Devemos ajudar os animais na natureza?

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DEVEMOS AJUDAR OS ANIMAIS NA NATUREZA?1

Introdução: ajudar indivíduos em necessidade O sofrimento é mau. Ser queimado vivo ou morrer de fome é mau para quem o vive. Se pudermos fazer algo para impedir que aconteçam coisas más, ou se pudermos aliviar o impacto que tais coisas têm em alguém, sem com isso ocasionar mais sofrimento ou sacrificar algo de maior ou igual importância, devemos fazê-lo. O argumento a favor de ajudar seres humanos em necessidade está assente nestas duas premissas. Foi descrito celebremente por Peter Singer na seguinte experiência mental: “Para desafiar os meus alunos a pensar sobre a ética do que devemos às pessoas em necessidade, peço-lhes para imaginarem que no caminho para a universidade passam por um pequeno lago. Um dia de manhã, digo-lhes, dás-te conta que uma criança caiu dentro do lago e parece estar a afogar-se. Meter-se no lago e puxar a criança seria fácil, mas significaria ficar com a roupa molhada e lamacenta, de modo que para ter tempo de ir a casa e mudar-se seria necessário faltar à primeira aula. Nesse momento, pergunto aos estudantes: temos a obrigação de resgatar a criança? Os estudantes respondem unanimemente que sim. A importância de salvar a criança supera tão enormemente o custo de ficar com a roupa lamacenta e perder uma aula que se recusam a considerar qualquer tipo de desculpa para não salvá-la.”2

Apesar da relutância dos alunos de Singer em considerar possíveis razões para não salvar a criança, Singer pede que contemplem diversas variações do exemplo original que possam mudar as suas intuições. Por exemplo, suponhamos que há outras pessoas presentes que também poderiam salvar a criança, mas que decidem não fazê-lo.

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Agradeço a Anabela Santos pelos comentarios a uma versão anterior de este artigo. Este artigo é de

carácter introdutório, pelo que não pretende ser exaustivo nem apresentar com toda a sofisticação necessária a discussão filosófica em torno ao problema do sofrimento dos animais selvagens e a intervenção na natureza. Para uma análise completa veja-se Faria (2016) e Faria & Paez (2015). Uma versão posterior deste artigo foi publicada na revista Apeiron 8: 15-44 (2016). 2

Singer (1997).

Devemos ajudar os animais na natureza?

Teríamos, ainda assim, razões para salvar a criança? A intuição mais comum continua a ser, de novo, a de que deveríamos salvar a criança, independentemente daquilo que os outros à nossa volta decidissem fazer. Mas, então, continua Singer, faria alguma diferença se a criança não estivesse mesmo à nossa frente, mas longe de nós, por exemplo, num país estrangeiro distante? Similarmente, a reação mais comum é a de que a distância em si mesma não constitui uma diferença moralmente relevante entre os dois casos. Independentemente da distância ou da nacionalidade, devemos ajudar a criança em necessidade. O poder da experiência mental de Singer consiste no facto de descrever uma situação no mundo real. Isto é, nas palavras de Singer, “todos estamos na situação da pessoa que passa pelo lago: podemos salvar vidas humanas, de crianças e adultos, que morrerão se não as ajudarmos, e podemos fazê-lo com um custo muito baixo para nós”.3 Portanto, conclui Singer, devemos fazê-lo, por exemplo, doando dinheiro a organizações humanitárias efetivas.4 Consideremos, agora, uma variação adicional à experiência mental de Singer. Imaginemos que, em vez de uma criança humana, o indivíduo que se está a afogar no lago é um chimpanzé. Faria isso a diferença? Podemos afirmar que, de acordo com Peter Singer, seguramente não faria. O facto de o indivíduo no lago não ser humano não constitui uma razão para não ajudá-lo. Apelar à espécie para tentar justificar uma resposta diferente a este caso seria tão injustificado como apelar ao género da criança humana ou à sua nacionalidade no caso anterior. Em termos morais, ambos os critérios são igualmente irrelevantes (voltarei a esta questão mais adiante). Como antes, é possível fornecer exemplos do mundo real análogos a este cenário hipotético. Consideremos a seguinte situação descrita pela primatóloga Jane Goodall: “O surto de pólio em 1996 foi um dos tempos mais traumatizantes (…). Primeiro foi este chimpanzé, o Sr. McGregor, a chegar e a arrastar-se com ambas as pernas paralisadas (…). Gradualmente, outros chimpanzés que há bastante tempo não víamos apareceram, a arrastar um braço ou uma perna ou nunca mais voltaram. Foi uma época terrível. O médico em Kigoma - o médico europeu -

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Id. Singer (2015).

