DIACRÍTICA - Dossier 50 anos de Luuanda

July 24, 2017 | Autor: Elena Brugioni | Categoria: Literatura Angolana, Literaturas africanas de língua portuguesa
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28/3 revista do centro de estudos humanísticos série literatura 2014

diacrítica dossier 50 anos de luuanda

Título: DIACRÍTICA (Nº 28/3 – 2014) Série Ciências da Literatura

Diretora: Ana Gabriela Macedo Diretores-Adjuntos: Carlos Mendes de Sousa; Vítor Moura Editor: Orlando Grossegesse / Co-editora: Margarida Esteves Pereira E-mail: [email protected] Coordenadoras do Dossier: Joana Passos e Elena Brugioni Comissão Redatorial: Alcinda Pinheiro de Sousa (Univ. Lisboa), Alva Martínez Teixeiro (Univ. Lisboa), Ana Maria Silva Ribeiro (Univ. do Minho), António Manuel Ferreira (Univ. Aveiro), Antonio Sáez Delgado (Univ. Évora), Carlos Fonseca Clamote Carreto (Univ. Aberta), Carlos Pazos Justo (Univ. do Minho), Christine Zurbach (Univ. Évora), Eunice da Silva Ribeiro (Univ. do Minho), Giorgio de Marchis (Univ. Roma Tre), Glyn Hambrook (Univ. Wolverhampton), Isabel Cristina Mateus (Univ. do Minho), Jaime Becerra da Costa (Univ. do Minho), Joana Matos Frias (Univ. do Porto), Joana Passos (Univ. do Minho), Joanne Paisana (Univ. do Minho), José Cândido Oliveira Martins (Univ. Católica Portuguesa), Livia Apa (Univ. L’Orientale, Nápoles), Maria Cristina Álvares (Univ. do Minho), Maria do Carmo Pinheiro Mendes (Univ. do Minho), Maria Eduarda Keating (Univ. do Minho), Maria Fátima Marinho (Univ. do Porto), Maria Filomena Louro (Univ. do Minho), Maria Micaela Ramon (Univ. do Minho), Mário Matos (Univ. Minho), Miguel Sanches Neto (Univ. Estadual Ponta Grossa), Rita Patrício (Univ. do Minho), Roberto Samartim (Univ. Corunha), Rosa Maria Martelo (Univ. do Porto), Rosario Mascato (Univ. Santiago de Compostela), Sérgio Guimarães de Sousa (Univ. do Minho), Teresa Pinheiro (Univ. Chemnitz), Xaquín Núñez Sabarís (Univ. do Minho), Zulmira Santos (Univ. do Porto) Comissão Científica: Abel Barros Baptista (Universidade Nova de Lisboa), Bernard McGuirck (University of Nottingham), Clara Rocha (Universidade Nova de Lisboa), Fernando Cabo Aseguinolaza (Universidad de Santiago de Compostela), Hélder Macedo (King’s College, London), Helena Buescu (Universidade de Lisboa), João de Almeida Flor (Universidade de Lisboa), Maria Alzira Seixo (Universidade de Lisboa), Maria Irene Ramalho (Universidade de Coimbra), Maria Manuela Gouveia Delille (Universidade de Coimbra), Nancy Armstrong (Brown University), Susan Bassnett (University of Warwick), Susan Stanford Friedman (University of Wisconsin-Madison), Tomás Albaladejo Mayordomo (Universidad Autónoma de Madrid), Vita Fortunati (Università di Bologna), Vítor Aguiar e Silva (Universidade do Minho), Ziva Ben-Porat (Tel-Aviv University). Edição: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho em colaboração com Edições Húmus – V.N. Famalicão. E-mail: [email protected] Publicação subsidiada por FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia ISSN: 0807-8967 Depósito Legal: 18084/87 Composição e impressão: Papelmunde – V. N. Famalicão

ÍNDICE

DOSSIER 50 ANOS DE LUUANDA 9

Introdução Joana Passos e Elena Brugioni

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Luandino na imprensa Dois documentos

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Na cinqüentenária Luuanda, o doloroso retrato de dois jovens Laura Cavalcante Padilha

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Tematização linguística: arte narrativa em Luuanda Ana Mafalda Leite

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As estórias de Luuanda como ‘fábulas angolanas’: entre disjunções e confluências Inocência Mata

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Luuanda: a traição bem-vinda Rita Chaves TRIBUTO A LUUANDA

67 71 73 77 83

Ana Paula Tavares Ondjaki São Lima Luís Bernardo Honwana Adelino Timóteo LITERATURA – INTERCULTURALIDADE – PEDAGOGIA

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A literatura intercultural: desafios e canonização Gesa Singer

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La construcción de la identidad a través de la adopción intercultural en la literatura infantil y juvenil contemporánea Noelia Ibarra, Josep Ballester

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Ecos do Holocausto na literatura portuguesa de potencial receção juvenil Maria da Conceição Dinis Tomé

VÁRIA 145

Du Conto de Amaro au Tratado das Ilhas Novas ou de l’île de SaintBrendan à l’île des Sept Cités : la représentation du monde au Moyen Âge et à la Renaissance entre mythe et réalité João Carlos Vitorino Pereira

171

Figuras heroicas no Horto do Esposo Elisa Nunes Esteves

181

O mundo pela arte: os sonhadores de Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, e Ao Arrepio, de Joris-Karl Huysmans José Bértolo

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Todo lo cercano se aleja. Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas, da autoficção ao ‘espaço biográfico’ Ana Paula dos Santos de Sá

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The Image of the Mythical Woman in Mid-Victorian Gynotopia: Gender and Genre in Alfred Tennyson’s The Princess (1847) Paula Alexandra Guimarães

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Acción… poética en Huidobro Jorge Rosas Godoy de Sá

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Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé Sendas Daniel Tavares

289

O rosto da linha – Ana Hatherly Joana Batel

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Roy Williams: an Overview of his Dramatic Output (1995-2010) Célia Oliveira

331

As estórias dentro da História: construções ambíguas da memória em O Olho de Hertzog de João Paulo Borges Coelho António Mota RECENSÕES

351

Os Memoráveis Isabel Cristina Mateus

357

L’érotisme au Moyen Âge. Le corps, le désir, l’amour Sérgio Guimarães de Sousa

365

Valle-Inclán y las artes Carlos Pazos Justo

In memoriam Carlos Manuel Ferreira da Cunha 1962-2014

Dossier 50 anos de Luuanda

INTRODUÇÃO Joana Passos e Elena Brugioni

No Colóquio de Outono de 2013, subordinado ao tema As Humanidades e as Ciências, Disjunções e Confluências, o Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho tomou a iniciativa de organizar uma Mesa Redonda sobre o cinquentenário de Luuanda, de Luandino Vieira, obra fundadora da moderna literatura, escrita, de Angola, e emblema de uma intervenção literária que reuniu vários escritores dessa mesma geração de 1950 / 1960 em torno da causa da libertação nacional. Embora Luuanda fosse efetivamente publicada pela primeira vez em 1964, foi escrita em 1963, na cadeia de S. Paulo, da invocada cidade. As circunstâncias da criação do manuscrito e do seu clandestino caminho do interior da prisão até ao editor, pela mão de Ermelinda Graça, são já parte integrante do percurso extraordinário deste livro, e justificam uma certa antecipação no assinalar da efeméride. A partir das intervenções nessa Mesa Redonda, quisemos deixar memória de tão participada e emotiva sessão, testemunho vivo do reconhecimento que Luandino Vieira conquistou junto de gerações de investigadores, incluindo os mais jovens. E foi este mesmo propósito que motivou a procura de testemunhos por parte de outros escritores, colegas e cúmplices, que quiseram deixar a sua voz associada a este dossier. As organizadoras querem agradecer, em primeiro lugar, a generosidade de Luandino Vieira, pela forma como nos recebeu e se disponibilizou a colaborar, e, por outro lado, o continuado e decidido apoio da professora Ana Gabriela Macedo, Diretora do CEHUM, que acolheu esta iniciativa. Agradecemos também às nossas convidadas, as professoras Ana Mafalda

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JOANA PASSOS E ELENA BRUGIONI

Leite e Inocência Mata, bem como às professoras Laura Padilha e Rita Chaves, os ensaios que nos disponibilizaram. Por fim, o nosso reconhecimento aos escritores que juntaram as suas vozes a esta homenagem e um agradecimento especial a Ungulani Ba Ka Khosa, que, ao saber da iniciativa, se disponibilizou para levar o nosso convite até ao Luís Bernardo Honwana. Luuanda, conjunto de 3 ‘estórias’ escritas em 1963 por Luandino Vieira, ganhou uma maior visibilidade em 1964, quando lhe foi atribuído o prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga, na altura um importante prémio angolano, o qual teve o mérito de estimular a publicação de autores locais, na Angola dos anos 60. O percurso pessoal de Luandino Vieira, o período histórico em que viveu e as formas de intervenção a que não se esquivou são indissociáveis da escolha de temas, perspetiva ideológica, carga humana e afetiva e, até, do inovador uso da linguagem que se encontra nos seus textos. Também o impacto de Luuanda se prende com as posições públicas tomadas por quem o escreveu. Em 1959, no âmbito do chamado Processo dos 50, a PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado — efetuou um conjunto de prisões de destacados nacionalistas angolanos com o objetivo de desorganizar, ou pelo menos adiar, a eclosão da guerra de libertação em Angola. Luandino Vieira foi um dos nacionalistas presos no âmbito deste processo. Quando escreve Luuanda, em 1963, é um preso político em virtude das suas convicções nacionalistas, e já decorria a guerra de libertação de Angola (1961-1975). A situação vivida pelo autor enquadra estes contos como escrita comprometida, e por isso é pertinente recordar o percurso de Luandino Vieira, para se contextualizarem as motivações que subjazem à escrita, e se explicitar o receio que estes textos inspiravam ao regime ditatorial do Estado Novo. Mais tarde, em 1964, Luandino Vieira acabaria por ser transferido para a prisão do Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde, onde ficou oito anos. Tratava-se portanto de uma voz que se queria silenciar, um ativista a manter longe de Luanda. No ano seguinte, em 1965, Luuanda ganhou o 1º Grande Prémio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Autores, e desencadeou um polémico processo político, que teve o efeito oposto ao pretendido: quanto mais se pretendia silenciar o impacto destes textos, mais mítica se tornava a obra de Luandino Vieira. Com a atribuição do prémio pela Sociedade Portuguesa de Autores – o que levou ao encerramento da mesma pela polícia política do Estado Novo – Luuanda tornou-se um símbolo de resistência, alinhada à esquerda, que unia uma parte da intelectualidade portuguesa aos ativistas que pugnavam pela libertação das várias nações africanas ainda coloniza-

INTRODUÇÃO

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das por Portugal. Luuanda torna protagonista o povo de Luanda, por contraste com os bairros coloniais da “Cidade Alta”, revelando a base operária, explorada, dessa Luanda do musseque que, unida e resoluta, é o símbolo de uma idealizada nação africana a germinar. Doze anos depois da escrita de Luuanda, Angola torna-se um país independente, a 11 de Novembro de 1975. Neste processo histórico, a escrita literária de Luandino Vieira teve um importante papel de consciencialização política e de elucidação dos termos do conflito, ao mesmo tempo que ofereciam ao leitor angolano uma base de identificação com uma identidade angolana, distinta da portuguesa, que era urgente afirmar. Luuanda é portanto uma obra que nasce ligada a um contexto de resistência e afirmação, em sintonia com outras literaturas de língua portuguesa que na altura enfrentavam os mesmo desafios. Não é, apesar desta responsabilidade histórica, um livro datado, pois a vitalidade do texto continua a cativar leitores e permanece vivo testemunho da identidade angolana e das questões que ainda hoje aguardam resposta nessa sociedade. O livro Luuanda veio a ser reeditado 17 vezes[1], e foi traduzida para russo, alemão, checo, dinamarquês, sueco, inglês, italiano, polaco, espanhol e francês. As duas últimas reedições saíram simultaneamente em Luanda e Lisboa, em 2004 e 2008. Em tom de conclusão acrescentaríamos que, em 2006, o Prémio Camões foi atribuído a Luandino Vieira, que na altura ainda vivia isolado e silencioso, recluso no convento de San Payo, em Vila Nova de Cerveira, onde esteve cerca de 10 anos. Aparentemente, nos últimos anos, o escritor reencarnou num avatar mais mundano, recomeçou a reescrever depois de uma longa interrupção, e redescobriu a teia de amigos e colaboradores que o reclamam para o mundo. Luandino Vieira tem também uma faceta de editor, com a editora Nóssomos, através da qual, mais uma vez, está a fazer as coisas que têm de ser feitas, como reeditar publicações raras de autores angolanos (e não só), divulgando de novo a sua obra. Em nome de muitos, obrigada por tanto, Luandino.

1 Dez das reedições de Luuanda são das Edições 70, editora com um papel destacado na divulgação de autores angolanos e moçambicanos em Portugal, fazendo a ponte entre os intelectuais dos dois países num período de grandes convulsões históricas e políticas. Quatro edições são angolanas, três delas da União de Escritores Angolanos.

Jornal de Notícias, Suplemento Literário 5, 11-02-1965

NA CINQÜENTENÁRIA LUUANDA, O DOLOROSO RETRATO DE DOIS JOVENS LUUANDA FIFTY YEARS LATER: THE PAINFUL PORTRAIT OF TWO YOUNG BOYS Laura Cavalcante Padilha* [email protected]

O artigo propõe uma leitura de Luuanda, tomando como motivo inicial o poema “Canção para Luanda”, de autoria do mesmo Luandino Vieira, para tentar demonstrar como, embora movido pelo mesmo amor pela cidade, o produtor nos apresenta, no poema de 1958 e nos contos de 1963, retratos de figuras humanas bastante diferentes entre si. O movimento seguinte do texto consiste em focalizar, em Luuanda, dois jovens desvalidos, para demonstrar a ternura com que o autor os cobre nos contos em que ambos são retratados, ou seja, respectivamente: “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos” e “A estória do ladrão do papagaio”. Palavras-chave: Cidade de Luanda; formas de representação; cumplicidade autoral *

Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense, título obtido em 2011; Pesquisadora Nível 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Assessora ad hoc de diversos órgãos de fomento brasileiros, como o CNPq, a CAPES e diversas Fundações de Amparo à Pesquisa do país. Também é Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e foi outorgada, em 2011, com a Cátedra Professor Carlos Lloyd Braga da Universidade do Minho. Durante seu percurso acadêmico, atuou administrativamente como Vice-diretora da Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, hoje Campus Avançado da UERJ e, no âmbito da UFF, exerceu os cargos de Coordenadora do Curso de Mestrado em Letras; Chefe da Coordenadoria de Pós-Graduação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação; Diretora do Instituto de Letras e Diretora da Editora desta mesma instituição de ensino. Entre as principais obras publicadas destacam-se: O espaço do desejo: uma leitura de A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queiroz (1989); Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX (1995 e 2007); Novos pactos outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras (2002). Também co-organizou, com Inocência Mata: Mário Pinto de Andrade: Um intelectual na política (2001); A poesia e a vida: homenagem a Alda Espírito Santo (2006) e A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente (2007); com alunos da UFF: Bordejando a margem – poesia de mulheres: uma recolha do Jornal de Angola (2007); com Margarida Calafate Ribeiro, Lendo Angola (2008) e, por fim, com Renata Flávia da Silva, De guerras e violências – palavra, corpo, imagem (2011).

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LAURA CAVALCANTE PADILHA

The article proposes a reading of Luuanda taking as crucial motive the poem “Song for Luanda”, also by Luandino Vieira, in order to show that although the author remains driven by the same love for the city, he presents, in the poem from 1958 and the tales from 1963, portraits of quite different human characters. The next aim of the article is to focus, in Luuanda, on two young, underprivileged boys, so as to demonstrate the empathy the author expresses for these figures in the tales where both are depicted, respectively: “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos” and “A estória do ladrão do papagaio”. Keywords: City of Luanda; representation forms; authorial complicities.

Como se fora uma epígrafe, pergunto: é possível ainda falar de uma obra que nos acompanha por tanto tempo e na qual sempre acabamos por descobrir algo que ainda nos surpreende, por sua atualidade e pertinência? Respondendo a mim mesma, eu diria que, em meu caso pessoal, gostaria de deixá-la quieta, sem interferir em seu infinito jogo de sedução, embaçando-a com meu próprio texto de escrevente. Assim, sem compromisso, seria possível mergulhar, outra vez, no puro prazer do texto de que fala Roland Barthes (1975). Mesmo sabendo disso, porém, tentarei, aqui e agora, retomá-la, pois essa ‘senhora’, embora cinqüentenária, não perdeu seu viçoso brilho de juventude e continua a nos seduzir, sem remissão, pelo que se torna uma cobra esperta, sempre a nos olhar com aquele seu jogo de mostra-esconde, pelo qual nunca a conseguimos capturar. Para dar início, pois, a essas breves reflexões sobre tal obra, começo por dizer que o não menos esperto autor de Luuanda sempre gostou de nos apresentar retratos do povo que habitava e / ou habita sua amada cidade, daí, por seu pacto fundante com ela, fazer-se José Luandino Vieira. Mais que produzir as fotos, ele também sempre se esforçou por pendurá-las em nosso imaginário leitor, dele fazendo uma galeria a que sempre voltamos com o mesmo deslumbramento do primeiro dia. Repare-se que, ainda nos anos 50, Luandino já desejava falar de Luanda, daí o poema que a retrata como sendo uma “– QUITANDEIRA NEGRA A QUEM VESTIRAM PANOS AMERICANOS DE VÁRIAS CORES” (Vieira, 1958). A abertura do texto, estiletada pelo uso da ‘caixa alta’, já meio que desconcerta o leitor aficionado por poesia, sobretudo quando ele se preparou para ouvir uma “Canção para Luanda”, o que o faz perguntar-se: “Como assim? Uma cidade negro-africana vestida de panos americanos?”. Não

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resistindo, este leitor imerge, já aflito, no texto, para tentar encontrar uma resposta apaziguadora e, desse modo, fazer frente ao desafio da decifração. No poema, aqui citado a partir do Boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império (Vieira, 1958) é lançada uma pergunta, “– Luanda onde está?”, pergunta esta que esbarra no Silêncio nas ruas Silêncio nas bocas Silêncio nos olhos (Idem, 27)

O sujeito lírico, de partida, demonstra sua dificuldade em encontrar a resposta, pois todos aqueles a quem a interrogação se dirige são trabalhadores muito ocupados. Assim, ele, um quase flâneur, continua a indagar, chamando tais trabalhadores por seus nomes e profissões, pelo que indica conhecê-los bem de perto. Ficamos sabendo, a seguir, o motivo de sua aflição, ou seja, que ela deriva do fato de não mais encontrar As casas antigas O barro vermelho As nossas cantigas [...] Meninos nas ruas [...] (Idem, 28)

elementos afetivos e composicionais da paisagem física, cultural e humana da cidade antiga. Ao final do poema, ele recebe a resposta das três mulheres, Rosa, Maria e Zefa, que, com “A esperança nos olhos / A certeza nas mãos”, os panos a cobrirem seus corpos gastos e apontando para o coração lhe respondem: “– Luanda está aqui!” (Idem, 29; negrito meu). Já em Luuanda, escrita em 1963 e publicada em 1964, não mais se encontram a “Mana Rosa peixeira”, a “Mana Maria quitandeira” e/ou a prostituta “Zefa mulata / O corpo cubata / Os brincos de lata” (Vieira, 1958: 28), ou, ainda, o “Mano dos jornais”, mas um novo tipo de gente que tem de suportar a fome; a privação; a guerra; as prisões; a espoliação; etc..

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LAURA CAVALCANTE PADILHA

Fazem-se outros, pois, os retratos pintados na obra e que se penduram na parede de nosso próprio imaginário leitor. Em especial e, para comprovação dessa mudança no modo de sentir e pensar Luanda, por parte do seu arquiteto de palavras, escolho dois desses retratos, ou seja, o de dois jovens habitantes dos musseques da cidade, jovens que são vítimas de todo um processo histórico, político e social que os esmaga, impedindo que os sonhos, tão importantes nessa época da vida, sejam postos de pé. Trata-se de Zeca Santos e de Garrido Kam’tuta, respectivamente personagens do primeiro e segundo contos, e que, apesar de criados há 50 anos atrás, nos remetem a muitos outros rapazes que, até hoje, subsistem em desesperança nos nossos países, considerados por muitos como pertencentes a um ‘terceiro mundo’, portanto, como algo ‘fora do lugar’. Os que assim nos nomeiam não lembram, ou não querem lembrar, que nossos países são a resultante da mesma ação imperialista, que só poucos de nós acreditam ter deixado de existir no novo mundo em que vivemos. O manto do neocolonialismo, há tempos, ocupou o espaço do colonialismo clássico, como previsto por Amílcar Cabral (1980), dentre outros, e continua a exercer a mesma força predadora. É importante notar que os narradores dos dois contos – “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos” e “A estória do ladrão e do papagaio” –, máscaras sob as quais se esconde o rosto do autor, apresentam esses jovens com características físicas e sociais muito próximas. Ambos são desvalidos, sendo que o segundo o é fisicamente, pois atingido pela poliomielite. Também se fazem sujeitos amantes que não conseguem concretizar seus desejos amorosos, justamente por não terem o que oferecer aos objetos de seu amor, Delfina e Inácia, mulheres muito diferentes entre si. Desse modo, os dois são retratados como vítimas do desemprego e da discriminação de uma sociedade ainda presa nas fortes teias coloniais. Não vou aqui recontar as histórias de vida de Zeca e Garrido, já tão nossas conhecidas, mas tão somente tentar mostrar a ternura que o autor de Luuanda demonstra sentir por esses dois quase-meninos, moradores de velhas cubatas e disseminados pelos espaços habitados pela população desvalida da cidade, outrora sede do poder colonial e que, depois de 1961, quer tornar-se apenas angolana e sediar uma nova nação, daí a razão de sua luta. Começo, portanto, ressaltando as semelhanças entre os dois personagens, como nos mostram, por exemplo, as cenas em que ambos quase conseguem realizar fisicamente seus desejos amorosos, momentos estes em

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que eles como que se animalizam, ora um rastejando pelo chão, ora o outro a andar, como um símio, com as mãos sobre a terra. Resgato fragmentos das duas cenas, lembrando que a de Garrido é muito mais dramática, em todos os sentidos que a de Zeca, e chega a beirar mesmo o trágico: Zeca Santos ficou um tempo deitado de barriga a chupar um capim, sem falar nada, e depois começou rastejar parecia era sardão [...]. (Vieira, 1964: 29) Com as lágrimas quase a chover, [Garrido] baixou a cabeça, estendeu os braços magros e pôs as largas mãos no chão. Nem precisou dar balanço nem nada, o corpo ficou pendurado para baixo, uma perna no ar, a outra fina, aleijada, enrolou logo no pescoço. (Idem, 61)

É interessante que Inácia se comova e reaja, com histeria e por raiva de si própria, insultando Garrido, enquanto Delfina, mesmo agredindo o rosto do outro rapaz e apesar de também insultá-lo, profere uma frase que acaba por revelar seu carinho por ele, ao contrário da outra. Do mesmo modo os jovens se aproximam pela “foto” de seus rostos. O de Zeca é mostrado, em primeiro plano, como sendo uma face marcada pelos “riscos teimosos as fomes já tinham posto na cara dele, de criança ainda” (Idem, 35). Já o narrador do segundo conto, ecoando o primeiro e dizendo, ao contrário deste, que conta o que lhe já tinha sido contado, vai ressaltar, ao focalizar o rosto de Garrido, sua “pele lisa [...] cheia de riscos em todos os lados, a fome não enchia as peles e a tristeza punha-lhe velhice, mesmo que era um mais novo.” (Idem, 56). A fome, assim iluminada, como navalha fina e afiada, escarifica ambas as faces, envelhecendo-as precocemente. As diferenças entre Zeca e Garrido, chamados de “monandengues” pelos dois contadores da letra, são igualmente significativas. Basta que se veja, por exemplo, a questão do choro e das lágrimas. Garrido é mostrado, naquela cena com Inácia, como alguém que “quase chora”, enquanto Zeca desfaz-se em pranto desde sua primeira entrada na cubata, quando ele diz à avó não ser ladrão e, depois, já mais calmo, dá-se conta de que a esperta mais-velha confunde, pela fome, raízes de dália com “mandioca pequena” (Vieira, 1964: 16). Essas lágrimas dolorosas retornam, por fim, na cena final em que o narrador, seu cúmplice na dor, diz que ele “[...] nada mesmo que [...] podia fazer já, encostou a cabeça grande no ombro baixo de vavó

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Xíxi Hengele e desatou chorar um choro de grandes soluços parecia era monandengue [...]” (Idem, 35). Outras duas diferenças se fazem, também, elementos fundamentais para demarcar a fronteira da personalidade dos dois jovens. Trata-se da forma como seus corpos se vestem, por assim dizer. Para Zeca, o que importa é a sua bonita e cara camisa, embora seu sapato, que ninguém vê, esteja roto e o incomode profundamente. Isto demonstra seu desejo de ser identificado pelo que, na verdade, não é e, assim, fazer-se um jovem de sua época. Enquanto isso, pouco sabemos sobre o modo como Garrido se veste, o que demonstra que ele é construído como alguém que se volta mais para dentro de si mesmo, vivendo sua luta diária contra seu próprio corpo que, pela deficiência física, não tem como esconder. Faz-se, por isso, vítima do escárnio até de um velho e sujo papagaio, cuja dona é Inácia, também ela sempre a chamá-lo, aos gritos, de aleijado. A segunda distinção é que Zeca acaba por aceitar sua derrota, daí concordar, embora a contragosto e envergonhado, com o trabalho escravo que lhe é oferecido pelo “feitor”, negro como ele, a lembrar os brancos dos velhos tempos. Já Garrido, mesmo que, pela atitude aviltante de Inácia, deixe escorrer rapidamente pelo rosto o “cacimbo das lágrimas” (Vieira, 1964: 62), decide não fazê-lo mais e enfrentar a vida e as humilhações de frente e sem medo. É o que nos mostra a cena em que ele desafia a força de João Miguel, pedindo para que este o espanque; sua decisão de roubar o papagaio, sempre a insultá-lo, para, em seguida matá-lo, o que não faz, e, por fim, o rebelar-se contra o quase pai, Dosreis, quando este o acusa injusta e mentirosamente de ter participado do roubo dos patos, daí ser preso também. Não é por acaso que, no retrato de Garrido, sobressaiam seus olhos azuis que, de doces, se tornam metálicos, passando a amedrontar seus oponentes. Também suas ações, por sua vez, sempre marcadas pelo amor respeitoso dedicado ao outro, inclusive à Inácia, ganham força e deliberação. A meu ver, um novo sujeito se levanta em Garrido Kam’tuta, ao contrário daquele que se entrega em Zeca Santos e precisa do apoio da avó para sustentá-lo. Talvez o autor, mascarado de narrador de segundo grau, queira que vejamos, no quadro por ele pintado em “A estória do ladrão e do papagaio” – em que o coletivo se faz maior que as relações individuais –, ser possível que um corpo físico em desconcerto busque força para lutar, como se dava naquele momento, com o da própria nação rebelada. Garrido Kam’tuta,

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assim, e já pelo convívio que terá com Xico Futa, que o conhece até então apenas superficialmente, talvez venha a ouvir a estória do cajueiro e de sua resistência e, um dia, se possa fazer, como o outro, um sujeito lúcido, apaziguador, sereno e consciente de sua força moral. Desse modo, no futuro, e uma vez já vitoriosa a luta, talvez Garrido Kam’tuta possa, ao contrário de Zeca Santos, rechaçar os “panos americanos” da camisa que veste e dizer, como as três mulheres do poema vestidas, em diferença, com seus “[...] panos pintados / garridos / caídos [...]: ‘– Luanda está aqui!’” (Vieira, 1958: 29).

Referências Barthes, Roland (1977), O prazer do texto, trad. J. Guinsburg, São Paulo: Perspectiva. Cabral, Amílcar (1980), A arma da teoria, Rio de Janeiro: Codecri. Coordenação de Carlos Comitini (Coleção Terceiro Mundo; v. 4). Vieira, Luandino (1958), “Canção para Luanda”, Mensagem, Boletim da Casa dos Estudantes do Império, ALAC, v. I., ano I (1958), nº 3, pp. 27-29. _____ (1964), Luuanda, Luanda: Oficinas Gráficas ABC.

[Recebido em 9 de julho de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de 2014]

TEMATIZAÇÃO LINGUÍSTICA E ARTE NARRATIVA EM LUUANDA LANGUAGE THEMATIZATION AND THE NARRATIVE ART IN LUUANDA Ana Mafalda Leite* [email protected]

Luandino Vieira marca, com a publicação de Luuanda (1964), um momento fundamental na escrita literária angolana que retoma vários dos trilhos experimentais no tratamento da língua e da arte narrativa angolana. Palavras-chave: literatura angolana, língua, arte narrativa, estória The publication of Luuanda (1964) by Luandino Vieira establishes a key moment in Angolan literary writing, incorporating various experimental trends in the treatment of language and narrative art. Keywords: Angolan literature, language, fictional writing, tale

A ficção angolana destaca-se das experiências ficcionais dos outros países africanos de língua portuguesa pela variedade de propostas linguísticas utilizadas. A emergência de um escritor como Luandino Vieira motivou um grau de experimentalismo linguístico que se vem a detetar anos mais tarde, com variantes diversas, em outros escritores, como é o caso de Manuel Rui ou de, um dos mais recentes, Ondjaki. *

Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Investigadora do CesA (UL). Publicou sete antologias de ensaios críticos, oito livros de poesia e editou recentemente os dois volumes que reúnem o produto do último projeto de investigação que coordenou: Nação e Narrativa Pós-colonial (Entrevistas a escritores angolanos e moçambicanos) e Nação e Narrativa Pós-colonial (Ensaios), ambos de 2012.

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A língua torna-se, além de uma estratégia verbal, ela própria ‘tema’, uma vez que nela começa o trabalho ficcional, a captação rítmico-cultural da angolanidade. Sujeita a maior ou menor grau de criatividade, a língua portuguesa procura encontrar a sua identidade angolana, nomeadamente e em especial na área urbana luandense, cujo grau de aculturação tem uma ascendência e tradição que se prolongam retrospetivamente pelo menos até ao século dezanove. A proliferação de uma escrita ambaquista[1] é um exemplo que virá a ser retomado na ficção de Luandino Vieira. A aventura linguística começou com os primórdios da literatura angolana. Joaquim Dias Cordeiro da Matta que publicou entre muitos trabalhos sobre a sua língua-mãe, uma Cartilha Racional para se Aprender a ler o Kimbundu Escrito Segundo a Cartilha Maternal do Dr. João de Deus (1892), ao escrever a sua poesia em registo duplo, colocando paralelamente o kimbundu ao lado do português, iniciou um processo de criação linguística, cuja herança virá a tornar-se no futuro suscetível de tratamento diversificado. Com efeito, Luandino Vieira marca, com a publicação de Luuanda (1964), um momento fundamental na escrita literária angolana que retoma vários dos trilhos experimentais no tratamento da língua, iniciados anos antes. Foi-lhe atribuído o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965, motivo que levou ao encerramento daquela instituição pela polícia política portuguesa (vd. Ferreira, 1980). Um dos membros do júri, Alexandre Pinheiro Torres recenseou criticamente a obra nos seguintes termos: Três histórias que são – tão-somente no meu modesto juízo que não pretendem sobrepor-se aos dos mais competentes e ao do tempo – três obras-primas do nosso conto contemporâneo, e a enorme e imprevista revelação de um escritor de sensibilidade excepcional e de notável capacidade de criação de um estilo: o estilo que resulta da sapiente fusão de regionalismos e latinismos (da mesma forma que Guimarães Rosa), o estilo que deriva da mesma linguagem onde as tropelias fonéticas, sintácticas e semânticas sofridas pelo português em contacto com os linguajares tradicionais autóctones são apropriados de maneira superior para a obtenção de uma escrita que, durante a leitura, me foi quase sempre, motivo de admirada e deleitada surpresa. (Torres, 1965) 1 A vila de Ambaca, uns quilómetros ao norte de Malange, foi desde cedo um ponto comercial. Emergiu aí uma elite de africanos letrados, os ambaquistas, que ganhavam a vida como amanuenses para sobas analfabetos e colonos incultos. Designa-se de ambaquismo este fenómeno de escrita.

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Antes desta obra, que marca uma rutura na sua escrita, Luandino Vieira já tinha escrito A Cidade e a Infância (1957), seguindo-se A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961) e Vidas Novas (1968). Publica depois a partir de 1974 Velhas Estórias, No Antigamente, na Vida, e Nós, os do Makulusu. Seguem-se Macandumba (1978), João Vêncio: os Seus Amores (1979), Lourentinho Dona Antonia de Sousa Neto & Eu (1981). Após uma longa pausa na escrita, publicou recentemente De Livros Velhos e Guerrilheiros, O Livro dos Rios e o Livro dos Guerrilheiros (2006), além de vários livros infantis. Luandino Vieira desenvolveu na sua criação tradições já iniciadas anteriormente na literatura angolana: a crítica social, a atitude expressamente anticolonialista, a ironia paródica. Retoma de forma indireta a herança de ficcionistas como Alfredo Troni, António de Assis Júnior e Castro Soromenho, uma vez que recupera a tradição da narração oral, a crítica de costumes, a dimensão simbólica alusiva. Introduz nos textos repetições e redundâncias discursivas intercalares, aberturas e fechos da narrativa característicos da tradição oral. Utiliza ainda técnicas expressivas que lhe advêm da utilização do kimbundu, língua que acentua e permite a animização de conceitos mais abstratos, e uma dimensão mágico-espiritual mais ampla. Por outro lado, Luandino recorre a uma modernização da linguagem ficcional através do aproveitamento do discurso indireto, do monólogo interior, do fluxo de consciência, da intertextualidade lexical e mudança constante de planos e perspetivas, e ainda pelo recurso a técnicas narrativas próprias da linguagem cinematográfica como a composição, recomposição e montagens. Com efeito, no livro de contos Luuanda observa-se essa sinuosidade da técnica narrativa, que ‘naturaliza’ a oralidade, recompondo-a, recortando-a, recombinando-a, revelando-se assim uma atitude reflexiva sobre o próprio processo estruturador da estória. Simultaneamente ficcional e meta-ficcional, o texto recolhe a tradição oral, modernizando-a, e assume a impossibilidade de acesso a uma verdade, ao considerar haver múltiplas verdades e no seu reverso, outras tantas mentiras. Ambiguidades que a vida e seus “casos” demonstram e que encontram um lugar mais que perfeito na literatura. É isto exatamente o que se lê na ”Estória do ladrão e do papagaio”, incluída em Luuanda: Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, aonde começou, porquê, praquê, quem? saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas,

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as macas? Ou tudo o que na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também um fim doutro princípio e então, se a gente segue assim, para atrás ou para a frente, vê que não se pode partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece...E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdade e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo.

(Vieira, 1964: 82). Salvato Trigo (1980) observou justamente que a “voz-do-povo”: Misoso ietu, kidi; muenhu uetu, makutu – é o melhor juízo valorativo levantado na generalidade por todas as obras de José Luandino Vieira. Integrar os missoso tradicionais na narrativa moderna, como o faz Luandino, corresponderá não só a revificar e perenizar o próprio objeto literário, atualizando as suas origens culturais, mas também a torná-lo mais circulante, e portanto mais sensível aos narratários africanos, na medida em que consegue mimetizar a forma griótica de narração. Os narradores em Luandino, têm, pois, sempre em vista o narratário, como acontece na poética popular. Esta foi descrita e classificada pelo missionário suiço Heli Chatelain em Folk-tales of Angola (1894) e considera a existência de diferentes narrativas orais, as fábulas (com animais) designadas em kimbundu por mi-soso e as histórias verdadeiras com fim instrutivo, designadas por maka. As narrativas históricas são chamadas ma-lunda. Os provérbios, ji-sabu, estão ligados de perto às makas, assim como as adivinhas ji-ngongo (vd. Chatelain, 1960). A este propósito, Phyllis Reisman chama a atenção num artigo sobre Luandino para o uso do termo designativo do género estória, que considera estar baseado na incorporação das estruturas da narrativa oral (Reisman, 1987: 73). A autora refere ainda que Tamara Bender na sua tradução inglesa de Luuanda (1980) sublinha também esta questão: He [Luandino] used the Portuguese termo ‘estórias’ (‘tales’) instead of the more traditional Portuguese term ‘histórias’(‘stories’) because he believed estória more correctly translated the kimbundu word “musoso”, defined as a moral story or allegory, fable, narrative or tale.

(Bender, 1980)

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A ‘estória’ é assim um género característico, que parece ser uma sábia reinvenção da maka e do missoso, mantendo a sua herança de narrativa oralizante e procedimentos estilísticos e retóricos que a tornam recetáculo de herança do cancioneiro oral angolano. Por outro lado, as manipulações linguísticas resultam também dessa necessária adequação entre os ritmos de relato que travejam a representação escrita da narração oral. Se o processo reflexivo da narrativa de Luandino Vieira começa na língua, através da sua tematização, ela estende-se ao género, pelo experimentalismo. Pode-se confirmar que a ‘estória’ é uma opção que Luandino – enquanto griot urbano – escolhe para as suas narrativas e que a obra Luuanda tão significativamente emblematiza. Esta forma híbrida sustenta os vários cruzamentos de género que se encontram na obra de Luandino. Sobre este tema, Carlos Ervedosa (1979) refere que, de forma mais ou menos indireta, se encontram na narrativa oral as matrizes de uma literatura angolana que, a partir da segunda metade do século XX, e em especial com Luandino, foi veículo de um trabalho de subversão da hegemonia do discurso literário europeu metropolitano, aliando a consciência de uma identidade cultural à ideia de nacionalidade e da libertação nacional. As três estórias de Luandino em Luuanda retomam essa herança, em situação de sincretismo, reinventando os elementos do imaginário coletivo e do mitológico. E este sincretismo da voz e da letra constitui tal, como tem sido apontado pela crítica, um dos aspetos da originalidade da sua escrita (Mata, 1992: 52 seg.). Tal sincretismo, com suas formas específicas, parece configurar, efetivamente, uma das dimensões da angolanidade literária, que se define pela confluência de géneros e pela modalização de formas. Por sua vez, a língua é mediatizada por uma forma concreta, a estória, tornando-se elemento indissociável no processo de reatualizar o género literário. É pois assumindo-se como estória que se faz a narrativização do real quotidiano, à maneira dos contadores de ‘estórias’, iniciando Luandino Vieira esta arte com uma obra singela de três narrativas, que misturam elementos fabulares à crítica social. A insistência na tematização linguística é evidência da importância das metamorfoses formais no desenvolvimento da ficção angolana. Luandino Vieira iniciou esse processo com as suas narrativas, e Luuanda, pela sua originalidade, pelo impacto mediático e histórico, torna-se sem dúvida uma obra exemplarmente emblemática neste domínio. Modelo experimental de ritmos e de formas de narrar as estórias, Luuanda é um exercício reflexivo

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sobre a língua e sobre as formas de a narrar, obra que de certo modo está na fundação do diverso desenvolvimento da moderna ficção angolana.

Referências Bender, Tamara (1980), [comentário à sua tradução de] Luandino Vieira, Luuanda, London: Heinemann. Chatelain, Heli (1960), Contos Populares de Angola. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar. Ervedosa, Carlos (1979), Roteiro da Literatura Angolana. Luanda: UEA. Ferreira, Manuel (1980), “Luuanda / Sociedade Portuguesa de Escritores - um caso de agressão ideológica”, in Michel Laban et al. (orgs.), Luandino, José Luandino Vieira e a sua obra – estudos, testemunhos, entrevistas, Lisboa. Lisboa: Ed.70, 1980, pp. 105-116. Laban, Michel et al. (1980, orgs.), Luandino, José Luandino Vieira e a sua obra – estudos testemunhos, entrevistas. Lisboa: Ed.70. Mata, Inocência (1992), Pelos Trilhos da Literatura Africana em Língua Portuguesa. Braga: Cadernos do Povo. Reisman, Phyllis A (1987), “José Luandino Vieira and the ‘new’ Angolan fiction”, LusoBrazilian Review XXIV, 1 (1987), pp. 69-78. Torres, Alexandre Pinheiro (1965),”Vida Literária e Artística”, Diário de Lisboa,14/1/65. Trigo, Salvato (1980), “O Texto de Luandino Vieira”, in Michel Laban et al. (orgs.), Luandino, José Luandino Vieira e a sua obra – estudos testemunhos, entrevistas. Lisboa, Ed.70, pp. 231-248. Vieira, Luandino (1964), Luuanda. Luanda: ABC.

[Recebido em 18 de julho de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de 2014]

AS ESTÓRIAS DE LUUANDA COMO ‘FÁBULAS ANGOLANAS’: ENTRE DISJUNÇÕES E CONFLUÊNCIAS THE TALES OF LUUANDA AS ‘ANGOLAN FABLES’: DISJUNCTIONS AND CONVERGENCE Inocência Mata* [email protected]

Neste artigo reflecte-se sobre a confluência entre as fábulas angolanas e a escrita das estórias de Luuanda, de Luandino Vieira, sublinhando a semelhante natureza retórica dos dois registos narrativos, que partilham objectivos pedagógicos e induzem à reflexão filosófica e moral, preservando uma sabedoria ancestral passada entre gerações. Para além da sua reconhecida dimensão literária, estas histórias constituem um repositório de elementos da cultura angolana oral (misoso e maka), uma memória do quotidiano de Luanda e da cultura dos musseques enquanto afirmam este micro-cosmos como metáfora identitária da nação. No contexto colonial dos anos 50-60 e 70, a escrita de Luuanda demonstra também o poder da palavra e do escritor no desenvolvimento das consciências, bem como a importância estratégica

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Doutora em Letras com pós-doutoramento em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization, Universidade de Califórnia, Berkeley / London School of Economics), professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de Literaturas, Artes e Culturas, presentemente com licença especial para o exercício de funções transitórias na Universidade de Macau, como Prof. Associada do Departamento de Português. É membro do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, da Associação Portuguesa de Literatura Comparada e da Association por L’Étude des Literatures Africaines; Membro fundador da União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe, Sócia Honorária da Associação de Escritores Angolanos e Membro Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa – Classe de Letras. Professora convidada de muitas universidades estrangeiras, é autora de diversos livros e artigos sobre literaturas africanas e sobre a teoria pós-colonial. Algumas das suas obras são: Emergência e existência de uma literatura: o caso santomense (1993), Diálogo com as Ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe (1998), Literatura angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta (2001), Laços de memória & outros ensaios sobre literatura angolana (2006), A literatura africana e a crítica pós-colonial – reconversões (2008), Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe (2010), Ficção e História na Literatura Angolana: o Caso de Pepetela (2011), A Rainha Nzinga Mbandi: história, memória e mito (2012) – para além de obras em co-autoria.

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de recuperar as formas de uma reprimida cultura local. Por fim, a escrita de uma ‘oralidade fingida’, que se evidencia nestes contos, reconhece-se como particularidade da ficção angolana desde o século XIX. Palavras-chave: Literatura angolana, estória, fábula, griot, Luandino Vieira This article discusses the confluence among Angolan fables, and the writing of Luuanda, a collection of short stories by Luandino Vieira. The proposed argument highlights the elfish nature of all these narrative forms, which share pedagogic aims and induce moral and philosophical reflections, perpetuating ancestor wisdom passed on from generation to generation. Beyond their established literary quality, these short stories amount to a repository of elements from oral Angolan culture (misoso e maka) and they capture a memory of everyday life in the musseque neighbourhoods of Luanda as metaphors of Angolan national identity. In the colonial context of the 1950s-1960s and 1970s, Luuanda also stands as an example of the power of words and of the writer in the process of promoting form of awareness while recovering, strategically, elements of the repressed local culture. Finally, the writing of a ‘oralité feinté’, noticeable in these tales, is a defining feature of Angolan fiction since the 19th century. Keywords: Angolan Literature, tale, fable, griot, Luandino Vieira

Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Amadou Hampatê Bâ

Em Novembro de 2013 tive o privilégio de participar na sessão de homenagem a Luandino Vieira, por ocasião de “Os 50 anos de Luuanda, de Luandino Vieira”, realizada no dia 21 de Novembro na Universidade do Minho, no âmbito XV Colóquio de Outono do CEHUM, subordinado ao tema “As Humanidades e as Ciências – Disjunções e Confluências” em que também se assinalaram as seguintes efemérides: o Bicentenário de Wagner; o Centenário de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky; o Centenário de Vinícius de Moraes; e o Centenário de Paul Ricoeur. Tratou-se de uma efeméride antecipada (tal como a que ocorreu durante o V Encontro de Professores de Literaturas / I Encontro da AFROLIC – Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos, em Porto Alegre, de 05 a 08 de Novembro desse mesmo ano). Com efeito,

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Luuanda, obra escrita em 1963, apenas seria publicada em 1964[1], era seu autor à altura já ‘residente’ na prisão do Tarrafal, Cabo Verde. Em todo o caso, porque este texto decorre da minha participação naquela sessão do Colóquio de Outono, opto por manter o título deste texto pois na altura a minha intervenção foi precisamente orientada para a busca dessas categorias na obra de Luandino Vieira, com ênfase num corpus pouco conhecido da obra luandina, os das ‘fábulas angolanas’. Com efeito, a ideia de olhar para a obra de Luandino Vieira a partir de um ângulo diferente do literário, cruzando interlocuções disciplinares diversas, foi um desafio que procurei não recusar. Foi por isso que na altura o meu propósito foi pôr em diálogo as diversas áreas do conhecimento, as suas indagações teóricas e metodologias específicas, de modo a analisar e debater as interfaces possíveis e as questões que cruzam transversalmente essa diversidade de saberes que tendem a ignorar-se respectivamente. Foi, pois, pensando nessas confluências de saberes e estratégias de contação que optei por levar à homenagem não propriamente Luuanda, mas as ‘fábulas angolanas’ a que, a par dos livros expectáveis de Luandino Vieira, o escritor tem vindo a dedicar-se nos últimos anos. Com efeito, o que então me pareceu bem remota porém desafiante foi a semelhança do ritual retórico entre as estórias de Luuanda e as fábulas que compõem a série Sambuadi dia Misoso, seis fábulas ilustradas pelo autor, que tematizam as diversas categorias da ética e da deontologia: Liberdade, Poder, Sabedoria, Justiça, Inteligência, Corrupção… É que, como qualquer texto de natureza gnómica, tanto estas fábulas quanto aquelas estórias transmitem uma experiência que a autoridade da escrita, tal como antes a autoridade da voz dos mais velhos que nos conta(va)m histórias, levavam à descoberta da lição que encerram: em “Estória da galinha e do ovo”, por exemplo, não é difícil chegar à lição veiculada de que a união faz a força e que o sentido da solidariedade é fundamental para a preservação da paz na comunidade, representando as personagens convocadas, ou autopropostas (sô Zé, Azulinho, sô Vitalino, sô Artur Lemos, o sargento), para dirimir o contencioso, “inimigas” da paz no musseque; em Puku Kambundu e a Sabedoria, aprende-se que a força da inteligência e da astúcia é maior do que o poder da força do 1 Muito confusa, aliás, com inúmeras e contraditórias referências cruzadas, até em seus livros e em estudiosos da obra luandina que afirmavam – e escreviam – que Luuanda fora publicado em 1963 (daí algumas homenagens antecipadas!), escrevi ao escritor e pedi-lhe que me dilucidasse sobre este imbróglio temporal. Eis a resposta em email: “Foi escrito em Luanda, no pavilhão prisional da PIDE em S. Paulo e na cadeia do Comando da PSP na Baixa, durante o ano de 1963, publicado pelo ABC em 1964, em Setembro, por força do regulamento do Prémio Motta Veiga e....” (Luandino Vieira, 13 de Agosto de 2014).

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branco, arrogante e injusto, mesmo em situação em que a cor negra é, já em si, uma desvantagem. Diz a propósito Luandino Vieira: O mais sábio (Puku Kambundu) provou a outro que mesmo que se tenha tudo materialmente, falta sempre qualquer coisa, [por isso] ganhou a aposta porque demonstrou que o outro tinha tudo, mas faltava-lhe a sabedoria que é uma coisa que não se vende (...). Havia uma certa arrogância da parte do colonialismo de que eles [os colonialistas] sabiam fazer tudo. Tinham tudo, logo sabiam tudo. Afinal por muito que tivessem havia sempre qualquer coisa que não tinham,  que era a sabedoria para pôr fim aquilo que é tradicional. (Vieira apud Veiga, 2009)

Por isso, a minha proposta de reflexão é que fábulas e estórias luandinas são formas narrativas da elocução verbal que compreendem “mensagens históricas conscientes”, independentemente dos requisitos formais e estilísticos, e funcionam como “um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave[2], isto é, a tradição oral [que] pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra” (Vansina, 2010: 140).

1. Disjunções: uma arquitectura de afectos e enfrentamentos A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. Walter Benjamin

Luuanda, que reúne três histórias (“Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do papagaio” e “Estória da galinha e do ovo”), chamou logo a atenção pela novidade do processo narrativo tendo recebido dois prémios muito importantes: o 1.º Prémio Mota Veiga, atribuído em Luanda em 1964, e o 1.º Prémio do Grande Prémio da Novelística, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, em Lisboa, em 1965, cuja história é do conhecimento geral – pelo menos de aqueles que estudam as literaturas africanas em português. 2 Um pouco mais adiante, em “A tradição como obra literária”, Vansina afirma que “Numa sociedade oral, a maioria das obras literárias são tradições, e todas as tradições conscientes são elocuções orais. Como em todas elocuções, a forma e os critérios literários influenciam o conteúdo da mensagem. Essa é a principal razão das tradições serem colocadas no quadro geral de um estudo de estruturas literárias e serem avaliadas criticamente como tal” (Vansina, 2010: 142).

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Luuanda viria, na verdade, a consolidar uma estratégia narrativa ensaiada pela primeira vez na obra inaugural do autor, A Cidade e a Infância (1960), designadamente no conto “Faustino”, que começa imprimindo na narrativa a sua marca com a apresentação da circunstância em que a história lhe chegou, de que se assume como relator, ou artífice da forma linguística dos factos que compõem a história de Faustino: Contarei agora a história do Faustino. Não foi a Don’ Ana que me contou, não senhor. Esta história eu vi mesmo, outra parte foi ele mesmo que contou. Faustino é o seu nome. Faustino António. (Vieira, 2007: 79)

Esta declaração de veridicidade, que percorre muitas obras de Luandino Vieira, tais como Vidas Novas (1968), Velhas Estórias (1974) e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1974) – aqui marcadamente no final do texto –, e outras mais, acentua a relação do sujeito enunciador com a palavra, que encerra um testemunho daquilo que ele, como pertencente àquela comunidade, é, e de cujo respeito depende a coesão daquela comunidade. E se a oralidade faz nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo (Bâ, 2010: 168), pode dizer-se que para os sujeitos enunciadores luandinos, os narradores das estórias que resultam de testemunhos e/ou relatos oculares, O que se encontra por detrás do testemunho (…) é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra. (Bâ, 2010: 168)

Por outro lado, porque a verdade histórica está sempre estreitamente ligada à fidelidade do registo oral transmitido (Vansina, 2010:156), o jogo de veridicidade que é conseguido através deste procedimento estilístico-cultural instaura, paradoxalmente (por causa do pacto ficcional), uma conflitualidade lúdica com a verdade, em que há a ilustração constante da criação de mundos possíveis pela palavra, contaminada pelo ‘divino’ dado o seu poder criador e operativo. Aqui, e naquele contexto (anos 60 do século XX, musseque Sambizanga, lugar dos ‘causos’), a sátira alia-se à paródia na crítica aos bloqueios da expressão impostos pela censura: Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvide de Dosreis,

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que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe autorizam trabalho honrado. (...) E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado. (“Estória do ladrão e do papagaio”, Vieira, 2006a: 105)

Essas declarações de cumplicidade percorrem o reino narrativo de Luuanda e, assim, o “texto estórico” (o subtítulo de Luuanda é “estórias”) alcança o limiar do testemunho documental cujo enunciador (o narrador), para preservar a fidelidade da transmissão oral, se alimenta de histórias que lhe são contadas. Diz, com efeito, Walter Benjamin em “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936) que, A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros contadores anónimos. (Benjamin, 1987: 198)

Assim, o narrador luandino, qual Leskov, “está à vontade tanto na distância espacial quanto na distância temporal” (Benjamin, 1987: 199). E, apesar de retirar da sua própria experiência o que conta, que entrecruza com vozes subjectivas (“Esta história eu vi mesmo, outra parte foi ele mesmo que contou”. “Faustino”. Vieira, 2007: 79), o que reforça essa autonomia em relação ao universo narrado é o seu comportamento como ‘simples’ relator de factos passados, preocupando-se não com a verosimilhança ou com a conformidade entre o mundo narrado e o ‘mundo real’, mas com a verdade dos factos e a sua expansão metonímica, que significa para além do acontecido: “E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado (Vieira, 2006a: 105). Aparentemente, portanto, não se liberta da factualidade, o que faz com que a ordem histórica choque com a ordem literária, baralhando o protocolo ficcional, num processo que sintetiza bem o despreendimento narracional, na tentativa de se ilibar da responsabilidade diegética e ludibriar, por este procedimento retórico (a ironia), a crítica censória: Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda. Foi na hora das quatro horas. (“Estória da galinha e do ovo”, Vieira, 2006a: 107)

Esse jogo tem uma inflexão metafísica, porventura com maior intensidade em “Estória da galinha e do ovo”, em que dentro da cumplicidade que percorre todo o texto, a voz do narrador se confunde com a de um interlocutor-narratário como, por exemplo, no seguinte trecho:

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(…) e, no fim mesmo, já ninguém que sabe como nasceram, onde começaram, onde acabam essas malucas filhas da nuvem correndo sobre a cidade, largando água pesada e quente que traziam, rindo compridos e tortos relâmpagos, falando a voz grossa de seus trovões, assim, nessa tarde calma, começou a confusão. (Ibidem)

Esta não parece ser apenas a voz do narrador que jura contar apenas a verdade: como começou a confusão, como se espalhou, quem se viu nela envolvido, quem é quem, como terminou, enfim… De quem será, então? Parece ser a voz diferida de um interlocutor, que não apenas ‘condiciona’ o processo narrativo, agindo activamente na própria enunciação (escrita) e no seu julgamento estético, imprimindo-se um papel comunicativo essencial na significação textual. Com efeito, se a escrita dessas estórias se constrói do tecido de vozes enunciativas (narrador, interlocutor, narratário, personagens), a dimensão da oralidade, contaminada pelas estratégias dos textos da oratura, inscreve-se também no plano da recepção (da leitura, no caso), enquanto condicionadora de relações entre as várias instâncias textuais: o narrador que proclama a verdade e que, para a demonstrar, dá constantemente a palavra às personagens e constrói uma combinatória de coloquialidade e oralidade, conciliadas com as inferências subentendidas de um interlocutor – a quem é solicitado que julgue a sua estética. Essas propostas interpretativas parecem decorrer da pressuposição de que um texto que reivindica a condição de relato (Eu só contei o que aconteceu, é o refrão que é reiterado nas três histórias) se quer assumir como registo da palavra falada. Tal pressuposição enforma uma “metafísica da presença” segundo a qual a verdade existe no que está presente à consciência sem mediação (Culler, 1997) – ou seja, sem a ‘elaboração’ da palavra, o que parece ser confirmado pelo tom coloquial que é transversal à escrita luandina. Aliás, o que ressalta nos textos, é a força da palavra oral, como preservação de uma tradição que perpetua a memória dos acontecimentos através da voz humana – como alternativa ao poder de destruição, pois dado o poder de criação da fala humana, A fala pode criar a paz, assim como pode destrui-la. É como o fogo. Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio. (…) A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. (Bâ, 2010: 173)

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Daí também que uma das lições desse conto possa ser a aprendizagem do poder da palavra: tanto Nga Zefa quanto Nga Bina percebem no final que a palavra dos outros era quase sempre destrutiva da relação entre elas – e foi a vavó Bebeca, uma autoridade estatuída pela idade, quem sistematizou de forma performativa essa aprendizagem: “Vavó Bebeca sorriu também. Segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos dos anos, entregou para Bina” (Vieira, 2006a: 131; sublinhado meu). E aqui, mais uma vez, é de se realçar, naquele contexto, o papel do escritor no desenvolvimento da consciência de um contador de histórias, por um lado, numa relação de empatia para com o seu leitor-ouvinte e como força comunitária e, por outro, como ‘ciência’ paralela à crónica dos tempos coloniais. E porque a situação colonial é também de privação de identidade cultural, como um dos males que são corolários de uma situação de dominação estrangeira (e a privação de identidade própria é, no contexto, uma questão fundamental), fazer literatura quase se confundia, na altura, com testemunhar e denunciar as estratégias de dominação: note-se, a propósito, a epígrafe de Vidas Novas, dois versos de Pablo Neruda[3], que sintetiza a dialéctica do processo de escrita do escritor: narrar o vivido, registar a existência. Por outro lado, os títulos (muitas vezes com nomes das personagens para que as narrativas pareçam ‘histórias de vida’ – Vavó Xixi, Zeca Santos; antes, em A Cidade e a Infância, Bebiana, Marcelina, Faustino, Quinzinho; ou nas fábulas da série Sambuadi dia Misoso, Kiombokiadimuka, Kaxinjengele, Puku Kambundu, Ngola Mukongo, Kaputu Kinjila, Kambaxi Kiaxi e Xingandele), assim como a própria designação de ‘estória’ que muitas vezes aparece em subtítulo, sugerem essa função de testemunho, o que aproxima essas narrativas (e as obras de Luandino regra geral) do ritual de contação tradicional. Assim é que o leitor, dimensionado nessa “metafísica da presença”, toma o texto como se ele fosse contado e cada palavra não está livre da presença comunicativa que lhe dá o seu enunciador: o importante para ele é a verdade mais do que a estética, cuja avaliação a atribui a um ‘vocês’, que parece ser o seu ouvinte. Pode dizer-se, neste contexto, que há dois tipos de recepção que as estórias podem suscitar: •

Se o leitor é angolano, conhecendo, pela vivência ou experiência, as relações de convivialidade num musseque de Luanda, tenderá a ensaiar uma leitura que estabeleça uma relação comparativa entre os seus pro-

3 “Hablo de cosas que existen, Dios me libre/ de inventar cosas cuando estoy cantando!” (dois versos do poema “Estatuto del viño” de Pablo Neruda).

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blemas (ou aqueles que partilha) e os das personagens – é a “concretização” da procura de uma autenticidade única na realidade das situações descritas (Stern, 1980: 194); Se não, mas conhecedor da ambiência sócio-cultural do musseque, as suas interpretações e leituras acabarão por ter como base o complexo autoral subjacente à produção textual – e não admira que, neste caso, o crédito de uma projecção autobiográfica desempenhe um papel essencial na significação textual, exponenciando-se a empatia que emana desse jogo enunciativo com a verdade.

É por isso que se pode afirmar que nas obras de José Vieira Mateus da Graça (que, não sendo natural de Luanda, adoptou o gentílico “luandino” para homenagear a cidade que o viu crescer), Luanda é contada e as estórias de Luuanda participam de uma arqueologia literária sobre Luanda, de tal forma poderosa que se pode falar, de facto, de uma “prosa de musseque”, na expressão de Tania Macêdo (2001)[4]: é que essa extensa produção, sobre e a partir de Luanda, com toda a arquitectura de sensações e afectos, sonhos e medos, “acaba por fundar um modelo histórico e nacional-linguístico espacial” (Macêdo, 2001: 244). Esta é, na verdade, uma escrita em que o sujeito da enunciação narrativa funciona como griot[5], quais trovadores e menestréis dos eventos do quotidiano, tal como os outros griots de Luanda (Arnaldo Santos, António Cardoso, Jorge Macedo, Jofre Rocha, Boaventura Cardoso e mesmo aqueloutros autores de uma poesia narrativa, como Mário António, António Jacinto, Viriato da Cruz ou Agostinho Neto) que narrativizam (Hayden White) memórias de vivências e experiências, no sentido 4 Tania Macêdo utiliza a expressão pela primeira vez na sua dissertação de doutoramento intitulada Da fronteira do asfalto aos caminhos da liberdade: imagens de Luanda na literatura angolana contemporânea (USP, 1990). 5 Embora se saiba que não são de longe os únicos guardiães da tradição oral, e que esta casta de tradicionalistas comporta três categorias, o termo griot é aqui utilizado no seu sentido comum: cantadores das histórias acontecidas, reconhecidos pela sociedade na sua profissão, num misto de cronista e poeta-músico – “le conteur”, como sintetiza Bernard Nantet (1992: 4). Convém lembrar, porém, Hampatê Bã para quem “um griot não é necessariamente um tradicionalista ‘conhecedor’, mas que pode tornar-se um, se for essa sua vocação.” E mais adiante: “Não se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar enquanto divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores, contadores de história e animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso (‘cativos de casa’). Para estes, a disciplina da verdade não existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes concede o direito de travesti-la ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam divertir ou interessar o público. ‘O griot’, como se diz, ‘pode ter duas línguas’” (Bâ, 2010: 176178). Ver também, por exemplo: “Os animadores públicos ou ‘griots’ (‘dieli’ em bambara)” (Bâ, 2010: 193-200).

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em que estas noções funcionam nas reflexões de Walter Benjamin (1936)[6], do opressivo quotidiano das relações sociais e afectivas nos bairros luandenses, conformando a estética que tenho vindo a designar como “escrita griótica” da cidade de Luanda (Mata, 2003; 2010; 2012), como nos poemas narrativos de Viriato da Cruz e de António Jacinto, respectivamente: (…) Quando sô Santo passa gente e mais gente vem à janela: - “Bom dia, padrinho...” - “Olá!...” - “Beçá cumpadre...” - “Como está?...” - “Bom-om di-ia sô Saaanto!...” - “Olá, Povo!...”   (…)   Lá vai... descendo a calçada a mesma calçada que outrora subia cigarro apagado bengala na mão... (“Sô Santo”, Poemas, 1961) ********* Naquele tempo A gente punha despreocupadamente os livros no chão ali mesmo naquele largo - areal batidos dos caminhos passados os mesmos trilhos de escravidões onde hoje passa a avenida luminosamente grande e com uma bola de meia bem forrada de rede bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves em alegre folguedo, entremeando caçambulas ... a gente fazia um desafio... (…) (“O grande desafio”, Poemas, 1961) 6 Nesse ensaio, o filósofo alemão distingue a experiência do conhecimento, exemplificada pelo viajante, da experiência da vida quotidiana e tradicional, da vivência, exemplificada pelo camponês, cuja interpenetração torna plena a figura do narrador.

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Trabalho de agentes activos do processo ‘arquivístico’ do passado, essa escrita funciona em convergência com o registo históriográfico das relações sociais, na perspectiva de uma epopeia de resistência face à insuportabilidade do quotidiano feito de repressão, fome, prisão, analfabetismo. A consideração de que “a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”, como ‘lamentara’ Walter Benjamin em 1936 (1987: 200-201), não procede no reino narrativo da ficção luandina. É também de se notar que na obra de Luandino, particularmente nas suas primeiras obras, tal como em outras narrativas da cidade de Luanda, cumpre-se o pressuposto de ‘terra de origem’, impossibilitado que estava o destinador em operar a expansão territorial da colónia, todavia ainda preenchendo os critérios de uma “poética da relação” que Édouard Glissant resgataria anos mais tarde, em Traité du Tout Monde, para dizer que “a poética da relação permite abordar a diferença entre uma terra – local incontornável do ser – e um território – reivindicação como ritual e agora infértil, do ser” (Glissant, 1997: 197).. Note-se, no entanto, que nessa altura talvez seja temerário dizer que essa base urbana concedesse ao processo de simbolização nacional um cunho cosmopolita. É verdade que esse processo obedeceu a uma lógica de entidades micro-históricas (vivências próprias e outras, conhecidas e ouvidas, sabidas e sentidas), porém a partir de elementos lineares da tradição, com a sua autoridade, e mediatizados por um olhar não tão prospectivo quanto retrospectivo. Na verdade, embora não subscreva a dimensão de efemeridade de que falam alguns estudiosos da questão identitária, as identidades culturais são resultados sempre transitórios de processos de identificação. E por essa altura, nas décadas de 50-60-70, nas cidades coloniais – e Luanda particularmente – erigia-se a metáfora da nação na construção do discurso de identidade, por via de elaborações intelectuais, como o procedimento alegórico de construção de uma ‘comunidade imaginada’ a partir de sinais da natureza e da cultura social. É assim que da Luanda literária dos anos difíceis emergiam valores socioculturais que relevavam da intersecção conflituosa entre o modus vivendi e o modus faciendi do asfalto e o do musseque e se faziam modelo de um espaço que se pretendia nacional, com actores que se pretendiam já sem laços assumidos de uma identidade étnica, sociocultural e regional localizada. A prática narrativa privilegiava a estória, forma que recupera a tradição oral e a transfere à escrita, estabelecendo-se assim os paralelos ouvinte-leitor e contador de histórias-escritor e anulando uma qualquer

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visão disjuntiva entre oralidade e escrita, enquanto fazia do ‘local da escrita’ também o da voz que a palavra escrita intenta recuperar: Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda. ( “Estória da galinha e do ovo”, Vieira, 2006a: 132)

2. Confluências: da transmissão à transformação A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade. Jan Vansina

Os procedimentos discursivos atrás referidos são estratégias reinventadas a partir daquelas que são actualizadas nos rituais de contação, em que os ouvintes são convocados quer para responderem a interpelações directas do portador da palavra (até para testar o grau de envolvência da audiência) quer para participar nos momentos musicais da narrativa. Em qualquer caso, isso faz com que os ouvintes se ‘sintam’ também responsáveis, se não pela narração, pela narrativa, tanto porque o griot “pode ter duas línguas” (Bâ, 2010: 178) quanto porque “a palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissão original, uma força que a torna operante e sacramental” (Idem, 181). Por outro lado, tal resgate, em situação de sincretismo da voz (dita tradição africana) e da letra (dito cânone literário vigente), passa pela reinvenção de elementos do mitológico e do imaginário colectivo. Vozes tradicionais, saber gnómico codificados em “formas simples” (André Jolles), estórias obliteradas ou desclassificadas (como a do sô Lemos de “Estória da galinha e do ovo”), tempos rasurados pela ideologia colonial, vozes sussurrantes como se estivessem submersas pela noite colonial, que não são recordadas, mas são trazidas ao presente, presentificadas. Em todo o caso, mais do que uma prolífera reinvenção do significante e do significado, ou de uma inventividade da língua, trata-se sim da metamorfose da expressão e sua substância, portanto, da revitalização de uma cultura que durante muito tempo ficou invisível e inaudível no seu veículo de expressão. Com efeito, não se trata de um ‘estádio’, mas de uma opção por um meio de comunicação pois, lembra Jan Vansina, “a oralidade é uma atitude diante da realidade

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e não a ausência de uma habilidade” (Vansina, 2010: 140). Trata-se, afinal do processo de oraturização da escrita – longe da pressuposição de “fala mucéquica”, de que fala Salvato Trigo, que considerava, estranhamente, o musseque “lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais” (Trigo, 1990: 56). Por isso, muitas vezes para se chegar ao desvelamento dos sentidos do escrito, há que passar, quase incontornavelmente, pelas fontes e recursos linguísticos das suas matrizes assim como pelas formas verbais da oralidade e interpretação de seus valores – vale dizer, valores éticos, morais e ideológicos das comunidades de que emanam e por que elas pautam o seu modus vivendi, o modus operandi e o modus faciendi, no quotidiano, na interpretação do passado e na planificação do futuro. Pela obra que se enraíza no húmus da sageza da oratura se conhecem também as estratégias de gestão das mudanças com que se confrontam e que lhe são impostas pela dinâmica da história. Embora sendo um dos loci importantes da construção da identidade e da gestão da alteridade nas literaturas africanas, não é no sentido de oralidade que neste contexto se compreende tradição, isto é, com o redutor significado de um registo linguístico que se opõe ao escrito ou a representação da língua falada, o que tem vindo a constituir matéria de análise literária de muitas obras de escritores africanos, sob o equívoco da presença da tradição oral (sobretudo através dos corpora do código gnómico) na literatura escrita como especificidade exclusiva das literaturas africanas – como se não houvesse presença da tradição oral na Ilíada… Também não me parece produtiva a perspectiva da oralidade como transposição recriativa da realidade em que há papéis enunciativos desempenhados por agentes em situações comunicativas cujas acções locucionais visam um efeito oralizante; tampouco no sentido de “tradição oral” que, na sua acepção primordial, compreende corpora das “formas [literárias] fundamentais da tradição oral” (Vansina), também referidas como “literatura de tradição oral”, “literatura de transmissão oral”, “literatura de expressão oral”, ou até “literatura popular” e “literatura tradicional” – designações não consensuais e igualmente ambíguas que nem a proposta de Walter J. Ong, “oral verbal forms”[7], resolve, mas cuja discussão não cabe no âmbito desta breve reflexão. O que importa, neste caso, é perscrutar o deslocamento, para a escrita autoral, da

7 Este assunto das designações é tão polémico que um dos maiores críticos da área, Walter J. Ong, não consegue resolver a questão quando propõe a expressão “oral art forms” (2002: 10): formas de arte verbal.

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lógica da convivialidade social, ou o que o imaginário guarda da “oralidade primária”. Com efeito, Today primary oral culture in the strict sense hardly exists, since every culture knows of writing and has some experience of its effects. Still, to varying degrees many cultures and subcultures, even in a high-technology ambiance, preserve much of the mindset of primary orality. The purely oral tradition or primary orality is not easy to conceive of accurately and meaningfully. Writing makes ‘words’ appear similar to things because we think of words as the visible marks signaling words to decoders: we can see and touch such inscribed ‘words’ in texts and books. Written words are residue. Oral tradition has no such residue or deposit. When an often-told oral story is not actually being told, all that exists of it is the potential in certain human beings to tell it. We (those who read texts such as this) are for the most part so resolutely literate that we seldom feel comfortable with a situation in which verbalization is so little thing-like as it is in oral tradition. (Ong, 2002: 11)

Do que se depreende destas considerações de Ong é que essa mentalidade advém da mundivivencialidade, escopo do universo dos contos da tradição oral – que muitas vezes é simplificada como sendo a reconversão da oralidade em escrita. Se se pode ver esse processo como podendo afectar a imediata legibilidade dos mundos culturais, vale lembrar que essa ‘oralidade’ da literatura mais não é do que o conjunto dos procedimentos linguísticos, de natureza estilística, que conformam a ilusão da oralidade (a que Alioune Tine designa por isso como “oralité feinté”, oralidade fingida) e as categorias intelectuais da escrita. Neste caso, é estimulante ler literatura que, como resultado do labor estético individual, não descura a dimensão ideológica da escrita que é, também, a transmissão de valores – de que a oratura é o repositório privilegiado em sociedades em que a escrita, pelo menos a de línguas europeias, é ainda um privilégio. No caso em apreço há que considerar a desconfiguração de formas orais, designadamente misoso e maka[8], numa forma escrita, a estória, que parece ser, aliás, uma das particularidades da ficção angolana, desde os princípios do século XX, com os trabalhos de Óscar Ribas, continuando com os ‘cantores’ da Luanda da fronteira entre o asfalto e o musseque. Estudiosos da literatura angolana, como Carlos Ervedosa (1979) e Helena Riáuzova (1985; 8 Misoso: histórias tradicionais de ficção que incorporam o maravilhoso, o extraordinário e o sobrenatural; maka: histórias tidas como acontecidas que, funcionando como exempla, visam instruir distraindo. Classificação de Héli Chatélain, retomada por Carlos Ervedosa (1979: 9-10).

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1986), têm colocado na narrativa oral as matrizes da estória que, a partir da segunda metade do século XX, foi veículo de subversão da hegemonia do discurso literário metropolitano, ao afastar-se da contenção estrutural do conto e incorporando elementos do discurso oral, próprios da prática da contação oral, como já referido anteriormente nos exemplos retirados do celebrado livro de Luandino Vieira, Luuanda (1965), reeditada em outros ficcionistas, por exemplo em O Cão e os Calus (1985): E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca se tenham passado. (“Estória do ladrão e do papagaio”, Vieira, 2006a: 105) As cenas que se vão narrar passaram no ano de 1980 e seguintes, nessa nossa cidade de Luanda. No século passado, portanto. Século sibilino. (…) Mas previno que qualquer dissemelhança com factos ou pessoas pretendidos reais foi involuntária. (…) E o meu sonho… se foi. Com ele começa a vossa fala. (Pepetela, 1988: 186)

Por isso, é pensando nas confluências que essas transformações de género narrativo – das estórias como transformação dos misoso –, que leio as mais recentes fábulas de Luandino Vieira, equivocadamente, a meu ver, rotuladas como literatura infantil. São seis os títulos já publicados[9]: Kiombokiadimuka e a Liberdade Kaxinjengele e o Poder Puku Kambundu e a Sabedoria Ngola Mukongo e a Justiça Kaputu Kinjila e o Sócio Dele Kambaxi Kiaxi Xingandele, o Corvo de Colarinho Branco

São “fábulas” – sendo por isso, como sabemos, apenas metáforas para dizer o que vai no mundo dos homens. Pode dizer-se que existe “Uma África a precisar de voltar a fábulas para se recompor” (Mata, 2009): num momento de desânimo, de puro desencantamento, em que muitos tentam perceber e perscrutar, em várias partes de África, as razões do que se pode 9 “O Passarão e o Cágado” foi anunciado em Agosto de 2009, em São Tomé, por ocasião do lançamento da edição para São Tomé e Príncipe de Puku Kambundu e a Sabedoria, em homenagem a Alda Espírito Santo, e cujas receitas foram atribuídas a uma associação de apoio à criança na região dos Angolares, no sul da ilha de São Tomé.

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considerar ‘problemas africanos’, vale a pena regressar aos ensinamentos tradicionais uma vez que as aquisições do mundo actual, dito ‘moderno’ (a  par de outra dicotomia sem suporte), confundidas muitas vezes com progresso, têm vindo a ser mal assimiladas, como em questões relacionadas com o sentido de valores éticos e até em questões mais políticas, como a democracia. O que há de comum entre estas narrativas para além de, ostensivamente (porque aparecem no subtítulo), serem consideradas “fábulas angolanas”? É que partilham três características, três delas transversais na obra luandina, e uma quarta, embora não original, nova: •

• • •

características do musoso tradicional (a ritualística da contação): reinvenção dos misoso tradicionais, isto é, narrativas da tradição oral de factos ficcionais ou realistas, em que entram animais e pessoas e em que podem entrar elementos do maravilhoso ou elementos mágicos; os abismos temáticos da contemporaneidade: questões de ética política ou social e os meandros da democracia e da cidadania; a oraturização da língua portuguesa: a linguagem oralizante e o estilo coloquial, incluindo uma lição de moral; a amplitude etária do seu leitor ideal, reeditando, por outro lado, o jogo com a faixa etária do ‘leitor ideal’ que já vem de trás: A Guerra dos Fazedores de Chuva com os Caçadores de Nuvens (Guerra para Crianças), livro que não se encaixa, pelo menos de modo tão linear, no corpus da literatura infanto-juvenil, baralhando a convenção literária referente ao ‘leitor ideal’…

3. Concluindo, se possível, falando de Luandino… Remotas conexões: fragmentos de um diário. Luandino Vieira

Em Luandino Vieira, através de estórias e fábulas, a narrativa curta transforma-se em História e cumpre uma função testemunhal, através de uma técnica narrativa de envolvimento do sujeito de enunciação na diegese. Esta constrói-se de tramas referentes a temas da infância e do quotidiano e das cenas de convivialidade social em que as personagens, funcionando como representações de entidades prosopopeicas e ideológicas da realidade, geram uma significação simbólica para além do factual:

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Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem-se testemunhas vivas e ativas desse fato. (Bâ, 2010: 209)

É um trabalho contra o esquecimento, de preservação da memória não ‘historiografável’, a que o autor regressa, muitos anos depois, resgatando essa ‘função’ cronística – ou memorialística, como se prefere designar hoje esse trabalho sobre o passado – em O Livro dos Rios (2006), o primeiro romance da anunciada trilogia De Rios Velhos e Guerrilheiros, dedicado, sem margem de dúvida: aos do Tarrafal (1962-1974), e tendo como alvo de um retribute Langston Hughes, autor do conhecido poema “The Negro Speaks of Rivers” (1920), em que canta o rio Mississipi, emblemático rio do imaginário escravocrata dos afrodescendentes americanos. Nesse discurso em primeira pessoa, o que se ‘ouve’ é a voz de “Kene Vua, o guerrilheiro”, ou Kapapa – seu nome de sempre (Vieira, 2006b: 101), que narra o seu passado revolucionário e guerrilheiro, em narrativa em que são vocalizadas estórias históricas da guerrilha, guardadas nos escaninhos dolorosos da memória, que tenderiam a ficar “omissas” dos relatos historiográficos – e nem é despiciendo o facto de a edição indicar que este primeiro romance da trilogia ter como “‘remotas conexões: fragmentos de um diário’, 1996”[10] –, e figuras históricas, remotas (como Njinga a Mbande) e recentes (como Agostinho Neto) para, na correnteza das suas significações, nelas relembrar as acções sacrificiais dos sujeitos História de Angola (cujas vozes se presentificam de forma impressiva em O Livro dos Guerrilheiros, 2009). O que se pode pressentir no autor é a intenção de relembrar lugares geográficos, espirituais e ideológicos de memória, numa altura em que a cultura do efémero e a relativização do passado tendem a dominar o imaginário histórico e social: não por acaso toda a narrativa é pautada por termos que constroem uma semântica sacrificial e bélica que aponta para a resistência nacionalista: PIDE, perseguição, prisão, presídio, fuga, mata, nuvens negras, luta, peleja, lanças, flechas, guerrilha, guerra civil, camarada, guerrilheiro, comandante, inimigo, emboscada, perseguição, morte, corpo enforcado são termos e expressões que compõem isotopias de resistência e da luta de libertação. Com o Livro dos Rios, o escritor traz outros cenários geoculturais de Angola, agora as matas, no caso do Moxico: tal como o autor fizera 10 Remote Connections: Fragments of a Diary, 1996.

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de Luanda o microcosmos do país, agora é o rio Kwanza, o maior rio exclusivamente angolano, que nasce e desagua em território angolano[11], que se erige a mãe e a pai dos rios, significando, nessa hidrografia identitária, a territorialização da pátria angolana: (…) o Kwanza rodeia a pátria da nossa luta; missão, agora, era de lhe dar encontro no princípio desse rio, nos seus três fios de água, lá nas altas serras do Bié – onde que o mundo acaba e todas as águas começam. (Vieira, 2006b:126)

Tal como antes o celebrado rio Mississípi construíra uma hidrografia histórica e identitária. Tal como antes Luanda, com suas histórias estoricizadas…

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11 Vale lembrar que Kwanza é também o nome da moeda de Angola.

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Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, Belo Horizonte: PUC Minas, pp. 43-71. _____ (2009), “Uma África a precisar de fábulas”. Apresentação do livro Puku Kambundu e a Sabedoria, de Luandino Vieira, na Casa da Cultura, São Tomé, 11 de Agosto de 2009. _____ (2010), “Cartografias da identidade”, in Ficção e História na Literatura Angolana. Luanda: Mayamba Editora, pp. 57-119. _____ (2012), “A memória da colonização e a sentença do futuro na figuração da nação: de Castro Soromenho a Leonel Cosme e Pepetela”, in Ana Mafalda Leite (coord.), Nação e Narrativa Pós-colonial: Angola e Moçambique, Lisboa: Edições Colibri, pp.37-55. Nantet, Bernard (1992), Afrique: les Mots Clés. Paris: Bordas. Ong, Walter J. (2002), Orality and Literacy: The Technologizing of the Word [1982]. London and New York: Routledge. Pepetela (1980), O Cão e os Calus. Luanda: União dos Escritores Angolanos. Riáuzova, Helena (1985), “Problema da afinidade tipológica e da identidade nacional (a exemplo dos géneros grandes da narrativa da comunidade zonal das literaturas africanas de expressão portuguesa)”, in J.-M. Massa & Manuel Ferreira (orgs.), Les Littératures Africaines de Langue Portugaise: à la Recherche de l’Identité Individuelle et Nationale, Actes du Colloque Internacional (Paris, 1984), Paris: Fondation Calouste Gulbenkian-Centre Culturel Portugais, pp. 537-543. _____ (1986), Dez Anos de Literatura Angolana (1975-1985), Luanda: UEA. Stern, Irwin (1980), “A novelística de Luandino Vieira: descolonização ao nível do terceiro registo”, in Michel Laban et al. (orgs.), Luandino: José Luandino Vieira e a sua Obra. Lisboa: Edições 70, pp. 189-198. Trigo, Salvato (1990), Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira. Lisboa: Vega. Vansina, Jan (2010), “A tradição oral e sua metodologia” [Cap. 7], in Joseph Ki-Zerbo (ed.), História Geral da África, Volume I, Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África., 2ª ed. rev., Brasília: UNESCO, pp. 139-166. Veiga, Abel (2009), “Puku Kambundu e a Sabedoria: uma fábula do escritor angolano José Luandino Vieira lançada em São Tomé”, Téla Nón: Notícias de São Tomé e Príncipe, 18 de Agosto de 2009, [em linha] disponível em http://test.telanon.info/cultura/2009 /08/18/1773/%E2%80%9Cpuku-kambundu-e-a-sabedoria%E2%80%9D-uma-fabula-do-escritor-angolano-jose-luandino-vieira-lancada-em-sao-tome/ [consultado em de Novembro de 2013]. Vieira, Luandino (2007), A Cidade e a Infância: Contos [1960]. São Paulo: Companhia das Letras. _____ (2006a), Luuanda: Estórias [1964]. São Paulo: Companhia das Letras. _____ (2006b), De Livros Velhos e Guerrilheiros: O Livro dos Rios. Lisboa: Editorial Caminho.

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(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)

[Recebido em 20 de agosto de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de 2014]

LUUANDA: A TRAIÇÃO BEM-VINDA LUUANDA: THE PLEASANT BETRAYAL Rita Chaves* [email protected]

Encarando o diálogo entre literatura e experiência como elemento fulcral de Luuanda e de todo o projeto literário de José Luandino Vieira, neste artigo pretende-se reflectir em torno dos conceitos de fronteira, transculturação e tradição, salientando a articulação entre literatura, contexto político e projecto nacional como aspecto matricial desta obra e, mais em geral, da proposta literária do autor.   Palavras-chaves: Luuanda, Luandino, transculturação, colonialismo, tradição literária This article approaches Luandino Vieira’s writing, and specially the emblematic case of the short stories in Luuanda (1964), as an example of a committed dialectic exchange between literary representation and lived socio-political experience. Key concepts to structure this reflexion are ‘border’, ‘cultural exchange’ and ‘tradition’, in articulation with political context, the role of literature and the definition of a national project. Keywords: Luuanda, Luandino, cultural affiliation, colonialism, literary tradition

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Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, Brasil.

