observam-se, hoje,

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centenas de novas publicações de escritores periféricos (pela via de projetos editoriais alternativos ou, ainda, pela produção artesanal) e, ao mesmo tempo, a multiplicação dos saraus. Trata-se, então, de dois movimentos concomitantes e complementares que não podem ser pensados isoladamente.

UMA ESTÉTICA LITERÁRIA DA PERIFERIA Há certa homologia entre a recente produção literária periférica e a participação nos saraus, especialmente porque existem desdobramentos nos tipos de ação cultural que ocorrem a partir dessas instâncias: além de um recital poético, o sarau pode ser lido como um encontro comunitário de troca de ideias, formação de redes, elaboração de projetos coletivos, discussão de experiências pessoais e sociais, e, ao mesmo tempo, fruição de bens produzidos desde uma identidade coletiva de morador da periferia. Inclusive, para a antropóloga Érica Peçanha (2009; 2011), trata-se de um arranjo elaborado por artistas para estimular novas opções de lazer, criação e participação político-cultural “nas quebradas”, na medida em que revelam uma forma diversa de

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paulistano Ferréz, nos anos de 2001, 2002 e 2004. A primeira edição do projeto vendeu mais de 15 mil exemplares e, assim, viabilizou o lançamento dos outros dois números, que, juntos, reuniram um total de 48 escritores e 80 textos que reportavam a condição periférica tanto do escritor quanto de sua produção. Essas edições foram um marco na história da literatura brasileira, primeiro, porque apontaram a conexão temática com os processos criativos dos escritores marginais de 1970, e, depois, porque demarcaram nuances capitais entre os movimentos, evidenciando a autonomia e corroborando esse novo fenômeno cultural nascido e consolidado nas periferias. Em outra chave de análise, a tese de doutorado de Mário Augusto Medeiros da Silva (2013) trabalha com a hipótese de que a investida na noção de “marginalidade” desses novos autores periféricos está talvez mais relacionada à condição histórica de subalternidade da ideia de literatura negra do que propriamente com a Geração do Mimeógrafo, da década de 1970.

RUBRICA MARGINAL O fato é que a literatura marginalperiférica é a que fala da periferia, mas também, fundamentalmente, para muitos autores, a que vem da periferia. A rubrica marginal é reivindicada, desde o início, pelos próprios escritores que compõem o Além das condições socioeconômicas dos locais mais pobres deve-se contemplar todos os tipos de representações que são construídos e simbolizam a ideia de periferia. Fotodivulgação: Flickr - Pedro Savério Penna

associativismo entre membros de classes populares em torno da literatura, possibilitando o agenciamento de subjetividades, modos de estar e ser na periferia. Nessa medida, a própria noção de “periferia” deve ser lida de modo mais amplo do que a calcada apenas geograficamente. Um caminho interessante seria tratar as territorialidades periféricas de São Paulo a partir de uma dimensão também simbólica, composta de memórias, experiências, identidades, discursos (Carril, 2006). Para além das condições associadas às dimensões socioeconômicas dos territórios mais pobres, é necessário contemplar os tipos de representações simbólicas construídas em torno da ideia de periferia. O termo periferia, então, denotaria uma série de situações: uma realidade socioespacial, uma inscrição étnico-racial ou de classe, uma referência à atuação político-cultural, sentimentos de pertença e afetividade. A periferia, inclusive, pode ser um discurso produzido por indivíduos estigmatizados que ocupam posições subalternas no campo dominante de produção e consumo culturais. Logo, quando digo que as representações sobre a periferia vêm se alterando também em função dos saraus, quero remeter à forma como elas vêm sendo versadas em manifestações artísticas, que não estão só pautadas no trinômio “violência, tráfico e miséria” – quase um clichê jornalístico hoje em dia –, mas em um lócus privilegiado de criação, difusão e consumo literário. A conformação de um campo de produção cultural periférica em São Paulo está ligada às intervenções culturais e políticas de escritores identificados com essa recente literatura produzida em nível local, pois foi a partir dela que se potencializou a articulação de novos artistas que representavam a periferia como mote privilegiado de elaborações estéticas e atuações culturais. São exemplos disso, nacionalmente, Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), Ferréz (Capão Pecado, 1999), Alessandro Buzo (O Trem, 2000), Esmeralda Ortiz (Por que não dancei?, 2000), Luiz Alberto Mendes (Memórias de um Sobrevivente, 2001), Marcelino Freire (Angu de Sangue, 2000), Conceição Evaristo (Ponciá Vicêncio, 2003), entre muitos outros. Porém, o processo que deu publicidade ao movimento da literatura marginal-periférica ocorreu a partir do lançamento de três edições especiais da revista Caros Amigos/Literatura Marginal: a cultura da periferia, idealizadas e editadas pelo escritor