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sabia que havia um surto entre humanos. Ele deveria ter administrado as vacinas preventivas de pólio mas não o tinha feito. Deveria tê-lo feito (...) Assim que nos apercebemos, conseguimos imediatamente a dose completa da vacina de Nairobi e púnhamos a quantidade necessária numa banana (...). Foi uma época horrível, horrível e perdemos muitos chimpanzés maravilhosos.”5 Goodall tinha a vacina. Podemos afirmar também que, na linha do que foi dito antes, acreditava que - ao encontrar-se na posição de poder ajudar os chimpanzés doentes e prevenir que muitos outros viessem a sofrer o mesmo destino - deveria fazê-lo. De facto, nas suas palavras, o médico europeu atuou de forma incorreta ao não administrar a vacina aos chimpanzés. Goodall não pensou certamente que, por estes não serem humanos, não tinha a obrigação de ajudá-los. Pelo contrário, poderia dizer-se o seguinte: Goodall pensou que, independentemente das considerações acerca da espécie, o bem-estar dos chimpanzés importava e, nesse sentido, tinha fortes razões para atuar em seu benefício. Muitas pessoas concordariam com o facto de Goodall ter atuado corretamente, enquanto o médico europeu agiu de forma incorreta. Mas se é assim, então, uma vez mais, não poderá fazer diferença se o chimpanzé está perto ou longe de nós - por exemplo, a sofrer e a lutar pela sobrevivência num lugar distante na natureza. A distância e a situação geográfica não são em si mesmos atributos moralmente relevantes, pelo que não podem justificar respostas diferentes a casos semelhantes em todos os outros aspetos. Porém, alguém poderia dizer que o caso de Singer e o de Goodall não são casos relevantemente análogos e, por conseguinte, não nos permitem inferir a mesma conclusão. Em primeiro lugar, enquanto no caso da criança no lago estamos numa posição de prevenir ou aliviar aspetos que afetam negativamente seres humanos em necessidade, não estamos numa situação igualmente adequada em relação aos animais que sofrem na natureza. Ninguém está, como Jane Goodall, na natureza. Além disso, não há (ou não há tantas) organizações que prestam ajuda a animais selvagens, pelo que seria possível argumentar-se que no caso dos animais selvagens a distância constitui uma dificuldade inultrapassável. Em segundo lugar, poder-se-ia acrescentar que talvez não existam tais organizações precisamente porque não há necessidade de tal ajuda. Apesar de ser evidente que estes animais particulares estão a sofrer e em necessidade, 5

Academy of Achievement (2009).

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estas condições não são representativas do mal pelo qual passam os animais na natureza. Normalmente, os animais selvagens vivem bastante bem. Portanto, poder-se-ia concluir o seguinte: enquanto existem, de facto, muitos seres humanos distantes em necessidade e temos a obrigação de ajudá-los, geralmente o melhor que podemos fazer pela maioria de animais selvagens é simplesmente “deixá-los em paz”. Esta ideia está, contudo, longe de ser correta. De facto, há fortes razões para concluir que a anterior objecção está, em grande parte, assente numa visão idílica da vida dos animais na natureza, ou seja, na crença de que o valor agregado do bem-estar dos animais selvagens é positivo. É, pois, como veremos adiante, uma visão falsa. Este artigo procura analisar algumas das objeções mais generalizadas no debate sobre a intervenção na natureza. A secção 1 mostra, apelando sobretudo a dados da dinâmica de populações, a dimensão dos danos que sofrem os animais na natureza e as implicações da intervenção destinada à prevenção ou à mitigação deste estado de coisas. A secção 2 apresenta a objeção especista à posição intervencionista, segundo a qual não temos razões morais para ajudar os indivíduos em necessidade que não pertençam à espécie humana. A secção 3 introduz um conjunto de considerações que pode ser organizado sob a objeção ambientalista e a secção 4 apresenta objeções à intervenção na natureza que apelam ao seu suposto carácter perverso, fútil ou inexequível no que concerne à mitigação dos danos sofridos pelos animais selvagens. A secção 5 trata preocupações de paternalismo. Finalmente, o artigo conclui que nenhum dos argumentos apresentados consegue objetar com êxito a intervenção na natureza.