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Não há Robinson Crusoé na literatura, e a elite é o primeiro conglomerado social em que um criador se integra. Angel Rama

A frase de Angel Rama que escolho para epígrafe foi extraída do seu notável ensaio “Dez problemas para o romancista latino-americano” (Rama, 2001). Nele, o arguto estudioso de aspectos culturais da América Latina aborda a emergência da literatura no continente em um quadro marcado pelo código colonial, alertando para o peso da contradição e as manifestações da violência que, sendo estrutural, tem seus reflexos, inclusive, na hierarquização linguística e, por decorrência, na constituição da vida literária. Ao discutir aquela dinâmica social, tendo em conta a força das injunções históricas, Rama traz à luz os condicionalismos e as respostas que a escrita oferece, situando-se em terrenos perigosos, instada em certos momentos a acender velas a diferentes deuses. Nas suas finas observações delineia-se um olhar mediado pela modulação retrospectiva, uma vez que no momento em que ele escreve os países focalizados já somam décadas de independência, e integram um universo de nações nas quais a vida institucional decorre dentro de uma relativa normalidade, a despeito da manutenção daquilo que Alfredo Bosi identifica como complexo colonial de vida e de pensamento (Bosi, 1980: 13). Quando transitamos para o continente africano, respiramos outras atmosferas, sacudidas por um conjunto de fatores que tem em comum a remissão a um ambiente selado pela divisão e pela instabilidade. Pensada sob o céu de Angola nos anos 60, por exemplo, quando a ficção narrativa ganha densidade, a frase ganha contornos especiais. Estamos ali sob o signo da voragem: naquele contexto já convulsionado pela guerra que desvelou o absurdo do processo colonial – prolongado para além da própria dinâmica do capitalismo que o acionara –, a vida nacional é uma espécie de miragem a que os vento das utopias tentam dar corpo. Os eventos de 4 de fevereiro de 1961 em Luanda e de 13 de março no Uíge não deixariam dúvidas quanto à verticalidade da crise. Em um terreno tocado por contradições abertas, o ato de escrever não poderia sequer sonhar com a inocência a que, em certos cenários, se pode ao menos aludir. Sob uma chuva de estilhaços a cair sobre a vida diária, os contornos da relação entre o escritor e o ‘conglomerado social’ que o cercava ganhava certos complicadores. O quadro da exclusão social e econômica, temperado pela discriminação racial, multiplicava as indagações: como falar com a camada que

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ditava a ordem das coisas ou dela se beneficiava? Como distinguir entre as elites os segmentos que poderiam alterar o jogo e suas regras? Se o acesso à escrita era, ao mesmo tempo, um privilégio e uma condenação, como conduzir a interlocução? O peso de tais questões aponta a superação das fronteiras do texto literário para o exame de processos como o que se projeta sobre um livro como Luuanda e toda a obra de José Luandino Vieira. Como o fez Rama, é fundamental examinar as redes constitutivas do contexto e perceber a sua projeção no percurso de quem escreve e na produção literária que surge desse jogo. Em outras palavras, sair do texto para ir à vida das pessoas que os produzem aqui não significa um desvio, mas abre a possibilidade de observar de que modo ela é trazida e transformada nas páginas que ainda hoje nos inquietam a consciência. Filho de colonos pobres, morador das franjas dos musseques, mas, ainda assim, aluno do Liceu Salvador Correia de Sá (o colégio da elite colonial), de acordo com o próprio escritor em sessão realizada na Balada Literária de 2007 na cidade de São Paulo, o jovem estudante, ao chegar ao fim da adolescência, angustiou-se diante da percepção da diferença de alguns itinerários. Onde buscar explicação para a imposição de percursos tão diferentes àqueles com quem ele tinha partilhado a infância? Aos leitores da Literatura Angolana a declaração de Luandino traz à memória os versos de António Jacinto: Naquele tempo A gente punha despreocupadamente os livros no chão Ali mesmo ao lado naquele largo – areal batido de caminhos passados Os mesmos trilhos de escravidões Onde hoje passa a avenida luminosamente grande E com uma bola de meia Bem forrada de rede Bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves Em alegre folguedo, entremeando cassambulas ... a gente fazia um desafio ... O Antoninho filho desse senhor Moreira da taberna era o capitão e nos chamava de ó pá,

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Agora virou doutor (cajinjeiro como nos tempos antigos) passa, passa que nem cumprimenta – doutor não conhece preto da escola. ..................................................................................... E o Venâncio? O meio-homem pequenino Que roubava mangas e os lápis nas carteiras Fraquito de fome constante Quando apanhava um pinhão chorava logo! Agora parece que anda lixado Lixado com doença no peito. Nunca mais! Nunca Mais! Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais! (Jacinto, 1985: 52)

A citação, um tanto longa, do belo poema “O grande desafio”, traz-nos um pouco do clima da Luanda dos anos 50, época em que a cidade conhece alterações significativas em sua fisionomia. A preocupação física espelhará o processo de marginalização dos colonizados, incluindo os assimilados, na composição de um retrato da nova fase da empresa colonial em Angola, conforme assinala Tania Macêdo: (...) nos fins dos anos 1940, quando ocorre o “boom” do café e com isso Luanda, cujo porto é a via de escoamento de uma das maiores riquezas de Angola naquela quadra, recebe o impacto da modernização e a sua população negra é deslocada cada vez mais para longe da “Baixa”, o centro urbanizado, branco e próximo do mar. A “elite crioula” é definitivamente apeada do poder já que um número crescente de metropolitanos chega à cidade e toma os melhores postos de trabalho e as melhores terras. (Macêdo, 2008:116)

Em tais mudanças figura-se a inviabilidade de uma coexistência amena, agudizando-se a certeza da violência que engendra a sociedade colonial. É tempo de perder qualquer réstia de inocência, ensinam os poemas de Jacinto e de Aires de Almeida Santos, por exemplo, nos quais o adeus às ilusões associa-se ao fim de uma época, o da infância. Sem dúvida, o sentido desses versos Luandino lia também nas ruas de areia e de alcatrão que

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desenhavam a cidade, caminhos em que se compõe um roteiro delineado pelas referências culturais e humanas que participaram de sua formação. A força da experiência mistura-se ao que lhe chega das leituras, formando uma mescla cujos ecos reverberam no primeiro conto do primeiro livro: “Encontro de acaso”, de A cidade e a infância, trata precisamente de um improvável reencontro entre adultos que, tendo convivido na infância, foram apartados pelo código das desigualdades sociais. O uso da expressão “meninice descuidada” na primeira fala do narrador propõe uma ligação direta com o poema de Jacinto e é senha que nos pode levar a tantas narrativas nas quais encontramos, e muito bem trabalhado, esse universo. Aquele mundo de “fisgas” e “fugas”, de “peixe frito” e “quicuerra”, de “pássaros” e “sardões” em contraste com o território povoado de “fazenda e nylon” e “sapatos bem engraxados” repercutiria na memória de quem fez da angústia um móvel de criação. A partir do diálogo entre literatura e experiência, elemento fulcral em seu projeto literário, Luandino sintetizaria as questões com que se defrontou em duas perguntas: “O que a vida fez de mim?” “E o que eu posso fazer do que a vida fez de mim?”[1] O alto preço pago, inclusive como habitante do sinistro e famoso Tarrafal de Chão Bom, na Ilha de Santiago, durante oito anos, confirmaria as escolhas feitas e os rumos tomados. Mobilizando o empenho político e social, essas perguntas produziram respostas correspondentes no itinerário do escritor, que, ao investir na transformação da narrativa angolana, impõe alterações profundas na prosa em português e se reconstrói também como personagem na história do país. Pela militância e pelo exercício da escrita, como sabemos, ele se converteria em José Luandino Vieira. Vivendo física e culturalmente na zona de fronteira, Luandino faz a opção pela travessia na direção da cidade dos excluídos, cortando, assim, o cordão com as identificações na base da raça, e dos laços que ela automaticamente criava. É preciso não esquecer que mesmo em Angola, onde a segregação racial não atingia o grau registrado em outras colônias, a cor da pele constituía um poderoso capital. Malgrado o esforço do discurso lusotropicalista e seus sucedâneos, há uma sucessão de evidências que não nos deixam duvidar de Fanon: “o mundo colonial é um mundo compartimentado”:

1 Sessão com o autor no evento intitulado “Balada Literária”, em novembro de 2007, na cidade de São Paulo.

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A zona habitada pelos colonizados não é complementar à zona habitada pelos colonos. Essas duas zonas se opõem, mas não a serviço de uma unidade superior. Regida por uma lógica puramente aristotélica, elas obedecem ao princípio de exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde as latas de lixo transbordam sempre de restos desconhecidos, nunca vistos, nem mesmo sonhados. (Fanon, 2010: 55)

As latas de lixo transbordantes de “restos nem mesmo sonhados” compõem uma poderosa imagem da incomunicabilidade entre esses polos que formam a cidade. A Luandino esse fenômeno não passaria despercebido, e teria sua figuração na espacialidade que elege como fonte de significados. É na contraposição entre a cidade de asfalto e os fecundos musseques que fixa um dos eixos de sua obra. Essa forma de ver as arestas que separam os homens coloca em causa a hipótese de uma terceira margem em momentos de crise aberta. Contra a possibilidade de qualquer condescendência com o colonialismo, o escritor privilegiaria a contradição, antecipando a problematização do conceito de entrelugar, que viria ocupar tanto espaço nos estudos pós-coloniais e na imaginação crítica de alguns estudiosos. Da vivência em áreas intersticiais ele incorporou a situação de fronteira, mas compreendendo-a como zonas de contato, isto é: [E]spaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações assimétricas de dominação e subordinação – como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo (Pratt, 1999: 27)

O conceito de fronteira na perspectiva de Luandino escapa, pois, àquela noção de espaço em que as clivagens se dissolvem e se recriam livremente referências constitutivas de identidades móveis. Estamos mais perto do sentido de encruzilhada em que se reforça a lei da exclusão e se enrijecem os interditos. A impossibilidade da conciliação era lição de todos os dias. O foco nas assimetrias em que se baseavam as relações de poder na sociedade colonial faz com que do conceito de ‘entrelugar’ Luandino retenha sobretudo a dimensão conflitual a que Homi Bhabha também alude, recusando a possibilidade consensual que as leituras de inspiração lusotropicalista preferem salientar (Bhabha, 2001: 21). De frente para as asperezas do contato entre o universo do colonizador e o mundo do colonizado, ele foge às hesitações e coloca-se com nitidez no centro do embate, trazendo

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para a sua narrativa o olhar insubmisso de quem se associa ao excluído, impondo movimentos que elegem a marca da contradição – espelho e contraface da ruptura – como selo de sua obra até ao presente. Já em A cidade e a infância, acima referido, a configuração de um espaço – a cidade – conjugado a um tempo – o da infância – anuncia a sua migração para um dos lados da Luanda dividida. No título insinuam-se as pistas de um projeto cuidadosamente desenhado: Luanda seria o locus primordial, construída sob o signo de uma infância, que transforma a comunhão sugerida pelos versos de Jacinto em alimento para uma necessária mudança. A referência ao passado, entretanto, recusa a tentação da nostalgia, acenando talvez ao propósito de desnaturalizar o presente que massacra. Nesse espaço-tempo, insere-se uma imagem dupla a se oferecer como metonímia de um território em ebulição, que seria uma das recorrências da obra em tela. Tal posição, prenunciada no livro de estreia, será radicalizada em Luuanda, livro fundamental na produção de Luandino e na história da Literatura Angolana. Escritas, como sabemos, no pavilhão prisional da Cadeia de São Paulo em Luanda, as três estórias, como lhes chamou o autor, representaram interna e externamente uma virada fundamental na tradição literária africana em língua portuguesa, com reflexos na cena contemporânea. Vale a pena retomarmos a produtiva reflexão de Rama, e observarmos a validade do seu conceito de transculturação em três níveis (o linguístico, da estruturação que opera na economia de suas narrativas e o da cosmovisão que move o seu projeto estético) para a análise da ficção de Luandino. Emprestado de Fernando Ortiz, que, por sua vez, foi buscá-lo a Malinovski, o conceito de transculturação para o crítico uruguaio expressa melhor o processo transitivo de uma cultura a outra, potencialidade acionada por alguns escritores africanos como base da proposta de fazer da literatura um lugar de contestação do código colonial e um espaço de formação do novo país, ainda a caminho (Rama, 2001: 215-7). Em Luandino, a eleição dos musseques como cenário preferencial das narrativas é um dado que altera o eixo em que se sustenta a literatura produzida na então colônia. É preciso não esquecer que se no campo da poesia já se consolidava um movimento de viragem, com a opção por temas vinculados a um projeto de rompimento com a literatura metropolitana e a literatura colonial, e também por uma concepção poética centrada na valorização de aspectos da cultura local, incluindo as matrizes da oralidade,

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na narrativa, sobretudo na narrativa longa, predominavam o viés colonial, com algumas incursões na área da “autoetnografia”, para usar a expressão denominada por Mary-Louise Pratt (1999). A título de ilustração podemos citar o romance Uanga, de Óscar Ribas. Voltando as costas ao exercício etnográfico, Luandino dispensa-se das descrições informativas, e coloca em cena personagens que, habitando fora do reino dos privilégios, desvelam a Luanda que não se mostra nos álbuns fotográficos que ainda hoje (talvez principalmente hoje) se editam na metrópole. Na visibilidade que confere à cidade ocultada, o escritor afasta as sombras da idealização e procura ver tais personagens em confronto com suas misérias e grandezas. Se por um lado, é patente a referência a pares dilemáticos que podemos identificar como metrópole / colônia, colonizado / colonizador, oprimido / opressor, português / quimbundo, musseque / asfalto, tradição / modernidade, por outro lado, pode-se perceber que no desenvolvimento dos enredos, o confronto entre os lados não revela alianças indestrutíveis entre aqueles que a priori poderíamos ver como parceiros. Na primeira estória, “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”, a esperada aliança entre os dois personagens que lhe dão nome, ambos situados no plano da exclusão, não é plena. Nem mesmo a força do laço de parentesco predetermina a diluição das tensões no jogo das provas que a dura vida impõe. Na “Estória do ladrão e do papagaio”, as trapaças são protagonizadas por habitantes do mesmo ‘lado’. O peso da opressão ora converte os homens em parceiros, ora lhes desperta sentimentos menos nobres, tornando-os aliados do outro lado. As cumplicidades que pretenderíamos tácitas são desfeitas e refeitas na dureza dos dias. O efeito surpresa que atinge as personagens desencantadas com a atitude daquele que de algum modo sente como um igual é trabalhado como um fator que desencadeia a crença na possibilidade e na necessidade de construção de uma rede capaz de fazer emergir outros jogos de poder. Ao olharmos as três estórias como partes de uma longa narrativa, podemos perceber na sua sequência a alusão a uma cadeia de expectativas que o aprendizado favorece. Nesse aspecto, aprende a personagem e aprende o leitor, ambos confrontados com um mundo móvel, tal como resume Maria Aparecida Santilli: Como próprio de um universo instável, deslocavam-se, também de funções, as personagens aliadas e/ou oponentes dos heróis-heroínas, durante o percurso destes-destas, em demanda dos seus objetivos. Tal mobilidade

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parece tipificar o tipo de tensões criado na obra. A ambiguidade de posições assumidas por certos colaboradores-adversários é para os personagens mais marcantes o grande obstáculo atravessado na consecução de seus desejos, já que é para elas (no plano da narração) o fator imponderável, como será para o leitor (no plano da leitura) o imprevisível. (Santilli, 1980: 260)

O enquadramento do espaço periurbano sob o signo da mobilidade, em contraste com a sua apreensão mediada por uma perspectiva exotizante seria um índice de contestação suficiente para colocar sob suspeita a escrita de Luandino Vieira. Entretanto, sua radicalidade mostrar-se-ia mais intensa e, naturalmente, mais perigosa. Ele mistura os processos de transculturação, pois a base da economia narrativa se alimenta nitidamente das operações no plano linguístico e na constituição da cosmovisão, instâncias que verticalmente se associam. Ao mesclar as estações, o salto é ainda mais fundo. De tal maneira que dessa coletânea pode-se dizer que nas estórias que ele reúne também constrói-se uma história dentro da História: a revolução interna desenvolvida no plano da escrita detonou uma crise que atingiria o coração do Império. Refiro-me, evidentemente, ao tristemente célebre episódio da premiação do livro e do fechamento da Sociedade Portuguesa dos Escritores pelo Estado Novo em 1965. Acerca do concurso, Michel Laban, em volume chamado Luandino, inclui um esclarecedor artigo de Manuel Ferreira e depoimentos de Jorge de Sena e Ferreira de Castro que integraram o recurso judicial interposto por Edições 70 quando da apreensão do livro (Laban, 1980). Interessa-nos aqui recordar um de seus sinistros complementos: o programa da Rádio Televisão Portuguesa, produzido para legitimar a indignação do regime diante da escolha de Luuanda pelo júri. Moderado por José Mensurado, um funcionário da RTP, do programa participaram Amândio César (autor, entre outros do volume Contos da Literatura Ultramarina), José Redinha (etnólogo radicado em Angola) e dois escritores angolanos residentes em Portugal: Geraldo Bessa Victor e Mário António (que havia, inclusive, integrado a famosa Geração da Mensagem). A intenção dos promotores do programa era inequívoca: desqualificar literariamente o livro e, com isso, comprovar o caráter provocatório da premiação apenas que teria merecido as respostas que o poder lhe impusera. Com a legitimidade de homens ligados à cultura e a Angola, os intelectuais cumpriram o papel que os representantes da ditadura salazarista e colonialista lhes tinham confiado. Foram enfáticos na desqualificação da

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obra, contrariando a opinião de vários críticos portugueses como Luisa Dacosta, Alexandre Pinheiro Torres e Urbano Tavares Rodrigues, que pela imprensa haviam saudado o aparecimento do livro. Asseguravam dessa maneira apoio à tese defendida pelo governo de que a atribuição do prêmio a um ‘terrorista’ era a expressão de um ato político que urgia combater. Deixando de lado as questões éticas que a posição implicava, podemos nos ater ao pronunciamento de alguns membros para confirmarmos a força da proposta artística das narrativas. Curiosa e ironicamente, em sua diatribe contra o volume, Bessa Victor, oferece-nos elementos que apontam a energia renovadora da obra. Em sua avaliação, tratava-se de um atentado à língua portuguesa. O escritor, que por razões imperiais, também tem seu nome na história das letras angolanas, alertava para a mudança no comportamento do autor: Mas a partir de 61, em 61 e em 62, ele passa a escrever de outra forma, no livro que depois se publica em 63, 64. Como é possível que um escritor, embora jovem, mas que andou a vida a escrever numa linguagem tradicional da literatura portuguesa, passe de repente a escrever de outra forma, como se vê, por exemplo, por esse apontamento? Ele passou a escrever assim: “Vou pôr a estória com bicho e pessoa. Não posso jurar só verdade mesmo, não assisti os casos como se passaram.” (Laban, 1991: 920)

Estava, naturalmente, certa a avaliação de Bessa Victor. Recorrendo à sabedoria popular, poderíamos dizer que ao atirar no que viu, ele acerta no que não viu. No que talvez não tenha querido ver. Tão surpreendido e irritado, julgou deficiência o que se afirmou como marca de qualidade. Mostrou-se incapaz de perceber o alcance da mudança na profundidade das razões que teriam conduzido o escritor. Ou, quem sabe, desconfiou do significado da proposta e temeu convalidar. O que é certo é que efetivamente não pôde pressentir que essa verdadeira torção à Língua Portuguesa seria objeto de muitos estudos. Reconhecendo a dimensão da proposta, Irwin Stern indica, em artigo publicado em 1980, a abrangência dos procedimentos adotados pelo autor. O movimento quebrava a espinha dorsal da língua imperial e a refazia literariamente em jogos de aproximação com idiomas africanos. A aproximação com o quimbundo é um dos instrumentos e se dá não apenas na utilização de vocábulos, como monandengue, cassumbula, mataco, etc.. Ela é mais profunda no domínio léxico-semântico, com “o uso do processo de reduplicação, comum às línguas africanas para exprimir o conceito superlativo de ‘muito’ (por exemplo, ‘muito velho’)” (Stern, 1980:

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195). No campo morfológico, pode-se notar a utilização de morfemas do português para registrar a ideia do infinitivo e outros tempos na conjugação em verbos que vêm do quimbundo, como xacatar. A verticalidade da proposta se evidencia no domínio da sintaxe. Porque reflete uma outra maneira de ordenar a linguagem, portanto, atualiza uma outra maneira de ordenar o mundo. É aí, como se vê no exemplo destacado por Bessa Victor que o problema ganha força. “Não posso jurar só verdade” é construção que escapa completamente à norma e sugere um outro sistema. No conjunto desses gestos, Stern vê o fenômeno da “aculturação linguística” (Idem, 193). Contudo, tendo em conta a consciência do gesto, o conceito de transculturação na linha de Rama e Ortiz, também utilizado por Mary-Louise Pratt, parece mais adequado. O choque provocado pelo trabalho de Luandino irritou a oficialidade. Toda a fúria do poder e a cumplicidade de quem não pôde ou não quis saudar o novo manifestaram-se refletindo o cinzento panorama daqueles anos. A atitude literária do escritor angolano maculava a língua, manchando portanto uma das bases do sagrado imperial. Nas palavras de Salvato Trigo: Carnavalizando a norma social da língua portuguesa transposta para Angola, o escritor procura minar, em surdina, a sociedade que a institucionaliza e, consequentemente, a ideologia que a sustenta. O seu discurso torna-se, portanto, separatista e as suas obras assumem-se como subsidiárias de um combate político-institucional travado noutras frentes. (Trigo, 1980: 241)

Sob o foco de muitos olhares desde o lançamento de suas primeiras narrativas, a linguagem do escritor angolano permanece inquietando os leitores e fazendo emergir instigantes reflexões a respeito. Em A dupla tradução do outro cultural em Luandino Vieira, Conceição Lima explora o que chama de maleabilidade na língua em que o autor cria suas estórias (Lima, 2009: 50), constatando que: Da alternância entre o normativo e o criativo, surgem materiais linguísticos e estilísticos inovadores; sintaxe popular, calão de Luanda, arcaísmos, quimbundismos, e, sobretudo, neologismos. Ao criar uma língua dentro da língua, o escritor exprime a sensibilidade de um povo não europeu. (Idem, 51)

No gesto de Luandino patenteavam-se indícios de um projeto, à época revolucionário, de construir uma ideia de nação. Se hoje, como alertam tan-

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tos, do nacionalismo podemos apreender faces perigosas e até insuficientes ou improdutivas para a constituição das utopias, não podemos esquecer que entre o fardo do homem negro, na curiosa formulação de Basil Davidson, precisamos computar a necessidade de investir em processos que outras partes do mundo já podiam colocar em discussão. O conceito de nação é um deles. Empenhado na consolidação dessa ‘comunidade imaginada’, na conhecida formulação de Anderson, Luandino ancora na tradição literária de Angola sua busca e investe numa relação produtiva com a elite que o precedeu: E percebi que o gesto quase involuntário de alterar a língua portuguesa que me acontecia quando as punha a falar, era o caminho para as tornar credíveis. A linguagem dos bairros populares onde cresci, era parte integrante e definidora da identidade das minhas personagens e portanto, o caminhar por aí. Essas personagens já estavam na literatura angolana: desde os finais do século XIX em romances e depois em contos, por exemplo, de Corchat Osório, de A. Jacinto e já havia neles também a introdução de outras línguas e arranjos no português. Só que estas personagens nunca tinham sido personagens centrais, isto é, aquelas em função das quais tudo se articula. (Vieira in Ribeiro, 2006)

Na intenção e nos gestos, desenha-se a coerência do projeto. A aproximação entre narrador e personagens, que já podíamos detectar em A vida verdadeira de Domingos Xavier, em Luuanda evidencia-se, traduzindo uma cumplicidade que se manifesta para além das páginas publicadas. Compreendendo que a proposição de um novo ponto de vista para a leitura da história exigia procedimentos consentâneos, Luandino percebe que povoar a linguagem dos personagens dos romances com palavras típicas não só seria insuficiente como os reduziria ao terreno do pitoresco. Convertêlos em passageiros de ilhas idiomáticas lhes encolheria a carga de humanidade que neles era fundamental reconhecer, inclusive como resposta ao universo de valores disseminados pela literatura colonial. Tratava-se efetivamente de romper o inaceitável, do seu ponto de vista, isto é, a hierarquia entre os personagens e o autor situado acima de suas criaturas. Procurando a ruptura como chave de um processo criativo, sem pretender dissociar-se do universo dos excluídos que elege como referencia do mundo a ser criado na forma de um novo país, que deve surgir da superação da cadeia colonial, Luandino não renuncia ao diálogo com o que se fazia e se pensava noutros espaços culturais. Tributária da literatura que desde o século XIX se fazia em Angola, sua obra também encontrará espaço

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para um diálogo que, de Jorge Amado a James Joyce, incorpora a energia que vai buscar em autores como Shakespeare, Vieira, Camões... O enraizamento africano dialeticamente se compôs com as marcas de outros códigos culturais. Passados tantos anos e vencidas tantas crises, renovadas outras, o projeto nacional em Angola permanece em processo. E podemos, pela análise da realidade de sua população, reunir razões para pôr em discussão a justeza dos caminhos escolhidos. Os trilhos da política não lograram as metas prometidas pelas sedutoras palavras de ordem, é fato. Entretanto as curvas sinuosas da literatura se redesenham sugerindo uma dose muito mais luminosa de acerto. Em se tratando de Luandino e de sua Luuanda, alguns testemunhos parecem dar conta da profundidade das escolhas do escritor. A renovação que propôs e atualizou, e ganha força nos livros que voltou a escrever, revela que para Luandino Vieira distanciar-se de um certo conglomerado social implicou a instituição de um outro e, assim, criar novas direções para um projeto literário iniciado ainda no século XIX. Inscrevendo-se numa linhagem particular, ele trai a elite a que, por critérios de origem e raça, deveria pertencer, e faz da própria recusa um método para sua formação. Desse modo, ele pode alimentar outra tradição. É o que podemos aferir na declaração de um outro escritor, também ele nascido fora de Angola, também ele passageiro de uma especial viagem na direção de um destino. Falo de Ruy Duarte de Carvalho que declara: Com a carga emotiva de um sobressalto e de um sublime encontro, a um livrinho que dois ou três anos antes, em 1963, tinha por dois ou três dias aparecido à venda em Luanda. O livrinho em questão chamava-se Luuanda, e era da autoria de José Luandino Vieira. Ora a esse livrinho e a alguns versos de Viriato da Cruz e de Aires de Almeida Santos, bem como a algumas crônicas de Ernesto Lara Filho, eu devo o golpe da consciência, pela via do arrepio, de uma alma angolana que então em mim se veio acrescentar à consciência prévia de uma razão angolana e foi responsável pela minha conversão à condição de Angolano. (Carvalho, 2006: 8)

Se o passado é escrito pelo futuro, a fala de Ruy Duarte de Carvalho define a legitimidade de uma reinvenção que está indiscutivelmente associada a uma história maior que a do próprio autor. Uma história que permanece repercutindo no presente e no passado de um país. E que torna mais significativo o lugar da literatura na ordem e na desordem dos dias.

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[Recebido em 8 de agosto de 2014 e aceite para publicação em 15 de outubro de 2014]

Tributo a Luuanda

Ana Paula Tavares Ondjaki Conceição Lima Luís Bernardo Honwana Adelino Timóteo

O LIVRO Ana Paula Tavares

Era uma vez um livro. Era uma vez um livro e as suas três histórias. Era uma vez um livro e a cidade que o sustenta “tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todo os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de Novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos” Era uma vez um livro. As marcas das falas dos arredores da cidade arrastam a linguagem para dizer das vidas dos gestos e das memórias. Matéria frágil e fugaz que o livro fixa. A palavra inaugura aí o seu reino imitando o gesto, o muxoxo, as falas das mais velhas e dos miúdos. “A porta inchada com a chuva, não entrou no caixilho dela. Bateu com força uma vez, duas vezes, ficou depois a ranger, a chorar baixinho essa saída de Zeca. Vavó Xixi no meio da cubata escura e cheia de fumo mal soprado, olhava a saída do neto, segurando nas mãos a tremer as raízes de dália e abanando a cabeça num lado e noutro, sem mesmo dar conta, parecia era um boneco de montra de lotaria.” (Luuanda, “Vavó Xixi e Seu Neto Zeca Santos”) Era uma vez um livro, suas estórias, sua escrita que levanta voo na língua portuguesa e se espalha por caminhos de outras línguas para contar as histórias com a verdade que é a verdade dos livros: “Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe autorizam trabalho honrado; de Garrido Kam’tuta, aleijado de paralisia, feito pouco até por papagaio, de Inácia Domingas, pequena saliente que está a pensar criado de branco é branco… de Zuzé, auxiliar, que não tem ordem de ser bom, de João Via-Rápida, fumador de

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Liamba para esquecer o que sem está a lembrar, de Jacó, coitado do papagaio de musseque, só lhe ensinaram as asneiras e nem tem poleiro nem nada… E isto é verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado.” (Luuanda, “Estória do ladrão e do papagaio”). Era uma vez um livro, suas histórias, seus heróis sem comida, sem escola, mas a falar alto e a apropriar-se do espaço que lhes pertence num mundo fragmentado e injusto. Na contenda surgem e são nomeadas as verdades no teatro da vida e da luta. O espaço é a cidade de Luanda que as personagens atravessam dia após dia a minar a sociedade quieta e branca na sua solenidade. Era uma vez um livro que inaugura a festa da palavra que inicia assim uma tradição, a de visitar o lugar de outras palavras para dar notícia do que se passa para além da fronteira do asfalto: gente que vive, adoece, celebra e chora. Aquilo que o colonialismo dividiu é posto em causa dentro e fora da moldura e a linguagem é eleita factor de perturbação. Aprisionada pela escrita, ela unifica o espaço e o tempo do vivido e do literário em busca de uma identidade que é da ordem da história. “A estória da galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda” (Luuanda, “Estória da galinha e do ovo”) Era uma vez um livro que fez a sua própria estória: quando consolida a prosa angolana, dá conta de um projeto estético a cumprir-se numa dada geografia e não permite que o compromisso ideológico fragilize a importância do texto. Era uma vez um livro e suas estórias.

Ana Paula Tavares  é reconhecida escritora angolana, sobretudo poeta, embora também se tenha dedicado à crónica e à prosa. Licenciada em história pela Faculdade de Letras de Lisboa (1982), é Mestre em Literatura Africana pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo-se doutorado em 2010. Foi a coordenadora do Gabinete de Investigação do Centro Nacional de Documentação Histórica, em Luanda, entre 1983 e 1985 e foi Diretora do Gabinete Técnico da Secretaria de Estado da Cultura, também em Luanda, de 1987 a 1991. Em 1985, publicou a sua primeira antologia de poesia, Ritos de Passagem (1985). Enquanto membro da União de Escritores Angolanos, fez parte do júri do Prémio Nacional de Literatura de Angola de 1988 a 1990. Publicou as antologias de poesia O Lago da Lua (1999); Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-Votos (2003) e Manual

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para Amantes Desesperados (2007). Em prosa, publicou A Cabeça de Salomé (2004) e, com Manuel Jorge Marmelo, O Homem que chorava no Rio  (romance, 2005). Participou ainda em várias antologias de contos, onde explora a faceta de prosadora e a sua obra está traduzida em várias línguas. O Sangue da buganvília (crónicas, 1998) reúne a sua participação em programas radiofónicos. Como historiadora fez um valioso trabalho de compilação e organização de textos sobre a história de Angola a partir do espólio que se encontra em Portugal, na Torre do Tombo. Publica em 2010, Como Veias Finas na Terra, a sua sexta antologia poética, e em 2011, Amargos como os frutos. Poesia reunida (edição brasileira). Ganhou o Prémio Mário António de Poesia 2004, da Fundação Calouste Gulbenkian e, em 2006, o  Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola. Em 2013 ganhou o Prémio Literário Internacional Ceppo Bigongiari, promovido pela comunidade de Pistoia, Toscana.

HAVIA QUE SER DITO (UMA ESPÉCIE DE MISSIVA) Ondjaki

(...) O resto é a lentidão e o desenho na areia que se faz só para ser apagado. Ana Paula Tavares

Caro Luuandino, Às vezes penso que devemos vencer aquilo que seja a timidez ou algo parecido e simplesmente sentar: a dizer as coisas que nos vão na alma e na ponta dos dedos. Tempos houve em que os da minha geração o leram na escola. Isso seria, assim, em nós, um começo com coisas sérias da literatura. Ali se separavam as leituras e os leitores: quem voltasse aos seus livros era porque desejava estar um pouco mais no universo complexo dos seus conteúdos e da sua linguagem. Com o tempo, aprendemos que esse ‘voltar aos seus livros’ era o início de uma viagem demorada e elíptica. Os mistérios não se suavizavam, o português, tão seu, era de uma aspereza poética e perturbadora. Isso mais a doçura e as chicotadas do kimbundu. Quem privou consigo de perto, terá também visto os gestos redondos das mãos, o olhar pueril mas cheio de futuros, a sabedoria nos silêncios e na escolha das palavras. Alguns de nós terão passado anos a pensar o que o Luandino terá feito com a sua escrita e a sua solidão em tempos de reclusão. Alguns, poucos, tê-lo-ão incomodado com cartas em papel de escrever à mão na expectativa (humana) de receber uma resposta escrita pela sua própria mão. A letra desenhada, o esmero do desenho, a fugacidade do traço, os ecos da simbologia que reconhece quem pode. Alguns terão mesmo recebido missivas suas, entre poesia e serena confissão.

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Hoje venho também dizer-lhe que esteja descansado: quem foi levado pela mão dos seus personagens não se esquece deles. As cicatrizes das leituras, afinal, são marcas que secretamente carregamos pela vida. Não lhe saberia dizer, nem com as melhores palavras ou munido da melhor sorte, a companhia e a aventurança interna que João Vêncio me proporcionou. Não poderei, jamais, dizer-lhe do conteúdo e do prazer das horas gastas, entre riso e alumbramento, na companhia do camarada Michel Laban, enquanto fazíamos jogo de propor labirintos e chaves dos mistérios que reconhecemos ou reinventámos nos seus textos. Nós, os que viemos a nascer depois da independência, e os outros que nos seguiram nesse tempo dos anos oitenta, e ainda os mais recentes, pelo menos os que se movem em águas de alguma lucidez, estamos (minimamente) atentos e expectantes. Desculpe se falo também por outros (mas sei que uns poucos me hão de desculpar se eu lhe pedir) que não se esqueça, se lhe for possível, que o nosso futuro, o das pessoas e o do país, ainda aguarda por mais palavras suas. Sim, queremos ler o desenho na areia pouco antes de ser apagado. Para que exercitemos também a arte de não esquecer. (...) Não sei se a sua obra chegou ao lugar que um dia pensou para ela, ou para si. Mas que ninguém se engane: em qualquer parte do mundo, aquilo que são os seus “materiais literários” chegou ao lugar onde se fez e se faz a melhor literatura. Pela sua personalidade e qualidade, sem dúvida. Mas sobretudo pelo seu olhar inconfundível. A sua voz: única. Isso, como sabem os deuses e os mais-velhos, está reservado a muito poucos. Nós, os mais-novos, lemos, choramos. E agradecemos.

Ondjaki é escritor angolano, licenciado em sociologia, doutorado em estudos africanos e com formação em interpretação teatral. Tem 21 obras publicadas, e a sua obra engloba poesia, contos, peças de teatro e romance. Entre os vários prémios que têm vindo a reconhecer a sua obra destacam-se o Prémio Jabuti, atribuído ao livro Avó Dezanove e o Segredo do Soviético, em 2007; o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, recebido em 2010 com a antologia de contos Os da minha rua e, mais recentemente, em 2013, o Prémio José Saramago, pelo romance Os transparentes. Cultiva a colaboração com o teatro e o documentário (filmou com Kiluanje Liberdade Oxalá cresçam pitangas – histórias da Luanda, 2006) e tem também uma faceta de pintor. As suas obras literárias estão traduzidas em várias línguas.

TENRAS E VÍVIDAS MEMÓRIAS DE LUUANDA São Lima

Alda Espírito Santo, claro. Foi ela quem me franqueou o palpitante e sofrido e rijo coração de Luuanda. Pela materna e reta mão, Luuanda entrou e ficou para sempre aconchegado às minhas referências, ao meu imaginário. Luuanda permanece em mim como um marco geracional. Era então uma adolescente ávida de leituras, lançada numa viagem à descoberta dos escritores dos recém-libertados países africanos de língua portuguesa. Devorava-os. Aconteceu em plena tertúlia, uma daquelas tertúlias em que ela nos guiava e nos incentivava, reajustando a necessária ênfase em determinado verso, corrigindo um erro de pronúncia aqui, um tropeço na História de África ali, desvendando mundos, semeando livros, transmitindo exemplos. Acabáramos de ler A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e cabia-me fazer um breve resumo do livro, partilhar as impressões que a obra causara em mim. A matriarca escutou com aqueles seus olhos grandes e ternos e indagadores. Antes mesmo das palavras, aqueles olhos disseram aprovação. – Luuandino Vieira é um colosso. Agitou a cabeça, reiterativamente, para cima e para baixo. – Um colosso. E Luuanda? A camarada já leu Luuanda? Foi o livro seguinte, da coleção pessoal, com a sua distinta assinatura na primeira página. Mastiguei velozmente as páginas. O precário quotidiano dos musseques no período colonial, o dia-a-dia do povo, o racismo, a oralidade, tão intensa, que dava comigo, amiúde, lendo os diálogos em voz alta, imitando o sotaque popular luandense, soletrando as falas em Kimbundu,

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sentindo-me tão, tão próxima das personagens, das suas estórias, seus dramas, suas lutas e disputas, seus anseios, seu modo tão improclamado de resistir, suportando as agruras da vida. Em pouco tempo, Luuanda passara de mão em mão, o círculo de leitura estava fechado e Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos entravam nas nossas vidas. Numa manhã de nuvens brancas – mangonheiras no princípio; negras e malucas depois – a trepar em cima do musseque. Foi a estória que mais nos comoveu e começava assim, revelando a sede da natureza, o intrusivo controlo policial e a arquitetura desordenada, a arquitetura da pobreza. Tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todos os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas arrumadas à toa.

Memorizei esse começo, esse anteceder da chuva anunciada por vavó Xíxi. Vavó Xíxi carregando o peso dos anos e da miséria, remexendo no lixo, comendo raízes de dálias e contorcendo-se com dores de barriga, vavó Xíxi acendendo o lume sem ter o que cozinhar, vavó Xíxi e a força das suas lamentações, vavó Xíxi reclamando, xingando sempre a preguiça e a vaidade de Zeca que nunca mais encontrava trabalho. Vavó Xíxi, a língua sempre lépida, a língua insubmissa à fome: “Se gosta de peixe d’ontem, deixa dinheiro hoje, para lhe encontrar amanhã.” E nós imitávamos vavó Xíxi, carregando nas interjeições e tudo. E Zeca. Zeca e sua camisa florida, as calças vincadas, Zeca e as farras, Zeca e seu amor por Fininha, Zeca que não encontrava trabalho, Zeca roído pela lombriga da fome, Zeca e sua vergonha final, desmoronando-se num choro de menino no ombro de vavó. Vavó Xíxi era-nos muito próxima. Condoía-nos muito a sua fome, tão velha que era. Mas havia mais: algo no seu jeito de falar, algo no seu modo de se lamentar, algo, na forma enérgica como admoestava constantemente o neto Zeca Santos, nos fazia lembrar uma mais-velha da nossa própria família. Zeca também passava fome e muita, mas era novo, tinha uma camisa florida, ia a festas, namorava, saía de casa todos os dias e nunca encontrava trabalho. Porém, no dia em que Zeca mostrou a vavó Xíxi as costas rasgadas pelo cavalmarinho do branco sô Souto, no dia em que Zeca foi chicoteado

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e chamado de filho de terrorista, só por ter ido pedir trabalho seguindo o conselho de vavó, nossa também foi a sua raiva e esse calor mau secava as lágrimas lá dentro de nossos olhos também. E quando, bem no fim, Zeca desabou sobre o ombro de vavó Xíxi e chorou toda a dor do seu ventre e do ventre de vavó, havia apenas uma velhinha e seu neto feito monandengue encurralados pela fome. E foi aí, só aí, que as nossas simpatias, a nossa solidariedade de leitores adolescentes, até então bem mais firmes do lado da anciã, se repartiram ao meio, igualmente, qual um gomo de profunda tristeza, por vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos. Travámos também conhecimento com Xico Futa e Garrido Kam’tuta e Lomelino dos Reis, vulgo Dosreis, testemunhámos o seu encontro na cadeia, a solidariedade que pode unir os marginalizados mesmo nas situações de grande desespero e desesperança. A Estória da Galinha e do Ovo, passada no musseque Sambizanga, “nesta nossa terra de Luanda”, por volta das quatro horas, pôs o riso e gargalhadas nos nossos corações. Acho que, na tertúlia, coube à Leopoldina recontar essa estória, partilhar as suas impressões, explicar o significado. Estávamos todos à espera daquela parte em que Beto imitava o cantar do galo. Que foi descrita por Leopoldina com palavras próprias, mas que agora transcrevo do livro. E então sucedeu: Cabirí espetou com força as unhas dela no braço do sargento gordo, arranhou fundo, fez toda a força nas asas e as pessoas, batendo palmas, viram a gorda galinha sair a voar por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda pássaro de voar todas as horas.

Rimo-nos e batemos palmas também, com uma alegria esfusiante. A matriarca sorriu um sorriso redondo e guiou-nos na busca do significado daquele incrível voo de uma gorda galinha angolana pelos angolanos céus de Sambizanga, quando eram cinco e meia da tarde e o céu azul não tinha nem uma nuvem daquele lado sobre o mar. Eu recontei a estória de Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos.

Conceição Lima, poeta e jornalista são-tomense, é licenciada em Estudos Africanos, Portugueses e Brasileiros pelo King’s College, Londres, com o grau de mestre em Estudos Africanos pela School of Oriental and African Studies,SOAS, Londres. Na televisão são-tomense é apresentadora do programa Cartas na Mesa que lidera audiências.

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Pela editorial Caminho publicou O Útero de Casa (2004), A Dolorosa Raíz do Micondó (2006) e O País de Akendenguê (2011). Está traduzida para o árabe, espanhol, francês, galego, inglês, italiano, servo-croata, turco e shona.

O LUUANDA DE LUANDINO E A MENSAGEM DA CEI Luís Bernardo Honwana

Para o Carmo Vaz

Para mim não dá falar do Luuanda de Luandino sem falar da Casa dos Estudantes do Império e do seu boletim, a Mensagem. Nesses anos de apagamento d’O Brado Africano, o que considerávamos ser importante na nascente literatura moçambicana não vinha em livro, não tinha espaço dedicado na imprensa (tirando, talvez, a Voz de Moçambique) e mesmo como texto avulso tinha a circulação vigiada. Para a polícia política qualquer volante impresso era muito provavelmente um ‘panfleto subversivo’. Era principalmente a Mensagem que de longe nos trazia tanto do que nós nos descobríamos ser, nesses anos de despertar, na Lourenço Marques colonial. Os números da Mensagem que passavam de mão em mão eram principalmente os das antologias de poesia. O Rui de Noronha do Quenguelequezê chegou a muitos de nós pela primeira vez na famosa edição ciclostilada, aquela que tinha na capa a gravura do timbileiro de Zavala. E foi a Mensagem que nos abriu Angola. Angola trilhava já o caminho que, com as grandes certezas que animam a juventude, sabíamos que seria também o nosso. Mas mesmo antes da grande conflagração que nos fez parceiros e aliados num mesmo processo de luta anticolonial, sabíamos ter muito em comum. A literatura ajudava a identificar essas semelhanças, especialmente quando nos transportava para os espaços onde se sonha o futuro, na costura entre o urbano e a periferia da cidade colonial. Angola já era realmente tão igual a nós, tão irmã:

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Musseque = cidade de caniço; Contratados = Chibalos; Sambizanga, Cayatte, Bairro Operário = Mafafala, Chamanculo, Xipamanine; Liceu Vieira Dias, n’Gola Ritmos = Daíco, Fanu Mpfumu...

Tudo cantado, ou dito numa língua nova, que afeiçoava o português às necessidades comunicativas do subúrbio da grande cidade e, à escala de todo o território, à função de língua franca, antecipando a apropriação da língua que Cabral e seus pares acabariam por proclamar, anos mais tarde. Nós sabíamos de cor os poetas de Angola: o Viriato, o António Jacinto o Agostinho Neto, o Mário António, todos eles. Misturávamo-los com o Craveirinha, com o Rui Nogar e com a Noémia de Sousa e dizíamo-los com o mesmo orgulho e desafio nos saraus de poesia do NESAM (Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique) no velho Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique. Estou a ver as nossas declamadoras e declamadores, todos (maus) discípulos de Villaret na teatralidade do seu dizer, batendo com o pé no chão e com o punho no peito, empolgando-se (antes de empolgar os outros) com o Monangambé, com o Makezu, com a referência literária que escapa a um primo que por isso ficou o Zeca Camarão. (Numa aventura que se passa numa chunga - talvez o que era para nós um baile de chongaria!!!). Através da Mensagem, estudantes que éramos, fazíamos eco dos debates, tensões e descobertas que certamente convulsionavam a vida dos nossos colegas mais velhos, na Casa dos Estudantes do Império. Aí, seguramente, continuavam e eram trazidas para outros níveis as tentativas pioneiras do “Vamos descobrir Angola” ou, do nosso lado, a saga dos Albasinis e da Associação Africana. Acreditávamos que também lá, em Lisboa, na famosa esquina da Duque D’Ávila com a Dona Estefânia, o grito de protesto ou de revolta, o despertar da consciência social, a aspiração libertária, a corrente solidária era o que se procurava nos poemas que se liam e também o que levava tantos jovens a tentarem, de forma quase ritualística, a aventura da escrita. O exemplo que se emulava era o da boa mão cheia de ‘consagrados’ com que já se contava, desde os anos 50; os novéis escritores e poetas, muitos deles claramente a braços com uma crise identitária, pareciam ver na literatura, para além da possibilidade do exercício de um talento que acreditavam possuir, uma espécie de via de redenção, num processo não muito distante da “reafricanização dos espíritos” de que falava Amílcar Cabral. A necessidade de

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afirmação, mesmo quando deficiente em termos de expressão literária, era um sinal de empatia ou adesão ao movimento verdadeiramente geracional de rejeição do status quo – social, literário, político. Era, como certa crítica apontava, uma poesia com ‘programa’. Programa vago e mal articulado como era inevitável na ‘urgência’ do momento e forçoso nesses tempos de censura e repressão. E o interesse despoletado pela poesia alastrava por outras áreas do universo das letras, pelo cinema, pelo debate de ideias – sempre com a generosidade e o fervor militante que eram o nosso timbre. A exploração destas outras saídas e possibilidades da produção literária terá colhido alguma inspiração ou encorajamento no ensaio de Alfredo Margarido que acompanhava a antologia Poetas de Moçambique. Este famoso prefácio não preenche, por variadíssimas razões, dizemo-lo hoje, a dimensão de texto seminal, mas nós colocávamo-lo (talvez por mero paralelismo: tratava-se do prefácio a uma antologia poética) na mesma linhagem do “Orphée Noire” de Sartre, que antecedia à Antologia da Nova Poesia Negra e Malgache em Língua Francesa e do “Cultura Negra e Assimilação” de Mário de Andrade em apresentação à Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Margarido fornecia o enquadramento histórico e o fundamento teórico da poesia antologiada pela Mensagem, e de toda a poesia que para nós contava. Na realidade as antologias e as revistas – pelo menos algumas delas – prenunciavam naquele quadro histórico os vastos processos de mudança no relacionamento entre dominados e dominadores que iriam a breve trecho ocorrer. Perturbou-nos por isso o encarniçamento de Rui Knopfli e Eugénio Lisboa, contra o texto de Alfredo Margarido. E não era apenas por causa dos critérios de inclusão e do grau de importância relativa que se atribuía aos diferentes poetas. Nenhum de nós estaria à altura de apreciar plenamente o mérito dos argumentos que se foram produzindo na longuíssima polémica, mas, de maneira difusa, compreendíamos que no conceito de poesia defendido por Knopfli e Lisboa não cabiam os poetas que nós tão efusivamente festejávamos – incluindo os consagrados! Seria realmente ‘menor’ a oficina de alguns destes poetas, em relação aos que Lisboa e Knopfli pareciam preferir? (Mas sempre se poderia perguntar: em relação a que cânone de aplicação universal?) E como se poderia, em todo o caso, recusar o interesse e importância do esforço consciente na renovação da língua, que essa poesia revelava, com ousadias semânticas, com um novo léxico e com a importação de inesperados fonemas ditados pelas línguas mãe subjacentes ao português falado por angolanos, moçambicanos e guineenses, trazendo

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em resultado outros ritmos e também outra aceitabilidade a uma língua que na experiência histórica dos nossos povos era a língua da humilhação? Eis que surge Luuanda. O livro chegou a Moçambique por vias paralelas e, ainda que não oficialmente proibido, entrou imediatamente no vasto (e prestigiado) rol de livros de circulação clandestina. Luuanda, que muitos consideram o texto inaugural da nova prosa de ficção em Angola, constitui o argumento não utilizado na polémica entre o Margarido e seus opositores e em todas as discussões sobre o que é a poesia (ou, de maneira geral, a literatura) moçambicana. Com este livro angolano de ficção talvez ficassem definitivamente esclarecidas algumas das questões que foram tenteadas no texto de apresentação de uma antologia da poesia moçambicana. E continuamos nas semelhanças e intermutabilidades entre Angola e Moçambique... E não só. Efectivamente para muitos de nós Luuanda constituiu uma espécie de ponto de chegada no percurso sociológico, estético e literário iniciado pelos poetas da Mensagem. As três estorias (é o Luandino quem entre nós inaugura esta forma de designar o que de outro modo chamaríamos de conto) que integram este livro compõem no seu conjunto um registo de protesto mas, indubitavelmente, elas têm mais que lembre as histórias que se contam à volta da fogueira do que as proclamações inflamadas de alguns dos poemas que se declamavam no Núcleo. Muitos anos mais tarde, quando em Lisboa privei com o Luandino, e o ouvi na sua conversa mansa e ar tranquilo reconheci sem dificuldade a voz que conta com humor e ternura o que aconteceu à Vavó Xíxi e ao Seu Neto Zeca Santos. Compreendi também a naturalidade com que deverão ter ‘fluido’, neste angolano branco falante de quimbundo e adolescido no musseque, os enredos, o ritmo apropriado e as palavras certas para recriar literariamente a vida do povo sofrido de Luanda nesse longo ‘finzinho’ do colonialismo. As estórias do livro Luuanda são ‘contadas’ numa língua de criação artística, o ‘português de Luandino Vieira’ como passou a ser designado, pois ninguém no musseque falaria exactamente como a Vavó Xíxi, a nga Zefa ou o Xico Futa ou como o próprio narrador das estórias. Mas a dupla ‘subversão’ do português e do quimbundo operada na pena de Luandino Vieira serve esplendidamente para nos dar conta dos ‘casos’ que denunciavam fundas tensões na difícil interacção entre o colonizado e o colonizador. E, no processo, ela punha em causa a hierarquização entre o português e as

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línguas africanas – um dos grandes fundamentos culturais e filosóficos da dominação colonial. Muitos analistas fizeram notar que para além da verdadeira revolução formal que representa, Luuanda abre-se a múltiplas leituras e interpretações em que, por exemplo a integração e interpenetração entre o português e o quimbundo, no texto, seria como que a antevisão de uma solução possível para o problema cultural que sempre haveria que resolver na reconstrução da nação angolana, depois de eliminada a presença colonial. A língua das estórias do Luandino não era o ‘pretoguês’ inconsequente da chamada literatura colonial, e o simbolismo da “Estória do Ladrão e do Papagaio” ou o da “Estória da Galinha e do Ovo”, com toda a sua subtileza e humor, não passaram despercebidos. Nem à Sociedade Portuguesa de Escritores, cujo júri acreditou (por maioria) estar perante um dos livros mais importantes da literatura portuguesa, nos últimos tempos, nem aos grupos vigilantes do regime, que se indignaram perante a premiação com o principal galardão nacional para a literatura da obra de um escritor tão subversivo que até estava em pleno cumprimento de pena maior por actividades contra a segurança do estado. Houve actos de repúdio. Houve manifestações de solidariedade. E houve também quem se interrogasse sobre se o Luuanda poderia ser considerado ainda como parte da literatura portuguesa. Foi significativo que no mesmo ano de 1965 e em consequência directa do impacto do Luuanda na sociedade portuguesa, Salazar tenha mandado encerrar a Sociedade Portuguesa de Escritores e a Casa dos Estudantes do Império. A Mensagem deixou de circular. De qualquer modo a grande maioria dos seus ‘antologiados’ – de Angola, de Moçambique e das outras colónias estava nesse momento ou no exílio ou na prisão. O mesmo acontecia aos declamadores e ao público dos saraus de poesia do NESAM, embora o Centro Associativo dos Negros de Moçambique tenha ainda permanecido aberto até 1966.

Luís Bernardo Honwana publicou, em 1964, Nós Matamos o Cão Tinhoso, obra sucessivamente reeditada e traduzida para várias línguas. O livro é composto por sete contos que, individualmente têm vindo a ser integrados em diversas antologias, o

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que confirma a repetida presença de Honwana no centro do cânone moçambicano, e como referência para a literatura africana. Após a independência, Honwana foi diretor do Gabinete do Presidente Samora Machel e Secretário de Estado e posteriormente Ministro da Cultura. É membro fundador da Organização Nacional dos Jornalistas de Moçambique, da Associação dos Escritores Moçambicanos e da Associação Moçambicana de Fotografia.

LUUANDA: O LIVRO DOS CHEIROS “FÉTIDOS” DOS OUTROS Adelino Timóteo

No final da década de oitenta chegou-me às mãos esse livro, Luuanda, numa edição das Edições 70. Era o tempo do boom dos escritores africanos, que as Edições 70 publicavam. De certo, Luuanda de Luandino Vieira chegara-me às mãos e já o escriba era uma lenda, através das suas narrativas mito-poéticas. O estilo coloquial adoptado por Luandino Vieira foi talvez um calcanhar de Aquiles neste primeiro contacto, ademais porque ele havia apostado na ‘crioulização’ do português como língua de expressão. A linguagem coloquial repercutiria no falar desta gente dos subúrbios de Luanda, com uma forte componente recreativa e de neologismos. Decifrar Luuanda foi possível através de dois livros ensaísticos que as próprias Edições 70 haveriam de publicar. Esses dois livros foram santo-e-senha para ler Luuanda e aperceber-me que a componente lúdica era uma marca do coração do texto luandinense. E nisto Luandino Vieira tornou-se como um bilhete de identidade que me permitiu atravessar por certas zonas-tabus, funcionando como uma senha para conspurcar o português padrão, de Portugal. O resultado foram os seguintes contos que publiquei no Diário de Moçambique: “Zeferino, o homem que morreu três vezes” (10/09/94), “Rodrigues, o herói da independência” (9/06/94), “O barrigudo” (04/03/95), “A chave final do julgamento de uma prostituta” (18/03/95), “O tio colorido” (14/01/95), “O pescador e a velha” (1/07/95), “Massinga” (27/0595), “O Pretuguês” (1995?), “A Ana da Inhamudima” (1995?), entre outros, que embora não publicados em livro, constam do espólio do ensaísta Pires Laranjeira. O desvio do padrão nor-

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mal, além de funcionar como uma profanação aos ditames instituídos pelas escolas oficiais resulta junto dos leitores, por seu efeito e cumplicidade, num efeito que rapidamente cria uma zona / espaço de interação rápida escritor / leitor. No Moçambique da primeira metade de 1990, reparei que o Suleiman Cassamo e Mia Couto representavam esta corrente. Reparei que outro escritor luso-moçambicano, Ascêncio de Freitas, glosava com muita naturalidade neste campo onde o viveiro eram os musseques, ou seja, os subúrbios. A crise editorial dos anos 90 terá levado a que aqueles meus escritos e outros que saíram na página “Diálogo”, do Diário de Moçambique, permaneçam ainda hoje não publicados, depois de uma tentativa com o Mia Couto e o pai, Fernando Couto, de lhes dar a estampa em 1996, através da Ndjira. A literatura que se fazia nos anos 90 em Moçambique não tinha outra forma de escapar à corrente de Luandino Vieira, pois com a guerra em curso e a ruralização das cidades este espaço de convergência criou esta forma de estar na literatura, marcada pelo conflito entre a norma e o desvio. Os deslocados de guerra e o enfraquecimento do sistema de educação, com a fuga de cérebros, aceleraram a mussequitização do português e da língua em Moçambique. Se por um lado tínhamos bem assegurado que o Guimarães Rosa era o pai da suburbalização do português literário, por outro era evidente que Luandino Vieira era / é o nosso pai africano nesta corrente. O Bahassane Adamodjy, com o seu livro Milandos de um Sonho (2001), editado pela Quetzal, haveria também de marcar essa tendência inevitável na prosa, e José Craveirinha, na poesia. O título do livro “Luuanda” representa, a meu ver, uma catarse, operando no contexto de uma nação e literatura que se pretende instituir. E as décadas 80 e 90 caracterizaram-se sobretudo pela fermentação do imaginário africano e do reconhecimento das literaturas africanas de expressão portuguesa. As vivências de Luandino Vieira nos musseques de Luanda lhe deram / emprestaram uma matriz que irá marcar toda a sua obra posterior e de muitos outros angolanos, como o Manuel Rui que em “Quem me dera ser onda” faz a caricatura da transposição / transferência dos costumes e do linguajar dos subúrbios no espaço urbano. É o que, em bom rigor, poderíamos chamar a bantunização do português angolano e moçambicano que este Luuanda vem consagrar / conceptualizar, pela sua publicação em 1963, e um sem número de edições que lhe seguiram. Ressuma, o português de Portugal enriqueceu com a bantunização que Luuandino Vieira operou através da escrita com um forte cunho de oralidade (ovambundo e quim-

LUUANDA: O LIVRO DOS CHEIROS “FÉTIDOS” DOS OUTROS

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bundo), criando um espaço de aproximação entre o narrador / poder colonial e o leitor / escritor lançando mão de provérbios, ditados e valores dos usos e costumes até então ocultos e que irão ganhar um forte eco entre os confrades, o que justificou o Grande Prémio de Novelística da Associação Portuguesa de Escritores (APE). “Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvide. (...) E isto é verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado”, assim escreveu ele em Luuanda. Expressão essa reveladora de fidelidade do escriba com a tradição, e não só, de comprometimento com o meio em que vive, desempenhando ele a tarefa de portador da sociedade em que está inserido. Em Luuanda, Luandino Vieira forneceu-me / emprestou-me um narrador que não precisa de ser cunhado com uma forma oficial que o autorize a escrever, não sendo ele mais do que co-produtor de uma nova língua portuguesa e paralela que vive e opera num espaço confinado e clama por um reconhecimento. Será por isso que o livro continua incólume, na sua inter-temporalidade. Ele chamou-me atenção para uma escrita despojada de artifício e de maniqueísmo. Uma escrita que ventile o ar e o aroma do espaço e lugar com que ela faz corpo. A missão da escrita literária é resgatar o imaginário cultural e levá-lo a perdurar. Augurado este pressuposto, só assim se compreende a sobrevivência deste livro que influencia a minha escrita em Nós, os do Macurungo (2013), na perspectiva de que há um narrador, a seu modo, preocupado com a recreação da língua e em salvar a oralidade, a partir de uma periferia que irá influenciar e catalisar a mudança ao nível do próprio sistema linguístico / padrão literário nacional. Luandino Vieira representa para mim um escritor que, com esta forma de operar a escrita e a língua, me transmite um à vontade quanto ao meu lugar na escrita, livre de qualquer rococó, livre de qualquer etiqueta que privilegie a posição da escrita literária feita actualmente nas antigas colónias, por isso reclamando um tratamento mais sério, pelos estudiosos e editoras, à evolução ao longo dos cinquenta anos, que as literaturas africanas foram tomando, à injusta e redutora imagem que a limita a dois ou três nomes reconhecidos, enquanto aos demais lhes é dada uma posição subalterna. Uma vez aqui chegados, Luandino Vieira, inventor de uma marca literária que se compatibiliza com o seu meio e o seu tempo mereceria, a par desta homenagem pelos 50 anos deste Luuanda, uma nata e plêiade de escribas que lhe dessem eco, em se tratando ele de pai deste modus de fazer

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literatura, desse modus de rasgar a gramática e voltar a juntar o puzzle dos papéis, a seu modus encantatório e maravilhosamente belo, pois é com ele que se sente o cheiro “fétido” dos outros que atormentam ainda, hoje, a preguiça de embrenhar nos subterrâneos de África que mais de quinhentos anos passados, continua por descobrir. A síndrome que levou ao assalto da APE e a desculpa para se não reconhecer mérito ao Luuanda, depois dos prémios que mereceu, continua a povoar o meio inóspito dos estudos literários onde determinados círculos críticos e intelectuais mantêm latentes a alergia à aceitação natural da herança africana, e assim o mérito da chama de Luandino Vieira continua na penumbra, essa mesma que continua acesa nos musseques de Luanda, de Maputo, da Baía, e retintamente está desfocada nos escaparates das livrarias de Lisboa, reincidente dos “cheiros fétidos dos outros” que alimentam o folclore e a nostalgia de um paraíso perdido.

Adelino Timóteo nasce a 3 de fevereiro de 1970, na cidade da Beira, Moçambique. Formado em docência de língua portuguesa, não chega a exercer a sua profissão. Também licenciado em Direito, exerce a atividade de jornalista, combinando-a com as artes plásticas e escrita literária. Em 2004 e 2007 foi respetivamente homenageado pelo Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU) e Conselho Municipal da Beira, no primeiro caso pela sua poesia, no segundo pelo seu contributo cultural para a urbe, como escritor e artista plástico. Em 1999 venceu o Prémio Anual do SNJ para a melhor Crónica Jornalística. Em 2001 venceu o Prémio Nacional Revelação de Poesia AEMO. Um excerto dos seus poemas, traduzidos em Italiano, consta da revista Dis/Uguaglianze. Publicou os seguintes livros de poesia: Os segredos da arte de amar (1999, AEMO), Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique (2002, NDJIRA), A Fronteira do Sublime (AEMO), Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida (Prémio BCI/ AEMO 2011) e Livro Mulher (2013, Alcance Editores). Na prosa, se lhe destacam: Mulungu (2007), A Virgem da Babilónia (2009), ambos pela Texto Editores, Nação Pária (2010), Nós, os do Macurungo (2013), Não Chora, Carmen (2013), essas pelas Alcance Editores, Na Aldeia dos Crocodilos (2014 –conto infantil, edição Contos pelo Mundo), Apocalipse dos Predadores (Chiado Editora, Portugal). Ele está antologiado na Antologia da Poesia Moçambicana Nunca mais é Sábado (Dom Quixote, Lisboa), Colectânea Breve da Literatura Moçambicana (Identidades), Poesia sempre (2006, Biblioteca Nacional do Brasil) e Capitalismo um feito Revolução um direito (Galiza, Espanha), entre outras.

Literatura Interculturalidade Pedagogia

A LITERATURA INTERCULTURAL: DESAFIOS E CANONIZAÇÃO INTERCULTURAL LITERATURE: CHALLENGES AND CANONIZATION Gesa Singer* [email protected]

A história da literatura contemporânea escreve-se de maneira hesitante e com algumas reservas, no que diz respeito à germanística. Contudo, no âmbito académico surgem alguns movimentos e tendências que também abordam a questão da literatura intercultural. É neste contexto que se pode observar o empenho em estabelecer uma certa canonização de uma literatura tradicionalmente considerada menor. Neste artigo referimo-nos à respetiva valorização de autores, temáticas e círculos culturais relacionados com a literatura em língua alemã. Abordaremos as condições de receção e de prática pedagógica, questões incontornáveis para o tema da literatura intercultural quando se discutem a valorização e a mediação da literatura no contexto social e educativo. Palavras-chave: Literatura contemporânea, Literatura intercultural, valores de canonização The history of contemporary literature is hesitatingly and somewhat reluctantly written regarding German Studies. However, within the academic field some movements and tendencies that also address the issue of intercultural literature have appeared. In this context we can notice a commitment to establishing a certain canonization of a literature that was traditionally considered of minor quality. This article will refer to the respective valuation of authors, themes and cultural circles related to literature (mostly) written in German. It will also meditate on the conditions of reception and teaching practice that are compelling issues for intercultural *

Departamento de Germanística Intercultural, Faculdade de Filologia Alemã, Georg-AugustUniversität Göttingen, Alemanha. Texto com base na palestra proferida no âmbito do ciclo Literaturas em Trânsito, CEHUM, Universidade do Minho, 27 de março de 2014.

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literature when it comes to discussing appreciation and mediation of literature in the social and educative context. Keywords: Contemporary literature, Intercultural literature, Canonization values

1. Considerações prévias sobre o discurso do cânone Atualmente, no âmbito da literatura intercultural contemporânea, há um debate aceso em torno do conceito de literatura em si, no que diz respeito à formação de cânones e processos de inclusão e exclusão, nomeadamente no sistema educativo. Neste contexto, a crítica literária e a sua influência na vida literária e noutras instâncias de mediação assumem um papel relevante. Deve-se acrescentar a relação estreita entre o livro e a personalidade e biografia dos autores e autoras, a qual, na literatura contemporânea, domina muitas vezes a leitura e a interpretação. De acordo com Treml (2009), o “cânone” entende-se normalmente como algo que está em constante desenvolvimento: “O que se ‘desenvolveu’ existe, sem ficar totalmente transparente quem tenha sido o agente e de que forma se tenha efetuado este processo de desenvolvimento”.[1] Segundo este autor, pode recorrer-se a abordagens da teoria da criação e evolução para explicar melhor a formação de cânones (Idem, 144) ou, nas palavras de Winko: Regra geral, um cânone de textos literários não é um catálogo. É antes algo que pode ser reconstruído a partir da presença de textos literários e da comunicação sobre eles, que pode acontecer para diversos cânones em diferentes instituições e meios. (Winko, 1997: 597)

Sob esta perspetiva teórica[2], a consideração da chamada Invisible hand (Winko, 2013) pode contribuir de forma significativa para uma descrição dos percursos complexos relacionados com os processos de valorização (Wertschätzung; Karg, 2013) que permitem perpetuar a relevância de certas literaturas em diferentes contextos sociais (cf. Winko & Rippl, 2013). No campo da literatura mais recente, é sobretudo a denominada literatura intercultural que está sujeita a processos valorativos de exclusão. Contudo, o fenómeno em si não é novo. A literatura intercultural já existia 1 Treml (2009: 143). Todas as citações de bibliografia em língua alemã foram traduzidas para português. 2 Cf. Beilein / Stockinger / Winko (2011).

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muito antes de o próprio conceito ter surgido, porque o entrecruzamento e confronto de várias culturas é um tema ancestral e a essência da literatura universal, tendo, por conseguinte, já entrado em diferentes cânones.[3] Os processos de seleção determinaram desde sempre e ao longo dos séculos a interação entre a valorização de obras literárias e a formação de cânones. No que diz especificamente respeito ao fenómeno da ‘interculturalidade’, esse já se encontra nas literaturas ‘clássicas’, o que teve como consequência o surgimento de um novo campo de investigação dentro dos estudos literários.[4] Não será necessário passar pela referência obrigatória de West-östlicher Divan [Divã Ocidental-Oriental] de Goethe, para se reconhecer na literatura de séculos passados uma considerável diversidade de temas, motivos, caracteres, modos de falar, conflitos, etc. que fazem referência, ainda que de forma apenas implícita, a fenómenos de interculturalidade; contudo, a experiência intercultural em sentido biográfico escasseia no repertório de autores considerados clássicos. De modo geral, são as literaturas contemporâneas que se deparam com o problema de se afirmarem perante as literaturas ‘clássicas’ ou bem estabelecidas na vida literária, devido à falta ou à inadequação de critérios valorativas. Na maioria dos casos são as convenções, tradições e mecanismos de conservação que mais contribuem para a génese e a permanência de um cânone, e estes fatores dizem respeito a uma camada social privilegiada pelo seu acesso à educação (cânones na educação, cânones académicos). Existem paralelamente alguns subcânones, como o da literatura trivial, entre outros. Trata-se, em primeiro lugar, de fornecer orientações e valorizações e, em geral, de estabelecer uma comunicação com sentido (vd. Treml, 2009: 148): “A grande contingência na produção de ideias leva à necessidade de marcações, a partir das quais os sistemas sociais se orientam e são capazes de comprimir e sincronizar a sua comunicação” (Idem, 149), – mais que não seja, para evitar a arbitrariedade. Portanto, devemo-nos interrogar sobre a seguinte questão levantada por Winko: Serão os cânones hoje em dia dispensáveis porque a sua unidade já não é concretizável, ou já não serão desejáveis porque cada tentativa de chegar a uma maior unidade tem o preço de uma ratio de exclusão demasiado elevada? (Winko, 1997: 599)

3 Vd. Sturm-Trigonakis (2007); Charlier & Günther (2009; orgs.); Singer (2012). 4 Vd., a título de exemplo, Reinhardt (2012).

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Uma alternativa pode ser encontrada através da simultaneidade de cânones tradicionais e novos que “corresponde ao pluralismo no âmbito da germanística” (Ibidem): segundo o modelo das escolas secundárias americanas, além dos cânones tradicionais dos ‘autores masculinos e de raça branca’, existem cânones novos de autoras e de diferentes grupos étnicos, cuja integração foi defendida na forma de cânones de grupos coesos. (Ibidem)

Com isso, um cânone literário “(…) constitui um fundamento importante para a comunicação académica e, não em último lugar, para a auto-entendimento” (Idem, 600).[5]

2. Breve história do discurso sobre a ‘literatura intercultural’ A emigração e a globalização como marcas do mundo atual constituem, no fundo, categorias extraliterárias. A produção literária relativa a estes fenómenos desenvolveu-se a partir da chamada ‘literatura de trabalhadores-hóspedes’ (Gastarbeiterliteratur)[6], na década de 1960, passando pela ‘literatura de migrantes’ (Migrantenliteratur), para chegar a um conceito aberto de “literatura híbrida” (Bhabha, 2000). Nesta evolução espelham-se não só algumas tendências socioculturais, mas também as orientações das políticas de imigração. Perante a omnipresente globalização e a abertura de muitas fronteiras, o debate sobre a literatura intercultural e a tentativa da sistematização deste fenómeno em termos académicos é o campo de investigação mais fértil na área da literatura contemporânea. No entanto, ainda não se chegou a resultados conclusivos. Por isso, contentar-nos-emos em referir algumas das posições mais destacadas que servirão de ponto de partida para uma melhor descrição do objeto aqui tratado. No início, dos anos 50 até aos anos 80, falava-se da Gastarbeiterliteratur, também denominada Betroffenheitsliteratur, cuja tradução ‘literatura dos afetados’ deixa entrever a maior ênfase no caráter autobiográfico e, em termos coletivos, reivindicativo ou militante. Entretanto, foram-se desenvolvendo formas de literatura híbrida produzida por autores e auto5 “O cânone material e interpretativo codifica aqueles esquemas e valores cognitivos e emocionais que contribuíram para a sofisticação de uma cultura na qual também se integra o presente” (Winko, 1997: 600). 6 Tradução do eufemismo alemão para português, usado por Seruya (2005a).

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ras residentes em países de língua alemã com antecedentes de imigração (Migrationshintergrund). O fenómeno a que se refere, porém, é já velho (…), tendo começado a desenhar-se com os esforços literários da primeira geração de ‘Gastarbeiter’ – à letra trabalhadores-hóspedes – que chegaram à Alemanha no princípio dos anos sessenta (embora os primeiros acordos Estado a Estado para o recrutamento de trabalhadores estrangeiros datem de 1955, com a Itália à cabeça). Chiellino, também autor de vários contributos, teve ele próprio uma participação ativa na configuração editorial e institucional desta nova literatura de língua alemã produzida por autores/as estrangeiros radicados na Alemanha, numa fase inicial com background migratório ligado ao trabalho, hoje nem sempre, até porque inclui elementos da segunda geração, já integrados na Alemanha, ou tendo lá chegado em criança. (Idem, 17).

Estas novas formas não estão focadas no tema do sentir-se estrangeiro, nem se ocupam primordialmente deste fenómeno, até porque um conceito de literatura contemporânea que esteja baseado numa linha conservadora de estudos literários que enfatize identidades nacionais essencialistas é sempre problemático. Durante algum tempo, as definições de “literatura de migração” ou “literatura de imigrantes” terão sido entendidas como satisfatórias, apesar das suas manifestas fragilidades concetuais.[7] A este respeito, Cerri levanta a seguinte objeção: A ‘literatura de imigrantes’ é um conceito puramente biográfico, que exclui autores nascidos na Alemanha ou, como Feridun Zaimoglu, que foram para a Alemanha ainda crianças e se veem a si mesmos como alemães. Porque terão eles de ser etiquetados com um rótulo que diz respeito à geração dos seus pais e não à deles próprios? (Cerri, 2009: 11-12)

Deixando de lado os conceitos que partem da imigração, prevalece “um debate estéril sobre quem atribui a quê, quando e porquê os conceitos variados de inter-, trans-, multi-culturalidade e afins, assim como, por outro lado, abundam análises válidas de textos literários, que, isoladas, dificilmente se articulam entre si” (Weinberg, 2011: 93). Segundo Chiellino, o romance intercultural tem duas características: “uma perspetiva narrativa em língua estrangeira e o sentido latente da linguagem” (apud Cerri, 2009: 7 De acordo com Esselborn (2010, 290): “No contexto da discussão sobre a emigração e a sociedade multicultural na Alemanha julgou-se mais conveniente falar de literatura de imigrantes, migrantes e, num conceito mais temático, de literatura de migração.”

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16). Mas há ainda outros critérios a considerar em relação ao fenómeno ‘intercultural’, uma vez que “a interculturalidade em muito ultrapassa o fenómeno da imigração (…)” (Seruya, 2005a: 19). De acordo com Homi Bhabha (2000), as literaturas híbridas representam um terceiro espaço, no qual se desenrolam processos sociais de negociação entre ‘nativos e estrangeiros’, o centro e a periferia. Apesar de as considerações de Bhabha se basearem na situação (pós)colonial, podem ser transferidas com proveito: Assim, a ‘literatura de migrantes’ perde o seu estatuto de ‘literatura de chegada’. No novo contexto teórico a categoria ‘híbrido’ não se cinge ao migrante, mas refere-se também à sociedade que acolhe; a ‘literatura de migrantes’ torna-se espelho do leitor alemão, ele também tornado híbrido. (Weinberg, 2011: 97)

Outro tema recorrente nas literaturas de cunho intercultural e muitas vezes de orientação explicitamente biográfica é o sentir-se estrangeiro. Trata-se de textos que se interrogam ao nível estético, de forma temática e linguística, sob o pano de fundo da migração, sobre uma vida que alterna entre duas ou mais culturas e diferentes línguas. Wrobel constata: O debate em torno da questão sobre se a literatura intercultural será capaz de entrar no cânone não reflete somente as controvérsias dos estudos literários ou didáticos. Os seus argumentos excedem-nos largamente, estando diretamente relacionados com o discurso político-social, as questões de imigração e integração, e a discussão acesa sobre a multi- e interculturalidade. (Wrobel, 2008: 23)

3. Exemplos de autores interculturais ‘canonizados’ Podem ser elencados, numa escolha ordenada por ano de nascimento, os seguintes autores e autoras, de língua alemã, que foram distinguidos e estão estabelecidos no mercado literário[8]: Franco Biondi (*1947 em Forlì / Itália); Rafik Schami (* 1946 em Damasco / Síria); Emine Sevgi Özdamar (*1946 em Malatya / Turquia); Sibylle Lewitscharoff (* 1954 em Stuttgart / Alemanha); José F. A. Oliver (* 1961 em Hausach / Alemanha); Feridun Zaimoglu, (* 1964 em Bolu / Turquia); Ilija Trojanow (* 1965 em Sofia / Bulgária); Wladimir Kaminer (* 1967 em Moscovo / Rússia); Terézia Mora 8 Vd. Ackermann (1996); Chiellino (2000), entre outros.

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(* 1971 em Sopron / Hungria); Lena Gorelik (* 1981 em St. Petersburgo / Rússia). A canonização destes autores processou-se por via de diversas formas e meios, tais como a apreciação das suas obras em resenhas críticas, a obtenção de prémios literários, sobretudo o Prémio Adelbert-von-Chamisso[9], distinção concedida a autores que não têm o alemão como língua materna, mas escrevem no idioma; de referir ainda as Poetikdozenturen, docências em torno da literatura a convite de universidades, divulgações em antologias e, não menos relevante, a presença dos autores e dos seus livros nos media. Com a consolidação da ‘literatura intercultural’, esta canonização passa também pela sua referenciação nas obras mais recentes de história da literatura assim como pela adoção dos seus textos em propostas didáticas e programas letivos nas escolas e universidades nos países de língua alemã.

4. Comunicação intercultural e consequências didáticas A comunicação intercultural é hoje uma competência-chave nas diferentes relações de interdependência em vastos domínios no âmbito profissional, internacional, político-económico e inclusivamente emocional. As exigências por parte de instituições pedagógicas denotam uma clara orientação para o poliglotismo, para o fortalecimento de competências linguísticas e também para a formação intercultural, configurando assim um enquadramento para o desenvolvimento de diversas formas e meios didáticos nesse sentido: Assim propagam há séculos as instituições e grémios europeus, que a pluralidade de línguas e culturas (inclusivamente aquelas faladas e vividas pelos migrantes) fazem a identidade europeia e devem ser integradas, não assimiladas. (Allemann-Ghionda, 2010: 8)

No contexto das aulas de língua, não se deve subestimar o duplo significado dos textos interculturais contemporâneos, quer como meio de motivação para a leitura e escrita, quer na sua função cognitiva. Por um lado, representam um importante contributo para o diálogo que conduz à dis9 “Nesses tempos, o próprio patrono do fenómeno sob análise, o aristocrata francês Adelbert von Chamisso, que emigrou para Berlim em consequência da Revolução Francesa, fazia parte dos programas universitários de Literatura Alemã, sem que houvesse consciência de que podia ser reclamado pelo seu país de origem, ou excluído do cânone literário alemão devido à sua nacionalidade de origem.” (Seruya, 2005 b: 88).

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tinção entre cultura e estereótipo (Ipsen, 2009); por outro, consubstanciam um motivo para a reflexão sobre as experiências individuais de cultura e identidade, podendo também ser utilizados para desenvolver determinadas competências linguísticas ao nível da receção e produção. As análises críticas a partir de narrativas como as referidas até agora podem, na nossa opinião, contribuir para uma atitude mais reflexiva e sugerir assim mudanças de perspetiva originadas pela tomada de consciência, assente numa apreciação comparativa que inclui o reconhecimento da existência de outras experiências, maneiras de ver e critérios valorativos. As literaturas interculturais estão ligadas a um processo hermenêutico de procura de identidade e ao questionamento dessa identidade na complexidade dos contextos históricos e socioculturais, o que as torna atraentes para os estudos literários, designadamente no que se refere à comparação com outros géneros, épocas, etc.. Segundo Stratthaus (2005), o conceito da interculturalidade significa mais uma prática interpretativa geral do que uma abordagem definida por um determinado corpus literário. Na didática das línguas estrangeiras, foi só a partir dos anos sessenta do século XX que se começou a investigar a relação tensa entre auto- e hétero-perceção: Deu-se maior atenção aos processos simultâneos de adquirir consciência da cultura própria e de compreender a cultura estrangeira; mas também aos aspetos emocionais da perceção do outro, assim como à relevância dos preconceitos; todos estes aspetos entraram no âmago da investigação da didática das línguas estrangeiras. (Hallet & Königs, 2010: 76).

A perspetiva intercultural também adquire uma importância crescente nas recentes obras didáticas do alemão como língua estrangeira (Deutsch als Fremdsprache – DaF). Na área dos estudos literários, os trabalhos de alguns autores dedicam-se ao uso adequado da literatura nesse domínio com o objetivo de alcançar uma melhor compreensão e uma competência de diálogo intercultural mais abrangente. A partir do início deste século estas contribuições são publicadas na série intitulada Gießener Beiträgen zur Fremdsprachendidaktik e consideradas muito fecundas para melhorar a didática das línguas estrangeiras.[10] A literatura é um meio ideal para apreender e aprofundar a competência numa língua estrangeira:

10 Vd. por exemplo: Bredella / Delanoy / Surkamp (2004).

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(…) são precisamente os textos literários que, graças à sua dimensão ficcional, refletem em particular as mentalidades, normas e valores culturais da língua-alvo. Mais ainda, refletem aqueles codes of behaviour que são muitas vezes encobertos e difíceis de perceber, no entanto essenciais para a transferência da competência intercultural. (Volkmann, 2008: 101)

Torna-se determinante a possível articulação desta funcionalização da leitura do texto literário com a aprendizagem da língua através de interações, um método que ficou revalorizado nas teorias recentes da didática das línguas estrangeiras: Quando os textos literários nos apresentam ações e experiências que nos estimulam a ativar ideias e sentimentos, isto significa também que nós reagimos e damos valor ao que nasce através do processo da leitura. (Bredella, 2010: 47)

Portanto, não se trata de uma interpretação literária objetivamente ‘correta’, mas de uma permuta dialógica sobre o que a literatura provoca no leitor e as experiências que ela pode ativar[11], no entanto sem deixar de prestar atenção – acrescentaríamos – aos condicionalismos socio-históricos. Escritores oriundos de diferentes culturas e que escrevem em alemão dispõem hoje em dia de mais identidades culturais e linguísticas e não estão tematicamente presos às suas origens culturais individuais. Os espaços intermédios tornaram-se múltiplos e mais abertos. No entanto, o domínio da língua mantém-se um tema central, seja de forma afirmativa, irónica ou transfigurada, para causar alheamento, ou delimitativa, encontrando a sua expressão própria nas respetivas obras. Já não se trata de ultrapassar as dificuldades da (in)compatibilidade linguística, que tem sido um dos temas centrais da literatura de migração e cuja utilização irónica aparece nas primeiras publicações de Feridun Zaimoglu, numa perspetiva fragmentada: Neste contexto, a língua constitui um aspeto específico da Kulturnation alemã, (…) sendo possível distinguir-se a marginalidade linguística, a segmentação, a assimilação e a inclusão múltipla. A marginalidade linguística seria então um caso de ‘bilinguismo limitado’ no qual nenhuma 11 Bredella (2010, XXXIV) adverte que “(…) a compreensão do Outro é dialógica e não pode suceder sem a sua relação com a auto-compreensão. A experiência estética funciona de modo semelhante. Isso tem consequências profundas para a definição de competência literária que, regra geral, se limita, sob a forte influência do Formalismo, à identificação de aspetos estilísticos e estruturais de um texto.

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das línguas seria dominada de maneira competente, como no caso do language shift entre os filhos de imigrantes de camadas sociais inferiores, que (já) não têm o domínio correto da sua língua materna (...). (Esser, 2006: 26)

No seu livro intitulado Sie können aber gut Deutsch! Warum ich nicht mehr dankbar sein will, dass ich hier leben darf, und Toleranz nicht weiterhilft [Mas que bem que fala alemão! Por que não quero ser mais grata por poder viver aqui e por que tolerância não ajuda], Lena Gorelik (2012) aponta críticas violentas à perceção restrita a que são sujeitos os autores de proveniência estrangeira no contexto da língua alemã. É expetável que, no seio da germanística e da área da docência do Alemão, o debate sobre o cânone continue a manter-se controverso. A área do alemão como língua estrangeira e a germanística intercultural oferecem novas abordagens da literatura em língua alemã que representam um inquestionável potencial de estímulo para esta disciplina: A defesa de um ‘currículo nuclear’ para a disciplina é problemática, porque o ensino de literatura com orientação intercultural foca não só o tema de experiências antropológicas básicas, como também tem em conta textos que, indo além da abordagem histórica, possibilitem aos estudantes a assimilação do mundo em que vivem. (Wrobel 2008: 25)

Na nossa opinião, o objetivo dos estudos literários e da didática atual não deve consistir no confronto duma literatura com outra[12], porque cada uma tem a sua relevância histórica e, portanto, cultural, e deve ser avaliada em conformidade. Para os estudos literários interculturais e comparativos como também para a atual didática da literatura no âmbito da língua estrangeira, há campos de atividade ainda longe de estarem totalmente explorados.

5. Panorama da literatura luso-alemã A experiência da emigração para a Alemanha nos anos 60 e 70 não teve quase nenhum reflexo na produção literária portuguesa, com raras exceções como a obra Floresta em Bremerhaven (1978) de Olga Gonçalves, que 12 “A Ciência Literária ‘em sentido restrito’, que se baseia no uso pré-científico de textos literários como autodisciplina sem compromisso, é por isso sempre uma força antagónica ao auto-alheamento ideológico do homem.” (Gerigk, 2010: 170)

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parece ser simultaneamente um texto de ficção e um estudo sociológico sobre a emigração, dando voz aos próprios emigrantes. Nos países de língua alemã, a literatura de minorias (Minderheitenliteratur) dos anos 80 empenhou-se na comunicação intercultural, fomentando – por exemplo através de concursos – a criação literária nas línguas de origem dos imigrantes e a sua tradução para alemão, entre as quais destacamos os seguintes, no nosso contexto: – revistas literárias como: Peregrinação. Revista de Artes e Letras da Diáspora Portuguesa. Baden, Suíça (1983/89); – antologias (por exemplo, as organizadas por Irmgard Ackermann, Als Fremder in Deutschland. Berichte, Erzählungen, Gedichte von Ausländern (1982) e In zwei Sprachen leben. Berichte, Erzählungen, Gedichte von Ausländern (1983), nos quais se encontram textos de Manuel Salvador Campos, Elizabeth Gonçalves, João da Costa e, talvez a que mais se tenha afirmado posteriormente numa vida cultural luso-alemã, Luísa Costa Hölzl (* 1956, Lisboa). O tema principal destes textos são as controvérsias pessoais das experiências de vida entre culturas. O jogo de transformar e misturar as línguas materna e estrangeira encontra no ultra-doitsh, criado por Zé do Rock, um brasileiro há muito tempo a residir na Alemanha, a sua expressão mais radical. Numa espécie de alemão ‘crioulizado’ pela língua brasileira, submetem-se os estereótipos culturais a uma paródia, como acontece, por exemplo, em Deutsch gutt sonst Geld zurück. a siegfriedische und kauderdeutsche lerund textbuk (2002). A perspetiva inversa, ou seja a de uma falante materna do alemão a viver no Brasil, é representada por Doris Kloimstein, no seu volume de narrativas intitulado Blumenküsser. Kurzgeschichten aus dem Atlantischen Urwald Brasiliens (2006) que versa sobre as experiências duma professora de alemão austríaca.

6. Breve reflexão final sobre a didática no contexto luso-alemão Até à atualidade, na vida literária dos países de língua alemã não se tem afirmado autores de origem portuguesa que escrevem literatura em alemão. Perante esta ausência pode-se interrogar sobre os motivos, nomeadamente quando há cada vez mais jovens portugueses, com formação superior e com competências de alemão antes de emigrarem.

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Ainda em 1997, Martina Merklin manifestou o seu ceticismo em relação à possibilidade de se aplicar a perspetiva intercultural no alemão como língua estrangeira e nas obras didáticas no contexto do ensino em Portugal: Aqui podiam-se mencionar as diferenças culturais que se manifestam nas obras didácticas portuguesas e alemãs. Do lado português existe o desejo de acordo e harmonia e evitar desentendimentos, como se pode ver na escolha de materiais didácticos e nos métodos seguidos. Os autores alemães preferem as distinções, a troca de opiniões e principalmente a importância das discussões. Daqui se sente seguramente o ímpeto esclarecedor da didáctica alemã e em especial o conceito de ensino intercultural, bem como a “cultura da discussão” [Streitkultur] alemã. (Merklin, 1997: 98)

A autora deixa bem claro que as diretrizes de um curso de língua não materna devem assentar num amplo domínio de experiências, com a inclusão de perspetivas interculturais, e sugere que seria “da maior importância a tematização da reflexão sobre o Outro, a sua compreensão e as suas contribuições nas aulas (talvez até na sua língua materna)” (Idem, 100). O facto de qualquer linguagem ser culturalmente condicionada, o encontro de diferentes culturas e a sua expressão literária são temas que, desde sempre, portanto em épocas anteriores à atual globalização e vagas migratórias, tiveram ocasião de entrar em obras que permaneceram no cânone literário. O desafio aliciante que hoje se coloca é a análise das suas mais recentes manifestações.

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LA CONSTRUCCIÓN DE LA IDENTIDAD A TRAVÉS DE LA ADOPCIÓN INTERCULTURAL EN LA LITERATURA INFANTIL Y JUVENIL CONTEMPORÁNEA* A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ATRAVÉS DA ADOÇÃO INTERCULTURAL NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL CONTEMPORÂNEA BUILDING IDENTITY THROUGH INTERCULTURAL ADOPTION IN CONTEMPORARY CHILDREN’S AND YOUNG ADULT LITERATURE Noelia Ibarra** [email protected]

Josep Ballester** [email protected]

La eclosión de la multiculturalidad como tema en la literatura infantil y juvenil de las últimas décadas provoca su aparición en un gran número de títulos desde diferentes ópticas, tópicos e incluso, personajes con determinados rasgos característicos. En este panorama, se constata el progresivo protagonismo adquirido por una temática: las adopciones. El atractivo creciente por esta temática responde a la asunción del papel de la literatura, y por extensión, de la educación literaria, en la construcción, preservación y reproducción de la identidad personal y colectiva. Nuestra investigación pretende, en primer lugar, mostrar el interés por una nueva temática en la literatura cuyo lector modelo es el público infantil, reflejado en el creciente número de títulos; en segundo, explicar de forma contextualizada su paulatino protagonismo y, por último, analizar de manera crítica y a través del comparatismo una selección de textos representativos en relación con una de las estrategias más repetidas: el binomio historia-identidad. Palabras clave: Identidad; literatura infantil y juvenil; educación literaria e intercultural; adopción

* Este trabajo se enmarca en el proyecto de investigación “Diversidad y (des)igualdad en la literatura infantil y juvenil contemporánea (1990-2012)” (UV-INV-PRECOMP13-115502), financiado por la Universitat de València. ** Departament de Didàctica de la Llengua i la Literatura, Facultat de Magisteri, Universitat de València, España.

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The appearance of multiculturalism as a topic in Children’s and Young Adult Literature of the last decades can be traced along many titles through different approaches, themes, or characters with specific traits. One of these themes is becoming noticeable: child adoption. The growing fascination for this theme lies in the role of literature – literary education included – as builder, preserver, and creator of collective and self-identity. Firstly, our research aims to demonstrate the growing interest for this recently popular theme in literature intended for children; secondly, to explain the context in which the theme has spread; and lastly, to analyse from a critical standpoint a set of representative texts related to one of the most common binomials: history-identity. Keywords: Identity, Children’s and Young Adult Literature, Literary and Intercultural Education, Adoption A eclosão da multiculturalidade como tema na literatura infanto-juvenil nas últimas décadas faz surgir uma quantidade de títulos, de diferentes perspetivas, tópicos e, inclusivamente, personagens com determinados traços caraterísticos. Neste panorama, constata-se o progressivo protagonismo adquirido por uma temática: as adoções. A crescente procura por esta temática responde à assunção do papel da literatura, e por extensão, da educação literária, na construção, preservação e reprodução da identidade pessoal e coletiva. A nossa investigação pretende, em primeiro lugar, mostrar o interesse por uma nova temática na literatura cujo leitor modelo é o público infantil, refletido no aumento de títulos; em segundo, explicar de forma contextualizada o seu progressivo protagonismo e, por último, analisar de forma crítica e através do método comparativo uma seleção de textos representativos relativamente a uma das estratégias mais recorrentes: o binómio história-identidade. Palavras-chave: identidade; literatura infanto-juvenil; educação literária e intercultural; adoção

Introducción La eclosión de la multiculturalidad como tema en la literatura infantil y juvenil –en adelante LIJ – de las últimas décadas provoca su aparición en un gran número de títulos desde diferentes ópticas, tópicos e incluso, personajes con determinados rasgos que, en gran número de ocasiones, parecen obedecer al cumplimiento de ciertas ‘cuotas’. En este rico panorama, se constata el progresivo protagonismo adquirido por una temática: las adopciones. Si bien este motivo no representa novedad alguna en la literatura universal, sí que resulta muy relevante en el estudio de las imágenes y discursos en torno a la diversidad cultural en el texto literario destinado de

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forma preferente a niños y jóvenes, sobre todo, en una de sus tipologías: las adopciones internacionales. El interés reiterado por el tridente adopción, familia e interculturalidad en la literatura infantil y juvenil contemporánea alude, desde nuestro punto de vista, a la escenificación de las funciones esenciales de la educación literaria: la transmisión del patrimonio lingüístico y literario universal y, al tiempo, la fundación de un imaginario compartido que respete la diversidad como rasgo constitutivo de todo ser humano (Ballester, 2007; Ballester & Ibarra, 2013). En otros términos, el atractivo creciente de esta conjunción temática responde a la asunción del papel de la literatura, y por extensión, de la educación literaria, en la construcción, preservación y reproducción de la identidad personal y colectiva. Nuestra investigación pretende pues, en primer lugar, mostrar el interés por una nueva temática en la LIJ actual, reflejado en el creciente número de títulos; en segundo, explicar de forma contextualizada su paulatino protagonismo y, por último, analizar de manera crítica y a través del comparatismo una selección de textos representativos en relación con una de las estrategias más repetidas: el binomio historia-identidad. De su estudio obtendremos interesantes conclusiones respecto a los mecanismos más iterados en cuanto a la temática y sobre todo, sus implicaciones respecto a los presupuestos ideológicos y educativos a los que alude.