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corpus do movimento. A autoatribuição “marginalperiférica”, creio, põe em pauta a posição ocupada pelo indivíduo morador das periferias no contexto urbano, o que se faz pela oposição a um “outro”, não periférico, e a um “centro”. Assim, a questão da territorialidade e do espaço social que esse indivíduo ocupa é essencial e faz par, sobretudo simbolicamente, à posição ocupada pelo escritor periférico no campo de produção cultural dominante. Esses escritores estão orientados por uma experiência coletiva – a vida na periferia – e um projeto intelectual em comum – “dar voz” ao seu grupo de origem –, ressignificando a produção literária na periferia e valorizando o testemunho de situações que os acomete dia a dia, por meio de intervenções pragmáticas que visam estimular a criação e o consumo de bens culturais. O autor que integra esse movimento literário é aquele legitimado para escrever do lugar de quem pertence à periferia e no lugar desses indivíduos que, por alguma razão, não podem falar ou não detêm meios para tanto. A escrita de teor testemunhal – marca importante do movimento – assume papel central hoje de mediação em cenários de tensão social, servindo como instrumento de confronto em que a experiência pessoal atua como base para interpretar a experiência coletiva. Então, o próprio fazer literário desse grupo é uma ruptura com o labor literário de praxe, pois critica e combate o fato de que a voz do subalterno esteve sempre intermediada pela voz de outro – que, ocupando posição privilegiada no campo, representava o indivíduo periférico, subalterno, até então excluído do processo produtivo de sua autorrepresentação. Acredito que a principal reivindicação desse conjunto de experiências literárias – que preza radicalmente certo tipo de “realismo” social – é a de que aos excluídos cabe falar por si próprios e, ademais, também lhes cabe a definição quanto aos meios e modos de fazê-lo. Para Dalcastagnè (2007), os que estão historicamente excluídos do universo do “fazer literário”, pelo domínio precário de determinadas formas de expressão, creem que seriam também incapazes de produzir literatura; porém, são incapazes de produzi-la justamente porque não a produzem, isto é, porque a definição mais dominante de literatura exclui suas expressões, na medida em que circunscreve um espaço distinto de expressão que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros. Então, o que faz da literatura

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Os novos escritores falam também para aqueles que vivem nos mesmos espaços sociais que eles e compartilham trajetórias de vida parecidas.

ser marginal e/ou periférica é, muitas vezes, como alertou Silva (2013, p. 387), “menos o processo criativo (que se torna uma decorrência), mas, antes, uma ética da criação (que se antepõe a tudo)” que, ao instaurar uma ideia específica de literatura, pressupõe que alguns indivíduos, devido à posição que ocupam, estejam mais autorizados a expressar uma visão social do mundo em que seu grupo seja privilegiado como personagem.

EXPERIÊNCIA COMUM No entanto, os novos escritores da periferia falam, também, para indivíduos que habitam os mesmos espaços sociais e compartilham trajetórias de vida similares. Há, portanto, uma experiência em comum sendo partilhada por esses indivíduos, tanto na produção como na recepção de bens literários. Pode-se dizer que o campo de produção e consumo cultural passa por uma reestruturação. Roberto Schwarz (2004, p. 19-20), em Crítica de intervenção, faz um comentário sobre o aparecimento desse gênero no contexto de formação de novos leitores e fruidores de bens literários, antes apartados da esfera de consumo: “Comprei o livro do Ferréz, Capão Pecado, e deixei sobre a mesa, lá em casa. A empregada viu e