1. O sofrimento dos animais selvagens e a intervenção na natureza Se os animais selvagens tivessem, em geral, vidas felizes, intervir em seu beneficio não seria uma tarefa importante. Contudo, longe de ser uma fonte de bem-estar para os animais que nela habitam, a natureza é uma fonte de sofrimento e morte. Em primeiro lugar, dados da dinâmica de populações sugerem que, devido à estratégia reprodutiva seguida pela maioria dos animais selvagens, o sofrimento predomina enormemente sobre o bem-estar na natureza. Esta estratégia consiste em produzir um grande número de descendência, normalmente alcançando a taxa de crescimento máximo da população, acompanhado de um investimento praticamente nulo em cuidado parental. Dado que os

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recursos existentes na natureza são finitos (e.g., disponibilidade de alimento), a maioria de indivíduos não sobrevive à idade adulta. Muitos morrem de inanição, outros são comidos vivos por predadores, outros morrem devido a doenças ou parasitismo, entre outras causas naturais. Em média, somente um indivíduo sobrevive por progenitor. Os restantes morrem e normalmente de uma forma extremamente dolorosa. Isto significa que a maioria de animais que nasce não só morre prematuramente, mas também que as suas vidas não parecem conter qualquer instância de felicidade ou bem-estar ou, no melhor dos casos, contêm mais sofrimento do que bem-estar. Portanto, dado que esta é a estratégia reprodutiva dominante, temos fortes razões para concluir que, em agregado, o sofrimento predomina enormemente sobre o bem-estar na natureza6. Em segundo lugar, mesmo aqueles animais que atingem a idade adulta enfrentam uma variedade de ameaças naturais à sua saúde e integridade física, o que implica elevados níveis de sofrimento. Estão frequentemente lesionados, mortos de fome ou desidratados, sujeitos a condições climatéricas extremas e a stress psicológico, sobretudo devido ao medo da predação. Para além disso, sofrem mortes dolorosas às garras de predadores (permanecendo, muitas vezes, conscientes durante longos períodos de tempo), são devorados internamente por parasitas e mortos por diferentes doenças7.

Dada esta situação, as implicações que se seguem do caso do chimpanzé em necessidade são semelhantes às implicações que se seguem do caso da criança no lago. Em ambos os casos, e independentemente da distância, devemos intervir de modo a ajudar quem se encontra em necessidade. Certamente, alguém poderia dizer que teria ainda de ser demostrando que em ambos os casos estamos numa situação igualmente adequada para ajudar (este ponto será avaliado mais adiante). De momento, prosseguirei com a apresentação da tese intervencionista da seguinte forma: Se podemos prevenir ou aliviar os danos naturais que os animais selvagens sofrem, intervindo na natureza, sem com isso ocasionar um agravamento do estado de coisas para os indivíduos afetados, devemos então fazê-lo.

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Ng (1995); Horta (2010); Tomasik (2015 [2009]).

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Faria (2016).