1. Nuevos temas, nuevas tendencias en la literatura infantil y juvenil actual En su Historia portátil de la literatura infantil, Garralón constata, a partir de la década de los setenta del pasado siglo XX, una tendencia centrada en la representación de la realidad, concretamente, los cambios políticos y las transformaciones sociales ligadas a éstos en cuanto a la familia se refiere. Así, apunta brevemente la evolución del concepto de familia hacia nuevos modelos, como padres separados o ausentes, hombres con hijos o madres solteras, pero también “el drama de los niños abandonados que buscan con desesperación sus raíces (La gran Gilly Hopkins, 1978)” (Garralon, 2001: 136). Por su parte, Colomer, en su análisis de la literatura infantil y juvenil actual, ubica en la década de los setenta el inicio de un periodo cuyos rasgos se han desarrollado hasta nuestros días, caracterizado por dos grandes líneas: la transmisión de nuevos valores, epígrafe en el que cita un fragmento de Konrad, el niño que salió de una lata de conservas de Nöstlinger

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para ejemplificar cómo la madre adoptiva de Conrad “supone un ejemplo bien representativo de la afirmación de un nuevo modo de ser, alejado de las sensatas y convencionales pautas anteriores” (Colomer, 1999: 109) y, en segundo lugar, el reflejo de las sociedades postindustriales, con diferentes tendencias. En esta voluntaria representación del mundo destaca el afán por modernizar, describir e interpretar literariamente el marco de vida propio de las nuevas sociedades de consumo a través de diferentes preocupaciones sociales surgidas durante la década de los ochenta, como la incorporación de la mujer a los diferentes ámbitos de la realidad, las distintas transformaciones en la estructura familiar, pero también, la crítica de diferentes aspectos definitorios de estas sociedades, como la alienación, la explotación del débil, en relación directa con un foco de vital interés para el periodo, la multiculturalidad, y por último, la memoria histórica (Idem, 107-124) En nuestros días, podemos constatar a partir de la década de los noventa el fenómeno emergente de la multiculturalidad, consecuencia directa de la eclosión de flujos migratorios hacia sociedades occidentales ante las crecientes desigualdades entre el Norte y el Sur (Amin, 1998; Colectivo IOÉ 2008; Chomsky & Dieterich, 1997; Chomsky & Ramonet, 1996; García Canclini, 1999; Held & McGrew, 2003; Jiménez, 2004; Khor, 2001), convertido no sólo en una posibilidad temática iniciada en la Segunda Guerra Mundial con la voluntad de fomentar el conocimiento y el respeto por otras culturas (Colomer, 1999; Sáiz, 2005), sino en una de las tendencias más repetidas y en una de las ‘modas’ más prolíficas del mercado editorial a partir de núcleos como la inmigración, la forma de construir sociedades plurales o el diálogo entre culturas (Ballester, 2007; Ibarra, 2008; Ibarra & Ballester, 2010). Desde nuestra óptica, las estrechas relaciones entre los dos grandes ejes presentados han evolucionado hasta la gestación de una nueva tendencia de protagonismo creciente en la literatura infantil y juvenil contemporánea: las adopciones internacionales. En otro lugar, hemos apuntado cómo en la intersección del reflejo de las metamorfosis de la familia como estructura social y los distintos tópicos empleados en el tratamiento de la diversidad se forja la génesis – más que la preferencia por un nuevo tema – de una nueva tendencia, con características propias en el seno de la LIJ actual (Ballester & Ibarra, 2013; Ibarra & Ballester, 2012 y 2015). Desde un punto de vista cuantitativo, el análisis del periodo comprendido entre 1990 y 2013, nos revela cómo en el elevado número de títulos de literatura infantil y juvenil publicados en España (en español o en las diferentes lenguas del estado y sus traducciones) crecen de forma progresiva

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las cifras de títulos centrados en las diferentes posibilidades temáticas de la adopción intercultural a través de toda una galería de tramas, tópicos y personajes, e incluso, la creación de colecciones específicas, como por ejemplo, la bilingüe de La Galera “Vine de…”. Este notable incremento alude a un interés específico por la adopción intercultural que contrasta con la prácticamente invisibilidad del tema hasta hace poco más de una década. Evidentemente, los cambios acontecidos en el mundo contemporáneo pueden explicar el silencio respecto a una posibilidad de difícil concreción para gran parte de la población hasta hace relativamente poco, y por tanto, la ausencia de textos centrados en abordar un tema de escaso protagonismo en la vida del receptor modelo de la LIJ, el niño o el joven, como tampoco, en la realidad cotidiana del entorno familiar. Sin embargo, la creciente atención tampoco se justifica únicamente por el cambio de coyuntura sociopolítica, sino que responde a la perfecta encrucijada que la adopción internacional escenifica, pues por una parte, permite explicar, describir e interpretar los nuevos valores sociales del mundo actual, y por otra, alude a las mutaciones acontecidas en la familia como estructura social, en tanto que supone la llegada de un nuevo componente al núcleo familiar sin que medien –necesariamente– vínculos sanguíneos previos o establecidos por la concepción biológica, y además, centra la mirada sobre la multiculturalidad en un entorno próximo y reconocible, fomentando el valor y el respeto de los otros presentes en todo colectivo social. De hecho, desde nuestra perspectiva, supone, en esencia, el tratamiento por excelencia de la multiculturalidad, dado que reúne en un mismo espacio dos colectivos diferenciados por la procedencia geográfica, cultural, social, política, lingüística e ideológica, pero íntimamente vinculados gracias al afecto y la pertenencia que la familia, en suma, representa. Estas aseveraciones, así como las líneas que a continuación desarrollaremos proceden de la citada investigación, llevada a cabo a través del análisis de los textos de LIJ publicados en España durante el periodo 1990-2013 (como primera fecha de publicación) respecto a la temática seleccionada: las adopciones. La investigación nos ha revelado la iteración de una serie de rasgos comunes en un gran número de obras: estas concomitancias nos han permitido establecer una serie de características similares en función de determinadas tipologías de libros. En este trabajo ofreceremos las líneas descubiertas en los textos que responden a una serie de criterios: a) obras cuya primera fecha de publicación oscila entre 1990 y 2013, por su especial profusión respecto a la temática desde finales del siglo XX hasta nuestros días; b) destinadas a lectores a partir de infantil y el primer ciclo de primaria,

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guiados por el mediador adulto c) protagonizadas por personajes pertenecientes al mundo animal totalmente humanizados, y por tanto, con rasgos, defectos y virtudes propias del ser humano, característica seleccionada por su importancia en la literatura infantil, dado que en otras contribuciones hemos profundizado en otro tipo de personajes (Ibarra & Ballester, 2010; Ibarra & Ballester, 2015) y d) representativas respecto a la articulación del binomio historia-identidad. De todo este corpus, para la ejemplificación y el análisis en profundidad, nos centraremos en dos muestras significativas que responden a los criterios anteriores.

2. Identidades en la frontera En prácticamente la totalidad de los textos analizados se observa la focalización en el relato del origen, planteado a partir de diferentes estrategias con el objeto esencial de construir mediante la historia narrada la identidad de los diferentes sujetos implicados, esto es, la nueva familia surgida gracias a la adopción intercultural. La narración trasciende así el límite de la ficción adentrándose en el terreno de la memoria individual y colectiva, oscilando entre el ámbito del testimonio, la reconstrucción, la biografía social y la autobiografía, entre el discurso personal, social y el concepto mismo de literatura. De una forma u otra, prácticamente todas las historias describen identidades en tránsito, escindidas entre dos mundos, dos culturas, dos cosmovisiones, dos geografías sociopolíticas e ideológicas, dos legados patrimoniales, con gran frecuencia dos lenguas, en ocasiones contrapuestas, en otras diferentes, en otras complementarias. De ahí la gran preferencia de estos relatos fundacionales por técnicas compositivas como las oposiciones, los contrastes, los binomios o el marcado protagonismo del tópico del viaje para representar el complejo trayecto de una cultura a otra, separadas en gran número de ocasiones, por fronteras de difícil acceso. Asimismo, tales estrategias literarias responden, también, a la finalidad de escenificar la escisión de una personalidad enmarcada en unas coordenadas sociohistóricas y culturales en las que quizá, por su temprana edad, el personaje todavía no se ha insertado por completo, esto es, la del niño o niña que será adoptado como también, la de la familia receptora. El éxito de la adopción intercultural estriba por tanto, en el intrincado itinerario que ambos colectivos deberán recorrer hasta la gestación de una identidad individual, pero también social, conformada por teselas de ambas realidades en

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una única sociedad de potentes e inexpugnables lazos de cohesión: los del afecto y la pertenencia a una estructura intercultural, como es la familia recién configurada. Los protagonistas de las historias examinadas son, con gran frecuencia, los niños y niñas procedentes de países del denominado Sur, que serán adoptados por familias occidentales. Evidentemente, estas características geográficas obedecen a los parámetros del corpus de análisis, pues nos movemos con literatura infantil y juvenil española contemporánea, con las diferentes lenguas oficiales y sus traducciones incluidas. No obstante, y con independencia de la contraposición Norte-Sur en la que se enmarcan, de una forma u otra, a través de los diferentes textos analizados, los retratos psicológicos de los protagonistas reproducen también determinadas características, fruto del proceso de adopción intercultural. Nos referimos a la presentación de toda una galería de personajes diferenciados por sus patologías vitales que, sin embargo, reiteran patrones similares, esto es, identidades fragmentadas, escindidas entre dos universos que deben confluir para garantizar la correcta inserción del recién llegado en el nuevo colectivo. La narración funciona así, como testigo único y depositario de la memoria individual, pero también colectiva, dado que organiza, estructura, reúne y, sobre todo, genera un sentido único y compartido de todos los fragmentos vitales que han experimentado cada uno de los participantes en el proceso y, por este mismo motivo, a los que no todos han podido tener acceso. La literatura infantil se constituye de esta manera, en un espacio dialógico intergeneracional e intercultural que completa relatos vitales de la nueva sociedad multicultural por excelencia: la familia nacida al compás de la adopción intercultural. La coexistencia de dos realidades diferenciadas reunidas en un mismo relato permite tanto su oposición como su confrontación o su presentación a partir de rasgos diferenciales. Sin embargo, la finalidad última de estos libros no radica en presentar binomios maniqueos en los que la cultura de pertenencia del lector modelo triunfe en valores absolutos o la del niño adoptado emerja como la nota exótica que garantice el éxito en una supuesta lid moral e ideológica, como tampoco estriba en la negación de una de ellas por el protagonismo de la otra. A través de estos relatos se persigue, por tanto, la revalorización de un espacio, el propio, como gesto fundacional de afirmación de la individualidad que se pretende que el niño o la niña adoptado no abandone, y en este sentido, implica también un gesto claro de reafirmación ideológica, política, cultural y, por supuesto, educativa, puesto que, a partir de esas iden-

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tidades fragmentadas, se efectúa un ejercicio consciente de confrontación entre una y otra sociedad planteadas como monoculturales y la conversión de ambas en sociedades multiculturales caracterizadas por la igualdad y el respeto mutuos. La simultaneidad de los espacios, voces y realidades descubre, en realidad, la gestación de una identidad propia y plural, la del niño que conserva rasgos propios de su cultura de origen y características de aquella de la que formará parte mediante el proceso de adopción, pero también de los distintos integrantes de la familia que afirman su nueva relación con el protagonista de la historia para que la identidad sea completa. La apertura de la voz individual a la voz de los otros convierte en polifónicos todos estos relatos fundacionales, pero también y sobre todo, trasciende la frontera autobiográfica para integrarla como elemento compositivo irreemplazable de las biografías personales, y por tanto, crea la memoria social y colectiva de esta nueva sociedad, la familia intercultural por excelencia, y garantiza su cohesión y pervivencia desde el mismo texto literario. Desde la lectura repetida y compartida por los integrantes de la familia real de las peripecias, desventuras y retos afrontados por los personajes literarios de una historia muy similar a la vivida, la literatura interpreta y remodela las diferentes historias hasta crear la versión oficial del nuevo linaje familiar, pero también del relato del origen individual que será transmitida de generación en generación. La literatura infantil centrada en la adopción intercultural trasgrede, de esta manera, el discurso del racismo o la discriminación de cualquier tipo desde la inserción en las historias de diferentes elementos subversivos como la preeminencia del tono coloquial, el protagonismo de las historias individuales, aparentemente menores o insustanciales, la preferencia por la anécdota cotidiana y, supuestamente, insustancial o menor, el espacio doméstico y personal o la perspectiva infantil, en tanto que foco de la historia como estrategias legítimas para la construcción de una sociedad diversa desde la educación literaria e intercultural. En modo alguno podemos considerar entonces, las distintas figuraciones en torno a la adopción intercultural creadas por la literatura infantil contemporánea como una suerte de ejercicio de vanidad de un yo literario que muestra su propia vida como una galería de virtudes que deben ser imitadas, como si de una moderna hagiografía laica se tratara. Las diferentes representaciones de la adopción, en definitiva, explican cómo la búsqueda y la construcción individual de cada ser humano obedece a diferentes fragmentos biográficos, testimonios familiares y sociales, elementos proceden-

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tes de otras voces, otras culturas y realidades, que la literatura selecciona, organiza y estructura hasta crear la propia identidad, siempre plural, siempre compuesta por diferentes subtextos y voces. La literatura infantil de esta manera, responde a diferentes interrogantes y controversias de las sociedades multiculturales subvirtiendo desde las historias individuales discursos hegemónicos respecto al racismo o la discriminación encubierta a través de la construcción de la identidad individual y colectiva y, por tanto, de su incidencia en las transformaciones socioculturales contemporáneas.

3. De una y de otra parte Una de las estrategias más repetidas por la literatura infantil centrada en las adopciones interculturales para representar el conflicto identitario ligado al origen radica en la construcción de personajes pertenecientes a un mundo que se integran en otro totalmente diferente por motivos diversos. El ídilico locus amoenus que configura esta primera situación narrativa se resquebraja cuando alguna situación inesperada o un antagonista conduce al protagonista al exilio del entorno conocido, tanto geográfico, como sobre todo familiar, y le obliga a enfrentarse a la definición de su identidad a partir del contraste con diversos otros. En los diferentes textos analizados, el patrón se itera de acuerdo con el siguiente modelo: este primer conflicto planteado se resuelve mediante la integración exitosa del protagonista en la sociedad receptora a través de un nuevo núcleo familiar. La diferencia es vivida como enriquecimiento para ambos colectivos y se restaura el orden resquebrajado a través de la creación de una nueva identidad construida con fragmentos de ambas culturas, tanto en los protagonistas adoptados como en los nuevos progenitores. Sin embargo, la exitosa microsociedad intercultural instaurada desde la adopción se fractura a partir de un nuevo conflicto que conduce al clímax final de las historias. El protagonista y su nueva familia deberán enfrentarse al interrogante respecto al retorno a la cultura de origen y de la supuesta única pertenencia. Así, por ejemplo, ocurre en gran número de los textos analizados, de los que nos centraremos en dos muestras representativas por su adscripción a los criterios establecidos para la selección del corpus. Asimismo, las soluciones planteadas a tal conflicto divergen en función de los títulos analizados, pero reiteran determinadas constantes que expondremos a partir de la muestra representativa elegida y que coinciden, a grandes rasgos, con

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las diferentes actitudes respecto al encuentro entre culturas (Besalú, 2002; Malgesini & Giménez, 2000) y las distintas posturas pedagógicas ante la diversidad (Colectivo Amani, 2009; Aguado, 1996; Merino & Muñoz, 1998; Bartolomé, 1997). En primer lugar, el primero de los textos seleccionados, Los elefantes nunca olvidan (Ravishankar, 2008), se inicia con una tempestad que deja en la más absoluta soledad a un pequeño elefante. La exploración del entorno desconocido sin la ayuda de su linaje sanguíneo le lleva a descubrir otros seres en apariencia diferentes, pero a los que se aproxima sin prejuicios. El componente lúdico funciona como nexo entre dos especies con pocos rasgos en común: elefantes y búfalos se enzarzan en un juego que los convierte en amigos gracias a la iniciativa de los retoños de ambas razas. Un elemento externo mutilará este exitoso contacto entre culturas: un tigre provoca la huida despavorida de los búfalos y el elefante requiere de la ayuda de sus nuevos amigos para escapar ileso. Es el comienzo de una gran amistad. Tras este episodio, una elipsis narrativa sintetiza años de progresión cronológica de la forma que sigue: “entre búfalos creció y se hizo grande y fuerte” (Idem, 21) y en este extenso periodo, el elefante favorece a su nueva familia con habilidades inherentes a su identidad, como la posibilidad de abrirles paso en el entorno, servirles de ducha durante el baño, bajarles hojas de los árboles cuando se acababa el pasto o asustar al tigre (Idem, 21-28). Sin embargo, la fructífera simbiosis cultural, establecida mediante la adopción del protagonista, refuerza los interrogantes respecto a sus rasgos diferenciales frente a aquellos propios de su nueva familia, definidos los primeros por contraposición como los rasgos negativos del binomio, dada su diferencia, esto es: “su color equivocado y su forma tan extraña” (Idem, 29). El elefante desea ser como el otro para garantizar su pervivencia en la nueva casta, “el elefante quería ser búfalo, quería bramar, pero trompeteaba” (Idem, 30). El anhelo se resuelve a partir de una nueva confrontación, producto del encuentro casual, tan casual como puede ser toda escena literaria, del elefante con un grupo de paquidermos similares. La escena resulta extraordinariamente plástica y, sobre todo, condensa metafóricamente la escisión a la que se enfrenta el personaje adoptado, en la frontera entre dos mundos, representados por las dos orillas desde las que cada especie lo reclama con su onomatopeya característica (fig. 1).

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Desde el plano verbal, el conflicto se plasma con breves interrogantes retóricos que expresan el contraste y la urgente decisión identitaria que su respuesta supone: “¿Allá? ¿O aquí? ¿Adónde ir? ¿Elefante? ¿O búfalo?” (Idem, 32). La contestación resulta “muy sencilla”, pues la adopción intercultural se condensa en la afirmación definitiva de la identidad del elefante “¡Búfalo sería toda la vida! (Idem, 33). Desde nuestra perspectiva, la respuesta no resulta en modo alguna tan sencilla como el narrador omnisciente parece querer transmitirnos, pues la integración en la nueva familia pasa por la asimilación de la identidad de la cultura de origen en detrimento de las raíces biológicas. El elefante se define ahora exactamente de la misma forma que su nueva estirpe (“búfalo sería”), sin atender a las cualidades diferenciales que instantes atrás le han conducido a interrogarse sobre quién es. La construcción identitaria en esta historia ha alcanzado su clímax en la definición del personaje como diferente, “soy búfalo”, resolución que desde nuestro punto de vista no resume la complejidad del proceso vivido por el elefante, pues omite toda mención a los lazos biológicos en esta caracterización y silencia la importancia del legado patrimonial originario a partir de la asimilación. El peligro de la presentación de la postura típica del etnocentrismo como única posibilidad válida ante el encuentro entre culturas se incrementa todavía más en un texto destinado al público infantil, pues al

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receptor modelo sólo se le ofrece la política asimilacionista que fagocita los distintos grupos culturales y presenta su homogeneización en torno a la cultura dominante como perfecto modelo para evitar conflictos y problemas de convivencia. Resulta obvio que el lector modelo no es todavía capaz de verbalizar esta ideología subyacente, pero sí que la percibe como un patrón válido de comportamiento, legitimado por la apariencia de naturalidad de un texto infantil y su adecuación para transmitir los valores que la sociedad en la que vive considera más pertinentes. La propuesta pedagógica por tanto no resulta en absoluto adecuada para la necesaria educación intercultural que el texto literario parecía defender entre sus páginas. Si como afirma Sami Naïr (2006) nos encontramos en el siglo de las identidades, el XXI, dados los encuentros cada vez más frecuentes que se producen entre poblaciones y las relaciones de éstas ante el contacto, no deberíamos dejar de constatar los peligros de educar a las generaciones en edad escolar con textos que abogan por el universalismo entendido como unificación cultural, cuya implantación desemboca en el conflicto de identidades, sino como la aceptación común de la diversidad cultural que supone la convivencia entre culturas e identidades diferentes (Wolton, 2004). Si bien es cierto que, por otra parte, podemos considerar que el desenlace exhibe el componente positivo del enriquecimiento que para ambos colectivos ha supuesto la adopción y la perfecta cohesión entre todos los implicados hasta el extremo de resolver de manera rápida tan complejo dilema. El elefante adoptado ha estrechado tanto los lazos con su nueva familia que no duda excesivamente a la hora de nombrarse como un búfalo. Curiosa construcción por tanto, más próxima a un subterfugio narrativo para no proclamar la asimilación como procedimiento garante del orden en un aparente final feliz. Por otra parte, Guyi Guyi (Chen, 2005), obra con diferentes galardones (2004 Premio Golden Butterfly Taiwan al mejor álbum ilustrado y New York Times Best Seller) y por cuya representación Periferia Teatro ha obtenido el Premio al mejor espectáculo de títeres en la Feria Internacional de Teatro para niños y niñas FETEN 2010, los Premios Dragón de Oro al mejor espectáculo para niños y mejor interpretación en la XXI Feria de Títeres de Lleida 2010, parte de una situación inicial de pérdida, y en apariencia, de orfandad, pues un huevo rodando por el suelo atraviesa una frontera geográfica representada en ese “rodando cruzó el prado” (Idem, 2) hasta que se ubica en un nido de patos. Al abrirse los huevos, van saliendo diferentes patos a los que Mamá Pata otorga el rasgo individualizador por excelencia: el nombre propio elegido por la madre biológica en función de las

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características que observa en sus vástagos. Sin embargo, el cuarto patito es “bastante extraño” y su nombre se fijará por las primeras palabras que pronuncia: “Guyi, guyi” (Idem, 7). Tras este inicio, semejante al conocido cuento de El Patito feo, una elipsis narrativa nos conduce al proceso de crecimiento de los retoños, presentado a partir de contraposiciones entre la enseñanza facilitada por Mamá Pata y el aprendizaje realizado por los patos y Guyi Guyi. De esta forma, se establece desde la narración el binomio opositivo todos-uno, nosotros-él, que articula la historia. El posible maniqueísmo se resuelve con celeridad tras las comparaciones, pues “fueran lo rápidos que fueran, o tuvieran el aspecto que tuvieran, Mamá Pata los quería a todos igual” (Idem, 10). El paraíso de la infancia y el crecimiento en una familia que garantiza el afecto entre sus componentes se desvanece ante la aparición de una galería de antagonistas que atentan contra la vida de estos seres: unos peligrosos cocodrilos que funcionan en el relato como un personaje único en su actuación conjunta, como si del coro de una tragedia griega se tratara. De esta voz coral surge la confrontación entre la identificación de Guyi Guyi con su nueva familia y, en consecuencia, de la imitación de sus acciones cotidianas y atributos diferenciales con sus rasgos inherentes. El diálogo se construye a partir de comparaciones y construcciones atributivas (igual que, como, soy, eres…) cuyos componentes cambian en función del grupo que las pronuncie, pues para los cocodrilos Guyi Guyi resulta francamente ridículo como tal, dado que “anda igual que un pato” (Idem, 14). Sin embargo, a Guyi Guyi el motivo de sarcasmo de sus congéneres le parece ilógico, ya que de acuerdo con su monólogo interno, “no ando como un pato, ¡soy un pato!” (Idem, 15). Las carcajadas de los cocodrilos preceden la mirada social objetiva que le muestra todas sus peculiaridades innatas, como si de un espejo se tratase: “¡Mírate! ¡Si no tienes plumas, ni pico, ni patas palmeadas! Lo que tienes es una piel gris y azulada, garras afiladas, dientes puntiagudos y el olor de un cocodrilo malo. Eres igual que nosotros” (Idem, 15). A partir de esta reivindicación de la semejanza física como elemento definitorio de la identidad, prosigue toda una loa enumerativa, ordenada en función de las intervenciones consecutivas de una tríada de cocodrilos en torno a las diferentes posibilidades con las que la naturaleza ha premiado a esta especie para su pervivencia en el entorno animal. La cadena alimenticia marca la clausura de esta consciente lisonja, pues la instructiva apología finaliza con las delicias del manjar que los “patos rollizos y deliciosos” (Idem, 16) suponen.

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Tras esta clara aparición del peligro, presentada como una cadena trófica que en realidad amaga una clásica relación de poder y subordinación entre razas diferentes, el relato avanza inexorable hacia el siguiente clímax. La pirámide alimentaria requiere de la cooperación de Guyi Guyi para completarse, ya que de su convivencia con los patos pretenden servirse sus recién conocidos para degustar con mayor facilidad todavía la nueva estirpe del protagonista. La soledad ampara las reflexiones de Guyi Guyi y, sobre todo, el soliloquio plagado de interrogaciones retóricas en torno a su verdadera definición: “¿Será verdad? ¿Yo también soy un cocodrilo malo?” (Idem, 20). En una clara reescritura de Narciso y del espejo como símbolo, el personaje opta por mirarse en el lago e imitar un rostro feroz hasta que el agua le devuelve su reflejo y con éste brota la risa ante lo absurdo de la imagen observada. La conclusión se precipita por negación “no soy un cocodrilo malo” (Idem, 21), frase en la que condensa la asunción de la imposibilidad de la definición identitaria por la pertenencia exclusiva a una única raza. No obstante, la observación objetiva también provoca la ruptura de la ilusión identificativa con la nueva familia, pues “desde luego, tampoco soy exactamente un pato” (Idem, 21), debe reconocer el personaje. De la catarsis brota también el descubrimiento de una solución que le permite proteger a su familia de los “cocodrilos malos” y le convierte en el héroe del día. Tras este festejo, una nueva elipsis narrativa nos arroja a la resolución de la historia, la vida proseguirá feliz, pues el orden se ha restaurado en la nueva familia intercultural y “Guyi Guyi siguió viviendo con Mamá Pata, Lápiz de Color, Cebra y Luz de Luna y fue convirtiéndose en un ‘cocopato’ cada día más fuerte y más feliz” (Idem, 29). Desde nuestra óptica, en esta clausura se condensa una de las posturas más lúcidas en torno a la construcción de la identidad que los textos analizados en torno a la adopción intercultural plantean: la gestación de una identidad plural, tal y como Todorov (2008) defiende, configurada por teselas de ambas realidades vividas sin una proporción matemática que las conjugue, sino estructuradas por el propio personaje y la elección de la pertenencia en términos del afecto y la cohesión que la nueva sociedad receptora le proporciona a través de su núcleo social: la familia.

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4. A manera de conclusión El paulatino aumento de obras centradas en una misma temática nos desvela el interés por un motivo en absoluto novedoso en la historia literaria, pero sí significativo por la marcada iteración de una de sus posibilidades, prácticamente inexistente en la literatura infantil y juvenil contemporánea hasta hace unas décadas: las adopciones interculturales. De la confluencia entre temas y tendencias de la LIJ publicada a partir de la década de los ochenta se configura la triada familia, interculturalidad y adopción con unos rasgos constantes en la mayoría de producciones analizadas hasta el punto de plantearnos la existencia de un nuevo género. En otro trabajo nos hemos detenido en el papel esencial que la LIJ en torno a la adopción intercultural desempeña: desplegar la dimensión de la identidad biográfica y sociohistórica y construir los lazos indisolubles de la pertenencia y la cohesión de la microestructura social que toda familia alberga (Ibarra & Ballester, 2015). En relación con esta tarea esencial podemos destacar el protagonismo de una figuración repetida en la mayoría de textos y que hemos analizado con detalle a partir de dos textos representativos: el conflicto identitario de personajes en la frontera entre dos mundos en ocasiones aparentemente opuestos. En este sentido, la literatura ejerce una tarea clave en la estructuración del recuerdo, en la explicación de los acontecimientos conducentes a la situación de tránsito de la que brota la ficción y, en definitiva, en testigo privilegiado y garante de la construcción de la historia individual y social de todos los componentes de la nueva familia multicultural (Ibarra & Ballester, 2010). La literatura se desliza así entre la catarsis y el testimonio, al tiempo que construye un espacio propio para el diálogo intergeneracional e intercultural y la búsqueda de una voz propia que no puede explicarse mediante fórmulas matemáticas para la aplicación sistemática de porcentajes. La construcción de la adopción intercultural como génesis implica, por tanto, la concepción de la vivencia previa como un ciclo que se agota, como una suerte de muerte de una fase vital y, en consecuencia, define el acontecimiento inicial como el bautismo a una nueva vida y la creación de una nueva identidad, reflejada incluso en diferentes relatos, mediante un cambio del nombre propio, el identificador por excelencia de la individualidad y la singularidad del ser humano. La ruptura de la continuidad social y personal a través del cambio y la distancia implica en el plano metafórico una nueva gestación, y por tanto, una nueva identidad desde la que definir

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no sólo la esfera de lo propio e intransferible, sino también la pertenencia grupal, y en este sentido, atañe a todos los miembros de la nueva progenie. Por este motivo, compartimos plenamente la concepción de Maalouf (2008) de la identidad como gestada por múltiples y diversas pertinencias, tales como, la historia, la religión o las costumbres. De la conjunción en esencia, de todas las “pertinencias múltiples” a las que alude Maalouf y del proceso dinámico de construcción de la identidad personal, activo a lo largo de toda la vida del ser humano, con diferentes elementos configuradores en cada momento (Bernal, 2003: 131). A partir de los filtros referenciales nacidos en el texto literario, la LIJ rescata del olvido las aparentemente triviales historias de vida individuales para convertirlas en núcleo fundacional de un nuevo colectivo y transmite mediante la escritura la explicación del nuevo linaje en el que podrán reflejarse y explicarse todos los componentes implicados en la adopción intercultural. El relato de las vivencias ligadas al proceso de adopción dota de voz propia incluso a aquellos personajes que no la han tenido en la historia y, por este mismo motivo, funciona como memoria colectiva que suple los vacíos individuales hasta metamorfosearse en historia colectiva que se repetirá ahora de generación en generación, interculturalmente unida a través del núcleo familiar. A través de este texto polifónico que la adopción intercultural trenza como historia ficcional, la literatura supera la tendencia maniquea de escindir el relato en polaridades opuestas buenos-malos, nosotros-ellos y toda la suerte de derivados semánticos de gran peligro en el contraste de dos realidades, como las enmarcadas bajo los epígrafes Norte-Sur, fruto del control informativo de una sola voz narrativa que presenta de forma simplificada determinados acontecimientos de los que no se posee toda la información. La visión global, producto de las distintas interpretaciones vivenciales individuales reunidas en su seno, plasma una aproximación a una transformación sociocultural clave del entorno a través de las microhistorias que la componen. Por este motivo, desde el texto literario se diseña un espacio de reflexión y de resistencia frente a voces ancladas en discursos monoculturales que niegan la incidencia de las migraciones y las adopciones interculturales como motor de progresivas modificaciones del tejido sociocultural circundante. La lectura de estas historias trasciende los parámetros del texto literario, pues implica de manera indisoluble no solo a los personajes de las historias, sino también a los lectores modelo de éstas en la construcción de la ciudadanía como identidad cultural individual, grupal y social.

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[Recebido em 21 de março de 2014 e aceite para publicação em 1 de agosto de 2014]

ECOS DO HOLOCAUSTO NA LITERATURA PORTUGUESA DE POTENCIAL RECEÇÃO JUVENIL ECHOES OF THE HOLOCAUST IN PORTUGUESE YOUNG ADULT OR CHILDREN’S LITERATURE Maria da Conceição Dinis Tomé* [email protected]

A literatura do Holocausto, constituída por testemunhos de sobreviventes e por produções literárias ficcionadas, tem vindo a ocupar, desde o final da II Guerra Mundial, e de forma particular a partir dos anos 90, um papel importante no conhecimento deste acontecimento histórico. Tendo por base os estudos sobre a ideologia de Hollindale (1992) e Stephens (1992), e no contexto do debate sobre a representação do Holocausto, pretende-se descortinar neste artigo as posições ideológicas veiculadas pelas narrativas portuguesas de potencial receção juvenil que abordam esta temática. Palavras-chave: Literatura, Holocausto, ideologia, memória The Holocaust literature, consisting of testimonies of survivors and fictional literary productions, has been playing an important role in understanding this historic event since the end of World War II, and particularly since the 1990s. In this article, from studies on the ideology (Hollindale, 1992; Stephens, 1992), we aim to uncover the ideological positions conveyed in contemporary young adult and children’s contemporary young adult literature about the Holocaust by Portuguese writers. Keywords: Literature, Holocaust, ideology, memory

* Professora bibliotecária do Agrupamento de Escolas Viseu Sul. Investigadora do CEMRI (Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais), Universidade Aberta, Portugal. O artigo surge na sequência da respetiva sessão integrada no ciclo Literaturas em Trânsito, CEHUM, Braga, em 13 de junho de 2014.

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1. Introdução No final da II Guerra Mundial, surgiu uma literatura “nova, interessante e comprometida” (Vándor, 1999: 323), denominada literatura do Holocausto, que tem vindo a atrair muitos leitores. Na literatura do Holocausto, encontramos, por um lado, os diários, as memórias e as autobiografias, e, por outro, a ficção literária, sobretudo novelas e romances, de autores que escreveram a partir dos testemunhos pessoais ou sem qualquer investigação prévia (Vándor, 1999). As narrativas de sobreviventes são as mais emblemáticas da literatura do Holocausto, tendo sido sobretudo através dos relatos testemunhais que o acontecimento histórico foi dado a conhecer ao mundo. Parecem ter sido várias as razões que levaram os sobreviventes a escrever as suas memórias, sobretudo quando elas reabriam feridas tão profundas. As vítimas terão sentido necessidade de narrar o que viveram, não só para dar testemunho do que experienciaram, mas também para se libertarem do peso das recordações, numa perspetiva terapêutica, catártica. Por outro lado, terão procurado na escrita um sentido para todo o sofrimento vivido ou tentaram, numa dívida de memória para com todos os que morreram, deixar um legado para as gerações futuras. Finalmente, para alguns sobreviventes, a escrita constituiu um ato de denúncia ou um gesto humanitário (Seligmann-Silva, 2005; Vándor, 1999). Alba Olmi (2009), investigadora que pretende demonstrar a importância e o alcance multidisciplinar e transdisciplinar da literatura oriunda dos sobreviventes do Holocausto em termos de memória pessoal e de memória histórica, apresenta, a partir do estudo de Stefano Zampieri (2004), a periodização da literatura do Holocausto. A primeira fase, surgida imediatamente após o final da II Guerra Mundial, abrange publicações impressas por pequenas editoras, dirigidas a um público restrito composto essencialmente por amigos, familiares e vizinhos dos sobreviventes, sendo o texto mais representativo desta fase Se isto é um homem, de Primo Levi. As urgências políticas e sociais do pós-guerra constituíram razões relevantes para a pouca importância dada a esta literatura. Nesta altura, surgiu um certo sentimento de culpa por parte dos sobreviventes, pelo facto de se encontrarem vivos, ao contrário de muitos dos familiares e amigos, o que originou a política do silêncio que vigorou até meados dos anos 50 (Olmi, 2009). A partir de meados da década de 50, liderada pela obra emblemática Noite, do sobrevivente Elie Wiesel, surge uma segunda fase, marcada pelo

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mito da vítima, numa altura em que as pessoas estão disponíveis para ouvir/ ler os testemunhos. A terceira fase ter-se-á iniciado nos anos 60, após o processo de Adolf Eichmann, sendo A grande viagem, de Jorge Semprún, a obra considerada referencial. Nesta fase, estabelece-se o novo papel das vítimas, valorizando-se a sua dignidade enquanto testemunhas (Olmi, 2009). Nos anos 90, para além dos livros escritos pelos sobreviventes, surgem outras obras igualmente comprometidas com a memória, com objetivos educacionais, assumindo responsabilidades morais, sociais, éticas e históricas (Olmi, 2009). Quer as publicações de sobreviventes, quer as de membros de ‘segunda geração’ ou as de escritores, todas têm contribuído para a reflexão filosófica, sociológica, literária e estética em torno do Holocausto (Seligmann-Silva, 2005).

2. Da representação do Holocausto Nos anos subsequentes à II Guerra Mundial, o Holocausto não foi percecionado socialmente como algo particular dentro dos horrores vividos durante o conflito bélico que deflagrou naqueles anos. No entanto, a partir dos anos 60, essa situação foi-se alterando, tendo evoluindo, desde o final do milénio, da impossibilidade teórica de representação do Holocausto para a sua atual popularização e representação (Munté Ramos, 2011). Questão polémica surgida logo após a II Guerra Mundial, a reflexão sobre a possibilidade de representação do Holocausto continua a alimentar debates e estudos. Theodor Adorno afirmou, em 1949, naquela que é considerada a reflexão inaugural sobre o problema ético da representação do Holocausto, que, “depois de Auschwitz, escrever um poema seria um ato de barbárie”.[1] Esta frase passou a manifestar, utilizada fora do seu contexto inicial, a proibição solene da representação (Munté Ramos, 2011: 73), a impossibilidade, o risco literário que qualquer autor enfrentaria ao associar a arte ao sofrimento e ao horror vividos. Os constrangimentos relacionados com esta questão, e que podem ser verdadeiros, na nossa opinião, para outros factos da História mais recente, como o genocídio do Ruanda, a guerra na Bósnia-Herzegovina, no Burundi ou no Sudão do Sul, prendem-se com a dimensão e a monstruosidade desse acontecimento histórico singular (Zamora, 2000). O Holocausto é consi1 “(…): nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch” (Adorno, 1963: 26). Anos mais tarde, e no seguimento da sua leitura do poema “Todesfuge” [Fuga da morte] de Paul Celan, Theodor Adorno corrigiria a sua visão da incompatibilidade entre a arte e o Holocausto (vd. Munté Ramos, 2011: 75).

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derado um acontecimento sem precedentes, um marco em termos históricos, sublinhando o historiador Saul Friedländer (1996: 3) que o que torna a Endlösung [Solução Final] um acontecimento ‘nos limites’ é o facto de se constituir como a mais radical forma de genocídio da História. A questão da representação do Holocausto desencadeou um intenso debate nos meios de comunicação social e na arte, sobretudo a partir das décadas de 60 e 70, quando existia já visibilidade e conhecimento social do Holocausto, surgindo muitas vozes a reclamar que aquele não é passível de ser representado, porque é inenarrável, porque não há palavras ou imagens capazes de traduzir os atos de desumanidade infligidos, porque há limites, fronteiras éticas e estéticas que não podem ser transgredidas. Os argumentos essenciais contra a representação deste genocídio subordinam o valor da imaginação e da ficção literária à narração histórica (Munté Ramos, 2011: 87), estando entre os seus principais defensores Elie Wiesel, Berel Lang e Claude Lanzmann. Em 1977, Elie Wiesel afirmou, num texto que se tornou referencial nesta questão da abordagem literária do Holocausto, que Auschwitz e inspiração literária eram termos contraditórios, uma vez que “A novel about Treblinka is either not a novel or not about Treblinka” (Wiesel, 1977: 7). Baseando-se no facto de considerar o Holocausto como um acontecimento histórico único, o autor questiona a utilização de eventos tão horrendos com objetivos literários, reforçando a impossibilidade, por parte de quem não tenha experienciado o Holocausto, do conhecimento da sua verdadeira e total dimensão. Por seu turno, Berel Lang (2000), refletindo sobre os constrangimentos que limitam a representação do Holocausto – o que pode ou deve ser representado neste evento e como – reclama o respeito pelo acontecimento e pelos limites históricos e éticos por ele impostos a todos os que o abordam. Lang considera que apenas a não ficção, a crónica literal dos acontecimentos pode representar de forma autêntica e verídica o Holocausto. Por isso, segundo o autor, qualquer representação literária do genocídio apresentaria uma inferioridade moral em relação a um relato histórico (Munté Ramos, 2011: 107). Finalmente, Claude Lanzmann advoga que a ficção é transgressão, associando-a à trivialização do sofrimento das vítimas do Holocausto, reportando-se o autor, de modo particular, à ficção cinematográfica sobre o genocídio. Com efeito, a série americana Holocausto, emitida em abril de 1978, desencadeou, pelo impacto que teve não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, uma acesa discussão sobre questões essenciais no contexto da representação do Holocausto (Baer, 2006). Refira-se que a série

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inaugura uma época em que os meios de comunicação de massa assumem um papel importante enquanto conformadores de perceções coletivas (Ibidem). Claude Lanzmann e outros sobreviventes, entre os quais Elie Wiesel, consideraram que Holocausto não passava de uma banalização ou mesmo um insulto para as vítimas, receando que as representações veiculadas pelos produtos da indústria cultural e com fins comerciais pudessem substituir a própria História. Procurando contestar o poder homogeneizador dos meios de comunicação social no controlo da memória coletiva (Baer, 2006)[2], Claude Lanzmann recolhe testemunhos de sobreviventes, em diferentes locais, e apresenta Shoah, o mais extenso documentário sobre o Holocausto, em 1985, no Festival de Cannes. Narrar o Holocausto, sobretudo quando falamos de textos ficcionais, parece, pois, oferecer, desde sempre, constrangimentos particulares, apesar de alguns estudiosos defenderem a ficção como a melhor forma de representação (Kokkola, 2003). Lawrence Langer defende a imaginação literária para representar o Holocausto, sublinhando que a tarefa fundamental da crítica não é perguntar se se deveria falar de literatura do Holocausto, uma vez que já existe, mas julgar a sua eficácia e as suas implicações para a literatura e para a sociedade (apud Munté Ramos, 2011: 119). Os textos literários sobre o Holocausto possuem, de acordo com este autor, uma verdade literal (verdade factual, de documentar os acontecimentos e as ações que ocorreram durante o Holocausto) e uma realidade imaginativa (a capacidade de o escritor transformar a verdade literal numa nova realidade que apela à imaginação), com efeitos perlocutivos importantes nos leitores (apud Munté Ramos, 2011: 120). Fernández López (2006: 5) sublinha que não é de estranhar que, desde a perspetiva dos escritores sobreviventes, das testemunhas e de todos os intelectuais que consideram o Holocausto como um acontecimento de profundas implicações éticas, filosóficas e políticas, se exija o que autor designa por “correta representação”, uma representação que tem que estar ao serviço da verdade e da memória. Segundo este investigador, esta questão da 2 Outras produções artísticas, entre as quais o filme A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, em 1992, realizado a partir do livro do escritor australiano Thomas Keneally; o filme A vida é bela, de Roberto Begnini (1998), ou ainda a banda desenhada Maus – a história de um sobrevivente, de Art Spiegelman, publicada no final da década de 80 e inícios da década de 90 (editado em Portugal pela Editorial Bertrand), têm vindo a alimentar este controverso debate sobre os limites da representação. Baer (2006: 112) sublinha que o cinema e a televisão enfrentaram de diversas maneiras o verdadeiro desafio que constitui abordar a natureza extraordinária do Holocausto, ou seja, os tabus que pesam na sua representação, tendo contribuído, no entanto, inquestionavelmente, para o conhecimento histórico de uma forma mais efetiva do que qualquer outra aproximação historiográfica ou documental sobre o Holocausto.

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representação do Holocausto torna-se ainda mais complexa quando nos deparamos, por um lado, com obras ficcionais com uma intencionalidade artística, anamnésica, de autores que não viveram os horrores perpetrados durante a II Guerra Mundial e, por outro, com as memórias mais ou menos ficcionadas da autoria de sobreviventes. No primeiro caso, os autores confrontam-se com o “desafio da ficção” baseada na construção historiográfica da realidade, enquanto o narrar dos sobreviventes sempre é acompanhado pela dúvida se o realmente vivido é comunicável através da representação ficcional. Sejam quais foram as opções da ‘ficção-realidade’, impõe-se, no entanto, uma ética do olhar (que ver e como ver) (Baer, 2006) .

3. O Holocausto na literatura portuguesa de potencial receção juvenil Contrariamente ao que sucede nos países francófonos, na Alemanha, nos Estados Unidos ou no Canadá (Delbrassine, 2006; Hubert-Ganyare, 1998; Nilsen & Donelson, 2001), as manifestações literárias comprometidas com a História, com determinados períodos em particular, como a II Guerra Mundial, são escassas na literatura portuguesa de potencial receção juvenil. A presença da temática do Holocausto na literatura de potencial receção juvenil da autoria de escritores portugueses é, na verdade, extremamente residual. A parca exploração deste assunto pode estar relacionada com o facto de Portugal não ter tido uma intervenção ativa no conflito. Com efeito, Portugal proclamou a neutralidade logo no dia 1 de setembro de 1939, aquando da invasão da Polónia, data em que se inicia a II Guerra Mundial, uma neutralidade que parece ter interessado a várias partes envolvidas na guerra (Muscznik, 2012). Com efeito, é sobretudo a partir de publicações estrangeiras, traduzidas e editadas em Portugal, que os leitores portugueses mais jovens têm acesso a livros sobre este assunto, verificando-se, nos últimos anos, um investimento editorial significativo nesta matéria. Para além do livro O Diário de Anne Frank, traduzido por Ilse Losa em 1955, os jovens podem ler A ilha na rua dos pássaros (Orlev, 1998), A rapariga que roubava livros, (Zusak, 2008), O rapaz do pijama às riscas (Boyne, 2008) e o álbum Anne Frank (Poole & Barrett, 2005), todos recomendados pelo Plano Nacional de Leitura. No âmbito desta temática, os leitores encontram ainda o livro Quando Hitler me roubou o coelho cor de rosa, de Judith Kerr, autora nascida na Alemanha, publicado pela primeira vez em 1971 e editado em Portugal, com a chancela

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da Editorial Caminho, no início da década de 90 (Kerr, 1992), e os álbuns A história de Érika (Zee, 2008) e Fumo (Fortes, 2008). Refira-se que o livro de Judith Kerr, uma das primeiras narrativas sobre este assunto a ser traduzida e publicada em Portugal, e obra recomendada em contexto escolar na Alemanha, recebeu, em 1974, o Prémio Alemão de Literatura Juvenil. De cariz autobiográfico, narra a história da fuga da protagonista e da sua família da perseguição nazi. Recentemente, foram publicadas em Portugal narrativas em forma de diário que testemunham na primeira pessoa os acontecimentos vividos no meio do horror, da maldade e do sofrimento. Destacamos, neste contexto, O diário de Rutka (Laskier, 2007); A rapariga do gueto (Bauman, 2008); Diário - o diário de uma jovem judia em Paris sob a ocupação nazi (Berr, 2008); Clara, a menina que sobreviveu ao Holocausto (Kramer, 2010); O Diário de Helga – A vida num campo de concentração pelos olhos de uma jovem (Weiss, 2013), entre outros textos de caráter testemunhal, como os livros Alice – lições de vida, fé e coragem da mais antiga sobrevivente do Holocausto (Stoessinger, 2012) e O rapaz do caixote de madeira (Leyson, 2014). Noutros países, a abundância de livros sobre a temática do Holocausto a partir da década de 90 (encomendas feitas a autores, mas também aos sobreviventes e aos historiadores) parece estar relacionada não só com o crescente interesse na literatura infantojuvenil, mas também com a institucionalização da memória da Shoah. Nos Estados Unidos, na França e na Polónia, entre outros países europeus, assiste-se a uma verdadeira explosão editorial constituída por romances, testemunhos, banda desenhada e álbuns, alguns deles para leitores adolescentes e adultos (Delbrassine, 2002; Finet, 2013; Hamaide-Jager, 2010; Nilsen & Donelson, 2001). Neste contexto, cremos ser pertinente referir a criação, em 1998, da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) constituída por 31 países membros e 5 países observadores. Os principais objetivos desta aliança estão presentes na Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust (IHRA, 2000), salientando-se o compromisso com a educação, a memória e o estudo sobre o Holocausto; a promoção da educação sobre o Holocausto nas escolas e universidades; o compromisso em honrar as vítimas e encorajar o estudo do Holocausto em todas as suas dimensões. Portugal tornou-se, desde junho de 2009, membro observador da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto. Nos últimos anos, na sociedade portuguesa, têm vindo a ser desenvolvidas algumas ações que contribuem para o conhecimento do Holocausto. A II Guerra Mundial e o Holocausto são conteúdos curriculares aborda-

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dos na disciplina de História, no 9.º ano de escolaridade e, de forma mais aprofundada, no 12.º ano, registando-se, em muitas escolas, projetos de articulação curricular em volta da temática do Holocausto, sobretudo a partir das bibliotecas escolares.[3] É pertinente salientar ainda a evocação do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, criado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas através da Resolução 60/7, em 2005, a 27 de janeiro, data da libertação do campo de concentração de AuschwitzBirkenau. Em Portugal, têm vindo a ser realizadas diversas iniciativas que visam evocar e preservar a memória daquele acontecimento trágico, considerando o Estado Português que é um imperativo promover a educação dos jovens sobre este período negro da História.[4] Refira-se, ainda, neste contexto, a criação, em Portugal, da MEMOSHOÁ – Associação Memória e Ensino do Holocausto, no seguimento do primeiro seminário para professores portugueses sobre o ensino do Holocausto, que aconteceu em agosto de 2008, pela Escola Internacional do Yad Vashem (em Jerusalém). Esta associação foi fundada por Esther Mucznick, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, e por professores de História, e tem como objetivo o desenvolvimento do trabalho de educação e memória do Holocausto, de forma particular no meio escolar. Várias exposições e sessões de formação para docentes têm vindo a ser realizadas desde então, em colaboração com o Yad Vashem. Por outro lado, é pertinente sublinhar que tem vindo a ser realizada investigação sobre o Holocausto no nosso país, o que demonstra um crescente interesse sobre o assunto.[5]Parece haver, no entanto, por partes dos autores portugueses, alguma resistência em tratar literariamente um assunto tão polémico, de abordagem tão complexa. Encontrámos sobre esta temática, e pensando nos leitores mais jovens, apenas as seguintes narrativas: O mundo em que vivi, publicado pela primeira vez em 1949 (Losa, 1987), Campos de lágrimas (Letria, 2001), Mouschi, o gato de Anne Frank 3 No sítio web da MEMOSHOÁ, encontramos a referência a vários desses projetos. (http:// w3.memoshoa.pt/index.php/projetos1314 ). Destacamos ainda o projeto aLeR+ : o Holocausto (www.alermaisoholocausto.weebly.com ), da Biblioteca da Escola Básica D. Luís de Loureiro (Agrupamento de Escolas Viseu Sul). 4 In http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/ministerio-dos-negocios-estrangeiros/mantenha-se-atualizado/20140127-mene-holocausto.aspx 5 Registe-se, neste contexto, a conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em outubro de 2012, subordinada ao tema “Portugal e o Holocausto”; os livros Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial (Pimentel, 2006), Portugueses no Holocausto (Muscznik, 2012), Salazar, Portugal e o Holocausto (Ninhos & Pimentel, 2013), ou ainda Portugal, Salazar e os Judeus (Milgram, 2010).

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(Letria, 2002), com ilustrações de Danuta Wojciechówska, e O caderno do avô Heinrich (Tomé, 2013). O mundo em que vivi evoca, numa perspetiva de forte pendor autobiográfico, a infância, nos tempos que se seguiram à I Guerra Mundial, a adolescência, nos anos de crescimento do nazismo e do antissemitismo, e o início da idade adulta, no período imediatamente após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, da judia alemã Rose Frankfurter.[6] Tal como em Quando Hitler me roubou o coelho cor de rosa, de Judith Kerr, O mundo em que vivi não confronta os leitores com o Holocausto, mas com os acontecimentos que o precederam, nomeadamente a perseguição nazi e a fuga subsequente, protegendo-se os potenciais leitores da exposição a atos de barbárie. Campos de lágrimas, de José Jorge Letria, narra a viagem de uma família portuguesa com filhos adolescentes à Alemanha, para visitar o campo de concentração de Buchenwald, na tentativa de reencontrar as memórias de um familiar (um avô) que ali possivelmente morreu. Em Mouschi, o gato de Anne Frank, pela voz do animal de estimação, é dado a conhecer aos leitores o que aconteceu a Anne Frank durante o período em que esteve escondida no anexo em Amesterdão, fazendo-se referência ao seu diário e a alguns episódios presentes no mesmo (as dificuldades do quotidiano relacionadas com a alimentação, a higiene e os conflitos; o namoro entre Anne e Peter; a relação da adolescente com a mãe e com a irmã…), evocando-se também acontecimentos posteriores à detenção da menina judia. Finalmente, em O caderno do avô Heinrich, um narrador alemão idoso, refugiado no nosso país, relata ao neto episódios da sua infância, na Alemanha, na década de 30; as dificuldades vividas nos anos difíceis da II Guerra Mundial, na Polónia; e os laços de afeto que criou com um rapaz judeu, em Varsóvia, amizade que mudou radicalmente a vida de ambos. O mundo em que vivi é, tal como O Diário de Anne Frank, uma obra proposta pelo programa curricular de Português para o 3.º ciclo do Ensino Básico, fazendo ainda parte da lista das obras a ler no âmbito da Educação Literária (introduzida pelas Metas Curriculares de Português) no 8.º ano, além de ser um dos livros recomendados para leitura orientada na sala de aula pelo Plano Nacional de Leitura, para o mesmo ano de escolaridade. O caderno do avô Heinrich recentemente publicado pela Editorial Presença, foi o texto vencedor do Prémio Literário Maria Rosa Colaço, na categoria 6 Sobre a obra de Ilse Losa, veja-se Marques (2001) e Cavaco (2012).

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de Literatura Juvenil, em 2012, sendo recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para leitura orientada na sala de aula, para o 6.º ano de escolaridade.[7] Refira-se, no entanto, que há outros livros de potencial receção juvenil de autores portugueses, de caráter mais informativo, sobre a temática do Holocausto, como acontece com aqueles que dão a conhecer a vida de Aristides de Sousa Mendes, cônsul em Bordéus, na altura da II Guerra Mundial, nomeadamente: Chamo-me... Aristides de Sousa Mendes (Margarido, 2011) e Aristides de Sousa Mendes – Herói do Holocausto (Ruy, 2005), este último recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para o 6.º ano de escolaridade.

4. A ideologia veiculada nas narrativas portuguesas de potencial receção juvenil sobre o Holocausto Quer ao nível da história quer ao nível do discurso, os textos ficcionais constituem-se como contextos especiais para a ideologia operar, porque os textos narrativos estão altamente organizados e estruturam discursos que podem ser usados para expressar deliberadamente certas práticas sociais instituídas ou veicular implicitamente normas e valores sociais (Stephens, 1992). Hollindale (1992) identifica três dimensões no contexto da inscrição da ideologia nos livros de potencial receção infantil e juvenil: a presença explícita e deliberada das crenças sociais, políticas ou morais do autor e da intenção deste em transmiti-las; a ideologia presente de forma implícita (que Hollindale designa por “passive ideology”, Idem, 29) e, por último, a presença inerente da ideologia na linguagem, veiculando os textos os valores e as crenças do mundo em que o autor vive: “A large part of any book is written not by its author but by the world its author lives in” (Hollindale,1992: 32). A análise da ideologia nos textos de potencial receção juvenil sobre o Holocausto implica considerar o debate mais abrangente da representação literária do Holocausto. De acordo com Kokkola (2003), a literatura tem potencial para ser uma poderosa forma de apresentar o Holocausto aos mais jovens, mas, de acordo com a investigadora, a existência do negacionismo implica, necessariamente, maiores responsabilidades para os autores que escrevem sobre este assunto. Por outro lado, como destaca Nadine 7

Por razões éticas, excluiremos da análise a realizar neste artigo o livro O caderno do avô Heinrich.

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Majaro (2014), é também necessário compreender o que os autores tentam veicular: apenas a promoção do conhecimento sobre o Holocausto ou a evocação da grandeza do espírito humano relatando atos de resistência ou heroísmo? É o Holocausto apenas representado como uma tragédia que envolve o povo judeu? E que mensagens veiculam, neste contexto, as representações das vítimas e dos perpetradores? No que diz respeito à evocação dos universos conotados com o mundo histórico-factual, é pertinente sublinhar que as narrativas em causa relatam, em retrospetiva, a partir de uma data mais ou menos próxima dos factos narrados, eventos relevantes no contexto do Holocausto. Verifica-se um grande respeito pelo potencial leitor, visível no modo como são facultadas e explicadas as informações, garantindo uma abordagem desta temática ao alcance dos mais jovens. A leitura de O mundo em que vivi permite aos leitores conhecerem a situação económica, política e social que antecedeu a II Guerra Mundial e o Holocausto, que corresponde ao aumento da influência e vitória do partido Nazi e ações relacionadas (desemprego, antisemitismo, perseguições aos judeus e a todos os que não concordavam com o regime e primeiras deportações). Nesta narrativa são feitas várias referências às alterações na vida quotidiana dos judeus, marcando-se, de forma clara, um tempo anterior ao tempo sombrio do nazismo e um outro tempo marcado pela violência e discriminação dos judeus: Houvera um tempo longínquo, distante – uma eternidade o separava de nós – em que eu e a minha gente nos tínhamos sentido bem ancorados, um tempo em que ocupávamos um lugar legítimo no mundo. Éramos os Frankfurter, fazíamos parte da comunidade, pertencíamos à cidade e ao país. Mas depois tiraram-nos o chão debaixo dos pés, excluíram-nos do povo alemão, transformaram-nos num “problema”, um problema para os outros, um problema para nós próprios (Losa, 1987: 155-156).

As manifestações antissemitas são mencionadas pela narradora-protagonista, com mágoa: os colegas com a cruz suástica ao peito; as caricaturas monstruosas; a discriminação na escola; os insultos à mãe quando fazia compras (cf. Idem, 156), as limitações impostas ao relacionamento entre cidadãos judeus e não judeus. A chegada de Hitler ao poder é referida de forma explícita nesta narrativa, sublinhando-se as consequências previsíveis que essa vitória traria à vida dos judeus: “o nosso futuro tinha-se decidido” (Idem, 183), afirma

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a narradora-protagonista, deixando antever o horror que assombraria a Europa nos anos seguintes. “Agora está mesmo por cima de nós” (Idem, 184), afirma a narradora, a propósito da vitória de Hitler, utilizando metaforicamente a imagem da tempestade que se vinha formando e que eclodiria nessa altura, sublinhando desta forma a difícil situação em que os judeus se encontravam naquele momento, na Alemanha. De forma particular nos livros de José Jorge Letria, é promovido o conhecimento do que se passou nos campos de concentração. Em Mouschi, o gato de Anne Frank, chegam ao anexo “notícias terríveis da triste sorte de milhares de judeus holandeses, presos e levados para campos de concentração” (Letria, 2002: 16) e é conhecido o destino trágico da família de Anne Frank (“Mais tarde ouvi dizer que todos eles tinham sido levados para campos de concentração e que a minha querida Anne Frank tinha morrido no campo de concentração de Bergen-Belsen”; Idem, 33). É, no entanto, a narrativa Campos de lágrimas que dedica mais espaço à exploração desta questão dos campos de concentração, descrevendo-os como locais “de horror e miséria” (Letria, 2001: 9), espaços de grande “sofrimento físico e moral” (Idem, 14) para onde foi levado o avô de Francisco, o narrador, após ter sido preso pela Gestapo em França, onde lutava pela liberdade ao lado das forças que combatiam o nazismo. Em Campos de lágrimas, quase em jeito de reportagem jornalística, os adolescentes (os filhos da família em viagem, mas também os potenciais leitores) são confrontados com a realidade da existência dos campos de extermínio, dando-se importância não só a aspetos históricos relacionados com a data de criação do campo de concentração de Buchenwald (cf. Idem, 19), mas descrevendo-se, de forma pormenorizada, o quotidiano dos presos, a partir do momento que chegavam a Weimar: a humilhação do transporte em vagões de gado, a separação de homens, mulheres e crianças, a falta de condições de higiene, a fome, os maus tratos, as experiências médicas monstruosas realizadas pelos nazis (cf. Idem, 22), os trabalhos forçados, a tortura e o assassínio. Os leitores são conduzidos até aos fornos crematórios (mencionando-se na narrativa também as câmaras de gás) e aos locais de fuzilamento, sendo referidos explicitamente factos de grande crueldade, como é caso das fábricas que faziam travesseiros e cabeleiras postiças com os cabelos cortados dos prisioneiros. O facto de se fazer referência, de forma explícita, aos atos hediondos perpetrados ou à forma como eram executados pelos nazis em Campos de lágrimas deixa claro não estar latente nesta narrativa a intenção de proteger

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os leitores mais jovens de atos demasiado cruéis (Bosmajian, 2002: 6), mas antes o propósito de os confrontar com a verdade histórica. Em O mundo em que vivi, a narradora, num altura que em relata momentos da sua infância, recorrendo a uma prolepse, afirma: “Havia de chegar o tempo em que o espectáculo de neve não me inspirava senão tristeza por saber os meus amigos a morrer de frio em campos de concentração. Mas como adivinhar isso nessa época, (…) e eu vivia despreocupada como toda a gente” (Losa, 1987: 60). Noutra passagem textual deste mesmo livro, é feita referência ao destino trágico de Marie, mulher do tio (Franz) da narradora-protagonista: “afeiçoei-me a ela. Marie morreu. No fim da guerra, o seu nome figurou, burocraticamente, entre os dos mortos em Buchenwald” (Idem, 113). Da análise das narrativas em causa, concluímos que há algumas estratégias que parecem estar ao serviço da veiculação de uma certa ideologia. Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar que a narração realizada pelo protagonista surge, nos textos em análise, como um recurso poderoso. O mundo em que vivi e Mouschi, o gato de Anne Frank (ainda que neste último caso seja o gato da menina a contar a história) adotam um tipo de narração focalizada numa personagem que, através do ato de recordar, controla a informação, doseando-a, de modo a reter a atenção do leitor. Na verdade, apesar de a narradora de O mundo em que vivi ser já adulta no momento em que evoca o período das perseguições que precedem ao Holocausto, relata os acontecimentos num “enquadramento (…) limitado pelo universo psicológico da entidade focalizadora – a criança e, mais tarde, a jovem judia” (Marques, 2001: 58), aproximando-se, desta forma, dos potenciais leitores e promovendo a desejável identificação. O mesmo parece acontecer em Campos de Lágrimas, devido ao facto de o narrador se dirigir a dois adolescentes, seus filhos, ao mesmo tempo que se dirige aos potenciais leitores. No entender de Stephens (1992), é importante considerar o papel do leitor implícito nesta questão particular da ideologia, uma vez que, pela sua análise, se poderão descortinar não só as intenções explícitas do autor real, mas também a ideologia passiva de que fala Hollindale (1992). O leitor implícito previsto nestas narrativas aproxima-se do perfil dos seus potenciais leitores. Sublinhe-se ainda o facto de os narradores adultos em O mundo em que vivi e em Campos de Lágrimas assumirem uma função privilegiada, porque são capazes de relatar aquilo que uma criança ou um adolescente não seria, sendo detentores de um saber / experiência verosímil. É pela voz dos adultos que os leitores são conduzidos até ao Holocausto e a alguns dos

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momentos / espaços mais representativos, assegurando-se, deste modo, a compreensão da mensagem e a passagem da ideologia. Em Campos de lágrimas, a narração é realizada por uma figura que transporta uma grande carga afetuosa: um pai, que recorda um avô, ambos da mesma nacionalidade que a globalidade dos potenciais leitores. A figura da criança / adolescente vítima tem também um certo poder atrativo, constituindo-se, como sublinha Delbrassine (2006: 317), como um “excellent mobilisateur de la sympathie du lecteur”, o que acontece no caso emblemático de Anne Frank, convocada pela voz do seu gato de estimação, no livro de José Jorge Letria. No que diz respeito às posições ideológicas veiculadas na caracterização das vítimas e dos algozes, há que sublinhar algumas diferenças, possivelmente relacionadas com as vivências dos autores. Ilse Losa, de origem alemã e ascendência judaica, viveu na Alemanha antes da II Guerra Mundial, tendo sido obrigada a abandonar o seu país em virtude da sua condição de judia e da perseguição iminente. A sua visão dos anos que antecederam a II Guerra Mundial é, claramente, feita de experiência vivida, refletindo-se esta sua condição de testemunha em O mundo em que vivi. Em relação às vítimas, refere-se, em Campos de lágrimas, que os prisioneiros que chegavam a Weimar com destino ao campo de concentração de Buchenwald eram “judeus, políticos, ciganos ou outros” (Letria, 2001: 14), “presos políticos, criminosos de delito comum e testemunhas de Jeová” (Idem, 19), “comunistas ou socialistas, ciganos, homossexuais” (Idem, 20), “padres” e “doentes mentais” (Idem, 50), salientando-se, no entanto, que os judeus eram as principais vítimas do terror dos campos (cf. Idem, 19). Sublinha-se o facto de terem sido seis milhões os judeus mortos durante o Holocausto (Idem, 36), em vários campos de extermínio mencionados no texto (cf. Idem, 50), mas não se considera o Holocausto apenas uma tragédia judaica. Na verdade, encontramos sobretudo personagens judias com grande protagonismo nas obras em análise: é o caso da alemã Rose (cf. O mundo em que vivi) e da jovem Anne Frank (cf. Mouschi, o gato de Anne Frank). Em O mundo em que vivi, os traços físicos que apoiam o estereótipo do indivíduo judeu são desconstruídos, uma vez que se apresentam aos leitores personagens de “rosto amachucado, de nariz comprido”, como é o caso da avó Ester (Losa, 1987: 106), mas também a judia Rose Frankfurter, loira e de olhos claros. As imagens estereotipadas relacionadas com as características físicas dos judeus são, deste modo, questionadas em O mundo em que vivi, constituindo uma forma de veicular posições ideológicas promotoras

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do respeito pelos seres humanos, independentemente das suas especificidades. Nesta narrativa, demonstra-se a boa integração da comunidade judaica na sociedade alemã, apesar do antissemitismo latente que, à medida que, na narrativa, nos vamos aproximando da subida de Hitler ao poder, vai assumindo contornos mais violentos, construindo uma convivência incompatível entre os cidadãos judeus e não judeus.[8] Apenas em O mundo em que vivi se dá a conhecer a comunidade judaica, nomeadamente no que se refere à sua singularidade cultural e religiosa. Com efeito, são várias as referências a festas ou a tradições religiosas[9], numa clara valorização da cultura do Outro, veiculando-se, deste modo, o conhecimento e o respeito pela diversidade cultural e religiosa. Nas narrativas em análise, algumas vítimas do Holocausto são também opositores ao regime. É o caso de Kurt, amigo de Rose, considerado pela polícia um “tipo altamente perigoso” (Losa, 1987: 193), e do jovem que estava alojado na mesma casa que a narradora, em Berlim. O mesmo acontece com o avô de Francisco, o narrador de Campos de lágrimas, supostamente exterminado num campo de concentração por lutar contra as forças nazis. Os alemães são responsabilizados pela sua atuação, enquanto perpetradores ou observadores passivos, identificando-se os elementos da Gestapo e o próprio Hitler, considerado um grande líder político pela maior parte da população, mas também, por uma minoria, um criminoso (“Senti nojo daquele cúmplice do assassino cuja fotografia se exibia por cima da sua cabeça”; Losa, 1987: 193). Os funcionários nazis são caracterizados sobretudo na sua dimensão psicológica, acentuando-se, neste contexto, a agressividade e a falta de compaixão. Entre os responsáveis pelo Holocausto parecem estar também os indivíduos que, pelo silêncio e pela passividade, acabam por ser cúmplices dos crimes, (cf. Losa, 1987: 165). A questão dos ‘bystanders’ é colocada em Campos de lágrimas como um dos principais problemas desses anos, apontando o narrador o dedo, de uma forma um pouco acrítica e sem a 8 Veja-se, a título de exemplo, o episódio no café com o músico húngaro Beloz Amadi, interrompido por um grupo de fardados com insultos e agressões (cf. Idem, 157) que, devido às suas características físicas foi considerado judeu; o episódio com a mãe de Rose quando dialogava com outro passageiro numa viagem: “Pensei em ir para uma praia, mas desisti da ideia. Estão cheias de judeus e eu não posso com judeus” (Idem,119); a questão do casamento dos judeus com não judeus (veja-se a forma como a irmã de Paul via o relacionamento do irmão com Rose), entre outros episódios mencionados na narrativa. 9 As referências abarcam diferentes áreas: a alimentação Kosher; a celebração do shabat; os rituais das cerimónias fúnebres; a festa religiosa de Rosh Hashanah; do Jaumkipur, dia da reconciliação (cf. Idem, 80); a festa das luzes e da alegria, a Chanuka (cf. Ibidem); a festa da Páscoa (cf. Idem, 91); a barmizwoh de Bruno (cf. Idem, 134), a referência a personagens bíblicas.

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necessária contextualização, a todas essas pessoas que consentiram que o Holocausto ocorresse: – Então as pessoas viam e não faziam nada?- quis saber Sofia.[…] É que muita gente sabia o tipo de crimes que se cometiam e nada faziam para os evitar (Letria, 2001: 13) Não há nada que explique o silêncio cúmplice de grande parte de um povo ao ver assassinar milhares de pessoas da mesma nacionalidade e de outras nacionalidades sem razão aparente. E a verdade é que houve milhares de alemães que colaboraram dia a dia com esta máquina de terror e destruição (Idem, 34)

Em O mundo em que vivi, veicula-se, no entanto, uma perspectiva crítica e reflexiva em relação a esta situação. Com efeito, há uma afirmação de um professor de religião hebraica na obra citada que, na nossa opinião, parece contrariar a visão algo maniqueísta presente noutras narrativas: “Em todos os tempos e em todos os países cometeram-se e cometem-se injustiças. A razão encontra-se sempre nas circunstâncias e nunca nos povos em si” (Losa, 1987: 76). Esta visão está também presente noutros momentos desta obra, veiculada pela forma tolerante como a narradora se refere ao amigo Herbert que lutava em França, pelo exército nazi: Herbert tombaria em França combatendo por aqueles que eram os meus inimigos. Creio bem que não lhe foi fácil submeter-se a essa gente. Nunca quis penetrar em problemas complexos, era despreocupado e, talvez a seu modo, feliz. Há quem o inclua na lista dos culpados. Mas eu não o posso fazer. (Idem, 133)

Para além de se promover o conhecimento sobre o Holocausto, em todas as narrativas em análise evoca-se a grandeza do espírito humano relatando-se atos de resistência ou heroísmo. É o caso dos indivíduos de nacionalidade alemã que ajudaram os judeus ou outras vítimas, considerados seres humanos de grande coragem e valor, sublinhando-se nas narrativas os riscos que corriam aqueles que, não concordando com os horrores cometidos, o manifestassem publicamente (cf. Letria, 2001: 35). Em O mundo em que vivi, a irmã de Hedwig Schneider, professora primária, é presa por ser contra o regime. Esta senhora acolhe Rose em sua casa depois de a ter ouvido chorar, revelando uma grande humanidade e compaixão pelo sofrimento de Rose e dos outros judeus:

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Não posso ajudá-la. Pois quem sou eu? Uma simples professora primária desconhecida. Mas talvez a conforte um pouco se lhe disser que sinto simpatia por si e por todos os que sofrem. Tenho vergonha do nosso povo, que desceu tanto. A Rose amanhã será julgada por ter dito a verdade. Pois é verdade que esse homem é um criminoso. E são criminosos todos aqueles que condenam os seus semelhantes pela raça e não os apreciam pelas qualidades humanas. (Losa, 1987: 101-102)

Miep e os senhores Kluger e Kleiman, em Mouschi, o gato de Anne Frank, põem a sua vida em risco sendo solidários com a família Frank e as outras pessoas que viviam no anexo em Amesterdão (“Digo bem: grande coragem, pois ela arriscava-se todos os dias, se fosse vigiada e seguida, a condenar os seus amigos à pior das sentenças e a ser presa e talvez mesmo morta. Mas nunca desistiu”, Letria, 2002: 31); o avô de Francisco, em Campos de lágrimas, é preso quando combatia as forças nazis e levado para um campo de concentração, sendo apresentado como um homem exemplar, altruísta. Afirma-se explicitamente que este avô “sempre fora uma referência de dignidade e de coragem para a sua família” (Letria, 2001: 9), estando sempre ao lado dos mais desfavorecidos, “um homem honrado e um lutador pela liberdade e pelos direitos dos outros” (Idem, 43).

Reflexões finais As narrativas em causa neste artigo parecem estar comprometidas com os objetivos da Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust, ou seja, “o compromisso em recordar as vítimas que pereceram, respeitar os sobreviventes (…) e reafirmar a aspiração comum da humanidade a uma justiça e compreensão mútuas” (IHRA, 2000; versão portuguesa). Sobretudo, realça-se o facto de o Holocausto ter sido fruto da loucura humana e de mentes criminosas (“nenhuma delas cometeu crime de qualquer espécie. O único crime que podem ter cometido foi o de serem diferentes, o de serem judeus, ciganos ou apenas homens e mulheres que lutavam pela liberdade contra a tirania”, Letria, 2001: 33). Há intenção explícita em dar a conhecer os anos anteriores ao Holocausto (cf. O mundo em que vivi), o que ocorria nos campos de concentração (cf. Campo de lágrimas), registando-se uma fidelidade à História. As narrativas partem, pois, do factual para o ficcional, sendo a matéria histórica a base para a construção literária.

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O nazismo é percecionado como algo imoral e terrível que levou a “uma das maiores tragédias de toda a história da Humanidade” (Letria, 2001: 12), sendo apresentados aos leitores verdadeiros heróis, capazes de mudar um pouco o mundo à sua volta, interpelando-os pelo seu comportamento exemplar. Esta dimensão pedagógica, educativa, que visa a formação de seres humanos respeitadores dos direitos de todos e das diferenças, está explicitamente patente nas narrativas em análise. Em Campos de lágrimas encontramos a seguinte dedicatória: “Aos leitores mais jovens, para não deixarem que se repita o maior crime da história da Humanidade”, parecendo evidente o objetivo formativo deste texto. A intenção preventiva é manifestada explicitamente na narrativa citada, responsabilizando-se os leitores pelo futuro: “De qualquer modo, nunca se sabe, e o melhor é pensarmos que sempre que o pior pode voltar a acontecer, se as pessoas onde quer que estejam e façam o que fizerem na vida, não lutarem pela defesa da liberdade e dos direitos dos seres humanos” (Idem, 14). A igualdade entre os seres humanos, apesar das diferenças, é reforçada recorrentemente, de forma explícita, constituindo a opção ideológica a seguir para que o Holocausto não volte a acontecer. Evoca-se o passado, na tentativa de se construir um melhor futuro, comprometendo-se os leitores, para que o Holocausto não se repita. Neste contexto, apontam-se, em Campos de lágrimas, alguns indícios de preocupação no mundo atual (referência aos episódios racistas que envolvem a comunidade turca, ao negacionismo, aos grupos de jovens neonazis, ao partido de George Haider, na Áustria e à Frente Nacional, em França e às semelhanças que estes partidos apresentam com o partido nazi). Os leitores são envolvidos e convocados para partilhar uma ideologia de teor pacifista, condenando-se o nazismo explicitamente. O narrador de Campos de lágrimas lembra ainda o atual conflito israelo-palestiniano, responsabilizando os descendentes dos judeus assassinados nos campos de concentração que, em Israel, utilizam métodos semelhantes aos dos nazis, ajudando os leitores a refletir sobre esta questão da discriminação e do ódio desde diferentes perspetivas. Algumas das questões em debate no contexto da literatura do Holocausto, nomeadamente a discussão sobre a responsabilidade moral da literatura e a fidelidade à História, parecem evidentes nestes textos, sendo as narrativas em causa testemunhos ao serviço da verdade e da memória universal.

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[Recebido em 20 de julho de 2014 e aceite para publicação em 15 de novembro de 2014]

Vária

Fig. 1 : Carte des îles figurant dans la première édition du Tratado das Ilhas Novas

DU CONTO DE AMARO AU TRATADO DAS ILHAS NOVAS OU DE L’ÎLE DE SAINT-BRENDAN À L’ÎLE DES SEPT CITÉS : LA REPRÉSENTATION DU MONDE AU MOYEN ÂGE ET À LA RENAISSANCE ENTRE MYTHE ET RÉALITÉ DO CONTO DE AMARO AO TRATADO DAS ILHAS NOVAS OU DA ILHA DE SÃO BRANDÃO À ILHA DAS SETE CIDADES: A REPRESENTAÇÃO DO MUNDO NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO ENTRE MITO E REALIDADE FROM THE CONTO DE AMARO TO THE TRATADO DAS ILHAS NOVAS OR FROM SAINT BRENDAN’S ISLE TO THE ISLAND OF SEVEN CITIES: WORLD REPRESENTATION IN THE MIDDLE AGES AND THE RENAISSANCE BETWEEN MYTH AND REALITY João Carlos Vitorino Pereira* [email protected]

ABEL. – L’île de Saint-Brandon, en pleine mer des Sargasses, est certainement la meilleure prison du monde. BENTO. – Ah, si je pouvais, ah, l’île de Saint-Brandon… Mário de Carvalho, Vive l’harmonie!

Nous voulons montrer, à travers le Conto de Amaro qui s’inspire de la légende de l’île de Saint-Brendan et le Tratado das Ilhas Novas, qu’un récit mythique médiéval pouvait contaminer un texte à visée scientifique de la Renaissance, époque où la pensée scientifique se construit peu à peu et où les légendes du Moyen Âge agitent les esprits. L’homme de la Renaissance, plus que jamais en quête d’un éden insulaire, est l’héritier de la culture et de l’imaginaire du Moyen Âge. Au temps des grandes découvertes du XVIe siècle, la représentation géographique du monde oscille donc encore entre le mythe et la réalité. Le Tratado das Ilhas Novas présente surtout l’intérêt d’établir une relation entre la légende des Sept Cités et la légende du

* Université Lumière – Lyon 2, Lyon, France.

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roi Rodrigue et d’offrir une variante de ces deux récits mythiques dont il propose, du reste, une lecture bien portugaise, nationaliste même. Mots-clés : récit mythique, utopie, éden insulaire Queremos mostrar, através do Conto de Amaro que se inspira na lenda da ilha de São Brandão e do Tratado das Ilhas Novas, que uma narrativa mítica da Idade Média podia contaminar um texto de pendor científico do Renascimento, época em que o pensamento científico se constrói pouco a pouco e em que as lendas da Idade Média agitam os espíritos. O homem do Renascimento, mais do que nunca em busca de um éden insular, é herdeiro da cultura e do imaginário da Idade Média. No tempo dos descobrimentos do século XVI, a representação geográfica do mundo oscila ainda entre o mito e a realidade. O Tratado das Ilhas Novas tem sobretudo o interesse de estabelecer uma relação entre a lenda das Sete Cidades e a lenda do rei Rodrigo e de oferecer uma variante destas duas narrativas míticas das quais propõe, aliás, uma leitura bem portuguesa e até nacionalista. Palavras-chave: narrativa mítica, utopia, éden insular We want to show, through the Conto de Amaro, inspired by the legend of the Saint Brendan’s Isle, and the Tratado das Ilhas Novas, how a mythical medieval narrative could contaminate a scientific text of the Renaissance, a period in which scientific thought was in the process of construction and the legends of the Middle Ages continued still vivid in people’s minds. Renaissance man, more than ever in search for an Edenic island, inherited medieval culture and imagination. At the time of the major discoveries of the 16th century, the geographical representation of the world oscillated between myth and reality. The Tratado das Ilhas Novas is of interest above all because it establishes a relationship between the legend of the Seven Cities and the legend of King Roderick and offers a variant of these two mythical narratives, proposing a very Portuguese, indeed nationalist, intrepretation of them. Keywords: mythical narrative, utopia, Edenic island

Introduction: les îles mythiques des Bienheureux L’île de Saint-Brendan ferait donc, aujourd’hui encore, rêver des proscrits, si l’on en croit les paroles que Mário de Carvalho met dans la bouche de deux personnages de sa pièce de théâtre intitulée Vive l’harmonie! et traduite par Marie-Hélène Piwnick. Cette île imaginaire et magique (cf. Manguel & Guadalupi, 2002: 500-502, et aussi Omnés, 1997: 177-189) est à l’origine du Conto de Amaro, dont la version écrite en portugais daterait du

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XIVe siècle et dont il existe une traduction en français parue sous le titre L’Histoire d’Amaro. Elle est également évoquée par Francisco de Sousa dans son Tratado das Ilhas Novas où il est question d’une autre île mythique, à savoir l’île des Sept Cités. Jean Delumeau rappelle qu’il “existe (…) un lien entre l’île de Saint-Brendan et la légende des ‘sept cités’”. Il démontre par ailleurs que l’île de Saint-Brendan était parfois assimilée à l’île de O Brazil, dont le nom, “contrairement à ce qu’on a cru longtemps, ne paraît pas venir d’une plante tinctoriale donnant un colorant rouge braise, mais d’un vocable irlandais, Hy Bressail ou O Brazil, signifiant ‘Ile Fortunée’ (…)” (Delumeau, 2002: 141). Et il ajoute: A partir de la seconde moitié du XVIe siècle, O Brazil désigne de plus en plus la terre découverte par Pedro Alvares Cabral. Mais un atlas composé avant 1568 par le Portugais Fernâo Vaz Dourado comporte à la fois le nom Hobrasili appliqué au Brésil actuel et celui de Obrasill qui désigne une île mystérieuse située au sud-ouest de l’Irlande (…). (…) Néanmoins une île nommée High Brazil Rocks figurera encore en 1853 sur une carte anglaise, celle de Findlay (…). (Ibidem)

Les insulaires qui se composent de cartes d’îles et qui apparaissent à la fin du Moyen Âge (cf. Carvalho, 1993:  172) témoignent de la fascination de l’homme des grandes découvertes pour l’espace insulaire. La croyance dans des îles utopiques a alimenté l’esprit des découvertes, lesquelles, à leur tour, ont renforcé la croyance. Jean Delumeau fait d’ailleurs observer que, entre 1526 et 1721, “quatre expéditions maritimes partirent des Canaries à la recherche de la ‘Terre promise’ où aurait abordé saint Brendan et ses compagnons.” (Delumeau, 2002: 140). Dans l’imaginaire paradisiaque, le paradis perdu est insulaire, et ce depuis l’Antiquité qui a donné naissance au mythe des Îles Fortunées (Idem, 15, 17, 18, 133, 134), longtemps confondues avec les îles des Canaries (Idem, 138), et à celui de l’Atlantide[1], “l’île de Platon [devenant] l’objet d’une quête pour le héros de roman” (Foucrier, 1 “Cet événement [la découverte de l’Amérique], qui bouleversa la vision du monde des Européens, eut pour conséquence de promouvoir durablement l’hypothèse atlantidienne dans le champ des réflexions sur le monde primitif. En 1492, en effet, se posa cette question à la fois ethnologique et théologique: d’où viennent les Indiens. (…) // (…) Cette question cruciale avait pour corrélat que le Novus Orbis n’était peut-être pas si nouveau que cela… Serait-il un fragment détaché de l’Ancien Monde (…), bref, un monde oublié (…). De telles interrogations firent évidemment resurgir les vieilles croyances religieuses relatives à la situation occidentale du Paradis terrestre, l’histoire des explorations maritimes de l’Antiquité, et aussi les ‘prophéties’ de l’Amérique, telles que les incarna, dans l’imaginaire occidental, la tradition des pays merveilleux et des îles Fortunées décrites par les Grecs (…).” (Foucrier, 2004: 19).

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2004: 33). Ce n’est donc pas un hasard si l’utopie élaborée en 1516 par Thomas More a pour cadre une île. Au Moyen Âge et à la Renaissance, on continue de chercher, de préférence dans un ailleurs insulaire, le paradis terrestre, avec de moins en moins d’espoir de le trouver au fil des voyages de découvertes qui ne font que pousser plus loin cette insatiable quête.[2] Par-delà leurs différences, l’imaginaire insulaire, qui est très ambivalent, et l’imaginaire utopique se rejoignent en ce qu’ils véhiculent volontiers une image paradisiaque de l’île.

Le Conto de Amaro: la quête du paradis et l’île de SaintBrendan Contrairement à de nombreux autres textes hagiographiques portugais du Moyen Âge, le Conto de Amaro n’est pas la traduction d’un texte latin déjà connu et traduit dans d’autres pays[3], notamment en France, comme le note l’auteur anonyme de l’introduction à ce récit mythique, qui ajoute : Dans le cadre de l’hagiographie médiévale, cette histoire occupe une place à part pour plusieurs raisons. C’est une traversée maritime qui a comme but la vision du paradis terrestre. Le texte portugais ne présente pas, comme ses versions espagnoles, une introduction avec la vie du saint, sa naissance annoncée et prédestinée, de nature merveilleuse, ainsi que son enfance. (…) Amaro cherche à connaître le monde, Dieu et surtout lui-même. C’est l’expérience acquise pendant son voyage qui permet sa transformation intérieure. Lors de son périple, Amaro aborde dans plusieurs îles où il sera le spectateur de merveilles. Ce schéma se rapproche des textes mythologiques irlandais : les immrama. On reconnaît ainsi dans L’Histoire d’Amaro des éléments qui évoquent la tradition celtique comme celle du Voyage de Bran, du Voyage de Maelduin, tout comme la Navigatio sancti Brandani traduite du latin par Benedeit, autrement dit le Voyage de saint Brendan, texte largement diffusé au Moyen Âge. (Nunes, 2008: 181)

D’après Jean Delumeau, on connaît “au moins quatre-vingts versions différentes de la Navigatio sancti Brandani” (Delumeau, 2002: 139). Dès la 2 “Joseph Duncan constate judicieusement qu’aux XVIe et XVIIe siècles ‘la localisation du paradis terrestre a plus attiré l’attention [des spécialistes] que n’importe quelle autre question le concernant (...)’.” (Delumeau, 2002: 205-206 ; cf. aussi pp. 19, 131, 138, 303). 3 “Si L’Histoire d’Amaro n’a pas de modèle latin connu, beaucoup d’érudits pensent que c’est sans doute un manuscrit latin qui a servi de base à la rédaction de la version portugaise.” (Nunes, 2008: 182).

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première phrase du récit[4], Amaro est présenté comme un homme pieux, “hũũ hoẽm boo (…) que avya grã desejo de veer o parayso terreal” (A: 184). Dans son sommeil, il entend une voix : “‘(…) Vay-te a rrybeira do mar e nõ digas a nẽhũũ nẽhũã cousa (…). E mete-te ẽ hũã nave e vay-te hu te deos quiser guyar.’” (A: 184). Pour découvrir ce lieu caché qu’est le paradis terrestre, il faut donc prendre la mer. Accompagné de “dezaseis mãcebos grandes e arryzados”, Amaro aborde, après avoir essuyé une tempête, “hũã inssoa pequena que nõ era povorada senõ de hũũ moesteiro de irmitãães” (A: 184). Il ne s’agit pas d’une île paradisiaque mais plutôt d’une île damnée : “(…) virã jazer acerca do moesteiro gram cõpanha de lyonees e outras bestas maas (…). (…) aly jaziã mortas e (...) eram tantas ẽ aquella inssoa que nõ podyã hy aver nẽhũũ proveito antre ellas.” (A: 184).[5] C’est pourquoi l’ermite dit à Amaro de quitter l’île à jamais (A:  184). L’Histoire d’Amaro s’écarte donc du Voyage de saint Brendan: “Cet évêque, abbé de Clonfert (Irlande), mort à la fin du VIe siècle, fonda des monastères en Angleterre et entreprit un voyage en Écosse qui se transforma en légende. Celle-ci prit corps dans la Navigation de saint Brendan, l’un des romans d’aventures les plus fameux du Moyen Âge”, explique Jean Delumeau (2002: 139). Celui-ci ajoute: “Il s’agit du périple du saint et de ses compagnons parmi des îles désignées respectivement sous les noms de ‘Plaine du Plaisir’, ‘Terre du Bonheur’ et ‘Terre des Bienheureux’” (Ibidem); ces noms d’îles allégoriques sont autant d’étapes sur le chemin de la Béatitude. Dans L’Histoire d’Amaro, le chemin menant au paradis est semé d’embûches et de tentations car, dans la littérature religieuse, on s’attend à ce que la foi du croyant soit mise à l’épreuve. Amaro quitte donc cette petite île innommée puis débarque “em hũã insoa grande que era povorada de cinco castellos” (A: 186). Après le lion, associé aux puissances infernales, c’est le château qui retient d’entré de jeu l’attention des voyageurs à l’arrivée sur cette deuxième île qui ne sera pas non plus la terre du bonheur. Cet élément familier du paysage architectural du Moyen Âge peut présenter, sur le plan symbolique, quelque chose d’inquiétant car, comme le lion, il peut être regardé comme une image de l’enfer.[6] Le symbolisme du lieu est aussitôt mis en évidence: “E os homẽẽs daly erã muitos longos e grandes e 4 Toutes nos citations seront tirées de l’édition d’Irene Freire Nunes (2008); l’abréviation A servira à la désigner. 5 “Le lion évoque en effet la férocité, l’excès d’orgueil, la force incontrôlée, le despotisme, l’avidité aveugle, tandis que sa gueule béante d’où sort un rugissement l’associe aux puissances infernales.” (Mozzani, 1999: 995) 6 “Le château noir est le château définitivement perdu, le désir condamné à rester à jamais inassouvi: c’est l’image de l’enfer, du destin fixé sans espoir de retour, ni de changement. C’est le

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luxuryosos e doutras maas condiçõões” (A: 186). Après plusieurs semaines de pause, Amaro entend une voix lui souffler dans la nuit: “Amaro vay-te desta terra maldita que deos maldisse por muitos pecados que se em ella fazem singra per esse mar hu deos quiser guyar” (A: 186). Amaro se laisse donc guider par la voix de Dieu et quitte l’île du péché: E entõ foy-sse cõ sua cõpanha e começarõ de singrar muito fortemẽte. E passarõ o mar rruyvo per hu deos guyou os filhos de israel quando farao e o poboo do egipto foram depoes elles e foram afundados e mortos ẽ no mar. E os filhos de israel forõ em salvo que os guyou deos e abryo lhes o mar. (A: 186) 

Amaro et ses coreligionnaires soumis à la volonté de Dieu et voguant d’île en île représentent l’humanité pieuse en quête de la Terre promise. Dans l’imaginaire, l’embarcation tient de l’espace insulaire, devenant un “archétype rassurant de la coque protectrice, du vaisseau fermé, de l’habitacle” (Durand, 1992: 286); c’est cette image sécurisante qui se dégage de l’arche de Noé. Ainsi, la “joie de naviguer est toujours menacée par la peur de ‘sombrer’, mais ce sont les valeurs de l’intimité qui triomphent et ‘sauvent’ Moïse des vicissitudes du voyage” (Ibidem). D’après Gilbert Durand, le bateau est donc parfois perçu comme “un lieu clos”, une “île miniature” (Idem, 287). Le voyage, notamment sur l’eau, est une représentation de la vie comme traversée périlleuse, comme passage d’un monde à un autre. Après avoir traversé la mer Rouge, le paradis étant aussi localisé en Orient au Moyen Âge (cf. Delumeau, 2002: 303), “amaro e sua conpanha (...) virõ jazer hũã inssoa muy grande e em muy rryca terra e muy avondada de todallas cousas que deos no mũdo quis dar e avya nome fonte clara e aportarõ aly (…)” (A: 186). Nous avons enfin affaire à une île enchanteresse dotée, comme il se doit, d’une nature généreuse : (…) as jentes daly eram das mais fermosas criaturas que avya no mũdo nẽ mais louçaãs nẽ mais corteses ẽssynadas de todo bem e fezerõ-lhe muita honrra e davã-lhe todallas cousas que lhe faziam mester. E era terra tam saborosa e tam sãã que nũca hy morrya nẽgũũ de nẽ hũã door que ouvesse senõ de vilhice e vivya hy o homẽ trezẽtos años comunalmẽte. (A: 186)

château sans pont et vide éternellement, à l’exception de l’âme solitaire qui erre sans fin entre ses murs sombres.” (Chevalier & Gheerbrant, 1982: 216)

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Cette troisième île n’est pas tout à fait le paradis terrestre car la mort, bien que douce, y étend son ombre. Il s’agit plutôt d’un pays de Cocagne (cf. Delumeau, 2002: 179) où vivent dans l’abondance et l’insouciance des individus à la longévité hors du commun, sains de corps, puisqu’ils ne connaissent pas la maladie, et d’esprit, puisqu’ils se préservent du Mal comme dans le jardin d’Éden avant la faute adamique. En ce lieu dont le nom poétique évoque un monde de pureté et aussi la Fontaine de Jouvence[7], on s’élève de la beauté des corps à la beauté des âmes. Toutefois, pour s’élever vers Dieu et accéder, selon la conception platonicienne, à la contemplation du vrai paradis, du Beau absolu, il faut renoncer aux vaines joies terrestres. Toujours est-il qu’il semble difficile de quitter une île bien tentante, comme le suggèrent la répétition de l’adverbe d’intensité “tam” et du superlatif “as mais” ainsi que la comparaison superlative absolue: les habitants de ce lieu enchanteur sont, notons-le, incomparables. Au bout de sept semaines passées sur cette île, une femme avisée apparaissant comme une messagère de Dieu fait cette recommandation à Amaro: “Amigo eu te cõselho que te sayas desta terra que eu sey bem que tu andas ẽ serviço de deos. E que depois que esta tua gente ouver doyto esta terra e os deleites della e viços nõ te querram sayr della e queran-te desenparar (…)” (A: 186). Cette île pourrait donc bien devenir une délicieuse prison. Dans une œuvre fortement imprégnée de morale chrétienne, il fallait bien mettre en garde contre les faux plaisirs terrestres et les faux paradis, le croyant devant résister à la tentation.[8] On remarquera que cette île se présente comme un piège tentateur susceptible de se refermer sur ceux qu’elle attire. Amaro et ses compagnons firent voile sans délai. Au lever du jour, comme ils aperçoivent sept navires immobiles, ils se croient à proximité de la terre ferme. Mais il n’en est rien. Leur embarcation, en effet, se retrouve prisonnière d’une mer figée (A: 186); il est aussi question d’une mer solidifiée dans la Navigation de saint Brendan, comme le fait remarquer Ana Paula Dias (2013: 3). Un spectacle de désolation s’offre alors à la vue des voyageurs: “E pararõ mẽtes e vyrom bestas marynhas que eram fortes e esquivas e eram mayores que cavallos e ẽtravã dentro ẽ aquellas sete naaos e tiravã de dentro dellas os homẽẽs mortos que hy jaziam que morryã cõ fome e comyã-nos” (A: 186, 188). Ce passage rend compte de l’univers mental de 7 “La place faite, à l’époque, à la légende de la ‘Fontaine de Jouvence’ mérite ici une attention particulière. Le Moyen Age en avait déjà rêvé, la situant à l’intérieur du royaume du Prêtre Jean ou la faisant chercher à travers le monde par des chevaliers errants.” (Delumeau, 2002: 179) 8 Depuis longtemps, on mettait en garde contre tout ce qui pouvait offrir l’apparence d’un paradis, comme le rappelle Jean Delumeau (2002: 181).