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falou: ‘Doutor, posso pegar?’. Ela levou, leu, três dias depois me disse: ‘É assim mesmo’. Está acontecendo uma reestruturação de leitores possíveis, porque essa moça agora é uma leitora possível”. Ou seja, não se trata só de artistas buscando alguma inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, que desempenham funções centrais no campo literário mais amplo, conectados com experiências sociais específicas de indivíduos marginalizados historicamente. O movimento dos saraus, obviamente, foi determinante para a expansão da recente literatura marginal-periférica – no sentido de que eles deram visibilidade e propiciaram um aumento das publicações, práticas e do consumo da literatura produzida na, e para, a periferia. Mas, ao mesmo tempo, as efervescências culturais responsáveis pela geração dos saraus periféricos são frutos dessa nova produção literária, já que muitos deles, espalhados por todas as regiões da capital, só nasceram graças às iniciativas de poetas, ativistas e produtores culturais que se reconhecem como parte de um grupo que atua dia a dia investindo seus capitais à margem do campo literário “dominante” da cidade (Bourdieu, 1990; 1996). Nos saraus, os poetas podem mobilizar e investir seus capitais a despeito das regras conferidas, digamos, pelo campo da produção cultural dominante, pois buscam meios e mecanismos “alternativos” de legitimação da voz de seu grupo social de origem e expressão de uma realidade própria da periferia. Parece haver, nessa medida, uma tentativa, por parte dos escritores participantes dos saraus, de construção de uma leitura própria do que seja “periferia”, o que pode alterar tanto o modo como os moradores são rotulados, como a maneira como pensam suas próprias identidades coletivas e se relacionam com o contexto social mais amplo. Com isso, passam de consumidores passivos de bens culturais (quando muito, haja vista a carência de equipamentos nos bairros) a produtores de enunciados próprios, isto é, protagonistas de intervenções narrativas e porta-vozes legítimos de grupos subalternos e estigmatizados.

“Está acontecendo uma reestruturação de leitores possíveis, porque essa moça agora é uma leitora possível.”

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(*) Lucas Amaral de Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, com auxílio financeiro da FAPESP. É graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e mestre em Sociologia pela USP. Membro do corpo editorial da Plural e editor regional da newsletter Global Dialogue – International Sociological Association.

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A INSTITUCIONALIZAÇÃO

PSIQUIÁTRICA NO

CINEMA

Tema clássico da sociologia, a institucionalização de pessoas rotuladas como doentes mentais foi retratada em diversos momentos pelo cinema.

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ESSA EDIÇÃO ABORDAMOS APROPRIAÇÕES DO TEMA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DE PESSOAS EM ESPAÇOS DESTINADOS A CUIDADOS PSIQUIÁTRICOS NO CINEMA A PARTIR DA ANÁLISE DE TRÊS FILMES: Paixões que alucinam (1963), clássico filme do diretor Samuel Fuller, no qual um jornalista se finge de interno de um hospício para descobrir um assassinato; Bicho de sete cabeças (2001), de Laís Bodanzky, que se apropria de uma história real para evidenciar nuances do sistema manicomial brasileiro, e Camille Claudel (1915), filme francês que retrata a internação forçada em um asilo da famosa escultora Claudel, amante de Auguste Rodin durante muitos anos. Serão apresentadas aproximações e dissonâncias entre as referidas obras, que, mesmo separadas, seja por períodos históricos distintos, seja devido ao país de produção, refletem um pensamento corrente de suas respectivas sociedades e tempos no que concerne à loucura. Assim, é possível associar o processo de enlouquecimento do jornalista Johnny Barrett no filme de Fuller com o uso de eletrochoque em Neto, protagonista de Bicho de sete cabeças, ao passo que tanto Neto quanto Camille Claudel, internados por imposições familiares, sentem-se privados de sua liberdade.

PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) O ponto de partida do filme é um jornalista ambicioso, Johnny Barrett, que convence o jornal em que trabalha e sua namorada, uma dançarina de boate, a embarcar em um plano mirabolante: a descoberta do autor de um assassinato ocorrido em um manicômio. Nesse plano, a moça interpreta a irmã de Barrett, permitindo que o repórter, atestado clinicamente como portador de um impulso incestuoso, entre pela porta da frente do manicômio. Dessa forma, Paixões que alucinam (1963), longa-metragem hollywoodiano do diretor Samuel Fuller, cria uma realidade fílmica pautada por duas regras básicas, ambas com gênese nas angústias da dançarina. A primeira, definida por princípios ideológicos, remete às recriminações da namorada para com os desejos de sucesso rápido do repórter. Por mais de uma vez ela rebate os discursos alucinados do jornalista, que sempre

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Após a entrada de Barrett no manicômio, o aspecto da narrativa torna-se sistemático com o objetivo de mostrar como acontecem as evoluções das investigações.