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2. Especismo Uma forma de oposição à intervenção na natureza consiste em defender uma posição especista. De acordo com esta posição, não teríamos razões para intervir na natureza porque os animais não humanos não são seres moralmente consideráveis ou, se são consideráveis, são-no sempre em medida inferior quando comparados com os indivíduos humanos. Se decidimos ajudar um indivíduo não humano em necessidade, tal ato - ainda que potencialmente louvável - deve ser considerado supererrogatório, isto é, como estando além daquilo que estamos moralmente obrigados a fazer. Portanto, não temos razões morais para intervir na natureza para ajudar os animais em necessidade ou, se essas razões existem, são sempre extremamente débeis em comparação com as razões que temos para ajudar os indivíduos humanos em circunstâncias equiparáveis. Contudo, como tem sido extensamente exposto na literatura8, pertencer a uma determinada espécie não constitui um critério relevante para determinar se um ser é moralmente considerável, na medida em que não determina como um indivíduo pode ser prejudicado ou beneficiado pelo que lhe acontece. O mesmo ocorre quando se pretende estabelecer esse critério com base em capacidades cognitivas complexas (e.g., linguagem, racionalidade e agência moral) ou em determinados atributos relacionais (e.g., existência de relações políticas, de empatia e de solidariedade). O facto de um indivíduo possuir, por exemplo, um elevado nível de racionalidade que lhe permite levar a cabo operações intelectuais complexas não determina a sua capacidade para ser prejudicado pelo que lhe acontece (i.e., sofrer). De forma similar, manter, por exemplo, relações de solidariedade com os restantes seres humanos não determina a possibilidade de um indivíduo ser mais ou menos beneficiado por um determinado evento (i.e., desfrutar). Exemplo disso é, precisamente, pensarmos que aqueles seres humanos que não satisfazem essas condições devem ser, de igual modo, tidos em conta na esfera de consideração moral. Por outras palavras, pensamos que temos certas obrigações de atuar ou não actuar relativamente a eles por como essas ações os podem afetar.

O único fator relevante para determinar se um ser é moralmente considerável é, então, aquilo que determina se o ser em questão pode ser afetado positiva ou negativamente 8

Exemplos notáveis incluem Singer (2009 [1974]), Ryder (1975), Regan (2004 [1983]), Pluhar (1995),

Dunayer (2004).

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pela nossa ação ou omissão e, nesse sentido, ser beneficiado (salvo) ou prejudicado (deixado a morrer) por nós. Dado que todos os seres sencientes têm esta capacidade para ser prejudicados e beneficiados (i.e., podem sofrer e desfrutar das suas vidas), considerar desfavoravelmente um indivíduo não humano em relação a um indivíduo humano, apesar de ambos possuírem interesses similares, é incorrer numa forma de discriminação baseada na espécie (especismo), a qual constitui, de resto, uma posição injustificada. Desse modo, uma posição especista não pode justificadamente oferecernos razões para não intervir na natureza.

3. Ambientalismo Outra forma possível de oposição à intervenção consiste em defender alguma variante de ambientalismo. De acordo com esta posição, temos razões para não intervir na natureza na medida em que fazê-lo compromete determinados valores ambientais considerados mais importantes. Dependendo da teoria ambientalista defendida, esses valores são variáveis: segundo as perspetivas holísticas, tais valores correspondem ao equilíbrio eco-sistémico ou à preservação das espécies9; na linha das perspetivas biocêntricas, esses valores consistem na preservação de outras entidades vivas (e.g., plantas e outros organismos não sencientes)10; finalmente, outras perspetivas identificam o “natural” ou o “selvagem” como valores a serem preservados11. O problema com as perspetivas holísticas consiste, de forma crucial, no facto de assentarem em assunções axiológicas bastante implausíveis. Se a preservação dos ecossistemas ou das espécies em seu conjunto tem valor em si mesma, independentemente do impacto que tem nos indivíduos, então esse valor deve ser preservado mesmo que isso implique o sacrifício de interesses fundamentais (e.g., não sofrer e viver). Contudo, isto parece inaceitável a partir de um ponto de vista moral. Mesmo que aceitemos que os valores ambientais importam em certa medida, a sua preservação deve estar sujeita ao impacto que tem nos indivíduos sencientes. De facto, isto é algo que a maioria dos ambientalistas defende quando estão em jogo interesses humanos. Mas se é assim, e rejeitando o especismo no sentido de considerar igualmente 9

Leopold (1989 [1949]), Callicott (1980).

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Schweitzer (1973 [1923]); Taylor (1986).

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Godfrey-Smith (1979); Katz (1996); Elliot (1997).