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l’homme du Moyen Âge pour qui l’existence et le monde sont régis par le surnaturel, d’où la référence ici au miracle divin (A: 186) et aux monstres infernaux des océans. Notons que la ‘véracité’ du récit est immédiatement soulignée afin de ne pas amoindrir sa portée didactique: “E tanto que sayrõ daquel maar calhado talharõ os callabres. E desto nõ vos maravilhedes nẽ o tenhades por chufa que sabede que esto foy verdade e ordenado por deos que os quise poer ẽ salvo” (A: 190). Le séjour des voyageurs opiniâtres sur une quatrième île sera de courte durée mais assez décisif: “(…) foram ẽ tres dias e tres noytes a huã terra que virom jazer no mar. E virõ jazer huũã muy grande abbadya em que que moravã muitos irmitãães. E aquella terra avia nome inssoa deserta. Porque aquella terra fora despoborada por grandes e esquivas alymary as que comiã as gentes” (A: 190). L’île Déserte[9] est infestée de “lyõõẽ e serpentes e outras muitas maas alymaryas” et on y respire une odeur insupportable, d’après un ermite qui conseille à Amaro de quitter cette terre de désolation “onde nõ entram nũca homẽẽs” (A: 190). Cette fois, le récit ne livre aucune vision infernale mais Amaro finit par entendre les “muy grandes braados e muy medrosos daquellas alimarias” (A: 192) qui l’empêchent de dormir. Le voyage maritime entre le paradis et l’enfer se poursuit au petit matin vers “hũã terra muy fremosa e mui saborosa” (A: 190). L’ermite rencontré sur l’île Déserte avait indiqué la bonne direction à Amaro: “Virõ muy preto de ssy hũã terra a mais fremosa e mais avõdada do mũdo. E vierõ aa terra e virõ estar hũũ moesteiro acerca de hũa serra e era moesteiro de frades brancos e homẽẽs de booa vida. E aquell moesteiro avia nome val de flores” (A: 192). La rhétorique du merveilleux qui caractérise le discours utopique est de nouveau à l’œuvre, la comparaison superlative absolue et le nom bucolique du monastère excitant l’imagination du lecteur qui est ainsi introduit dans un cadre enchanteur: “Aly corryã grandes rryos e muitas fontes que naciã daquella serra e aly avia muitos jardỹns e muitos prados e muitos virgeus” (A: 192). Nous tenons là une préfiguration du paradis terrestre dont les principaux éléments constitutifs sont évoqués. Le paradis est un lieu planté d’arbres et arrosé abondamment d’eau, l’eau vive jaillissante signalant dans la Bible la présence de Dieu qui est “source d’eau vive” (Gerard, 1989: 284).[10] 9 A la fin du XVe siècle, on trouve dans la Relation de Diogo Gomes une référence à l’île Déserte, située à proximité de l’île de Madère (cf. Cristóvão, 2000: 96). 10 On lit dans le livre d’Isaïe, par exemple: “Vous puiserez avec joie des eaux des fontaines du Sauveur.” (Isaïe, XII, 3, in La Bible, trad. Lemaître de Sacy, Paris, Robert Laffont, 1990, p. 901; toutes les citations bibliques seront tirées de cette édition).

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La description de ce nouveau lieu se rapproche du texte biblique qui dépeint ainsi la Terre promise: “Je ferai sortir des fleuves du haut des collines, et des fontaines du milieu des champs; je changerai les déserts en des étangs, et la terre sèche et sans chemins en des eaux courantes.” (Isaïe, XLI, 18). Le jardin où poussent fleurs et fruits est une image persistante du paradis (cf. Delumeau, 2002: 165, 172, 177). On remarquera également dans cette évocation la présence d’une montagne (cf. Chevalier & Gheerbrant, 1982: 645) au pied de laquelle est construit le monastère ; il s’agit là d’un appel à la transcendance à laquelle renvoie également le grand arbre (cf. Idem, 62) sous lequel se trouve un religieux : “E o frade avya nome leomites porque os leõões e as outras alimaryas vinhã demãdar que os benzese e beijavõ-lhe as mããos e os pees muito huũldosamẽte (...). E este frade fora natural de babylonya a deserta” (A: 192). Par conséquent, il s’agit d’un saint homme venu de Babylone, ville biblique ambivalente. En effet, Babylone, avec ses jardins suspendus, est un lieu paradisiaque au point que l’on a parfois localisé le paradis terrestre en Babylonie, une légende voulant même qu’Adam ait vécu dans les environs de sa célèbre capitale (cf. Delumeau, 2002: 215). Bien que situé dans cette région continentale, le paradis terrestre était d’ailleurs volontiers associé à un espace insulaire puisqu’une “carte jointe (…) dans l’ouvrage d’Hopkinson situe le jardin du bonheur dans une île entourée par le Tigre et le Pishôn, le Guihôn et l’Euphrate” (Idem, 218; cf. aussi p. 222). Mais Babylone ne sera plus que l’ombre d’elle-même, la Bible la décrivant comme déserte: “(…) je la nettoierai, et j’en jetterai jusqu’aux moindres restes, dit le Seigneur des armées” (Isaïe, XIV, 23); dans L’Histoire d’Amaro, l’appellation “Babylone la Déserte” semble faire écho à ces paroles bibliques. Babylone est à la fois paradis perdu et terre maudite. Originaire de Babylone la Déserte, Léomites a donc trouvé refuge au monastère baptisé “Val des Fleurs”, ce nom symbolique suggérant un lieu régénérant. Les bêtes fauves y vivent en parfaite harmonie, notons-le, avec l’homme, ce qui n’est pas sans rappeler une prophétie d’Isaïe.[11] La vision de ce cadre où évoluent maintenant Amaro et ses compagnons offre un avant-goût du paradis terrestre. Nous n’avons plus affaire à un merveilleux inquiétant, bien au contraire: “desque os benzia hyan-sse [les animaux sauvages] muy humildossamẽte pera os mõtes” (A: 192). Dans ce havre de paix, Amaro était en réalité attendu par Léomites qui, parce qu’il avait surmonté jusqu’alors ses épreuves, l’a aussitôt considéré comme un homme de plus grande valeur que lui : “Senhor mas beenze tu 11 “Le loup habitera avec l’agneau ; le léopard se couchera auprès du chevreau, le veau, le lion et la brebis demeureront ensemble, et un petit enfant les conduira tous.” (Isaïe, XI, 6)

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a mỹ que es mais digno que eu” (A: 192). Ce commentaire évaluatif positif vient d’un “sancto homẽ” (A: 194), ce qui lui confère davantage de crédit. La quête spirituelle, à laquelle se réfère le moine qui a eu une révélation de Dieu, porte donc ses fruits puisque Amaro gravit avec succès les marches du perfectionnement moral qui devrait le conduire au paradis  : “E sabe amigo que esta tua vũda me foy mostrada pello anjo de deos. E nõ me digas mais da tua fazẽda nẽ da tua viida que eu o sey bem e per quantas coytas passaste e eu te direy como faças ẽ guisa que tu acabes o que demãdas” (A: 192). Le merveilleux chrétien qui, dans le récit, côtoie le merveilleux fantastique est à l’œuvre ici. Amaro s’est visiblement attiré la faveur divine. On assiste sur cette île à sa transformation spirituelle: “E amaro esteve em aquell moesteiro hũã quarentena fazendo penitẽcia e hy rrecebeo o corpo de deos. E nũca avia sabor ẽ al se nõ falar ẽ nas obras e serviço de deos cõ aquell seu amigo leomites.” (A: 194). Il semble donc se détourner définitivement des vains plaisirs terrestres. Un homme nouveau émerge sous les yeux du lecteur, Amaro se soumettant de bonne grâce pendant quarante jours à un rite de purification au monastère du Val des Fleurs. La fleur peut être d’ailleurs interprétée comme un symbole de spiritualité et de renouveau (cf. Chevalier & Gheerbrant, 1982: 447, 449), tout comme le nombre quarante.[12] La construction de l’homme nouveau chrétien passe donc par un heureux processus de mortification rédemptrice. Le paradis terrestre se dessine peu à peu : “(...) acharas huũ porto em que nõ estam se nõ quatro casas. E (...) está hy hũũ mes. E desy sayrás tu soo per hũũ vale muy grande e vai-te polla rrybeira de hũũ rryo per aquelle valle a ẽfesto quanto poderes e tu acabarás aquello que tu queres e que desejas” (A: 194), dit Léomites à Amaro. Cette vallée et ce fleuve du paradis s’opposent au “rryo de amarguras” et au “valle de lagrymas” auxquels se réduit le “mũdo mezquinho”, comparé aussi par Léomites à un “lago de treevas” (A: 196). Le récit repose sur un jeu d’oppositions produit par la pensée judéo-chrétienne qui est bipolaire ; la dichotomie corps / âme apparaît nettement à la fin du Conto de Amaro (A: 214). On remarquera également que la linéarité du récit où est raconté chronologiquement le voyage initiatique d’Amaro est la résultante de la pensée chrétienne car, dans les

12 Jean Chevalier et Alain Gheerbrant rappellent que “le ressuscité apparaît à ses disciples pendant les quarante jours qui précèdent l’Ascension” (1982: 793); ils ajoutent que “ce nombre marque (…) un passage à un autre ordre d’action et de vie” (Ibidem).

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textes bibliques, on ne peut atteindre le nouveau paradis terrestre qu’au terme d’un voyage dans l’espace et, surtout, dans le temps.[13] L’utopie religieuse chrétienne qu’offre le Conto de Amaro ne peut donc se développer que selon un temps se déroulant linéairement. Amaro et ses seize compagnons quittent la cinquième île et arrivent au port indiqué par Léomites, en naviguant “pella rrybeira deste mar” (A: 194) car le cabotage est de mise au Moyen Âge. Le climat tempéré, clément qui règne en ce lieu ressemble à celui qui est censé régner au paradis (cf. Delumeau, 2002: 170, 210), lequel semble désormais proche : “E este porto ẽ que estavã era da mais fremosa jente do mũdo e de muitas auguas e de muitas fruytas e era terra muy sãã e muy tẽperada pero nõ era bem povorada” (A: 198). Le port, symbole de salut – les marins, en cas de tempête, y trouvent refuge –, est un lieu entre mer et terre, à la lisière, donc, de deux mondes. Amaro laisse ses compagnons en lieu sûr, au port, c’est-à-dire au seuil d’un autre monde. En se séparant d’eux, une soudaine tristesse l’étreint car il pense visiblement qu’il va désormais entreprendre son dernier voyage qui le mènera au paradis, au “royaume de la béatitude définitive”, selon l’expression de Jean Delumeau (2002: 228): “E entõ disse amaro : // ‘Amigos ora me benzede e abraçade-me todos que ja nũca me veredes ẽ este mũdo.’ // E ell chorava cõ elles tam rryjamẽte que todallas suas faces erã cheas de lagrymas” (A: 198). La géographie du paradis se précise dans le récit. Amaro se retrouve dans la vallée dont lui avait parlé Léomites et que l’on peut regarder comme l’antichambre du paradis terrestre : “(…) foy-sse per hũũ vale muy grande e byu jazer hũũ muy nobre moesteiro ao pee de hũũ mõte muy alto (...).” (A: 200). Le paradis terrestre ne devait pas ressembler à une vaste plaine : il devait être composé de vallées où l’eau coule en abondance et de montagnes (cf. Delumeau, 2002: 228). Amaro est accueilli au monastère portant le nom de “flor de donas” par des “donas de muy sancta vida” (A: 200). Celles-ci “sayrom (...) ataa hũã fonte a que moyõ dez e sete moynhos e stava hy quatro fayas muy grãdes e muy altas e aguardarõ aly e virã-no viĩr per aquelle valle muito cansado.” (A: 202) ; nous retrouvons dans ce passage le symbo-

13 “Le destin d’Israël et son Dieu sont un destin et un Dieu historiques, perçus dans le temps, dans un devenir. A travers les épreuves et les souffrances, le peuple élu marche vers un futur, vers une délivrance située dans le temps : la Terre promise est au bout d’une patience et d’une durée (…). Dès lors, le temps n’est plus dégradation, il ne faut plus s’en évader pour retourner à l’âge d’or, mais l’accomplir, attendre la réalisation de la promesse divine et l’instant où le Messie viendra rebâtir le temple de Jérusalem. (…) l’histoire se conçoit linéaire. Le temps, facteur de décadence, se voit récupéré en facteur de perfectionnement.” (Trousson, 1999: 36-37).

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lisme de la montagne, de la fleur et de l’eau vive.[14] Ces “servas de deos” (A: 202) avaient été informées de l’arrivée d’Amaro par Bralides, “natural de monte sinay” (A: 196). Par sa pénitence spectaculaire, cette dernière est devenue une sainte femme: “(...) era dona de muy gram castidade (…). E avia quarẽta e dous anos que andava pellos desertos fazendo muy estranha penitẽcia” (A: 196). La quête de la Terre promise par les Hébreux à travers le désert du Sinaï n’avait duré que quarante ans. L’errance dans le désert qui constitue un acte de purification ritualisé, notamment pour les moines chrétiens, s’inscrit clairement ici dans une quête spirituelle; rappelons-nous, à ce sujet, l’île Déserte où ne vivent que des ermites (A: 190). Seule Bralides sait où se trouve le paradis terrestre. Notons que la femme compte désormais dans la société féodale, ce qui n’est pas étranger au culte marial qui s’impose au Moyen Âge; ce n’est donc pas un hasard si le personnage féminin prend de l’importance en peinture et en littérature, notamment dans les chansons d’amour où il occupe une position centrale (cf. Rougemont, 1979: 124, 135-136). Les femmes qui vivent sur cette dernière île n’ont d’ailleurs rien d’une Ève tentatrice, pécheresse. Voici ce qu’un vieil ermite dit à Amaro au sujet de Bralides: “E esse parayso que tu dizes em esta terra esta, mas nõ o sabe nẽhũũ hu he se nõ aquella dona balydes e nõ se mostra se nõ a muy sancto homẽ” (A: 200). L’homme du Moyen Âge cherche, comme Amaro, le “parayso terreal” (A: 200) que ne peuvent trouver que ceux qui, comme ce dernier, accèdent au statut d’homme “de muy sancta vida” (A: 202). C’est Bralides, “serva da virgẽ sancta Maria” (A: 196), qui, notons-le, confère ce statut à Amaro. Toutes les conditions sont donc réunies pour que celui-ci découvre enfin le paradis terrestre sur cette île. Dans la Genèse, l’homme a été chassé du jardin d’Éden à cause du péché d’Eve. Dans le Conto de Amaro, c’est la femme régénérée en Dieu par une “muy estranha penitẽcia” (A: 196) qui guide l’homme vers le paradis perdu: “E sabede que aaquesta dona mostrou deos o parayso terreal e deu-lhe deos daquell paraiso vergas cõ folhas que senpre eram verdes e fremosas. E eram de hũã arvor que estava no parayso a que chamã arvor de consollaçõ e outras vergas de hũã arvor a que chamã dulces amores.” (A: 196). On relèvera ici une référence au jardin d’amour, le

14 D’après Éloïse Mozzani (1999: 860), le hêtre, “considéré comme bénéfique, est comme protégé par une autorité supérieure”; il “symboliserait ‘la mort ésotérique, c’est-à-dire la mort temporaire (saisonnière), suivie d’une renaissance plus ou moins joyeuse’”.

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paradis étant associé au Moyen Âge à cet espace clos très difficile d’accès.[15] Le jardin des délices se caractérise dans l’imaginaire paradisiaque par une végétation, un climat et une géographie propres. En effet, au jardin des délices poussent des fleurs et des arbres paradisiaques dont l’action est bienfaisante, le pommier, par exemple, passant pour un arbre du mal (cf. Delumeau, 2002: 165). Le vert des rameaux symbolise l’espérance, la foi, comme le rappelle Ana Paula Dias (2013: 7). C’est pourquoi le croyant qui reçoit à l’article de la mort le rameau de l’arbre de la consolation est “logo confortado ẽ tal guysa que quãto pesar e coyta avia todo se lhe tornou ẽ prazer” (A: 198). Le paradis terrestre est aussi traversé par un fleuve (A: 194), le paradis terrestre ne se concevant pas sans eau en abondance. Le fleuve du paradis (cf. Delumeau, 2002: 225-226) coule dans “hũũ vale muy grande” (A: 194) ou dans “huũ grande chããõ” (A: 212). La vallée, “voie royale vers l’immortalité”, “symbolise le lieu des transformations fécondantes, où se joignent la terre et l’eau du ciel (…) ; où se joignent l’âme humaine et la grâce de Dieu, pour donner les révélations et les extases mystiques” (Chevalier & Gheerbrant, 1982: 992, 993). La grande vallée va de pair avec le “mõte muy alto” (A: 200); Bralides vit d’ailleurs “nas montanhas” (A: 200) d’où elle descend pour indiquer le chemin du paradis terrestre à Amaro. Ainsi, une autre opposition radicale et structurante se fait jour dans le récit qui joue sur la dialectique du bas et du haut, autrement dit sur la dichotomie entre la vie matérielle et la vie spirituelle. On remarquera que les indices de la proximité du paradis terrestre se multiplient dans le sixième tableau qu’offre le récit. Le paradis terrestre se réduit, en dernière analyse, à des cours d’eau, à des arbres, à des fleurs et à des fruits (cf. Delumeau, 2002: 195-196) ; en attendant son entrée au paradis céleste, Amaro décide de s’installer en un lieu qui rappelle le paradis terrestre qu’il a fini par voir: “E entõ se foy a hũũ logar onde eram tres valles e corryam per hy tres rryos grandes e juntavã-sse ẽ huũ grande chããõ e erã das mais bellas terras que no mũdo podya seer. (...) E elle avia sabor daquella terra por que era mui booa e perto daquelle moesteiro[16] que elle muito amava (...)” (A: 212). Ce lieu aux portes du paradis terrestre le comble de plénitude, celle-ci étant symbolisée par le chiffre trois sur lequel insiste le récit biblique. Au terme de son voyage terrestre ou plutôt de son ascèse, Amaro, qui endosse l’habit blanc que lui tend Bralides (A: 204, 206), découvre enfin le jardin d’Éden où l’on se sera pas étonné de trouver le pommier car il s’agit 15 “A la fin du Moyen Age, le jardin d’amour séparé du reste du monde est un thème classique de l’iconographie et de la littérature.” (Delumeau, 2002: 228) 16 Il s’agit, rappelons-le, d’un “muy nobre moesteiro ao pee de hũũ mõte muy alto” (A: 200).

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bien du paradis perdu, d’avant le péché originel. Voici ce qu’il voit après avoir suivi un “rryo muy grande que saya [de hũã] serra e vinha do parayso terreal”, lequel fleuve “vinha cheo de pomas e de flores” (A: 204): E depois que amaro chegou aa meetade daquella serra vyo estar hũũ castello mais grande e mais alto e mais fremoso de quantos no mũdo avya e estava ẽ hũũ grãde chãão ẽ na cima daquella serra (…). E todo o castello e as torres eram de pedra marmore e parfilios e hũãs pedras erã brancas e outras verdes e outras vermelhas e outras pretas. (…) de cada hũã destas torres saya hũũ rryo e entrava ẽ no mar cada hũũ per sy. E ante que chegasse aaquelle castello achou hũã tenda de pedras cristaaes e doutras muitas pedras fremosas. (…) Esta tenda (...) estava ẽ arcos toda a arredor. Esta tenda era estrada cõ muitas pedras preciosas. E estavã dentro quatro fontes muy bellas (...) e saya a augua per senhas bocas de lyõões. (…) E desy foysse pera a porta daquel castello e estava ante a porta delle hũũ alpender cuberto de abobeda muy alta. (A: 206, 208)

On remarquera que le discours merveilleux est volontiers marqué, comme le discours utopique, par le superlatif, l’hyperbole, la répétition, qui traduisent la magnificence du lieu observé et le ravissement de l’observateur. Pour le symbolisme de la description, nous renvoyons à l’étude d’Ana Paula Dias (2013)  que nous compléterons en rappelant que la voûte, “Symbole du ciel”, représente “l’union du ciel et de la terre” (Chevalier & Gheerbrant, 1982: 1027) et que la tente “symbolise la présence du ciel sur la terre, la protection du Père” (Idem, 938-939). En outre, le château figure “parmi les symboles de la transcendance : la Jérusalem céleste prend la forme, dans les œuvres d’art, d’un château fort hérissé de tours et de flèches, au sommet d’une montagne” (Idem, 216). La dialectique du bas et du haut, à laquelle se prête d’ailleurs la figure de l’île[17], est donc nettement à l’œuvre dans ce passage. Amaro, qui a accédé à la sainteté – ce n’est que sur cette sixième et dernière île qu’il est présenté à trois reprises par des personnages vertueux comme un homme menant sainte vie  (A: 202, 208, 212) – , n’entrera pas au paradis car Dieu ne l’a pas encore rappelé à Lui (A: 208) ; il lui est cependant donné de contempler le paradis terrestre:

17 “L’île serait ainsi une forme symbolique privilégiée, car associée au thème du temps et du déroulement de l’existence par le jeu simultané de ses attributs  : le vertical, l’ascension et la chute  ; l’horizontal, le circulaire  : l’horizon ‘fabuleux’ venant doubler la circularité insulaire (…).” (Meistersheim, 2001: 27)

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E o porteiro lhe mostrou primeiramẽte a poma de que adam comera (…). E amaro byo dentro tantos prazeres e tantos sabores e tãtos viços quantos nõ poderyam contar nẽhũũ homẽ do mũdo. E quãtas arvores no mũdo avya todas aly estavã (…) e todas eram cubertas de folhas e cheas de fruytas e as hervas erã verdes e cõ flores. E cheiravã tam bem que non ha hõẽ que o podesse contar nẽ dizer. Aly estavã muitos lavatoryos feitos a grande nobreza. E aly nũca era noyte nẽ chuva nẽ fryo nẽ quaentura mas aly era muy bõõ tenparamẽto. E amaro vyo muitas tendas de panos verdes e vermelhos muy preciosos e doutras muitas colores. E todollos canpos jaziã estrados de flores e de maçããs e de larãjas e de todallas outras fruytas do mũdo. E asy cantavã as aves tam saborosamẽte que ainda que hy nõ ouvesse outro viço aquell avondarya muy bem. (A: 208)

On notera la présence, à côté du pommier, de l’oranger qui “devint un arbre du paradis terrestre parce qu’il ne perd pas ses feuilles et donne ses fruits en hiver” (Delumeau, 2002: 165). Le paradis est naturellement dépeint comme une terre d’abondance et de beauté exotique où règne un climat tempéré, toujours doux, et où vivent des hommes heureux. En effet, Amaro voit de jeunes hommes, qui jouent de la musique et qui chantent, et de jeunes filles, la tête couverte de “toalhas tam brancas como a neve” (A: 210), qui entourent “hũã dona muy grande e muy fremosa das mais bellas criaturas do mũdo” (A: 210). Il s’agit de la “santta Maria madre de Jhesu Cristo” (A: 210) à laquelle est dédié le chant que les jeunes gens qui l’accompagnent entonnent pour satisfaire au culte marial. La vision du paradis sur terre aura duré, d’après le portier, “duzẽtos e seseenta e sete años” (A: 210). Amaro, qui progresse dans la voie de la sainteté et donc de l’immortalité, n’a pas vu passer le temps qui n’a pas prise sur lui. Il retourne au port où il a laissé ses compagnons. Après tout ce temps, ce port s’est transformé en une cité prospère, si bien qu’Amaro, qui s’est lui aussi transformé, ne le reconnaît pas (A: 212). Il s’établit alors dans la grande plaine au milieu de trois vallées évoquée plus haut avec quelques nouveaux compagnons. Là, “começou de deitar da terra que trouxera do parayso terreal que cheirava mais e melhor de todallas cousas do mũdo” (A: 214). Le merveilleux chrétien intervient une dernière fois dans le récit qui est placé sous le signe de la transformation positive: E entom aquelles seus naturaaes fezerõ aly nuy nobres casas e muitas vinhas e pumares e muitas ortas e creciã aly as arvores ẽ hũũ año mais que em outro logar em cinco. E depois que as gentes souberõ que tam booa terra era aquella, vierõ aly pavoar e a muy poucos dias foy aly muy grande

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cidade e muy rryca e amaro era senhor desta cidade. E esta cidade avia nome trevilles por que era cercada das auguas que vinhã de aquelles valles. (A: 214)

Les portes du mystère divin s’ouvrent enfin à Amaro : (…) veeo a amaro door de morte (…). E entõ lhe sayo logo a alma da carne e foy-sse aaquel parayso dos angeos que he nos altos ceoos. (…) E depois de sua morte fez deos por el muitos millagres e assy acabou amaro o que desejava polla graça e esforço que em deos tomou. Deo gracias. (A: 214)

Un tel récit ne pouvait s’achever que sur des manifestations divines particulièrement éclatantes. Ainsi s’exauce le désir d’Amaro qui découvre enfin la Jérusalem céleste, “le paradis des anges” qu’un voile de mystère enveloppe. Mais, pour que le récit soit complet, ne manque-t-il pas un septième tableau, un septième lieu à découvrir et à décrire ? Si le chiffre trois est très présent dans le récit, le chiffre sept, “nombre des Cieux” (Chevalier & Gheerbrant, 1982: 861), en est absent. Le chiffre sept “symbolise l’achèvement du monde et la plénitude des temps. (…) il mesure le temps de l’histoire, le temps du pèlerinage terrestre de l’homme” (Idem, 862). D’après le livre de la Genèse, la terre paradisiaque fut créée en six jours; dans le Conto de Amaro, le paradis terrestre se situe sur la sixième île où aborde Amaro qui n’entrera pas tout de suite au paradis, au “‘septième ciel’ du bonheur éternel et de la vision béatifique” (Delumeau, 2002: 37). Il faudra donc attendre encore un peu, le récit laissant le lecteur, qui a suivi le voyage initiatique d’Amaro, au seuil du paradis terrestre. N’est-ce pas par l’attente qu’est mise à l’épreuve la foi qu’il faut savoir garder ? Mais cet autre monde dont le paradis terrestre n’offre qu’un pâle reflet peut-il être décrit ? Le moine Léomites garde espoir : “(…) nũca me ja mais veredes em este mũdo mas veremo-nos no outro ẽ no parayso se deos quiser” (A: 194), dit-il, confiant, à Amaro qui, dans le récit hagiographique qui nous occupe, incarne un héros moral et mystique qui a trouvé la voie de l’incorruptibilité et de la divinisation sur laquelle il s’engage résolument. En effet, l’homme nouveau chrétien se transforme radicalement par la piété et la pénitence. Il accède dès lors à la sagesse et à la connaissance au terme d’un voyage initiatique qui est fondamentalement un voyage intérieur. Il résiste aux tentations terrestres, se tourne exclusivement vers Dieu et la vie intérieure et incite ceux qui l’entourent à suivre son exemple. Il use de son libre arbitre avec discernement, devenant en quelque sorte un homme

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incorruptible, un homme nouveau. Sur la sixième île – l’île paradis – dont il faut retarder la vision pour augmenter l’intérêt romanesque, Amaro attend patiemment d’entrer au septième ciel, auprès de Dieu. Comme le rappelle Jean Delumeau (2002: 37), beaucoup de juifs et de chrétiens ont pensé pendant des siècles que le paradis terrestre “subsistait toujours comme lieu d’attente pour les justes avant la résurrection et le jugement dernier dont l’échéance était estimée proche”. L’utopie religieuse se concrétise donc lorsque les flots déversent les pieux voyageurs sur les rives de “l’île paradis”, préfiguration de l’arrivée tant désirée par le croyant sur le rivage du paradis céleste promis par Dieu. Parce qu’elle est hors du temps et de l’espace, l’île peut figurer le paradis, intemporel lui aussi : “L’île paradisiaque est, pour ainsi dire, hors du temps et de l’espace. Il y règne, comme à l’époque de l’âge d’or, un climat égal et doux. Fleurs et fruits y poussent en abondance (…).”, écrit Jean Delumeau (2002: 172). Ce dernier fait aussi observer que le jardin d’Éden a d’abord été dépeint comme un jardin clos (Idem, 161, 166, 168), d’où la pertinence du choix d’une île, lieu clos et refermé sur lui-même, pour y situer le paradis. Notons également que l’île lointaine, “symbole d’inconnu”, est représentée dans la cartographie du Moyen Âge “aux lisières du monde connu” (Meistersheim, 2001: 34). Dans le Conto de Amaro, l’île remplit la fonction première que lui assigne l’imaginaire insulaire où elle se présente volontiers comme “l’île paradis”, figure étudiée par Anne Meistersheim. L’île paradisiaque représente un monde parfait, un microcosme reflétant le macrocosme (Idem, 23 et suiv.) qui, dans la littérature à forte coloration mystique dont relève le Conto de Amaro, serait le paradis céleste, le monde divin; comme chacun sait, la pensée religieuse du Moyen Âge se nourrissait de platonisme chrétien (Payen, 1971: 255-268). Gilbert Durand (1992: 280-281) attire l’attention sur le symbolisme amniotique, intra-utérin de l’île qui traduirait un désir de retour à la mère  ; pour Gilles Deleuze (2002: 11-17), le rêve d’îles désertes exprimerait un désir de recommencement et de retour aux origines. Mais “l’île paradis” a son envers car l’île comme symbole est ambivalente, ainsi que le démontre Anne Meistersheim (2001: 71-79). En effet, l’île comme espace matriciel s’oppose à l’île comme lieu de dévoration qui apparaît dans le Conto de Amaro où l’île est présentée comme un lieu où l’on peut perdre ou sauver son âme, comme un lieu utopique ou anti-utopique.[18] Toutes ces configurations imaginaires ou fantasmatiques de l’île se retrouvent dans le Conto de Amaro. 18 “L’île est tout à la fois ouverture et fermeture, paradis et enfer, symbole de liberté et prison, prison concrète.” (Meistersheim, 2001: 72)

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Tratado das Ilhas Novas de Francisco de Sousa: les îles de Saint-Brendan et des Sept Cités A la Renaissance, on rêve plus que jamais d’îles; le Conto de Amaro a d’ailleurs été imprimé en 1513 (cf. Dias, 2013: 2), peu avant la parution de L’Utopie ou le traité de la meilleure forme de gouvernement de Thomas More. L’Histoire d’Amaro a été rééditée au XIXe siècle, ce qui ne nous surprendra pas vu qu’il s’agit d’un siècle où l’utopie est à l’honneur. C’est au XIXe siècle que le Traité des îles nouvelles de Francisco de Sousa, qui date de “l’an du Seigneur 1570” et qui présente une carte des îles décrites, connaît deux éditions: l’une en 1877, sortie des presses de la Typografia Minerva Insulana, de Ponta Delgada; l’autre en 1884, sortie des presses de la Typografia do Archivo dos Açores, de Ponta Delgada également.[19] Les deux éditions contiennent une préface et des notes de João Teixeira Soares de Sousa dont le nom n’est pas mentionné dans la première. La deuxième édition est une édition augmentée car elle contient des notes qui complètent celles de João Teixeira Soares de Sousa décédé en 1882. L’auteur de ces notes fait observer ceci: A publicação do Tractado das Ilhas Novas em 1877, apezar de pela maior parte, só conter noticias de ilhas phantasticas, ainda assim, provocou varios estudiosos a fazer indagações com o fim de determinar melhor os factos apontados por Francisco de Sousa, com relação á colonia portugueza estabelecida no Cabo Bretão no primeiro quartel do seculo XVI. (T: 23)

Au Moyen Âge, on situe dans l’Atlantique l’île de Saint-Brendan, l’île des Sept Cités, appelée aussi des Sept Evêques, ainsi que les Îles Fortunées. Voici ce qu’écrit Jean Delumeau (2002: 141-142) au sujet de la légende des “sept cités”: Il existe (…) un lien entre l’île de Saint-Brendan et la légende des “sept cités”. Il s’agit, cette fois, de sept évêques qui avaient fui l’Espagne morisque et navigué témérairement dans l’Atlantique. Ils y avaient finalement découvert une île où ils avaient bâti sept villes. Dans l’entourage d’Henri le Navigateur on accorda d’autant plus de crédit à ce récit qu’un capitaine de navire affirma au prince avoir effectivement découvert cette île (…), qui 19 Francisco de Sousa, Tratado das Ilhas Novas e descobrimento dellas e outras couzas, Ponte Delgada, Typografia do Archivo dos Açores, 1884. L’abréviation T servira à désigner cette édition augmentée dont seront tirées toutes nos citations; la carte des îles décrites, que l’on trouve au début de notre texte (fig. 1), n’est pas reproduite dans la version numérisée.

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devint, comme celle de Saint-Brendan et comme celle de Brazil, un pôle qui aimanta la curiosité des découvreurs. Au XVIe siècle, l’île fabuleuse des évêques se transforma en pays de “sept cités de Cibola” que les capitaines et aventuriers espagnols cherchèrent en vain (…). Les conquistadores crurent que la région des “sept cités” regorgeait d’or et autres richesses.

Le Tratado das Ilhas Novas de Francisco de Sousa est un texte marqué encore par le merveilleux bien que son titre traduise le scientisme de la Renaissance, époque où une vision scientifique du monde se fait jour et où des aventuriers cherchent des îles imaginaires, l’utopie servant de moteur aux Grandes Découvertes que l’on doit également à des progrès technico-scientifiques, bien évidemment. Dans le cas lusitanien, ce rêve d’îles sera alimenté aussi par le sébastianisme, comme l’observe le deuxième annotateur du Tratado das Ilhas Novas dans une note intitulée “Ilhas phantasticas”[20]: Na ilha da Madeira, como nos Açores, é frequente o phenomeno meteorologico a que se dá o nome de miragem, ou reflexão de imagens terrestes [sic] nas nuvens. A profunda ignorancia das leis da optica, originou nos povos insulanos uma viva e não interrompida crença em ilhas encantadas e encobertas, que vistas, de longe, por numerosas testemunhas, se desvaneciam completamente quando anciosos as buscavam. As lendas das ilhas das Sete-Cidades, de S. Brandão e da Antillia conservaram-se até os tempos modernos alimentadas pela crença supersticiosa da existencia do infeliz D. Sebastião, em uma das taes ilhas encobertas. Nos Archivos Publicos restam ainda documentos que provam os auxilios prestados pela fazenda real, para a busca de suppostas ilhas (…). (T: 36)

Le Tratado das Ilhas Novas n’est pas un texte de fiction. C’est un opuscule qui se veut scientifique, véridique au point d’inclure une carte des îles décrites par Francisco de Souza, et qui affiche ses prétentions scientifiques dès le titre, lequel fait penser aussitôt à un traité de géographie. Mais le mot “tratado” ne doit pas faire illusion car l’auteur, qui invoque Dieu, mêle dans son texte légendes et faits réels. Francisco de Sousa est “feitor d’ElRei Nosso Senhor na capitania da cidade do Funchal da ilha da Madeira e natural da dita ilha”, comme il se présente lui-même dans la page de titre. Ainsi que le rappelle Jean Delumeau (2002: 138), les “Portugais s’installèrent à Madère entre 1418 et 1430, aux Açores (précédemment explorées par des Italiens au 20 Cf. aussi le début de la préface de João Teixeira Soares de Sousa.

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XIVe siècle) entre 1432 et 1457”; l’archipel des Açores est également mentionné dans le Tratado das Ilhas Novas. L’esprit scientifique anime Francisco de Sousa qui s’appuie sur des informations, parfois indirectes (T: 14) ou floues ainsi que le suggère le verbe “presumesse” (T: 11), sur des cartes comme celle qu’il annexe à son opuscule et sur sa propre expérience : “p’ra credito das informações que tenho fui sobre ella, e tem grande roda com muito baixio, a lugares grande musgo do mar, onde vi muitas diversidades de peixe, e a sondei por minha mão, e fui na Barca de Manoel Bayão, que Deus tem (…)” (T: 12). On se souvient de l’expression qu’utilise Luís de Camões dans Os Lusíadas et qui est révélatrice de l’esprit scientifique qui règne au XVIe siècle: “Vi, claramente visto” (V, 18) ; d’après ce dernier, l’honnête homme de la Renaissance se distingue par son “honesto estudo / Com longa experiência misturado” (X, 154). Voici comment Francisco de Sousa décrit géographiquement l’île de Saint-Brendan, située sur la carte sans fioritures qui agrémente l’ouvrage et qui se donne à voir comme un document objectif et scientifique, alors que la cartographie de l’époque est volontiers illustrée[21], comme celle du Moyen Âge: “No merediano da Ilha do Porto Santo, pola banda do norte, em 35 está uma Ilha que se chama São Brandão, tão larga como comprida, redonda, que tem uma legoa e meia para duas, e arriba della em 35 graos e dous terços está outra ilha que se chama Sancta Clara (…)” (T: 12). Francisco de Sousa ne nous dit rien d’autre sur cette île au nom mythique dont nous retiendrons la parfaite rotondité (fig. 1). A l’ouest des Açores se trouvent des îles noyées dans les brumes océanes où les Portugais ne vont jamais, ce qui nimbe ces lieux de mystère. Poursuivant son objectif ‘scientifique’, Francisco de Sousa nous livre des informations géographiques et historiques sur ces îles lointaines et tout particulièrement sur l’île des Sept Cités[22] que certains navigateurs cherchaient toujours au moment où le Tratado das Ilhas Novas voyait le jour. La description de cette île nouvelle, qui reste pourtant à découvrir véritablement, se veut tout d’abord scientifique: A oeste das Ilhas dos Açores está uma Ilhêta que se chama a Ilha da Graça[23], e desta Ilhêta indo a oeste dusentas legoas e outras dusentas da 21 Cf. Videira (2013: 17-48) et aussi les cartes du Moyen Âge et de la Renaissance qui figurent dans l’ouvrage de Jean Delumeau (2002) abondamment cité dans le présent travail. 22 Sur cette île imaginaire, entre autres, cf. Carvalho (1993: 171-187). 23 D’après le deuxième annotateur du Tratado das Ilhas Novas, “parece estar deturpado este nome, devendo talvez ser a I. da Garça” (T: 37).

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Ilha das onze mil virgens em altura de 39, 40, e 41 gráos, pouco mais ou menos está uma grande Ilha que se chama São Francisco, que tem melhor de quarenta legoas de comprido de Norte–Sul, e de largo vinte e tantas, com grandes Bahias, Ribeiras d’agoas e arvoredos, segundo as informações que tenho d’ella e por via de França tive as mais das informações (…)  ; e estas ilhas estão em partes donde os Portuguezes não navegam se não fôr algum esgarrado[24], de que tambem ouvi informação, porque os navegantes se vigiam disso muito pelos rumos porque navegam de não darem guinadas  ; quanto mais irem por rumos fóra de seus caminhos donde estam[25], e principalmente Ilhas que estam cobertas de nevoas grossas por causa dos arvoredos e humidades do viço d’elles e vontade de Nosso Senhor. (T: 12-13)

Nous retiendrons de ce passage l’explication mi-scientifique, mi-religieuse concernant les brumes qui enveloppent ces îles; si nous ne les voyons pas, ce n’est pas parce qu’elles sont imaginaires mais parce que le voile brumeux qui les entoure les dérobe à notre vue. Néanmoins, le traité de Francisco de Sousa fait vite place à la légende, ouvrant les vannes de l’imaginaire insulaire. En effet, l’auteur offre cette version de La Légende du roi Rodrigue[26] qui est ainsi mise en parallèle avec la découverte de l’île des Sept Cités: No tempo que se perderam as Espanhas, que reinava Dom Rodrigo, que vai para quatro centos anos que com as sêcas se despovoaram as gentes, e pereceram com a grande esterilidade e da entrada dos Mouros (…), por a qual cauza do Porto de Portugal os mareantes e homens Fidalgos tendo noticia que para o Ponente havia terra que até então não fora descoberta (…) determinarão de se embarcarem em sete náos com toda sua familia (…) confiados na misericordia de Nosso Senhor (…) forão por barla-vento das Ilhas dos Açores, que inda não eram descobertas, e forão aportar na Ilha de S. Francisco (…) dizem as informações que tenho (…); e eu por rasão da navegação acho ser sua derrota assim (…). (T: 13)

24 Si l’on s’en tient au Robert historique de la langue française, ce terme, mis en italique dans un passage où l’auteur se réfère à la France, dérive vraisemblablement du verbe français “esgarer”, qui s’écrit aujourd’hui “égarer” et qui a donné lieu en portugais à “esgarrar”, ce verbe s’appliquant plutôt aux bateaux. 25 On lit “fóra de seus caminhos donde estas ilhas estam” dans l’édition de 1877. 26 “Elle a exercé sa fascination sur une grande partie de la littérature européenne jusqu’au XIXe siècle. // La légende de Rodrigue est le résultat d’une création de sources mozarabes, arabes et chrétiennes du Nord qui, tout au long des siècles, ont convergé pour son élaboration.” (Nunes, 2008: 120 ; on trouvera, p. 121, des références bibliographiques sur cette légende).

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A une époque où les famines faisaient rage, la nécessité économique de trouver de nouvelles terres arables par-delà les mers est un fait historique connu. Mais l’auteur, qui mêle faits réels et faits imaginaires, verse rapidement dans le pur imaginaire, le récit mythique lui fournissant un cadre explicatif, ce qui relève d’une démarche non scientifique. Ainsi, Francisco de Sousa recourt à la légende de Rodrigue pour accréditer l’existence d’une île, vraisemblable à un moment où l’on en découvrait beaucoup, où des chrétiens “de nação Portugueza” se seraient installés à la suite des invasions musulmanes responsables de la chute du royaume wisigothique[27] du roi Rodrigue, qui aurait eu lieu huit siècles plus tôt et non pas quatre cents ou trois cents ans, comme on peut le lire sur le frontispice du Tratado das Ilhas Novas: “E assym sobre a gente de nação Portugueza, que está em huma grande Ilha, que n’ella forão ter no tempo da perdição das Espanhas, que ha trezentos e tantos annos, em que reinava ElRei Dom Rodrigo”. D’entrée de jeu, l’auteur aiguise la curiosité du lecteur en évoquant la légende de Rodrigue et en annonçant des informations sur l’existence d’une communauté portugaise vivant sur une île depuis la conquête de la péninsule ibérique par les Maures. Dans la version que Francisco de Sousa, qui ne révèle pas ses sources, donne de cette légende, les sept évêques catholiques fuyant avec leurs ouailles la péninsule ibérique devant les invasions musulmanes, pour s’installer sur une île où chacun sera à la tête d’une ville, sont remplacés par sept capitaines portugais qui s’embarquent, emmenant avec eux “mareantes e homens Fidalgos”, “com toda sua familia”: (…) queira Nosso Senhor permittir se descubra esta Ilha como atraz fica dito onde ella demora ; e por irem em sete náos disem as informações que cada capitão com sua náo, tanto que aportarão, se repartirão cada um em sua parte da Ilha, e os antigos lhe chamão a esta Ilha as sete Cidades ; mas outros por via de França lhe chamão a Ilha de S. Francisco, o qual, por quem é, queira rogar a Nosso Senhor dêmos com ella para valermos á salvação da gente que n’ella está, pois procede de Christãos : e achei mais que é terra de boa abitação por ser grande e de muito proveito ; e por rasão da virtude dos climas acho está situada no 5.° clima, que dado que seja mais frio que as Ilhas dos Açores não o é tanto como França, Inglaterra, porque é Ilha do mar a que o mar aquenta, e mais que nas faces do sul é habitavel os dois terços d’ella debaixo de boas zonas. (T: 13-14) 27 “A monarquia dos visigodos, que havia unificado a península, é destruída pela invasão islâmica em 711, que a domina quase por completo.” (Sobral, 2012: 26).

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L’auteur du Tratado das Ilhas Novas se perd en conjectures au sujet de la localisation de cette île mythique qui, d’après lui, jouit d’un climat agréable, ce qui la rend plus attractive. Le désir pieux de retrouver les chrétiens oubliés sur l’île des Sept Cités qui s’évanouit chaque fois que l’on s’en approche anime Francisco de Sousa qui veut les délivrer de cette île-prison pour les réintégrer dans la communauté humaine et, surtout, chrétienne. Il voudrait aussi aller à la rencontre des Portugais qui ont fui Terre-Neuve, l’île de la morue, “por acharem a terra muito fria” (T: 14); ces derniers “correram para a costa de Leste Oeste té darem na de Nordeste–Sudoeste, e ahi habitaram, e por se lhe perderem os Navios não houve mais noticia d’elles” (T: 14). Il forme alors un vœu: Nosso Senhor queira por sua misericórdia abrir caminho como lhe vá socorro, e minha tenção é hir á dita costa de caminho quando fôr á Ilha de S. Francisco, que tudo se póde fazer d’uma viagem. Porque ao tempo que os antigos dão informação d’estas ilhas a navegação ainda não era apurada como agora e, deve-se de se buscar nas ditas partes, ou por mais um gráo ao Norte ou ao Sul (…), resolvendo-se, como os mariantes melhor o saberão fazer, se Nosso Senhor não for servido que eu o faça, porque alem de saber a navegação tenho outras regras das sciencias Mathematicas e bom engenho para todo o necessario ao dito descobrimento ; e Nosso Senhor ordene o que fôr mais ao seu Santo serviço. (T: 14-15)

En s’aventurant par-delà la mer océane sur les traces des Portugais de Terre-Neuve et fort de ses connaissances ‘scientifiques’, Francisco de Sousa débarquerait, si telle était la volonté de Dieu, sur les rivages enchanteurs de l’île des Sept Cités. Qui pourrait en douter?

Conclusion : la permanence de l’éden insulaire Ainsi, l’homme de la Renaissance, qui aime à lire des récits de voyage, est plus que jamais à la recherche d’îles nouvelles et paradisiaques; l’épisode de l’île des Amours (cf. Pascal, 1998) qui agrémente Les Lusiades de Luís de Camões répond d’ailleurs à ce désir d’îles. L’imaginaire insulaire est si puissant qu’il se met en branle chaque fois qu’une terre nouvelle est en vue, aussi le Brésil est-il décrit au moment de sa découverte comme une île. C’est que les Grandes Découvertes réactivent l’imaginaire insulaire à un moment où l’utopie semble devenir réalité, la science aidant. C’est ainsi qu’à

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la Renaissance, époque où la pensée scientifique se construit peu à peu, les légendes du Moyen Âge agitent les esprits et se retrouvent même, par contamination, dans des textes sérieux à visée scientifique, didactique, comme celui de Francisco de Sousa. La science moderne n’est donc pas encore née mais la pensée scientifique change, bien que subsiste une vision du monde ancienne. Le mythe des Îles Fortunées n’a cessé de travailler l’imaginaire européen où l’éden insulaire occupe depuis l’Antiquité une place importante. Il a néanmoins subi des métamorphoses au fil des siècles, la légende de l’île de Saint-Brendan dont s’inspire le Conto de Amaro ou de l’île des Sept Cités ou encore de l’île du Brasil découlant du mythe atlantidien dans lequel l’archipel des Açores joue un rôle non négligeable (cf. Foucrier, 2004, et aussi Guillaud, 2003: 27-31). Ainsi que le suggère son titre alléchant, le but du Tratado das Ilhas Novas est autant de faire rêver le lecteur que d’entretenir l’esprit des découvertes et des sciences. Malgré son titre qui souligne sa dimension didactique, le Tratado das Ilhas Novas, où l’on trouve une carte assez vague relevant plus de la fantaisie géographique que de la cartographie, alimente la confusion entre science et imaginaire, entre fiction et réalité. A l’évidence, l’homme de la Renaissance est l’héritier de la culture et de l’imaginaire du Moyen Âge. Au temps des grandes découvertes du XVIe siècle, la représentation géographique du monde oscille donc encore entre le mythe et la réalité. Le Tratado das Ilhas Novas présente surtout l’intérêt d’établir une relation entre la légende des Sept Cités et la légende du roi Rodrigue qui lui sert même de cadre explicatif et d’offrir une variante de ces deux récits mythiques dont il propose, du reste, une lecture bien portugaise, nationaliste d’une certaine façon puisqu’il n’y est fait référence qu’à des Lusitaniens installés sur l’île des Sept Cités après avoir fui la péninsule ibérique occupée par les Arabes.

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[recebido em 16 de janeiro de 2014 e aceite para publicação em 20 de junho de 2014]

FIGURAS HEROICAS NO HORTO DO ESPOSO HEROIC CHARACTERS IN HORTO DO ESPOSO Elisa Nunes Esteves* [email protected]

Abundam no Horto do Esposo pequenas histórias, de natureza exemplar, protagonizadas por personagens de perfil heroico. Tendo em conta a natureza da obra e a vocação eminentemente didática da sua escrita, faz sentido que o discurso doutrinário se apoie em argumentos credíveis e em exemplos prestigiados. Daí o recurso muito frequente a pequenas narrativas marcadas pela vivacidade das aventuras e pela excelência dos seus heróis. Muitos deles são reis, têm por isso uma configuração específica dentro do vasto mundo dos heróis: o sopro épico que os anima e os traços cavaleirescos que os distinguem combinam-se com valores e qualidades espirituais superiores. Propomos apresentar um breve estudo sobre a especificidade das figuras heroicas no Horto e a morfologia das suas aventuras, recordando o prosador anónimo cisterciense do final do séc. XIV, que se deixou tomar pelo “prazer de narrar” (Rossi, 1979). Palavras-Chave: Horto do Esposo, heróis, exempla, aventura In Horto do Esposo there is an abundance of small stories of exemplary nature starring characters with a heroic profile. Given the nature of the work and the eminently didactic vocation of its writing, it is only logical that the doctrinal discourse rests on credible arguments and prestigious examples. Thus the frequent use of short narratives marked by the liveliness of the adventures and the excellence of its heroes. Many of them are kings, with a specific configuration in the vast world of heroes: they combine epic values with spiritual qualities. We propose to present *

Departamento de Linguística e Literaturas, Universidade de Évora / Centro de Estudos em Letras (CEL UTAD-UÉ), Portugal. Com base na comunicação apresentada no Colóquio Internacional Figuras do herói. Literatura, Cinema, Banda Desenhada. Universidade do Minho, 26 a 28 de abril de 2012.

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a brief study on the specifics of the heroic figures in Horto and the morphology of their adventures, remembering the anonymous Cistercian prose writer of the end of the 14th century, who was taken by “the pleasure of narrating” (Rossi, 1979). Keywords: Horto do Esposo, heroes, exempla, adventure

E por em maior prol trage ao homem o nome de temeroso como a lebre ca o nome de ardido e bravo come leon. Horto do Esposo

A obra que me propus estudar tem uma orientação doutrinária claramente afastada de heroísmos, feitos de armas, guerras, preferindo a humildade à coragem destemperada e ao atrevimento, o que não augura, aparentemente, grandes probabilidades de sucesso no tratamento do tema anunciado no título.[1] Salva-nos nesta demanda, contudo, a ocorrência pontual de exempla onde se concede a oportunidade a alguns heróis para mostrarem as suas façanhas. Terá sido talvez uma bondosa cedência do autor aos desejos da primeira destinatária da obra, que lhe pedira explicitamente “ũu livro dos fectos antigos e das façanhas dos nobres barões” (Horto: 3) que lhe permitisse uma leitura recreativa e prazenteira nos dias de descanso. Avisa, contudo, o cisterciense que os assuntos seculares e profanos não conduzem ao amor de Deus e por isso o livro falará sobretudo “das façãnhas e dos exemplos dos sanctos homĕes” (Idem, 5). O Horto do Esposo é agora uma obra de fácil acesso depois da edição crítica de Irene Freire Nunes, coordenada pelo Prof. Helder Godinho e publicada no final de 2007. Antes, tínhamos que recorrer à edição de Bertil Maler, publicada no Rio de Janeiro em 1956. Ambas se basearam em duas versões integrais do texto (nenhuma é a original), dois manuscritos alcobacenses da Biblioteca Nacional de Lisboa, um redigido na primeira metade do séc. XV e o outro nos finais deste mesmo século. No lapso de tempo que medeia entre as duas iniciativas de trazer a público esta importantíssima obra do nosso património cultural e literário da Idade Média está a descoberta, na Torre do Tombo, de fragmentos desconhecidos da obra, em pergaminho, provenientes do Mosteiro de Santa Maria de Lorvão e que poderão sugerir a existência de um terceiro manuscrito. Foram descobertos por Arthur Askins, em Junho de 1997, Harvey 1 Faremos todas as citações do Horto do Esposo a partir da edição crítica de 2007 e usaremos o título abreviado da obra como referência.

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Sharrer e Aida Fernanda Dias, em Julho de 1998. Estes fragmentos foram publicados em 2002, em transcrição e reprodução fotográfica (Askins & Dias & Sharrer, 2002). Nada se apurou sobre a identidade do autor do Horto para lá da tese defendida por Mário Martins, já em 1948, de que se trata de um texto escrito originalmente em língua portuguesa (e não de uma tradução) por um monge da abadia cisterciense de Alcobaça. A tese foi corroborada por Bertil Maler, que adiantou ainda a convicção de que, tendo em conta a identificação das fontes em que o mesmo se baseou, estamos perante um autor culto e que tinha por certo ao seu dispor uma biblioteca bastante rica e variada. Uma referência única na obra a factos políticos contemporâneos, nomeadamente o período conturbado que se viveu em Portugal depois da morte de D. Fernando, levou também Mário Martins a apontar o período entre 1383 e as primeiras décadas do séc. XV como o que corresponde à sua composição. Estaria certamente concluído antes de 1438, data da morte de D. Duarte, uma vez que já consta do inventário da sua biblioteca. Os estudos sobre o Horto insistem sobre a receção favorável que a obra terá tido no seu tempo, a avaliar pelas informações, não muito abundantes é certo, sobre a existência de códices em instituições religiosas mas também em bibliotecas particulares. José Mattoso identificou a aquisição de um exemplar do Horto do Esposo pelo mosteiro de Bouro entre 1408 e 1437 (Mattoso, 2002: 289-290); a descoberta dos fragmentos da Torre do Tombo coloca a obra também no mosteiro de Lorvão. Temos alguns dados seguros sobre o conhecimento da obra por parte de duas ilustres figuras da elite intelectual portuguesa da primeira metade do séc. XV, o rei D. Duarte e o seu sobrinho, o Condestável D. Pedro (Maler, 1964: 24; Fonseca, 1982: 297, Mattoso, ibidem). Sobre as razões desta difusão, tem sido enfatizado sobretudo o seu caráter didático e a sua natureza doutrinária orientada para um “público simples” (Pereira, 2007: LVII). É seguramente verdade que a escrita no Horto tem uma vocação eminentemente didática e que o discurso doutrinário se apoia em argumentos credíveis e em histórias de natureza exemplar colocados ao serviço de uma explícita intenção edificante. A obra parece ter sido apreciada, contudo, muito para além dessa vertente de vulgarização e de simplificação hermenêutica das fontes, tal como o seu autor prevê no Prólogo, afirmando que o livro servirá a destinatários de qualquer condição, incluindo sábios e estudiosos. Adão da Fonseca, no seu estudo sobre o Condestável D. Pedro, aponta o apreço que obras como o Horto e outras relacionadas com

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o mosteiro de Alcobaça mereceram na corte portuguesa até ao tempo de D. Afonso V, pela sua temática, valores e espiritualidade. Também se lamenta, de forma recorrente, que o monge tenha ignorado a realidade que o circundava, “um homem que mostra na sua obra pouquíssimo interesse pela sua época e que por isso não nos ensina nada sobre ela. (…) Só por acaso deixa escapar – felizmente para nós – a alusão que nos permite datar o livro.” (Maler, 1964: 23). Em primeiro lugar, o Horto não está concebido como uma crónica, nem o seu autor parece ser um homem que viva próximo de ambientes laicos, dominados pelos sucessos imediatos da política e da sociedade. Devemos reconhecer, como Gouveia Fernandes, que o autor do Horto viveu “refugiado no mosteiro, mas nem por isso [deixou] de observar atentamente a agitação do século” (Fernandes, 2001: 100), referindo-se em concreto ao acontecimento que parece ter tido maiores reflexos e implicações no seu tempo, a crise gerada pela morte do rei D. Fernando. A ênfase nessa passagem do Horto tem deixado na sombra e no esquecimento a referência que, no mesmo contexto, se faz a acontecimentos da história de Castela (Livro IV, cap. XLIII).[2] Não podemos deixar de notar como estes comentários, ainda que breves, são reveladores dos horizontes alargados ao âmbito peninsular através do olhar abrangente da realidade que une, sob o signo da instabilidade e da incerteza, toda a Península Ibérica naquele período, para onde se transferiram também as hostilidades entre a Inglaterra e a França no âmbito da Guerra dos Cem Anos. Embora não seja esse o seu foco principal, o monge cisterciense não está alheado do seu tempo, um tempo que lhe inspira uma escrita que nos seus propósitos pedagógicos se propõe demonstrar como tudo neste mundo é efémero e incerto. Agora, como no passado, não se escapa ao capricho da Fortuna e os mais trágicos exemplos são os daqueles cuja vida se reparte entre os extremos: a mudança do mais alto estado para a condição mais indigna. Daí que recorra com frequência a figuras exemplares marcadas pela sua condição social, reis, imperadores, príncipes, marcados pela arbitrariedade da Fortuna: “Por em Boecio, falando do estado dos rex que parece mais firme, diz assi: Cheos som os tempos antigos e os tempos d’agora de enxemplos de muitos rex que a sua bem aventurança foi mudada em grande mezquindade.“ (Horto: 236).[3] 2 Cremos que se refere às disputas pelo trono que opuseram dois irmãos e a morte trágica, em 1369, de Pedro I às mãos de Enrique de Trastâmara, com graves consequências sociais e políticas nas décadas seguintes. 3 A relevância deste tema no Horto foi sublinhada por Paulo Alexandre Pereira no estudo introdutório da última edição crítica da obra (cf. Pereira, 2007: LXXI-LXXII).

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São mais eficazes do ponto de vista persuasivo os exempla protagonizados por figuras históricas, mas o autor não despreza outras personagens cuja força retórica provém da reconhecida qualidade cultural associada à sua criação. Refiro-me em particular à recuperação de matérias literárias da Antiguidade clássica, como é o caso de Ulisses e de Hécuba. Sobre esta heroína da lenda troiana recorda-se que foi por muito tempo rainha de Troia e caiu no cativeiro e na servidão depois de chegar à velhice (Idem, 174). Da Antiguidade chegam também os exemplos históricos, mais fortes em credibilidade, em particular os ligados à história de Roma: Viriato, Vespasiano, Cipião, Aníbal, Trajano, Júlio César. E também Alexandre Magno, talvez a figura heroica mais importante da obra, aqui retratada sobretudo a partir dos confrontos com os reis orientais Dario e Poro, dos quais sai sempre vencedor, mesmo quando os combates são desproporcionados. É nesses casos que a sua figura se reveste de expressivos contornos épicos, glorificando-o como guerreiro inigualável (Horto: 174). Mas as virtudes de Alexandre excedem esta sua faceta militar. Assim, vemo-lo em combate singular com o rei Poro, que vence, ferindo-o e derrubando-o do cavalo. Mas poupa-lhe a vida por generosidade, dando assim testemunho da sábia educação e dos valores que lhe foram incutidos pelo seu mestre, Aristóteles (Idem, 63). Dario morreu depois de um combate com Alexandre, vítima da traição dos seus servos. Alexandre vingou e chorou a sua morte, prestou-lhe as últimas homenagens, ainda que fosse seu inimigo, mostrando “grande bondade de justiça” (Ibidem). A sua qualidade como herói ultrapassa a virilidade guerreira, está também na sua formação espiritual. O perfil heroico de Alexandre traça-se ainda a partir da sua relação com o ouro e com as riquezas de um modo geral. Tem a noção clara de que a riqueza pode ser fatal para os guerreiros, entorpecendo a sua energia, atrofiando a sua força, por isso diz aos soldados: “Enquanto vos nom haviades riquezas nom havia gente que podesse empeecer-nos mas, despois que fostes carregados de ouro e de prata, fostes fectos preguiçosos e deleixados” (Idem, 131). Mas, por outro lado, não abdica ele próprio das riquezas conquistadas. A prosperidade económica é incompatível com a função guerreira, mas não com a função de soberania. É assim que encontramos referências aos tesouros que rei Poro distribui generosamente e que ele aceita: “E por em mostrou-lhe rei Poro todos seus tesouros, que tiinha escondidos e fez rico Alexandre e seus cavaleiros daqueles tesouros” (Idem, 63). O tesouro está sempre associado à figura do rei, como nos diz Duby:

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Toujours le palais des souverains avait abrité un trésor, une collection d’objects précieux, brillants, étranges, que l’on disposait aux grandes fêtes autour de la personne du lieutenant de Dieu, comme une lisière d’étincellement entre lui et le reste des hommes (…). À ces bijoux s’ajoutaient des livres puisque la première des vertus royales était la sagesse, la faculté de percer les mystères d’une Écriture. (Duby, 1979: 49-50)

O rei precisa, assim, de se rodear de um tesouro que evidencie o seu poder e que lhe permita ser generoso. Dele podem fazer parte os livros mas também as mulheres, eventualmente roubadas ou conquistadas.[4] No Horto uma das vitórias de Alexandre sobre Dario arrasta para o cativeiro a mãe e a mulher do rei persa, que daria por elas metade do seu reino, uma troca que Alexandre nunca aceitou (Horto: 175). A esta face luminosa do guerreiro forte e justo junta-se em Alexandre a do soberano. Um rei, normalmente, não ascende à realeza antes de ser armado cavaleiro, isto é, antes de atingir o grau supremo na ordem da cavalaria. Mas esses não são os únicos valores para se atingir a realeza. A inteligência, a sabedoria, a indulgência e a segurança, a generosidade são, entre outros, os atributos de um soberano. A espada cede lugar a outros instrumentos próprios desta função: o cetro, o trono, a coroa, o manto. O poder do rei não é apenas militar, é o de regulador da Ordem. Alexandre vê o seu poder estender-se a todo o mundo e no Horto ele surge-nos em toda a majestade, exercendo o seu poder a partir do trono, elevado e central: Outrossi el-rei Alexandre o Grande veeo aa cidade de Babilonia. E estando ali, veerom-lhe messegeiros das provincias de todo o mundo. Ca de Cartago e de Africa veerom a ele messegeiros pera lhe obedecerem e de Espanha e de França e de Cicilia e das partes de Italia. Tam grande foi o temor que houverom os poboos do Occidente de Alexandre, que andava no Oriente, que de todo o mundo lhe mandavam subjeiçom e obediencia e de tam estranhas e tam alongadas terras que adur era de creer que podessem chegar novas de seus fectos. Estando Alexandre em esta tam grande gloria deste mundo, perdeo todo mui tostemente, ca seus servidores lhe derom ali peçonha, com que morreo. (Horto: 109)

E aí temos a ilustração da tragédia a que nem os mais poderosos escapam: Alexandre, que atingiu o auge do poder e da glória, morreu traído pelos seus, como Dario e Viriato. 4 Abordámos a questão da importância do ouro, dos livros e das mulheres na composição da imagem do rei no pequeno estudo Da imagem do Rei no Orto do Esposo (Nunes, 1987).

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Este é um eixo fundamental na definição do percurso vital das personagens do Horto. Assume particular importância a intervenção da Fortuna no caso daquelas cuja queda é mais imprevisível e inesperada. O tema é tão relevante que no seu esforço para atingir a maior eficácia persuasiva o autor recorre a imagens diferentes para ilustrar o conceito. Dessas, destacamos três que nos pareceram as mais sugestivas. Em primeiro lugar, a inevitável comparação com a roda para expressar os vaivéns da vida e da sorte: E assi podedes entender como a boa andança do mundo é vãa e mudadiça. Ca assi como aquele que see sobre a roda aas vezes cae em baixo e aas vezes é posto em alto, segundo se move a roda, bem assi faz a fortuna do mundo: aas vezes abaixa os grandes e aas vezes exalça os baixos. (Idem, 124)

Tradicionalmente a Fortuna é comparada à roda, mas a imagem pode ser mais completa, com a representação também de uma mulher. O monge cisterciense não ignoraria essa tradição e também ele nos apresenta a associação da instabilidade da Fortuna ao feminino, apoiando-se numa fonte que só à primeira vista pode parecer inesperada neste contexto, o poeta Ovídio: Ũu grande poeta que chamam Ouvidio, em ũu livro dos Enganos da Fortuna, figura e pinta a fortuna em esta guisa: ũa fegura de molher que tem na mão seestra duas flores, scilicet, ũa rosa seca, porque a fortuna da boa andança deste mundo tostemente trespassa. Outrossi tiinha em na mão ũa flor de lilio a que caíam as folhas. (Idem, 325)

É uma bela figuração, uma mulher, não com uma roda, mas segurando duas flores, ambas em declínio. A imagem marca de modo redundante e portanto reforçado, a inexorável mudança a que estamos sujeitos, entre a prosperidade e a decadência. Tudo neste quadro sugere fragilidade, beleza efémera, promessa de dissolução. Mas o nosso autor encontra ainda um outro símile, uma terceira imagem para mostrar a instabilidade da Ventura, que aqui substitui a Fortuna: Nom queiras confiar em na paz e em no assessego da ventura, ca o mar em ũu ponto se avolve, e em ũu dia meesmo, em que os navios andarom assessegados e com prazer, em esse mesmo dia se alagarom. Ex que fremosa comparaçom do mar e da ventura que faz perder o assessego e a paz do coraçom e faz alagar a primeira alegria. (Idem, 197)

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O contexto em que se insere a comparação sugere que a mesma se atribui a Séneca, mas o que aqui nos parece mais relevante é percebermos que estamos perante um escritor, alguém que conhece bem o valor das palavras e para quem estas não têm um valor meramente instrumental. O espanto do sujeito do discurso perante a beleza desta comparação dá bem a medida do seu apurado sentido estético, da sua vocação literária, como hoje diríamos. As aventuras heroicas não merecem um grande desenvolvimento narrativo, com algumas exceções, porque, como dissemos no início, a obra faz uma apologia da cavalaria do céu em detrimento da cavalaria secular, e assim o discurso é contido nas façanhas e mais aberto na exploração das virtudes e valores espirituais. Gostaríamos de terminar com a referência a um episódio que ganhou maior visibilidade que qualquer das outras pequenas narrativa do Horto depois de ter sido fonte de inspiração de Jorge de Sena para a sua novela O Físico Prodigioso (1979). Luciano Rossi chamou-lhe novela arturiana porque o incipit nos remete para um prometedor relato de aventuras: um jovem que encontra e consola três donzelas chorosas às portas de um castelo habitado apenas por mulheres. Na verdade, o protagonista desta narrativa – “filho de ũu rei”, “fremoso”, “grande fisico” e “virgem” (Horto: 40) – assume o papel de herói libertador, mas os meios a que recorre não são os dos cavaleiros andantes. Oferece o seu sangue casto, de virtudes terapêuticas, para curar a senhora do castelo e com o dom da palavra resgata da cova escura os cavaleiros mortos, devolvendo o equilíbrio e a ordem àquela comunidade. Este herói parece ser um dos que têm condições para inverter a dinâmica da Fortuna, restaurando o bem perdido. Ao serem devolvidos à vida, os cavaleiros do castelo imploram ao mancebo: “Vem trigosamente e dá a nós as doas que perdemos em outro tempo.” (Ibidem). O anónimo caminheiro, filho de rei, casto e formoso, facilmente se associa à figura de Cristo, pela dimensão redentora do sangue, pelo poder milagroso da Palavra. O Horto insiste nesta mensagem: só nos libertamos da lei inconstante da Fortuna pelo despojamento dos bens materiais, pela conversão e pela aspiração à pureza espiritual. A vasta galeria de personagens do Horto e principalmente as que têm perfil heroico, porque foram poderosas, realizaram feitos extraordinários, ganharam um lugar na História, são apresentadas em função do contraste entre a fase luminosa da prosperidade e o negro declínio e servem precisamente como demonstração desta doutrina. Dir-se-á que esta temática não apresenta nada de novo, nem de original. Pelo contrário, ela tem, de facto, uma longa tradição literária, filosófica, doutrinal, que vem da Antiguidade clássica e domina toda a Idade Média.

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Mas isso não faz do Horto um produto cultural tardio ou anacrónico, porque o tema da vida terrena sujeita à instável Fortuna e a libertação pela Divina Providência (e pela Fama, em obras de cariz profano) estará presente ainda ao longo de todo o séc. XV na literatura ibérica, em obras de poetas e intelectuais portugueses, como é o caso do Condestável D. Pedro na Tragedia de la Insigne Reyna doña Isabel (1457) e nas Coplas del menosprecio e contempto de las cosas fermosas del mundo (1453-1454) e ainda de castelhanos como Juan de Mena em Laberinto de Fortuna, mais conhecido como Las Trescientas (1444), e Jorge Manrique com as belíssimas Coplas por la muerte de su padre (1476), que o haviam de imortalizar, e onde avulta a imagem da Fortuna: [XI] Los estados e riqueza, que nos dexan a deshora quien lo duda? non les pidamos firmeza, pues que son d’una señora; que se muda, que bienes son de Fortuna que revuelven con su rueda presurosa, la cual non puede ser una ni estar estable ni queda en una cosa. (Manrique, 2008: 153-154)

E terminamos assim esta nossa breve reflexão sobre o percurso de algumas figuras exemplares do Horto do Esposo, sublinhando o que nos parece ser mais relevante: a convicção de que o seu autor compôs o livro em perfeita harmonia e consonância com as tendências culturais e filosóficas do seu tempo, recuperando tópicos com uma vasta tradição anterior, como são os que aqui vimos abordados a propósito das vidas destes heróis – a fugacidade das coisas terrenas, o desprezo do mundo, o caráter exemplar das ‘caídas’ de grandes personagens – que estarão no centro de obras da literatura portuguesa e castelhana ao longo do século XV.

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Referências Askins, L-F. Arthur; Dias, Aida Fernanda; Sharrer, Harvey L. (2002), Fragmentos de Textos Medievais Portugueses da Torre do Tombo, Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Duby, Georges (1979), Saint Bernard. L’Art Cistercien, Paris, Flammarion. Fernandes, Raúl Cesar Gouveia (2001), “A pedagogia da alma no Orto do Esposo”, in Lênia Mongelli (coord.), A Literatura Doutrinária na Corte de Avis, S. Paulo, Martins Fontes, pp.51-105. Fonseca, Luís Adão da (1982), O condestável D. Pedro de Portugal, Lisboa, INIC. Maler, Bertil (ed.) (1956), Orto do Esposo, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro [vols. I e II]. _____ (ed.) (1964), Orto do Esposo, Estocolmo, Almequist e Wiksell [vol. III]. Manrique, Jorge (2008), Poesía, Madrid, Cátedra. Martins, Mário (1948), “À volta do Orto do Esposo”, Brotéria, t. XLVI, pp.164-176. Mattoso, José (2002), Obras Completas. Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores. Nunes, Elisa Rosa Pisco (1987), Da imagem do Rei no Orto do Esposo. Contribuição para um estudo da personagem do rei na literatura da Idade Média, Universidade de Évora. Nunes, Irene Freire (ed.) e GODINHO, Helder (coord.) (2007), Horto do Esposo, Lisboa, Colibri. [edição citada sob título abreviado da obra como referência: Horto] Pereira, Paulo Alexandre (2007), “Uma Didáctica da Salvação: o Exemplum no Horto do Esposo”, Horto do Esposo, Lisboa, Colibri, pp. LIII-LXXXVI. Rossi, Luciano (1979), A literatura novelística na Idade Média, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa. Sena, Jorge de (1979), O Físico Prodigioso, Lisboa, Edições 70.

[Recebido em 7 de junho de 2014 e aceite para publicação em 8 de outubro de 2014]

O MUNDO PELA ARTE: OS SONHADORES DE NOITES BRANCAS, DE FIÓDOR DOSTOIÉVSKI, E AO ARREPIO, DE JORIS-KARL HUYSMANS THE WORLD THROUGH ART: THE DREAMERS IN FYODOR DOSTOEVSKY’S WHITE NIGHTS AND JORIS-KARL HUYSMAN’S AGAINST NATURE José Bértolo* [email protected]

Em Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, e em Ao Arrepio, de Joris-Karl Huysmans, reflecte-se sobre o mundo e sobre a arte pelo recurso à figura-tipo do ‘sonhador’ que se afasta da realidade e busca refúgio na arte. A análise comparativa destes ‘sonhadores’ procura averiguar de que modo as circunstâncias históricas em que as obras foram escritas informam decisivamente tanto as ideias de mundo quanto as ideias de arte nelas veiculadas. Palavras-chave: ‘sonhador’, sonho, realidade, representação, reflexividade Both Fyodor Dostoevsky in White Nights and Joris-Karl Huysmans in Against Nature meditate about the world and about art through the figuration of the character-type of the ‘dreamer’ who escapes from reality to seek refuge in art. The comparative analysis of these ‘dreamers’ strives to inquire in what ways the historical circumstances in which these works were written inform both the ideas about the world and the ideas about art inscribed in them. Keywords: ‘dreamer’, dream, reality, representation, reflexivity

Let us possess one world, each hath one, and is one. John Donne, “The Good-Morrow”

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Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal.

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I.1. – Após a publicação de Gente Pobre em 1846, Fiódor Dostoiévski é recebido como a grande esperança da literatura russa pós-romântica. Para tal acolhimento contribui de forma decisiva o crítico literário Vissarion Belínski com uma crítica entusiasta e a proclamação de um novo génio, recepção esta alicerçada na esperança de Dostoiévski vir a liderar o que Belínski, entre outras figuras proeminentes da intelligentsia russa, procura erigir como resposta aos resquícios do movimento romântico ainda sentidos nas letras russas, uma nova estética denominada ‘escola natural’. Inspirada pela literatura da última fase de Gógol, a ‘escola natural’ defende uma ideia de literatura em que o literário se articula intimamente com o real, não só revelando-o – como uma espécie de decalque fotográfico – mas também, e essencialmente, posicionando-se de forma crítica perante ele, em atitude de pretensa transformação do social por meio da literatura. É esta uma concepção de literatura fundada em ideias socialistas, e um conceito de arte em que esta se subordina necessariamente a intentos políticos. O primeiro romance de Dostoiévski, surgindo neste contexto, é entendido pelos seus pares como o exemplo a seguir na construção literária, a materialização ideal de uma literatura que funcione como veículo de propagação de ideias socio-políticas. Trata-se de um romance epistolar, na senda de Clarissa (1748), de Samuel Richardson, ou de Julie, ou la nouvelle Héloïse (1761), de Jean-Jacques Rousseau, possuindo contudo a particularidade de deslocar o cenário da burguesia para as classes sociais mais empobrecidas. Se o protagonista de O Capote de Gógol pudera ser entendido como símbolo do problemático lugar do homem comum no desigual sistema social de então, o romance de Dostoiévski literaliza todo esse programa no título. Após o sucesso de Gente Pobre, Dostoiévski escreve O Duplo (1846), que substitui a clareza e os ‘bons sentimentos’ do anterior por complexidade e negrume. A resposta de Belínski à nova obra não é entusiasta, escrevendo o crítico sobre ela nos seguintes termos: “[it] suffers from another important defect: its fantastic setting. In our days the fantastic can have a place only in madhouses, but not in literature, being the business of doctors, not poets” (Belinsky apud Frank, 2010: 97). Recepção compreensível, não se enraizasse o romance numa tradição romântica e alemã, desenvolvendo o tema do Doppelgänger que remetia para autores como E. T. A. Hoffmann. A ruptura entre Belínski e Dostoiévski torna-se definitiva com a publicação de um dos textos seguintes, A Senhoria (1847), devido, como escreve Maria de Fátima Bianchi numa dissertação dedicada a esta obra, ao autor publicar esta curta novela “justamente num momento em que Belínski, empenhado no desenvolvimento da ‘escola natural’, travava uma luta tenaz

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contra o romantismo ou qualquer tentativa de ressuscitá-lo” (Bianchi, 2006: 106). Afinal, se era possível um partidário da ‘escola natural’ acolher com alguma benevolência uma obra ligeiramente ‘dissidente’ como O Duplo, dificilmente se poderia ignorar a dominante influência romântica em A Senhoria, especialmente tratando-se este de um romantismo folclórico muito distante do humanismo politizado que tornara Dostoiévski célebre, e próximo do que Belínski caracterizou como um idealismo romântico fora de tempo, uma vulgarização das conquistas da poética romântica e a cedência a uma moda pequeno-burguesa, portanto conservadora (Idem, 107-8). O cerne do problema, para Belínski, era a “fidelidade à consciência romântica, quando a literatura russa entrava numa nova fase tão rica de seu desenvolvimento” (Belínski apud Bianchi, 2006: 107); isto é, a falha residia na persistência de Dostoiévski numa poética de entrega à fantasia em vez da perscrutação crítica dos problemas sociais. Ao condenar um tipo de escritores de pendor romântico em que o “desacordo com a realidade é uma doença” (Idem, 108), e ao identificar a literatura de Dostoiévski com esta prática, Belínski desaprova o escritor, acusando-o inadvertidamente de epigonismo e alienação. Esse “desacordo com a realidade” é um dos núcleos temáticos que perpassam A Senhoria, nomeadamente através do recurso à figura do ‘sonhador’, aqui encarnado num protagonista que, após dois anos de solidão extrema num quarto arrendado[1], se torna num alienado, num “bicho do buraco sem dar por isso” (Dostoiévski, 2006: 64). Após os dois anos de reclusão, e devido ao desaparecimento da sua senhoria, ele é obrigado a imiscuir-se no mundo para procurar novo quarto. A novela documenta essa saída, a busca e a descoberta de novos senhorios: um casal composto por um velho misterioso e uma mulher pela qual o protagonista se apaixona. O que se segue é a narração entrecortada, por esta mulher, de uma estranha história reminiscente do folclore russo, entre as alucinações febris do protagonista, através de uma técnica narrativa que não permite a perfeita destrinça de níveis de realidade textual.[2] Um aspecto importante deste texto é a insistência do narrador na inconsciência do protagonista, Ordínov, em relação à sua condição de alie-

1 “Meteu-se lá [no quarto] como num mosteiro, como se renegasse o mundo. Bastaram-lhe dois anos para se asselvajar por completo” (Dostoiévski, 2006: 64). 2 Sobre este particularidade escreveu Richard Peace: “[t]he boundary between the hero’s subjective world and the objective world of the tale’s narrator is eroded to such an extent as to obfuscate the action of the narrative itself ” (Peace, 2008: 223).

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nado.[3] Partindo do facto de vários estudos críticos identificarem a figura do ‘sonhador’ como marcante na obra de Dostoiévski[4], verificamos que, ao longo dos anos, os seus sonhadores parecem vir a ser progressivamente dotados da consciência da sua condição. Assim sendo, ao alheamento quase absoluto do sonhador de A Senhoria, seguir-se-ia a consciencialização do alheamento em obras posteriores como Notas do Subterrâneo (1864) ou Crime e Castigo (1866).[5] Numa visão panorâmica da obra de Dostoiévski, vale a pena atentar na especificidade do sonhador de Noites Brancas, um texto que, como notou Gary Rosenshield, “[a]lthough has generally been recognized as one of the most successful works of the young Dostoevskij, it has attracted little scholarly attention” (Rosenshield, 1977: 191). Noites Brancas surgiu em 1848, num momento em que o autor havia caído em desconsideração generalizada após a polémica com os defensores da ‘escola natural’, e foi publicado com os subtítulos romance sentimental e das memórias de um sonhador. Para um comentário ao primeiro subtítulo, será pertinente observar o lugar da obra na evolução da fase inicial de Dostoiévski, nomeadamente tomando em conta o caminho que conduziu o autor do realismo humanista e sentimental de Gente Pobre, e consequente celebração pelos defensores da ‘escola natural’, à ‘assentimentalização’ (através do fantástico) iniciada com O Duplo e exponenciada em A Senhoria, que resultou na ruptura. Considerando esta sequência de obras e respectivas reacções críticas, parece constituir um gesto irónico esta denominação de “romance sentimental”, como se se apontasse para um regresso de Dostoiévski à sentimentalidade que caracterizara a única das suas obras 3 Para além do excerto citado: “tornou-se um bicho do buraco sem dar por isso” (itálico meu), mencione-se alguns exemplos, todos pertencentes ao primeiro dos seis capítulos da obra: “era como se não reparasse na sua essência selvagem” (Idem, 65); “tinha a vontade inconsciente de se embrenhar também a si mesmo nesta vida que lhe era estranha” (Idem, 66); “[d]epois de comer, nem se deu conta de como saiu de lá” (Idem, 69); “[f]osse o que fosse, Ordínov era incapaz, agora, de pensar no que se passava com ele: mal tinha consciência de si próprio...” (Idem, 71). 4 A propósito, lê-se na introdução de Filipe Guerra à edição portuguesa de Noites Brancas: “Note-se que Dostoiévski tinha como um dos seus temas predilectos o sonhador e o ‘sonhadorismo’, tendo até pensado em escrever, em 1876, um romance que se chamaria precisamente O Sonhador” (Guerra, 2001: 7). Remeto ainda, a respeito deste tópico, para a introdução de W. J. Leatherbarrow (2009) à antologia de “histórias de sonhadores” A Gentle Creature and Other Stories. 5 Donald Fanger distingue os primeiros sonhadores de Dostoiévski dos subsequentes, apelidando os últimos de ‘subterrâneos’: “Ordynov, as [A. L.] Bem first pointed out in an important article on The Landlady, already contains the germ of the future tragedy of that frightening urban phenomenon, the underground man – the difference being that, ‘in distinction to the underground man, the dreamer still has not understood himself, has not created his philosophy of the underground, and is therefore helpless in the face of reality’” (Fanger, 1967: 167).

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louvada pela crítica, regresso que apenas parcialmente se efectiva.[6] Após a ruptura dos representantes da ‘escola natural’ com Dostoiévski, é este quem parece procurar romper com essa escola, nomeadamente na recusa da objectividade, de um modelo de clareza, e com a entrega a uma poética da psique e da interioridade. Se sob o texto de Gente Pobre ainda se pode intuir – exista efectivamente ou não – um autor com intenções políticas, nos textos seguintes isso é dificultado por uma progressiva aproximação do autor à vida psíquica dos seus protagonistas, daqui resultando as dificuldades de leitura que apresentam O Duplo, e em especial A Senhoria: o mundo surge apresentado como percepcionado pelas personagens, e, sendo essa percepção falha, também a sua representação o é por consequência. Neste sentido, o recurso ao ‘sonhador’ adquire relevância, pois deste modo – ao focalizar-se a narração numa personagem que habita um ‘mundo sonhado’, porque em “desacordo com a realidade” – garante-se uma representação do mundo deceptiva, correspondente à visão igualmente deceptiva das personagens. Nada disto encaixa, como bem se percebe, nos preceitos de uma ‘escola natural’ que não distingue a ‘doença’ das personagens da ‘doença’ suposta dos seus autores. Sob esta perspectiva, A Senhoria afigura-se-nos a representação de um mundo fantástico porque dependente da imaginação nervosa, propensa à fantasia, que é no fundo a de Ordínov. Um olhar sobre Noites Brancas, por seu turno, revela um mundo mais domado, um “re-work [of] the theme of the dreamer in a more lucid fashion”, nas palavras de Leatherbarrow (2009: xi), mais sentimental do que fantástico, e ainda assim sem pretensões de realismo enquanto técnica literária. O que importa finalmente reter é que Dostoiévski, ao arrepio do gosto da época, decide representar literariamente o mundo através ‘dos olhos’ dos sonhadores, e neste particular Noites Brancas será porventura o produto mais representativo deste gesto, tratando-se de um texto que nos apresenta apenas o universo de um sonhador que – porque escreve – no-lo conta ele próprio, sem a mediação de narradores extradiegéticos, i.e., sem outros olhares que não o seu. A tematização literária da figura do ‘sonhador’ e da sua apreensão ‘adoentada’ do mundo põe em evidência – e especialmente num contexto em que a objectividade naturalista é tida como o paradigma a seguir – a pluralidade de articulações possíveis entre ‘ideias de mundo’ e ‘ideias de arte’.

6 Na introdução à edição portuguesa, Filipe Guerra identifica esta “ironia logo na escolha do discurso adaptado ao género escolhido: o filosófico-realista nos Cadernos [do Subterrâneo], o sentimental-romântico nas Noites Brancas” (Guerra, 2001: 7).

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I.2. – Para esta reflexão importará também recordar a história literária da França do século XIX, tomando em conta, com as devidas ressalvas, as suas duas linhagens estilísticas essenciais ou maioritárias: a romântica e a realista. Joris Karl-Huysmans é um autor que, tal como Dostoiévski algumas décadas antes, se move entre os dois pólos, promovendo desse modo aproximações entre poéticas distintas, porém dialogantes. Diga-se que Dostoiévski, apesar da proximidade pontual aos românticos (nomeadamente na sua fase inicial, aqui em foco), se posiciona na história da literatura claramente mais próximo do pólo realista.[7] Esse pólo realista, no caso francês, começara a construir-se pelo menos uma década antes da criação da ‘escola natural’ belínskiana, nomeadamente com a adopção sistemática por Balzac de um “efeito do real” (Barthes, 1968) nas obras que comporiam, a partir de 1829, La comédie humaine. Essa escola foi continuada por outros autores, como Gustave Flaubert com Madame Bovary (1857) ou L’éducation sentimentale (1869), culminando no naturalismo comprometido – neste sentido muito próximo da estética proposta por Belínski – de Émile Zola nas últimas décadas do século. Paralelamente, há toda uma linha de autores franceses oitocentistas que, se não contra o “efeito do real”, se situaram à margem deste. É o caso de românticos como Théophile Gautier, Charles Nodier ou Prosper Merimée, todos autores que operaram no campo de um fantástico herdado do gótico, à revelia de um outro romantismo, mais realista no estilo, encabeçado por Victor Hugo. Gautier postulou, no prefácio de Mademoiselle de Maupin (1835), o conceito de l’art pour l’art, em que a arte se divorcia de qualquer função didáctica; e devido às suas ideias sobre a arte, viria a tornar-se mestre de Charles Baudelaire, que lhe dedicou As Flores do Mal (1857). A ideia de arte pela arte, tornar-se-ia fundamental no desenvolvimento da literatura do século XIX, desde a prática do conto fantástico, ao surgimento da poesia parnasiana, ao simbolismo na poesia e na pintura, ou ao esteticismo finissecular que abarcou toda a produção artística. Em 1876, Huysmans publica Marthe, histoire d’une fille, o seu primeiro romance, perfeitamente situado nos trâmites do naturalismo liderado pelo então seu mestre, Zola. Este último viria, aliás, a antologiar em 1880 um 7 Sobre o realismo ‘impuro’ de Dostoiévski, cf. Fanger (1967). Sobre esta temática, também Peter Brooks escreve, no prefácio a The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess, uma obra dedicada à análise da presença de um romantismo sentimental em autores canonizados como ‘realistas’: “[t]he figure whose absence may most be felt [in this book] is Dostoevsky, a direct heir of Balzacian melodrama and one of the novelists who puts melodramatic representations to most effective use” (Brooks, 1995: xviii).

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volume colectivo intitulado Les Soirées de Medan, destinado a dar a conhecer o trabalho dos escritores naturalistas, no qual figura o autor de Marthe com o conto “Sac au dos”, documento das suas experiências no exército. Huysmans inseriu-se no naturalismo vigente de tal forma, que Max Nordau escreveria, no seu ataque à linha literária que aqui vem sendo sumariamente listada – de Gautier a Huysmans, passando pelo ‘diabólico’ Baudelaire –: “Huysmans, the classical type of the hysterical mind without originality, who is the predestined victim of every suggestion, began his literary career as a fanatical imitator of Zola” (Nordau, 1895: 302). Contudo, em 1884, Huysmans procura interromper a prática desse naturalismo ‘imitativo’ com a publicação de Ao Arrepio. O seu “Prefácio Escrito Vinte Anos Após o Romance” esclareceria bem o contexto da escrita do livro. Num dos primeiros parágrafos, lê-se: “Estava-se em pleno Naturalismo. Mas esta escola, que prestava o memorável serviço de situar personagens reais em meios exactos, estava condenada a repisar-se e a marcar passo” (Huysmans, 2008: 229), e ainda: “de tanto fazer girar a mó, o Naturalismo ficara sem ar” (Idem, 231). Neste cenário, os seguidores do naturalismo do mestre começavam a questionar-se sobre qual o caminho a seguir: “Zola era Zola [...] Já nós, menos espadaúdos e preocupados com uma arte mais subtil e verdadeira, nos perguntávamos se o Naturalismo não estaria a chegar a um impasse e se não nos iríamos esborrachar bem depressa contra a parede dos fundos” (Idem, 232). Contudo, não se tratava apenas de um esgotamento do modelo; mais do que isso, Huysmans duvidava então da mera possibilidade de resposta eficaz do exercício do modelo naturalista às propostas da doutrina: É preciso confessá-lo, ninguém compreendia menos a alma humana do que estes naturalistas que se propunham observá-la. Eles viam a existência como um todo sem remendos; só o aceitavam se condicionado por elementos de verosimilhança; mas para mim, tem-me dito desde então a experiência, o inverosímil não é sempre, neste nosso mundo, a excepção, e quer-me parecer que as aventuras de Rocambole não são mais rocambolescas do que as de Gervaise e de Coupeau, lá no centro de L’Assommoir. (Idem, 242) [8]

Ao Arrepio surge como a concretização material deste questionamento do modelo naturalista. “Aquilo que mais me interessava nessa altura”, escre8 Rocambole é protagonista do popular romance-folhetim de aventuras homónimo, escrito por Ponson du Terrail entre 1857 e a data da sua morte, 1871. Gervaise e Coupeau compõem o casal no centro de L’Assommoir, um dos mais populares romances de Zola, publicado em 1877.