remetem ao prêmio Pulitzer. A segunda regra se configura pela difusão de um preceito interno da narrativa: a loucura pode ser imposta pelas pressões exercidas pelo ambiente e, já na primeira sequência, a namorada do jornalista ressalta o receio de que o repórter fique louco se passar demasiado tempo de convivência com os doentes mentais. Com a entrada de Barrett no manicômio, a narrativa ganha um aspecto sistemático para mostrar a evolução das investigações. Fuller apresenta diversas testemunhas do crime, cada uma com um distúrbio diferente, com o objetivo de evidenciar o contexto da guerra fria e do racismo nos EUA. O que, por uma ótica, torna as relações entre o investigador e os internos demasiado estereotipadas e, às vezes, até mesmo surreais - como na passagem em que Barrett é atacado por algumas ninfomaníacas que mais lembram uma horda de zumbis dos filmes de George A. Romero. O primeiro potencial suspeito do crime é um jovem, ex-combatente da guerra da Coreia, que acredita ser da cavalaria americana do século 19.

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O soldado, capturado e aprisionado em um país hostil, revela, em um lapso de lucidez, os métodos impostos pelos comunistas, que lhe fizeram mudar sua orientação política. Em seguida, Barrett busca pistas com um ex-universitário negro, o único de sua universidade que, ao ser hostilizado, enlouquece a ponto de se considerar um membro da Ku Klux Klan. O último dos internos investigados é um físico nuclear que adquiriu a mentalidade de uma criança de quatro anos. Nesse contexto se constrói o processo metódico de enlouquecimento de Barrett, que começa com o tratamento imposto pelo psiquiatra para acabar com seu falso distúrbio sexual. Em uma primeira etapa, o personagem é submetido a banhos medicinais e horas de recreação, mas, no decorrer de sua estadia, os tratamentos vão se brutalizando até chegarmos a noites na solitária e tratamentos com eletrochoque. Em uma sequência no final do filme, quando se encontra sua namorada, Barrett age como se ela fosse realmente sua irmã. Torna-se, por fim, um provável vencedor do Pulitzer, mas sua sanidade já está

FILMES comprometida.

BICHO DE SETE CABEÇAS (2001) Neto (Rodrigo Santoro) ouve música no seu quarto enquanto pensa numa garota que conheceu quando viajou para a cidade de Santos sem o consentimento de pais. O adolescente, problemático para os familiares por fumar maconha e pichar muros, é convidado pelo pai para um passeio que terá como destino um manicômio no qual ficará trancado por meses. Primeiro longa-metragem de Laís Bodanzky, Bicho de sete cabeças se baseia em um relato verídico para evidenciar a influência de figuras parentais intransigentes no desenvolvimento de adolescentes, além de trazer como pano de fundo uma enfática denúncia ao sistema público manicomial brasileiro. A história que precede a internação de Neto tem como núcleo uma pequena família de classe média baixa de São Paulo. Othon Bastos (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964) interpreta o pai linhadura e impaciente, que até mesmo em momento de lazer, como a ida a um jogo de futebol, recrimina o adolescente por seu cabelo comprido e brinco na orelha. O relacionamento familiar esfacela-se quando o pai de Neto encontra um cigarro de maconha entre os pertences do adolescente, o que culmina na internação do filho. O que inicialmente era entendido na trama como uma clínica de reabilitação, se revela um manicômio público, com assustadores personagens com transtornos mentais severos, calmantes com horário programado e enfermeiros cruéis. Aqui Laís carrega nas tintas ao revelar os funcionários do manicômio como corruptos e sádicos, principalmente na postura do diretor da instituição, sedento por novos internos em virtude de um novo repasse de verbas. A diretora denuncia também a situação degradante dos internos, muitos deles pessoas em situação de rua sem nenhum indício de transtorno mental, o que fica evidente quando Neto é submetido ao grande vilão nos filmes cujo o tema é a loucura: uma sessão de eletrochoque. Neto volta para casa, passa dias no quarto, e abdica da escola. Em seguida, inicia um trabalho como vendedor, porém as cicatrizes dos dias do manicômio se refletem constantemente em sua rotina. Ao mesmo tempo em que seus amigos o rejeitam, resta a Neto esbravejar tudo que sente, o

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que pode acarretar em um novo período em um manicômio. Quem antes se mostrava um adolescente normal, finalmente apresenta indícios de problemas psiquiátricos.