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os interesses humanos e dos animais não humanos, a duplicidade de critérios morais não está justificada. Ou aceitamos que a preservação dos conjuntos ecológicos deve ser perseguida apenas quando não implicar o sacrifício dos interesses de animais não humanos (e, nesse caso, a intervenção estaria justificada) ou teremos de admitir que a preservação dos conjuntos ecológicos deve ser perseguida como um fim em si, mesmo quando implicar o sacrifício dos interesses de indivíduos sencientes, incluindo os dos seres humanos (e, nesse caso, adotaríamos uma teoria imensamente implausível). Algo semelhante ocorre, na prática, com o biocentrismo. Este sustenta que todas as entidades vivas são moralmente consideráveis; neste sentido, quando confrontado com um choque entre os interesses de indivíduos sencientes (humanos e não humanos) e a preservação de plantas e outros organismos vivos, o biocentrismo não nos permite saber que valores devem ser priorizados. Contudo, em tais situações de conflito (e.g., o caso de um cão infetado com uma bactéria), parece inequívoco que os interesses de um animal senciente em não sofrer e em desfrutar da vida devem prevalecer face à preservação de outras formas de vida não sencientes. Isto é algo evidente, uma vez mais, quando consideramos interesses humanos (substituamos o cão por um bebé humano). Também aqui não existem razões que justifiquem tal excepcionalismo, isto é, o favorecimento de interesses humanos contra a preservação de entidades não sencientes e a recusa em fazê-lo quando estão em causa interesses não humanos similares. Afirmar o contrário seria sucumbir, de novo, ao especismo.

Finalmente, uma forma recorrente de rejeitar a intervenção na natureza consiste em apelar ao valor do “natural”. Há duas formas principais de entender “natural”: por vezes, surge como o resultado dos processos naturais pelos quais a evolução opera; noutras ocasiões, “natural” é entendido como selvagem, isto é, um estado de coisas não modificado pelo ser humano. Em ambas as aceções da palavra, temos razões para não intervir na natureza, uma vez que fazê-lo atentaria contra o suposto valor intrínseco do natural. Contudo, após reflexão, esta posição deve ser rejeitada. De forma crucial, porque a identificação entre o natural e o bom não está justificada. De facto, se julgamos os processos naturais tendo em conta o seu impacto nos indivíduos sencientes, verificamos que este é extremamente negativo. Alguém poderia dizer que, ainda assim, o valor do natural deve prevalecer sobre o bem-estar individual. Porém, nesse caso, teríamos de aceitar, por consistência, que o mesmo se seguiria para o caso humano, isto

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é, que os interesses humanos devem ser sacrificados em prol dos processos naturais (e.g., interesse em continuar vivos e livres de sofrimento). Não aceitar esta implicação seria, uma vez mais, incorrer numa instância de especismo, pelo que o apelo ao natural deve ser rejeitado. De igual forma, o biocentrismo e o holismo como oposições à intervenção na natureza devem ser descartados.

4. Perversidade, futilidade e inexequibilidade

Um conjunto de diferentes objeções à intervenção na natureza pode ser agrupado nas seguintes categorias:

(i)

Perversidade: intervir na natureza terá efeitos perversos, isto é, terá consequências opostas às que são pretendidas.

(ii)

Futilidade: intervir na natureza será fútil, isto é, não terá qualquer impacto na alteração do estado de coisas que procuramos evitar ou aliviar.

(iii)

Inexequibilidade: intervir na natureza é inexequível, isto é, um projeto impossível de pôr em prática.

A objeção (i) está baseada na ideia de que possuímos um conhecimento muito limitado sobre como funcionam os ecossistemas e, nesse sentido, é esperável que as consequências decorrentes da intervenção na natureza terminem por ser, afinal, muito piores para os animais do que o atual estado de coisas. Consideremos, por exemplo, o caso da predação: se interviéssemos para prevenir ou aliviar o sofrimento causado aos animais que são predados, os seus níveis populacionais ultrapassariam a capacidade de carga do ambiente. Este facto agudizaria a escassez de recursos e conduziria a um consequente aumento das mortes por inanição. Portanto, não devemos intervir. No entanto, estar num estado de incerteza epistémica não equivale a estar seguro de que as consequências decorrentes da intervenção na natureza serão negativas. Não sabemos simplesmente. Na realidade, a discrepância é simplesmente aparente. Isto é assim porque quem defende a intervenção na natureza afirma que esta só está justificada quando, tendo em conta todos os dados empíricos disponíveis, é razoável esperar que o resultado de intervir será positivo. Assim, intervencionistas e anti-intervencionistas