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veria Huysmans no seu prefácio, “era sobretudo livrar-me da intriga tradicional, livrar-me do amor, da mulher, e fazer incidir o foco de luz sobre uma única personagem, fazer qualquer coisa nova” (Idem, 242). Com este romance, Huysmans escreve aquele que seria considerado por Arthur Symons “o breviário da decadência” (Symons, 1908: 139), um romance exclusivamente dedicado a uma personagem, também ela – tal como os ‘sonhadores’ de Dostoiévski – inteligível como um tipo: o tipo do decadente alienado que, rebelando-se contra a mundanidade da vida social, se esquiva ao mundo, entregando-se à experiência estética.

II.1. – Apesar da publicação de Noites Brancas e Ao Arrepio em diferentes contextos, e com uma distância temporal de quase quarenta anos entre eles, a aproximação entre ambos é facilitada pela exploração comum do tipo do sonhador.[9] O que esta aproximação, em função de um ‘tipo’, põe em evidência é a própria metamorfose sofrida por ele ao longo do século XIX, desde o sonhador romântico do início, ao sonhador ‘fora de tempo’ das décadas que viram a estética realista florescer, culminando no sonhador decadente do fim de século. São ambos romances inteiramente conduzidos por uma personagem, de tal maneira focalizados nela que a sua mundividência acaba por enformar de modo determinante os respectivos textos. Também tanto o narrador-protagonista sem nome de Noites Brancas quanto Des Esseintes são personagens que mantêm uma relação problemática com a realidade, refugiando-se num ‘mundo alternativo’, à margem do dos restantes indivíduos, o que conduz a um estado de solidão extrema. Finalmente, ambos partilham a bibliofilia, uma devoção à arte que se traduz numa entrega à vivência nesta, à revelia da vivência no mundo real.[10] Não obstante, é através da atenção às dissemelhanças entre estas personagens que se pode tomar em conta estes textos como etapas distintas da evolução deste tipo nas sociedades e literaturas oitocentistas.

9 Entendamos agora o protagonista de Ao Arrepio, Des Esseintes, como também ele um sonhador, na simples medida em que busca uma realidade alternativa (sonhada). 10 Importa referir que, segundo Filipe Guerra, a edição inicial de Noites Brancas era menos exemplificativa desta entrega do protagonista à arte. “Ao preparar a edição de 1860, Dostoiévski introduziu no texto emendas substanciais. Ao mesmo tempo, complementou a narração do herói com a enumeração das personagens históricas e literárias preferidas deste, salientando assim o facto de o narrador-herói se comprazer nos temas históricos e românticos, em nítido contraste com a sua passividade e fraqueza na vida real” (Guerra, 2001: 8). A versão que chegou até nós é a de 1860.

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É forçoso notar que Dostoiévski se mantém ainda contaminado por uma estética realista, por exemplo na mera escolha de um homem pobre para seu “narrador-herói”. O “sonhadorismo” pode, em Dostoiévski, ser entendido como um efeito das difíceis condições de vida das classes mais baixas da sociedade, que perante os horrores da existência comum se refugiam num mundo sonhado. Na introdução de Guerra, lê-se a tradução e o comentário de um excerto retirado de uma crónica escrita por Dostoiévski: Escreve ele: “Haverá entre nós, os russos, muita gente que disponha dos meios para fazer o seu trabalho como é devido, com amor? [...] Então, nos caracteres mais ansiosos de actividade, mas fracos, femininos, ternos, nasce a pouco e pouco aquilo a que se chama ‘sonhadorismo’, e o homem deixa de ser homem, torna-se numa espécie esquisita... – o sonhador.” (Dostoiévski, Crónicas de Petersburgo, 1847) Retirando-se para um mundo fantástico e fechado, o sonhador de Dostoiévski condena-e a uma completa e trágica solidão. “[...] A realidade produz no coração do sonhador uma impressão grave, hostil, e então apressa-se a meter-se no seu cantinho secreto e dourado, que na realidade é, não raro, poeirento, desmazelado, desarrumado e porco”. (Guerra, 2001: 8-9).

Huysmans, por seu lado, escolhe para seu protagonista um homem rico, último de uma longa linhagem de guerreiros e aristocratas, que pode ser ocioso e passivo porque – não obstante viver no seu mundo imaginado – possui os recursos necessários para manter, na sua habitação longe de Paris, dois empregados que impedem que o seu “cantinho secreto e dourado” se torne “poeirento, desmazelado, desarrumado e porco”. Por outro lado, o que nesta diferença se percebe é a filiação decadentista de Huysmans – naquela longa tradição contra a qual Max Nordau se posicionava, e que as próprias páginas de Ao Arrepio, em vários capítulos, documentam – , que nada tem que ver com a romântica-realista do russo, mas antes se aproxima de ‘românticos negros’ como Barbey d’Aurevilly ou Villiers de l’Isle-Adam, que frequentemente enquadravam as suas histórias numa aristocracia em degenerescência. Um efeito desta divergência é o sonhador de Dostoiévski limitar-se a sonhar um mundo feito de coisas imateriais, nomeadamente ‘grandes sentimentos’, do domínio dos “temas históricos e românticos” (Guerra, 2001: 8), e o de Huysmans construir esse mundo alternativo a partir de bens materiais, desde a aquisição de mobiliário raro (cap. 1) à tartaruga incrustada de jóias (cap. 4), a dezenas

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de flores extravagantes (cap. 8), a edições únicas de livros[11] ou pinturas originais a adornar as paredes (cap. 5). A imaterialidade e a materialidade de que se constituem estes dois ‘mundos alternativos’ deixam antever outras especificidades importantes em cada um destes sonhadores. Próximo do início de Noites Brancas, lê-se: “Duas noites seguidas, antes de ir para a cama, tentava perceber: o que me falta no meu cantinho, por que me sinto tão desconfortável nele?” (Dostoiévski, 2001: 15), e um pouco depois: “não será aqui que se esconde a desgraça?” (Idem, 16). O quarto arrendado é aqui (contrariamente ao que sucedera em A Senhoria) o lugar onde o sonhador se sente em desconforto, não podendo portanto equivaler ao espaço de refúgio. O processo de fuga do mundo, em Noites Brancas, é exclusivamente mental, e por isso o seu protagonista, para dar rédeas ao sonho, ou está a ler um livro, ou a escrever, ou a mover-se anonimamente pela cidade. Em qualquer um destes processos é a imaginação “a rainha das faculdades” (Baudelaire, 2006).[12] O que isto traduz é, em termos físicos (da experiência do mundo), não tanto uma fuga, como uma suspensão da vida, ou um abandono ao fluxo do mundo. Em Huysmans, assiste-se a um processo de fuga evidente, que passa por uma inevitável deslocalização física: As suas ideias de se encolher a um canto, afastado do mundo, de se calafetar num retiro, de abafar o tumulto contínuo e inexorável da vida, tal como se abafa a palha os ruídos da rua para se proteger o sossego de gente enferma, ganhavam força redobrada. [...] Pesquisou os arredores da capital e descobriu um casebre para venda, no cimo de Fontenay-aux-Roses, num sítio isolado, sem vizinhos, próximo do forte. O seu sonho fora atendido; neste lugarejo pouco tocado pelos parisienses, tinha a certeza de estar a salvo. (Huysmans, 2008: 16)

As posições das duas personagens perante o mundo revelam-se, portanto, bem distintas. Se o protagonista de Noites Brancas sente empatia pela humanidade[13], desejando até pertencer a ela, movendo-se por isso na cidade 11 Um de vários exemplos possíveis: “encadernado a pele de foca, As aventuras de Arthur Gordon Pym, especialmente feito para si, em papel avergoado, puro linho, escolhido a dedo, com uma gaivota por filigrana” (Huysmans, 2008: 28-29). 12 “porque cada respeitável cavalheiro de ar importante que apanhava um coche se transformava, na minha imaginação, num respeitável pai de família que [...] se dirigia sem bagagem para o seio da família” (Dostoiévski, 2001: 16, itálico meu). 13 “Claro que estas pessoas não me conhecem, mas eu sim. Conheço-as intimamente; quase lhes decorei as fisionomias – e regozijo-me quando estão alegres, angustio-me quando as vejo tristes.” (Dostoiévski, 2001: 14).

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como um flâneur[14], Des Esseintes rejeita terminantemente a humanidade e a vulgaridade que esta representa para si, mudando-se para os arredores de Paris. Esta distinção revela ainda que o protagonista de Dostoiévski é passivo na medida em que não precisa de agir para fugir do mundo (pelo contrário, foge do mundo dentro do mundo), e que a passividade e o ócio de Des Esseintes são, paradoxalmente, resultantes de uma acção deliberada. Isto remete para o anteriormente enunciado a propósito dos graus de consciência apresentados pelos protagonistas de Dostoiévski, e o lugar de Noites Brancas nesta evolução. Em A Senhoria, Ordínov era um indivíduo incapaz de se dar conta do seu estatuto de ‘sonhador’. Aquilo a que se assistia, pelo contrário, eram as aventuras de um homem que, mais do que agir, reagia a estímulos, fossem eles reais (a mulher que aparece na igreja, e que desperta nele a paixão) ou fantásticos (a narrativa que a mulher conta). Esta desconsciencialização da personagem tornava-a o perfeito estudo de caso do tipo social que Dostoiévski procurava examinar, pois representava o ‘sonhadorismo’ levado ao extremo da alienação da realidade. Em Noites Brancas, o protagonista não é totalmente alienado como Ordínov, mas é apresentado como um estado intermédio entre este e o protagonista de Notas do Subterrâneo. No fim do primeiro capítulo, ao despedir-se de Nástenka, com quem travara conhecimento, o homem reconhece este encontro como o primeiro real da sua vida[15], um encontro que o satisfaz mais do que qualquer outra coisa: “[d]ois minutos chegaram para me fazer feliz para sempre” (Dostoiévski, 2001: 28). Esta personagem encontra-se então num estado em que, tendo-se apercebido da sua condição, se sente insatisfeita com ela. Contudo, nada pode fazer para a contornar, pois ainda não lhe é possível vencer o instinto que a leva a abandonar-se ao sonho. Este estado é agudizado quando a realidade (Nasténka, aqui símbolo da possibilidade da fuga do sonho) irrompe no sonho, demonstrando a este sonhador como a realidade é melhor do que o sonho. Em suma, pode entender-se Noites Brancas como um romance sobre a aquisição da consciência, um documento sobre o momento de transição do tipo de Ordínov para o do ‘homem subterrâneo’.[16] O protagonista de Huysmans, por seu turno, é consciente da sua condição. 14 Em Dostoevsky and Romantic Realism, Fanger identifica o subtipo do “dreamer-flâneur” (Fanger, 1967: 169). 15 “Parece-me um sonho, nunca imaginei que alguma vez ia falar com uma mulher.” (Dostoiévski, 2001: 22). 16 “Beneath the dreamer’s Romantic idealism there already lurks suppressed despair and the spectre of the Underground, that twilight zone between the fact and fiction where the hero of Notes from the Underground is to carve out his sterile existence of perverted idealism.” (Leatherbarrow, 2009: xiii).

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O homem de Dostoiévski é apresentado como uma espécie de ‘herói romântico’ (um idealista que não conhece [ainda] a realidade), e Des Esseintes é construído como um ‘herói decadente’ (tendo já experimentado e rejeitado a realidade), algo que Osip Mandelstam resumiu nestes termos: “The decadents did not like reality, but they did know reality, and that is what distinguishes them from the romantics” (Mandelstam, 1991: 100). Há então uma dimensão trágica nesta personagem de Dostoiévski. Leatherbarrow refere “the tragedy of the individual who has sacrificed to abstraction all sense of living life” (Leatherbarrow, 2009: ix). Todavia, essa é mais a tragédia de Ordínov do que a da personagem de Noites Brancas. A tragédia deste é mais a dolorosa tomada de consciência de viver no sonho, a aquisição do desejo de cessar de viver no sonho e passar a viver na realidade, e, finalmente, a tomada última de consciência da incapacidade ôntica de ser outra coisa que não o sonhador que já não quer ser. Já em Ao Arrepio verifica-se uma total ausência de pathos[17], que em Dostoiévski tanto serve para ‘patético’ como para ‘patológico’, pois se parece haver alguma benevolência para com as suas personagens sonhadoras (nomeadamente a de Noites Brancas), Dostoiévski entendia – tal como Belínski – o ‘sonhadorismo’ como um problema social, uma espécie de doença. Neste passo, vale a pena evocar a tradução que Leatherbarrow faz de uma crónica de Dostoiévski publicada na Gazeta de Petersburgo, em Junho de 1847: Do you know, ladies and gentlemen, what a dreamer is? It is a Petersburg nightmare, it is sin incarnate, it is a tragedy… They [the dreamers] usually live in complete solitude, in some inaccessible quarters, as though they were hiding from the people and the world, and, generally, there is something melodramatic about them at first sight. They are gloomy and taciturn with their own people, they are absorbed in themselves and are very fond of anything that does not require any effort, anything light and contemplative, everything that has a tender effect on their feelings or excites their sensations. They are found of reading and they read all sorts of books, even serious scientific books, but they usually lay the book down after reading two or three pages, for they feel completely satisfied. Their imagination, mobile, volatile, light, is already excited, their senses are attuned, and a whole dream-like world, with its joys and sorrows, with its heaven and hell, its ravishing women, heroic deeds… suddenly possesses the entire being of the dreamer… Sometimes whole nights 17 Num texto notável, James Huneker escreve, logo após a morte de Huysmans em 1907: “Dostoiévsky would have made us weep – as he did in Poor Folk. But Huysmans has no time for tears or laughter; he must register his truth, and at the end an odor of stale cheese exhales from the printed page” (Huneker, 1907: 49).

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pass unnoticed in undescribed joys; sometimes a paradise of love or a whole lifetime… is experienced in a few hours… The moments of sobering up are terrible; the poor unfortunate cannot bear them and he immediately takes more of his poison in new increased doses. (Idem, x)

Perto do final da crónica, Dostoiévski concentra-se nos verdadeiros perigos de tal ‘sonhadorismo’: Little by little our curious fellow begins to withdraw from crowds, from common interests, and gradually and imperceptibly he begins to blunt his talent for real life. It begins to seem natural to him that the pleasures attainable through his capricious fantasy are fuller, richer and dearer than life itself. Finally, in his delusion he completely loses that moral sense through which man is capable of appreciating all the beauty of reality. He goes astray, loses himself, lets slip those moments of real happiness; and, in a state of apathy, he folds his arms and does not wish to know that man’s life consists in constant contemplation of oneself in nature and in day-to-day reality. (Idem, x-xi)

O que estes passos permitem perceber é que Dostoiévski não estava ‘do lado’ dos seus sonhadores, contrariamente ao que Belínski julgara, e que a ‘doença’ destas personagens não contamina necessariamente nem as obras de Dostoiévski nem a sua visão do mundo. O que estas palavras denunciam é o gesto profundamente irónico e sofisticado que reside sob Noites Brancas: não obstante Dostoiévski apresentar-se publicamente contra o tipo social do sonhador, que considera “o pesadelo de São Petersburgo” (i.e., uma presença nociva à manutenção da estabilidade da saúde da pólis), ele permite que um sonhador tome as rédeas de um dos seus livros, redigindo-o numa primeira pessoa referente ao protagonista. Então, e paradoxalmente, as ideias do mundo de Dostoiévski estão muito longe das das suas personagens, não parecendo haver correspondência possível entre ambos. O mesmo não sucede com Huysmans. Num texto crítico de A. Meunier publicado em 1885, lê-se sobre Des Esseintes: [I]t is the same character who pulls the strings in each of [Huysmans’] works. Cyprien Tibaille and André Folantin are, after all, no more than one and the same person transported into different settings. And this person is quite obviously M. Huysmans, one can feel it. (Meunier, 2003: 220) [18] 18 Cyprien Tibaille é uma personagem secundária em En ménage (1881). “André Folantin” parece resultar de uma confusão entre o protagonista de En ménage, André Jayant, e o de À vau-l’eau (1882), Jean Folantin.

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Trate-se ou não de uma transposição do próprio Huysmans, o facto é que – não obstante Des Esseintes ser representado como um homem fisicamente doente – o seu ‘sonhadorismo’ não é nunca apresentado como doença, ou identificado por Huysmans em textos críticos como uma enfermidade. Parece seguro afirmar, portanto, que o descontentamento com a sociedade que leva Des Esseintes a afastar-se dela se espelha, ou pelo menos se inspira, num descontentamento semelhante sentido pelo seu autor. Se no romance de Dostoiévski a alienação do mundo é sinal de uma fraqueza, em Ao Arrepio dá conta de uma força, de uma capacidade de emancipação. II.2. – Se até agora temos vindo a considerar o modo como nas duas obras confluem ‘ideias do mundo’, em consonância ou divergência com as ideias vigentes nos seus respectivos contextos históricos, políticos e sociais[19], interessa-me doravante pensar sobre de que maneira reflectem estas obras, não sobre o mundo, mas sobre a arte. Como se disse antes, a reedição em 1860 do romance de Dostoiévski implicou o acrescento de um rol de referências literárias que correspondem às leituras do protagonista e que, tratando-se este de um sonhador cujo processo de fuga se faz pela escrita e pela leitura, estão na base da sua experiência do mundo.[20] A ‘literariedade’ deste homem é expressa a partir do momento em que Nástenka lhe pede que fale um pouco sobre si, e ele se apresenta como um “tipo”, o tipo do “sonhador” (Dostoiévski, 2001: 33). A partir de então, assiste-se a uma profusão de expressões e vocábulos do campo semântico da literatura. Por exemplo, quando ela lhe pede que explique melhor que “tipo”[21] é esse, lê-se: “Sentei-me ao lado dela, tomei uma pose séria e pedante, e comecei em tom livresco” (Idem, 34; itálico meu, nesta e nas seguintes citações)[22], e começa a sua apresentação: Não sei se sabe, Nástenka, que há em Petersburgo uns lugarzinhos bem estranhos. Nesses recantos [...] parece viver-se uma vida muito diferente, nada comparável à que ferve ao nosso lado, uma vida talvez só possível no 19 Remeto apenas – para um estudo mais aprofundado de Ao Arrepio no âmbito desta relação com o histórico, o social e o político – para um artigo de Richard Shryock (1992). 20 As notas à edição inglesa da Oxford University Press são particularmente úteis na identificação dessas referências (Dostoevsky, 2009: 19, 20, 22, 23 e 37). A edição portuguesa apresenta algumas notas (Dostoiévski, 2001: 43). 21 Na tradução inglesa, lê-se “character” (Dostoevsky, 2009: 16), o que também vai ao encontro do campo semântico literário. 22 A tradução inglesa “as if I was reading aloud” (Dostoevsky, 2009: 16) aponta para o mesmo sentido.

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reino dos contos de fadas e não entre nós, nestes nossos tempos sisudos. Essa vida é uma mistura exacta de pura fantasia, de ideal ferveroso e, por outro lado (infelizmente, Nástenka!), qualquer coisa descolorida, prosaica e vulgar, para não dizer: de uma chateza incrível. (Idem, 35)

A esta apresentação “em tom livresco”, responde Nástenka: “Fu! Meu Deus! Que prefácio!” (Ibidem), e mais tarde, após o homem dizer que “o herói de toda esta história sou eu, a minha própria e modesta pessoa” (Idem, 38), Nástenka faz um pedido: “Oiça: sabe contar maravilhosamente, mas não podia fazê-lo de maneira menos bonita? Fala como quem lê um livro em voz alta”, ao que ele responde: “sei que conto as coisas maravilhosamente, mas, desculpe, não sei fazê-lo de outro modo” (Ibidem). Este homem está de tal maneira contaminado pela literatura que já não sabe senão viver literariamente. Sucumbido à “deusa da fantasia” (Idem, 40), ‘artificou’ a sua vida, uma vida composta de “fantasmas mágicos que, de modo tão divino, tão caprichoso, tão vasto, tão infinito, formam diante dele um quadro milagroso e cheio de vida, onde em primeiro plano, como personagem principal, está sem dúvida ele mesmo” (Idem, 42). Enquanto imerso nesse sonho literário, ele não deseja nada, porque está acima dos desejos, porque possui tudo, porque ele próprio é o artista criador da sua vida e cria-a a cada hora de acordo com a sua vontade variável. [...] Palavra, há minutos em que se está pronto a acreditar que essa vida não é uma excitação de sentimentos, uma miragem, uma ilusão, mas que é de facto real, verdadeira, existente! (Dostoiévski, 2001: 44)

Dir-se-ia que, através deste sonhador em particular, Dostoiévski aponta para os perigos da incapacidade de distinguir entre facto e ficção, recuperando o alerta para os perigos da poesia mimética que Platão realizara em A República, e próximo ainda, por exemplo, da personagem de Madame Bovary que Flaubert criaria apenas alguns anos depois. Trata-se da “cedência da realidade” (Borges, 2013) que fora de modo paradigmático descrita na primeira grande obra sobre um sonhador para quem a experiência do mundo é definitivamente mediada pela experiência da literatura, o D. Quixote de Cervantes. A relação que se estabelece entre Ao Arrepio e a Literatura enquadra-se nos preceitos de um esteticismo então numa fase crítica da sua evolução. Para os autores associados a este movimento, a articulação entre a vida e a arte privilegiava a segunda, adquirindo a primeira relevância apenas quando estetizada, i.e., quando aproximada do domínio da arte. Em Dostoiévski (como

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em Cervantes ou Flaubert), a estetização da vida resulta numa alienação que se traduz, em última análise, numa tragédia; em Huysmans (ou noutros ‘estetas’, como Oscar Wilde ou Remy de Gourmont), a alienação resultante da estetização da vida é um lucro, pois distancia da vulgaridade desprezível do mundo.[23] Se os sonhos do protagonista de Dostoiévski, parecendo produzir realidade, produzem na verdade irrealidade e monstros, os sonhos de Des Esseintes, materializando-se através da experiência estetizada do mundo, produzem efectivamente real, um real transfigurado (‘artístico’). Em Huysmans, a alienação também se expressa através da aproximação da personagem à arte. No entanto, contrariamente ao que acontece com o protagonista de Dostoiévski – em que a influência da arte se estende a ele de maneira totalmente acrítica, resultado da sua semi-inconsciência –, Des Esseintes é construído como uma espécie de crítico de arte, e vários dos capítulos de Ao Arrepio constituem-se a partir das considerações da personagem acerca da arte. Em “Structural techniques in À rebours”, Ruth Plaut Weinreb caracteriza o romance como sendo construído sobre dois pilares estruturais: a personagem de Des Esseintes e as discussões sobre arte que pontuam a obra. O elemento que reuniria em si esses dois pólos seria o próprio autor, que se assumiria – ao contrário de Dostoiévski, o qual, como vimos, omite as suas ideias ao atribuir a narração ao protagonista de Noites Brancas – como a entidade por detrás de tudo quanto se lê: “Although hero and author join to establish an art poétique, basing it in identical criteria and reinforcing each other’s judgements, the author unquestionably assumes the major role” (Weinreb, 1975: 228). Esta arte poética é o que de mais relevante se identifica em Ao Arrepio, no que toca à dimensão auto-reflexiva do texto. Des Esseintes funciona como símbolo de uma visão da arte (e do mundo, uma vez que na teoria do ‘esteticismo’ uma e outra não são desvinculáveis), e consequentemente o romance funciona, de modo programático, como uma espécie de manual de posicionamento crítico perante a arte e o mundo[24], à semelhança do que Oscar

23 A centralidade histórica de Ao Arrepio neste movimento está documentada, p. ex., em Aestheticism, de R.V.Johnson: “The supreme exemplar of the aesthetic retreat from ordinary life is, perhaps, Des Esseintes, the hero of the French novel by J. K. Huysmans, À rebours (In Reverse, 1884). Des Esseintes shuts himself in his room, and, with the aid of various stimuli, including medieval ecclesiastical objects and the novels of Dickens, seeks to objectify the private world of his imagination.” (Johnson, 1973: 22) 24 Alguns exemplos são as discussões sobre: a literatura clássica (cap. 3); a pintura de Gustave Moreau e Odillon Redon (cap. 5); Baudelaire e Barbey d’Aurevilly (cap. 12); Flaubert, Goncourt, Verlaine, Corbière, Mallarmé e Villiers de L’Isle Adam (cap. 14); Schumann e Schubert (cap. 15).

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Wilde concretizaria, de modo mais teórico do que crítico, nos seus ensaios compilados em Intentions, em 1891.[25] Em algumas edições em inglês, À rebours foi traduzido como Against Nature. Não obstante a falibilidade filológica dessa tradução, é interessante que ela revele de forma tão eficaz o programa romanesco de Huysmans. Como Des Esseintes gosta de fazer notar, “a natureza já tivera a sua época” (Huysmans, 2008: 31). Para ele e para Huysmans, é o artifício “a marca distintiva do génio humano” (Idem, 30). Esta é uma poética que funciona contra Dostoiévski, porque para este o homem é criação de Deus e, por isso, deve aprender a tornar-se homem no mundo.[26] No romance de Huysmans, os homens já se podem emancipar da criação de Deus, e criar eles próprios o mundo: “poder-se-á seguramente afirmar que o homem fez, no seu género, como o Deus em que ele crê” (Idem, 32), sendo este, afinal, o milagre da arte (humana) que fazia os ‘estetas’ finisseculares preferirem-na à vida (divina). Assim, se atrás se disse que Des Esseintes erige o seu mundo alternativo com bens materiais, diga-se agora que a intenção que motiva esse gesto é, em última instância, metafísica. A propósito, escreve Rodolphe Gasché: “In all these examples of idealization [G. refere-se ao episódio da tartaruga] is a function of matter, material and animal life from a vessel which thus becomes the container for its very opposite: spirit” (Gasché, 1988: 202).[27] Já Huneker tinha afirmado que Huysmans era “a luminous mystic” (Huneker, 1907: 44), listando no mesmo artigo as leituras do autor: “His favourite reading were the mystics, à Kempis, Saint Theresa, St. John of the Cross and the Flemish Ruysbroeck” (Idem, 45), este último, aliás, presente em Ao Arrepio em epígrafe. O romance de Huysmans pode, assim, ser entendido também como uma variação moderna da fuga mundi praticada pelos santos medievais, uma actualização em que asceta místico e esteta finissecular se reúnem na figura do sonhador decadente.

25 A relação entre Wilde e Huysmans fica, de resto, bem documentada através do “poisonous book” que Lord Henry Wotton oferece a Dorian Gray, em The Picture of Dorian Gray (1890). Esse livro, embora não seja nomeado no romance, é quase sempre identificado como Ao Arrepio (cf. Wilde, 2003: 124, nota 7). 26 Recorde-se que o russo escreveu que, para além de o ‘sonhador’ “deixa[r] de ser homem, torna[r]-se numa espécie esquisita” (apud Guerra, 2001: 8): “it is sin incarnate” (apud Leatherbarrow, 2009: x). 27 Algo que, numa abordagem atenta, já se intuiria no nome da personagem, foneticamente próximo de “des essences”.

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(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)

[recebido em 15 de abril de 2014 e aceite para publicação em 16 de setembro de 2014]

TODO LO CERCANO SE ALEJA. ROBERTO BOLAÑO E ENRIQUE VILA-MATAS, DA AUTOFICÇÃO AO ‘ESPAÇO BIOGRÁFICO’ TODO LO CERCANO SE ALEJA. ROBERTO BOLAÑO AND ENRIQUE VILA-MATAS, FROM ‘AUTOFICTION’ TO ‘BIOGRAPHICAL SPACE’ Ana Paula dos Santos de Sá* [email protected]

Este artigo aborda a questão das poéticas de Bolaño e de Vila-Matas no que tange à denominada ‘autoficção’. A partir de um questionamento da associação de determinados títulos dos autores a tal artifício literário, desenvolve-se uma reflexão acerca da relação da obra com seu exterior na contemporaneidade, destacando assim algumas das implicações da relação estabelecida pelo chileno e pelo catalão com o universo midiático. Para além de um olhar aos contornos da escrita híbrida desenvolvida por ambos os autores, ressaltam-se suas inscrições no que Leonor Arfuch (2010) entende por “espaço biográfico”, a fim de elucidar a possível origem da crescente assimilação, por parte da crítica, de seus personagens-escritores às suas próprias figuras / biografias. Palavras-chave: Roberto Bolaño; Enrique Vila-Matas; Autoficção; Espaço biográfico This article aims to discuss Bolaño’s and Vila-Matas’ poetics concerning the concept of autofiction. Questioning the current relation of some of these authors’ titles with this narrative strategy, it develops a reflection about the relation between the novel and its exterior in contemporary times, emphasizing the implications of the relation established by each of the authors (the Chilean and the Catalan) with the media universe. In addition, through observing the outlines of their hybrid writing, it highlights their potential of using the “biographical space” (Arfuch, 2010), in order to explain one of the possible origins of the increasing assimilation, noted by some critics, of their characters to their own performances / biographies. Keywords: Roberto Bolaño; Enrique Vila-Matas; Autofiction; Biographical space *

Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária da UNICAMP, bolsista da FAPESP, Campinas-SP, Brasil.

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Introdução (...) “Todo lo cercano se aleja”. Goethe lo escribió refiriéndose al crepúsculo de la tarde. Todo lo cercano se aleja, es verdad, tengo que pensar que es verdad. De nuevo, respiro aliviado. Goethe me ha permitido volver a alejarme algo de Bolaño. Enrique Vila-Matas

Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile, viveu sua adolescência no México e regressou a seu país de origem no ano do Golpe Militar (1973), com o propósito de apoiar os ideais socialistas do presidente Salvador Allende. Após ser preso devido à sua atuação junto à Unidade Popular, retornou ao México, de onde partiria definitivamente para a Espanha, em 1977. Na mesma década, antes de mudar-se para a Europa, fundara junto ao poeta Mario Santiago o Movimento Infrarrealista, um “dadá a la mexicana” segundo palavras do escritor chileno. Embora o fracasso do grupo tenha sido rapidamente assumido, ele é mantido até hoje por alguns de seus ex e recém-membros, conforme indica a web site oficial do Infrarrealismo. Bolaño publicou seu primeiro livro, Consejos de un díscipulo de Morrison a un fanático de Joyce, em 1984, em coautoria com o espanhol A. G. Porta. Antes dessa data é possível encontrar publicações isoladas em periódicos, desde poemas e manifestos literários até artigos críticos. A parte mais significante de sua produção centra-se em seus últimos dez anos de vida, de 1993 a 2003, com destaque para Los Detectives Salvajes (1998), livro pelo qual o autor recebeu no ano seguinte à sua publicação o “Premio Internacional de Novela Rómulo Gallegos”, inscrevendo-se definitivamente entre os nomes mais importantes da prosa contemporânea em língua espanhola. Desde sua morte, decorrente de um problema hepático, publicaram-se três romances póstumos, em parte inacabados, 2666 (2004), El tercer Reich (2010) e Los sinsabores del verdadero policía (2011). De acordo com pessoas próximas, Bolaño intensificou seu trabalho ao descobrir a doença, a fim de garantir a estabilidade financeira de sua família. Nascido em Barcelona em 1948, Enrique Vila-Matas possui uma biografia consideravelmente distinta da de Bolaño. Distante dos problemas financeiros enfrentados pelo autor chileno durante toda a vida, o espanhol cursou Direito e Jornalismo, esteve na África cumprindo com o serviço militar obrigatório, e residiu fora de sua cidade natal apenas por dois anos,

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durante a década de 70, período em que viveu em Paris. Suas primeiras publicações foram Mujer en el espejo contemplando el paisaje (1973) e La asesina ilustrada (1977), sendo a primeira pouco comentada e não reconhecida pela crítica, e a segunda a estreia do caráter metaficcional que permearia muitos dos textos futuros do escritor. Historia abreviada de la literatura portátil (1985) é tido como seu livro de consagração, com o qual Vila-Matas ganhou grande notoriedade na América Latina. Com El viaje vertical (1999), seu único romance de vertente mais realista, Vila-Matas é também agraciado com o “Premio Internacional de Novela Rómulo Gallegos”. Embora nunca tenha morado no continente americano, o autor declara ter grande afinidade com sua literatura. Atualmente o autor mantém uma média de publicação de dois livros por ano. Entre suas produções, destacam-se Bartleby y compañía (2001), El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), eleitas sua “Catedral Metaliteraria” pelo editor espanhol Jorge Herralde. Seus últimos romances, como Dublinesca (2010) e Aire de Dylan (2012), indicam que Vila-Matas continua seguindo pelo mesmo caminho, mantendo o escritor, a escrita e o leitor como alicerces de seus enredos. Um breve olhar às biografias dos autores é suficiente para se constatar que muitos episódios de suas vidas fazem-se presentes nas narrativas. A sequência de romances Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998) e Amuleto (1999) traçam para o personagem Arturo Belano um caminho quase idêntico ao vivido pelo autor chileno: de suas passagens pelo México à prisão após o Golpe Militar chileno, de sua doença hepática à fundação de um movimento de poesia marginal, muito do escritor é emprestado a seu alter ego. Vila-Matas, por sua vez, distribui entre seus narradores, a maior parte deles nascidos em Barcelona, em 1948, muitas das lembranças de sua estadia em Paris, além de inseri-los frequentemente em conferências / eventos literários efetivamente ocorridos e vinculá-los a nomes de pessoas reais, como, por exemplo, a falta que o narrador de Doctor Pasavento (2005), Andrés Pasavento, declara sentir de Bolaño. A análise mais minuciosa desse uso da realidade para compor a ficção permite notar que tais episódios pessoais, geralmente relatados em suas entrevistas, alcançam esferas ainda menos conhecidas pelos leitores, entre eles o fato de Bolaño ter sido funcionário de um camping na Espanha e de Vila-Matas ir com frequência a Portugal, bem como assumir grande afetuosidade pelo país. Na segunda parte de Los Detectives Salvajes, no depoimento da inglesa Mary Watson sobre Belano, tem-se um relato referente aos dias em que ela e seus amigos hospedaram-se no camping onde o pro-

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tagonista trabalhava; já nos romances de Vila-Matas, os narradores viajam com frequência para cidades portuguesas bem conhecidas pelo escritor. Em suma, a partir dos exemplos aqui listados, entre tantos outros possíveis, nota-se que os dois autores servem-se de traços autobiográficos para compor o perfil de seus personagens-escritores. De fato, ao retratar jovens poetas marginais com anseios vanguardistas, pertencentes à América Hispânica dos anos 70, Bolaño parece, por vezes, discorrer sobre sua própria trajetória. Vila-Matas, por outro lado, contextualizando seus enredos nos dias atuais, apresenta por meio de seus protagonistas a imagem de um escritor de condição semelhante à experimentada por ele atualmente: um autor já maduro e consagrado, dividido entre a escrita e os compromissos e deveres profissionais inerentes a ela. Entre as atuais discussões acerca desse aspecto de seus estilos literários, destacam-se os trabalhos que fazem menção à ‘autoficção’, um termo recorrente em estudos contemporâneos, em especial no que se refere à literatura em língua espanhola, mas ainda sem definição canonizada pela Teoria Literária. Leitores das obras dos dois autores não demoram a perceber o principal ponto que aproxima suas poéticas: a metaliteratura. Tanto o chileno quanto o catalão utilizam a literatura como alicerce para suas histórias, destacando-a como fio condutor, tema e / ou personagem. No que concerne a este artigo, entende-se a autoficção como uma das perspectivas possíveis para se estudar essa literatura sobre literatura, uma perspectiva caracterizada, sobretudo, pelo estudo do papel do personagem-escritor. Nesse sentido, observar em que medida os textos de Bolaño e Vila-Matas aproximam-se ou afastam-se de alguns dos conceitos de autoficção propostos até o momento abre caminho a um melhor entendimento do lugar ocupado pela figura do escritor em suas obras, bem como do cunho autobiográfico que é associado a seus perfis. Conforme se busca esclarecer neste trabalho, e com base em uma revisão crítica de parte dos subsídios teóricos disponíveis, a leitura aqui desenvolvida distancia-se de tal vertente crítica por não interpretar os vestígios autobiográficos que perpassam os romances de Bolaño e Vila-Matas como indicadores de uma nova estratégia narrativa, no caso, a autoficção, e sim como mais um entre outros elementos de suas estéticas. Emprestando de Enrique Vila-Matas a metáfora que define sua relação com a literatura de Bolaño, este artigo busca ressaltar que o tom pessoal de seus romances frente às teorias acerca da autoficção parece ecoar a frase de Goethe, tornando-se outro exemplo de que “todo lo cercano se aleja”.

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Sobre o ‘retorno do Autor’ The Romantic “author”, as originating and original source of meaning may well be dead, as Roland Barthes argued years ago, but his position – one of discursive authority – remains, and increasingly is the focus of much contemporary literature and also much theoretical debate. (...) In today’s metafiction, the artist reappears, not as a God-like Romantic creator –, but as the inscribed maker of a social product that has the potential to participate in social change through its reader. (...) No longer to believe in the manipulating “author” as a person is to restore the wholeness as the act of the énonciation: the “author” becomes a position to be filled, a role to be inferred, by the reader reading the text. (Hutcheon, 1991a: xv-xvi)

A recorrente presença do personagem-escritor nas narrativas contemporâneas tem levantado reflexões sobre o que seria um possível “retorno do Autor”, reavivando assim discussões acerca do papel e do lugar da entidade narrativa, do nome de assinatura na capa do livro, da imagem pública do escritor, etc. Em seu famoso ensaio de 1967, “A morte do Autor”, Barthes defende fundamentalmente que “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor” (Barthes, 1988: 70). Em sua concepção, “o escritor moderno nasce ao mesmo tempo em que o seu texto” (Idem, 68), de modo que, com o fim do “império do Autor”, desde Mallarmé, sua figura não mais serviria de explicação ou assumiria a função de origem da obra. Trata-se, linguisticamente, do emergir de um sujeito da enunciação em detrimento do reconhecimento da pessoa do autor (Idem, 67). Foucault, por outro lado, com “O que é um autor?” (1969), chama a atenção para a “função autor”, alegando que o nome do autor, não sendo “exatamente um nome próprio como os outros” (Foucault, 2006: 273) – visto que “mais do que uma indicação equivale a uma descrição” (Idem, 272) –, é dotado de uma função discursiva. Segundo sua visão, não se trata de resgatar sua figura como a origem do texto, mas de aceitá-la como um complemento do discurso, uma vez que “o anonimato literário não é suportável para nós” (Idem, 276). Conforme sugere a citação de Hutcheon, a hipótese de um “retorno do Autor” através das/nas ficções contemporâneas não aponta para a recuperação do autor como um deus, possuidor de todo o significado, mas parece fundamentar-se tanto no reforço do caráter performativo da escrita já assinalado por Barthes, quanto em um constante jogo com as diferentes instâncias da “função autor” defendida por Foucault. Como resultado desse fenômeno, multiplica-se na atualidade um tipo de romance (híbrido)

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que aposta simultaneamente em estratégias que obscureçam os contornos e limites da voz narrativa, fragmentando-a, e em elementos que a associem ao seu maior referente externo, a pessoa do autor. Tomando como exemplo o conto “Borges y yo”, escrito pelo escrito argentino homônimo em 1960, é possível notar o emprego de uma estratégia fundada precisamente em um jogo em torno dessa condição por vezes paradoxal da voz narrativa na literatura contemporânea. A oposição de um “eu” narrador a um “outro” chamado Borges apresenta uma voz narrativa que “nasce”, fazendo uso do termo de Barthes, junto com o texto, ao mesmo tempo em que se observa uma referência à bagagem extratextual que o nome Borges carrega consigo, visto que, segundo Foucault, o nome de um autor “manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discursos, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura” (Foucault, 2006: 273). O excerto abaixo torna evidente que, longe de uma menção gratuita, o “Borges” descrito sugere uma referência à imagem pública / mítica do escritor argentino, a uma imagem construída / encenada que o aproxima da figura do ator; trata-se do escritor que está nos dicionários em contraste ao escritor que é apenas o “eu” de um texto, o “eu” simplesmente escritor: Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica (Borges, 1996: 186). [sublinhado meu]

Entre as diversas leituras possíveis, o texto de Borges revela certo diálogo com o conceito de ‘performance’ atualmente associado a narrativas que jogam com a figura autoral na contemporaneidade. Segundo Klinger (2008), a própria concepção de autoficção relacionar-se-ia a uma forma de escrita de si como performance, no sentido artístico do termo, por meio da qual observa-se a construção (de caráter teatralizado) da imagem do autor dentro do próprio texto. De acordo com essa concepção, em textos autoficcionais o autor (vida, referência externa, imagem pública) e o personagem-escritor (texto) constroem-se simultaneamente, independente-

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mente de uma imagem prévia que possa existir com relação a esse sujeito (Klinger, 2008: 20). Assim como o ator e seu personagem formam no palco um sujeito duplo, também autor e personagem-escritor iserem-se em um work in progress, cabendo ao leitor “assistir ao vivo ao processo de escrita” (Idem, 26). Delinear os pontos de contato entre a escrita borgeana e o que hoje é intitulado autoficção demandaria uma pesquisa que excede os objetivos deste trabalho. Dito isso, e considerando os fins dessa breve introdução, o que deve ser ressaltado em relação a trabalhos como os de Klinger (2008) é a atenção e importância dispensadas à reflexão sobre o espaço que essas novas formas da já conhecida “estrategia borgeana de desorientar” (Speranza, 2001: 101) – formas estas muitas vezes interpretadas como resultado de um “desejo narcisista de falar de si” (Klinger, 2008: 13) –, vem, significativamente, alcançando nos dias de hoje. Ainda no que tange aos trabalhos desenvolvidos recentemente no Brasil, também se destacam as ideias de Azevedo (2008) e Viegas (2007), as quais, em diálogo com Klinger, defendem que debates sobre a dupla híbrida autobiografia-ficção na atualidade, sejam eles voltados especificamente a esse “retorno do Autor” na literatura contemporânea, sejam sobre narrativas performáticas, autoficcionais ou de outra ordem, não podem desconsiderar o papel da cultura midiática na construção da imagem ou do mito do escritor nos dias de hoje. Segundo suas concepções, a autoficção, por exemplo, seria um tipo textual em diálogo com o “narcisismo de uma sociedade midiática” (Azevedo, 2008: 32), decorrente de certa “obsessão contemporânea pela presença” (Viegas, 2007: 18). Situando-se no âmbito dessas discussões, e partindo da hipótese de que o personagem-escritor surja como o principal elemento desencadeador de tais reflexões, este artigo busca, para além do questionamento do lugar das poéticas de Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas frente à autoficção, pensar as implicações da relação do chileno e do catalão com o universo midiático, a fim de explorar os possíveis ponto de contato entre obra e exterior na contemporaneidade.

Da autoficção ao ‘espaço biográfico’ A palavra autoficção surge pela primeira vez no romance Fils, publicado em 1977 pelo escritor francês Serge Doubrovsky, em resposta a uma janela deixada em branco por Philippe Lejeune em Le pacte autobiographique, de 1973; na tabela esboçada pelo teórico, desconsiderava-se a possibilidade de

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coincidência entre o nome do autor e o nome do personagem dentro de um romance, haja vista tratar-se de uma ocorrência exclusiva à autobiografia. Fils surge nesse momento como um afrontamento a essa restrição de ordem estética, ao atribuir ao narrador-personagem o mesmo nome presente na capa do livro, Serge Doubrovsky. Ainda que muitos tenham sido os escritos de Lejeune sobre a repercussão de seu texto, e apesar das novas formulações que a autoficção vem ganhando na atualidade, defende-se neste trabalho que a relevância do nome próprio enquanto origem de tal discussão não deva ser esquecida – Lejeune assume em Le pacte... a possibilidade de a relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem estabelecer-se de forma implícita na autobiografia, mas insiste, a todo o momento, na relevância de uma identificação explícita, garantida pela repetição do nome do autor. No que concerne aos atuais estudos acerca da autoficção, vale frisar que a crítica é unânime em afastá-la do “pacto referencial” ao qual a autobiografia estaria, segundo Lejeune (1973), sujeita, isentando-a do que o francês denomina “prova de verificação”. Como bem esclarece Manuel Alberca (2007), a autoficção seria um tipo textual regido por “la verdad de las ficciones”, uma verdade “de orden y coherencia estéticas”, diferentemente do gênero autobiográfico, que pode chegar até mesmo a uma vertente jurídica, consequente de seu compromisso com a verdade (Alberca, 2007: 285). Segundo a tese postulada pelo pesquisador espanhol, verifica-se nesse tipo texto um “pacto ambíguo” consequente de sua particularidade de não pertencer nem ao pacto romanesco nem ao pacto autobiográfico, mas precisamente à tensão fronteiriça entre esses dois espaços narrativos. Com isso, Alberca não nega o estatuto ficcional da autoficção reivindicado já em Doubrovsky, de modo que a referida ambiguidade associa-se, sobretudo, a uma confusão em torno da figura e do papel do narrador e não da estrutura narrativa: la propuesta y la práctica autoficcional (...) se fundamentan de manera más o menos consciente en confundir persona y personaje o en hacer de la propia persona un personaje, insinuando, de manera confusa y contradictoria, que ese personaje es y no es el autor. (Idem, 32)

Embora seja indiscutível a qualidade da revisão teórica que Alberca oferece em El pacto ambíguo. De la novela autobiográfica a la autoficción (2007), o qual se revela uma produtiva leitura para aqueles que pretendam entender melhor o caminho percorrido pelos diferentes tipos e gêneros de

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escritas de si nas narrativas em língua espanhola, alguns dos exemplos de textos autoficcionais listados pelo pesquisador dão margem a questionamentos, sobretudo ao deixarem em segundo plano a presença do nome do autor. Sua sugestão e definição de um pacto exclusivo à autoficção, o “pacto ambíguo”, que a afaste não apenas do “pacto autobiográfico”, como prevê a maior parte da crítica atualmente, mas também de um pacto exclusivamente romanesco, contrariando aqueles que a entendem simplesmente como um romance entre tantos possíveis, demonstra o rigor de seu estudo e tem o mérito de chamar a atenção para a necessidade de se observar as singularidades desse artifício. Porém, ao mesmo tempo em que o “pacto ambíguo” surge como uma inovadora e relevante perspectiva teórica, romances como os de Bolaño e Vila-Matas citados ao longo de sua análise – especificamente Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998), El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) – enfraquecem sua abordagem, por não se configurarem enredos necessariamente determinados pela ambiguidade, ainda que esta assuma seu lugar em passagens determinadas. Além das ocorrências (de cunho autobiográfico) citadas no início desta seção, outras estratégias observadas nos romances de Bolaño e Vila-Matas explicam a interpretação de seus textos como autoficcionais, encaixando-se nos parâmetros descritos por Alberca. Em relação a Estrella Distante (1996a), destaca-se a nota introdutória assinada por Bolaño, por meio da qual se institui um narrador dúbio no livro: Arturo Belano (seu alter ego e personagem recorrente de seus textos) / o próprio escritor chileno. De acordo com a nota, e dado que o romance origina-se do último capítulo do livro de Bolaño que o antecede, La literatura nazi en America (1996b), Belano não ficara satisfeito com o texto anterior do autor – um texto cuja história fora narrada pelo personagem a Bolaño –, o que deu início à escrita de Estrella Distante: (...) Arturo deseaba una historia más larga (...). Así pues, nos encerramos durante un mes y medio en mi casa de Blanes y con el último capítulo en mano y al dictado de sus sueños y pesadillas compusimos la novela que el lector tiene ahora ante sí. Mi función se redujo a preparar bebidas, consultar algunos libros, y discutir, con él y con el fantasma cada día más vivo de Pierre Menard, la validez de muchos párrafos repetidos. (Bolaño, 1996a: 11)

A partir de uma clara menção a Borges, Bolaño coloca-se na condição de ouvinte, mas não transfere totalmente a autoria do livro a seu alter

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ego, quase que descrevendo uma obra feita a quatro mãos. Vale destacar que o chileno opta por apresentar o personagem como Arturo B. ao invés de Arturo Belano – depois, faz menção apenas ao primeiro nome, Arturo, como consta no trecho acima transcrito –, causando no leitor uma impressão comparável à experimentada por um leitor de Franz Kafka ao se deparar com um de seus personagens “K.”. De acordo com a leitura aqui desenvolvida, em ambos os casos, tanto em Bolaño, quanto em Kafka, a familiaridade percebida pelo leitor nos nomes dos personagens não é considerada suficiente para se levantar dúvidas quanto ao estatuto ficcional das obras, nem indica um pacto de leitura particular, ainda que seja difícil um leitor ficar indiferente à provocação dos autores. Porém, sob a luz de Manuel Alberca, mais do que uma provocação, a grafia do nome do narrador, ora com um sobrenome de mesma inicial do autor factual (B.), ora com um sobrenome homofônico (Belano / Bolaño), se somada ao prólogo redigido por Bolaño e aos vestígios autobiográficos anteriormente citados, funciona como um alerta inicial de leitura do caráter autoficcional do texto que o leitor está prestes a descobrir. A partir desses argumentos, pode-se inferir que a presença de Los Detectives Salvajes (1998) no inventário autoficcional de Alberca, uma inclusão não explicada pelo pesquisador, é justificada pelos mesmos pressupostos, haja vista a reaparição e o papel do personagem Arturo Belano nesse romance, bem como os traços autobiográficos que Bolaño novamente lhe empresta – nesse contexto, traços referentes aos anos em que viveu no México, na companhia do poeta cofundador do Infrarrealismo, Mario Santiago. A primeira grande questão que se pode levantar sobre uma possível interpretação de Estrella Distante (1996a) e Los Detectives Salvajes (1998) como sendo textos autoficcionais surge da identidade e do papel assumidos pelos narradores nos dois livros. Diferentemente de El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), de Enrique Vila-Matas, ambos diários de personagens-escritores, em Bolaño os escritores-protagonistas não assumem o papel de narradores, sendo, portanto, apresentados por outros personagens-escritores. Em síntese, observa-se que, contrariamente à premissa autoficcional de identificação entre autor, narrador e personagem aceita por Alberca, Arturo Belano assume em Estrella Distante (1996a) o papel de um narrador observador (e investigador) responsável por traçar a biografia/ descrever a trajetória do real protagonista da trama, o misterioso poeta-assasino Carlos Wieder, aviador a serviço dos militares nos anos do Golpe Militar chileno. Tudo o que o leitor descobre acerca do narrador, de traços de sua personalidade a episódios pessoais, está sempre associado a histórias

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em torno da relação de Belano com Wieder, e não a um falar de si autobiográfico. Considerando-se que nessa obra a biografia do personagem de maior identificação com o autor factual fica em segundo plano, seria possível atribuir-lhe um “pacto ambíguo”, conforme sugere Alberca? Tendo em vista que a aproximação entre ficção e autobiografia dá-se de forma sutil, caberia falar em uma “vacilação interpretativa” por parte do leitor? Também em Los Detectives Salvajes (1998) os papéis de narrador e de protagonista são atribuídos a personagens distintos, cabendo a Arturo Belano, agora no México de 1975 e 1976, assumir o segundo deles, encenando, juntamente a seu fiel companheiro Ulises Lima, a busca pela poetisa mexicana desaparecida Cesárea Tinajero. Tanto os registros do diário do jovem Garcia Madero, que compõe a primeira e a terceira (e última) parte do romance, quanto os depoimentos dos diferentes personagens inseridos na segunda seção do livro tornam duplo o mistério do enredo, já que Belano e Ulises apresentam-se tão misteriosos quanto o paradeiro e o destino da poetisa por eles procurada. Em síntese, e fazendo uso das palavras da pesquisadora María Alejandra Gutiérrez Tovar, é possível afirmar que há insistentemente em Bolaño “el enigma de un escritor que debe ser develado por otros” (Gutiérrez Tovar, 2011: 269). Com base nesse aspecto, observa-se que o tom policial de seus textos funda-se, com frequência, na dissociação entre escritor-narrador e escritor-protagonista, de modo que a ausência da voz do segundo legitime a busca/investigação empreendida pelo primeiro; em outras palavras, tem-se o personagem-escritor como uma peça fundamental para a construção do mistério. Ao encontro das conclusões da Tese de Gutiérrez Tovar a respeito desses “autores secretos” (Idem, 102), entende-se nesta pesquisa que, embora em certa medida ausentes, “no hay una ausencia total, porque al presentarse al autor como un enigma de alguna manera se demuestra su presencia, aunque paradójicamente se haga desde la ausencia” (Ibidem). Cabe destacar que nos romances do chileno descobrir o paradeiro desses poetas confunde-se com a própria descoberta da literatura. Por meio de Carlos Wieder, o leitor acompanha a descoberta de uma literatura de sofisticação perversa, da expressão da arte como barbárie; nela, ética e estética estabelecem uma relação conflituosa, que acaba dividindo o narrador-investigador entre uma valoração artística dos atos-poéticos de Wieder e um julgamento ético de sua postura política. Em Cesárea Tinajero observa-se a personificação da utopia vanguardista, sendo sua busca uma concomitante procura pelas aproximações entre arte e vida.

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A partir dessas considerações, conclui-se que a falta de coincidência entre voz narrativa e escritor-protagonista, juntamente com a apresentação do perfil de Arturo Belano em meio à busca da enigmática poeta Tinajero levantam dúvidas quanto à suficiência da presença do alter ego de Bolaño, ainda que portador de todas as referências autobiográficas citadas anteriormente, para se instituir (e se manter) uma leitura ambígua das obras. Até mesmo os relatos que de certa forma constroem uma biografia mínima de Arturo Belano e Ulises Lima na segunda parte de Los Detectives Salvajes não se limitam à descrição e ao julgamento de suas personalidades, ou seja, não ficam restritos a suas histórias pessoais, mas funcionam, sobretudo, como ampliador do romance. A partir de menções a acontecimentos anteriores e posteriores à morte de Tinajero, fato este que encerra o alcance do diário de Garcia Madero, o capítulo caminha em direção ao retrato de uma geração ao explorar a origem e os desdobramentos do Real Visceralismo. Em Enrique Vila-Matas discutir o princípio de identidade que norteia a autoficção torna-se mais delicado, uma vez que o autor faz da busca e/ ou fragmentação identitária o tema central de seus enredos. Ao incluir El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) em sua lista de textos autoficcionais, diários narrados respectivamente pelos personagens-escritores Rosario Girondo e Andrés Pasavento, Manuel Alberca justifica-se preponderantemente com base no que reconhece como uma ambiguidade construída a nível textual, haja vista os escritores-protagonistas possuírem nomes sem nenhuma similaridade ao do autor, impedindo que a ambiguidade ocorra a nível paratextual, isto é, explicitamente. Em El mal de Montano o nome do narrador não chega a ser informado ao leitor, já que “Rosario Girondo” é assumido pelo protagonista como um pseudônimo, ou um “matrónimo” (Vila-Matas, 2002: 125), por se tratar do empréstimo do nome de sua mãe. Somado a isso, a identidade atribuída a esse personagem no primeiro capítulo, momento em que o narrador se apresenta como crítico literário e pai de um escritor enfermo chamado Montano, é posteriormente desmentida – Girondo explica que a história exposta no primeiro capítulo correspondia a um livro de sua autoria, uma ficção, “la nouvelle en la que se entrelazan la ficción con mi vida real” (Idem, 106) –, momento em que o pseudônimo passa a ser assumido. Na interpretação de Alberca (2007: 138), o fato de o Eu do narrador e protagonista ser apresentado como um espaço vazio nesse romance garante, junto aos dados autobiográficos de Vila-Matas e discussões explícitas sobre o tema do duplo, a identificação entre narrador, personagem e autor, exemplificando o que o pesquisador entende por “anonimato sugestivo”. Com base nisso,

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afirma-se que El mal de Montano desenvolve com clareza muitos aspectos comuns a textos autoficcionais, como o fato de o “eu” típico desse tipo de narrativa oscilar “entre la carencia de una identidad propia y la necesidad de auto-invención” (Alberca, 2007: 213). Vale citar que, colaborando com a argumentação de Alberca, o texto que integra a contracapa de El mal de Montano apresenta o romance da seguinte forma: “entre el diario íntimo y la novela, el viaje sentimental, la autoficción y el ensayo, El mal de Montano nos propone el triunfo de la literatura” (sublinhado meu). Fascinado pelo escritor suíço Robert Walser, que passara seus últimos dias de vida em um manicômio, e desejoso por desaparecer, por fugir da condição de escritor de sucesso, o personagem-escritor, protagonista e narrador de Doctor Pasavento, extrapola o desdobramento de identidade já presente em El mal de Montano para adotar um comportamento à beira da esquizofrenia: do reconhecido escritor catalão Andrés Pasavento, o personagem, inspirado pela história de seu “héroe moral”, Walser, passa a inventar para si distintas identidades de médicos psiquiatras: de escritor para Dr. Pasavento, seguido de Doctor Ingravallo, o qual se transforma, no decorrer da história, em uma espécie de superego do narrador, e por fim, Doctor Pynchon (inspirado no escritor Thomas Pynchon). Em meio a tantas personalidades associadas à figura do narrador-protagonista de Doctor Pasavento (2005), é notória a dificuldade em se identificar um pacto autoficcional com base na reincidência do nome autor. Diferentemente de sua leitura de El mal de Montano, Alberca não associa a Doctor Pasavento a ideia de um “anonimato sugestivo”, pois neste romance o nome do narrador, Andrés Pasavento, é imediatamente fornecido, e não ocultado por um alter ego como o faz Vila-Matas no primeiro romance. Porém, considerando as distintas identidades que seu narrador assume ao longo da narrativa, Alberca explica que, assim como na maioria dos relatos autoficcionais, há em Doctor Pasavento o retrato de um sujeito contraditório, “un tipo de héroe que hace ostentación de su fragmentación y vulnerabilidad” (Alberca, 2007: 279). Em sua percepção, “el objetivo de hacerse invisible tras la propia identidad es una de las metas de Vila-Matas en sus relatos” (Idem, 206); dito de outra forma, para Alberca o uso de diferentes “máscaras” num mesmo personagem, ou esse “haz de yos en movimiento” (Idem, 207), afirma-se como uma eficaz estratégia para o autor esconder-se por detrás da própria identidade – “en la autoficción la identidad del yo narrativo y su autor resultan tan transparentes que podría pasar desapercebido, pues nada mejor que

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esconderse tras la propria identidad que, al hacerse explícita, resulta impenetrable” (Idem, 205). En fin, el héroe de la autoficción es un acabado ejemplo del neonarcisismo posmoderno que hace de la fragmentación y la falta de unidad del sujeto un motivo contradictorio de estímulo al autoconocimiento y de necesidad de construirse un mito personal, un suplemento de ficción o viático que le ayude a transitar por el desierto del ser. Son personajes que cuanto más interés muestran en conocerse, cuanto más saben de si mismos, más frágiles y vulnerables se sienten. (Alberca, 2007: 281)

Contra-argumentando a análise de Manuel Alberca, inclusive com menções explícitas a seu livro, o também espanhol José María Pozuelo Yvancos (2010) observa mais uma peculiar “figuración del yo” nos livros Vila-Matas do que um pacto autoficcional. Insistindo na rememoração do contexto de origem do neologismo, Pozuelo Yvancos adverte que o princípio de identidade nominal fora decisivo na resposta de Doubrovsky ao “pacto autobiográfico” lejeuneano e que fadar a presença de uma voz pessoal à autoficção é desconsiderar as múltiplas possibilidades dessa “figuración del yo”: (...) este origen que sigue vinculando la autoficción a la identidad real biográfica coincidente entre personaje y autor (que es la constante inevitable sostenida en la definición de la categoría), ha permanecido como fondo implícito que ha hecho entender la crítica que la representación del yo personal es asimilable a poseer un fondo autobiográfico o, dicho de otro modo, que el problema de la figuración del yo se resuelve principalmente en la relación entre el texto y la vida (que es solamente una de las posibilidades que la novela ha experimentado desde que existe). (...) tal presunción y énfasis en la correlación una relación texto-vida, ha reducido notablemente el panorama de posibilidades de representación de un yo figurado de carácter personal, que no tiene por qué coincidir con la autoficción, ni siquiera cuando se establece como personal, puesto que la figuración de un yo personal puede adoptar formas de representación distintas a la referencialidad biográfica o existencial, aunque adopte retóricamente algunos de los protocolos de ésta (por semejanzas o asimilaciones que pueden hacerse de la presencia del autor) (Pozuelo Yvancos, 2010: 22).

Diferentemente da autoficção, o “eu” presente em Vila-Matas – e também nas narrativas do espanhol Javier Marías, outro escritor analisado em Figuraciones del yo en la narrativa (2010) – é, segundo Pozuelo Yvancos,

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mistificado de forma consciente pelo autor (Idem, 29). Ainda que um tom pessoal seja reconhecido, há nesses textos um “yo figurado” que ironiza a própria distancia entre autor e narrador. Para o pesquisador espanhol, a única identidade reconhecível nos textos vilamatianos é a identidade literária (Idem, 140) que o autor construiu para si mesmo através de seus personagens, e não sua identidade factual. Nesse ponto, resume-se o eixo da argumentação de Pozuelo Yvancos contra leituras que relacionem VilaMatas a autoficção: em sua visão, a porosidade das fronteiras genéricas característica dos enredos do catalão inclina-se mais para um contato com os gêneros ensaísticos do que para com a autobiografia; em suma, defende-se a presença de uma voz familiar vinda de um “eu ensaístico” em detrimento do reconhecimento da identidade do autor propriamente dita – “de manera que figuraciones presentes en novelas o cuentos han sido adelantadas en artículos, conferencias y ensayos, existiendo un trasvase continuo entre una parcela de su producción literaria y la otra” (Idem, 144). Expandido os apontamentos de Pozuelo Yvancos acerca de Vila-Matas para o universo literário de Bolaño, pode-se afirmar que a voz reflexiva definida pelo pesquisador perpassa grande parte da obra de ambos. Trata-se de uma voz “que comúnmente conocemos asociada al ensayo”, mas que é concedida pelos autores aos seus personagens (Pozuelo Yvancos, 2010: 30); “que le pertenece y no le pertenece al autor, o le pertenece de una forma diferente a la referencial. Le pertenece como voz figurada” (Ibidem). As recorrentes referências a Robert Musil e Robert Walser, em Vila-Matas, e a Enrique Lihn e Nicanor Parra, de um lado, e a Pablo Neruda e Octavio Paz, de outro, em Bolaño – apenas para citar alguns dos principais nomes –, instigam o leitor a perceber em suas narrativas um discurso literário marcado por certa linearidade, que transforma suas obras em uma espécie de autobiografia literária dessa voz figurada (“que pertence e não pertence ao autor”). Em El Mal de Montano (2002) a origem da paralisia literária experimentada pelo narrador no começo do romance é por ele interpretada como um “castigo” decorrente do tema de seu último livro. Com uma notória referência ao romance anteriormente publicado por Vila-Matas, Bartleby y compañía (2001), espécie de catálogo que reúne referências a escritores que deixaram precocemente de escrever, o personagem suspeita que “estuviera recibiendo un castigo por haber escrito sobre los que dejan de escribir” (Vila-Matas, 2001: 109). Assim como em Estrella Distante (1996a) de Bolaño, a citação de Vila-Matas dá margem à suspeita de uma dualidade narrativa, contudo, é preciso ressaltar que se trata de exemplos fundamen-

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talmente ligados a outro recurso comum de suas poéticas: a intertextualidade. Ou seja, verifica-se mais a formação de uma rede intertextual que rememora a voz narrativa / a figura do narrador de outros textos do que uma explícita referência à figura do autor. No prólogo de Estrella Distante anteriormente comentado, a grafia alternativa do nome de Arturo Belano, Arturo B., sugere ao leitor um vínculo entre o alter ego de seus romances e o protagonista de muitos contos do autor, o misterioso personagem “B.” – entre os contos destacam-se “Una aventura literaria” e “Llamadas telefónicas”, publicados em Llamadas telefónicas (1997), e “Últimos atardeceres en la tierra”, “Días de 1978” e “Vagabundo en Francia y Bélgica”, de Putas asesinas (2001). Com base nessa reincidência, uma leitura comparativa-investigativa dos textos de Bolaño permitiria interpretar o conjunto de sua obra como uma biografia fragmentária de tal personagem. Estratégias como esta constroem um ar familiar ao leitor e dão margem para que o autor elabore uma voz narrativa própria (Pozuelo Yvancos, 2010: 143). No que se refere à perspectiva adotada neste trabalho, considera-se que determinadas perspectivas teóricas latino-americanas recentes, como as da argentina Florencia Garramuño, descrevem de forma mais satisfatória essas poéticas do que o conceito de autoficção. A rede intertextual aqui destacada é prevista, por exemplo, como característica comum à literatura formada a partir dos “restos do real” descrita por Garramuño, que interpreta tais “repetições, retornos, releituras e reescritas” como uma manifestação do “questionamento do conceito moderno de originalidade” (Garramuño, 2012: 229). Para a pesquisadora, em análise da obra de Juan José Saer, mas em referência a ocorrências igualmente comuns a Vila-Matas e Bolaño, em especial ao segundo, essa repetição de personagens e/ou “ampliações e condensações dos tempos narrativos” não apenas conecta as obras, “mas, sobretudo, fazem com que um romance reescreva o outro, dado que a informação desconhecida sobre os personagens num deles, que outro romance repõe, funciona corrigindo – de modo gramático às vezes – a intriga e seu significado” (Idem, 103). A título de síntese, e recorrendo a um dos romances aqui analisados como exemplo, faz-se válida a pergunta: quantos leitores de Estrella Distante relacionariam, sem um aviso prévio, a prisão do narrador Arturo Belano a um fato vivenciado pelo autor do livro, decorrente de sua postura política no contexto do Golpe Militar? Tanto a veracidade do ocorrido quanto uma dúvida em relação a esta são irrelevantes na leitura dessa obra, pois o pacto de leitura estabelecido entre Bolaño e seu leitor é genuinamente ficcional. Em outras palavras, é preciso ter-se em conta que os leitores não neces-

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sariamente conhecem a biografia dos autores, salvo suas nacionalidades e faixas etárias. Logo, sem a explícita informação de que autor e narrador possam dividir dados pessoais comuns, o pacto de leitura autoficcional não é atestado. Conclui-se, portanto, que, enquanto o “pacto autobiográfico” assegura a “certeza” quanto ao que é lido, o pacto autoficcional, pautado na reincidência do nome próprio, asseguraria a certeza da dúvida. Por outro lado, ao se considerar o cenário (social, econômico e cultural) da literatura contemporânea, é preciso reconhecer que o advento da internet, somado a certa espetacularização associada à indústria editorial nos dias de hoje, aproximou o escritor de seu público, não sendo raras as ocasiões em que este conhece em detalhes a vida e personalidade de determinado autor. Barthes já criticara em “A morte do autor” (1967) a exacerbada importância conferida à “pessoa” do autor, de modo que junto ao anúncio de sua “morte”, pretendido por seu ensaio, vê-se a admissão de que a figura do escritor ainda reinava “nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário intimo, a pessoa e a obra” (Barthes, 1988: 66). Trata-se de um fenômeno não apenas igualmente válido para a atualidade, mas que desde a década de 70 sofreu um gradual agravamento. Junto a um bom êxito de vendas, os escritores, incluindo Bolaño e Vila-Matas, deparam-se com uma proporcional participação em eventos e feiras literárias, além de diversos convites para entrevistas (para TV, jornais, revistas e internet), etc. Como bem assinala Alberca (2007: 24-25), ao deixar para trás a posição de relevância e prestígio social do século XIX, o escritor perde seu caráter heroico e passa a ter um valor mercantil, que, paradoxalmente, o coloca em evidência ao mesmo tempo em que o “democratiza”, tornando-o uma figura “banal”. Reiterando o argumento inicial, pode-se afirmar que, no que diz respeito à relevância da identificação do nome do autor em textos autoficcionais, essa crescente valorização da imagem pública do escritor não traz grandes implicações, pois, o que está (ou, ao menos, deveria estar) em jogo na autoficção não são os conhecimentos prévios do leitor, mas o alerta para um protocolo específico de leitura. Os leitores podem ser dotados de diferentes graus de conhecimento da biografia dos autores, entretanto, uma vez instaurado o pacto autoficcional, essas possíveis informações perdem valor, dando protagonismo à incerteza (o que é verdadeiro passa a soar falso, o falso começar a parecer verdadeiro), não importando a constatação dos fatos.

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A morte prematura de Bolaño em 2003 fez com que o autor não vivenciasse a era midiática com a mesma plenitude que Vila-Matas. É notório que a frequente relação do espanhol com a internet e os jornais tornou suas publicações de domínio público tão acessadas e requisitadas quanto seus livros. Consciente disso, Vila-Matas faz da ironia sua marca registrada para lidar com os compromissos de seu ofício, de modo que a veracidade das opiniões e relatos proferidos por meio de entrevistas, blogs etc. é posta em causa pelo leitor. Repetindo a estratégia empregada em suas ficções, o autor atribui à sua imagem pública uma biografia tão duvidosa quanto às de seus narradores, exercendo uma autoficção de mão dupla. Nesse sentido, Vila-Matas torna-se um bom exemplo de que uma eventual consciência dos leitores quanto à biografia de escritores não significa necessariamente um conhecimento da “verdadeira” vida dos autores, mas das histórias e dados pessoais que esses autores assumem /atribuem a si mesmos. Na visão de Alberca, em ressalva à (im)possibilidade do gênero autobiográfico, é necessário relembrar que em volta do conceito de “verdade” tem-se em jogo mais o crédito que o leitor dá às declarações do autor devido ao comprometimento que sua voz e/ou contexto profere, do que a garantia de uma verdade indiscutível inerente ao gênero (Alberca, 2007: 46-47). Atenta ao atual alcance dos “gêneros biográficos midiáticos” (blogs, entrevistas, redes sociais, entre muitos outros), Leonor Arfuch (2010) faz uso do termo “espaço biográfico” para referir-se tanto a modelos biográficos clássicos quanto a gêneros discursivos atuais, muitos deles relacionados à indústria cultural; em sua opinão, trata-se de “um espaço comum de intelecção dessas diversas narrativas” (Arfuch, 2010: 37). Defendendo, em diálogo com Bakhtin, a impossibilidade de identificação entre “autor e personagem, nem mesmo na autobiografia, porque não existe coincidência entre a experiência vivencial e a ‘totalidade artística’” (Idem, 55), Arfuch contesta as formulações de Lejeune e Starobinski e justifica a importância de se pensar os gêneros biográficos na contemporaneidade a partir do conceito de “espaço biográfico” em detrimento de modelos narrativos e pactos de leitura rígidos: Na impossibilidade de chegar a uma fórmula “clara e total”, de distinguir com propriedade, para além do “pacto” (de Lejeune) explicitado, entre formas auto e “heterodiegéticas”, entre, por exemplo, autobiografia, romance e romance autobiográfico, o centro das atenções se deslocará então para um espaço biográfico, onde, um tanto mais livremente, o leitor poderá integrar as diversas focalizações provenientes de um ou outro registro, o

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“verídico” e o ficcional, num sistema compatível de crenças. Nesse espaço, podemos acrescentar, com o treinamento de mais de dois séculos, esse leitor estará igualmente em condições de jogar os jogos do equívoco, das armadilhas, das máscaras, de decifrar os desdobramentos, essas perturbações de identidade que constituem topoi já clássicos da literatura. (Arfuch, 2010: 56)

Os apontamentos de Arfuch sobre a entrevista midiática, gênero privilegiado ao longo de sua análise, fornecem bons subsídios para o entendimento do contexto ao qual Bolaño e Vila-Matas pertencem, além de esboçar possíveis justificativas para a frequente relação de suas poéticas ao recurso autoficcional. Nas palavras da pesquisadora, “entre os territórios biográficos que a entrevista conquistou, há um privilegiado: o dos escritores (...), aos quais, paradoxalmente, se solicita um suplemento de outra voz” (Idem, 209). Em síntese, nota-se uma correlação entre perguntas de cunho profissional e íntimo que tendem à “construção compartilhada de uma narrativa pessoal” do entrevistado (Idem, 212), necessária, por sua vez, à configuração (mercadológica) da imagem pública (ou mito) do autor. Ao buscar por esta “outra voz”, a entrevista hoje seria caracterizada, sobretudo, pela tentativa de se conhecer o “além da obra”. Com base nesses pontos, Arfuch discorre sobre o porquê de a entrevista nada assegurar quanto à identidade do escritor, ainda que esteja atualmente imersa em um “espaço biográfico”: Como em qualquer tipo de entrevista, e por mais especializada que seja, haverá uma construção recíproca do personagem, entrevistador e entrevistado, uma apresentação muito cuidadosa de si – não em vão são compartilhados um saber sobre o poder e a significação do dizer e do mostrar –, uma previsível barreira interposta entre narração e intimidade, mesmo quando abundam anedotas (Arfuch, 2010: 217).

O caso de Bolaño e Vila-Matas serve de exemplo para muitas das observações feitas por Arfuch. A consciência de uma aproximação entre as experiências biográficas de ambos e alguns episódios de suas narrativas têm como principal fonte as declarações proferidas (ou as “narrativas pessoais construídas”) em entrevistas: – ¿Has formado parte de algún grupo poético semejante al «real-visceralismo» de Los detectives salvajes? RB: Sí, sí. El infrarrealismo. Mario Santiago, un poeta mexicano, y yo lo fundamos en México, en el año 74 o 75, ya no me acuerdo. Que es lo que

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está detrás del real-visceralismo de Los detectives salvajes. El infrarrealismo. Que fue un movimiento totalmente dadaísta, anarquista, y con el que nos divertimos como chinos. Editamos revistas, como Correspondencia Infra, Rimbaud, vuelve a casa, y cosas así (Bolaño apud Gras Miravet, 2000: 55). – Precisamente, a partir de la publicación de Los detectives salvajes, el lector de tus novelas suele considerar el personaje Arturo Belano como un alter ego tuyo, ¿aceptas esta lectura, consideras Arturo Belano como una de tus máscaras? RB: En cierta forma. Es un alter ego en el sentido de que hay cosas que le pasan a él que a mí me han ocurrido. Pero en otros casos, no, por supuesto. Como cualquier alter ego. Es decir, un alter ego es lo que uno querría ser, pero también es lo que uno se ha salvado de ser. Yo me salve de ser Arturo Belano, y hubiera querido ser también en algún otro momento Arturo Belano. Por lo demás, muchísimas cosas en común. (Idem, 62). – (...) Pero te detuvieron. RB: Me detuvieron, pero un mes y medio después (del Golpe), en el sur. – Y te ayudaron a escapar unos compañeros. RB: Unos compañeros de liceo. Estuve detenido ocho días, aunque poco, en Italia, me preguntaron: ¿qué le pasó a usted?, ¿nos puede contar algo de su medio año en prisión? Y eso debe al malentendido de un libro en alemán donde me pusieron medio año de prisión. Al principio me ponían menos tiempo. Es el típico tango latinoamericano. En el primer libro que me editan en Alemania me ponen un mes de prisión; en el segundo, en vistas que el primero no ha vendido tanto, me suben tres meses; en el tercer libro a cuatro meses, en el cuarto libro a cinco meses y, como siga, todavía voy a estar preso (Bolaño apud Álvarez, 2005: 37-38).

Diferentemente de Bolaño, que reage com naturalidade frente a perguntas que buscam aproximar ou verificar possíveis pontos de contato entre ficção e realidade, Vila-Matas revela certo incômodo quando confrontado à mesma espécie de indagação: (...) VM: Ahora que lo pienso: siempre que termino una novela, las preguntas de los periodistas giran alrededor de si me ha ocurrido o no aquello que escribí. – ¿Es muy pesado eso? VM: Sí, casi que dejarías de escribir para no tener que contestar esa pregunta (risa). ¿Y si hubiera pasado de verdad, qué? Hay una escritora amiga de Franzen que a esa pregunta siempre dice que hay en su novela un 17 por

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ciento de autobiográfico. En las mías el porcentaje se eleva al 27, que es un número shandy (Vila-Matas apud Meruane, 2013: s/p).

Especificamente no que diz respeito ao conteúdo das declarações do espanhol, é provável que suas frequentes opiniões acerca do recurso autoficcional possam ter exercido, e/ou ainda exerçam, certa influência no recorrente interesse dos pesquisadores pela possível proximidade entre esta estratégia e seus romances: – Siempre me he preguntado qué pensará Vila-Matas sobre esta forma de escritura (la autoficción). ¿La practicará de forma consciente? ¿Verá en ella una forma de futuro para la novela? VM: Aprecio del libro de Alberca – libro irregular, repetitivo después de las líneas que dedica a mis libros – que haya sabido tener en cuenta que ya en 1992 escribía yo autoficción muy conscientemente, aunque debo confesar que en aquel entonces desconocía por completo el término autoficción. En 1992 es cuando publiqué Recuerdos inventados, libro cuyo mismo título lo dice todo. Me adelanté a muchos, que yo sepa (Vila-Matas apud Arroyo & Fernández, 2008: 201). VM: Considero – como decía Nabokov – que la mejor parte de la biografía de un escritor no es la crónica de sus aventuras, sino la historia de su estilo. Y mi estilo ha ido evolucionando lentamente hacia lo que algunos llaman la autoficción, que es un neologismo creado por el profesor y novelista francés Serge Doubrovsky en 1977. Hasta ahí todo lo que sé sobre la autoficción. Me sonrojo de pronto. Me doy cuenta de que debo pedir perdón, pues sé algunas cosas más sobre el tema. Ya ven ustedes cómo soy. Sin apenas darme cuenta, me había puesto ya a hacer autoficción. Sí, sé algunas cosas más. Sé, por ejemplo, que la autoficción es la autobiografía bajo sospecha. Y sé también que, muchos años antes de que oyera hablar de autoficción, escribí un libro que se llamo Recuerdos inventados, donde me apropiaba de los recuerdos de otros para construirme mis recuerdos personales. Todavía hoy sigo sin saber si eso era o no autoficción. El hecho es que con el tempo aquellos recuerdos se me han vuelto totalmente verdaderos. Lo diré más claro: son mis recuerdos (Vila-Matas apud Heredia, 2007: 16-17).

Além de ter-se em conta o papel do contexto midiático na insistente associação entre autobiografia e ficção, a repetida menção de Vila-Matas a seu livro Recuerdos inventados (1994) chama a atenção para outro grande motivador de leituras que interpretam seus romances, e também

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os de Bolaño, como autoficções: ainda que os títulos citados ao longo deste ensaio afastem-se das premissas desse tipo textual, isso não significa que a autoficção esteja completamente ausente de suas obras. “Carnet de baile” e “Encuentro con Enrique Lihn” de Bolaño, por exemplo, respondem a todos os pressupostos da autoficção aqui discutidos: apesar de se tratarem de textos compilados na coletânea de contos Putas asesinas (2001), e não de romances, o narrador em primeira pessoa explicitamente identificado como Roberto Bolaño surge como um desestabilizador do pacto de leitura, tornando-o, como sugere a teoria de Alberca, ambíguo. O primeiro descreve a relação do narrador com a obra de Neruda, entrelaçando experiências pessoais e episódios de sua formação literária como um todo, e tendo por frase inicial “1. Mi madre nos leía a Neruda en Quilpué, en Cauquenes, en Los Ángeles” (Bolaño, 2001: 207). Nele, a identificação explícita entre autor e narrador dá-se através da menção do nome do avô do narrador, “Roberto Ávalos Martí”, enquanto que no segundo conto, como o próprio título sugere, narra-se um suposto encontro entre Bolaño e Lihn: De cualquier forma lo que quería decir es que yo a Lihn lo conocía y que no era por tanto necesaria ninguna presentación. Sin embargo los entusiastas procedían a presentarme y tanto Lihn como yo no objetábamos nada. Así que allí estábamos, en un reservado, y unas voces decían éste es Roberto Bolaño y yo tendía la mano, mi brazo se incrustaba en la oscuridad del reservado, y recibía la mano de Lihn, una mano ligeramente fría que estrechaba durante unos segundos, la mano de una persona triste, pensaba entonces, una mano y un apretón de manos que se correspondía a la perfección con el rostro que en aquel instante me miraba sin reconocerme (Bolaño, 2001: 216). [sublinhado meu]

Curiosamente, o fato de ambas as narrativas encerrarem o livro após terem sido precedidas tanto por contos em conformidade com o modelo clássico atribuído ao gênero quanto por histórias protagonizadas pelo personagem B. abre caminho à suspeita de que a disposição sequencial dos textos que formam de Putas asesinas (2001), ou seja, sua macroestrutura, não tenha sido acidentalmente definida, mas que funcione como uma preparação, gradual e consciente, do espaço autoficcional que marca o fim da obra. Assim como Putas asesinas, Recuerdos inventados é um livro de contos, a primeira antologia pessoal do autor – a obra reúne, além de contos inéditos, textos de Nunca voy al cine (1982), Suicidios ejemplares (1991) e Hijos sin hijos (1993). Entretanto, ainda que o título funcione como uma boa metáfora para se definir, à Vila-Matas, a autoficção, são poucas as nar-

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rativas incluídas nessa coletânea que levantam dúvidas quanto ao caráter ficcional do pacto de leitura estabelecido. No que concerne à produção do espanhol, são París no se acaba nunca (2003) e Dietario voluble (2008) as publicações recorrentemente analisadas sob os preceitos da autoficção. Porém, ao contrário do que sugere o conceito de autoficção desde a menção de Doubrovsky, ou seja, um texto que se assume ficcional para então a todo o momento subverter este estatuto, tanto París... quanto Dietario... apresentam-se como relatos e posteriormente têm seu caráter de veracidade posto em prova, devido, preponderantemente, ao estilo efabulador de Vila-Matas. Eis então uma importante pergunta: qual é a linha que separa um texto fortemente híbrido das particularidades de um texto tido como autoficcional? París no se acaba nunca é apresentado como um conjunto de relatos de episódios que marcaram o período em que Vila-Matas viveu em Paris durante sua juventude, e Dietario voluble como um livro correspondente ao conteúdo registrado no caderno de anotações pessoais do autor de 2005 a 2008. O personagem e narrador é Vila-Matas, e as porosas fronteiras entre realidade e ficção são destacadas já nas sinopses que integram as contracapas dos livros: París no se acaba nunca es una revisión irónica de los días de aprendizaje literario del narrador en el París de los años setenta. Fundiendo magistralmente autobiografía, ficción y ensayo, nos va contando la aventura en la que se adentró cuando, en una buhardilla de París, redactó su primer libro. Dietario voluble abarca los tres últimos años (2005-2008) del cuaderno de notas personal de Enrique Vila-Matas. Al tratarse de un diario literario que se origina en la lectura, es una obra escrita desde el centro mismo de la escritura. (...) No se aleja, además, Dietario voluble de los procedimientos literarios más habituales en Vila-Matas, donde las diferencias estilísticas entre libros de ficción y colecciones de ensayos son cada vez menos relevantes y más fieles a una feliz consigna de literatura híbrida y fragmentaria en la que los límites siempre se confunden y la realidad baila en la frontera con lo ficticio, y el ritmo borra esa frontera.

Leituras que explorem a proximidade entre essas histórias e a autoficção possuem, portanto, fundamentos, entretanto, o predominante grau de referencialidade que funda esses enredos se comparado a outras narrativas ambíguas coloca em relevo os desafios de tal abordagem analítica. Ciente de que na obra vilamatiana certa “vacilação interpretativa” por parte do leitor

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revela-se um lugar comum, independentemente de haver ou não resquícios autoficcionais – haja vista o hibridismo de gêneros e outros jogos com a linguagem não se configurarem apenas marcas do estilo literário do autor, mas a origem e base do mesmo –, Alba del Pozo García (2009) sugere uma interpretação menos redutora sobre a autoficção que permeia alguns livros do escritor espanhol: segundo a pesquisadora, para além de um “pacto ambíguo”, nota-se em Vila-Matas um “pacto irónico”, visto que “ante un narrador tan irónico, un eventual pacto de lectura en clave biográfica se desautomatiza completamente” (Del Pozo García, 2009: 93).

Considerações finais Essa insistência em nos convencer da proximidade – e até identidade – entre vida e obra, em acentuar o caráter (pretensamente) testemunhal, autobiográfico ou autorreferencial de textos que não o são explicitamente, é mais uma prova da extensão do espaço biográfico contemporâneo, enquanto ancoragem obsessiva – e tranquilizadora? – numa hipotética unidade do sujeito (Arfuch, 2010: 235).

Este artigo teve como foco repensar o caráter autoficcional frequentemente atribuído aos textos de Bolaño e Vila-Matas, abrangendo tanto questões de cunho formal, quanto fatores externos ao texto, em especial a influência exercida pelo contexto midiático na construção de biografias de escritores na atualidade, bem como na recepção e leitura de suas obras. Conforme indica a leitura aqui exposta, os vestígios autobiográficos que perpassam os personagens-escritores de Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998), El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) não obscurecem, confundem e/ou aproximam significativamente as identidades do autor e do narrador/personagem/protagonista, não havendo, portanto, uma desestabilização do pacto de leitura inicialmente instaurado. Ao encontro dos apontamentos de Linda Hutcheon sobre os possíveis contornos de uma “poética do pós-modernismo”, assume-se que a presença do nome próprio, ainda que na qualidade de um “designador rígido da realidade”, “não enquadra nem nega o referente (por mais que este seja definido)”, mas surge nas ficções atuais como um problematizador de “toda a atividade de referência” (Hutcheon, 1991b: 196). Nesse sentido, ao defender a coincidência entre o nome do autor e do personagem-escritor como um elemento formal fundador da autoficção, este trabalho não visa propor definições redutoras ou dotadas de um for-

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malismo radical, mas sim dar destaque a abordagens teóricas atentas ao contexto de origem do termo, no qual a reincidência do nome do autor assume uma função específica e relevante (precisamente por instaurar a “problematização de toda a atividade de referência” mencionada por Hutcheon), e à necessidade de conceituações que caminhem rumo a uma mínima diferenciação entre a autoficção e outros textos híbridos de vertente autobiográfica. Por fim, entende-se que o conceito de “espaço biográfico” formulado por Leonor Arfuch põe em evidência alguns dos contornos do cenário experimentado pelos dois escritores. Ao destacar certa “obsessiva apresentação ‘biográfica’ de todo tipo de relato” (Arfuch, 2010: 235) como um fenômeno da contemporaneidade, Arfuch busca observar de que modo as entrevistas, os ensaios, os romances, e, em certa medida, grande parte da fortuna crítica de escritores passaram a compartilhar um mesmo espaço, de dimensão “intertextual e interdicursiva” (Idem, 59), tornando-se todos, igualmente, fontes de dados biográficos. Bolaño e Vila-Matas, imersos nesse contexto, dada a evidente predileção de ambos por estratégias narrativas que desafiem os limites que separam realidade e ficção, ilustram muitas das consequências que este “espaço biográfico” reserva aos escritores nos dias de hoje, sendo a (por vezes) precipitada vinculação de seus romances ao recurso autoficcional apenas um exemplo entre outros possíveis. Na análise que a pesquisadora Ana Cecilia Olmos (2011) faz dos “limites da autobiografia” na obra Mario Bellatin, por exemplo, considerando diferentes estratégias narrativas de aproximação do narrador à figura do autor, desde a presença de enunciações subjetivas que prescindem da mediação da personagem (Olmos, 2011: 14), até a ocorrência de personagens que não levam o nome do autor, mas que escreveram um livro por ele publicado (Idem, 15), vê-se, sem qualquer alusão ao termo autoficção, um destaque ao caráter ambíguo que permeia parte dos romances desse escritor: Esse jogo de posições enunciativas transgride as condições de possibilidade do gênero autobiográfico na medida em que desestabiliza as relações de identificação entre autor, narrador e personagem, fragmenta a sequência temporal do relato de vida e prescinde da garantia de veracidade do relato. (Ibidem)

Independentemente de as estratégias de Belattin dialogarem com recentes ou futuras concepções de autoficção, trabalhos como o de Olmos

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atestam que as atuais discussões em torno desses textos “transgressores” tão abundantes nos dias de hoje não estão fadadas a abordar o neologismo de Doubrovsky, seja pela falta de consenso teórico ainda existente, seja pela escolha de afastar-se de definições mais restritas. A leitura integral do artigo da pesquisadora permite notar que a falta de um reconhecimento explícito entre seus apontamentos e certas correntes teóricas direcionadas ao artifício autoficcional em nada deixa a dever para o entendimento da relação entre autobiografia e ficção nos romances escolhidos, embora seu texto possa, logicamente, despertar o interesse de outros pesquisadores pela relação de Belattin com a autoficção. Ao enfatizar o lugar ocupado pelo hibridismo genérico na contemporaneidade, as formulações de Olmos juntamente a outras pesquisas de mesmo enfoque indicam que, talvez, o grande desafio a ser vencido pela autoficção seja precisamente o de classificar o que por si só constitui-se transgressor.