CAMILLE CLAUDEL 1915 (2013) Inspirado livremente nos arquivos médicos e na correspondência da escultora Camille Claudel, e também nas obras e nas correspondências de seu irmão, o escritor Paul Claudel, o filme de Bruno Dumont trata com rigor estético impecável um curto

A clínica de reabilitação, como é entendida no início do filme, revela-se um manicômio público, onde vivem personagens assustadores com transtornos severos, enfermeiros cruéis e remédios com horário programado.

FILMES período da vida da escultura, internada à força pela família em um asilo católico. Interpretada pela sempre magistral Juliette Binochel, Camille Claudel foi uma escultura francesa, aluna e posteriormente amante de Auguste Rodin. Com o fim do relacionamento com o escultor, viveu reclusa por vários anos em seu atelier, até que sua família a interna alegando um quadro de distúrbio mental na escultora. Fora isso, pouco saberemos sobre a vida pregressa de Camille, pois a narrativa de Dumont tem como foco a vida enclausurada da protagonista, que, mesmo revelando constantes abalos emocionais, mantém sua sanidade intelectual praticamente intacta em um ambiente majoritariamente habitado por mulheres com transtornos mentais. O pouco que conseguimos apreender, a partir da fala da própria Camille, é que o motivo de sua internação relacionase à realização de um aborto e à depressão devido à separação de Rodin. Com isso, o comportamento da artista no asilo se divide entre o silêncio e resignação no convívio com as internas e, de outro lado, o desabafo perante a imposição familiar, o que ganha forma no longo

monólogo sobre sua privação de liberdade ao diretor do hospital. Ainda que a preservação da sanidade de Camille seja a porta de entrada para o sentimento de esperança de liberdade - seja na carta enviada às escondidas para a família, seja nas sinceras súplicas ao pé do irmão -, por outro, a sanidade da protagonista é um contraponto a um corpo de personagens secundário, mulheres que com muitas dificuldades conseguem trocar algumas palavras ou realizar algumas ações. E não sem motivos veremos Camille se distanciando das internas em algumas atividades lúdicas ao mesmo tempo em que demonstra um complexo de perseguição durante as refeições, que Claudel prepara sozinha, pois tem medo de que alguém a envenene. Além disso, é notória a recriminação da personagem diante da necessidade de materializar seu talento artístico, e corriqueiramente veremos o choro descomedido da escultora em atividades como desenhar num papel amarelado ou modelar o barro com as pontas dos dedos. Toda a construção cênica de Dumont reflete na potencialização do estranhamento diante da situação de sua protagonista. Os destaques ficam para

A sempre magistral Juliette Binochel interpreta Camille Claudel, uma escultora francesa que além de aluna foi amante de Auguste Rodin.

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A proximidade dos três filmes se dá pela forma como trabalham o tema loucura por meio da inserção de protagonistas sem problemas mentais em instituições que, supostamente, tratam pacientes com transtornos mentais.

a bela fotografia que associada a uma direção de arte exuberante, mas minimalista, além do gosto do filme pelo uso do silêncio e a consequente evidenciação dos ruídos proferidos pelas internas, em risadas insólitas e batidas incessantes de uma colher sobre uma mesa, que juntos impulsionam a rotina de uma personagem afastada do convívio em sociedade. Os três filmes analisados se aproximam ao tratar do tema loucura a partir da inserção de protagonistas mentalmente sadios - ou pelo menos parcialmente, pois Camille Claudel sofre de depressão - em instituições supostamente voltadas para o tratamento de transtornos mentais. Dessa forma, é notório o estranhamento de Neto e Barrett na rotina dos manicômios, um fator de grande valia para a descrença desses filmes no efeito de medicamentos e para vilanização dos médicos e enfermeiros, muitas vezes tidos como violentos e desonestos. De forma mais resignada, Camille demonstra aversão ao ambiente no qual está inserida, e dos três filmes é a personagem que revela menor afetamento de sua sanidade no convívio diário com os diagnosticados como loucos. Outro ponto interessante que une Camille Claudel 1915 e Bicho de sete cabeças está no fato de que em ambos os desabafos dos protagonistas não