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estariam em desacordo com todas aquelas intervenções prejudiciais desde o ponto de vista do bem-estar dos animais na natureza. Por outro lado, se as posições que se opõem à intervenção apelam exclusivamente a considerações de perversidade, os antiintervencionistas deveriam apoiar também todas aquelas intervenções na natureza que beneficiariam os animais selvagens. A objeção (ii) assenta na ideia de que qualquer tentativa de melhorar a situação dos animais na natureza terá um impacto insignificante, uma vez que a natureza é uma entidade altamente estruturada que os seres humanos são incapazes de modificar. Será fútil, por exemplo, curar certos animais de uma doença, quando somos incapazes de eliminar a estratégia reprodutiva dominante. Lembremos que esta constitui a principal causa de morte e de sofrimento na natureza devido à qual, em média, por progenitor, todos os animais que vêm à existência morrem, excetuando apenas um. Apesar de identificar corretamente os próprios processos naturais como principal fonte de danos para os animais na natureza, esta objeção assume, incorretamente, que as estruturas da natureza são fixas e que constituem obstáculos inultrapassáveis para qualquer tentativa de engenharia humana da natureza. Todavia, esta posição só pode ser entendida como uma tese sobre as atuais limitações epistémicas humanas para manipular as estruturas básicas da natureza, uma vez que os seres humanos não são, em princípio, incapazes de tal tarefa. Na realidade, a própria ciência constitui um nítido contra-exemplo dessa ideia. O desenvolvimento científico mostra, justamente, que aquilo que considerávamos antes como imutável é hoje, cada vez mais, manejável. Não há razões para pensarmos que a atual incapacidade humana para interferir com êxito nos processos naturais será permanente. Neste sentido, a objeção da futilidade limita-se a assumir mais do que a dar razões a favor da imutabilidade destas restrições naturais. Portanto, não pode sustentar uma oposição geral à intervenção. Há ainda razões adicionais para disputar a objeção da futilidade. No caso humano, não pensamos certamente que é fútil intervir nos processos naturais como, por exemplo, através da vacinação de determinada população, apenas porque somos incapazes de erradicar a doença completamente. Não nos recusaríamos a resgatar populações isoladas em virtude de uma catástrofe natural simplesmente devido à incapacidade humana para prevenir este tipo de processos naturais. Para os indivíduos afetados por tais eventos, intervenções em seu auxílio não poderiam ser consideradas insignificantes. Neste

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sentido, se os benefícios para os indivíduos humanos justificam a intervenção, o mesmo se segue para um cenário onde seja necessário beneficiar indivíduos não humanos.

A objeção (iii) apela à ideia de que a nossa capacidade para ter um impacto efetivo na eliminação ou redução dos danos que sofrem os animais na natureza é atualmente tão limitada que qualquer intervenção que levemos a cabo agora será impraticável. Porém, esta objeção pode facilmente ser contrastada com diversas instâncias de intervenção bem-sucedidas que mostram ser possível intervir já para ajudar os animais que sofrem na natureza. Alguns exemplos à micro e meso-escala incluem o resgate de animais vítimas de acidentes ou órfãos12, o tratamento de animais doentes ou feridos13, a distribuição de comida a populações de animais a sofrer de inanição, a vacinação de animais contra a raiva, a tuberculose ou a outras doenças existentes na Europa e na América do Norte14, assim como a imunização de chimpanzés contra o pólio no Congo15.

Assim, após escrutínio, a objeção da inexequibilidade não consegue fornecer razões suficientemente fortes para pensar que o status quo na natureza deve ser preferido a um estado de coisas alternativo no qual uma intervenção na natureza informada tenha lugar. Portanto, deve ser rejeitada. Além disso, e no que diz respeito àquelas formas de intervenção que são hoje em dia inexequíveis, dada a situação catastrófica na qual se encontram os animais na natureza, temos razões para investir recursos com vista ao desenvolvimento de novos modelos de intervenção que nos permitam ajudar no futuro os animais selvagens de forma mais efetiva.