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[recebido em 8 de maio de 2013, novamente submetido e aceite para publicação em 9 de novembro de 2014]

THE IMAGE OF THE MYTHICAL WOMAN IN MID-VICTORIAN GYNOTOPIA: GENDER AND GENRE IN ALFRED TENNYSON’S THE PRINCESS (1847) A IMAGEM DA MULHER MÍTICA NA GINOTOPIA MÉDIO-VITORIANA: GÉNERO E MODO EM THE PRINCESS (1847) DE ALFRED TENNYSON Paula Alexandra Guimarães* [email protected]

This article intends to explore the image of the mythical woman (Athena) in one of the first Victorian works on a feminist utopia, Alfred Tennyson’s long mock-heroic narrative poem The Princess (1847), and how contemporary women poets such as Elizabeth Barrett Browning in Aurora Leigh (1857) responded not only to his representation of the feminine, and of the battle of the sexes enacted in it, but also to his way of writing. As its subtitle A Medley indicates, the poem is a deliberate mixture of different genres and genders: the lyrical and the epic, the feminine and the masculine, suggesting not only innovative experimentation in terms of traditional literary forms but also a problematization of essentialist images and concepts. Yet, for Tennyson, the resolution of the political conflict is dependent on the resolution of the love plot, which ultimately results in the highly contested transformation of the feminist ‘Ida’ in a domestic figure. Keywords: Athena, gynotopia,Tennyson, gender, genre Este artigo propõe-se explorar a imagem da mulher mítica (Atena) numa das primeiras obras vitorianas sobre uma utopia feminista, The Princess de Alfred Tennyson, poema heróico-satírico publicado em 1847, e a forma como autoras contemporâneas, nomeadamente Elizabeth Barrett Browning em Aurora Leigh (1857), responderam a esta representação do feminino e à ‘guerra dos sexos’ que é por ele encenada. Tal como o subtítulo do poema, A Medley, indica, trata-se de uma ‘mistura’ deliberada de diferentes modos e géneros: o lírico e o épico, o feminino e o masculino, que sugere não apenas uma inovadora experimentação ao nível de formas literárias tradicionais, mas também uma problematização de imagens e conceitos essencialistas. No entanto, a resolução do conflito político passa necessa* Department of English and North-American Studies, University of Minho, Braga, Portugal..

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riamente em Tennyson pela resolução do conflito amoroso, resultando na transformação altamente contestada da revolucionária ‘Ida’ numa figura doméstica. Palavras-chave: Atena, ginotopia, Tennyson, género, modo

They said: she is high and far and blind in her high pride but now that my head is bowed in sorrow, I find she is most kind

(…) maybe wildest dreams Are but the needful preludes of the truth

H. D. “Pallas”, 1957

Tennyson, The Princess, 1847

According to Linda Lewis, the iconography of woman as Wisdom was tremendously important among the Victorian writers who grew up with Germaine de Staël’s and George Sand’s protagonists, respectively ‘Corinne’ and ‘Consuelo’.[1] This guiding myth of the artist-as-heroine created by the French novelists is exhibited in scores of English narratives, namely by Elizabeth Barrett Browning and George Eliot. The artist-as-heroine embodies the female Wisdom figure, which in turn usually combines attributes of the Greek and Roman goddesses, such as ‘Minerva’ or ‘Pallas-Athena’ and of the Judeo-Christian religious female icons such as the ‘Virgin Mary’ (Hurst, 2006). Many of these women (such as the Sybil, Sophia and Pythia) served as priestesses, being associated with insight, prophecy and wisdom. Lewis emphasises that some were indeed poets who composed their prophecies and performed them in song (2003: 18). They prophesied the future, solved questions of truth and accuracy and even assigned tasks; Minerva, for example, aided Prometheus in providing metaphorical fire and light to humans. Lewis significantly adds that some of the early Gnostic Christians considered God as androgynous, “a dyad of opposites existing in harmony in one being” (Idem, 19). She not only states that Holy Sophia as ‘the wisdom of God’ appears in texts as diverse as Virgil’s Heroides and Christine de Pizan’s Book of the City of Ladies, but also that in the propagandist art of

1 Lewis (2003: 18). Corinne uses her influence as a political Sybil (“l’enthousiasme”) to enter the debates of the Napoleonic era; Consuelo employs her sacred fire (“la flame sacrée”) as a divine Sophia to indict injustice throughout Europe.

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nineteenth-century France “the aggressive female goddess was idealized – especially if she were Lady Liberty” (Idem, 20).[2] This figure of the idealised female, and particularly Athena, was also very familiar to male writers in mid-nineteenth-century England. John Ruskin, who in 1869 would lecture on the “Greek Myths of Storm”, namely the legends of Athena and Bellerophon, at the University College of London[3], believed that Athena represented to his age the attributes of art, literature, and national virtue: I could go back into the mythical teaching of the most ancient times, and show you how the great people, – by one of whose princesses it was appointed that the Lawgiver of all the earth should be educated, rather than by his own kindred; – how that great Egyptian people, wisest then of nations, gave to their Spirit of Wisdom the form of a woman; and into her hand, for a symbol, the weaver’s shuttle; and how the name and the form of that spirit, adopted, believed, and obeyed by the Greeks, became that Athena of the olive-helm, and cloudy shield, to faith in whom you owe, down to this date, whatever you hold most precious in art, in literature, or in types of national virtue. (Ruskin, 1865: 159, my emphasis)

The fact that Ruskin was the patron of the Pre-Raphaelite artists and that, traditionally, Athena was considered the goddess or patroness of the artisans must also have suggested this identification, as well as some associations with the Arts and Crafts Movement, of which Dante Gabriel Rossetti and William Morris were to be the major proponents. But other resounding names come to fore; as Lewis observes, “At the height of the Victorian period, woman as Wisdom was incorporated into the works of Elizabeth and Robert Browning, Tennyson, Dickens, Charles Kingsley, Harriet Martineau, and George Eliot” (2003: 21). As was to be expected, this myth would prove especially appealing not only to female novelists as Eliot, but also to the male artist, due to his inclination to create and project himself

2 “Such is the figure of the Romantic Sibyl – a prophetess holding a scroll, inspired sister of Sophia, […] Noble poet, …, she reigns gravely, a book in hand. Sublime priestess, her eyes raised to the skies, mouth half-opened, she sees and foresees. She proclaims, she speaks, she is the patron saint of the creative feminine word.” (Hoog, 1991: 95) 3 In her article “Mythic Language and Gender Subversion. The Case of Ruskin’s Athena”, Sharon Weltman argues that “In ‘The Queen of the Air’ (1869), a mythological study of the goddess Athena, John Ruskin presents a series of binary oppositions that he immediately conflates: Athena and Medusa, air and earth, bird and snake, formation and destruction, science and myth, male and female” (Weltman, 1997: 350).

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into the form of a mythic icon (the cases, namely, of Ruskin, Tennyson and Swinburne). In her ‘allegory of the female form’, Monuments and Maidens, Marina Warner explores the Western tradition of the female personification of liberty, justice, wisdom, charity, and other ideals, and analyses the tensions between women’s historic and symbolic sculpture, painting, poetry, and classical mythology. She significantly argues that, in spite of her protofeminist outlook, the figure of Athena became generally associated with patriarchy, nationalism and Christian authoritarianism[4], thus suggesting not only a very ambivalent independence but also a liability to subsequent appropriations of not so positive a hue: Athena, the virgin born, chaste goddess of wisdom, the unyoked guardian of the city, the patroness of women’s skills and work, is the immediate model of those exemplifications of Justice, Prudence, Fortitude, and Temperance (...). Divorced from the religion that created her, disinfected of pagan cult and ritual, Athena provided the mould in which the language of virtue was first cast in the Renaissance and again, during the later eighteenth and nineteenth centuries. The examples of personification which still surround us, like Britannia, often return directly to Athena. (Warner, 1985: 87; 125-6, my emphasis)

Other feminist critics take a different stance; for example, Barbara Taylor associates the figure of Athena mostly with radical feminism and the emergent socialist movement, especially the Saint-Simonians because of their opposition to the contemporary marriage code (Taylor, 1983, 161-82). By 1832, followers of Saint-Simonianism, a utopian-socialist movement in France, and other forward-looking intellectuals, had indeed become preoccupied with the social and economic roles of women.[5] In this context, an artist as Marie Spartali Stillman, a Rossettian ‘second-wave’ Pre-Raphaelite of Greek origins and with a political allegiance to women’s independence, would deliberately include in her choice of pictorial subjects Greek hero4 Athena’s statues and images can be found displayed in several monuments and official buildings throughout Europe and elsewhere. Her figure and symbol were also notoriously appropriated by the German National Socialist Party early in the twentieth century, eventually serving the Nazi regime’s iconography. 5 Barthelemy-Prosper Enfantin, a leader in the movement, and a few disciples developed an increasingly utopian and abstract theory that justified ‘protecting’ women from the hardening influence of the world and removing them from the public sphere, while arguing that in the new world women would play a role distinct from, yet equal to, that played by men.

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ines such as Korinna, scholar and poet, Athena, goddess of war and wisdom, and Antigone, who defied the state for the sake of her principles.[6] For Christine Downing, Athene’s “dedication to the world of art and culture, of clear thought and realized accomplishment”, was an “important testimony of how a woman might order her life” (1996: 100). As the goddess of artist and artisan, she became “the prototype of the artistically creative woman” (Idem, 99). Coincidentally, Athena is also the goddess of ‘weaving’ who influences figures such as Arachne and Penelope. Often accused of being a hard, cool and distant deity, suspicious of the emotional and sensual and seeming to deny her own femininity, Athene became identified with war and masculine power. After all, she was born, full-grown, out of Zeus’s head and her ambivalent relation to the masculine and the feminine has connected her with the image of the ‘androgyne’.[7] Athena came to stand as “a splendid ego-ideal” for Downing, who sees her as a “soul-giver, soul-maker”, an “anima figure” (1996: 105). And, in fact, when Prometheus first fashioned man into the likeness of the gods, Athene was the one who breathed life into the soul. As authors such as Tennyson and Barrett Browning knew quite well, Athene’s example raised serious questions about the connection between relationships and creativity, art and life. It is perhaps no coincidence that as England’s foremost woman poet, Elizabeth Barrett Browning was often hailed in the critical community as a modern Athena and a prophetess, as Aletha Hayter remarks: both her admirers and detractors compared her with the priestess of Delphi and other prophetesses – she was Deborah, Minerva, Alruna, the Sybil, the Pythoness, the anointed priestess: delirious, shrieking, possessed and contorted, or clamorously earnest and inspired with a sacred passion, (…). (Hayter, 1962: 194) 6 Avant-garde movements both in Germany and outside made notorious use of the goddess’s image. The Austrian painter Gustav Klimt, for example, exhibited his painting of Athena’s fierce-looking and fully armed figure in Vienna, in 1898. 7 It is difficult not to associate this image with the Pre-Raphaelite ‘stunner’, the idealised woman, with her thick neck, long jaws and masculine features, popularised by founding member Dante Gabriel Rossetti. Edward Burne-Jones took the early Pre-Raphaelite gender conflation even further and began to paint masculine, ‘stunner-esque’ women and effeminate men. If we examine paintings such as Saint George, The Tree of Forgiveness and the famous Laus Veneris the gender blurring is very clear. Victorian art thus represents the beginning of a process which started at male privileging gender polarity and ended at complete androgyny as seen in Beardsley’s illustrations of the 1890’s. The anxiety over female absence and subsequent loss of male identity that punctuated early Pre-Raphaelite works seems to have been replaced by the androgynous world of the aesthetes.

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As a girl, she had proudly written “The Battle of Marathon”, in which the victorious Athenians were led by the wisdom of goddess Athena. Significantly, like her creator, Aurora Leigh yearns after wisdom and yearns too for the status of a ‘Sybil’. As Lewis points out, in describing Aurora, “Browning calls forth the Woman-as-Wisdom figure that evolved from the Sophia and Minerva traditions and became merged, in Victorian England, into an icon of female virtue and patriotism – Athena as Britannia” (Lewis, 2003: 113). In the verse-novel, while Lord Howe praises Aurora as the “prophetess, / At Delphi”, Lady Waldemar ridicules her as a “young prophetess”, seeing her intellectual pride and telling her that such women as herself starve their hearts to develop their brains (Browning, 1857: 5.942-43).[8] But male poets were also prone to use mythical women.[9] For example, as early as the 1830s, many of Arthur Hallam’s poems are in praise of women, thus representing a new attempt to redefine their importance in a culture. Yet, with Hallam’s precocious death and the virtual collapse of feminised art in the 1840s, a new conservatism seemed to emerge. According to Isobel Armstrong, poetry became theorised in terms of the discourse of moral statement, “collapsing into the poetry of domesticated external description” (1993: 94); thus, namely, Alfred Tennyson’s art is no longer the feminised one of the Apostles but becomes “masculinised as the product of strength, the capacity to confirm and stabilise” (Idem, 95). This change is quite visible in Tennyson’s 1842 revisions of The Lady of Shalott, especially in “the increasing helplessness of the feminine Soul” (Idem, 81), with “repercussions in the wider politics of oppression” (Idem, 86). On the other hand, the poet seems to increase his understanding of the real condition of women in contemporary culture, and he was the first to incorporate an image of the woman as Wisdom in his work, giving her the ‘masculine’ attributes of the goddess Athena. Later in the century, namely in A.C. Swinburne’s poetry, the (re)use of classic female myth, becomes more aesthetically and sexually transgressive. For example, in his poem “Hertha” he attacks the Judaeo-Christian god by arguing that Hertha, the female goddess of fertility and the paradigmatic matriarch, is the true originator of all existence. Also, in his “Laus Veneris” 8 See Lootens (1996: 116-157). 9 That was especially the case of later Victorian artists, namely Dante Gabriel Rossetti and Charles Algernon Swinburne, who were particularly fond of mythological figures such as Proserpine. These poets’ masculinised female figures did not simply reverse the woman’s position in the gender polarity but rather combined the positive attributes said to be found in each sex, creating women that were powerful (and dangerous), but significantly because of their bodily passion and sexuality.

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he presents Venus as the ‘soul’s body’ and a woman’s mouth is said to be ‘lovelier’ than Christ’s. Although Swinburne’s women are indeed aggressive in the masculine sense, he was nonetheless interested in the feminised mind, a mind which could put the beautiful before the good as the object of worship. In this context, the terms ‘masculine’ and ‘feminine’ are meaningless: they are put into question by an aesthetic ideal which would challenge the binary opposition through the use of the androgyne. But this new awareness, as well as this image of the mythical woman, had already become evident near the mid-century in The Princess: A Medley, a work in which Tennyson represented in mock-heroic fashion the convolutions and adaptations in Victorian masculine and feminine gender identities. This long narrative poem, published for the first time in 1847, tries somehow to accommodate the emerging Victorian women’s movement at the same time that it shows confidence in the impossibility of a violent political conflagration in England. Nevertheless, the fantastic medieval setting of the story (with its prince and princess) seems to introduce the paradigm of courtly love, which, though allowing for implicit male submission to the female in the sentimental arena, in fact promotes a heroic ideal of manliness in the sphere of action. Thus, modern critics as Thaïs Morgan believe that “Hegemonic masculinity is modified but not overthrown in The Princess” (2000: 207). The poem, as Herbert Tucker points out, “addresses a very touchy subject, the relation of the sexes in contemporary culture”, but it also “avoids taking a position on a hotly debated issue” (1998: 351). The idea for The Princess may have been in Tennyson’s mind before 1839, as his shorter poem A Dream of Fair Women (1832) seems somehow to anticipate.[10] Those far-renowned brides of ancient song Peopled the hollow dark, like burning stars, And I heard sounds of insult, shame, and wrong, And trumpets blown for wars; (…) At length I saw a lady within call, Stiller than chisell’d marble, standing there; A daughter of the gods, divinely tall, And most divinely fair. 10 Tennyson seems to introduce the classic examples of the predicaments of Iphigenia, of Ariadne, as well as the poetic fragments of Sappho. All the quotations from Tennyson’s poems are taken from Christopher Ricks (ed.), Tennyson. A Selected Edition, London: Longman, 1989.

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Her loveliness with shame and with surprise Froze my swift speech: she turning on my face The star-like sorrows of immortal eyes, Spoke slowly in her place. (17-20, 83-90, my emphasis)

It is also impossible not to associate its title to Princess Victoria herself and her concerns with women’s education, eventually shared with the poet. In fact, the title of the first manuscript version was, interestingly, The New University or University of Women. And, at the beginning of 1846, Elizabeth Barrett would significantly comment in a letter to Robert Browning: [Tennyson] has finished the second book (…) in blank verse & a fairy tale, & called the University, the university members being all females (…) I don’t know what to think – it makes me open my eyes. Now isn’t the world too old & fond of steam, for blank verse poems, in ever so many books, to be written on the fairies? (apud Armstrong, 1993: 87)

This comment appears to emphasise not only Elizabeth Barrett’s surprise at such a title but above all her surprise in relation to “the university members being all females”, a totally unprecedented novelty and a radical theme, even for her. But her final question seems to reverse that sense of originality by doubting the contemporary appropriateness of its adopted style and genre. At this still early stage, she seems to hint at the basic anachronism of placing a contemporary theme like feminism in a medieval setting, transforming it into a ‘fairy tale’. But Tennyson himself, it seems, was very much aware of the anachronisms and improbabilities of his story. It is by tracing developments which took place in the two decades from his going up to Cambridge to the publication of the poem, that John Kilham suggests “how it came about that The Princess took the strange form it did” (1958: vii). Simultaneously attempting “to sketch out the lines of a new type of relationship”, which took in consideration “the Socialist theories which were undermining conventional attitudes to marriage” and seeking for a new form of expression “capable of representing the singular diversity of his time”, Tennyson sacrificed conventional poetic unity to what he himself designated as a ‘medley’, the mixture of exotic and realistic elements present in the alternation between the fairy tale and the college subject (Idem, 5). In spite of all this, Kilham believes that Tennyson saw “that an old romantic tale curiously prefigured the contemporary real-life situation” and that

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the fantastic came “unexpectedly into accord with the facts of mundane nineteenth-century existence” (Idem, 6). Among the Victorian long poems treating of love and marriage in a recognisable way, namely Clough’s Bothie, Elizabeth Barrett’s Aurora Leigh, Patmore’s The Angel in the House and Meredith’s Modern Love, Kilham singles out Tennyson’s The Princess as “depart[ing] from the rule” in addressing itself to a specific reform and as representing not only the very first but also “the boldest attempt” of all (Idem, vii, 2; 5). In conceiving of his feminist topic as early as he did, Tennyson shows himself to be “too bold a speculator” (Idem, 5). The plan of the poem was fixed within a year or so of the first controversy over a woman’s college education; the poet obviously wanted to see whether the marriage-relationship could survive the fulfilment of women’s highest intellectual aspirations. It was in his Cambridge days that Tennyson was influenced by the circle of his friends, some of whom had feminist leanings (namely, the young followers of the elder Mill and the friends of Arthur Hallam). The social revolution Mary Wollstonecraft had looked forward to with her A Vindication of the Rights of Woman (1792), a text that permeates Tennyson’s, was now being initiated.[11] Besides this indirect influence, Tennyson was certainly aware of the debate around the woman question which had been going on in English society. Not only Hannah More’s early Female Education (1799), but also Grimke’s Letters on the Equality of the Sexes and the Condition of Women (1837), Caroline Norton’s campaign in 1839 to award the custody of infant children to their mother (Child Custody Act) and the foundation of the Governesses’ Benevolent Institution (1841) led by the Christian Socialist F. D. Maurice. It is perhaps no coincidence either that in the same year that Tennyson published The Princess (1847), two novels by women dealing with equally strong-minded heroines came to the public eye: Charlotte Brontë’s Jane Eyre and Emily Brontë’s Wuthering Heights.[12] And, in 1848, Queen’s College would finally be established in London for women who wanted to be teachers. In 1851, only one year after Tennyson published the third edition of The Princess (1850), Harriet Taylor made her pamphlet on “The Enfranchisement of Women” public and the first Women’s Suffrage Petition 11 It may be important to point out that egalitarian feminism had continued to find support in groups on the fringes of conventional society – Unitarians, philosophic radicals or the Owenite socialists of the 1830s. 12 Although the female protagonists in the Brontë novels differ considerably from Tennyson’s protagonist, the coincidence of the year of publication of the respective works should indeed elicit some critical comparison in terms of respective influences and ideas on the woman question.

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was presented to the House of Lords. Tennyson’s poem became, therefore, part of the general debate on the woman question. The text of The Princess is itself structurally ‘framed’ precisely around a group debate on women’s university education, taken up by seven young men for the entertainment of a house-party (this is part of the “Prologue”). They essentially adopt a medieval “tale from mouth to mouth” and, one after another, try to fit to it a story ‘made up’ as they go along. The function of this experimental technique is not only to provide a more contemporary setting for the medieval tale but also to prepare the reader for what comes – the subject of the emancipation of women. That Tennyson had some pride in its technical ingenuity is apparent in his remark that “there is scarcely anything in the story which is not prophetically glanced at in the prologue” (Memoir, apud Kilham, 1958: 170). The first prophetic glance that concerns us is indeed the response of ‘little Lilia’, the host’s daughter, to the narrator’s legendary tale of “her who drove the foes with slaughter from her walls” – the unexpected story of a sieged young noble woman who resisted and fought back a king who wanted to honour a marriage contract and force her to his wishes. Lilia immediately associates this case with the condition of contemporary Victorian women and accuses men: ‘There are thousands now Such women, but convention beats them down: It is but bringing up; no more than that: You men have done it: how I hate you all! Ah, were I something great! I wish I were Some mighty poetess, I would shame you then, That love to keep us children! O I wish That I were some great princess, I would build Far off from men a college like a man’s, And I would teach them all that men are taught; We are twice as quick!’ (Prologue, 127-138, my emphasis)

In this spirited reaction to the provocative question posed by Lilia’s brother, Walter, “Where (…) lives there such a woman now?”, the reader is thus able to anticipate the main feminist argument of Tennyson’s poem, the superior education of women, which is here remarkably summarised. From this moment onwards, young Lilia will fully assume and even incarnate or enact the heroic and tragic role of the ‘Princess Ida’ in the joint

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story that enfolds: “some great Princess, six feet high, / Grand, epic, homicidal” (218-19, my emphasis).[13] Inspired by the exemplary woman of the past – the feudal warrior-lady, the Victorian “half-child, half woman” of the present that Lilia represents will anticipate, in the embodiment of her vision, the woman of the future – the powerful and independent intellectual, who is capable of mentally surpassing her male counterparts. Through Lilia’s speech in the Prologue, Tennyson brings forward some of the major complaints and demands of the Victorian women’s movement: the inadequate education of women, their shameful treatment as mere children and the latent, but wrong, wish of emulation of the masculine model. And as the framed narrative develops, it will trace the origin of nineteenth-century bourgeois gender arrangements directly back to the feudal aristocracy, linking marital and martial ritual in a chronicle-based story. Upon the impending break of an ancient marriage contract between two noble houses, due to the supposed whim of the betrothed princess Ida, “(…) she had a will; (…) / And maiden fancies; loved to live alone / Among her women; certain, would not wed” (47-49, my emphasis), the crude male sphere of power that the Prince’s father represents seems to be on the verge of martial violence, “he would send a hundred thousand men, / And bring her in a whirlwind” or “crush her pretty maiden fancies dead / In iron gauntlets” (64; 87-88, my emphasis). Florian, the Prince, who does not wish to win his princess by resorting to violent means, travels southward to the king’s palace with two of his friends, where he is told how the Princess was influenced by strange ideas: ‘Two widows, Lady Psyche, Lady Blanche; They fed her theories, in and out of place Maintaining that with equal husbandry The woman were an equal to the man. (…) To hear them: knowledge, so my daughter held, Was all in all: they had but been, she thought, As children; they must lose the child, assume The woman: then, Sir, awful odes she wrote (…) About this losing of the child; and rhymes 13 Tennyson must have been aware of the fact that the statue known as the Phidian Pallas was a gigantic image of Pallas Athena by the famous Greek sculptor Phidias that was originally erected in the Parthenon, but no longer survives.

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And dismal lyrics, prophesying change Beyond all reason: these the women sang (…)’

(I. 127-142, my emphasis)

The Princess’s father finally tells the Prince of how his daughter has left him to found a university for women in a remote retreat, where no man is allowed to enter on penalty of death. It becomes clear that Ida’s separatist feminism constitutes a radical break with the ways of her father and brother. But the three friends devise a plan to infiltrate the university in “female gear” and try to win the princess’s return. According to Eve Sedgwick, Ida is both “the founder, the benefactor, the theorist, the historian, and the beau ideal of a movement” (1985: 126). They ride into her domains, significantly “where there stood a bust of Pallas for a sign”, asking to enrol as students. When they are taken to see Princess Ida, who “at a board by tome and paper sat”, they are profoundly impressed by her majestic godlike beauty: With two tamed leopards couched beside her throne, All beauty compassed in a female form, (…); liker to the inhabitant Of some clear planet close upon the Sun, Than our man’s earth; such eyes were in her head, And so much grace and power, breathing down From over her arched brows, with every turn Lived through her to the tips of her long hands, And to her feet. (…) (II. 19-27, my emphasis)

But to the Prince’s enthusiasm and flattering comments, the Princess replies firmly and sharply, anticipating a lesson in the required posture of the female student, the future ‘new woman’: to rid herself of all the feminine wiles and futilities, as well as man’s beguiling language; she also tells the disguised Prince of her intention of never marrying, like Pallas-Athena who insisted on being a virgin: ‘We scarcely thought in our own hall to hear This barren verbiage, current among men, Light coin, the tinsel click of compliment. (…) Your language proves you still the child. Indeed, We dream not of him: when we set our hand

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To this great work, we purposed with ourself Never to wed. You likewise will do well, Ladies, in entering here, to cast and fling The tricks, which make us toys of men, that so, Some future time, if so indeed you will, You may with these self-styled our lords ally Your fortunes, justlier balanced, scale with scale.’

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(II: 39-52, my emphasis)

The three men begin then to debate amongst themselves the merits of women’s equality as they move around the university, listening and learning. One of the remarkable lessons in history is given by Lady Psyche, Florian’s sister and Ida’s major assistant, who speaks of the past repression of women and refers to notable feminine examples of different ages and places: Ran down the Persian, Grecian, Roman lines Of empire, and the woman’s state in each, How far from just; till warming with her theme She fulmined out her scorn of laws Salique And little-footed China, touched on Mahomet With much contempt, (…) (…) some ages had been lost; (…) and albeit their glorious names Were fewer, scattered stars (…) (…) in arts of government Elizabeth and others; arts of war The peasant Joan and others; arts of grace Sappho and others vied with any man (…) (II. 114-148, my emphasis)

Finally, Psyche the lecturer rises “upon a wind of prophecy / Dilating on the future”, offering a preliminary vision of gender relations based on total equality of abilities and responsibilities, and in which woman may even aspire to the elevated status of Poet in equal terms to man: ‘(…) everywhere Two heads in council, two beside the hearth, Two in the tangled business of the world, Two in the liberal offices of life, Two plummets dropt for one to sound the abyss

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Of science, and the secrets of the mind: Musician, painter, sculptor, critic, more: And everywhere the broad and bounteous Earth Should bear a double growth of those rare souls, Poets, whose thoughts enrich the blood of the world.’ (II. 155-164, my emphasis)

It is at this elevated moment that Psyche suddenly discovers the men’s subterfuge, but so does her intellectual and political rival – Lady Blanche, who wants to denounce them. Psyche is then divided by her “vow” that “binds her to speak” and the love for her endangered brother, by the Spartan will to keep their hard-won ‘gynotopia’ and her own feminine compassion. Meanwhile, Ida and the Prince, who is still in disguise, walk together and talk about Florian, but Ida only ironises the effeminate Prince’s supposed lovelorn condition, “Poor boy, (…) / To nurse a blind ideal like a girl” (201, my emphasis), denouncing the weakness of romantic love in a man. While he wishes to discuss the celebrated marriage contract, Ida speaks vehemently of her ideals of equality: “To lift the woman’s fallen divinity / Upon an even pedestal with man” (207-8, my emphasis). She refers probably to a remote and pagan past, in which women were not only respected but also idolised; and, finally, to the Prince’s insistent call upon her womanly sensibility: ‘(…) I dread that you, With only Fame for spouse and your great deeds For issue, yet may live in vain, and miss, Meanwhile, what every woman counts her due, Love, children, happiness?’

(III. 225-29, my emphasis)

Ida replies that this domestic experience of women, this supposed bliss, does not possibly measure up to the noble sacrifice of a great deed like hers; a reply that leaves the Prince doubtful in himself “If that strange Poet-princess with her grand / Imaginations might at all be won” (256-7). Later on, at a picnic organised on the occasion of a geological expedition, Ida invites the Prince (still in woman’s disguise) to sing a song from her / his homeland, but he finds that he can only sing of love on the occasion. The Princess immediately mocks his attempt, stating that music and poetry should be employed for nobler ends than the conventional ones of wooing and deceiving women:

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‘(…) Knaves are men, That lute and flute fantastic tenderness, and dress the victim to the offering up, And paint the gates of hell with Paradise, and play the slave to gain the tyranny. (…) (…) But great is song Used to great ends: ourself have often tried Valkyrian hymns, or into rhythm have dashed The passion of the prophetess; for song Is duer unto freedom, force and growth Of spirit than to junketing and love.’ (IV. 110-124, my emphasis)

The noble art of Poetry should be used for philosophical and political purposes, she claims like Athena. But when Ida suggests another attempt, Cyril inadvertently improvises a drunken tavern song, in typical male fashion, and chaos breaks out as the men’s identities become obvious to all. In the confusion of revelation, Ida accidentally falls into the river, and the Prince saves her from drowning, thus assuming the conventional role of male rescuer. The men manage to flee but the Prince and Cyril are eventually recaptured, knowing that they may face the terrible penalty of death. Meanwhile, letters arrive from both the Prince’s father and Ida’s father: this one had been taken hostage by the King, who in turn warns Ida not to harm the prince, and to free him, or his army would storm the castle. Under the real threat of a major male invasion of her domains, Ida gathers her courage and gives a stirring speech, saying that she will lead the maidens into battle: “To unfurl the maiden banner of our rights, / And clad in iron burst the ranks of war, / Or, falling, protomartyr of our cause, / Die” (483-85, my emphasis). For Herbert Tucker, Ida becomes with this martial gesture “a principle of pure defiance (…) that can but foresee … the extinction of the self ” (361); this extremity derives from the clear defeat her surrender would represent. She duly summarises the six hundred years of male domination, emphasising the abasement, ignorance and prejudice to which women have been subjected, in much the same terms as Mary Wollstonecraft had put forward in her Vindication, in which she denounces above all the educational failures that have transformed woman into a degenerated human being, subject to man’s insult and violence:

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(…) dismissed in shame to live No wiser than their mothers, household stuff, Live chattels, mincers of each other’s fame, Full of weak poison, turnspits for the clown, The drunkard’s football, laughing-stocks of Time, Whose brains are in their hands and in their heels, But fit to flaunt, to dress, to dance, to thrum, To tramp, to scream, to burnish, and to scour, For ever slaves at home and fools abroad.’ (IV. 492-500, my emphasis)

It is at this high moment of eloquence that Ida publicly renounces her marriage contract and accuses the Prince and his men of barbarianism and falsehood, expelling them from her quarters: “You that have dared to break our bound, (…) wronged and lied and thwarted us – / I wed with thee! I bound by precontract / Your bride, your bondslave! (…) I trample on your offers and on you” (518-525). Ida finds the Prince guilty of precisely those things she has been trying to combat, including the attempt to enslave her through an obsolete marriage law. Humiliated by this failure, the Prince’s father wants to make war, to exert the male power of conquest (“She yields, or war”), but the son reiterates his preference to win Ida’s love through peaceful means: “More soluble is this knot, / By gentleness than war” (129-30). Nevertheless, in typical medieval fashion, the martial alternative prevails in the end: the Prince and his friends finally agree to fight Ida’s brothers in a “tourney” (tournament) and let the battle decide whether Ida must keep her marriage contract. This arrangement, Tucker stresses, signifies “the dependency of her regime on the sufferance of the male armed forces” (358). Ida’s battle is indeed a vocal one: her decided and ferocious voice inspires maidens, as it recalls women’s oppression around the world and speaks of her mission in isolation and severity: (…) What heats of indignation when we heard Of those that iron-cramped their women’s feet; Of lands in which at the altar the poor bride Gives her harsh groom for bridal-gift a scourge; Of living hearts that crack within the fire Where smoulder their dead despots; (…) (…) and I saw

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That equal baseness lived in sleeker times With smoother men: […] Millions of throats would bawl for civil rights, No woman named: Therefore I set my face Against all men, and lived but for mine own. Far off from men I built a fold for them: (…) And biting laws to scare the beasts of prey And prospered; till a rout of saucy boys Brake on us at our books, and marred our peace, (…) I tamed my leopards: shall I not tame these?’ (V. 365-390, my emphasis)

Hers will be for the moment, but not for long, a victorious female voice; first of all, she and some of her strongest ‘viragos’ depend on the male assistance of Ida’s brothers; yet, in this ‘battle of the sexes’, they manage to defeat and wound both the Prince and his friends. After acknowledging defeat, the Prince eventually falls into a coma. It is then that, rather unexpectedly, Ida asks the King to let her tend the Prince’s injuries and, afterwards, asks to let her university ladies tend not only to Cyril and Florian but to all wounded. This surprisingly compassionate attitude of ministering to the men, shows Ida’s willingness to bend her own laws, in spite of her victory, and marks a deep change in the sexual politics of the poem. Though nursing, not learning, is now shown as being the most natural activity to women, “Like creatures native unto gracious act, / And in their own clear element” (12-13), Princess Ida cannot help feeling sad and useless because the very reason for her existence – the noble task of the enlightenment of women – has somehow been interrupted, modified and subverted by the interference of men; and this is what the following excerpt explores through apocalyptic imagery, which is suggestive of failure and disaster: But sadness on the soul of Ida fell, And hatred of her weakness, blent with shame. Old studies failed; seldom she spoke: but oft Clomb to the roofs, and gazed alone for hours On that disastrous leaguer, swarms of men Darkening her female field: void was her use, (…) (…) a wall of night,

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Blot out the slope of sea from verge to shore, And suck the blinding splendour from the sand, (…) So blackened all her world in secret, blank And waste it seemed and vain; till down she came, And found fair peace once more among the sick. (VII. 14-29, my emphasis)

Though Ida is not defeated through war, which is traditionally the male duty and preserve, she is ironically defeated through love and its language; this, because the lyric poems that she reads to the wounded Prince are, as Tucker claims, “persuasions to love” and “assume her assigned familial and societal place” (1988: 368-370). As she had feared in relation to her women, she becomes voiceless.[14] The sudden change in Ida’s position, in her whole being in fact – “pale”, “meek”, “mild”, “broken”, in which proud Athena is transformed into a meek Aphrodite, appears at first to derive from her recognition and acceptance of the Prince’s love and of his avowed respect for the women’s cause. The reader may detect the presence of Tennyson himself, and of his own utopian projection into the future, in the Prince’s persuasive address to the Princess – an appeal to all women with feminist leanings: (…) Henceforth thou hast a helper, me, that know The woman’s cause is man’s: they rise or sink Together, dwarfed or godlike, bond or free: (…) (…) let her make herself her own To give or keep, to live and learn and be All that not harms distinctive womanhood. (…) Yet in the long years liker must they grow; 14 According to Tucker, Ida’s becomes “an ominous silence”, a “space of defeated melancholy” (1988: 359); this because “Ida finds herself in idyllic and conventional culture after all (…) which undercuts both her mission and her identity” (Idem, 362). In this context, it is important to remark that these songs or lyrics had been introduced much later by Tennyson for both reasons of content and form. In formal terms, they contribute to the poet’s original intention of experimenting a generic ‘medley’ (mixing both narrative and lyric language); in terms of the story, the love songs have the deliberate function of contributing to and enhancing the love interest that will ensure both the perpetuation of social convention and the survival of the human species.

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The man be more of woman, she of man; He gain in sweetness and in moral height, (…) She mental breadth, nor fail in childward care (…) Till at the last she set herself to man, Like perfect music unto noble words; (VII. 240-270, my emphasis)

Ida has come to symbolise not vocal energy as before, in which she had full possession of the word, but only its sonorous adornment. Her change is occasioned by the literal disempowerment caused by the dismantling of her university project and the consequent lack of worthy future prospects besides marriage. Although she eventually comes to love the Prince, we cannot ignore that what she loses is her own mission and identity. The resolution of the conflict is therefore achieved merely through romance or romantic love and not through an effective change in men’s mentality, which might open up a possibility. In The Princess, sexual and political equality are not really attained in the end and perhaps Tennyson never intended them to be in order to preserve the ‘natural order of things’. We could ask if he lacked the courage to offer a more radical solution or merely the capacity to project himself into the not so distant future. As Eve Sedgwick argues, “The ‘mythic’ central narrative begins with the astonishing vision of a feminist separatist community and ends with one of the age’s definitive articulations of the cult of the angel in the house” (1985: 120). She thus seems to imply that, far from being a parafeminist poem, as the stated project of The Princess insists, Tennyson’s text actually deals with the patriarchal homosocial bonding which makes women an object of exchange between men. Yet, it is not without a certain regret that the poet faces the prospect of “the sacrifice of the heroic will” as represented by Ida’s fall or defeat, present in Walter’s final compassionate insight: “I wish she had not yielded!” and the assertion that “maybe wildest dreams / Are but the needful preludes of the truth” (Conclusion, 5, 73-4). According to James Kincaid, “Ida’s search for knowledge involves the creation of a new society, a world that is specifically utopian (…)” and where “the chief enemy (…) is time, most specifically the past” (1975: 86). In spite of Tennyson’s sympathy for Ida, he implies that the Present is no time for heroism, no time for “solemnity, isolation and rebellion”, but for “natural development” in the domestic sphere. On the contrary, Elizabeth Barrett Browning states in Aurora Leigh, published ten years later, that the Present can be as heroic or

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epic as any antique age: “this living, throbbing age, / That (…) spends more passions, more heroic heat, / Betwixt the mirrors of its drawing-rooms”, and also that she “distrusts the poet who discerns / No character or glory in his times / And trundles back his soul five hundred years” (V. 200-210). The Present possesses, above all, the potential for the New Woman to emerge and Browning would set out to prove that such a woman as Tennyson’s Ida was no mere Idea, myth or idealization but an applicable concept in reality. Aurora and Romney Leigh, just like Ida and the Prince, are destined for each other from their childhood because of their arranged betrothal. But though both ‘brides of dreams’ insist on initial separatism and independence – leaving their homes and refusing to marry in order to accomplish their respective projects, only Aurora achieves her goal, that of becoming an independent woman. Both protagonists seem to agree that “great deeds cannot die” but “children die” (III. 236-7), thus implying that the purely domestic project is naturally finite or limited in comparison. Ida’s model or ‘idea’ is her self projected into the Future through her creation of thousands like herself – her female pupils at the University. Both women poets want to immortalise themselves through a personal accomplishment that is not time-bound. Like the Prince in relation to Ida’s political cause, Aurora is impressed with Romney’s social reforms and later heroic intentions. But, like Ida in relation to the Prince, she also judges Romney for attempting to woo her with pretty but hollow words.[15] Moreover, Tennyson’s implicit concept of the female utility in society is reflected indirectly in Romney’s notion that the wife should have the noble role of husband’s helper. This notion is criticised and ironised by Aurora: “There’s work for wives as well (…) / When men are liberal” (III. 724-27). Browning knew that, according to the realities of the Married Women’s Property Act, it was to Aurora’s advantage to remain single. It is, therefore, significant that Aurora, like Ida, establishes the main difference between herself and Romney in the following terms: “he is overfull / Of what is, and I, haply, overbold / For what might be” (I. 1103-09, my emphasis). Ida and Aurora renounce the Prince and Romney, respectively, for the lack of imagination they demonstrate. Aurora’s most radical vision of a union is the scenario she envisions of herself and the fallen Marian raising a child together without a male presence. This vision bears obvious similarities to some aspects of Ida’s gynotopia, namely her relationship with Lady Psyche and her child. It is the shift in the relationship’s balance of power, which 15 See also Marjorie Stone (1987).

THE IMAGE OF THE MYTHICAL WOMAN IN MID-VICTORIAN GYNOTOPIA

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is represented in The Princess by Ida’s conformation to the Prince’s ideal and in Aurora Leigh by Romney’s utter dependence (financial and physical) on Aurora, that allows Barrett Browning to comment on Tennyson’s work. Only in these circumstances can the woman poet conceive of Marriage as heralding the beginning of a New Jerusalem, a new era of an equitable, love-based union. For its close, which narrates the disbanding of the group of guests at the end of the day, Tennyson’s poem focuses again on Lilia, the contemporary Victorian maiden: “Last little Lilia, rising quietly, / Disrobed the glimmering statue of Sir Ralph / From those rich silks, and home well-pleased we went” (Conclusion, 116 -118). As the feminine silks are symbolically removed from the noble host, Sir Ralph, the heroic and the domestic, male and female, are consequently safely disjoined, and the Victorian reader is left ‘well-pleased’ with the pageantry and himself; yet, the poem has significantly illustrated the heavy price to be paid for the easy pleasure of domestic comfort. Like Walter, the reader is haunted by Ida’s fall but also, it has to be recognised, by the poem’s refusal to ignore the consequences of that fall, which fundamentally implies the sacrifice of the heroic will, the literal downfall of the enlightened spirits of Athena, Sophia and Pythia. Like the isolated Soul in Tennyson’s poem “The Palace of Art” or even the embowered Lady of Shalott herself, into whose mythic forms the poet deliberately and strategically projects himself, and whose beautiful ‘song’ is not shared or appreciated by the materialistic and prosaic world around her / him, Ida’s grand idealistic project/animated discourse is shown to be too perfect, too elevated and too forward-looking both for her own time and Lilia’s.

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[Recebido em 7 de junho de 2014 e aceite para publicação em 26 de outubro de 2014]

ACCIÓN[1]… POÉTICA EN HUIDOBRO AÇÃO… POÉTICA EM HUIDOBRO (POETIC) ACTION IN HUIDOBRO Jorge Rosas Godoy de Sá* [email protected]

Huidobro fue un transgresor de barreras sociales y culturales que subvirtió el período histórico nacional y su estética. Realidad que lo sitúa en la fecha en que él funda Acción. Diario de Purificación Nacional (1925) con el que se hizo visible sociopolítica y culturalmente en la Vanguardia chilena del 25. No obstante, ya antes adelantaba este escenario, con la fenomenología de la época presente en su poesía, sin separar la modernidad de la miseria global del hombre y por lo tanto buscó la regeneración de lo sociocultural a través del arte. Este artículo intentará desvelar este contexto, más universal, mediante una revisión somera de su poesía desde un soporte histórico literario, teniendo como hilo conductor, no el Creacionismo, sino el concepto de Vanguardia Hispanoamericana, en el que se sintetiza mejor su trayectoria estética y cultural. Palabras clave: vanguardia chilena del 25, poesía, Acción, regeneración Huidobro was a transgressor of social and cultural barriers who subverted the national historical epoch and its aesthetics. The foundation of Acción. Diario de Purificación Nacional marked his cultural and socio-political appearance in the 1925 Chilean Avant-Garde. However, he had anticipated this scenario with the atmosphere of this period already present in his poetry, without separating modernity from global human misery and, thus, striving for the socio-cultural regeneration through Art. This article will attempt to unravel this context through a brief 1 Aquí damos una doble connotación que tiene esta palabra en Huidobro, es decir, como palabra, que era fundamental para su poesía, pero también como el nombre de su diario, revolucionario para la época: Acción. Diario de Purificación Nacional. *

Departamento de Lenguas, Facultad de Educación. Universidad Católica de la Santísima Concepción. Concepción, Chile.

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review of his poetry on the basis of Literary History, taking as guideline – instead of Creacionismo – the broader concept of Hispano-American Avant-Garde, which may better grasp his aesthetic and cultural performance. Keywords: Chilean Avant-Garde 1925, poetry, action, regeneration Huidobro era um transgressor de barreiras sociais e culturais que subverteu o período histórico nacional e a sua estética. A fundação de Acción. Diario de Purificación Nacional marcou a sua aparição cultural e sociopolítica na Vanguarda Chilena de 1925. No entanto, ele tinha antecipado este cenário com a atmosfera deste período já presente na sua poesia, sem separar a modernidade da miséria global da humanidade e empenhando-se na regeneração sociocultural através da Arte. Este ensaio pretende desvendar este contexto mediante uma revisitação da sua poesia com base na História Literária, guiando-se não pelo Creacionismo mas sim pelo conceito mais amplo de Vanguarda Hispano-americana, capaz de compreender melhor a sua atuação cultural e estética. Palavras-chave: Vanguarda Chilena de 1925, poesia, Acción, regeneração

Presentación Huidobro no sólo fue un transgresor de barreras sociales y culturales sino “Poeta / Antipoeta / Culto / Anticulto” (Altazor, Canto I) que subvirtió el período histórico del ’25, tanto de la estética como de la historiografía de la época. De tal modo que su creación artística literaria no sólo obedece a los cánones estéticos individuales, sino que también a los sociopolíticos y culturales, como lo asentara Nelson Osorio (1981) al caracterizar las Vanguardias Hispanoamericanas, en las que se incluye Huidobro, ya que en su obra se aprecia, no sólo una metapoética, sino una poética política y cultural. Estas vanguardias están insertas en un mundo económico que prefigura una sociedad más miserable que feliz. Lo que resultó, como consecuencia cultural en los años 20, de la expansión de la economía liberal, que adelantaba el fenómeno de la tal globalización (que en aquella época era, más bien, la proyección del nuevo sistema obrero versus el capitalismo). Bajo esta dominante entonces es que se confronta el soporte histórico literario que supone la vanguardia, entendida ésta como una manera de comprender que en muchos países la rebelión artística y el cuestionamiento de los valores culturales existentes se vincula en mayor o menor grado a los impulsos de revolución social que movilizan a los

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sectores explotados. Esto es lo que hace que en el proceso de renovación del arte y la literatura, la vanguardia artística (tradicionalmente encarnada por sectores aislados de las éticas culturales) tuviera objetivamente la posibilidad histórica de encuentro y coincidencia con la vanguardia política y social representada por las clases y sectores contestatarios en ascenso. (Osorio, 1981: 230)

En este sentido, Huidobro opone o subvierte el orden, es decir, el Creacionismo es parte sustantiva del ser (+)humano y no del ser (+)individual[2], ya que definitivamente él sufre estos embates en carne propia como extranjero en Europa, especialmente en medio de la Guerra y luego como corresponsal. Guerra que luego universaliza los temores y los rasgos hegemónicos sobre toda la cultura, “tomando como medida y modelo las manifestaciones más prestigiadas de las vanguardias en Europa occidental” (Idem, 228). Esto implicaría entonces, “una perspectiva ideológica no explicitada que considera el Vanguardismo hispanoamericano como un injerto artificial, como un simple epifenómeno de la cultura europea, sin verdadera raigambre en condiciones objetivas de la realidad continental” (Ibidem). En consecuencia, Huidobro busca la mejor forma, no de evadir, sino de superponer la estética a esos cruentos dolores de aquella etapa europeizante de la Primera Guerra en Hispanoamérica, especialmente entre los años 20 al 30. Por lo tanto, Huidobro, que es un hombre de plena conciencia, hace emerger el esplendor del ser humano en una estética diferenciadora de la época, no como un mero ismo, sino como un nuevo pensamiento, lo que aparentemente no es visible en su obra; incluso se podría pensar que sólo lo es a partir del regreso a Chile y la fundación de Acción: Diario de Purificación Nacional en 1925. Sin embargo, ya antes adelantaba esta realidad, pero de modo universal, en que la palabra poética deliraba frente a la modernidad y quería incluirse en ella, es decir, obrar estéticamente en / con la época, sin separar la modernidad de la miseria global del hombre, como apreciaremos en el poema “Despertar de Octubre 1917”.

2 Remítase el lector al Manifiesto Total, publicado en 1932, pero que se puede leer desde la vida, siempre desde la vida como lo deja explicitado el poeta en frases como esta: “Nuestros cinco sentidos, como hormigas, parten por el mundo en busca de los alimentos que cada uno, entrando por su propio agujero, vendrá a depositar en su casillero particular.” (de Manifiestos; Huidobro, 2009)

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Aproximación cultural Todo artista es hijo de su época, lo que queda demostrado por el mismo Huidobro al señalar que “poseemos vías centrípetas, vías que nos traen como antenas los hechos que ocurren a sus alrededores (audición, visión, sensibilidad general), y poseemos vías centrífugas, que semejan aparatos de emisiones y nos sirven para emitir nuestras ondas, para proyectar el mundo subjetivo en el mundo objetivo (escritura, palabra, movimiento)”.[3] Esta aseveración se emparenta con los teóricos que marcan la diferencia sobre la relación arte y cultura, o más bien, arte y condición cultural (Culler, 2004; Spang, 2009; Eagleton, 2013). Por lo tanto el arte no deviene sólo de la ilusión o de la novedad de la vanguardia que se quiera abatir, sino de la realidad que se quiera recrear o mimetizar y/o finalmente ficcionalizar, ya que: “esta posibilidad de alcance de las vanguardias artísticas de esos años no se realiza plenamente en casi ningún país, y a menudo no se manifiesta sino en aproximaciones y coincidencias circunstanciales” (Osorio, 1981: 230). De modo que si revisamos la historia individual como aproximaciones circunstanciales, el artista estaba comprometido, conscientemente, con la sociedad que le tocó vivir y por ello quiso transformarla, pues esto es lo que explica el hecho de que, si bien no pueda hablarse de una general coincidencia entre los movimientos de vanguardia artística y los de vanguardia política y social, muchos de los mismos destacados representantes de la vanguardia artística de esos años se incorporan – aunque en algunos casos sólo sea temporalmente – a la crítica del sistema social e incluso a las luchas por el socialismo. (Idem, 231)

Pero, no sólo desde el arte literario sino desde la concepción del arte como una manifestación más de la cultura, la que generaría el verdadero cambio o regeneración, tal como escribe el propio Huidobro, en 1925: “Se diría que nadie cree en una regeneración posible, por eso nosotros queremos demostrar que hay un grupo de jóvenes dispuestos a dejarse matar, si es necesario, por crear un Chile nuevo y grande…”.[4] Junto con ello hay que considerar que él recriminaba la castración: “ninguna castración interna del hombre ni tampoco del mundo externo. Ni castración espiritual ni castración social”[5] y agrega: “necesitamos un hombre sin miedo. Queremos 3 “El creacionismo”, 1925 (de Manifiestos; Huidobro, 2009). 4 “Acción”, Acción: Diario de Purificación Nacional, año I, nº 1, 5 de agosto de 1925. 5 Manifiesto Total, 1932, p. 2. Recuérdese que el original se publicó en París en 1931 en la revista Vertigral y en 1933 en La Nación de Buenos Aires.

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un ancho espíritu sintético, un hombre total, un hombre que refleje toda nuestra época como esos grandes poetas que fueron la garganta de su siglo” (Idem). Por lo tanto el arte literario no debía limitarse a imitar solamente, sino a crear nuevas realidades, lo mismo que la vida o la naturaleza, como afirmaba Huidobro ya en 1914, con “la declaración de su independencia frente a la Naturaleza” bajo el título Non Serviam[6]: Hemos aceptado, sin mayor reflexión, el hecho de que no puede haber otras realidades que las que nos rodean, y no hemos pensado que nosotros también podemos crear realidades en un mundo nuestro, en un mundo que espera su fauna y su flora propias.

Por lo tanto no podía limitarse sólo a observar como pasaba la historia del mundo, del país, del hombre; sino que había que internarse en ella con “una estética nueva, consciente de sí misma y a la vez enraizada en los nichos contextuales (biográfico, social y político) del país” (Subercaseaux, 2010: 54) y por lo tanto regenerarla. Pero no como un simple cambio de ‘regenerar’ lo destruido o degenerado sino que había que (re-)generar nuevas formas, nuevos mundos, nuevas realidades: “que se vayan los viejos y que venga una juventud limpia y fuerte, con los ojos iluminados de entusiasmo y esperanza”.[7] O sea, recrear mundos posibles. Y estos podían ser, más bien deberían ser, tanto en la realidad real como en la creada, y por lo tanto la capacidad y / o calidad de ‘pequeño dios’[8] estaba en esta circunstancia. Sin embargo, esta lectura sobre la estética de Huidobro fue, en alguna medida, ligera o inmanente[9] olvidando, tal vez, que la idea es re-crear lo viejo, lo no moderno, lo corrupto por el tiempo y las costumbres practicadas por los hombres de la época y, por lo tanto re-generar nuevas instancias: lo nuevo v/s lo viejo, lo honesto v/s lo corrupto, etc. Y esta sería la acción definitiva, vale decir, la juventud y claridad que se está perdiendo,

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“Hacemos estas aclaraciones porque la idea del hombre total, de la cultura total se ha abierto camino en el mundo en los últimos años, sobre todo a partir del Congreso Pro Defensa de la cultura celebrado en París el año 1935.” (Manifiesto Total en la revista de poesía Total, 1932, p. 2) Aunque fue leído en 1914 no fue publicado sino hasta 1945, cuando Eduardo Anguita lo incluyó en la Antología de poesía chilena nueva en1935. Citamos según Huidobro (2009). Vicente Huidobro, “Balance Patriótico”, Acción: Diario de Purificación Nacional, año I, nº 4, 8 de agosto de 1925. Concepto inspirado en el famoso verso “El Poeta es un pequeño dios” de “Arte Poética”, en El espejo de agua (1916) que retomaremos. Camurati (1980), Pereira (2000) y Neglia (1979), entre otros, centrados, más bien, en el lenguaje o el texto.

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lo mismo la honestidad que se está corrompiendo hay que regenerarla; y así, suma y sigue. De tal manera que, aquello que servía de base para el arte literario era la realidad que había que cambiar, subvertir, tal vez, ya que “la suma de latrocinios de los viejos políticos es ya inconmensurable, que se vayan, que se retiren. Nadie quiere saber más de ellos. Es lo menos que se les puede pedir”.[10] Pues bien, esta atmósfera hizo comprender rápidamente los manifiestos, o sea, éstos no eran sólo una estética literaria, sino que eran una base cultural, es decir, desde la estética era posible cambiar y subvertir, si fuera necesario, la realidad; puesto que el “poeta” y luego los jóvenes tienen “plena conciencia de su pasado y de su futuro” (Non Serviam). Evidentemente que esta es una analogía que nos acerca a la apropiación cultural, dado que la literatura es básicamente una más de las manifestaciones del hombre y que definitivamente trasunta como una condición sine qua non de la ética que se hace carne en la estética. Algo que además hace recordar a Benjamin (apud Nicolás, 2010) quién refiere de modo similar “la curiosidad” que asume el poeta[11], en la que hay un “soplo detectivesco”: “la crema de la sociedad era un clan de criminales, una banda de conspiradores con la que ninguna otra puede compararse: la camorra de los consumidores” (Idem, 9). Y, finalmente, si nos acercamos al concepto de vanguardia, en realidad a uno de los conceptos, encontraremos estos dos elementos, es decir, el del arte como innovación y el social como subversión de lo establecido, ya que todo movimiento artístico está inspirado en un espíritu de ruptura, que se propone instaurar un nuevo sistema de referencias, promoviendo la libertad del creador, la novedad del objeto artístico y la experimentación con su propio lenguaje, en tanto que facilita la interdisciplinariedad en beneficio de la propia producción o de la transformación social. (Fernández, 1998: 205)

Se trata de un acto de resistencia ya que, según Sergio Mansilla es el discurso el que infringe estas transformaciones: En estas condiciones, el discurso identitario se vuelve elegía, lamento, testimonio acusatorio, denuncia indignada o deseo utópico por ser otro; se vuelve esfuerzo por representar / construir otra identidad a través, por ejemplo, del discurso político militante (y de las acciones que éste conl10 “Balance Patriótico”, Acción: Diario de Purificación Nacional, año I, nº 4, 8 de agosto de 1925. 11 Refiriéndose a Proust en su rol de descubridor del camuflaje ficticio que yace sobre la base material. Expresión ésta, vertida por Montserrat Nicolás en Vicente ¿Poeta, político o intelectual? (Nicolás, 2010: 69).

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leva) y/o a través de la literatura en sus diversas variantes textuales, algunas de las cuales pueden aparecer como exclusivas de una cultura singular en un momento dado justamente por la necesidad de afirmar una identidad urgente, en proceso de construcción y visibilización. (Mansilla, 2006: 132)

En este sentido entonces, Huidobro no está lejos de aquella realidad y de la tradición poética; siempre está comprometido con la cultura y la sociedad, ya que él “entiende el compromiso como un imperativo moral y una obligación contraída con el destino de la humanidad que se debate en medio de los horrores de las guerras; este compromiso se extiende a la historia, a la política y a la acción social en su tiempo” (De la Fuente, 2007: 58), pues en ellos ve el valor máximo de su estética. En el caso nuestro debemos señalar que la tradición literaria deviene precisamente de esta dicotomía, es decir, lo social y cultural por un lado y lo estético por otro. Como también es menester reconocer que esta tradición ha calado hondo en los cambios sociales de América Latina. Por ejemplo, desde que Chile es Chile se ha querido redescubrir la acción de la sociedad a través de la cultura o viceversa, la cultura a través de las manifestaciones sociales que generalmente van a la vanguardia del arte o con ella misma. En tal caso podemos mencionar a Lastarria, Bilbao, Mistral, Neruda, pero rara vez a Huidobro en el marco de la reclamación de la autenticidad social y cultural de los pueblos y especialmente de la acción del arte como herramienta de liberación de una nación en el concierto del continente y de los referentes de las potencias como Europa y EEUU. De tal forma que ver estas acciones en los literatos de nuestra tradición literaria e histórica no es del todo ajeno a la vanguardia y a la fundación de una nación o identidad de un pueblo o al fortalecimiento político para forjar un país más robusto y desarrollado. En palabras de Promis (1995: 48): “Los primeros escritores de formación positivista imaginan ahora al poeta íntimamente entrabado con los intereses del pueblo, formando parte como un elemento más del conjunto que denominan Humanidad”, y que expresa con versos que él cita de Puelma Tupper y en donde podemos apreciar esta nueva y decidida realidad: El poeta se transforma en vate, su palabra es oráculo, su numen, el vigoroso, el íntimo resumen de los anhelos con que el pueblo late.

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Pero también en todos ellos se ha manifestado el impulso revolucionario del pensamiento liberal y progresista de los europeos, sobre todo aquellos pensamientos que vienen de la Revolución Francesa o la posrevolución de la misma, como una condición pre-vanguardista hispanoamericana. Como por ejemplo, Lastarria, inspirado en el pensamiento romántico devenido de allí, se atreve a resaltar el ímpetu joven de la nación y de la literatura, tal y como lo hiciera Huidobro en los años posteriores en el arte vanguardista, para alcanzar la independencia del poder europeo produciendo textos que hablen de lo nuestro y, por lo tanto, llega a concebir un romanticismo, más bien social, con el cual alcanzaría esta libertad tan anhelada desde la literatura como una movilidad identitaria de la nación; o Bilbao que, en modo continental nos convoca a nosotros, poseedores de toda latitud y todo clima, herederos de la tradición purificada, incorporando en nuestra vida las armonías de las razas, y vivificando con la razón y con el alma la solidaridad del género humano en la libertad civil, política y religiosa, tomaremos el vuelo para salvar ese océano de sangre y de tinieblas que se llama historia, fundar la nueva era del mundo y descubrir el paraíso de la pacificación y libertad. (Bilbao, 1856: 302)

Demás está citar a Mistral, la mestiza, por ejemplo, quién se atreve a reflexionar y a reafirmar uno cultural, o el rasgo cultural más bien de la modernidad, especialmente desde la relación obligada de Naturaleza y Dios como el único puente, tal como las sensibilidades y las razas. Ella plantea en uno de sus Recados: “El Recelo histórico entre las Américas” (1948) que se trata más bien de sensibilidades y no de razas ni de ideologías distintas, como así también señala que “ni los capitalistas del Norte ni los negociadores del Sur” (Mistral, 1999: 63) pensaron en la identidad, es decir, ninguno pensó que “ni las leyes ni la costumbre les indicase el considerar como parte de las negociaciones el bienestar de las masas campesinas y obreras” (Ibidem). Cabe recordar además que en 1938 en su recado “Bío Bío” había escrito ya “que tenemos que volvernos puente hacia el indio y desde el indio” (Mistral, 1999: 35) dado que el río del mismo nombre Bío Bío dividía a Chile a dos: “en raza allegada y en raza solariega” (Ibidem). Como también debemos volver sobre la memoria y manifestar una vez más a “Mr. Herring” la pregunta cultural ¿Serán capaces los EE.UU. de permitir que el banano, el caucho y el petróleo de la América del Centro, así como el trigo, la carne, el cobre y la

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madera de la América del sur, se organicen para competir con quién sea y por el tiempo que decidan? (Idem, 69)

En consecuencia es necesario, entonces, reconocer que la literatura vanguardista nunca es ingenua, pues siempre trae consigo la transformación social y literaria: “una vanguardia que pretende ser al mismo tiempo estética (punta de lanza de una nueva corriente artística) y política (punta de lanza para la creación de un nuevo país)” (Subercaseaux, 2010: 54). De tal suerte que el centro, no está sólo en el producto artístico, sino que se teoriza sobre el proceso creativo y sobre la posición del arte en la cultura (Fernández, 1998: 203), lo que nos lleva a profundizar en la acción que ejerce un escritor y, especialmente uno que transgrede e innova en la tradición, sobre la sociedad que le rodea, en la que está inserto y por lo tanto, nos lleva a concluir que esa acción no sólo es en la poesía sino también en la sociedad que es la que quiere transformar, ya sea estética o culturalmente ética. Este actuar entonces se trasforma también en uno social y político. Fundamentalmente cuando todo marcha mal, cuando todo es más destructivo que constructivo y en consecuencia se buscan las formas para transformar aquella realidad. Y lo primero es reconocerla, luego denunciarla y finalmente combatirla y cambiarla y por lo tanto transformar su obra de alguna manera en un instrumento de lucha para lograr cambios fundamentales, especialmente desde la perspectiva política.[12] Pero para ello se debe lograr una interdisciplinariedad entre el arte, la vanguardia y la política como una herramienta más visible y más rápida (si se quiere). Y esto pareciera ser lo que motivó entonces a Huidobro para ejercer su acción, su Poesía y Acción dado que, si seguimos relacionando la literatura con la identidad cultural y nos apoyamos nuevamente de Mansilla (2006) en este discurso crítico, concordaremos que La literatura moderna, tan acostumbrada a representar lo real a través de escrituras metaliterarias, constituye una práctica de lenguaje propicia para problematizar la identidad desde y con la literatura: la identidad se vuelve objeto de ensayos discursivos que ponen en evidencia la, digamos, “incompletud” de la identidad y de la literatura que la registra y la hace presente. Ensayos discursivos que se materializan en textos poéticos, de ficción narrativa o dramática, crónicas o en textos ensayísticos o en manifiestos; (…). (Mansilla, 2006: 137) 12 Arenas (1975: 203); De Costa (1984); Neghme (1984); Saldes (1987); Fernández (1998); Góngora (2006); Nicolás (2010), entre otros.

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Aunque, por cierto, habría que entender este discurso metaliterario de Huidobro como uno de resistencia estética primero y luego de resistencia nacionalista hasta que finalmente se convierte en uno meramente cultural y universal, dado que el hombre ha de ser total[13] y, en consecuencia, aquí la tarea es la de reificar el campo simbólico, léase creacionismo y los manifiestos; con el socio-cultural, léase rescatar los valores fundamentales del hombre en plena circunstancia epocal y en tanto respuesta al destino del hombre como en tanto ciudadano desencantado con la contingencia, de tal modo que El texto se convierte, así, en una máquina productora de efectos de extrañeza cuyas consecuencias, en el terreno de la relación literatura-identidad, se hacen visibles en el hecho de que entonces la literatura promueve la dimensión “procesual” de la identidad; vale decir, la literatura ofrece experiencias de realidad que conducen a repensar, reimaginar, reconfigurar lo propio a través de la visibilización de sus fisuras, vacíos, carencias, incluyendo, sobre todo, los vacíos, carencias y deseos de los discursos que hablan de lo propio (como el de la misma literatura). (Mansilla, 2006:136)

Antecedentes y caracterización cultural Distintos historiadores y politólogos coinciden en que a partir de 1920 se inicia en Chile un período nuevo que pone fin al parlamentarismo. Probablemente en este período se hace patente con fuerza el llamado ‘problema social’ que representa miseria, promiscuidad, cesantía, huelgas y violencia laboral y de represión en distintos puntos del país. Ahora bien, frente a esta ‘cuestión social’ los partidos políticos están divididos y antes las diferentes alternativas para actuar, no se opta por ninguna, dejando paralizado al Ejecutivo, el cual nunca contó con el respaldo suficiente como dar respuesta a este problema, incluso, el conglomerado político que ayudaba al Presidente no tenía un criterio unánime para enfrentar esta situación. Agravan esta situación: la aglomeración de la población en las áreas urbanas, en la década del 20; la población de Santiago aumenta en 31.7%, la Concepción en 19%, la de Iquique en un 21% y la de Viña del Mar en 33.4%. Este importante aumento significa insalubridad, promiscuidad, miseria y germen de la delincuencia y lumpen. 13 Condición que ya la adelanta en Manifiesto (1925) en el apartado de “El Creacionismo”, al señalar que la personalidad del hombre es total, lo que por cierto, ultima en otro manifiesto del mismo nombre: Total (1932).

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Se agrega a la anterior, problemas económicos serios al caer el precio del salitre y aumentar fuertemente la cesantía en el Norte desde 1922 y también en Santiago. Como si esto no bastara, se añade el juego político de magnificar aún más las situaciones para lograr dividendos. Tales como una estéril lucha de partidos que obligó a Alessandri a cambiar 16 veces de gabinete y a no lograr la aprobación de las leyes sociales que había propuesta al parlamento. Una guerrilla partidista que buscaba ventajas egoístas, sacrificando legítimas aspiraciones populares. Descaradas intervenciones oficialistas en elecciones parlamentarias, lo que es una herencia bastante arraigada en nuestra política. Una fuerte radicalización de partidos populares que comienzan a tener relevancia. Un desfinanciamiento de los programas sociales del gobierno y el nulo apoyo de los partidos para lograr su financiamiento, pero sí, en una época de estrecheces económicas, la rápida disponibilidad de los parlamentarios para fijarse una dieta como presupuesto de rentas. Fue este último episodio que provocó directamente el pronunciamiento militar del 5 de Septiembre de 1924. Todo lo anterior, no obsta para precisar que existe un grupo de oficiales que se opone a la participación popular, los cuales habían sido opositores a Alessandri, participando algunos de ellos en el pronunciamiento de 1924. Es en este ambiente cuando regresa a Chile un poeta, un intelectual que se cobija en el diario La Nación escribiendo combativos artículos de candente actualidad y lanzando rápidamente su propia publicación. El poeta era Vicente Huidobro Fernández y el diario que editaba se denominó Acción. Diario de purificación nacional.

Poesía y Acción La poesía de Huidobro no sólo fue seguir la tradición, sino transgredirla, subvertirla del todo hasta ser llamada por el mismo como “antipoesía”[14] y por los otros como “creacionismo”. La obra poética no sólo es evasión, sino también compromiso. Y este es el caso de nuestro autor, su obra no sólo quiere renovar la estética sino que también la cultura en la cual se inserta. Y dicho sea de paso, una cultura que le es muy diferente, pues viene llegando desde Europa, donde los planteamientos socioeconómicos como 14 Hemos de recordar aquí que su expresión más significativa fue “soy (…) / poeta / antipoeta / culto / anticulto” (Altazor, Canto I, versos 367; 369-372), ya evocada en el comienzo de este ensayo.

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los políticos y culturales son muy diferentes. Entonces encuentra que es menester hacer algo sobre esta realidad que no le es para nada amigable. Y es así como Huidobro, incluso a través de su creación artística, aborda estas realidades que le son tan ofensivas e intolerables, ya que denotan una civilidad corrupta, deshonesta y capitalista que no le asegura el porvenir al ciudadano común ni menos a la patria. En definitiva desarrolla un estilo bifronte “en que la vanguardia estética se concibe a sí misma como vanguardia política y también viceversa” (Subercaseaux, 2010: 54). Montserrat Nicolás (2010) plantea que la obra poética que expresa la posición crítica de Huidobro consiste en las que se mencionan a continuación: Non Serviam, Pasando y pasando (ambas del 1914), El espejo de agua (1916), Horizón Carré (1917) y – por supuesto – el diario Acción. Diario de purificación nacional. Pero antes, Saldes (1987) señala como fundamental en estas lides su obra dramática En la Luna (1934); esta pieza estaría basada en su ideología, ya ratificada el año 1923 con su ensayo Finis Britannia, en el cual desarrolla sus ideas críticas sociales y sobre la decadencia que influye desde el imperio, y por lo tanto la inclinación es resistir a aquella influencia, pues ya está bueno de soportar las inequidades de las potencias. También podemos ver como por ejemplo Sergio Pereira ve reflejada esta realidad cuando propone una lectura anarquista de En la Luna como una interpretación social indicando que: la pieza huidobriana se planteará como un texto generador de ideas reformistas capaz de forjar un mundo futuro donde impere la libertad y la solidaridad entre todos los hombres, de la misma manera como lo exponía el progresismo en su versión más depurada, desde el punto de vista teórico (…). (Pereira, s/f).

Aunque por ahora nos quedamos con lo que refiere José de la Fuente (1993) sobre el pensamiento social de Vicente Huidobro, lo que refrenda en otro ensayo, en donde sugiere que en Ecuatorial (1918) ya hay “indicios de una conciencia histórica, la separación de los tiempos en las eras de la paz y de la guerra, la demarcación de la ruptura, entre los mundos que morían y los que sobrevivían para allegarse a una sociedad que viviese sujeta al arte y a la ciencia en su intento cosmológico sin represiones ni engaños” (De la Fuente, 2007: 62) como se observaría en los siguientes versos: Trescientos sesenta y cinco pájaros tiene el cielo Estos pájaros serán banderas el día del gran triunfo

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Cuando los hombres oigan contar la hora del hombre Cuando nadie viva del esfuerzo nacido de otros pechos Cuando nadie se nutra de la cara ajena Ni respire por pulmones extraños Ni se ate los pantalones con las tripas esclavas.

Lo cierto es que también en el comienzo del poemario mencionado se puede apreciar esta realidad: Era el tiempo en que se abrieron mis párpados sin alas Y empecé a cantar sobre las lejanías desatadas Saliendo de sus nidos Atruenan el aire las banderas LOS HOMBRES ENTRE LA YERBA BUSCABAN LAS FRONTERAS Sobre el campo banal el mundo muere De las cabezas prematuras brotan alas ardientes Y en la trinchera ecuatorial trizada a trechos

O bien en algunos versos finales: Aquella multitud de manos ásperas Lleva coronas funerarias Hacia los campos de batalla Alguien pasó perdido en su cigarro

De tal forma que esto obedece a una tematización, tal como lo señala Miranda, ya que (…) la poesía de Huidobro recurre sistemáticamente al espacialismo para, además, tematizar esencialmente un espacio europeo y latinoamericano fracturado por la guerra, a través de la poetización de un estar fuera del tiempo y del espacio, sensación provocada en Huidobro por la traumática experiencia de la guerra y de sus signos escatológicos, bajo el temple del

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testimonio y la estupefacción: “QUÉ DE COSAS HE VISTO”. (Miranda, 2012: 109)

No obstante, también está la posibilidad que se piense lo contrario, ya que la poesía huidobriana no es directamente visibiladora de estas realidades contingentes y verificadoras de identidades culturales tan claras, sin embargo, siguiendo los planteamientos de Mansilla es posible, quizás intersticialmente, allegar una autenticidad macrocultural de Huidobro al texto. En consecuencia, tal como sugiere Sergio Mansilla (2006) en un artista, una revisión crítica y auténtica debería pasar por (…) interrogarse (e interrogar, desde luego, al texto) si de veras existe consistencia entre la promesa de sentido que todo texto comporta con lo que el lector pueda al fin sacar en limpio tras un ejercicio hermenéutico determinado por una triple correlación: entre el texto y sus subtextos; entre el texto y otros textos afines (del mismo género literario, por ejemplo); entre el texto y el macrotexto de la realidad global referida (el macrotexto de la historia y la cultura). Si después de todas estas correlaciones el texto continúa mostrando productividad semántica a través de efectos de extrañeza ideológica ante lo real, y no se limita, sin más, a reiterar significados preexistentes al texto, entonces tendríamos que admitir que el texto literario en cuestión inaugura un nuevo espacio de significaciones intelectuales y emocionales que contribuye, en el ámbito de la praxis identitaria, a potenciar la naturaleza cambiante de las identidades culturales. (Mansilla, 2006: 140)

Sin embargo, si realizamos una revisión rápida, podemos señalar que ya en Pasando y pasando nos adelantaba los nuevos tiempos: “Muy dignos de respeto y admiración serán los señores clásicos pero no por esto debemos imitarlos. Ahora estamos en otros tiempos y el verdadero poeta es el que sabe vibrar con su época o adelantarse a ella, no volver hacia atrás” (Huidobro, 1914: 84). Razón de más para tomar en cuenta la vida común, tomar conciencia de la vida común. También observamos estos ímpetus de novedad y equilibrio con la temporalidad cotidiana y con lo vivido en “Paréntesis” del libro de Adán (1916): Todas las cosas salen de la tierra para volver a ella, todo lo que es el diario tráfago y tus ojos encanta: los tranvías, los carros,

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las lujosas y las pobres casas, los castillos de cuerpos y de almas salen de la tierra a poner nuevas formas sobre el mundo, a aumentar el tumulto, a delinear siluetas en el aire y volver a la tierra alguna tarde.

De manera que la realidad social ya se evidencia, aunque sea como recurso poético. Ya que luego tomará el rol que le permitirá realizar no sólo la subversión estética sino que también la ética desde la condición de “pequeño dios” que crea una nueva realidad, como lo podemos apreciar en el poema “Arte Poética” de El espejo de agua (1916). Pero para ello debe reconocerla tal cuál es y en este acto es cuando la denuncia, pues le impacta más que la nueva realidad poética que ha creado. Es en la propia “Arte Poética”, donde el poeta se está dando cuenta de la realidad y de la conciencia social, pero con gran fuerza en la estética, estética que no está lejos de lo cotidiano sino que la usa para regenerar[15] la historia, como lo registra en la tercera estrofa del poema: Estamos en el ciclo de los nervios. El músculo cuelga, Como recuerdo, en los museos; Mas no por eso tenemos menos fuerza: El vigor verdadero Reside en la cabeza.

Lo que ciertamente coincide con la motivación que impulsa a la publicación de Acción (1925). En el primer número se señala, en primera instancia, que este es un medio para el desarrollo de ideas que buscan la salvación y engrandecimiento de la nación.[16] En sus páginas tendrían cabida, entonces, todas las denuncias de corrupciones, debilidades, injusticias y fraudes. Pues bien, como se aprecia, el tiempo que vive el poeta, el tiempo histórico que simultáneamente da cuenta el poeta, demuestra los signos de la época y la actitud del autor con la que lo enfrenta, por lo tanto ya nos adelanta los nuevos tiempos: “el muslo cuelga, / como recuerdo, en los museos” 15 Usamos el mismo vocablo huidobriano para referirnos a que simultáneamente, tomando conciencia de la realidad más dura, está asumiendo una estética nueva. 16 Acción: Diario de Purificación Nacional, año I, nº 1, 5 de agosto de 1925.

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y como deberemos enfrentarlo: “el vigor verdadero / reside en la cabeza”. Lo propio ocurre en “Año Nuevo”, del mismo libro: El sueño de Jacob se ha realizado; Un ojo se abre frente al espejo Y las gentes que bajan a la tela Arrojaron su carne como un abrigo viejo. La película mil novecientos dieciséis Sale de una caja.

Aquí lo más importante es que el sueño de Jacob se ha realizado y que “La película mil novecientos dieciséis / Sale de una caja”. Es decir, sale a la calle de una vez por todas, no sólo se ve en el cinematógrafo, sino que se vive, ya que la realidad se viene encima de los espectadores, a la conciencia de ellos. En consecuencia, el año 1916 ha pasado, pero con él todo aquel que aún vivía de la sola tradición, ahora el año y el hombre viejo han rodado al vacío y no queda más que asirse de la conciencia, de la realidad, más bien, para asumir conscientemente la nueva época. Y esto es algo que retoma con mucha fuerza años más tarde como adelantando una nueva realidad descarnada que se iniciaría con un nuevo tiempo a la vez en 1916 y que se ratifica, de algún modo, en el número 4 del periódico, en donde publica un artículo titulado “Balance Patriótico”.[17] Es una interpelación a Chile, exhibiendo la mediocridad general, una incitación a sacudirse de los viejos políticos. Execra los vicios nacionales: la desconfianza, el odio a la superioridad, la venalidad de los políticos que han entregado las riquezas chilenas al extranjero, la ladronería que está en la sangre y que hay que extirpar. Y se vuelve al mundo joven con mucho ímpetu, también en el número 7 del mismo año: Nuestro diario tiene sólo cuatro páginas pero toda su lectura es interesante y de actualidad (…) los que así lo hagan irán conociendo además los problemas que agitan a nuestro país en nuestros tiempos turbulentos, los diferentes problemas de otra índole que preocupan al mundo entero y adquirirán, sin darse cuenta ellos mismos una instrucción positiva, los deberes del ciudadano en las fronteras de su país, los deberes del hombre en las fronteras del mundo. (Diario Acción…, año I, nº 7, 1925)

17 Acción: Diario de Purificación Nacional, año I, nº 4, 8 de agosto de 1925.

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Por cierto que podemos encontrar algunos indicadores de esta realidad y, especialmente de cómo debemos enfrentarla, ya en Horizón Carré (1917), en donde expone, no sólo una estética, o más bien, una nueva etapa de su estética, sino que ‘aterriza’ la teoría en la forma de humanizar. Por lo tanto el horizonte, que en principio es poético en sí mismo y por sí mismo, ahora es una cuadratura en la que ocurre la vida, es decir, es allí que se representa un cuadrado en el que habita la vida (o cuadros de vida); se humanizan las cosas, se precisa lo vago; lo abstracto se concretiza y lo concreto se abstrae. En suma, lo que era demasiado poético para crearlo se convierte en una nueva creación, cambiando su significado habitual. De modo tal que todas las cosas, los elementos, las circunstancias, etc. son humanizados a través de la palabra poética. Y de esta manera nos hace cómplices de la recepción de aquel mundo y a la vez nos hace partícipes de esta nueva época: hay que cambiar y no sólo con las palabras sino con la acción. Y por ello nos muestra que cambiando el sentido, el significado a las cosas viejas, obtienen una nueva energía, un resurgimiento, no por viejas y gastadas sino por la acción de crear nuevas realidades. Como ha de ser en pleno 1917, en que el poeta asimila los avances de la modernidad progresista, pero no a costa de lo que otros han llamado humanidad, sino del espíritu de humanidad que hay que fortalecer y rescatar. Sí es necesario, volviéndose desde la creación a la cotidianeidad y desde la cotidianeidad a la creación hasta llamar la atención de la conciencia con estas nuevas formas visuales y abstractas, pero que hacen el equilibrio de la vida. Habría que hacer mención también al texto llamado Hallali (1918), que es traducido como Halalí, como si fuera una pieza musical, sin embargo es todo lo contario, es una pieza sublime de la muerte[18], pero de la muerte que provoca la época y que no reparamos en ella. De tal suerte que Huidobro nos la presenta para que hagamos eco de ella a través de la conciencia de hombres históricos, enfrentados a una guerra. 1914. Nubes sobre el surtidor del verano De noche Todas las torres de Europa se hablan en secreto De pronto un ojo se abre El cuerno de la luna grita Halalí Halalí 18 Halalí que en francés es ‘Hallalí’, equivalente al significante de muerte y cuyo significado es una ‘muerte’, más bien, abstracta, opuesta a la concreta ‘mort’ o ‘mortalité’.

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Las torres son clarines colgados AGOSTO DE 1914 Es la vendimia de las fronteras Tras el horizonte algo ocurre En la horca de la aurora son colgadas todas las ciudades Las ciudades que humean como pipas Halalí Halalí Pero ésta no es una canción Los hombres se alejan

O sea, nos está llamando la atención frente a una realidad provocada por los hombres que son (–)humanos y por lo tanto hay que llevarlos a (+)humanos. Aquí entonces funciona el arte como una vehiculación para que nunca más pueda ocurrir algo así. Para ello nos opone a la sublimidad del lenguaje y de las metáforas v/s las imágenes y los signos regenerados, tales como: “el cuerno de la luna grita Halalí Halalí”, es decir, la luna, algo extraña, con forma de cuerno [y aura o anillo enrojecido], le personificamos con un grito, que en realidad es una interpretación de la guerra y por añadidura de la muerte. O bien, “en la horca de la aurora son colgadas todas las ciudades…”, imagen que quiere representar que a la amanecida de ese aciago día las ciudades son entregadas a la muerte, bombardeadas, tal vez, y por ello quedan humeantes, denunciando así los horrores de la guerra. Como también incitar al proletariado, algo impávido todavía, como se evidencia en los siguientes versos del poema “Despertar de Octubre 1917”[19]: Despertad proletarios sacudid las melenas de león Como el ramaje iracundo de las olas O como esa bandera que palpita en el cielo Esa bandera color de corazón

En fin, si seguimos, llegaremos a establecer un parangón entre el nuevo lenguaje poético y la realidad que es denunciada, en conciencia, en oposición a la época que se vive y que se quiere regenerar para hacerla más humana, tal como lo expresa Pereira (s/f): “su forma artística de plasmación de la materia social es coherente con su vocación de adelantado en las formas de representar lo popular y reescribir lo real”. Cabe recordar aquí 19 que recoge la edición de Hugo Montes, en el apartado “Otros poemas” (Huidobro, 1976).

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el poema más intencionado, es decir, el que más directamente alude a este humano de carne y hueso que lideró ese gran cambio social: “Elegía a la muerte de Lenin”[20] en donde se lee lo que sigue: El ruido de los mares Se confunde con el canto de las multitudes Tu muerte crea un nuevo aniversario Más grande que el aniversario de una montaña Has vencido has vencido

Realidad que se aprecia, no tan ideologizada eso sí, en el artículo ya citado “Balance Patriótico” (1925), en el cual se lee la necesidad de un alma de ese cuerpo que se pierde y que es Chile: En Chile necesitamos un alma, necesitamos un hombre en cuya garganta vengan a condensarse los clamores de tres millones y medio de hombres, en cuyo brazo vengan a condensarse las energías de todo un pueblo y cuyo corazón tome desde Tacna hasta el Cabo de Hornos el ritmo de todos los corazones del país.

Aunque ya en Altazor (1919-31) encontremos señales de esta poética política, es decir, de esta poética creacionista comprometida con la conciencia de ser un artista, consciente de su época y por lo tanto comprometido éticamente con su creación: No acepto vuestras sillas de seguridades cómodas Soy el ángel salvaje que cayó una mañana En vuestras plantaciones de preceptos Poeta Anti poeta Culto Anticulto

Y por cierto, “Canto al primero de Mayo” (1933), uno de los poemas inéditos publicado por Hugo Montes (1989: 35) da cuenta de esta circunstancia:

20 Datado en 1924, año de la muerte de Lenin; inicialmente recogido por Anguita & Teitelboim (1935: 34-36).

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Hoy el mundo florece en nuestros ojos el Primero de Mayo es el tambor que despierta a la tropa proletaria como la selva cuando llama el sol. Hoy todos los obreros de la tierra vibramos como un solo corazón Ya pronto lavará nuestra miseria el Alba de la Gran Revolución saltarán al espacio las cadenas y temblará el burgués explotador.

Pues bien, en definitiva la poesía huidobriana camina por ambos mundos, es decir, va y viene al creacionismo, pero desde un mundo real, situación ya confrontada por Eduardo Thomas[21], y tal como lo planteara él mismo en su estética, más bien en un compendio a modo de respuesta.[22] En ésta se hallan varios puntos claves o “algunas frases” como les llamó el mismo Huidobro, y de modo especial en los puntos del 5 al 11: 5.- El poeta es el hombre que rompe los límites. Él escucha a cada momento el eco de sus pasos en la eternidad. 6.- La poesía es un desafío a la razón, pues ella es la super-razón. 7.- El poeta es el hombre que recuerda los sueños seculares que los demás han olvidado. 8.- El poeta es el hombre que conoce el drama del tiempo que se juega en el espacio, y el drama del espacio que se juega en el tiempo. 9.- Él es el puente que va del universo al hombre. Hay que saber mirar el mundo, y, sobre todo, saber mirarse en el mundo. 10.- La poesía es la revelación de sí mismo. Esta revelación nace del contacto de un hombre especial (el poeta) con la naturaleza. La poesía es la chispa que brota de ese contacto. 11.- El poeta es el hombre que se siente en el Ser. Aquel que se presenta al Universo, diciendo: te pertenezco porque me perteneces.

21 “No es aventurado, por lo tanto, proponer que el año 1934 Vicente Huidobro buscaba conciliar los principios creacionistas con una urgente necesidad de arraigar su mundo poético en situaciones humanas reales que respondieran a su experiencia histórica.” (Thomas, 2001: 180) 22 Recogida por Anguita & Teitelboim (1935:37), y que da cuenta de su confirmación poética, ya consolidada.

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Pero también cabe recordar que se va distanciando del Partido. Algunas razones para ello fueron el pacto germano-soviético, el asesinato de Trotzki y que Stalin se había alejado de la línea leninista de la Revolución Rusa. De tal suerte que, después de la Segunda Guerra Mundial, en 1947, Huidobro se ve en la necesidad de escribir un artículo con este aire distancia, llamado “Por qué no soy comunista” para la revista Estanquero, aclarando sus posiciones al respecto, ya que había sido publicado con el título cambiado: “Por qué soy anti-comunista”, lo que, ciertamente, molestó al escritor, separándolo de aquella ideología, pues ya no era la que le representaba. Esta situación se puede ver muy bien reflejada en Connor (2010) que llega a la conclusión que Huidobro propuso y defendió la libertad creadora completa del artista, ya que ésta no sería posible sin la existencia de una sociedad libre.

A modo de conclusión En suma, leer a Huidobro sólo desde la poesía o sólo desde la política, o más bien, la ideología, no es posible, pues ya hemos visto cómo a través de la literatura y de la estética fue capaz de insertarse en el mundo real, o sea, un mundo cultural que se vierte como una manifestación más del hombre en medio de la sociedad. El arte no es ingenuo, como tampoco lo es la poética de un escritor. Tanto la una como el otro son producto de su realidad y esta realidad se llama época. Por lo tanto no hay autor que no pueda representar su época en su obra, intencionadamente o no. En el caso de nuestro estudio hemos probado como Huidobro da cuenta de una época llena de vicisitudes mundiales, nacionales y personales. Pero cualquiera haya sido la dominante, en su obra se expresa de modo bifrontal, es decir, ideología y arte; vida personal y social; nacionalismo y utopía, incluso; además de liberalismo y modernidad. Todas ellas son parte del entramado poético y social de Vicente Huidobro, del Non Serviam hasta el Altazor. De tal modo, que la poesía recoge y manifiesta su estupor frente al mundo y frente a la política y en consecuencia quiere subvertir ese orden que le parece muy nefasto. Hay entonces que depurar y enaltecer, tanto la poesía como la política. La una con la estética y la otra con la Acción….