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são tidos como verídicos por seus ouvintes, o que fica evidente nas denúncias de maus tratos dirigidas por Neto aos seus pais, que obviamente não são ouvidas. Tal contexto, vivenciado em momentos diversos, mostra-se muito próximo ao analisado por Foucault: “Desde a Alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato [...] Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas.” (FOUCAULT, 1996, p. 10–11). Nesse sentido, os filmes expostos permitem evidenciar o que está em questão quando se refere ao controle de pessoas alegadamente transtornadas mentalmente: a patologização do desvio. Este é um dos contextos de luta do movimento antimanicomial: uma sociedade com direito à liberdade, igualdade e justiça social, a fim de fomentar o cuidado das pessoas em sofrimento psíquico em sua própria comunidade. (*) Fabrício Basílio é graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. Contato: fabricio.cineuff@ gmail.com

LIVROS

A Gênese da Sociedade do Espetáculo: Teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena O espetáculo como uma nova possibilidade de compreensão histórica e sociológica do século XIX. Fabrício Basílio* Publicado na França em 2008, o livro A Gênese da Sociedade do Espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena tem como objetivo principal retratar o que o autor nomeia como “sociedade do espetáculo perdida”, que no século 19 funcionava a partir da ação de diversos indivíduos anônimos que não alcançaram o estrelato. Nomeada pelo historiador Christophe Charle como uma sociedade em ação, a sociedade do espetáculo unia ricos e pobres, no palco e na plateia. Neste contexto, milhares de homens e mulheres lançaram-se na vida teatral pelos mais variados motivos, desde melhorar sua condição econômica até confirmar uma vocação familiar. Professor da Universidade Paris I, Charle foi aluno de doutorado de Pierre Bourdieu, sendo influenciado pelo mesmo em diversas de suas abordagens, por exemplo, ao reconhecer que esses locais de vida artística tornaram-se laboratórios de novos habitus. Assim, Charle desenvolve um estudo de história social comparada, na qual analisa a trajetória teatral de quatro capitais europeias: Londres, Paris, Viena e Berlim. As quatro cidades selecionadas estavam entre os centros urbanos mais populosos da Europa ocidental no século pesquisado, e contavam com uma tradição teatral já bastante estabelecida. É a partir deste contexto que o autor tenta compreender as transformações que afetaram as estruturas do mundo do teatro, que alteraram cânones e normas, permitindo o surgimento de gêneros mistos, criados para um público mais amplo.

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O papel fundamental dos desconhecidos da sociedade do espetáculo é analisado por meio de uma pesquisa criteriosa de cálculos estatísticos e de documentos da época. Dessa forma, Charle afirma que os palcos das principais metrópoles do século 19 podem ser considerados espelhos da profunda transformação capitalista vivida pelo Ocidente, permitindo visualizar um panorama histórico da vida cultural no continente europeu. Outra justificativa para a pesquisa comparativa realizada por Charle se dá a partir do contexto interno dos países analisados: um processo de liberalização de abertura dos teatros nas quatro capitais citadas, principalmente a partir da década de 1860, o que tende a aumentar a concorrência, em um momento de aumento das populações, e a diferenciação dos públicos. Também nesse contexto é importante ressaltar que nesse momento histórico as cidades analisadas tornaramse centros de lutas políticas e simbólicas, uma espécie de cidades internacionais. Dessa forma, o principal argumento do autor é que o século 19 não deve ser visto apenas como o século da grande indústria, da modernidade, da urbanização, etc., já que há um legado cultural significante: a criação da primeira sociedade do espetáculo. CHARLE, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (*) Fabrício Basílio é graduando em cinema e audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