5. Paternalismo Uma forma comum de oposição à intervenção consiste na ideia de que ajudar os animais que vivem na natureza é um exercício de paternalismo injustificado. É 12

Kirkwood & Sainsbury (1996); Gulland (1999); Hartley-Parkinson (2011).

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Loftin (1985); Bovenkerk et al. (2003); Delahay, Smith & Hutchings (2009).

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Brochier et al (1989).

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Goodall (1986).

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defendido que a intervenção nestes casos limita a liberdade dos indivíduos não humanos e a sua autonomia para decidir o que é melhor para eles. Do mesmo modo que consideramos que não está justificado interferir na vida dos seres humanos, decidindo por eles quando possuem competências para fazê-lo, deveríamos evitar também interferir na vida dos animais não humanos. Todavia, como a própria objeção assume, o paternalismo só está injustificado quando os indivíduos afectados pela interferência externa possuem a capacidade para identificar o que é melhor para eles e se encontram em condições para poder escolher e atuar no sentido de concretizar esse propósito. Efetivamente, reconhecemos que existem alguns seres humanos que não estão nas condições descritas, relativamente aos quais está justificado atuar de forma paternalista. Por vezes, seria inclusive obrigatório fazê-lo. Esse é o caso, por exemplo, dos seres humanos bebés ou crianças. Também é o caso daqueles adultos que apresentam alguma diversidade funcional intelectual de carácter congénito ou acidental. Todos são indivíduos que precisam da ajuda dos demais e, portanto, necessitam das decisões tomadas por outrem acerca do que é melhor para eles. Da mesma forma, os animais não humanos que vivem na natureza não estão em condições de evitar, por si mesmos, os danos a que estão sujeitos. De forma prereflexiva e desde uma conceção anti-científica dos processos evolutivos e da adaptação das espécies ao meio, alguém poderia pensar que isso não é assim. Os animais selvagens, ao contrário dos animais domésticos ou sob exploração humana, estariam capacitados para escolher o que é melhor para eles, uma vez que estão perfeitamente adaptados ao meio natural. No entanto, isto está longe de ser assim. Em primeiro lugar, é falso que os processos evolutivos selecionam aquelas capacidades que permitem aos indivíduos escolher aquilo que lhes fará ter vidas melhores. Estes processos visam unicamente a maximização da transmissão do material genético, pelo que selecionam aqueles atributos que maximizam as possibilidades de os indivíduos sobreviverem até à idade reprodutiva, independentemente dos danos que tenham de sofrer para consegui-lo. Em segundo lugar, esses processos conduzem a uma multiplicação dos danos dos quais os indivíduos padecem na natureza. Exemplo disso é o facto de a maioria deles morrer pouco tempo após o nascimento; os que sobrevivem à idade de maturidade sexual estão sujeitos a

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danos graves e apresentam fortes probabilidades de terem uma morte prematura e dolorosa. Isto significa que a ampla maioria de animais na natureza se encontra numa situação de desamparo similar à daqueles seres humanos que consideramos ter a obrigação de ajudar. Se ajudar estes seres humanos não se trata de um paternalismo injustificado, também não poderá sê-lo no caso dos animais selvagens. Além disso, se pensarmos que no caso humano estaríamos obrigados a prestar auxílio, seria especista defender que essa obrigação não existe no caso dos animais não-humanos.

Conclusão Este artigo defende a ideia de que se temos razões para ajudar seres humanos em situação de necessidade devido a eventos naturais, temos então razões similares para ajudar indivíduos não humanos que sofrem danos semelhantes, independentemente de estes estarem sob exploração humana ou a viverem na natureza. Dada a magnitude e a gravidade dos danos sofridos pelos animais selvagens, as nossas razões para intervir em seu benefício são muito fortes. As objeções mais comuns a esta posição mostram-se, após reflexão, inaceitáveis. Desde qualquer posição plausível, sempre que uma intervenção na natureza for exequível e seja razoavelmente esperável que esta tenha resultados positivos para os indivíduos afetados, devemos levá-la a cabo.

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Academy

of

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