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[Recebido em 15 de maio de 2014 e aceite para publicação em 8 de novembro de 2014]

DO RETRATO E DA AUSÊNCIA: VASCO GRAÇA MOURA & NOÉ SENDAS ABOUT PORTRAIT AND ABSENCE: VASCO GRAÇA MOURA & NOÉ SENDAS Daniel Tavares* [email protected]

Estabelecida como uma das categorias mais exploradas das artes pictóricas, o retrato tem presença assinalável na história e crítica artísticas. Sobrevivendo a variações e mutações, estabelece-se também como manifestação da ausência e da perda. Pretende-se, com o presente texto, explorar algumas manifestações de ausência no retrato poético e pictórico contemporâneo. Ao partir do tratado de Francisco de Holanda, pretende-se traçar uma linha de leitura que assente na questão da ausência, manifestação que se revela ainda em termos contemporâneos como essencial para o entendimento do retrato enquanto categoria. Entre a poesia de Vasco Graça Moura e a arte de Noé Sendas, estabelecer-se-ão paralelismos em termos compositivos que apontam na direção do retrato em/da ausência. Palavras-chave: retrato, poesia, Vasco Graça Moura, ausência, Noé Sendas The portrait has been established as one of the most explored genres within the fine arts and it is significantly present in art history and criticism. It has survived variations and mutations, and it has also managed to establish itself as a manifestation of absence and loss. Stemming from a reading of Francisco de Holanda’s treaty this text intends to explore some of the representations of absence in contemporary poetic and pictorial portrait, and therefore aims at defining a line of reading which is based on the matter of absence, as this expression is, still today, essential for the definition of the portrait as an artistic category. Moreover, the present article will establish parallels between Vasco Graça Moura’s poetry and the art of Noé Sendas as far as composition goes, focusing on the study of the portrait in absence and the portraying of absence. Keywords: portrait, poetry, Vasco Graça Moura, absence, Noé Sendas * Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

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1. No texto que se viria a constituir como o primeiro tratado de pintura exclusivamente dedicado ao retrato, Francisco de Holanda afirma no segundo capítulo de Do Tirar Polo Natural (1549) que o isolamento do desenhador é condição essencial à boa execução da obra. Este pensamento é tanto mais radical que Holanda exclui do espaço artístico o próprio modelo: “quero dizer-vos ainda mais: que se pudera estar o mesmo desenhador só, sem ninguém, e ter na fantasia e na memória a pessoa que há-de pôr em obra e pintar, crêde que muito melhor seria tê-la diante de olhos visíveis se a visse com invisíveis.” (Holanda, 1984a: 18). As indicações de Holanda parecem abalar o que o título do tratado sugere, transferindo a ideia de “natural” para a mente do artista. Das palavras de Holanda, destacaria três que indiciam uma certa visão do conceito de retrato: fantasia, memória, e olhos invisíveis. Parece haver um descentramento do retrato para o espaço interior do artista, ecoando o preceito de arte enquanto cosa mentale de Da Vinci. Não obstante a exímia técnica de desenho de que é possuidor, a relutância que Miguel Ângelo Buonarrotti demonstra em retratar modelos vivos reitera a visão de Holanda. Esta recusa absoluta da presença do modelo vivo reflete a ideia de que o retrato se baseia apenas na questão da semelhança, respondendo antes a outros apelos que não o que se limita a um cadastro fisionómico. Como aponta Édouard Pommier, Miguel Ângelo privilegia o aspeto memorial do retrato em detrimento da semelhança. Eis a função essencial do retrato aos olhos de Holanda e Miguel Ângelo, a sua sobrevivência à morte. De resto, desde os primeiros relatos que nos chegam sobre a origem do retrato, constatamos que ausência e morte andam emparelhadas. Destas parece irromper o ato retratístico. Ao observar as narrativas que se reportam aos primórdios do retrato na cultura ocidental, verificamos que lhes surgem sempre associados a ausência e a perda. Relembremos a célebre história que alude ao banquete no qual o teto do palácio desaba sobre os comensais e o poeta Simónides de Cos consegue, de memória, restituir o rosto dos defuntos de forma a conceder-lhes as devidas honras fúnebres. Das várias ilações que se podem retirar da narrativa, destacam-se quatro que pairam sobre o retrato: ausência, morte, restituição e celebração. Na abordagem dos textos de Plínio, o contributo de Pommier é precioso, pois confronta o episódio do Simónides com o da filha do oleiro (ou pastora, consoante as versões) que contorna a sombra do amante na parede antes que este parta. Aproximam-se assim referências ao desenho e à poe-

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sia, dois traços que surgem do mesmo “espaço interior” como se imagem e palavra fossem interiorizadas e posteriormente devolvidas ao mundo.[1] O retrato constitui para Miguel Ângelo e Holanda uma impossibilidade. Já notava Pommier, as teorias italianas apontam apenas dois retratos possíveis: o de Adão antes da queda e o de Deus. Todos os outros, feitos pela mão do homem, são uma superfície onde o artista corrige a realidade. Referia Holanda, nos seus Diálogos em Roma (1548), que a pintura era uma semelhança perdida com Deus, palavras que são proferidas por Miguel Ângelo, no primeiro diálogo: “a boa pintura não é outra coisa senão o traslado das perfeições de Deus e uma lembrança do seu pintar, finalmente uma música e uma melodia que somente o intelecto pode sentir, a grande dificuldade” (Holanda, 1984b: 30). Esta ideia parece radicar da distinção entre dois conceitos-chave para a teologia medieval - imago e vestigium - e que se concretizam no pensamento contemporâneo de Georges Didi-Huberman. A variação entre conceitos que aqui retomamos revela igualmente o peso da perda e da ausência na tradição imagética ocidental. os teólogos sentiram necessidade de distinguir o conceito de imagem (imago) do de vestigium: o vestígio, o traço, a ruína. Tentavam assim explicar que o que diante de nós é visível, em torno de nós - a natureza, os corpos – só deveria ser visto como trazendo o traço de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança com Deus perdida no pecado.” (DidiHuberman, 2011:15)

Já o referimos, o retrato apresenta-se assim uma resposta à morte, uma forma de a superar, e é duplo (até) neste sentido, porque se faz na ausência do modelo (Miguel Ângelo e Francisco de Holanda) e por evocar a presença dentro da própria ausência. O retrato funcionaria assim como uma ruína de uma presença anterior, como um rasto, da mesma forma que o homem é um vestígio de uma imagem perdida. Le portrait est fait pour garder l’image en l’absence de la personne, que cette absence soit un éloignement ou la mort. Il est la présence de l’absent, une présence in absentia qui n’est donc pas chargée de la reproduction des 1 Em Théories du Portrait, Pommier coloca a par as duas narrativas: “La mémoire en tant qu’art, c’est-à-dire exercice et technique, serait donc née de l’intuition d’un poète, fabriquant lui-même une galerie de portraits avec leurs numéros d’ordre. Le mur sur lequel la bergère trace le profil de l’être aimé avant son départ, comme une première étape d’un voyage vers la mort, se juxtapose à cet espace intérieur où le poète avait l’image de ces commensaux, à l’instant où ils vont être rejoints par leurs destin.” (Pommier, 1998: 21)

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traits, mais de présenter la présence en tant que qu’absence: de l’évoquer (voire de l’invoquer), et aussi d’exposer, de manifester le retrait où se tient cette présence. Le portrait rappelle la présence, aux deux valeurs du mots ‘rappel’: il fait revenir de l’absence, et il remémore dans l’absence. C’est ainsi que le portrait immortalise: il rends immortel dans la mort. (Nancy, 2000: 53, 54)

Seguindo as palavras de Nancy, o retrato sobrevive à morte precisamente porque é para este limite que aponta. O retrato é assim uma evocação já que marca um rasto de presença na ausência, é um simulacro de presença, uma virtualização. Ao transpor para a esfera literária as questões retratísticas relacionadas com a ausência, encontramos na ekphrasis um paralelo no que concerne a manifestações de algumas inquirições teoréticas do retrato. A questão da ausência do referente estabelece um aparente conflito em termos muito idênticos aos defendidos no retrato. O problema surge na diversidade de definições que foram propostas a longo da história, ora excessivamente restritivas ora insuficientes. Por não se constituir como uma realização cristalizada, mas antes mutável e sensível aos tempos, paira sobre a ekphrasis uma certa insolvência teórica. Olhando para a definição proposta pela enciclopédia virgiliana, segundo a qual a ekphrasis consistiria num “procedimento verbal que transforma o leitor em espectador com a intenção de lhe dar a ver determinado objeto ou acontecimento”, as questões que se prendem com o lugar do referente emergem.[2] A aparente simplicidade da definição oculta um problema conceptual que deve ser sublinhado, pois a metamorfose do leitor em espectador deriva da transposição de um “objeto ou acontecimento” eminentemente visual para o plano poético, abeirando-se assim de questões teórico-formais que estão na base das classificações das artes. Retoma-se aqui um problema em todo semelhante àquele que Francisco de Holanda aponta para o retrato pictórico. Qual o lugar do “retratado” se, nos casos paradigmáticos das ekphrseis homéricas e virgilianas, o referente tem apenas uma existência textual? Metamorfose do leitor em espectador ou vã tentativa de transposição do real, retrato pictórico e exercício ecfrástico levantam questões que reencontramos na obra de Vasco Graça Moura.

2 “V[irgilio] ama procedimento verbale (= descriptio) che, tranformando il letore in specttatore [...], gli sottopone la visione de complessiva di un oggetto o di un avvenimento.” (vd.entrada ecfrasis)

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2. A poesia de Vasco Graça Moura constitui uma das mais prolíferas manifestações interartísticas na poesia portuguesa contemporânea. Alicerçando os seus textos numa vasta tradição artístico-literária, as suas composições constituem uma tessitura polifónica sustentada por um amplo campo referencial. Da pintura até à escultura, passando pela música e pela fotografia, a poesia de Graça Moura carrega a marca indelével das artes particularmente evidenciada através de uma propensão para o exercício da ekphrasis, inclinação que, como o próprio autor refere, se manifesta a partir da recomposição verbal de um elemento visual: “creio que a raiz mais funda dessa tendência tem a ver com uma preocupação mais genérica da restituição do visual através do verbal” (Moura, 2002: 86). A transposição intermediática já referida resulta numa inquietação poética que se traduz em constante exercício compositivo, evidenciando a busca da “restituição” e constituindo-se como um espaço de interseção transmedial. Nos textos que gravitam em torno da sua poesia, o poeta aponta os elementos que considera essenciais para a elaboração de um poema: “o poema faz-se por uma manipulação da palavra que envolve um certo apetrechamento cultural e um certo adestramento técnico. Não surge ex nihilo, mas é um modo verbal de estar no mundo” (Moura, 2013: 487). Os domínios alimentam-se mutuamente, sendo que, para se trabalhar sobre textos que constituem um substrato memorial considerável, a técnica é indispensável. Nestes “discursos poéticos”, o poeta revela uma tal destreza da técnica que dela abre mão e partilha, com uma nonchalance bem ao jeito maneirista, que relembra a sprezzatura do Cortesão de Castiglione. É necessário ser “o fabbro da palavra” (nó cego, o regresso) para se trabalhar no poema, já que nele “coagulam-se a passagem do tempo e a experiência vivida” (Moura, 2013: 487). Em torno destas inquirições gira parte da poesia de Graça Moura. O poeta, consciente da insolvência da questão, abre o décimo sétimo poema de nó cego, o regresso (1982) com a interrogação “como meter o mundo/ num poema?”. O verso viria a ser alvo de um exercício crítico autorreflexivo, já que a pergunta é retomada vinte e três anos depois no poema Laocoonte, incluído em Laocoonte, rimas várias, andamentos lentos (2005) que evoca a longa tradição teórico-crítica envolta da figura de Laocoonte, nomeadamente as considerações basilares de Lessing acerca da relações entre as artes. Ancorado nesta memória, lemos já na terceira e última parte do poema:

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uma vez perguntei como meter o mundo num poema. nem aprendi, nem soube se alguém tinha resposta em muito anos. hoje entendo melhor as minhas dúvidas: só no tempo de homero é que o mundo cabia nalguns versos. depois deixou de haver a mesma coincidência fulgurante que fazia o real entrar pelas palavras dentro numa cadência inaugural do som e do sentido a martelar a chapa dúctil da memória na bigorna sonora de ásperos timbres.

Não alheia a uma maturidade poética adquirida ao longo dos anos, a resposta resulta, como esperado, numa manifestação da noção de melancolia tão intensamente explorada pelo autor “só no tempo de homero é que o mundo/ cabia nalguns versos”. Não se trata contudo de uma melancolia passiva e meramente contemplativa, mas de uma “melancolia reativa”, como defenderam Barrento e Ribeiro.[3] O poeta nunca deixa de explorar os caminhos “da transposição visual para o verbal”, surgindo o poema como um exercício incompleto, uma busca constante. O poeta revela assim “a furiosa paixão pelo tangível”, mesmo que esta paixão indicie sempre uma perda. A escrita de Graça Moura aponta o caminho da perda e da ausência no processo de transposição, de metamorfose, da busca da “coincidência fulgurante que faz[ia] o real entrar pelas palavras dentro”. No poema uma tão perfeita ausência incluído em o retrato de francisca matroco e outros poemas (1998), o léxico a que o autor recorre em muito se aproxima das considerações renascentistas anteriormente referidas, explorando o topos da ausência e da (impossibilidade da) sua representação: uma tão perfeita ausência restitui os vestígios de alguém, como se houvesse um angelismo intermediador entre os dias e o mundo. e não obstante vi que 3 Ribeiro afirma que a melancolia do autor se afasta da ideia de Claudio Magris e tende antes para “uma melancolia reactivamente, demiurgicamente, transformativa e refiguradora.” (Ribeiro, 2014: 65)

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essa ausência doía mais que tudo e que a tornavam sensível as coisas anódinas: uma jarra, o olhar através de uma janela, o caminhar no meio dos plátanos. ou usar as palavras para escrever as cartas que somente podiam ter sido escritas num vazio sem remédio quanto a alguém. a neve, o lago, a montanha, a rua, o espaço da lareira da sala onde as chamas dançam, a própria densidade do tempo e da chuva, tudo está nas palavras porque no coração elas nascem espontâneas de uma tão perfeita ausência. esta seria uma obra de arte se fosse intencional. mas, se o fosse, não daria lugar ao poema como vez de alguém se consumir, elaborando-a.

A ausência é aqui vista em termos muito idênticos aos de Nancy já aqui referidos, como uma membrana do presente, que é um indício, um vestígio. Como “chama”, impercetível na sua intermitência e (sobretudo) intangível. O que “elabora” a obra consome-se, num jogo de transferências entre o desenhador e o desenhado, que se assume medida entre o escrever e a obra. A mesma incandescência que encontramos em junto ao retrato, onde uma rosa é vista metonimicamente como chama e que ilumina o retrato de sua mãe, em cenário que relembra uma certa devoção. Único elemento que reporta para a luz, a rosa irrompe da memória sombria, e o retrato é aqui, mais do que semelhança descritiva, um sinal de persistência ao tempo e uma invocação. Em termos retratísticos, a “restituição” presente no primeiro verso implica já perda e a tentativa de a reconstituir, de a restituir pelo verbal acabando a busca por consumir o poeta. Consumação esta que se concretiza num fazer poético, inserindo-o numa estética que se configura como uma recusa da semelhança e da figuração, vendo o retrato como uma negação que o precipita para um indeter-

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minismo enquanto categoria: “acumulados tropos de ausência, de cegueira, de perda concorrem aqui para uma progressiva despossessão identitária, para uma progressiva desidentificação que postula o (auto)retrato negativamente como pura invisibilidade” (Ribeiro, 2014: 72). Os prefixos usados por Ribeiro remetem todos para a mesma esfera, para um conceito de retrato que se espelha na evolução etimológica da palavra, já que retratar é retraçar, é retirar. A variação reside aqui na figura “consumida” que novamente parece articular-se com a ideia de Miguel Ângelo segundo a qual cada retrato é, em certo grau, um autorretrato, retomando o já famoso motivo atribuído a Cosme de Médici “ogni dipintore dipinge se”.[4] Na poesia de Moura, este caminho para o silêncio, para a ausência, para a cegueira não se constrói pela falta de referência e pelo vazio compositivo mas, ao invés, engendra-se por excesso, por acumulação de textos e de vozes que se cruzam no mesmo espaço poético, processo ao qual o poeta pode aceder e manipular porque domina a técnica e utiliza “técnica, técnica, até ao sarro do silêncio e do ruído” escreve o poeta em ars poetica, enaltecendo o seu uso até um poema que é um “simular/ uma ordem entrevista e sustentá-la in absentia ou no luto. vem dar ao mesmo.” Nó cego, o regresso é, nas palavras de Fernando Pinto do Amaral, um livro “onde a experiência amorosa se constitui como um leitmotiv, mas extravasando para uma meditação sobre o templo e seus instantes”(Amaral, 2001: 9). A referência ao regresso evoca o nostos de Ulisses e a estrutura composta por vinte e quatro poemas faz ecoar a dos poemas homéricos e marca, desde o título, uma cadência de melancolia. não quero o teu retrato nem o meu, a não ser num templo em ruínas: aí o tempo tanto gastou degraus, colunas, e fez do musgo acanto que podemos sentar-nos sobre a pedra votiva

4 Para uma compreensão da etimologia da palavra retrato, tal como para a articulação retrato/ autorretrato que aqui se aponta a Miguel Ângelo, remete-se novamente para a análise cirúrgica de Pommier (cf. Pommier 1998).

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e ficar de mãos dadas sob um céu de ameaça olhando a objectiva. há felizmente um disparo automático a fuzilar-nos de amor na nossa imagem.

A referência ao retrato começa pela negativa “não quero o teu retrato” para se abeirar seguidamente de um espaço que remete para a perda, para a ruína. Didi-Huberman refere que o ato de contemplar é colocar o templo nos olhos, edificando assim uma imagem, delimitar um espaço de observação, colocar-lhe margens. Uma fotografia que é antes e sobretudo “mental” antes de “fuzilar”, pois “coisa mental é o retrato,/sempre”, escreveu Vasco Graça Moura. Um retrato cujos limites seriam “degraus e colunas” em ruínas sobrevivendo ao tempo.

3. O trabalho que Noé Sendas tem vindo a desenvolver joga com noções intertextuais e transmediáticas que, mais do que uma mera acumulação de camadas interpretativas, busca um sentido novo recorrendo a processos de mistura, reedição e de rescrita que conferem à sua obra um efeito palimpséstico. As imagens de Sendas atuam para além da alusão, utilizando não raras vezes o diálogo entre obras e apoiando-se diretamente em imagens que fazem parte de uma memória artística que se engendra em jeito de repositório referencial, o artista trabalha com associações que produzem um efeito anacrónico. O tempo, assim como a reescrita, são por isso campos que se revelam centrais na obra de Sendas que, como o próprio afirma, busca através da conjugação de dois elementos um terceiro novo elemento.[5] Inscrevendo-se em 5 “Given your use of the sampler, what are your views regarding appropriation? Is appropriation only appropriate if it constructs something new rather than a collage? The sampler is just a contemporary metaphor for something that is very basic and a recurrent creative process in Occidental culture, the idea of collecting things: objects, words, quotations, gestures or photograms, and rearranging, re-editing, interlacing them in different ways. The ingenious part of it is to generate an equation with two or more existing elements and to end up with a magical number, towards which the viewer does not feel the need to seek, or to recognize its original elements. When I am working with my Crystal Girl series… I am editing. Not with a time line, but with layers of time. Just like a palimpsest.” (Noé Sendas entrevistado por Austin Klein para a revista Musée, International, n.º5, 2003)

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matrizes tipicamente apontadas ao pós-modernismo, tais como a reescrita e a referencialidade, as questões da representação ocupam um espaço importante na obra do artista e que, vistas à luz dos preceitos retratísticos e representacionais, se articulam com os que temos vindo a referir. Ao rever a série The Collector (2007) constatamos que o modus operandi de Sendas parte da evocação desta memória e pela apropriação de imagens que servem de mesa de trabalho a partir das quais o artista constrói estes novos retratos com alguns dos processos de composição que evocam justamente os conceitos de palimpsesto, mosaico e tessitura fulcrais nas questões da reescrita e revisitação. As imagens dialogam numa superfície que relembra aqui os preceitos warbugianos de prancha. Colocadas na mesma superfície apesar do afastamento cronológico, as imagens apontam para uma ideia ou um gesto que sobrevive e que se reaviva. À imagem das pranchas de Warburg, descarta-se uma aproximação horizontal do tempo para, ao invés, explorar uma certa verticalidade de um anacronismo que explora as cadeias de sentido revelando uma potencial sobrevivência de um gesto. Assim, um retrato de Bruce Nauman é colocado no mesmo espaço que uma pintura de Goya, estabelecendo um improvável diálogo entre imagens, mas criando um sentido resultante de um trasbordamento das imagens para outra parte. Superando a mera soma de partes, Sendas acrescenta sempre um novo sentido à “equação”.[6] O motivo que leva o artista a criar um espaço de cruzamento entre um autorretrato de Aurélia de Souza e Andy Warhol não é uma casualidade, ou apenas fruto do gosto pessoal do artista, mas resulta antes de uma teia de relações/significados que permitem uma leitura coerente entres partes. É daqui que deriva a comparação do método de Sendas com o de um disc-jockey que, dominando uma faixa e outra, consegue elaborar uma terceira via através do “fluxo”(cf. Sardo apud Ribeiro, 2011: 74). Este excesso realiza-se por exemplo no retrato de Warhol, Self-Portrait in Drag (1981), que explora os caminhos do corpo e do rosto através do travestimento, e os retratos de Aurélia de Souza que revelam esta mesma tendência. Vemos, por exemplo, no autorretrato que data de 1887, onde a pintora portuense se representa com um enorme laço lembrando uma figura clownesca, ou em quando se retrata como Santo António, num exercício que passa pela despossessão identitária, o abandono de um corpo, para o engendramento de outro. Este processo evidencia-se de resto na série Crystal Girls (2011) (figura 1), obra na qual as fotografias revelam aquilo a que Carlos França viria a apelidar de um “trabalho não con6 (Rato apud Ribeiro: 2011). Acrescente-se ainda que a busca e a equação são já referidas pelo autor na entrevista supracitada.

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templativo ou passivo, mas sobretudo mais apostado no papel interventivo, criativo e até subversivo da imagem.” (França, 2014). O olhar que Sendas dirige à tradição pictórica poderá também ele ter um certo grau de melancolia, não se limitando no entanto a uma contemplação passiva, mas antes, como no caso de Vasco Graça Moura, de uma reatividade que é produtiva no sentido em que busca sempre um sentido outro.[7]

Figura 1: Noé Sendas, Crystal Girl n.º 51, 2011

Tomemos como exemplo a série Desconocidas (2012), trabalho que assenta numa série de fotografias encontradas pelo artista em Madrid e que datam dos anos 40. A particularidade deste trabalho resulta do facto de as fotografias serem de fotógrafo desconhecido e retratarem pessoas anónimas. O trabalho de Sendas passa por manipular um corpo ou um rosto sem conhecer a identidade do seu referente. O processo não passa apenas pela reabilitação técnica das fotografias como também da decomposição dos corpos representados. Ao referir que trabalha a fotografia como escultura, Sendas retoma a noção de transmedialidade acima referida: “comecei a trabalhar imagens como um escultor trabalha uma escultura. Tinha uma imagem base e retirava elementos. Mas, por exemplo, quando retirava um braço, tinha sempre a preocupação de criar equilíbrio no corpo”.[8] 7 Agradeço ao Noé Sendas que amavelmente acedeu ao pedido para a reprodução das obras. 8 Palavras proferidas em entrevista na apresentação da exposição Desconocidas, na galeria Miguel Nabinho, disponível em linha: https://www.youtube.com/watch?v=GhZ_ZLyuy6I [consultado em 10-05-2014].

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Assemelhando-se ao trabalho da superfície escultórica até dela retirar a forma, Sendas busca um equilíbrio da imagem através da subtração, resultando por vezes em manifestações de ausência. Lemos no título da primeira peça da série uma inscrição quase tumular: Desconocidas n.º 1, 1945-2012 (figura 2). Esta última referência à data sugere-nos uma linha biográfica que é suscitada pela referência necrológica que reporta ao ano de 2012, e que se prende com a duração da fotografia, ultrapassando o primeiro momento de execução, concluído em 2012, altura em que é reconfigurada por Sendas. Consequentemente, esta linha aponta para uma gestação, como se os sessenta e sete anos que separam o primeiro gesto fotográfico do mais recente constituíssem um espaço de sobrevivência, recuperando a terminologia de Didi-Huberman. Não se excluindo mutuamente, as duas leituras convergem na ideia palimpséstica reiterada pelo artista em entrevista e apontam para uma sobrevivência do gesto fotográfico através da duplicação, da sobreposição de um gesto sobre o outro. No primeiro trabalho da série, o rosto pertencente à figura da fotografia original é retirado, como se esta dobra de gesto resultasse num excesso e transbordasse para a ausência e para o fragmento, compensadas no entanto através de outros elementos corporais.

Figura 2: Noé Sendas, Desconocidas n.º 1, 1945-2012, 2012

Compensação, harmonia e equilíbrio resultam aqui do domínio da técnica de vários meios que se conjugam no trabalho de Sendas. Evocando um conceito já apontado por Carlos França, a arte de Sendas relembra aqui o

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neologismo que Castiglione propusera no seu Cortesão, la sprezzatura, já aqui evocado a respeito de Vasco Graça Moura (França, 2014). O domínio da técnica apresenta-se, também na arte de Sendas, como uma bella maniera de recuperação da imagem. Da mesma forma que o autorretrato em espelho convexo de Parmigianino apresenta a mão no primeiro plano do disco espelhado, como se de um sampler se tratasse, também Sendas coloca a mão, e manipula imagens suscitando no leitor um olhar que explora um determinado anacronismo resvalando frequentemente para questões da ausência, determinado e validado pela técnica compositiva, pela maniera. A perda, o fragmento e a ausência são, tal como na poesia de Graça Moura, resultado de um excesso, de um transbordamento referencial, não tanto de uma postura minimalista de recuo em relação à composição.[9] Voltemos às origens e desta feita à história de Zeuxis, pintor grego dos séculos V a.C que, convidado a realizar o retrato de Helena, juntara cinco jovens da cidade de Crotone e, tirando o melhor de cada uma, encontra forma de compor o retrato “impossível” de Helena. Corte, colagem e sobreposição no engendramento de um retrato que dispensa o modelo e que se afasta claramente da questão da semelhança para a construção de um retrato que é, lembremo-nos, sempre mental. Se, como destacaram Ribeiro e Sardo, o método de Noé Sendas assenta na estratégia de assemblage muito próxima da ação de um DJ, não será uma analogia menos rica quando colocada a par da poesia de Moura, como Diogo o propôs em 2006.[10] De resto, as estratégias palimpsésticas são marcas típicas de um pós-modernismo referido por Fernando Pinto do Amaral acerca do ofício poético de Graça Moura (cf. Amaral, 2001). Encontramos na citação constante a diluição de fronteiras entre um passado melancólico reativado pelo presente e que, na esfera retratística como nas demais manifestações, parece acumular uma tradição de rostos e retratos. Estas referências, cujas estratégias de composição passam pela estratificação, acumulação e sobreposição até um certo grau de excesso, resultam num transbordamento que aponta para uma fuga aos preceitos representativos tradicionais, aproximando-se da perda, da ausência. 9 Quando evocadas no âmbito artístico, a ideia de silêncio e de ausência são muitas vezes enquadradas no movimento minimalista, já que parece ser vetor essencial à sua teoria e realização: “Quando a ausência pode ser a forma mais rotunda de presença, deixar de fazer algo pode converter-se num gesto afirmativo. Incluso, em determinadas ocasiões, já não se trata de subtrair, mas de não adicionar.” (Zabalbeascoa & Rodríguez Marcos, 2001: 9). 10 Em Teoria com tipos móveis, A. Diogo leva a questão da técnica ao extremo recorrendo ao paralelismo entre Vasco Graça Moura e DJ Danger Mouse que, ao misturar o The White Album dos Beatles e o The Black Album de Jay-Z, elabora The Grey Album. A imagem torna-se particularmente fecunda neste contexto.

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[recebido em 7 de junho de 2014 e aceite para publicação em 25 de novembro de 2014]

O ROSTO DA LINHA – ANA HATHERLY THE FACE OF THE LINE – ANA HATHERLY Joana Batel* [email protected]

Entre a linha da escrita e a linha do desenho existe uma afinidade só descoberta pela sua relação de parentesco. De outro modo, essa relação é inexprimível, conquanto saibamos dela por um reconhecimento imediato. Abre-se, assim, um novo horizonte para a linha, a saber, do sentimento que nos coloca diante da escrita ou do desenho. Para a artista e poeta portuguesa Ana Hatherly, que em meados dos anos 60 inicia um percurso singular pela interioridade da escrita, a linha fibrilar perde o seu rosto de escrita, mas conserva ainda a máscara da palavra. Em alguns dos seus poemas visuais a escrita perde a sua soberania na derisão de tudo aquilo que a funda e a imagem toma a dianteira. Ana Hatherly procede à “escuta da matéria” e apela à “reinvenção da escrita”. Palavras-chave: Desenho, escrita-imagem, configuração, síntese, criação artística. There is an affinity between the line of writing and the line of drawing solely revealed through its kinship. There is no other way of expressing this relationship, we are aware of it by an immediate acknowledgement. Thus, one spans a new horizon to the line, the feeling, which puts us before writing or drawing. To Portuguese artist and poet Ana Hatherly, who in the early sixties initiated a singular course through the inner aspects of writing, the fibril line loses its writing feature, but still retains the word’s guise. In some of her visual poems, writing loses its sovereignty at the erosion of all which funds it, and depiction takes the lead. Ana Hatherly undertakes the “listening of the matter” and appeals to the “reinvention of writing”. Keywords: Drawing, writing-image, set, synthesis, artistic creation.

* Instituto de Filosofia da Linguagem, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

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O decifrador de imagens persegue um fantasma de vestígios como Ulisses amarrado ao querer do conhecer A descoberta é invenção provisória: as vozes não se vêem o que se vê não se ouve A imaginação ergue-se do arrepio da sombra guerrilha entre parênteses ergue-se da constante chacina procurando outra coisa outra causa outro lado do ver. Ana Hatherly, O Pavão Negro

Quando, em meados dos anos 60, Ana Hatherly iniciou o estudo de um dicionário de inglês-chinês que compreendia uma secção dedicada ao chinês arcaico, levantou a ponta de um véu cheio de pó e civilização.[1] No texto que apresenta em Mapas da Imaginação e da Memória, Hatherly (1973) relata esse estudo começando por destacar a disciplina que a levou, num primeiro momento, a transcrever os caracteres, com o maior rigor, repetindo o gesto até que este se tornasse natural. A instrução da mão é feita pela repetição dos movimentos, na compreensão da sua pressão sobre a caneta de feltro e o seu deslize na folha de papel, a descoberta da ordem dos traços e as suas derivações e fusões na construção dos caracteres. A escolha da ponta de feltro só pode recair pela semelhança formal do traço quando comparado com o pincel, porém, na sua rigidez, aproxima-se das canetas normais, seja a esferográfica, seja a rotring, ou mesmo das canetas de bambu usadas com tinta-da-china. A artista confessa-se “fascinada e obcecada” com o engenho da mão, da forma como ela assume “gratuitamente” as direcções, circularidades, as velocidades da escrita sem resistência, a não ser as primeiras ansiedades próprias da aprendizagem.[2] A autonomia em 1 Ao longo do artigo, utilizaremos imagens de versos da autora, assinaladas em itálico. 2 (Hatherly, 1973). No mesmo sentido leia-se: “A operação comportava dois tempos. Havia em primeiro lugar uma tensão: a tensão do olhar a requerer todo o corpo cujas sinergias culminam na mão. O olhar de sílex, todo de concentração, comunica à mão o seu rigor. Nem o olhar pestaneja nem a mão treme. Preparada para tudo mas transbordada por todos os lados, a mão mantém-se alerta sem poder começar nem ousar começar. É o primeiro momento. Depois, chega o segundo, aquele a que os pintores chineses chamem ‘pulso vazio’. Anulando-se toda a

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relação aos modelos da cópia, aos caracteres desenhados, primeiro a pulso e depois num sopro, é surpreendentemente rápida. Mas tudo isto aponta para um estudo morfológico dos caracteres e nunca para a aprendizagem da língua, que aliás, a artista nunca aprendeu. Na verdade, sendo Ana Hatherly artista e poeta, de imediato assalta-nos a questão: mas como pode um poeta recusar ouvir o canto de uma língua? Nos desenhos de Mapas da Imaginação e da Memória, Hatherly parece renunciar a uma voz que a chama. A artista prefere entusiasmar-se apenas com o desenho da escrita que, na sua visualidade antropomórfica, balbucia sons parecidos às figuras que as formas parecem suscitar (figuras 1 e 2).

Figuras 1 e 2. Mapas da imaginação e da memória, de Ana Hatherly, 1973.

tensão do corpo, a mão deixa de ser condutora para ser conduzida, conduzida em ressonância com o motivo... esse movente. O olhar induzido pelo motivo é um esboço motor cuja transmissão ao movimento da mão não é directa. Como o não é a relação de mundo a mundo entre o motivo e o desenho. Entre ambos acontece o instante do pulso vazio. Esta passagem ao vazio é uma passagem pelo vazio, pelo nada. É mais do que uma passagem. Nesse vazio, o artista é intimado a desaparecer ou a nascer para si próprio e, com ele, o mundo, não sendo o seu desenho cópia, mas metamorfose desse mundo.” Henri Maldiney apud José Gil (2005a: 220).

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A artista não é indiferente à língua que escreve, mas ‘escuta na sua matéria’ uma outra voz que ecoa das profundezas negras dos traços, das imagens que deles imaginamos. O gesto “inteligente” que se dá gratuitamente à escrita, envolve-se dessas ressonâncias, e desenha escrevendo (nesses poemas visuais), não dizendo nada, mas soando sempre qualquer coisa (figura 3).

Figura 3. Mapas da imaginação e da memória, de Ana Hatherly, 1973.

Ana Hatherly, poeta, encontra uma outra poesia, feita ainda de signos e sons, que não sendo os da escrita, os das palavras, são das coisas para as quais as formas apontam. Num desenho de 1970 (figura 4), podem-se ver pequenos traços negros como corpos, antropomórficos que se acumulam em multidões frementes formando uma mancha, que não é de texto, mas que é ainda da narrativa, porque parece contar a história daquela gente ali reunida, numa conversa muda.

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Figura 4. Sem título, de Ana Hatherly, 1970 (FCG, CAMJAP).

Este cruzamento, que torna quase indistinta a relação entre a mancha do desenho e a mancha do texto, revela uma compreensão muito nítida do esforço necessário para as separar e classificar. Em vários desenhos, de que este faz parte, parece sempre sentir-se, a todo o momento, a decomposição do grafismo quer da escrita quer do desenho, pois a reciprocidade entre ambos não cessa. Nestes poemas visuais, Ana Hatherly toca no mais fundo da inscrição, a artista provoca a estranheza quando recupera a matéria de que são feitos os signos, quando busca a sua raiz imagética, mas também da natureza linguística dos traços, nas inclinações, extensões e contracções, e, ao recuar a esses tempos indefinidos em que a escrita e o desenho se aliavam numa única linguagem, faz ressurgir o problema da distinção e alcance de uma e outro. A inscrição tem o seu paralelo em toda a criação humana, a criação de uma cultura, dado que nela aquilo que não tem corpo, aquilo que faz parte do pensamento, da imaginação, do sonho, passa a existir, no momento em que é visto através da imagem. Essa visibilidade transforma esse pensamento em coisa, em matéria física inscrita na pedra, na areia, no papel.[3] Isto signi3 A esse propósito leia-se: “O ser foi dado aos sonhos; o existir foi dado a todas as cousas. O que existe não compreende o que é, porque o ser é uma actividade contra a existência; uma

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fica que, pelos riscos e incisões, ganham vida coisas que de outra forma não têm existência. Os animais sulcados na pedra não apresentam aquilo que já existe na natureza: o veado, o auroque, a cabra; antes, fazem aparecer aquilo que o homem deseja deles: a abundância, o domínio, a distinção. O que se torna visível e, por consequência, concreto é aquilo que antagonicamente é, em absoluto, abstracto. O desenho e a escrita reflectem e projectam a experiência da abstracção e aquilo que os distingue será, porventura, a capacidade máxima de dar existência – e disso comunicar – àquilo que só existe no pensamento e na imaginação. Ana Hatherly atua nesse grau de indefinição onde só se sabe, de facto, que se está diante de uma imagem que comunica algo que está para lá da realidade física da sua natureza visual. A artista age ‘entre’ o discernimento da escrita e o do desenho, e desse ‘entre’ (infra-fino?) destaca o exercício de entendimento e separação dos dois modos de inscrição. Hatherly põe a nu o que Goethe aponta ser o Aperçu. Tomando a forma geral de um objecto – escrita num conceito, ou desenhada num símbolo –, esta forma geral reúne todos os possíveis contornos, escritas, configurações, desse objeto, já conhecidos pelo sujeito e outros tantos contornos, escritas, configurações, que esse sujeito pode imaginar por conformidade.[4] Tomemos, a título de exemplo, o carácter chinês: ao reconhecermos na figura do carácter a geografia da língua para que aponta – chinês ou japonês –, assinalamos na sua silhueta todo o idioma chinês, como se os seus diferentes desenhos, independentemente das suas características, coubessem naquela figura que se torna súmula de todas as formas em que o carácter pode aparecer. Nesse sentido, nessa figura a forma tem um contorno universal, é um esboço no qual todas as formas semelhantes que apontam para esse esboço tomam parte nele. Este processo de reconhecimento daquilo que une todas as formas possíveis de uma coisa só pode acontecer quando o homem “deixa cair” as imagens, “uma sobre outra” (tal como Kant esclarece no §17 da Crítica da Faculdade do Juízo), de todas as formas dessa mesma coisa deixando apenas aquilo que é coincidente e que configura o que se pode chamar uma forma ideal, que, para Goethe, seria a forma original e a matriz de todas as outras.[5] Esta forma original actividade anticorpórea, uma flecha lançada na direção da morte. Também a existência é uma resistência contra o ser, o velarium onde falece a luz, o açude que quebra o ímpeto das águas.” (Pascoaes, 1987: 40) 4 Cf. “Cada forma é algo em aproximação histórica de si própria e da nossa possibilidade de a conhecer, reconhecendo-se através das suas transformações.” (Goethe, 1993: 17) 5 Goethe parte, assim, da teoria kantiana do esquematismo dos conceitos empíricos na Crítica da Razão Pura, que segundo Maria Filomena Molder, no Pensamento Morfológico de Goethe, desembocam na ideia normal de belo (§17 da Crítica da Faculdade do Juízo): “(...) a faculdade da

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parece ‘pairar’ entre todas as formas que devêm dela; ela gravita, ‘flutua’ entre todas as formas, não chegando nunca a realizar-se plenamente num único “indivíduo” (Molder, 1995: 332). A imagem originária é o “traçado visível”[6] desse desejo do nexus rerum, de conexão de cada coisa com cada coisa; é uma aparição que ultrapassa as formas concretas da natureza.[7] É certo que o nosso exemplo dos caracteres pertence já a esse reino da imaginação, i.e., desenho e escrita são já imagens criadas pelo homem, produzidas pela sua imaginação e entendimento, porém, ao indagarmos sobre o que acontece entre a escrita e o desenho e que nos permite separá-los, damos conta de que existe algo que ultrapassa a sua natureza concreta (visual) e imagética, que tem que ver precisamente com essa “imagem pairante” (Kant) e que diferencia cada uma.[8] Assim, o reconhecimento de um imaginação sabe, de um modo totalmente incompreensível para nós, (…) reproduzir a imagem e a figura do objecto a partir de um número indizível de objectos de diversas espécies ou também de uma e mesma espécie; (…) sabe efectivamente como que deixar cair uma imagem sobre outra, e pela congruência das diversas imagens da mesma espécie extrair uma intermediária, que serve a todas como medida comum.” (Kant, 1998: 125) 6 José Gil, a propósito do desenho, fala-nos de uma condensação das percepções do motivo e embora introduza o conceito de força, i.e., às formas do desenho são ‘incorporadas’ forças que o desenhador capta do motivo, dá que pensar se essas forças não se referem ao movimento da imaginação das imagens pairantes: “O que se passa entre o espaço de imagem e o papel, e a que chamei «condensação», supõe uma espécie de inscrição de forças nas formas do desenho, de tal forma que a percepção destas formas desencadeia de novo e sempre forças. (…) A inscrição das forças acompanha portanto a condensação, quer dizer, a redução sintética de todos os movimentos do ponto-corpo (…) num traçado visível: como se estes movimentos aí se achassem doravante concentrados, envolvidos em dobras e sobredobras.” (Gil, 2005a: 231) 7 Tal como diz Kant a propósito da ideia estética: “…tomamos emprestada da natureza a matéria, a qual porém pode ser reelaborada por nós para algo diverso, a saber para aquilo que ultrapassa a natureza. Tais representações da faculdade da imaginação podem chamar-se ideias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo situado acima dos limites da experiência e assim procuram aproximar-se de uma apresentação dos conceitos da razão (da ideias intelectuais), o que lhes dá a aparência de uma realidade objetiva; por outro lado, e na realidade principalmente, porque nenhum conceito lhes pode ser plenamente adequado enquanto intuições internas.” (Kant, 1998: 219) 8 Partindo de uns desenhos de Ângelo de Sousa onde se podem ler palavras, José Gil esclarece: “O desenho responde à palavra, integrando-a e transformando-a num seu elemento: «ou» «ou» «ou», escrito a diversos níveis não alinhados no papel, faz emanar o sentido das palavras (disjunção, alternativa) da disposição espacial do desenho. Os dois planos de sentido coincidem. Qualquer coisa se ganhou e outra se perdeu do sentido verbal, porque a palavra, com as suas letras, continua palavra (lida, resistindo ao desenho), se bem que a sua inscrição como desenho lhe traga um acréscimo de sentido que ela é incapaz de captar. O que permite esta tensão diferencial que induz ao mesmo tempo distância e atracção, é um plano virtual de osmose do sentido da palavra e do sentido do desenho. (…) O plano da escrita sugere o plano do desenho, o qual sugere o plano da escrita. Acontece o mesmo tipo de atração, a partir de um plano de osmose de forças, quando um desenho sugere um outro desenho.” (Gil, 2005b: 273). E uma forma, outra forma, como nas séries.

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carácter e a sua diferença em relação ao desenho não está nunca compreendida na razão semântica, mas na capacidade de o carácter expressar a sua condição linguística e do desenho fundar a sua visualidade. Na senda de Ana Hatherly, consideremos um sinal que não corresponda à língua chinesa (figura 5).

Figura 5. Mapas da imaginação e da memória, de Ana Hatherly, 1973.

Quem não conhece esta língua, tomará o carácter por verdadeiro, pois encontra nele uma correlação com todos os outros caracteres vistos e apreendidos, e encontrando essas ressonâncias admite nele a dimensão linguística. Tal ocorre porque essa correlação não se baseia nunca na existência de um significado para aquele sinal, mas pela força imagética que aquele desenho possui para se apresentar como carácter. Não se trata aqui de fazer passar gato por lebre, mas de perceber que na impossibilidade de ter presente todas as imagens do objecto, neste caso de todos os caracteres existentes e também na impossibilidade de reter tudo aquilo que lhes é único e distinto, o entendimento desse mesmo objecto / carácter, tende naturalmente a devolvê-lo na sua forma holística e determinante. Inversamente, essa mesma forma geral promove a coincidência com outras semelhantes,

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dando lugar à produção de sentidos, de ligações. Ana Hatherly não nos tenta enganar dando-nos escritas falsas. O que a artista procura é, antes, levar ao extremo esse grau de confiança que separa o desenho da escrita e o desenho do desenho, e fá-lo de tal forma que, mesmo reconhecendo não se tratar de meros caracteres ou palavras, a todo o momento, os traços apontam para os caracteres, bem como a sua presença plástica os confunde no desenho (figura 2). Os traços negros há muito perderam o seu rosto de escrita, mas conservam ainda a máscara do carácter, a máscara da palavra. Todavia, o estudo de Ana Hatherly ganha maior clarividência quando a própria afirma não lhe interessar a aprendizagem da língua chinesa, nem o desenho dos seus caracteres, mas, sim, proceder a uma “investigação do idioma artístico” (Hatherly, 1992: 75). Esta definição, que remete para a possibilidade de um idioma artístico, tenta de imediato localizar a criação artística no cerne da compreensão do mundo.[9] A artista define o seu objecto de estudo no modo particular como compreendemos a natureza das coisas e situa as suas investigações na capacidade produtiva, formativa, dessa mesma compreensão.[10] Antes de iniciar a experimentação da escrita, primeiro com os caracteres chineses aos quais se juntaram depois outras geografias, da África à Escandinávia, numa espécie de “investigação espeleológica” (Hatherly, 1973) às profundezas da língua, Ana Hatherly já colocara num limbo a mancha gráfica do texto, o desdobramento das linhas das palavras, a verosimilhança da escrita. Partindo de um vilancete camoniano Descalça vai para a fonte/ Leonor pela verdura/ Vai formosa e não segura, a artista executa trinta e uma variações temáticas tendo em vista o desdobramento dos sons, a multiplicação de sentidos, a reorganização visual. O programa é-nos dado logo no início, destinando procedimentos a cada uma das variações.[11] Não nos interessa analisar o conjunto desta investigação de Hatherly senão apenas a Variação XIX (figura 6) que revela a profundidade em que se joga o

9 Em Mapas da Imaginação e da Memória, o mapear, o localizar aquilo que provém da nossa relação com as coisas e que tem que ver com a aptidão do homem de memorizar e criar também o mundo, tem a sua mais primitiva influência na capacidade de ler. Lemos textos, imagens, rostos, mapas, mãos, entranhas de animais, estrelas, “tudo o que historicamente se nos oferece como leitura” (Hatherly, 1975; 12). 10 Cf. “Em suma, posso dizer que o meu trabalho diz respeito a uma investigação do idioma artístico, particularmente do ponto de vista da representação – mental e visual.” (Hatherly, 1992: 75) 11 Hatherly (2001: 191-233). Leonorana é o terceiro capítulo / livro da obra Anagramático, publicado em 1970 e que resulta da experimentação do alcance poético através de procedimentos não tradicionais, daquilo que Ana Hatherly chama de uma “poética experimental”.

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desdobramento e desmultiplicação dos limites da inscrição, onde se instala o início da distinção (ou indistinção) do desenho e da escrita.

Figura 6. Variação XIX, de Ana Hatherly, 1965-1966.

Apresenta-se-nos, então, uma mancha de texto que obedece à configuração regular e tradicional de um espaço reservado à escrita, um espaço, na maioria das vezes, rectangular. Este espaço, a que comummente chamamos de mancha de texto, aponta já para um espaço paradoxal, na medida em que lhe destacamos a sua gravidade, o seu carácter pluridimensional, isto é, o texto feito de linhas torna-se mancha de cor atmosférica, com regiões mais densas, nubladas e outras limpas. O texto mancha a folha com linhas unidimensionais[12] que ao cruzarem-se, encresparem, inclinarem, movimentam-se já num espaço de múltiplas dimensões. Mais ainda, uma mancha constitui-se pelo resplandecer, avivar, manifestar-se (o exemplo mais assertivo é curiosamente o corar), o que significa que a mancha de texto tem essa qualidade vivificante, o texto desperta, manifesta qualquer coisa. Ora, deste espaço textual saem alguns excessos formais, perninhas de supostas letras 12 Ainda no seguimento da obra de Ângelo de Sousa, mas num outro texto, José Gil distingue o valor dimensional da linha e da cor e dos efeitos das linhas na ordenação das manchas coloridas: “(...) a complexidade das «dimensões» é tal que torna difícil a análise: as linhas que atravessam as telas são unidimensionais, enquanto o espaço da cor é outro, pluridimensional, atmosférico.” (Gil, 2005b: 266)

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dando a ilusão de fiapos, como se a moldura da escrita estivesse na iminência de se desfiar. A sua composição procura seguir as regras da escrita bustrofédica (Hatherly, 2000: 170), ou seja, da organização paralela das linhas de texto, imitando os regos abertos na terra pelo arado. Mas mesmo ela é assaltada pelo tumulto da sobreposição de linhas que provocam concentrações gangrenosas, dando ao texto uma atmosfera tempestuosa. Seguimos, então, para a sua leitura. A iniciar o texto, abre-se em estilo de letra capital, um grande L. Na sua senda desenrola-se o encadeamento fibrilar da linha das supostas palavras, no entanto, só por um olhar demorado é possível reconhecer, ou acreditar, na sismografia da palavra. Em boa verdade, a escrita perde a sua soberania na derisão de tudo aquilo que a funda. Tal como no programa delineado por Hatherly, sucede a “ininteligibilidade por semantização visual absoluta” (Hatherly, 2001: 193); ou mais exactamente, aquilo que tem significado não são as palavras, mas as linhas, as suas irregularidades, vibrações, em contracção ou expansão. A leitura ocupa-se de dois pequenos rasgos que irrompem lateralmente na mancha; das concentrações abrasivas na sobreposição; da maior ou menor distensão encaracolada da escrita, ou mesmo da orientação das linhas que, apesar de procurar manter equidistância, são cobertas por outras criando nervuras, mesclas que afundam o texto em sombras acidentadas. Mantém-se a indecisão entre a escrita e o desenho porque o nosso poder configurador não resiste ao chamamento de um e outro. É nesse entre (do desenho e da escrita) abissal, vertiginoso, que Ana Hatherly joga a força criativa, o poder de dar imagem. Configurar, significa dar forma, dar contorno a algo e também engendrar. Ora, dar forma, tendo em vista o conhecimento de uma coisa, é desenhar-lhe o seu contorno, silhueta, fazer-lhe um esboço. Nesse esboço (o Aperçu goethiano) – que reflecte a mais profunda compreensão das coisas, porque o entendimento é obrigado a canalizar todas as percepções para uma só – aquilo que na natureza é produtivo, vivo e por isso variável, só pode ser assumido como essência e é dela que é esboçada a forma, contanto essa forma da essência possa justamente fazer-lhe prova.[13] Aquilo que sobrevive, ou aliás, vivifica as formas que esboçamos, 13 O mesmo parece dizer Platão na voz de Sócrates quando, discutindo com Crátilo sobre as formas (imagem / nomes) atribuídas aos objectos, adianta: “…o próprio número dez ou outro qualquer que tu queiras, o qual uma supressão ou acréscimo transforma imediatamente noutro número. Mas talvez não consista nisto a justeza da qualidade e da imagem em geral, nem importante, ao contrário, em absoluto, reproduzir com todos os pormenores a natureza do objecto que se representa, se se pretende obter a sua imagem. (…) Ou não percebes quão longe estão as imagens de conterem os elementos que os seres, dos quais são imagens. (…) Seria, com certeza, coisa para rir, ó Crátilo, o efeito dos nomes sobre os objectos, de que são nomes, no caso

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desenhamos, para as coisas (as formas gerais) é a essência da coisa conformada pelo homem, pelo seu modo de a ver, conhecer, sentir. Abre-se, assim, um novo horizonte nas formas e conceitos, pois parece ocorrer uma transformação imperceptível daquilo que os irá animar. Tomando o exemplo de há pouco, se para chegar a uma forma ideal de um carácter deveremos proceder ‘cegamente’ em relação às características de cada um (e estamos necessariamente a colocar de parte qualquer relação com o seu significado, ou seja estamos exclusivamente a considerá-lo na sua forma visual, como o fez Ana Hatherly), só poderemos ser bem-sucedidos, se nessa ‘cegueira’ nos permitirmos assimilar todas as diferenças visuais conhecidas antes de ‘vendar os olhos’. Isto significa que no processo de configuração confluem todas as memórias, todas as percepções que temos das coisas, confluem para, de seguida, se condensarem em formas sintéticas, sinais, símbolos, com os quais alcançamos e comunicamos a mais poderosa compreensão das coisas. Essa condensação, síntese, revela, ainda, o poder criativo do homem, porque nela ele tem a sua máxima compreensão das coisas; ele sabe que deve deixar repousar todas as diferenças e aproveitar de todas elas aquilo que lhe convém. Esse esboço, essa forma sintética (a forma originária de Goethe), conserva, assim, no mais fundo de si, cada particularidade, cada variação, cada fusão: as diferentes arquitecturas dos caracteres, uma perna comum, uma simetria; e a todo o momento, essas singularidades vêm à tona, à superfície, brindar-nos com essa mesma sabedoria. Ora, é precisamente nesse emergir de uma diferença em dois desenhos do mesmo carácter, ou do desenho de dois caracteres – que se liga, porém, incontornavelmente à forma original do carácter – que sentimos o regresso a uma percepção anterior e maior. As variações formais ecoam entre si na contextura de um imaginário que contém todas as diferenças possíveis da forma original, por exemplo, os caracteres que Ana Hatherly desenha e que remontam à escrita chinesa (figura 7). Mas essa relação com o original só pode ser intuída, sentida, porque na verdade não estamos em posse da razão de todas as diferenças, ou seja, e voltando ao nosso exemplo dos caracteres chineses, sabemos que se trata de um carácter de uma língua oriental, mas não sabemos a sua origem e o seu significado. A imaginação é despoletada por uma intuição que reconhece e imagina a sequência que a forma geral e originária (a escrita chinesa) irradia e onde a variação (o carácter) se inscreve. de concordarem em absoluto com eles. Tudo seria duplo e não se poderia dizer qual é o objecto e qual o nome.” (Platão, 1994: 137-139)

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Figura 7. Mapas da imaginação e da memória, de Ana Hatherly, 1973.

O facto de a forma geral irradiar, significa que há uma força viva nessa forma geral (originária), seja ela dada pelo desenho, seja pela escrita, que tem origem na sua capacidade produtiva, i.e., na capacidade dessa forma suscitar novas imagens a partir das percepções, sensações e sentidos que traz consigo (e que a compõem), silenciosamente – isto, porque, na verdade, sempre que vemos uma forma de um objecto, não somos obviamente assaltados por todas as imagens que temos dele, no entanto, sabemos juntar a forma que temos diante de nós a essas outras tantas que se dizem dela. Mas este surdo rumor só é audível para aqueles que saibam auscultar no silêncio. O amarelecimento das folhas no fim do verão, a descida dos cumulus às regiões inferiores transformando-se em nimbus que se precipitam em chuva, são sinais que quer o homem quer o animal conseguem ler e dessa leitura antecipar, imaginar o que se irá suceder. Mas há sinais exclusivos a cada ser, que só a eles falam. O desenho, a escrita, a incisão na carne, na

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casca da árvore, a inscrição, são sinais, formas que testemunham a compreensão do mundo no homem e, por isso, só a ele dizem respeito.[14] Leonorana atua, então, não sobre o conceito de escrita ou do desenho, mas sobre a ideia que temos deles, i.e., a artista não atua sobre uma especificação da escrita e do desenho, mas sobre uma visão que orienta a escrita e o desenho. Não interessa a Ana Hatherly o que a escrita diz, conta, narra, nem o modo como o faz, antes, como aparece, como se transforma em mancha de texto que ecoa vozes, sons, do mesmo modo que a linha do desenho se desdobra em imagens-contornos. Nas diferentes variações, Ana Hatherly experimenta a mancha de texto tradicional; o encadeamento poético das palavras (variação IV); a sua musicalidade (variação VIII); composição visual (variação XIV); explosão da leitura e da escrita (variação XVI); activando diferentes particularidades das formas de escrita e oferecendo-nos no seu conjunto uma ideia, uma perspectiva viva da poesia de Leonor. É curioso a artista ter tomado de empréstimo a variação à música (que a artista bem conhece do tempo em que estudou canto lírico); ela serve-se da repetição da melodia com pequenas alterações e celebra o ritmo naquilo que ele tem de mágico – e embalador. Essa magia refere-se à essência da própria arte poética. Cada variação é uma condição de possibilidade da poesia, é uma forma poética, que, por variar, não conhece termo.[15] Desenhar, apresentar por meio da música, da escrita, devolve-nos a sua essência, a sua natureza mais íntima, i.e., aquilo que a distingue de todas as outras coisas e que a funda. Mas o desenho, o som, a palavra, não nos apresentam todas as configurações que a coisa pode tomar porque estas continuam o seu processo de metamorfose. Esta perspectiva viva (Goethe) sobre todas as coisas, a sua ideia, pode, porém, facilmente ‘perder o pé’, uma vez que nada parece estável, fixo, antes, em perpétua variação. Por outro lado, o mesmo se pode dizer do risco de fixar, aprisionar o conhecimento em formas e conceitos, condicionando a organicidade própria das coisas, o seu crescimento, evolução, decaimento.[16] Só pode haver, então, um caminho: 14 Cf. “A nossa tarefa é entender o mundo/diziam os antigos/já sabiam/que o jogo somos nós/ (The toys are us).” (Hatherly, 2004: 13) 15 Além das trinta e uma variações, Ana Hatherly experimentou ainda outras formas. A obra da desigualdade constante dos dias de Leonor (1972), pertencente à colecção da Fundação Calouste Gulbenkian, aponta já para uma escrita em caos, ainda que contida. Já não existe qualquer possibilidade de leitura, a composição é ruidosa, cheia de vagas que se entrelaçam numa energia rodopiante que transborda para lá dos limites do suposto rectângulo de imagem. As palavras dão o lugar ao arabesco obrigando a uma reinvenção da leitura do espaço do poema-imagem. 16 Nas reflexões que por vezes ganham a força de máximas, no Livro dos amigos, Hugo von Hofmannsthal atenta, de modo irrepreensível: “Cada impressão forte traz liberdade e vinculação; por isso as nossas impressões nos moldam” e “ as formas avivam e matam.” Esta compreen-

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a inevitabilidade da transformação das formas exige ao entendimento que ele seja tão plástico e vivo, que se possa expandir, sem ser inexacto, através da compreensão da irredutibilidade das formas gerais do conhecimento, dos conceitos, dos sinais.[17] Há uma complementaridade necessária entre o conceito que segura uniforme mas universalmente a coisa e a ideia que vai alargando o contorno dessa mesma coisa na infinidade de formas que ela pode tomar – uma infinidade que torna a ideia tão viva mas tão inconformável. Mas a experiência do mundo também conhece situações limite, situações absolutamente avassaladoras, incomensuráveis a qualquer esboço, seja das palavras, seja das formas simbólicas, pela escrita ou pelo desenho: “Amando muito muito / ficamos sem palavras” (Hatherly, 2003: 31). O que é o mesmo que dizer que não há condições para a nomeação, para a classificação e, no entanto, essas situações indizíveis são tão claras para nós, tão vivas dentro de nós. Isto não significa que faltem palavras, antes, nenhuma delas é capaz de manifestar a ideia sobre uma coisa, a experiência de um sentimento inefável, o sentido de uma percepção; porque se trata de uma experiência do sem-forma ou da desmedida, e, no caso dos versos de Hatherly, essa desmedida é uma metáfora do amor. Dá-se uma espécie de bloqueio, de impossibilidade de dizer, de falar, porque as coisas escapam à língua. Esta sensação acontece porque as coisas ainda estão demasiado vivas, frescas, ainda estão em maturação dentro de nós, as ideias circulam como forças no nosso interior. Nomear, dizer, desenhar são acções de um processo de dissecação que arranca, traz do interior, da invisibilidade, para o exterior, para a superfície, para o mundo visível essas mesmas forças: o segredo do tesouro enterrado só permite um sinal, um único indício para dizer que está próximo, e mesmo esse deve procurar perpetuar-se no silêncio, caso contrário, não seria segredo. Mas, porque o sinal é o caminho para o interior da terra onde o tesouro está sepultado, significa que o próprio tesouro precisa do sinal para se constituir como tal. É esta necessidade de estacar, de não deixar pairar, a força do sinal. são é muito profunda, pois admite, sem rodeios, que o conhecimento de uma forma começa por iluminar o próprio entendimento, na medida em que dá à luz (ilumina e dá vida), faz surgir o sentido da coisa, no seio do sentido do mundo. A forma torna-se substância da substância do mundo. Por outro lado, a forma aprisiona, pois a coisa de que é forma ficará para sempre ligada a ela. Hofmannsthal (2002: 61 e 75) 17 Cf. “A ideia de metamorfose é um dom altamente venerável, mas, ao mesmo tempo, altamente perigoso. Conduz ao informe; destrói o saber, dissolve-o. É semelhante à vis centripeta, à qual, no seu mais profundo fundamento, a exterioridade em nada pode afectar: falo do impulso de especificação.” Goethe apud Molder (1995).

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O jogo dos sinais e, de resto, de toda a forma simbólica é absolutamente paradoxal. Por um lado, o sinal mortifica, faz pousar as ideias como cinzas, depois de as consumir simbolicamente. Por outro, o sinal expõe, revela, torna visível, vivifica porque traz à presença, à existência. O sinal salva-nos do abismo vertiginoso da mobilidade das coisas, da corrida do tempo, das transformações da vida, mas de volta ‘detém a imagem’.[18] Esta inconformidade do sinal prende-se, assim, com a sua polaridade entre o dar a ver e o permitir esquecer. O marco de pedra ressai de toda a matéria mineral, para indicar o fóssil, para lembrar aquele que, a partir desse momento, caminhará para o esquecimento. “Toda a memória é funerária”[19] porque ao prender a imagem, ao torná-la eterna não lhe concede regenerar-se, transformar-se, viver: é para sempre. Por isso se liga tão depressa ao passado, como vestígio; ao mundo dos mortos, como epitáfio; mas também aos deuses na imperecibilidade dos astros. Todavia, há sinais contraditórios, sinais de fogo que fazem explodir paixões, ódios, sinais que se ligam à vida e sobretudo à carne do indivíduo que sente a adrenalina fundir-se em todo o seu corpo. Se a virtude do sinal é apontar para uma coisa, significa, então, que esse poder anímico tem uma relação directa com a imagem criada. A imaginação ganha fundura quando o homem, traçando o dedo na areia, desenha uma linha que contém todo um espaço de que essa linha é fronteira. O homem reconhece um dentro e um fora, um para lá e um para cá. Ele vê essa separação, mesmo sendo esta invisível. Essa linha abre um fenda na natureza das coisas, no mundo físico, visível, táctil, sonoro, e dessa fenda, desse intervalo “por onde/ o pensamento desliza” (Hatherly, 2003: 37) aflora “um (outro) mundo / o mundo” (Hatherly, 1998: 8); porventura, o da imaginação.[20] Parece haver uma grande afinidade entre aquilo a que, há pouco, chamávamos as ideias gerais das coisas e a imaginação, em primeiro lugar, porque é da imaginação que se engendram as ideias. Em segundo lugar, porque essa afinidade surge na capacidade de quer a ideia quer a imaginação confinarem com a vida, terem na sua origem a excitação dos conceitos, 18 Cf. “A palavra-escrita/ é um labor arcaico:/ sulca enigmas/ venda e desvenda/o sentido do gesto/ É uma imagem detida/ recolhida do mais fundo cinema íntimo/ onde o verdadeiro/ é um ser invisível/ O cinema do mundo está aí/ onde houver ilusão/ onde houver vontade de ver/ mesmo que seja só o nada” (Hatherly, 2003: 29). 19 Do último verso do poema “A memória do nome” (Hatherly, 1998). 20 Importa salvaguardar que, apesar de relacionarmos o sinal com a visibilidade e a imagem, tal não significa que para o cego não haja sinais claros do mundo, apreendidos por todos os outros sentidos que imediatamente interagem com o seu corpo e espírito. A sua imaginação é devedora de todos esses estímulos, pelo que cada sinal apreendido o libertará para um outro mundo.

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das imagens, no pensamento, uma excitação que age como sugestão, como influência, propiciando o encontro daquilo que à partida parece dissemelhante, mas se revela análogo e pelo qual se dará início à produção de formas. Face ao espectáculo do mundo, o homem torna-se um “decifrador de imagens” (Hatherly, 2003: 36), ele perscruta a morfologia do mundo e vê nas suas alterações um movimento contínuo que se dobra e desdobra sobre si mesmo, criando avanços e recuos na formação de todas as coisas. O homem segue uma sugestão, uma intuição do movimento, da metamorfose. O que ele colhe é o conhecimento da multiplicidade, da infinidade das formas da natureza. ‘O olho torna-se inteligente’ na medida em que, de uma imagem intui a diversidade de outras. Há uma inteligibilidade, nunca absoluta, antes, em contínua formação, mas suficientemente autónoma para, a partir dela (desse inteligível), proceder à criação de novas formas de manifestação da visibilidade. Por consequência, o próprio processo de esboçar as formas das coisas cria no interior da linguagem (que contém essas formas) novas formações. Dito de outro modo, a composição de sinais, o desenho da forma geral, a construção de analogias, vão numa segunda e consequentes fases desenvolver novas formas e conceber novos símbolos. Tomemos o exemplo da linguagem falada e escrita, onde a partir de uma raiz se desenvolve toda uma série de outras palavras, por vezes criando outras famílias.[21] Neste processo vivo da língua, aparentemente, o conhecimento vai gerindo a sua última forma de compreensibilidade e esquecendo as diferentes camadas de sentido, i.e., os diferentes significados que se foram acamando sobre a palavra de origem até ao seu sentido actual. Estas transformações são essenciais para a sobrevivência de uma língua, contudo, o maior risco é, por vezes, as 21 Em Signos, símbolos e mitos, Luc Benoist faz uma longa análise epistemológica de verbos da língua francesa que significam diferentes ações, mas cuja raiz comum os aproxima. “Vejamos, por exemplo, a onomatopeia clic-clac e a raiz fla. Clic-clac traduz a pancada seca de duas superfícies. Daí derivam cliquet, [lingueta], cliquetis [estalido], déclic [gatilho], la clanche [ferrolho], o verbo déclencher (abrir uma porta) [levantar o trinco]. O latim clavis, a chave, deu clore [fechar], inclure [encerrar], conclure [concluir], conclave [conclave]. Do latim clarus, que designa um som estridente e pomposo, deriva o que é claro e ilustre, daí os nomes reais Clotaire, Clodomir, Clovis. Se partirmos da raiz fla que deu o latim flatus, o souffle [sopro], encontramos enfler [entumecer], gonfler [inchar], souffler [soprar], flûte [flauta], flétrir [definhar], flaccon (feito de vazio) [frasco], flou [leve], e flair [faro]. Ao ligarmos a onomatopeia ou a raiz a um dos nossos sentidos que lhe corresponde, obtemos duas séries de palavras, uma proveniente do estalido de um dedo e a outra do sopro da boca.” (Benoist, 1999: 34-35) Ainda no fim da obra, o autor lista 300 verbos consoante a relação orgânica do corpo, com o qual estabelece coordenadas como alto, baixo, dentro, a partir de; estados anímicos que dão sentidos aumentativos (tornar-se, crescer, surgir), diminutivos (degenerar, envelhecer, falhar), de existência (ser, respirar, repousar) entre outros (Ibidem, 107-110).

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palavras desligarem-se da sua raiz. Isto não significa que as palavras percam o pé, o seu ‘motor’ ainda lá se encontre, são ligações radicais que interiorizam o carácter sensível e orgânico da acção, como se o nome pedisse o reconhecimento da acção, do movimento, ou solicitasse, a todo o instante, a sua ligação à natureza da coisa. Por isso, os reflexos, as sensações, os estados são transformados em verbos de transição, de movimento, toque, união, direcção, relacionamento. Por sua vez, os nomes próprios reflectem o carácter do indivíduo, da matéria, aproximando-o da sua matriz.[22] As derivações da palavra, por vezes até à quebra de correspondência com a palavra matriz pela perda da sua concretude, como é o caso das palavras derivadas de gestos próprios de um ofício ou de manufactura que se perderam, são uma consequência da cultura e da evolução própria da língua; é a modelação do “barro das palavras” (Hatherly, 2003: 24), da linguagem, a partir do constante relacionamento entre as coisas, com os sons, o tacto e as imagens que os representam e para que apontam. Este processo extensível, maleável, plástico, vivo, obriga a novas formulações conceptuais e ligações abstractas, que tornam o conhecimento susceptível à própria erosão e sedimentação, quer dos sinais e das marcas visuais, quer da língua nos seus signos.

Referências Benoist, Luc (1999), Signos, símbolos e mitos (Signes, symboles et mythes, 1975). Paula Taipas (trad.). Lisboa, Edições 70 (col. Perspectivas do Homem, n.º 48) Ernout, A. & Meillet, A. (1967), Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoires des mots. Paris, C. Klincksieck, 4ª ed. Gil, José (2005a), A imagem-nua e as pequenas percepções: Estética e Metafenomenologia (L’image-Nue et les Petites Perceptions – Esthétiques et Metaphénoménologie). Miguel Serras Pereira (trad.). Lisboa, Relógio D’Água Editores. _____ (2005b), «Sem Título». Escritos sobre Arte e Artistas. Lisboa, Relógio D’Água Editores.

22 Também em Crátilo, uma vez mais, Platão analisa nomes próprios, de deuses, de heróis, entre outros. No seguimento da explicação de Sócrates, à origem do nome de Zeus, o Padre Dias Palmeira esclarece em nota de tradutor: “Efectivamente, na declinação de Zeus entram dois radicais – Djeu e Diw, ambos procedentes da raiz div, dyu, que significa brilhar. Daqui formaram-se dios, divus, dies, (D)iupiter, etc.; de sorte que Zeus, etimologicamente, não é mais do que o dia luminoso, o céu brilhante, e só mais tarde se personificou.” (Platão, 1994: 40, 41). Não encontrámos a língua-fonte dos termos div e dyu, apontados pelo Padre Dias Palmeira, no entanto, no Dictionnaire étimologique de la langue latine encontrámos o termo latino dīu cuja tradução é céu, divino, luminoso. Deste mesmo termo, é ainda referida a sua correspondência a divyáh no sânscrito, cujo significado é celeste. Cf. Ernout & Meillet (1967 : 178).

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Goethe, Johann Wolfgang (1993), A metamorfose das plantas (Die Metamorphose der Pflanzen). Maria Filomena Molder (trad., introd., notas e apêndice). Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Hatherly, Ana (1973), Mapas da Imaginação e da Memória. Lisboa, Moraes Editores. _____ (1975), A Casa das Musas. Lisboa, Editorial Estampa. _____ (1992), “Auto-biografia documental”. In Ana Hatherly: obra visual, 1960-1990. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. _____ (1998), A Idade da Escrita. Lisboa, Edições Tema. _____ (2000), “A escrita como arte de (re)conhecer”. In Luís Manuel de Araújo et al., A escrita das escritas. Lisboa, Fundação Portuguesa das Comunicações. _____ (2001), Um Calculador de Improbabilidades. Lisboa, Quimera Editores. _____ (2003), O Pavão Negro. Lisboa, Assírio & Alvim. _____ (2005), Fibrilações. Lisboa, Quimera Editores. [1ª ed. 2004, tiragem reduzida e numerada] Hatherly, Ana & Rita, Annabela (2004), Interfaces do olhar. Uma Antologia Crítica. Uma Antologia Poética. Lisboa, Roma Editora. Hofmannsthal, Hugo von (2002), Livro dos amigos (Buch der Freunde, 1922). José A. Palma Caetano (trad. e prefácio). Lisboa, Assírio & Alvim. Kant, Immanuel (1998), Crítica da Faculdade do Juízo (Kritik der Urteilskraft, 1790). António Marques e Valério Rohden (trad. e notas). Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Molder, Maria Filomena (1995), O pensamento morfológico de Goethe. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda. Pascoaes, Teixeira de (1987), O Bailado. Lisboa, Assírio & Alvim. Platão (1994), Crátilo. P.e Dias Palmeira (trad., pref. e notas). Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 2ª edição.

Figuras 1-7: Paulo Costa, Arquivo Fotográfico CAM-FCG (por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)

[recebido em 7 de junho de 2014 e aceite para publicação em 26 de outubro de 2014]

ROY WILLIAMS: AN OVERVIEW OF HIS DRAMATIC OUTPUT (1995-2010) UMA VISÃO GERAL DA PRODUÇÃO TEATRAL DE ROY WILLIAMS (1995-2010) Célia Oliveira* [email protected]

This article intends to give an overview of Roy Williams’ dramatic output. The playwright has started his career in fringe venues and gained visibility with time, moving to mainstream theatre rooms. In the early times of his career, Williams has presented theatre plays that showed his concern with the issues related to first and second generation immigrants in Britain. His following plays deal with the construction of British identity under a black perspective. Other plays discuss current configurations of the British nation. Williams’ work has brought to the stage a set of themes that reflect previously unexplored areas of contemporary Britain in theatre, such as racism and stories of local black communities. Therefore, Williams’ work explores key aspects of multiracial Britain and the issues raised by multiculturalism. Keywords: Black, British, Diaspora, Multiculturalism, Post-colonial, Theatre Este artigo pretende dar uma perspetiva global do trabalho dramático de Roy Williams. O dramaturgo iniciou a sua carreira em salas alternativas e foi ganhando visibilidade, movendo-se para salas de teatro do mainstream. No início da sua carreira, Williams escreveu peças que mostravam a sua preocupação com problemáticas relativas às primeira e segunda gerações de imigrantes na Grã-Bretenha. As suas peças seguintes tratam da questão da construção da identidade britânica, numa perspectiva negra. As outras peças discutem as atuais configurações da nação britânica. O trabalho de Williams trouxe para o palco um conjunto de temas que refletem áreas ainda por explorar no teatro britânico, tais como o racismo e histórias de comunidades negras locais. Por isso, a produção dramática de Williams

* Professora Auxiliar no Departamento de Letras Modernas, Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED) do Uíge, Angola.

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explora aspetos fulcrais da Grã-Bretanha multiracial, assim como temas levantados pelo multiculturalismo. Palavras-chave: Negro, Britânico, Diáspora, Multiculturalismo, Pós-colonial, Teatro

Roy Williams: a Dramatic Trajectory Writing came inadvertently to Roy Williams. Roy Samuel Williams was born in 1968 in the United Kingdom to a four sibling Afro-Caribbean family. He was brought up in Notting Hill, London, in a single-parent home, after his father left when he was two years old. As a teenager, attending the Henry Compton Comprehensive Secondary School, he faced some difficulties. To counteract his difficulties, his mother arranged for him to have a private tutor every Saturday. His tutor, who would have a great influence on Williams’ choice of a career in theatre, was Don Kinch, who, besides being a teacher, was also an actor, writer and director with the black company Staunch Poets and Players. Meeting Kinch was a turning point in Williams’ life because he “was hooked” (Williams, 2002: ix) after his first real experience with theatre apart from attending occasional productions with the rest of his school. He left school at the age of sixteen and, in 1985, he attended a Performing Arts course at Kingsway College. In 1986, he joined the Cockpit Youth Theatre, where every actor had to devise, write, act and direct his whole work. During that time, he joined Theatre Centre for a period of eighteen months as a professional actor, even though he had not studied acting at a drama school. At Theatre Centre, he worked with writers such as Philip Osment, Noël Greig and Lin Coghlan, which reignited his love of writing. He also attended an evening writing workshop with Noël Greig, the company’s resident writer at the time, and after a few sessions he started to write his first play – Luke for Gary – which was based on a scene he had improvised with his friend Michael Lowe. For the next two years, Roy Williams worked at the stage door of the Royalty Theatre in London’s West End and it was then that he decided to take writing seriously. In 1992, he was accepted as a student on a writer’s course at Rose Bruford College, Kent, using Luke for Gary for his application. He graduated in 1995 with a first-class honours degree in Writing and his second play The No Boys Cricket Club (1996). Following the suggestion of his teacher, Gilly Fraser, he sent the play to as many theatre companies as possible. Within two months of graduating from Rose Bruford College, he had received calls

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from three of the theatre companies to whom he had sent copies of his play. Meanwhile, the BBC commissioned a radio play that he had written at Rose Bruford called Homeboys for their Young Writers festival. In the end, it was the Theatre Royal Stratford East, a theatre that is explicitly connected with black writing and mainly black audiences, that produced The No Boys Cricket Club but Williams had also received commissions to write for the Royal Court and Hampstead Theatre. With his debut play, Williams took the main stage by storm and the play “articulates his characteristic preoccupations, being ambitious in theme, imaginative in form and, most crucially, convincing in its characterisation and dialogue” (Sierz, 2006: 179). Starstruck (1998), Williams’ second play, was commissioned two and a half years after the playwright’s first stage success with Stratford East but was performed at The Tricycle Theatre because Stratford East was being rebuilt. As with the first play, “good reviews followed a lovely response from the audience” (Williams, 2002: xii), which won Roy Williams three awards. The issue of Jamaica and the life of West Indians in London would also be the main theme in The Gift (2000), a play that would close this phase in Williams’ theatrical career. In 1999, Lift Off, was produced at the Royal Court Theatre and it can be considered Williams’ “first ‘London’ play” (Williams, 2002: xii). With this play, Williams starts to explore contemporary issues, particularly the reasons why white teenagers might want to emulate black ones. With this play, Williams won the prestigious George Devine Award. The following year, Williams presented Clubland (2001), one of his most personal plays, as it is based heavily on experiences about going out clubbing with his friends in his twenties. His main aim in the play was to explore the stereotypes of black people, pointing to many aspects of cultural identity, namely what it means to be black in contemporary Britain. 2002 was a landmark in Williams’ career. He became writer in residence at the Royal Court Theatre and produced one of his most popular plays, Sing Yer Heart Out for the Lads (2002) at the National Theatre (Lyttelton).[1] The play was inspired by a situation that the author witnessed at a local pub – a group of football fans watching a game between England and Germany in the European Championships, chanting, singing and shouting racist words at the German players. This situation made the playwright write a play “not just simply about race, but about British Nationalism” (Williams, 2004: x) and about what it means to be British in the twenty-first century. This focus 1 Revivals of Sing Yer Heart Out for the Lads took place in 2004 at the Cottesloe space, National Theatre and in 2006 and 2007 by Pilot Theatre and national tour.

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on ‘nation’ represents Williams’ move from being a black dramatist to being a British black playwright. As a black dramatist, the emphasis of Williams’ plays was black identity as well as issues that were concerned mainly with black people. On the other hand, by focusing on ‘nation’, Williams explores themes that concern every socio-cultural community in Britain, questioning the role they play and the place they occupy in British society. Therefore, Williams ceases to be the playwright whose work is exclusively about the black community and embraces the task of broaching issues that concern society as a whole. Williams had a very profitable year in 2002. Other than writing stage plays, Williams wrote for the television and for the radio. For BBC Television, he wrote Babyfather (2002) and Offside (2002), which won him a BAFTA Award for Best Schools Drama. For BBC Radio 4, Williams wrote Tell Tale (2002). With Fallout (2003), staged at the Royal Court Theatre, Downstairs, Williams returned to the world of black youth, presenting the fallout from the murder of a young black boy, an episode reminiscent of the high-profile Damilola Taylor case.[2] Williams decided to take the risk in reinforcing the preconceived idea that all black men are violent. The author’s aim was to present the audience with what might have been an unknown reality, particularly for mainstream audience. Even though members of mainstream audience and members of fringe audiences live in the same society, they do not often meet each other publicly and often do not have a real perception of the other’s reality. Thus, it was the playwright’s objective to lead one community to meet and be aware of the reality of the other in order to recreate a post-colonial vision of society. Additionally, in Fallout, Williams explores the world of the Metropolitan Police in the light of the McPherson report. The police force was accused of being institutionally racist after the poor handling of the high-profile Stephen Lawrence case. Two years later, Roy Williams continued with the world of British youth. Youth morality, teenagers’ wishes, preoccupations as well as gang life and a life of crime are some of the themes broached in the following plays. Little Sweet Thing (2005) was staged at New Wolsey, Ipswich, Nottingham Playhouse and Birmingham Rep, and Slow Time (2005) was commissioned 2 The Damilola Taylor case refers to the murder of ten-year-old  Nigerian  schoolboy, who bled to death fifteen minutes after being stabbed in the thigh by two teenagers, who were later accused of manslaughter. Considered to be a racist murder, the death of the child in North Peckham Estate shocked British society.

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by the National Theatre Department of Education and has toured schools since its premiere. With this educational play, Williams’ aim was to warn teenagers about life in prison and keep them away from a life of crime. Other commissions for teenage audiences include Baby Girl (2007) for the National Theatre and There’s Only One Wayne Matthews (2007) for Polka’s Children Theatre. In 2007, Williams wrote his two main adaptations for the stage. Days of Significance (2007), staged at the Swan Theatre, Stratford-upon-Avon is, appropriately enough given the setting, an adaptation of Shakespeare’s Much Ado About Nothing (1598/99). With this play, Williams broaches the war in Iraq and its effect on ordinary citizens. Moreover, he explores the relationships that young people maintain with each other, their values and the way they value themselves and others. Absolute Beginners (2007), staged at the Lyric Theatre, Hammersmith, is an adaptation of the homonymous novel by Colin MacInnes (1959). Using the 1950s as background, Williams explores the everyday issues that teenagers face in a more colourful and increasingly multiracial, post-war Britain. In the same year, Williams wrote Out of the Fog (2007) for the Almeida Theatre and Joe Guy, staged at the New Wolsey Theatre, Ipswich, and Soho Theatre, London. In 2007, Williams adapted E. R. Braithwaite’s popular novel To Sir, with Love (1959), following the adaptation, in 2009, of Choice of Straws (1965) by the same author for the radio. Aside from the rural setting of Josie’s Boy (Red Ladder, 1996) and the plays featuring Jamaican contexts – The No Boys Cricket Club, Starstruck and The Gift in Williams’ early work – his work is definitely urban-centred and this urban setting is evident in Local Boy (Hampstead Theatre, 2000), Category B (Tricycle Theatre, 2009) and Sucker Punch (Royal Court, 2010). Roy Williams, in 2008, rewrote Fallout as a screenplay for Channel 4, which was aired as part of the “Disarming Britain” season on urban gun and knife crime. In the same year, the playwright received further recognition with the award of an OBE (Order of the British Empire) for services to drama. The OBE award is the clear recognition of Roy Williams’ move into the theatrical mainstream and the general acceptance that he is an important contributor to British culture and theatre in portraying a black perspective of the issues broached on stage. In fact, the OBE is the institutional recognition of Williams not only as a theatre figure but also as a public figure. Williams’ work can be seen within a context of an open-ended social realism, as he tries to portray British society and its dilemmas. By pre-

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senting England and Britain as he perceives them, Roy Williams intends to show the reality around him and around the members of the audience without judgement, leading to reflection but not giving, however, any solution to the issues he presents on stage.

The Jamaica Set The Jamaica set is composed by Williams’ early work The No Boys Cricket Club (Theatre Royal, Stratford East, 1996), Starstruck (Tricycle Theatre, London, 1998) and The Gift (Birmingham Repertory Theatre, Birmingham, 2000; Tricycle Theatre, London, 2000). These plays deal with contemporary issues and the characters speak of the here and now of life in the United Kingdom from the perspective of a generation for whom the United Kingdom is not ‘home’. In fact, the plays are mirrors of the nation as “most playwrights not only reflect and refract the reality around them; they sometimes anticipate and second guess the future” (Sierz, 2011: 1). The plays have ‘national identity’ as their central theme, which is part of the widespread conversation about who the people in the United Kingdom are as a nation. Theatre is a means of conveying notions of what is ‘national’ and what is ‘alien’ and it is through the way the playwrights write and rewrite these notions that the English have of themselves that they create new conceptions of Englishness for the present and future. In the words of Sierz, “British theatre made its own contribution to the continuing argument by offering highly individual and distinctive visions of Englishness and Britishness” (Ibidem). In the plays that compose the Jamaica set, Williams looks to the past to explain contemporary Britain. As such, it is Jamaica that represents the cultural imaginary for many characters rather than the United Kingdom. The plays discuss themes that lead the audience to reflect upon themselves or, in some cases, lead the audience to recognize themselves either in the characters or in the situations they live through. In the Jamaica set plays, people from the black community are the most likely members in the audience as Dierdre Osborne argues: Black writers write for black actors […] staging issues of race, ethnicity, and colour as an explicit accompaniment to the thematic content of their work. […] Not only are there culturally specific references in the form of names, behaviour, spirituality humour, gesture, use of patois, food, staging of the domestic environment and shared understandings of social

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expectations but also inhabiting a space in a surrounding society in which both writers and their black characters are cast as a minority is registered, critiqued and displayed. (Osborne, 2006: 86)

It is through the gathering of the characteristics mentioned above that it is possible to say that there might indeed be a ‘black’ way of writing. On one hand, black writers generally share a writing style whose main characteristic is being critical of both established society and the black subcultures within it. However, each writer has his own individuality in searching into the theme of black British identity. In the analysis of this issue, with the presentation of black characters experiencing ‘black’ situations for a black audience, the dramatists use, as has already been mentioned, cultural manifestations of the black community, such as music, dance, cultural manifestations and language, among other aspects. As far as language is concerned, the Caribbean form of English called patois is often used in black theatre plays. With the first generation of African Caribbean migrants, different varieties of Caribbean Creoles, including French-related Creoles, were introduced in Britain. Contrary to expectations, despite early linguistic assimilation and integration policies, these Creoles have survived. Jamaican Creole in particular, colloquially referred to as ‘Creole’ or ‘Patois’, has become the dominant Creole spoken within the British African Caribbean community, since about 60 per cent of African Caribbean migrants were Jamaican. Over the years Jamaican Creole, influenced by local forms of English, has changed and a distinct British Jamaican Creole, with minor regional differences, has emerged. The continued use of Creole in Britain has to be seen against the background of racism and discrimination in British society. For the second and third generation of African Caribbean, Creole, in particular Jamaican Creole, has become a symbol of a common black identity forged by a shared experience of racial discrimination. This common identity provides African Caribbean of different Caribbean origins and backgrounds with a common ground for political and cultural struggle against racism and for equality. Creole is also used as a form of establishing a particular identity, whose language is its main form to represent the cultural values of the West Indian in Britain. As language transmits common values, attitudes, beliefs and views of the world, it is an important part of identity, and a person’s linguistic choice thus reflects an important part of their identity. Therefore, Jamaican-based Creole has become a significant symbol of black identity and resistance to assimilation, particularly for the younger generation of British African Caribbean.

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In the particular case of the plays that form the Jamaican set, it is important to discuss themes that are transversal to all the plays, such as identity, constructing the self, a sense of belonging, memory and family. In these plays, the theme of identity is represented by the main female characters, who have come to a point in their lives when all they have achieved is questioned by others and by themselves. The plays have specific cultural references in the most various forms – language[3], behaviour[4], social understanding, among others. There is the legacy of immigration and diasporic cultural forms that deeply influence contemporary black British writing and thus the form in which characters present their feelings and their attitudes towards Jamaica and Britain. In fact, in these plays by Roy Williams, Jamaica is regarded with nostalgia whereas Britain represents the frustration of the unfulfilled expectations. The diaspora now includes the different generations of indigenous black Britons and the plays in the Jamaica set show the different perspectives that the different female characters have on Britishness. The fragmentation of the identities of the women in the plays is the result of their experiences of displacement and the nostalgia towards a past and the fact that they left the place where they were born for Britain. Thus diaspora plays an important role in the formation of fragmented identities. The female characters in the plays in Jamaica set, mainly Heather and Abi, are divided between what they are in Britain and their idea of what they would become there and what they were in Jamaica and their wish to return to the past and meet themselves and what they were in the place where they were born. On the other hand, Hope is divided between the woman that remained in Kingston and the woman she dreamed of becoming in Britain. The place where these characters chose to live, allied to racism, plays an important role in the shaping of their identity. They are not happy in either place, dreaming of the place where they are not. Therefore, a sense of belonging and identity are intimately connected and the characters, through their experiences, sense that they belong somewhere other than the place they are, which contributes to their fragmented identity.

3 In the Jamaica set there are characters that do use patois in a more evident way than the other characters as their form of language, as it is the case of Gravel and Hope in Starstruck and Bernice and Clarkey in The Gift. 4 The two main female characters, Abi and Masie, in The No Boys Cricket Club, play cricket in Kingston, a source of pride and collectivity. When they arrive in the United Kingdom they stop playing cricket because it becomes a sign of racist oppression.

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Fantasy is of the utmost importance in the creation of identity because the female characters are unable to cope with the reality of displacement and racism. Therefore, they resort to fantasy to get the strength they need to live in the present with all the problems it brings them. However, the use of fantasy to build identity may lead to a false sense of security and strength which can contribute to a temporary sense of complete identity. These characters’ identity may collapse at the sight of any grievance they may not be able to cope with and that glimpse of structured identity will disappear. To sum up, these identities are unstable and may not be able to face the difficulties of life, especially in the handling of the issues that are inherent to the fact of being immigrants in the United Kingdom. As far as the issue of family is concerned, Roy Williams, through the cases of pregnancy in these three plays, intends to lead the audience to reflect on an important social issue in today’s Britain: teenage pregnancy. In recent years, this has become a concern for British society and the British Government and it is a particular concern in the black community because of fathers abandoning their children and the fact that statistics show that “rates of teenage motherhood are significantly higher among mothers of ‘Mixed White and Black Caribbean’, ‘Other Black’ and ‘Black Caribbean’ ethnicity” (see DERA, 2006). Roy Williams leads the audience to reflect on the causes and the consequences of getting pregnant during adolescence. Not discussing the blessing that a baby may be for a person, the author chose to show instead the immediate consequences of teenage pregnancy so that the discussion could be broadened, and the audience could seriously consider this issue. However, it is important to note that the scenario that Williams presents on this issue differs from the behaviour of female characters in the play, who seem quite happy with their babies. This happens because the author intended to give the perspective of an adult on the matter that generally is different from the perspective of the teenage mother, who probably has difficulty in having a wider perspective of what it means to be a mother at such a young age. By portraying reality, the dramatist intends to present a kind of documentary drama, not judging the issue, rather stating that this is what is happening in the world around audience members. Another family theme broached in The No Boys Cricket Club is domestic violence. These two different cases of domestic abuse are the key for a more thorough reflection on a problem that has always existed independently of social evolution and the increase of knowledge. Following the actions of the countless organizations that fight against this familiar and

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social dysfunction, Roy Williams alerts the audience to consider this issue so that it does not continue. The audience’s reaction to these moments in this play shows that people become very upset and disturbed when they are faced with violence. However, all people are aware that domestic violence does exist and that is a very relevant social issue. What they are not used to is seeing it on stage. The proximity between actors and audience makes the situation a more personal one. This explains the nervous reaction from the people in the audience when the actor playing Michael hits his mother. It is by creating bonds with the characters and the situations represented on stage that audience members can be more sensitized to this issue. The situations shown in a play can become more personal through the establishment of personal connections rather than government campaigns that may not be as effective as a play because they frequently are regarded as impersonal. Moreover, Stratford East is quite an intimate theatre due to the small number of seats, which provides the connection between the actors and the audience. In these plays, the audience is thus a key factor in the creation of meaning. Sierz (2011) argues that the meaning of a play lies in the experience of the audience. Different audiences have different reactions to the plays presented. A predominantly black audience has a different reaction to that of a predominantly white audience; a younger audience might feel differently to an older one; white different to black, Asian different to white. Different audience members experience the same plays in different ways and it is possible to observe, in some cases, different reactions to the same play, according to the audience members. Black drama exposes mainstream (predominantly white) theatre-goers to aspects of black British cultural input that is as indigenous to contemporary British cultural identity as that provided by white playwrights. It provides Black audiences with authentically rendered cultural representations which have not as yet been able to develop a flourishing continuum in Britain’s cultural psyche. (Osborne, 2006: 84)

White audience are not continuously exposed to black British drama which leads to the continuous presence of preconceived ideas about black people in Britain’s cultural psyche. Few are the cases of black British playwrights presenting their work in mainstream theatres as well as theatres that accept alternative black theatre work and, in some cases, white audiences are reticent about the themes presented in black plays.

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Therefore, the meaning of the three plays that form the Jamaican set would be different, depending on the audience members. A predominantly West Indian audience is more likely to establish a bond to the plays rather than a white or Asian audience, but it does not invalidate the case that audiences other than black can also create bonds to what is presented on stage. The West Indian audience members are more likely to recognize themselves in the issues broached, according to their own experiences or through the experiences of someone they know; they will be able to see their problems and their questions reflected in the characters and in their stories. Therefore, many people from the black community end up seeing the productions of black companies because they reflect their experiences, or the experiences of people they know. As an example, there is the case of the audience reaction to the way the The No Boys Cricket Club was staged. In order to stage the juxtaposed worlds of London and Jamaica, the designer, Rosa Maggiora, created two scenarios that changed according to the setting in the play, which caused a great impact on the audience. […] you could hear gasps from the audience when the stage changed for the first time from contemporary, grey London to the magical beach in Jamaica. As one audience member told the designer, ‘Thank you, you took me back home!’ (Rubasingham, 2002: xvi)

The plays in Jamaica set show a world that is immediately recognizable not only to the black audience, who create bonds of recognition, but also to any other audience because the themes broached in the plays are not exclusive to the black community. However, for the black community there would be extra layers of meaning not available to white audiences. Williams explores themes that are social concerns for all races and all social classes, but from the perspective of the black community.