LIVROS

Prisões e Punição no Brasil Contemporâneo Compreender o encarceramento no Brasil sob múltiplos pontos de vista é a proposta do livro lançado em 2013 pela Edufba. Leticia Chaves* Pensar a complexidade e a heterogeneidade do processo de punição e encarceramento no Brasil na contemporaneidade é um desafio que exige uma abordagem multi e interdisciplinar, que considere diferentes olhares e experiências existentes em nosso vasto país. Este é um esforço empreendido pelos organizadores do livro Prisões e Punição no Brasil Contemporâneo, que reúne trabalhos de pesquisadores das ciências sociais, filosofia, história, psicologia, psiquiatria, serviço social, direito, criminologia e administração. A expressão e a organização criminosa têm adquirido contornos cada vez mais intensos e presentes; e a mídia tem colaborado com o fortalecimento do discurso da vítima, o que, por sua vez, potencializa o medo e convoca a sociedade a clamar por mais punição. Esta é a estratégia mais conhecida para lidar com o crime, mesmo diante de sua ineficácia em reduzi-lo. Entender a preponderância da pena de prisão no imaginário social, a despeito da sua influência crescente nas organizações criminosas e no potencial ao crime daqueles que passam por lá, convoca a uma análise não apenas sobre quem os comete, mas, sobretudo, para a nossa forma de regulação social, o apego à vingança e uma retroalimentação ao pensamento maniqueísta que segrega aqueles considerados maus ou inúteis. Em que pese todas as discussões e análises sobre a ineficácia da prisão na redução da criminalidade, desde Foucault (1987), Wacquant (2001), à Garland (2008), como afirma Almeida (2013, p. 364), no Brasil “observase uma sociedade civil que convive pacificamente com uma situação carcerária trágica. (…) É a criminologia do outro, que considera o criminoso um ser humano diferente, ameaçador, que deve ser excluído do convívio social”. Estas condições precárias do encarceramento, tão fartamente conhecidas e disseminadas, por sua vez, quando analisadas em suas microrrelações no interior dos muros das prisões, apontam para condições ainda mais trágicas de invisibilidade e das possibilidades de relações sociais mesmo extramuros para alguns destes “nossos excluídos”. Saber que alguns internos desejam permanecer ali ou morrer, por inexistência de possibilidade de vida ou de reconhecimento na sociedade, para além de tantos estereótipos (AGUIAR, 2013), diz muito de como não os consideramos como parte de nós mesmos. É preciso analisar as peculiaridades da prisão em nosso país, a nossa forma de pensar esse sistema, de regulá-lo e das diversas tentativas de tornar a prisão e as punições mais eficientes, e o livro em questão traz subsídios importantes para este debate. Sobretudo, como aponta a experiência relatada por Almeida (2013), é necessário questionar a cultura do controle e propor

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novas possibilidades de regulação social que invistam na garantia aos direitos. Aliado a isso são necessárias uma maior participação social e uma promoção de autonomia para os que estão dentro e fora dos muros da prisão, e, assim, criar “pontos cegos” dentro desta cultura, que tornem visíveis as potencialidades de uma convivência social regulada não pelo castigo, mas pela dignidade. Os dezessete artigos deste livro contemplam produções de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Universidade Federal Fluminense (UFF), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal de Uberaba (UFU). São pesquisas realizadas em diversos estados brasileiros, versando desde os labirintos percorridos por aqueles que elegem a prisão e a punição como objeto de estudo, até gangues prisionais, crime e loucura, prisões femininas, encarceramento em massa, reincidência, penas alternativas e redução da maioridade penal, constituindo-se como uma obra de relevância ímpar no campo de conhecimento interdisciplinar sobre punição no Brasil contemporâneo. LOURENÇO, L. C.; GOMES, L. R. (org). Prisões e punição: no Brasil Contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2013. (*) Leticia Chaves é psicóloga, mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É membro do Lassos (Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade).

BIBLIOGRAFIA AS METAMORFOSES DE OCTAVIO IANNI BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008. BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro. São Paulo: Edusp, 2005, pp. 95 e ss. COHN, Gabriel. . “Crise e metamorfoses: aspectos metodológicos na obra de Octavio Ianni”. In: FALEIROS, M. e CRESPO, R. (Orgs), Humanismo e compromisso. Ensaios sobre Octávio Ianni. São Paulo: Unesp, p. 146. IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 225. MARTINS, José de Souza. A sociologia como aventura. Memórias. São Paulo: Contexto, 2014, p. 151-152 e 159. TEODORO, Ailton. “Rupturas e permanências. O Projeto Unesco em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Revista Humanidades em Diálogo. São Paulo, vol. V, dez. 2013, pp. 113-127 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 93. [1] BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro. São Paulo: Edusp, 2005, pp. 95 e ss. [2] Desde a fundação da USP os cursos organizaram-se sob o regime de cátedras, ou cadeiras, que eram responsáveis pelas atividades de ensino e pesquisa. Cada cátedra possuía um professor titular, o catedrático, cuja figura baseava-se na distinção intelectual e prestígio. Era comum que os catedráticos possuíssem alguns assistentes e auxiliares de ensino que deviam atuar como professores adjuntos. No caso das ciências sociais da USP havia quatro Cátedras, as de Sociologia I e II, Política e Antropologia. [3] BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008. Para uma síntese de como a pesquisa da Unesco transcorreu em São Paulo e no Rio de Janeiro: TEODORO, Ailton.“Rupturas e permanências. O Projeto Unesco em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Revista Humanidades em Diálogo. São Paulo, vol. V, dez. 2013, pp. 113-127. [4] COHN, Gabriel. .“Crise e metamorfoses: aspectos metodológicos na obra de Octavio Ianni”. In: FALEIROS, M. e CRESPO, R. (Orgs), Humanismo e compromisso. Ensaios sobre Octávio Ianni. São Paulo: Unesp, p. 146. [5] Para detalhes, consultar SCHWARZ, Roberto. .“Um seminário de Marx”. Novos Estudos (Cebrap), 1998, 50, 99-114; GIANNOTTI, José Arthur.“Recepções de Marx”. Novos Estudos (Cebrap), 1998, 50, 115-124. [6] WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 93. [7] IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 225. [8] MARTINS, José de Souza. A sociologia como aventura. Memórias. São Paulo: Contexto, 2014, p. 151-152 e 159. HIRANO, Sedi. Trajetória acadêmica polida por mestres. Discurso por ocasião da titulação de Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em: http://comunicacao.fflch.usp.br/sites/comunicacao.fflch.usp.br/files/sedi.pdf A LUTA ANTIMANICOMIAL ABOU-YD, Miriam N.; SILVA, Rosemeire. A lógica dos mapas: marcando diferenças. 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[1] Cálculos realizados a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008. [2] http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/18/mendigo-de-curitiba-e-usuario-de-crack-e-preocupaa-familia.htm ERVING GOFFMAN E SUA ANÁLISE DE QUADROS FINE, Gary Alan; MANNING, Philip. Goffman. In: RITZER, George.The Blackwell Companion to Major Contemporary SocialTheorists. Blackwell Publishing Ltd., 2003. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2009. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010. Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos. Petrópolis: Vozes, 2010. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar editores, 2012. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. Petrópolis: Vozes, 2012. LUCCA, Daniel De. Goffman e as Mortes da Vida Social. Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v. 16, n. 1, pp. 189-194, 2009. NUNES, João A. Erving Goffman, a análise de quadros e a sociologia da vida cotidiana. Revista Crítica de Ciências Sociais. Número 37, junho de 1993. THOMAS, William I; Thomas, Dorothy. The Child in American, Nova Iorque, Knopf, 1929. VELHO, Gilberto. Goffman, mal-entendidos e riscos interacionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 23 número 68 outubro/2008. DEVE HAVER UMA DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA BRASILEIRA? Amnesty International, Torture in 2014: 30 Years of Broken Promises, 2014. Bayley, David H. (2006), Padrões de Policiamento: Uma Análise Internacional Comparativa. Editora da Universidade de São Paulo. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 7ª Edição, 2013. BUENO, Samira. Bandido bom é bandido morto: a opção ideológico-institucional da política de segurança pública na manutenção de padrões de atuação violentos da polícia militar paulista. Dissertação de mestrado, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2014. CALDEIRA, Teresa Pires. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime de Economia Patriarcal, 31.ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996 (1933). FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 7, São Paulo, 2013. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1958. MACHADO, Eduardo Paes. MEU CASACO DE GENERAL: 500 dias no front da Segurança Pública do Rio de Janeiro. Resenhas in CADERNO CRH, Salvador, n. 39, p. 275-278, jul./dez. 2003 O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova, n.44, pp. 27-54, 1998. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: A política social na ordem brasileira, Rio de Janeiro: Campus, 1987. SOARES, Luiz Eduardo . Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. SP: Companhia das Letras, 2000. AS EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS“DAS QUEBRADAS” BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. “Leitura, leitores, letrados, literatura”. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. CARRIL, Lourdes. Quilombo, Favela e Periferia. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2006. DALCASTAGNÈ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e estratégias na narrativa contemporânea. Letras de Hoje, v.42, p.18-31, 2007. NASCIMENTO, Érica Peçanha. É tudo nosso! Produção cultural na periferia paulistana. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo, 2011. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano/ Fapesp, 2009. Schwarz, Roberto. Crítica de intervenção. Rodapé, São Paulo, n. 3, 2004. SILVA, Mário Augusto Medeiros. A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (19602000). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. A INSTITUCIONALIZAÇÃO PSIQUIÁTRICA NO CINEMA FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972. Microfísica do poder. 14ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994.

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