Constructions of Britishness After the plays about Jamaica, Roy Williams turned his attention to the reality that surrounded him, dealing with the issues of the present rather than those of the past. The present issues concern the experiences of second and third generation immigrants, the children of first generation immigrants. Initially encouraged to go to England as part of the post-war reconstruction and

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economic expansion, the presence of these migrants began to question what being British meant, as Gabriele Griffin suggests: Their arrival into Britain shattered the presumed dichotomy between Britain and its colonial ‘others’, creating the beginning of a transformation of what ‘being British’ means, a shift encoded, inter alia, in the various successive immigration and race relations acts designed to regulate the collapse between ‘margins’ and ‘centre’ as a consequence of migration. (Griffin, 2003: 8)

The collapse between margins and centre may not be very visible in the first generation of immigrants because these people tended to remain within their own communities, being, on one hand, marginalized by the dominant white society and, on the other, retaining their own marginalization because they did not feel part of the culture and the society that received them. However, this situation was not maintained by the later generations of immigrants because, born in Britain, they had a different experience of the need to socialize and blend in at all social levels. Therefore, the second and the third generations of immigrants did not feel themselves to be marginal because they were part of British society more permanently. Their presence in Britain influenced British society in the same way as they were influenced by the people to whom they related. People are highly influenced by the cultures they live in, independently of their origins. A black person can be influenced by an Asian person or a white British person and vice-versa. They cross cultural and identity barriers and influence each other and the idea of margin and centre blend. However, the asymmetries of power on the basis of race are not removed so easily. In this line, the work of Williams focuses on the issues of identity and what being British means in the more recent plays. However, he is still specifically concerned with black British experience even if he includes white characters in his plays. An example of what has been exposed above is Williams’ play Lift Off (1999), which premiered at the Royal Court Theatre Upstairs, on 19 February 1999, which was inspired by London teenagers. This play discusses what it means to be ‘black’ and the implications inherent to this construction, such as machismo, language, strength, verbal and physical aggressiveness, and sexual potency. It also looks at the meaning of friendship and identity in a racially-divided urban setting. As Osborne points out:

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Typical Williams motifs converge in this play: urban inter-racial relationships between young people, racism and its effects upon them; the fluidity of possible cultural affinities relational to socio-racial identities; young people’s traumatizing by peers; adult inadequacy to sustain emotionally, support or encourage youth into maturity, and the intense compensatory (but insufficient) bonds they form with each other. (Osborne 2011: 491)

The ethnicity of the characters of the play is never specified explicitly except with Rich who is detailed as “a young black schoolboy” (Williams, 2002: 163). However, the reader can infer the other characters’ ethnic background throughout the play, “opening to scrutiny just what informs these socio-cultural categories of blackness and whiteness” (Osborne, 2011: 491). This scrutiny can lead to the questioning among spectators of preconceived ideas of what it means to be black or white nowadays. Ethnic background is ‘performed’ in the play through characteristics such as behaviour, language, psychological characteristics as well as through the arguments and points of view that they defend. Therefore, it is through Mal, Tone and Rich and the relationship they maintain that Roy Williams explores what it means to be black and issues related to black identity. Mal is the “cool black guy on the estate” (Rubasingham, 2002: xx) and Tone wishes to be like him, copying Mal’s characteristics to make him the most popular boy in the neighbourhood. He talks and dresses ‘black’. The authors Barry and Williams note the phenomenon whereby “white boys, in particular, are starting to emulate their black peers, responding to a cultural formation wherein machismo, strength, and sexual potency are all being aligned to the signifier ‘black’” (Barry & Boles, 2006: 299). The emulation expressed above shows the desperation of Tone to be like Mal in order to cover his own absence of identity as a young white man. Here, identity definition is intimately connected to cultural stereotypes related to racialized masculine characteristics. Tone ventriloquizes black street talk and engages in cultural cross-dressing in order to reproduce Mal’s hyper-sexualized version of black masculinity. Black identity is also identified with a certain attitude to sexual behaviour, as if sex can establish position among peers. In order to show Mal’s interior struggle with his own identity and the silent fight between all the male characters in the definition of their identity, the play was performed on a raised concrete stage “that resembled a boxing-ring, as several reviewers pointed out, providing a fitting space for the dissection of the aggression and competitiveness of the male community that

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Williams presents” (Barry & Boles, 2006: 301). Indhu Rubasingham, the director of the play, used the stage to illustrate the issues raised by the play and the interaction between those characters. Once again, the staging plays as a fundamental part in the creation of meaning. It is rather appropriate that the stage resembled a boxing-ring because the different characters do fight each other in the construction of their identity, and its preservation, as well as in the pressure they put on the others to fulfil the brand of identity they have conceived for them. In the play, there is an interesting triangle (Mal, Tone, Rich) which explores the ways in which both black and white have become detached from skin colour and coded as forms of behaviour which permit cross-racial affiliations. Yet it also explores the ways in which it may be possible for white young men to ‘pass’ as black men; it is less possible for a black man to ‘pass’ as a white man because of institutionalized racism. Therefore, the possibilities of cross-cultural affiliations are conditioned by the material practices of racism.

The State of the Nation As Roy Williams continues his career, he becomes more concerned with the issues and the events that take place around him in his own time, encouraging a development in his writing style towards a particular form of social realistic drama. The critic Charles Spencer, for instance, indicated “the proximity of Williams’s work to a new kind of theatre, called ‘verbatim theatre’ or ‘docu-drama’, an art-form with a particular relationship to current events” (Spencer apud Barry & Boles, 2006: 311). Although Williams does not use material from real transcripts or interviews, the main characteristic of verbatim drama, the proximity between real life and drama has meant that his theatre has a particular social relevance. From Fallout (2003) onwards, he treats issues that concern both the white and the black community and that are indeed the focus of government policy as reported daily in all type of news media, such as the ‘Damilola Case’ broached in Fallout (2003) or football violence as presented in Sing Yer Heart Out for the Lads (2002). The playwright balances the brutality and stylized violence of in-yer-face theatre, as seen in the murder of Kwane by a group of teenagers on stage in Fallout and the stabbing of Mark by a teenager at the end of the play in Sing Yer Heart Out for the Lads, with the social complexity and emotive

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power of documentary drama present in other Williams plays. However, Williams’ drama focuses more on drama than documentary because he does not simplify the topical issues with stereotyped characterizations or well-ordered dramatic resolutions. By broaching current themes that concern all sectors of society, Williams’s later plays echo the shifts and changes in English society in such a way that they can be seen as contemporary examples of the ‘state of the nation’ play[5], in other words a form of large-scale drama that “has always been involved in the project of rewriting our ideas about national identity” (Sierz, 2011: 16). According to Janelle Reinelt and Gerald Hewitt (2011), the state of the nation play is a model of political theatre developed in the 1970’s in plays by authors such as David Edgar, Howard Brenton and David Hare. The plays by these authors shared some characteristics as they were “large-scale plays, with a panoramic range of public settings, employing epic time-spans and usually performed in large theatres, preferably theatres with a national profile”(Reinelt & Hewitt, 2011: 11). The main aspects of the state of the nation plays in the 1970’s were the hostility towards domestic and familial settings as well as the determination to set the plot in the present-day England, so that it would be possible to discuss the issues that had made England what it was. Furthermore, a state-of-the-nation play “can be one that deals with the condition of the nation rather than, more narrowly, the relation of the nation to the formal institutional forms of its governance through the state” (Idem, 13). It is by discussing the social problems of the nation that dramatists express their view of the state of the nation rather than merely examining governance issues. In the past, the state-of-the-nation play had largely reflected the anxieties of white, middle-class writers. However, with the emergence of a new generation of black and Asian writers, that changed, as drama became clearly alert to the ethnic diversity of British pluralistic, multicultural diversity. With all the changes that have been taking place during the last few years of the new millennium, it is possible to widen notions of the state of the nation play to stage the new conjecture or interrogate the new uncertainty of the nation. New writing deals with contemporary concerns and aims to convey the author’s perspective on the state of the nation. In the article “A Tyrant for all time”, where David Greig is critical of the tendencies of the new writing, he outlines the characteristics of this new typically English new genre: 5 As used by Aleks Sierz about New Writing in “Rewriting the Nation – British Theatre Today” (2011).

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This English realism, this “new writing” genre which has so thrived in subsidised spaces over the past 40 years, attempts, as one of our leading playwrights put it, to “show the nation to itself ”. It seeks out and exposes issues for the public gaze. It voices “debates” rather like columnists in the broadsheets. Its practitioners are praised for their “ear” for dialogue as though they were tape recorders or archivists recording the funny way people talk in particular sections of society and editing it into a plausibly illustrative story. English realism prides itself on having no “style” or “aesthetic” that might get in the way of the truth. It works with a kind of shorthand naturalism which says, “this is basically the way I see it”. Distrustful of metaphor, it is a theatre founded on mimicry. In English realism, the real world is brought in to the theatre and plonked on the stage like a familiar old sofa. (Greig, 2003)

Aiming to bring to public the debate of issues that characterize the nation in the present, Roy Williams, at the beginning of the twenty-first century, wrote two plays that began to move away from the worries and the pressures of young British teenagers and the theme of black cultural identity and broach the issues that are contemporary to him and were wider concerns of British society, whether white or black, young or old. His plays intended to portray British reality as he perceived it, not disguising that reality with theatre aesthetics. It is by presenting reality in this way that these plays are excellent examples of contemporary social realism.

Rewriting the Present In the first decade of the twenty-first century, Roy Williams embraced the task of writing “contemporary youth morality” (Osborne, 2011: 501) and two plays were written – Days of Significance (2007) and Absolute Beginners (2007). Broaching several themes, such as war, drugs, racism, battle of the sexes, among many others, these plays aim to focus on the dilemmas and the challenges that teenagers and young adults face, especially in times such as these in which we are living. The end of the twentieth century and the beginning of the twenty-first century brought times of great change, leaving people struggling to cope with the speed and extent of such changes. In order to deal with these current issues, Williams felt confident enough to adapt a canonical play[6] and a very well-known novel to the 6 Shakespeare’s Much Ado About Nothing (1598/99).

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author’s generation[7] and rewrote them, adapting their structures and to current times. Thus, in 2007, two of Williams’ works were greatly inspired by two very well-known works by the British audience. In 2004, The Royal Shakespeare Company commissioned Williams to write a play inspired by a Shakespeare text and rather than choosing the obvious texts about the war to make a contemporary point, the playwright chose Much Ado About Nothing (1598/99). The author took this play because “its returning soldiers, battle of sexes, girls and boys in packs resonated” (Williams, 2007: v) in him as he wanted to write something about the war in Iraq. From this Shakespeare play, Roy Williams wrote Days of Significance (2007). David Farr also asked Williams to adapt Colin MacInnes’ Absolute Beginners (1959), a task that the playwright embraced because “the energy of Colin MacInnes’ writing is just spectacular” (Williams, 2007: iv). However, the fact that the original text is a novel will lead to the necessary reduction of the plot to its essential so that the attention of the spectator is not lost during the performance. Moreover, the description will be substituted by gesture, tone of voice and the visual, among other features. Williams points out that he chose Absolute Beginners to give rise to the stage play Absolute Beginners (2007) for the following reason: MacInnes was so ahead of his time, in terms of what he was saying about the exploitation of those young people living in the fifties, who first coined the term ‘teenagers’, and about Britain emerging from the post-war years to a more colourful and, for the first time multicultural, nation.

In his Introduction to Plays 3 (2008), Williams declared that adapting texts was a new way of working and that it was not easier than writing a completely original work. By the time the opportunity of writing adaptations of the canon came in Williams’ career, the playwright was considered to be one of the most promising black playwrights in the British theatre landscape so much that, in 2002, he became a Writer in Residence at the prestigious Royal Court Theatre, reaching mainstream theatres and audiences. Williams has achieved and sustained mainstream visibility and, from the mid-1990s, he has produced plays continuously, “consolidating his place in the canon of British theatre history” (Osborne, 2011: 487). Roy Williams’ consolidation within the theatre landscape allowed him a posi7 Colin MacInnes’ Absolute Beginners (1959). The novel is well-known to people of Williams’ generation but not so much to younger people.

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tion where adaptation is regarded as admissible and even a sign of creativity and talent rather than being derivative or secondary to the ‘original’ as well as the recognition of his capacity to select other texts and give them another form and adapt them to current times. On the other hand, the choice of the works for adaptation indicated above is due to the fact that the themes broached in these well-known works were as contemporary at the time of their writing as they are nowadays, such as the problems that teenagers face in a multicultural and multiracial Britain, in the case of Absolute Beginners, or the problem of war and the battle of sexes, in Days of Significance. The adaptations raise the issue of intertextuality and influence of works from the past in today’s literary landscape as well as the role of the author in literary production and authorship. According to Linda Hutcheon (2006), there is an intimate relationship between the adapted work with other work or works. However, this does not mean that the adapted work cannot be regarded as “autonomous works that can be interpreted and valued as such” (Hutcheon, 2006: 6). As a “formal entity or product” (Idem, 7), an adaptation involves shifts of medium or genre[8] or a change of frame and thus context.[9] Moreover, the process of adaptation is always a “process of creation” (Idem, 8) because it always “involves both (re-)interpretation and then (re-)creation” (Ibidem). As a “process of reception” (Ibidem), an adaptation is a form of intertextuality because the experience of adaptation often resonates other works. In short, an adaptation is “an acknowledged transposition of a recognizable other work or works; a creative and an interpretive act of appropriation / salvaging; an extended intertextual engagement with the adapted work” (Ibidem). Therefore, an adaptation is second to another work without being secondary, as it is a creative process of another author who aims to repeat the story at the same time that he changes it. Adapting a work may also be “one way to gain respectability or increase cultural capital” (Idem, 91). Most of the stage adaptations have an educational pretention today as “there is now a secondary educational industry devoted to helping students and teachers ‘make the most’ of the adaptations” (Idem, 92). In this sense, it is created educational material, such as workshop material or lesson plans and websites, which are developed to have an educational aim. 8 As it is the case of Williams’ adaptation of the novel Absolute Beginners (1959) written by Collin MacInnes into a stage play. 9 It is the case of the adaptation that Williams does of Shakespeare’s Much Ado About Nothing.

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Adapters also have personal reasons to make an adaptation or to choose a certain work to adapt, choosing the medium they believe is the best. In their process of adaptation, the adapters interpret the work and, in doing so, they take a position on it. Therefore, adaptations are tributes to the original work or its author, as well as it can “be used to engage in a larger social or cultural critique” (Idem, 94). Post-colonial dramatists have used adaptations to express their political and social positions, as it is the case of both of Williams’ adaptations, as raises important issues that concern current politics and society, such as the war, the dilemmas that young people face, among others. When a text is adapted, the adaptor has to bear in mind the characteristics of the audience and the expectations viewers may have, either because they have read the text they will see adapted, or due to what they may hope to see. Taking into account that audiences react in different ways to different media, adaptations have to be made considering the need to appeal to the viewers’ sense of repetition and difference and familiarity and novelty. In this way, there is a need to distinguish between knowing and unknowing audiences. The former, usually, are very reticent in relation to adaptations because they have expectations about the plot, characters, scenery, among other features. Therefore, when faced with an adaptation the viewer / spectator expects to see what he has imagined as a reader. On the other hand, the unknowing audiences, as they do not know the text, look on the adaptation as any other work, enjoying what they are given without any kind of expectations or demands. Nonetheless, as well as reading influencing the appreciation of the adaptation by the viewer/spectator (due to the use of imagination on the act of reading), the adaptation will influence the reading of the text because, when reading, the imagination will be conditioned by the images from the adaptation – film, stage, television or interactive. Different adaptations will create different reactions in audiences. In films and in stage performances, audiences have different perspectives. In films, the audience is only shown the director’s view and just what (s)he wants to show. In stage performances, the viewer has the possibility to look at what (s)he wants to see and to connect elements more autonomously. So, stage performances allow further involvement of the audience and its imagination. In interaction, there is a deep engagement between the body and the computer, being the latest as the extension of the body, involving the audience in what they are presented with.

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Therefore, the audience will create their own meaning from Williams’ adapted plays, not only because they will find a resonance of the original texts of the plays[10] but because they will also have their own interpretation of the issues broached in the play through Williams’ point of view. It is important to note that Williams does not intend to present the characters by judging them from the start; he does not use the characters as a mouthpiece of his own views. It is through the experiences of the members of the audience that meanings will be created, transforming the audience into co-authors of the plays. Here, as the plays broach current issues that concern all sectors of society that will make spectators reflect upon and possibly react. The playwright as a member of the black community brings a different perspective to mainstream theatre, which can contribute to this role of theatre as a mechanism to introduce and to debate social problems.

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10 The audience members may not find resonance of the original text as it is not likely that all spectators have read the original texts by Shakespeare and MacInnes. However, spectators may find resonance in the film adaptations that were made of the two works.

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[Recebido em 11 de maio de 2014 e aceite para publicação em 15 de novembro de 2014]

AS ESTÓRIAS DENTRO DA HISTÓRIA: CONSTRUÇÕES AMBÍGUAS DA MEMÓRIA EM O OLHO DE HERTZOG DE JOÃO PAULO BORGES COELHO THE STORIES WITHIN HISTORY: AMBIGUOUS MEMORY CONSTRUCTIONS IN JOÃO PAULO BORGES COELHO’S O OLHO DE HERTZOG António Mota* [email protected]

Através da análise de O Olho de Hertzog de João Paulo Borges Coelho (2010), pretendem-se discutir os processos de construção narrativa entre ficção, História e memória. Partindo da interpretação da perspetiva ‘ex-cêntrica’ da Primeira Guerra Mundial, apresentada por esta obra que assume um caráter híbrido entre romance policial e histórico, analisar-se-á o reposicionamento de identidade moçambicana face a esta narrativa dominante. Esta ideia será sustentada através do estudo de algumas narrativas do romance que, pelo seu caráter intencional de ‘meia-verdade’, problematizam a memória como prática de resgate do passado, mostrando o potencial das ambiguidades entre história, memória e ficção num contexto de busca de identidade. Palavras-chave: João Paulo Borges Coelho, ficção, história, memória Through the analysis of João Paulo Borges Coelho’s novel O Olho de Hertzog (2010), this essay aims to discuss the processes of narrative construction between fiction, History and memory. The repositioning of Mozambican identity towards the dominant narrative will be analyzed by starting with an interpretation of the ‘ex-centric’ perspective of the First World War presented by this book, which assumes a hybrid character between detective and historical novel. This idea is supported by the study of a number of narratives in the novel which, due to their deliberate ‘halftruth’ character, meditate on memory as a practice of recovering the past, showing the potential of the ambiguities between history, memory and fiction in the context of a search for identity. Keywords: João Paulo Borges Coelho, fiction, history, memory * Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

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1. A ambiguidade e o leitor implícito Já as três epígrafes indicam o que o leitor deve esperar deste romance: afirma-se o relato de “actos (…) reais, embora se suspeite que a realidade não passa de uma massa de contornos imprecisos”; levanta-se a dúvida acerca da veracidade da história a partir do momento que se questiona a linearidade do tempo, descobrindo “que todos os momentos do tempo existiram simultaneamente” (W.G. Sebald) e, finalmente, substitui-se a perceção direta da realidade pela leitura incerta de signos (Italo Calvino). A ambiguidade, no leque de interpretações inaugurado pelas epígrafes, será portanto um conceito central nas duas narrativas que são apresentadas alternadamente, não se podendo falar de uma ação principal, mas de duas, mesmo estando elas intrinsecamente relacionadas: o que diz respeito à guerra é contado por um narrador autodiegético, Hans Mahrenholz, um oficial alemão que participou na campanha militar do general LettowVorbeck. A outra ação, contada pelo narrador extradiegético, refere-se à estadia do mesmo Hans – entretanto assumindo outra(s) identidade(s) – na cidade de Lourenço Marques, privilegiando-se a focalização a partir da sua perceção e consciência, nomeadamente quando percorre as ruas da cidade e como ouvinte de estórias contadas por outras personagens. Todas as narrativas, principais e secundárias, complementam-se no caminho da procura do ‘Olho de Hertzog’, nome dado ao lendário diamante. A primeira epígrafe, ao contrário das seguintes, sem indicação de autoria, refere-se às pessoas que praticam os atos “reais ou não”, chamando-as de “animais que não existem”. Esta denominação identificada como paráfrase de “Durrell” parece iniciar, desde logo, a ambiguidade ao nível de nomes e identidades que carateriza todo o romance: em vez de Lawrence Durrell, o autor de The Alexandria Quartet, deve tratar-se do irmão Gerald e, provavelmente, duma alusão irónica à autobiografia romanceada da infância deste popular naturalista em Corfu, entre 1935 e 1939, sob o título My Family and Other Animals (1956). No fundo, O Olho de Hertzog constitui uma vasta galeria de personalidades, caraterizada por um excesso de nomes, que exige a participação do leitor na procura da ‘verdade’ sobre acontecimentos e identidades, característica da investigação, policial e historiográfica – o que constitui uma confluência fundamental para o género híbrido da própria obra que cumpre à perfeição o que Elisabeth Wesseling diz sobre o romance histórico autorreflexivo, entendido como “synthesis between the detective and historical fiction” (Wessling, 1991):

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Both are concerned with “understanding the past through interpretation”, although in self-reflexive historical fiction this interpretative process is not concluded by a solution as univocal as that in the regular whodunit. (Ibidem)

O leitor implícito, entendido no sentido hermenêutico no processo da leitura (Iser, 1976) como alguém interessado em preencher lacunas e resolver ambiguidades criadas pela justaposição de perspetivas no texto, é claramente prefigurado, no seio da ficção, por “Hans Mahrenholz, aliás Henry Miller” (Borges Coelho, 2010: 18). A impressão instantânea de, ao chegar à cidade de Lourenço Marques, estar de volta ao Hamburgo da sua infância, por causa da mesma “chuva miúda mas inclemente” (Idem, 13), “Hamburgo às cegas” (Ibidem) no entanto, evoca Walter Benjamin e, concretamente, o famoso início do texto autobiográfico Berliner Kindheit um 1900, ao aludir a um regresso à cidade da infância como errância específica: “Desorientar-se numa cidade não quer dizer nada. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, exige alguma aprendizagem”.[1] Hans não regressa a Hamburgo, é só uma ilusão fugidia. Contudo, em ambos os casos surge um alheamento (Entfremdung) que dinamiza a aprendizagem do lugar, ao vaguear pelas ruas e praças: Olha esta praça, afinal distante de Hamburgo, povoada de gentes tão distintas, moldada pelos caprichos de quem a foi edificando, que a salpicou de pequenos quiosques, estranhas construções encimadas por minaretes de ferro forjado, chinesices. (Borges Coelho, 2010: 19)

A própria disposição irregular dos edifícios na Praça 7 de Março, bem como a forma eclética que estes assumem, em conjunto com o movimento apressado das pessoas, os “eléctricos, vagorosos”, a “vozearia” e os “cheiros fortes e desconhecidos” (Ibidem) são todas impressões que não conseguem disfarçar a superioridade que Hans sente enquanto alemão e europeu, o que acrescenta à visão benjaminiana uma dimensão de reposicionamento no contexto colonial. No entanto, a narrativa refere outro alheamento que implica precisamente uma inversão das categorias de civilização europeia e urbana vs. vida selvagem africana: é a vivência no mato – em Berliner Kindheit um 1900 só comparação abstrata – que dificulta, ironicamente, ao

1 O capítulo “Tiergarten”, na versão tradicional e mais traduzida de Adorno-Rexroth, de 1950-55 (Benjamin, IV/1: 235-304) que difere da versão que Benjamin considerou final.

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alemão Hans a reaprendizagem da cidade após ter andado com as tropas de Lettow-Vorbeck: O tempo que passou no mato foi demasiado para que pudesse agora olhar em volta e ver simplesmente uma cidade. Os arbustos da savana espalhavam vultos e ameaças; os charcos, sempre que chovia, traziam mil olhos à superfície; a luz da lua lambia os canos das espingardas. É isso que ainda vê nestes edifícios, nos postes, nos sofridos corpos que são as árvores urbanas, no inquietante padrão repetitivo das cercas de ferro forjado e da calçada, nas mensagens ocultas que os dizeres dos anúncios e dos cartazes calam: perversidade, dissimulação. (Idem, 20)

Esta visão entra também em diálogo com a epígrafe de Le città invisibili (1972), retirada do primeiro capítulo de la sequência “Le città e i segni”: o viajante entra na cidade de Tamara vindo do mato onde não se questiona a correspondência inequívoca entre signo e objeto como ferramentas para lidar com o mundo. Nesta cidade, isto é impossível, porque o olhar fica preso numa cadeia de operações de atribuir significado que nunca chega a uma identificação substancial, portanto: L’occhio non vede cose ma figure di cose che significano altre cose: (...) Lo sguardo percorre le vie come pagine scritte: la città dice tutto quello che devi pensare, ti fa ripetere il suo discorso, e mentre credi di visitare Tamara non fai che registrare i nomi con cui essa definisce se stessa e tutte le sue parti. (Calvino, 1972)

Apesar de a citação na epígrafe acabar em “o olhar percorre as ruas como páginas escritas” (Borges Coelho, 2010: 11), a construção discursiva do espaço Lourenço Marques segue à risca instruções posteriores de não fazer nada além de registar os nomes com os quais a cidade se define a si própria e todas as suas partes, dando somente a ilusão de uma visita. A presença massiva dos anúncios publicitários e letreiros que povoam as ruas desta cidade ‘Lourenço Marques’ e a sua constante leitura, obedecendo ao olhar indeterminado do neófito Hans, apontam – paradoxalmente na sua aparente precisão – para “a massa de contornos imprecisos” (Idem, 7) que constitui a realidade, quando o sujeito que olha e lê não seleciona e constrói significado. Não é por acaso que esta aprendizagem de não se deixar iludir pelos signos bem visíveis é inaugurada pelos nomes dos navios fundeados no porto, culminando na leitura da palavra Herzog (que faz Hans estremecer) por debaixo de Beira, “nome pintado de fresco por cima do outro”

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(Idem, 14). O narrador avisa que a variante Hertzog vai levar a outra história, não a deste velho navio. Por isso, a acumulação aparentemente indiferenciada dos letreiros e da publicidade não se esgota no effet de réel (Barthes, 1968) de uma reconstituição de Lourenço Marques do pós-guerra 14-18 que, conforme Eduardo Pitta, “tende a dificultar a leitura por parte de leitores não-familiarizados com a realidade local”, acrescentando: “O raciocínio continuaria válido se um inventário com o mesmo tipo de anúncios estivesse reportado a Lisboa ou a Londres” (Pitta, 2010). Discordamos, porque a leitura urbana de Lourenço Marques, de estrutura antagónica como todas as metrópoles coloniais, desafia o eurocentrismo da própria memória da Grande Cidade (cf. Brugioni, 2012: 395), propondo ao leitor uma deslocação e um reposicionamento que terão dinâmicas diferentes conforme a sua própria perspetiva e identidade, europeia ou africana. Quanto à europeia, o perfil do leitor implícito é prefigurado pelo percurso e pela ambiguidade identitária das personagens que abandonam a Europa porque foram ‘chamadas’ para mergulhar no espaço africano. Os seus caminhos entrecruzam-se em Lourenço Marques. Neste sentido, Hans Mahrenholz cumpre um papel duplamente privilegiado, como protagonista e narrador / personagem-refletor, contracenando com personagens que, não sendo menos ambíguas na sua definição, representam a identidade moçambicana, tal como Rapsides e João Albasini, este último caraterizado pela condição de assimilado.[2] A certa altura, Hans interroga-se: “Finalmente, não será até a sua raça – nem branco nem preto – ela própria uma ambiguidade?” (Borges Coelho, 2010: 383). No perfil de Hans ecoa a sobreposição de dois projetos, da flânerie e da arqueologia[3], que encontramos em Benjamin e que revela precisamente a problemática do lugar da aprendizagem, paisagem urbana real ou memória: No âmbito dos conceitos do flâneur como mnemotécnico, a arqueologia serve de metáfora para caracterizar o trabalho do flâneur que se refere ao passado. No entanto, esta metáfora revela também o dilema que caracteriza estes conceitos, porque ao contrário do arqueólogo, o flâneur encontra só em casos raríssimos o passado nos vestígios materiais.[4]

2 Sobre a personagem e figura histórica de João Albasini vd. Brugioni (2012: 398). 3 Brugioni (2012: 396) fala de “operação arqueológica”, contudo sem referência ao conceito benjaminiano. 4 Neumeyer (1999: 377) refere-se não só ao conceito flâneur de Benjamin, mas também de outros, daí o plural. Devemos esta tradução, tal como todas as referências a textos e contextos alemães, ao Prof. Orlando Grossegesse. Aliás, o presente estudo surgiu das abordagens discuti-

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Em Berliner Kindheit um 1900, os lugares indicados nos títulos dos breves capítulos emergem do campo da memória e não da paisagem urbana experimentada na flânerie (Neumeyer, 1999: 377-78). No romance de Borges Coelho, surge uma sobreposição mais complexa e até antagónica entre (1) a focalização em Hans, um alemão disfarçado de inglês vagueando por um Lourenço Marques para ele desconhecido e evocando as suas memórias, e (2) o narrador extradiegético, não só portador discreto do ‘presente vivido’ desta cidade do pós-guerra 14-18, “quase totalmente rasurado do espaço urbano contemporâneo” (Brugioni, 2012: 395), mas também fonte do saber capaz de articular esta memória com história e ficção, re-funcionalizando de forma criativa este arquivo menor, além do effet de réel. Basta citar o parêntesis inicial que refere “Fernando Pessoa (…) de regresso a uma pátria desconhecida” (Borges Coelho, 2010: 15) e, numa espécie de complemento final, o letreiro “A. O. Salazar, Contabilista, Espírito de missão, (…).” (Idem, 438). No entanto, o encontro de Hans com aquele contabilista de “nariz aquilino” e “voz afeminada” (Idem, 439) já faz parte da sua visita a um prédio “que não se lembra ter visto antes” (Idem, 436). Só repara na sua frontaria fantasiosa, bem ao estilo das Cidades Invisíveis de Calvino, quando sentado na cadeira cromada da Barbearia e olhando “o espelho que tem na frente” (Ibidem). A sua errância, caraterizada ao longo do romance pela interação entre o real e o imaginário, nem sempre com delimitações unívocas, acaba significativamente no esquecimento, na incapacidade de nem sequer se lembrar mais “de uma certa praça de Hamburgo, fustigada por uma chuva inclemente” (Idem, 439). Portanto, em vez de o discurso narrativo afirmar uma ilusão referencial consistente, o leitor está confrontado com o problema de filtrar os signos espalhados pelas ruas e praças e atribuir-lhes significado, participando assim na própria construção discursiva da realidade e, consequentemente, da História. Hans vagueia pelos “labirintos de uma cidade de espelhos onde os acontecimentos que pareciam definitivos não passam afinal de um mero reflexo de verdades sempre novas, escondidas dentro dele” (Idem, 291). Fiel a esta imagem, que mais uma vez lembra Calvino, estabelece-se uma articulação, de contiguidade e analogia, entre a flânerie e a atividade de detetive ou arqueólogo: em vez de afirmar o percurso unívoco e sintético da História (history as written), o leitor está confrontado com a ambiguidade e a desordem. Terá que lidar com a pluralidade de nomes achando-se das com este e outros docentes do ILCH / Universidade do Minho, no âmbito do programa de doutoramento Modernidades Comparadas.

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perdido, tal como Hans, na “maré das interrogações” (Idem, 356) sobre o passado (past as lived)[5]; passado esse que abrange o leque de ações, decisões e oportunidades que ficaram na sombra daquele que é sintetizado na ‘grande narrativa’ da História. A crise de interpretação que carateriza a flânerie e a investigação de Hans prolonga-se até na reduplicação do objeto cobiçado – o diamante: o ‘Olho de Hertzog’ representa a oportunidade de alterar o rumo da História. No entanto, ela é desaproveitada no meio dos acasos, encontros e eventos revelados ao longo das diversas ‘estórias’ que Hans escuta, compreendendo só aos poucos a sua articulação – um detetive inexperiente, um leitor ignorante do passado. Por exemplo, ele confessa que não sabe quem é o general Koos de la Rey, levando Natalie Korenico, de proveniência inglesa, a contar “a saga do general tal como os africânderes a contam” (Idem, 232): “Montado no seu cavalo branco, De la Rey escapou a todas as armadilhas, surgiu sempre onde menos o esperavam” (Ibidem). Contrasta com este heroísmo idealizado a guerra total e destrutiva dos invasores ingleses, não poupando a população civil e levando-a a campos de concentração. É Natalie que lhe tem que contar o que ele deveria saber: o general De la Rey é obrigado a assinar, a 31 de maio de 1902, o Tratado de Vereeniging, entre o Reino Unido e as repúblicas do Transvaal e do Estado Livre de Orange, ficando, a partir daquela data, todo o território sob domínio dos vencedores, sendo denominado União Sul-Africana. Longe de ficar pelos factos, esta revisitação do passado, aparentemente ingénua, procura as possibilidades alternativas, introduzindo assim uma paradoxal dimensão messiânica, correspondendo à contradição inerente da “history as prophecy” (Wesseling, 1991) que carateriza o romance histórico autorreflexivo. Contudo, também esta dimensão messiânica não é afirmativa nem unívoca, porque surge não só como uma pluralidade de projeções sobre o futuro (para o leitor implícito: o passado) mas também como a possibilidade de uma leitura irónica. Por exemplo, basta pensar no encontro final de Hans com aquele contabilista de nome Salazar, cujo letreiro promete “Projecto de futuro alicerçado em sólidos valores. Ordem e Progresso” (Idem, 438). Hans lê este letreiro numa “última porta, mais austera, sem os arabescos que ornamentam as restantes. Uma porta incongruente num prédio como aquele, e todavia de algum modo cheirando a futuro” (Ibidem).

5 Aplicamos as categorias de Berkhofer (1995).

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Dissemos que aquele prédio que Hans não se lembra ter visto antes, faz lembrar as Cidades Invisíveis de Calvino. No entanto, o leitor também se deve lembrar daquela outra cidade que Hans tinha sonhado numa ocasião prévia: Entrávamos por uma cidade quase europeia, não fosse a cor da sua miséria. Na frente, o kommandant montado num cavalo branco e envergando o uniforme de gala, comigo por perto nas minhas nóveis funções de adjudante-de-campo. (Idem, 271)

Este devaneio da entrada triunfal do general Lettow-Vorbeck, com “as companhias de askaris alemães, impecavelmente uniformizadas e alinhadas, de espingarda ao ombro” (Ibidem), é facilmente reconhecível como aquela verídica, em 2 de março de 1919, na capital derrotada do antigo Império Alemão, cidade a mergulhar numa miséria quase não-europeia sob as severas sanções impostas pelo Tratado de Versalhes. Tal como o general Koos de la Rey, imbatível na sua campanha contra os ingleses, Lettow-Vorbeck, ele também montado num cavalo branco, será arauto de outro salvador messiânico. Entende-se a dupla ironia de Berlim como “cidade quase europeia”, na qual entram os “askaris alemães”: uma inversão que deve ser vista no âmbito deste projeto narrativo que empreende um reposicionamento de África, e em concreto da História de Moçambique e de Lourenço Marques, perante a Primeira Guerra Mundial, habitualmente narrada numa perspetiva eurocêntrica. Este projeto implica também uma abordagem das consequências da Segunda Guerra dos Bóeres, tal como a analogia entre Koos de la Rey e Lettow-Vorbeck já insinua.

2. Entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra dos Bóeres – uma perspetiva ex-cêntrica Uma parte da ação centra-se nos acontecimentos relacionados com um marco emblemático da ‘grande narrativa’ civilizacional europeia: a Primeira Guerra Mundial. Hans Mahrenholz apresenta os combates travados pela Schutztruppe[6] no território africano, onde se encontra com LettowVorbeck e posteriormente Sebastian Glück, personagem que acabará por definir o desenrolar dos acontecimentos. 6 Optamos por manter o singular original, ao contrário do entendimento (errado) de Schutztruppe como plural, no romance.

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O que a ‘grande narrativa’ marginaliza é o facto de a Primeira Guerra Mundial também ter marcado “uma viragem social e económica mas sobretudo política em África” (M’Bokolo, 2007: 385). Borges Coelho faz uma crítica à perspetiva eurocêntrica tradicional, resgatando ao mesmo tempo uma História de Moçambique. A historiografia ocidental (europeia e norte-americana) só recentemente tem abandonado a visão periférica de África neste conflito, considerando o seu próprio “maelstrom”: Indeed Britain and Germany did not formally agree to cease hostilities in East Africa until two weeks after the Armistice was signed in Europe in November 1918; and in the intervening four years Britain, India, South Africa, Belgium, Portugal and Germany were sucked into a maelstrom which radically altered the lives of millions of Africans and would result in a complete redrawing of the map of colonial Africa. (Paice, 2010: 21)

Este romance histórico autorreflexivo procura trazer para o domínio público a importância que “a luta entre as potências europeias” assumiu no território africano, pondo em causa “a suposta primazia do homem branco e, logo, um dos alicerces da própria colonização” (M’Bokolo, 2007: 385). Conforme Brugioni (2012: 399), “Borges Coelho situa a narração do conflito a partir de um espaço / tempo ex-cêntrico, baseando a sua afirmação em Bhabha (1995) e, no que diz respeito “à especificidade do conflicto mundial no território africano”, em M’Bokolo (2007).[7] Propomo-nos articular esta abordagem com o conceito de uma perspetiva “ex-cêntrica” contra o poder autoritário do discurso único (Hutcheon, 1988: 12) e com a organização dialógica ou polifónica do romance (Bakhtin, 1981). Explorando-se um pouco mais esta ideia, pode-se verificar que, ao longo da narrativa, surgem várias versões que vão sendo contadas acerca do mesmo facto. Atente-se, a título de exemplo na misteriosa personagem de Sebastian Glück. Quando o coronel aparece junto ao exército alemão, surge como alguém enigmático, de identidade ambígua. Assim, Hans fica curioso relativamente ao passado e começa a relatar supostas aventuras vividas pelo oficial, reveladas pelos seus companheiros. O médico Gasparini, o major Matthaus, o ajudante de cozinheiro Santana, entre outros, contam extraordinárias e fantasiosas histórias sobre o misterioso coronel, que parece ser ora uma figura quase mítica ora um criminoso psicopata. Além deste exemplo, podem-se também referir o testemunho do padre Sacramento da vida de Rapsides, as histórias de amor e intriga 7 Brugioni (2012: 399, nota 12)

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misturadas com as críticas à injustiça social do jornalista Albasini, entre outras. Esta combinação de vozes, que contam estórias e não escrevem a História, poderia sugerir a ligação do romance com a tradição oral da literatura africana, se não fossem sobretudo as personagens femininas vindas da Europa e da África do Sul as contadoras mais ativas: Florence, Natalie e Wally. Esta polifonia fica associada a uma revisitação do passado que explora as possibilidades que ficaram na sombra da ‘grande narrativa’, introduzindo assim uma paradoxal dimensão messiânica. Esta não se afirma de forma unívoca e até às vezes parece ironizada, tal como acontece no referido devaneio da entrada triunfal do general Lettow-Vorbeck, parodiada por outras versões: Klopper talvez se visse a si próprio montado no cavalo branco de Lettow, respondendo aos acenos da multidão com uma mão, com a outra consultando o seu relógio, seguido do seu ajudante-de-campo, o reverendo corcunda Jozua Naudé, de manto escuro drapeando ao vento; (…). (Idem, 271-72)

Estas fantasias surgem na sequência de um plano de mudar o rumo da História, conferindo um novo sentido à fuga das tropas de LettowVorbeck, uma vez que a guerra já estava praticamente decidida em território europeu: “Lettow marcharia com a sua força sobre Joanesburgo!” (Idem, 265). O artífice é Sebastian Glück que ainda fala da hipótese remota de a presença alemã na África Austral “ditar o curso dos acontecimentos na Europa” (Ibidem). O plano do misterioso Glück (em alemão: ‘sorte’) previa uma audaz confluência de diversas visões messiânicas, ‘nacionais’ no sentido lato, contra o poder opressor do Reino Unido. Este ‘D. Sebastião’ não só queria juntar a Jong Zuid Afrika que apoiava o general Hertzog, “o único político com coragem e valores para se bater pela causa do seu verdadeiro povo” (Idem, 270), mas também os africanos que sonhavam de recuperar o antigo império de Macombe: Glück reuniu-se com um dos herdeiros, Nongwe-Nongwe, acompanhado por Mbuya, “uma feiticeira muito jovem, encarregado de receber de Kabudu Kagoro, o grande Deus local, as mensagens que transmitia aos combatentes” (Idem, 262): “(…) nessa noite tivera um sonho, um sonho em que vinham de longe grandes guerreiros para os ajudar a vencer o Diabo” (Ibidem). Embora todo este plano – que tem movimentações historicamente documentadas como base – tenha ficado reduzido a uma construção geopolítica imaginária perante o Não categórico de Lettow-Vorbeck que não

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se deixa manipular por Glück, o seu valor para uma historiografia alternativa, aberta às oportunidades desaproveitadas é inegável. O general alemão, focado na Europa, nega a possibilidade de uma união entre os Bóer dissidentes da União, os askaris alemães e os povos da Zambézia contra a hegemonia britânica, o que teria tido como consequência um reposicionamento de Moçambique para uma maior centralidade, entre Europa e África do Sul. É uma alternativa aliciante perante a História colonial portuguesa que, no outono de 1917, declara concluída “a ‘pacificação’ da Zambézia, desta vez de forma definitiva – até à moderna guerra pela independência” (Alexandre, 1998: 190). É nesta encruzilhada da História entre a pluralidade dos poderes e a consolidação da hegemonia britânica que a reduplicação do objeto cobiçado – o ‘Olho de Hertzog’ – adquire significado político por representar a esperança de alterar o rumo. No entanto, é a noite “daquele fatídico 16 de Setembro” (Borges Coelho, 2010: 234) que deita as ilusões por terra. Por um acaso ou pelo destino[8], mais uma questão de interpretação, acontece um singular cruzamento entre a trajetória final de um gang de ladrões que se tornou famoso na África do Sul e a movimentação de militares da nação africânder, contrária à ‘grande narrativa’ da União Sul-Africana. O general Koos de la Rey, talvez no caminho de se juntar à revolta contra a União (Idem, 288), procurando a aliança com as forças alemãs em vez de entrar ao lado dos britânicos no Sudoeste Africano Alemão, e o bandido Bill Foster com os seus companheiros, após o cerco policial finalmente acurralados dentro de uma gruta em Joanesburgo, morrem na mesma noite de 15 para 16 de setembro de 1914. “Os dois enterros ocorreram no mesmo dia, quase em simultâneo. Um envolto em pompa e circunstância, o outro mais modesto, assistido apenas pela família Korenico” (Idem, 289). Este cruzamento revela-se como um dos maiores nós na teia das biografias, todas elas caraterizadas por um milagre, um renascimento ou uma segunda vida que se acrescenta a identidades historicamente documentadas. Portanto, uma componente de missão ou predestinação perpassa todas as narrativas. Por um motivo ou outro, todos eles recebem a ‘chamada’ de se encontrar em Lourenço Marques, neste centro periférico (cf. Brugioni, 2012: 392) no eixo entre Europa e África do Sul, tornando-se “uma cidade de espelhos onde os acontecimentos que pareciam definitivos não passam 8 Através da narrativa de Florence sobre o vidente Siener van Rensburg (Idem, 284-285), uma figura histórica, introduz-se a dimensão messiânica / apocalíptica da História.

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afinal de um mero reflexo de verdades sempre novas, escondidas dentro dele” (Idem, 291). Natalie é quem melhor encarna o renascimento que o romance confere a algumas das personagens. Nascida como Martina Korenico em Brighton, apaixona-se na sua juventude por William Foster, futuro líder de um gang de ladrões. Juntamente com John Maxim e Carl Mezar leva a cabo um conjunto de assaltos que acabariam por ditar o seu fim dentro da mencionada gruta em Joanesburgo. Decidem então pôr fim à sua vida. Não sem antes Bill pedir para ver uma última vez a sua esposa, agora Peggy Foster. É então que se ouvem fora da gruta três tiros e, após entrarem, os polícias encontram os corpos de Foster, Maxim, Peggy e Carl que foi o primeiro a ser alvejado por Maxim, a seu pedido. Os pais de Peggy, ao saberem do sucedido, pedem ao detetive para levarem o corpo da filha de volta para casa, para poder ser sepultada. O detetive acede e na viagem para casa dos Korenico descobrem que Peggy afinal estava viva. É aqui que a narrativa lhe confere a tal segunda vida, pois nos relatos oficiais (vd. Davie, 2003) esta tinha realmente falecido conjuntamente com todos os outros membros do Foster Gang, como ficou conhecido em Joanesburgo. Após o sucedido, nasce a nova identidade de Natalie Korenico que acaba por viajar para Lourenço Marques, tal como o seu amante sempre tinha desejado. Este exemplo mostra como o romance questiona, de forma criativa, a relação entre a representação e os factos. Tudo isto vai de encontro ao que Hayden White refere na sua obra Metahistory (White, 1973). A sua conceção de obras históricas como narrativas literárias, sem serem declaradas como tal, funde a distinção entre História e ‘estória’, pois enquanto as narrativas históricas são construídas a partir de factos reconhecidos, precisa-se necessariamente de se recorrer à imaginação para organizar esses mesmos factos numa história coerente, sempre tendo em conta as estratégicas metafóricas e ideológicas utilizadas para explicar o passado (Munslow, 1997: 9). Daí White referir que a ciência histórica falha quando o seu objetivo é a reconstrução objetiva do passado. Com a estratégia narrativa de um cruzamento entre a História e biografias parcialmente inventadas, o Olho de Hertzog aproxima-se também do conceito de “metaficção historiográfica” apresentado por Linda Hutcheon (1988: 97). O romance procura passar a ideia de que a História não pode ser vista nem construída de uma forma tão unívoca e linear, e ao extrapolar todas as narrativas, quer com pessoas, quer com acontecimentos, O Olho de Hertzog redefine o lugar de Moçambique na História. No seguimento desta ideia, é

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oportuno referir a introdução intertextual de narrativas que vão fornecendo informações que se assumem como fundamentais para a construção do romance, como se os testemunhos, conforme apresentado por Beatriz Sarlo (2005), se provassem fundamentais para a construção das chamadas narrativas dominantes. É o caso das memórias do general Lettow-Vorbeck[9] que se tornaram populares sob a versão encurtada Heia Safari! Deutschlands Kampf in Ostafrika (1920). Sob a perspetiva que aqui desenvolvemos, a nota prévia das memórias é elucidativa: Os meus próprios apontamentos perderam-se em grande parte, e faltou-me tempo livre (…) para debruçar-me em pormenor sobre a campanha em África Oriental. Assim só posso fornecer indicações incompletas. No essencial, tenho que confiar na minha memória e no que eu próprio vivi. Alguns erros são inevitáveis.” (Lettow-Vorbeck, 1920: VI)

Nos anos trinta, proliferam ficções historiográficas em torno das lutas dos alemães na África Oriental, nomeadamente do escritor popular Friedrich Wilhelm Mader.[10] Nas memórias de Lettow-Vorbeck não aparecem nem Sebastian Glück nem Hans Mahrenholz. Desconhecemos se o fazem num destes romances.

3. O jogo das identidades e o reposicionamento De facto, quando se lê O Olho de Hertzog, as dúvidas são constantes. Quem é Hans Mahrenholz e o que procura? Que segredos esconde Rapsides? De que forma é que as histórias de todas as personagens se interligam entre si e de que modo necessitam umas das outras para fazerem sentido? Veja-se, a título de exemplo, o caso do protagonista e narrador da história: Hans Mahrenholz, antigo oficial alemão, membro da Schutztruppe, surge em Lourenço Marques como Henry Miller. Primeiro, como empresário à procura de oportunidades de negócio e, posteriormente, como jornalista do Rand Daily Mail, com vista a elaboração de uma reportagem sobre as condições de recrutamento dos trabalhadores das minas. 9 Na realidade, em grande parte escritas pelo seu adjunto Walter von Ruckteschell cujo contributo oficialmente se cinge às ilustrações (Schulte-Varendorff, 2006: 104). 10 Am Kilimandjaro. Abenteuer und Kämpfe in Deutsch-Ostafrika; Vom Pangani zum Rowuma; In unbekannte Fernen. Deutsche Heldentaten in Portugiesisch-Ostafrika und in Rhodesien. Não há datas exatas da publicação destes três primeiros volumes da série Die Helden von Ostafrika [Os heróis de África Oriental], Stuttgart; Berlin, Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft.

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ANTÓNIO MOTA

Sabe-se que existiu historicamente um oficial alemão com o nome de Hans Marholz que fez parte da missão do Afrika Luftschiff, sob o comando de Ludwig Bockholt, apesar de ser oriundo de Königsberg e não de Hamburgo. É dois anos mais velho do que o próprio capitão Bockholt, também presente no romance. O romance confere a esta personagem uma reincarnação sob um nome ligeiramente diferente, uma nova vida, cujo destino é de se integrar numa História alternativa centrada no continente africano. A viagem apócrifa do Afrika Luftschiff é paradigmática no sentido do reposicionamento que o romance empreende e pode ser entendida como narrativa inaugural deste estratégia, depois repetido com outras personagens. Depois de um primeiro voo de teste, o embarque de Mahrenholz / Marholz ocorre em Jamboli, na Bulgária, “a base alemã mais próxima do continente africano” (Borges Coelho, 2010: 51), em 21 de novembro de 1917, para uma viagem oficialmente sem regresso: “Em África não havia condições de reabastecer o Afrika Luftschiff de combustível e gás para tornar possível a viagem de regresso. [...] O aparelho seria desmantelado à chegada” (Idem, 49). Já estas indicações, historicamente documentadas, deixam entrever a intenção de re-funcionalizar um episódio secundário no contexto geral do desastroso desempenho militar dos dirigíveis do Império Alemão que, no início da Grande Guerra, tiveram a fama de ‘arma milagrosa’. Tal episódio torna-se ocasião – historicamente possível – para a ‘iniciação africana’ de um dos tripulantes: Hans Marholz ficcionalizado em Hans Mahrenholz. O projeto de uma viagem sem regresso para África adquire para o Eu nesta ficção historiográfica uma “natureza mais profunda, ganhando características de verdadeira partida, um definitivo mergulho na escuridão” (Idem, 49). Esta imagem de “mergulho” reaparecerá continuamente ao longo da narrativa da missão – historicamente abortada – de abastecer as forças dizimadas e exaustas de Lettow-Vorbeck na África Oriental com armamento e medicamentos: “Quanto a mim, o que é também de algum modo estranho, sentia cada vez mais forte a vontade de seguir em frente, de mergulhar” (Idem, 53). Esta vontade entra em conflito com a versão histórica do voo a partir do momento que o rádio recebe do Almirantado o comando de regressar, por não haver condições de realizar a missão de apoio às tropas de Lettow-Vorbeck. Esta mensagem já deveria ter chegado antes, porque a decisão foi tomada três horas e meia após a partida do L-59 (assim o nome de fábrica do dirigível). No entanto já era impossível transmiti-la a partir de Jamboli, havia necessidade de utilizar a potente estação-rádio de Nauen,

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perto de Berlim, que só na noite do dia 22 para o dia 23, às 0.45 horas, conseguiu transmitir o telegrama.[11] Em vez de obedecer “a voz roufenha de Nauen apelando a que regressássemos a casa” (Idem, 57), conforme a versão histórica, o comandante Bockholt do romance “continuava a pretender levar a missão até ao fim” (Ibidem), mesmo perante a insubordinação de uma parte da tripulação. É neste momento, que surge Mahrenholz (já não idêntico com o Marholz histórico) “ao lado do comandante”: “Como disse, há muito a minha decisão estava tomada, nada me faria voltar atrás” (Idem, 59). Mahrenholz consegue convencer Bockholt em prosseguir “em direcção ao sul por mais seis horas, após o que eu saltaria com algum equipamento e eles dariam meia volta, de regresso a casa ainda em condições de serem bem-sucedidos” (Idem, 60). Este salto de paraquedas de facto estava previsto no projeto inicial da viagem, a ser executado por outro tripulante, Emil Grussdorf, que se voluntariou para esta missão muito arriscada: uma vez na mata, ele deveria procurar entrar em contacto com as tropas de Lettow-Vorbeck e preparar, junto com os soldados, o local de aterragem. No romance, é Mahrenholz que assume esta “operação estranha” (Idem, 62), disfarçando de heroísmo militar o seu projeto pessoal ainda difuso de ficar em África: “(…), e finalmente, com um aceno geral de despedida, mergulhei no espaço” (Ibidem). Este voo de seis horas – historicamente indocumentado, no entanto imaginável – transforma o L-59 numa “espécie de navio fantasma sobrevoando um espaço que não constava nem na geografia nem sequer no tempo” (Idem, 62). A prolongação, contrária da versão oficialmente comprovada (fig.1), possibilita uma articulação do espaço geográfico e do tempo histórico de Moçambique com uma Europa que sente a atração de África como novo centro e como oportunidade de uma segunda vida, como demonstram as biografias inventadas de outras personagens, nomeadamente Valerie “Wally” Neuzil, a primeira modelo e musa de Egon Schiele. À imagem de Hans, também esta pintora austríaca, tradicionalmente vista na sombra de Schiele, teve direito a uma ‘segunda vida’, sentindo a chamada de África, no seu caso através de um quadro de Picasso, supostamente influenciado pela arte africana (Idem, 243).

11 Um relato pormenorizado fornecem os estudos de Golf Dornseif (s/d) e Karl-Wilhelm Schäfer (2006). Um primeiro testemunho é publicado pelo médico Maximilian Zupitza (1919), personalidade com grande experiência em África Oriental e mentor do plano de socorrer a LettowVorbeck utilizando um zepelim. Não se sabe porque Borges Coelho escolheu o apelido “Vucic”, para designar a personagem do “médico de bordo”.

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Fig. 1 Fonte: http://www.frontflieger.de/fflgfoto/2-l059_afrika.jpg

Portanto, esta prolongação do voo inaugura o reposicionamento do qual falámos. No romance, o regresso do zepelim L-59 – que na História militar alemã completa o episódio, tradicionalmente mitificado como façanha em termos tecnológicos e afirmação nacional (vd. Goebel, 1925, entre outros) – simplesmente deixa de ter relevância[12], porque o que interessa é o ‘mergulho’ de Mahrenholz como entrada sem regresso em África. Ao mesmo tempo, isto significa uma articulação ex-cêntrica entre modernidade europeia e mundo africano colonial, não só no sentido de Homi Bhabha, mas também de Bakhtin: Mahrenholz pode ser visto como protagonista de uma ‘estória’ na tradição satírica de Icaromenipo, tal como o Padre Bartolomeu com a sua passarola sobrevoando as obras da construção do Convento de Mafra no romance Memorial do Convento. Tal como no caso do romance de Saramago, interessa como a perspetiva ex-cêntrica é capaz de interrogar a narrativa dominante, reinterpretando-a através da extrapolação do historicamente imaginável: como procurámos comprovar, o voo do zepelim não é simplesmente o ele12 Historicamente, o L-59 regressa na manhã do dia 25 de novembro de 1917 a Jamboli, após 95h50 de voo – próximo do record anterior do LZ-102 de 105 horas sobre o Mar Báltico. Conforme os documentos, o zepelim ainda tinha combustível para 20 horas de voo. Numa missão posterior, em 7 de abril de 1918, o L-59 é abatido pelos ingleses ao Este da Itália sobre o Mar Mediterrâneo (estreito de Otrando). Hans Marholz encontraria nesta missão a sua morte, tal como os seus companheiros da tripulação, quase a mesma da lendária “Afrika-Fahrt”.

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mento fantasioso ou misterioso que complementa, num sentido romântico, o “plano da realidade” (Saraiva, 2010: 237) da guerra na África Oriental, cumpre sim o papel inaugural de um reposicionamento que abrange toda a metafição historiográfica. Há uma coincidência histórica perfeita: as tropas de LettowVorbeck atravessam o Rowuma na manhã do dia 25 de novembro de 1917 (Lettow-Vorbeck, 1920: 207). A chegada de Hans junto do general imbatível é entendido como “duplo milagre” (Borges Coelho, 2010: 46), abrindo a dimensão messiânica retomada por Sebastian Glück (Idem, 366-67), quando confia ao jornalista Henry Miller a missão da procura do ‘Olho de Hertzog’.

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[recebido em 17 de julho de 2014 e aceite para publicação em 21 de novembro de 2014]

Recensões

OS MEMORÁVEIS Lídia Jorge, Lisboa, D. Quixote / Leya, 2014 Isabel Cristina Mateus* [email protected]

Lídia Jorge é uma daquelas escritoras que consegue surpreender os leitores em cada novo livro: desde O Dia dos Prodígios (1980) em que nos deu a conhecer o mundo mítico, e ao mesmo tempo tão real, de Vilamaninhos (isolado e imune aos ventos de mudança soprados pela Revolução de Abril), que a sua escrita vem revelando, de romance para romance, uma notável capacidade de reinvenção e um não menos notável caleidoscópio de olhares sobre a realidade portuguesa. Sem ceder à tentação da moda ou à lógica imperativa dos mercados, a sua escrita singularíssima impôs-se nacional e internacionalmente, como o comprova, para além dos importantes prémios recebidos, o

destaque concedido pela revista Le Magazine Littéraire, em 2013, ao eleger o seu nome como uma das “10 grandes vozes da literatura estrangeira”, ao lado de escritores como Orhan Pamuk, Alice Munro, Enrique Vila-Matas. Ou o facto de a escritora ter sido este ano a homenageada da sexta edição da Escritaria, em Penafiel, evento literário que conquistou já foros de acontecimento nacional, de verdadeira festa da literatura.[1] Vêm estas observações a propósito da publicação do último romance de Lídia Jorge neste ano de comemorações da Revolução portuguesa, mesmo se a autora não procurou (como publicamente afirmou) esta coincidência. Feliz

* Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal. 1 Esta recensão surge na sequência da apresentação do romance Os Memoráveis que teve lugar na Biblioteca Pública de Braga, a convite do Conselho Cultural da Universidade do Minho, em 7 de Maio de 2014.

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coincidência, dir-se-ia, já que Os Memoráveis constituem a mais portentosa pintura mural com tinta de palavras, a mais poderosa, profunda e desassombrada análise sobre a Revolução de Abril até hoje feita na literatura portuguesa. O romance arrisca seriamente, como escreveu Miguel Real[2] no JL (16.04.2014), “tornar-se para o 25 de Abril como Viagens na Minha Terra para o Liberalismo, Os Maias para o Constitucionalismo Liberal fontista, Húmus para a Iª República e O Delfim para o Estado Novo”. Como primeira nota de leitura, importa sublinhar a novidade do ponto de vista encontrado para contar a história desse que foi, nas palavras de Sophia, o “dia inicial inteiro e limpo”. Novidade que consiste não num olhar a partir do passado sobre o qual escorre a melancolia do presente, mas antes num olhar a partir do futuro, a partir de um tempo em que a memória da “metralha das flores” já quase desapareceu. O leitor é assim confrontado com um olhar puro, de certa forma inocente, de uma geração que não viveu os acontecimentos ou que, tendo-os vivido, deles pouco se lembra ou deles se distanciou. Uma história contada à distância, em perspectiva, a partir de um olhar exterior, em certo sentido estrangeiro, sob a forma

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de documentário encomendado pela cadeia televisiva americana CBS à jornalista portuguesa Ana Maria Machado. O documentário, a pedido do embaixador americano em Washington (ex-embaixador em Portugal logo a seguir ao 25 de Abril e, por esse dado histórico, passível de identificação com Frank Carlucci), deveria constituir o primeiro episódio da série “A História Acordada” cujo objectivo seria dar a conhecer um daqueles raros momentos em que o “anjo da alegria” passa pelo mundo e a história da incessante maldade humana, por breves instantes, se suspende. Para o embaixador, a revolução das flores cujo nome não recorda (“How awful, it´s carnations, of course, dear Bob!, p.19), ao som da batida dos passos de uma canção country, é um desses momentos extraordinários, um intervalo ou “rasgão no tempo” que merece ser contado para memória futura (a memória é, com efeito, um tema central para a autora que ainda recentemente afirmou “só querer ser uma cronista do tempo que passa”[3]). De regresso a Portugal, em colaboração com dois antigos colegas de faculdade, Margarida Lota e Miguel Ângelo, a jovem repórter de guerra irá entrevistar vários protagonistas dessa noite e madrugada memorá-

2 “Um Dia Puro”, Jornal de Letras, 16 a 29 de Abril de 2014, p. 28. 3 Escritaria, 5 de Outubro de 2014.

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veis, na tentativa de captar a pureza original daquele momento único em que se abriam todos os possíveis e todos os futuros, momento que convocou os deuses da beleza, do bem, da solidariedade e da esperança. A equipa de jornalistas terá como ponto de partida da investigação (e de construção do argumento) uma fotografia datada de 21 Agosto de 1975, mais de um ano decorrido sobre os acontecimentos: a fotografia de um jantar no restaurante Memories que reúne alguns dos principais actores e testemunhas da revolução, com desenho e legendas no verso da actriz Rosie Honoré, e resgatada por Ana Maria da poeira que cobre a estante do escritório do pai. Sem que a jornalista o saiba, o instantâneo de Tião Dolores (Sebastião Alves) constitui, de algum modo, a “Última Ceia” fotográfica do “dia original”: nele estão presentes não apenas os “apóstolos“ da revolução, como nele se fixa e oculta um segredo, um momento que a investigação virá revelar ter sido decisivo, também ele memorável, para a viragem no curso da Revolução. Da mesma forma que nele se oculta e, paradoxalmente, dá a ler, a narrativa das origens de Ana Maria, o capítulo inicial da sua (auto)biografia ou nela se reflecte a sombra e o silêncio da relação com o pai, reputado jornalista no meio lisboeta.

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Partindo de um registo testemunhal (que a escrita de Lídia Jorge frequentemente convoca), a investigação procurará reconstituir a narrativa desse momento de euforia colectiva, a crónica dessa utopia primordial, traçar a sua cartografia no tempo e no espaço, acompanhar os gestos dos seus actores, num constante estilhaçar e entrelaçar de histórias na História que mantém o leitor suspenso. Tudo isto ao ritmo das grandes séries televisivas americanas e através do olhar neutro, nómada e distanciado de Ana Maria, em permanente desacerto com o relógio parado do seu país e com o relógio familiar. Através, igualmente, do olhar aberto sobre o mundo, sobre o mundo global que é o nosso (e destes jornalistas, em particular) mas também sobre o mundo europeu e internacional, sobre os Estados Unidos ou os países árabes, abertura que é, mesmo se provisoriamente, uma das conquistas da Revolução de Abril: o momento em que deixámos de ser um país periférico, uma “toalha” estendida e esquecida à beira mar da “praia lusitana”, para nos tornarmos o ponto focal do olhar do mundo. Ao longo deste processo de recuperação e de re-escrita da memória, a equipa de jornalistas procederá àquilo que podemos chamar “leitura da poeira”, procurando limpar, como Ana Maria faz à fotografia do escritório do pai, o pó acu-

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mulado pela passagem do tempo, removendo ou decapando nesse gesto, como se fossem de tinta, as camadas de poeira que lentamente ocultaram a matéria e cor originais, desocultando histórias à espera de ser contadas (a repórter de guerra, convém notá-lo, “aprend[era] no deserto que na poeira se encontram escritos livros inteiros”, ela, a quem um velho árabe ensinara “que toda a vida passada e toda a vida futura se encontram escritas no pó”, p. 59). Leitura do pó, decifração de signos e de sulcos inscritos no tempo, arqueologia da memória que, não evitando a melancolia do arquivo (fiel e exemplarmente percorrido pela autora neste romance), faz igualmente apelo à imaginação, à ficção e, de um modo genérico, à arte como auxiliares indispensáveis na reconstituição do passado: porque a ficção, como a arte, é a câmara que melhor nos retrata por dentro, a sonda das nossas mais invisíveis e indizíveis sombras, a ilusão que nos redime e nos reconcilia com o tempo. O que torna particularmente significativa a leitura teatral inscrita nos desenhos e legendas de Rosie Honoré no verso da fotografia do Memories registando o momento único, “tendo sido todos muito felices”. Rosie, a actriz que “não vivia no teatro do mundo, vivia o mundo do teatro” (p. 54), simultaneamente actriz e espectadora no palco dos acontecimentos. Inscrevendo a ilu-

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são no palco da história, o espelho na realidade, os nomes dos actores e os petits noms do mito. À procura da história original, do “coração da fábula”, a equipa de jornalistas registará o testemunho do Oficial de Bronze cuja prodigiosa memória não apenas reconhece a fotografia do Memories (que, de resto, nunca vira), como é capaz de reconstituir o local, as circunstâncias, os gestos, de desocultar sinais e fios narrativos: “Tenho a certeza, foi tirada a vinte e um de Agosto de setenta e cinco, aposto a minha mão direita. (…) Garanto-vos que esta foi uma noite em que factos extraordinários aconteceram” (p. 92). Escutando o guardião da memória, os repórteres julgarão estar “a ouvir a história a escrever-se a si mesma” (p. 93). Todavia, ao longo da investigação, os repórteres-detectives irão cruzar-se e confrontar-se com os tantos outros olhares dos entrevistados e testemunhas dos acontecimentos, num perspectivismo que permitirá uma constante, e nem sempre pacífica, re-avaliação, interrogação e re-interpretação dos factos. Dessa forma, serão confrontados com a desfiguração introduzida pelo tempo, com um conjunto de personagens que vivem o presente como um lugar de exílio, desterrados na névoa de melancolia e de irrealidade que sobre eles o tempo teceu: o chefe Nunes reme-

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tendo-se ao mutismo do presente, mas adquirindo voz no relato do filho que há-de evocar o grito de júbilo do pai ao ver avançar as colunas militares na manhã de Abril: “Levem-me a mim, pessoal, arranquem-me a cabeça do corpo e façam dela uma bala”; o Major Umbela escondendo a sua mão direita e arrastando-se em processos jurídicos contra aqueles que lhe sujaram a honra; Salamida fechado no seu quarto de eterno adolescente à procura de uma senha futura, uma nova canção; o fotógrafo Tião Dolores despedindo-se do seu acervo fotográfico para não ceder à miséria. A viúva de Charlie 8 procurando manter viva a memória do marido num país que atribui pensões a antigos membros da polícia política mas recusa atribuí-la a Charlie 8 porque “os seus actos de abnegação e coragem cívica não cabem no artigo 444, barra, oitenta e dois”. Ou mesmo El Campeador, pairando já nas brumas do mito, montado num cavalo lusitano, à beira mar, em pose de estátua equestre para um filme que ninguém realizará. São personagens quixotescas, algumas no limiar da loucura, todo um cortejo de humanas fraquezas, contradições, vaidades, hipocrisias, silêncios, traições, que permite interrogar, por dentro, na penumbra da intimidade, o curso dos acontecimentos da madrugada de Abril.

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Nesse processo de descoberta vão passando do desconhecimento inicial a um deslumbramento progressivo que Margarida Lota, com a sua inteligência e sensibilidade, corporizará. Quando Ana Maria lhe pergunta, no final das entrevistas, se “está feliz”, Margarida responde: “Como não, se eles falam verdade? Podem não coincidir nos detalhes, mas coincidem nos factos principais, e isso é quanto basta” (p. 299). Num percurso que é também de aprendizagem identitária, individual e colectiva, o encontro com o passado traz consigo a pacificação no presente, o gérmen do futuro: Margarida envolver-se-á com Salamida, desejando que dessa relação possa nascer um filho, semente de Abril que há-de florescer no futuro. Da mesma forma que Ana Maria acabará por vencer o fosso de silêncio edipiano que a separa do pai, compreender o drama que o esmaga e evitar, pela palavra, a tragédia anunciada: “Abra, por favor, abra. Pedi, durante duas horas, em voz baixa, para que os vizinhos não ouvissem. Depois pedi alto, e pedi de todas as maneiras que sabia e de que era capaz. Pedi-lhe continuadamente, para que nunca deixasse de ouvir uma voz que o chamava. Disse-lhe, através da porta, todas as palavras que nunca lhe tinha dito. (…) Eu não podia deixar o meu pai. Agora sim, eu tinha chegado ao coração do cora-

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ção da fábula. E ela me retinha para si” (p. 329). O romance Os Memoráveis é assim uma forma de resgatar do deserto de poeira que o tempo foi acumulando, da teia de interpretações e de contradições, dos perigos e fascínios do mito, os nomes e os rostos dos actores do ‘milagre português’. Sem incorrer na tentação fácil da epopeia e do culto dos heróis, antes sublinhando a sua humana condição (gesto simbólico patente na Escada de Jacob que Ana Maria desce para retirar da estante do pai a foto do jantar), evitando o registo dramático (trágico ou cómico), procurando antes o registo lírico, emotivo, intuitivo: no fundo, aquele que melhor pode dizer o dia em que “a poesia saiu à rua”, parafraseando os célebres versos de Sophia que a pintura de Vieira da Silva transformará numa das imagens simbólicas do 25 de Abril.

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Uma narrativa lírica, capaz de iluminar, com a sua visão interior, o propósito documental que subjaz à criação da série, capaz de auscultar e de sentir o latejar dos conflitos e dramas individuais como só a literatura pode fazer. Uma narrativa capaz de dar rosto e nome aos cinco mil homens que, na madrugada de Abril, “estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador da história”. Dando corda a esse relógio que, no arco da Rua Augusta, parecera parado a Charlie 8, ao olhar para trás, quando a coluna militar avançava em direcção ao Carmo. O mesmo relógio que há-de vir a ser a imagem de abertura do documentário da CBS, produzido por Bob Peterson, cujo guião encerra o romance. Numa palavra, uma narrativa capaz de combater as sombras e tornar esses homens Memoráveis, antes que sobre eles caia o manto do esquecimento, a poeira do deserto, a abstracção do mito.

(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)

L’ÉROTISME AU MOYEN ÂGE. LE CORPS, LE DÉSIR, L’AMOUR Arnaud de la Croix, Collection TEXTO, dirigée par Jean-Claude Zylberstein, Paris, Éditions Tallandier, 2013, pp. 168 Sérgio Guimarães de Sousa* [email protected]

É hoje razoavelmente consensual, sobretudo depois da insistência de estudiosos de primeiro plano (Alain de Libera, Umberto Eco, Jacques Riché, Georges Duby, Jacques Heers, Jean Verdon, entre outros), que o entendimento sobre a Idade Média, por vezes muito injustamente desprezada, é o que deslegitima o juízo restritivo de uma equivocada percepção unívoca da sua representatividade sócio-histórica em favor de uma aferição múltipla e não raro contraditória do seu imaginário. Sabe-se, pois, que a Idade Media, do ponto de vista civilizacional, não se esgota num suposto obscurantismo, antes se afirmou na cartografia do conhecimento e das artes como um cronótopo vigoroso e complexo e, por extensão, propício à coexistência de formas várias e com diversos

momentos maiores. Não é de resto preciso especial acutilância crítica para compreender que nenhum arco temporal multissecular, como foi o do vasto período medieval, poderia funcionar na proporção de um bloco monolítico de crenças e práticas. Talvez a melhor estratégia para perceber as coordenadas desta questão entre realia e representações seja historicizá-la, como fez de forma enfática Arnaud de la Croix, em torno do tema do erotismo, pondo a nu precisamente certas infelicidades hermenêuticas resultantes da multiplicação de discursos estereotipados e convencionais em detrimento do real empírico. Objetar-se-á decerto que semelhante tema possa eventualmente afigurar-se algo discutível tendo em consideração o sentido da

* Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

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realidade histórica da Idade Média. Sentido cuja razão primordial e substantiva pressupõe, digamo-lo desta maneira, um tempo homogeneizado por uma irredutível ideologia religiosa. Ou seja, tratou-se de um contexto decisivamente saturado por um pendor religioso presente a todos os níveis; e, como tal, legitimador de particularismos culturais pouco consentâneos com a expressão de pulsões libidinais. Neste sentido, o desejo erótico-sentimental mais não seria, enfim, do que uma manifesta decadência, senão mesmo ruína, do edifício civilizacional da unidade espiritual conatural à mentalidade medieval. Mas em bom em rigor as coisas não foram assim tão líquidas. Porque a ser deste modo, teríamos, em consequência, de rasurar as várias declinações medievais do corpo, do desejo e do amor. Declinações que a obra de Arnaud de la Croix põe, e bem, em relevo e através das quais – forçoso é reconhecê-lo – os medievais segregaram uma poderosa presença de erotismo: a sensualidade eloquentemente cantada pelos trovadores em finais do século XI, a proliferação da obscenidade esculpida em monumentos ou ainda a irrupção de ritos carnavalescos com uma ostensiva sexualidade pulsional emanada de tradições populares, etc. Aliás, numa frase lapidar e assaz reveladora (pelo seu teor con-

SÉRGIO GUIMARÃES DE SOUSA

clusivo), diz o autor: “Il n’y a pas de modèle sexuel au Moyen Âge. Seulement des modélisations multiples du désir” (p. 146). E antes disso: “[...] le gai savoir érotique inventé au Moyen Âge relève de l’ambivalence, c’est-à-dire du mélange des genres. Les fabliaux participent à la fois de l’obscénité et du raffinement, la lyrique occitane mêle continuellement sentiment et sensualité, la rencontre mystique avec le divin se manifeste dans le corps des femmes en proie au Seigneur pénétrant, une nonne allaite un singe en marge du roman de Lancelot, les cloîtres sont habités par des monstres de Pierre. Alors l’esprit vivifie la chair. Et le corps a une âme” (pp. 145-146). Lírica trovadoresca (com a fin’ amor), matéria da Bretanha e mitologias celtas, narrativas como a de Guillaume de Lorris e Jean de Meun (Roman de la Rose), sexualidade popular exibida em textos, esculturas e desenhos obscenos, eis desde logo a traços largos o percurso, segundo o autor, que se oferece ao rastreio do erotismo medieval e pelo qual se torna possível “appréhender les innovations concernant la manière de concevoir le désir amoureux, dans la mesure où l’inventivité médiévale nous paraît très riche en ce domaine, et peut-être susceptible de nous inspirer, aujourd’hui, dans un sens inattendu” (p. 17). De outro modo: a herança medieval, no que ao desejo diz respeito, não se afigura

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incómoda ou anacrónica. Dir-se-ia até, tudo bem visto, desejavelmente atualizável. Seja como for, o certo é que o estudo das fontes histórico-literárias se torna indispensável para quem desejar revisar este património. É o que faz Arnaud de la Croix com inegável mérito histórico-linguístico e filológico ao debruçar-se, com atenção e com não menos demora, sobre textos fundamentais do repertório erótico-sentimental medieval, como é seguramente o caso, afora uma porção da lírica trovadoresca, do Tratactus de Amore, de André Le Chapelain (Cap. “Dorée d’Amour”). E se neste tratado de referência o autor não só recenseia o modo (cínico e humorístico) como é teorizado o código amoroso oriundo da cortesia como ainda compagina a obra com o tratado anterior, De l’amour et des amants, de Ibn Hazm (inícios do século XI), detetando notórias analogias estruturais, não é menos evidente o interesse de Arnaud de la Croix em relevar existentes textuais muito nitidamente contaminados por um flagrante erotismo. Designadamente o florescimento, em sede eclesiástica, de uma mística, essencialmente feminina, assaz tributária tanto da lírica cortês como do Cântico dos cânticos (Cap. “Éros mystique et féminin”). Mística feita de visões e êxtases, “où se nouent de brûlantes épousailles avec le divin” (p. 17). Ou então, já

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distante das efusões místicas, “les fabliaux du XIIIe siècle où le sexe s’affiche crûment, les chansons sensuelles des golliards, l’obscénité de nombre de sculptures et gargouilles, comme les curieux dessins qui figurent dans les marges de textes sacrés ou profanes, évocant une sexualité différente, liée à la tradition orale, au paganisme antique ou à des croyances populaires très peu chrétiennes” (Ibidem). (Cap. “Séxualité populaire”). Como é consabido, uma das especificidades filológicas do texto medieval consiste na contaminação, se nos for permitido dizê-lo assim. O mesmo é referir que se cada texto é suscetível de engendrar variantes, revisões, versões, recriações, reutilizações, etc., igualmente é capaz de provocar retomas e paródias. Destas interferências múltiplas não deixa de nos dar conta o autor: “En réalité, ces différantes conceptions de l’amour [lírica trovadoresca, ciclo arturiano, expressões místicas, etc.] et de la sexualité, d’une surprenante diversité, n’ ont cessé d’interférer les unes avec les autres. Certains fabliaux miment par endroits les romans arthuriens en les parodiant, les femmes mystiques empruntent à la lyrique des troubadours et des trouvères leur vocabulaire érotique, les Carmina Burana dénoncent l’hypocrisie des prêtres s’abandonnant aux appétits du corps qu’exaltent, cependant, les

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goliards, et Umberto Eco soupçonne les théologiens rigoristes de vilipender ce qui justement les séduit” (pp. 140-141). E tudo isto assim acontece porque: “Loin du consensus, de la pensée unique, du politiquement (et sexuellement) correct contemporain, les hommes du Moyen Âge ne craignent pas de dire haut et fort que les sexes sont différents, que les appétits du corps ne sont pas identiques aux élans de l’âme, ou combien les vilains, les bourgeois, les clercs et les chevaliers n’ ont pas les mêmes intérêts” (p. 141). Por outras palavras, o homem medieval, por muito religioso e espiritual que fosse, não se coibiu de percepcionar o corpo e os desejos que este engendra como coisas tangíveis e fenomenais. A cultura dominante da Igreja, segundo a qual a vida de leigos e religiosos se supunha irredutivelmente impoluta, não o inibiu de manifestar o desejo e, com isso, de contrariar o repúdio pelo prazer apregoado por esta. Exemplo suficiente disso é sem dúvida a lírica trovadoresca. Se compararmos com a Antiguidade Greco-Latina, salta logo à vista que os trovadores colocaram a relação homem/mulher fora da clássica dominação masculina, já que o homem, por interposta presença da voz enunciativa das cantigas de amor, presta, como sabemos, vassalagem à dama, interpelada de resto como Senhor (senha genérica que diz bem da transpo-

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sição das relações político-institucionais feudo-vassálicas para o campo amoroso), e depende da sua boa vontade. Diferentemente, na Antiguidade Clássica, o homem era não raramente equiparado a um caçador, sendo reservado à mulher o papel passivo de presa. Mais tarde, nos Lais, o caçador volve-se em objeto da caça, ao ver-se irremediavelmente cativado pela irresistível sedução de uma mulher que irrompe no lugar do animal que julgava perseguir. Na lírica medieval, em suma, os papéis como que se invertem. O que supõe desde logo uma maior reciprocidade na lógica do desejo. E toda esta inversão pode ocorrer tintada de erotismo, como se sabe. Basta dizer, com o autor, que os trovadores “[...] n’ hésitent pas à mettre en concurrence la joie d’amour et les biens spirituels, au bénéfice de la femme désirée” (p. 55). No caso da nossa lírica, não resisto à tentação (é caso para dizer) de transcrever este verso extraído de uma cantiga de amigo de Juião Bolseiro (trovador do séc. XIII afeto à corte castelhana) por nele se notar (creio) um subconsciente textual claramente erótico. Aquele pelo qual a moça carente exprime desta forma o seu desalento por as noites serem tão longas na ausência do amigo: “E ora vai noit’ e vem e crece” (v. 16, 3.ª cobla; itálico meu). E noutro verso anterior, clamava-se assim

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a saudade: “E ora dur’ a noit’ e vai e vem” (v. 9, 2ª cobla; itálico meu). Mas não só em cantigas de amigo se expõe a retórica do desejo, como é evidente. Seja-me consentido um parêntesis, e já à margem do livro de Arnaud de la Croix, para apontar alguns exemplos, entre outros possíveis, muito significativos. Admire-se nestes textos da Europa medieval, a tal que muitos confinaram a uma pura ortodoxia religiosa, a explicitação do desejo num quadro cujo paradigma, por exemplo, é o do homoerotismo mesclado com conteúdo sacro-religioso. Veja-se assim esta cantiga, intitulada “Iohannes Hiesu Christo multum dilecte virgo”, repleta de questões de género (atribuição do título de virgem ao discípulo predileto de Cristo, João, o Evangelista; inversão do papel da pederastia, sendo aqui o discípulo o mestre e não o princípio ativo / masculino): Iohannes Hiesu Christo multum dilecte virgo/ Alleluia/ Tu eius amore carnalem/ Alleluia/ In navi parentem liquisti/ Alleluia/ Tu leve coniugis pectus respuisti/ messiam secutus/ Alleluia/ Ut eius pectoris sacra meruisses// fluente potare/ Alleluia/ Iohannes Christi care/ Alleluia.

Outro exemplo de texto (neste caso, litúrgico) com um conteúdo legível em termos homo-eróticos

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provém da cantiga “Sergius tristis”. Ei-la: Sergius tristis, quod tanti socii/ iocunditate careret,/ lacrimando dicebat:/ Heu mi contubernalis Bache!/ Non iam psallimus/ “Ecce quam bonum et quam iocundum/ habitare fratres in unum!”// Cui noctu martyr respondit:/ Et si corpora te desservi,/ tecum spiritu inseparabile psallo:/ “Ecce quam bonum et quam iocundum/ habitare fratres in unum!”/ Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto.

E leia-se “Lamentomi et sospiro per più potere amare”, composição escrita, convirá notar, por volta do século XII, isto é, num período em que a crucificação começou a ser mostrada de um modo mais gráfico e em que as descrições do Messias se tornaram cada vez mais corporais e sensuais. A figura de Cristo bem depressa se converteu, como se percebe sem custo, no foco de desejos homo-eróticos espirituais (digamos), como é disso satisfatória amostra o texto de que falamos: Lamentomi et sospiro/ Per piú potere amare/ Con grande desiderio/ L’amor vorrei gridare. // Vorrei gridar tant’alto,/ Tutto ‘l mondo m’audisse,/ Et dentro ‘n paradiso/ Ogne sancto respondesse,/ Et al mi’ grande amore/ Pietà li ne venisse:/ La sua benigna faccia/ Mi degni rischiarare.// Va’ gridando, cor meo,/ Con caldo di

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fervore,/ Et passa sopr’a’ cieli/ Et vatten al mio amore,/ Et doventa prontíssimo/ Innanz’a lo ‘mperadore/ Et e’ tti farà doni/ Si ben sai domandare.// Rispondami il mio amore/ Et sì mi degni audire,/ Et gratia si mi doni/ Ch’i’ faccia il suo piacere;/ Constrigami in sue braccia/ L’altissimo meo sire,/ Non mi lasci perire,/ Ké mi degnò creare.// Non debo aver mais posa/ Né refinar non vollio;/ Del mio dilecto sancto,/ Ched’io ‘l pur [vollio],/ Lamentomi per gioias,/ Ed al mio amor mi dollio;/ Di sé mi faccia [degno]/ K’i’l possa guadagnare.// Amor, fosti battuto,/ Feruto ti fu ‘l core;/ Sire di grande alteza,/ Ki comperra tant’amore?/ Ké tu per me ti desti/ A cotanto dolore,/ Alla più dura cosa:/ Morir per me salvare.// Dio ke mi fece et me creòe/ Dami a veder quell’ora;/ In me sia tanta baldanza/ K’i’ non agia paura/ E io cum gioia mi mora/ Per Iesu mia dolzura//

E como seria de esperar, igualmente a figura da Virgem Maria suscitou desejos. Centenas de cantigas foram escritas em honra de Santa Maria durante os séculos XIII e XIV e muitas delas revelam uma devoção espiritual não isenta de desejo sensual. Eis uma delas: Sempr’ acha Santa Maria/ razôn verdadeira/ per que tira os que ama/ de maa carreira.// E dest’un mui gran miragre/ direi que aveo/ a un cavaleiro que éra/ séu, non alleo,/

desta Sennor grorïosa;/ mas tant’ éra cheo/ de luxúria, que passava/ razôn e maneira.// Ca pero mui fïava/ en Santa María/ e loava os seus bees/ quanto mais podía,/ o pecado de luxúri’/ assí o vencia/ que o demo o levara,/ cousa é certeira.// El en tal coita vivendo,/ a mui Grorïosa,/ entendendo que saúde/ dest’ éra dultosa,/ porque non perdess’ sa alma,/ come pïadosa/ faz e come mui sisuda/ e come arteira.// Ca pois viu que do pecado/ nunca peedença/ el tevéra que lhe déssen,/ meteu sa femença/ en tirá-lo del, en guisa/ que en descrença/ non caesse pelo demo,/ que sempre mal cheira// A pecad’e a mentira/ e a falsidade./ Porên sãou a Reínna/ de gran pïadade/ este cavaleir’ e fez-lle/ teer castidade/ por maneira muit’ estranna/ e mui vertudeira.// E fez-lle que non perdesse/ ollos, pées nen mãos/ nen outros membros do corpo,/ mais que fossen sãos;/ mais se o metess’ o demo/ en cuidados vãos/ de pecado, que non podéss’/ ser en tal feira;// Ca pero que gran sabor/ ouvésse de querê-lo,/ que per nulla maneira/ non podésse fazê-lo./ Esto fez a Virgen santa/ pera sig’ avê-lo,/ ca de salvar os seus sempre/ é mui sabedeira.//

Estas transcrições ajudam a compreender sem dificuldade aquilo que resulta inteiramente claro da leitura de L’érotisme au Moyen Âge. Le corps, le désir, l’amour: que o facto de a Idade Media ter sido uma época – melhor seria dizer: várias

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épocas – estruturada por uma profunda e absorvente religiosidade não fez com que esse período da história ficasse imune à expressão do desejo nas suas diversas modalidades. E mais do que isso: como documentam os textos histórico-literários, e em particular estes que citei à margem da obra, o desejo – sejamos claros –, mesmo ocorrendo ao arrepio da moral religiosa e a despeito das convenções sociais em vigor, não se limita a ser uma exceção à regra que define o imaginário medieval. E isso a tal ponto que se torna difícil, ou até impossível, explicar a cultura medieval sem considerar tais manifestações erótico-sentimentais. Tanto mais, como se vê pelas composições transcritas, que bom número desses textos se constrói a partir da e sobre a matéria místico-religiosa. Isto é, a exacerbada religiosidade medieval não só não dissolveu o desejo como este se manteve na órbita da constelação religiosa. Um pouco como se religião e sexualidade (na sua variante transgressiva) se acomodassem. Talvez se possa por isso inferir que foi, ao fim e ao resto, na esfera de uma realidade muito consideravelmente religiosa que se intrometeu e agitou o reverso obs-

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ceno dessa religiosidade. O mesmo seria dizer, enfim, que a questão sexual aparece configurada – como, aliás, os textos citados comprovam – por visões religiosas, não se confinando, por conseguinte, ao registo muito medieval da luxúria feminina. Daí, conforme mostra Arnaud de la Croix com inteira justeza, que a questão do erotismo medieval não seja irrelevante. E desde logo também, forçoso é dizê-lo, por o leitor moderno ficar a perceber que muito do que supostamente presumia de moderno afinal mais não ser do que a atualização do passado longínquo. Mas não tão longínquo, como sugere por mais de uma vez o A., que não possa apresentar-se bem desempoeirado e até com o seu quê de inovador. Numa palavra, a identificação que o leitor de hoje fará da Idade Média pode, vistas as coisas com rigor, muito bem ser inviável. O que não deixa de arrastar por vezes uma responsabilidade hermenêutica e crítico-textual, como acontece com aqueles versos que citei de Juião Bolseiro e que jogam o seu sentido numa semântica subliminar. A que convida a decifrar o corpo pulsional dos textos.

VALLE-INCLÁN Y LAS ARTES Margarita Santos Zas, Javier Serrano Alonso & Amparo de Juan Bolufer (eds.), Congreso Internacional, Santiago de Compostela, 25-28 de octubre de 2011. Santiago de Compostela: Univ. de Santiago de Compostela, Servizo de Publicacións e Intercambio Científico, 2012, 477 pp. Carlos Pazos Justo* [email protected]

Valle-Inclán y las artes supõe, antes de mais, um novo passo no já extenso e produtivo percurso dos estudos valleinclanianos na Universidade de Santiago de Compostela (USC), desde que, em 1988, o projeto de investigação La obra literaria de Valle-Inclán: estudios y ediciones, com o Prof. Luis Iglesias Feijoo à frente, se constituiu como ponto de partida do “Grupo de Investigación Valle-Inclán” da USC (GIVIUS). Já sob a direção da Profª. Margarita Santos Zas, coeditora do volume em análise, a Universidade de Santiago conta, a partir de 2002, com a Cátedra Valle-Inclán. Os variados estudos e eventos em torno de Ramón del Valle-Inclán organizados por esta cátedra atingem visibilidade destacada não só no âmbito

dos próprios estudos valleinclanianos mas também nos estudos literários hispânicos em geral, como comprova o reconhecimento que a Biblioteca Virtual do Instituto Cervantes lhe dispensa.[1] Da numerosa e variada produção científica assim como das diversas atividades levadas a cabo pela Cátedra ValleInclán e pelo próprio GIVIUS é exemplo a recente exposição Outros verbos, novas lecturas: Valle-Inclán traducido [1906-1936], organizada em 2014 pelo Consello da Cultura Galega e comissariada por uma das integrantes do GIVIUS, a Profª. Rosario Mascato Rey, também autora de um dos trabalhos incluídos nestas atas. Valle-Inclán y las artes supõe também, de outro ponto de vista,

* Departamento de Estudos Românicos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.. 1 [em linha] http://www.cervantesvirtual.com/bib/portal/catedravalleinclan/: apresentação Santos Zás

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um esforço constante e salutar de atualizar os objetos de estudo e, sobretudo, os objetivos ou metodologias de análise. Com a perspetiva privilegiada de uma trajetória de investigação de vários lustros (não muito habitual nos estudos literários, em geral), os investigadores vinculados à Cátedra e ao mencionado grupo de pesquisa têm conseguido renovar os seus próprios estudos mostrando, e isto parece-me especialmente relevante, caminhos novos para, no mínimo, serem seguidos por outros grupos dedicados ao estudo de trajetórias individuais. Por outro lado, o labor realizado (e em curso, consta-me) com o intuito de resgatar e de pôr em evidência o espólio de Valle-Inclán, patente nas “Palabras de apertura…” de Santos Zas, não deixa de ser uma das linhas mais louváveis dos valleinclanistas compostelanos. O volume em análise, fruto de um congresso realizado em 2011 na USC, aquando do 75º aniversário da morte do autor e do centenário da estreia de Voces de Gesta, reúne 25 trabalhos, 9 conferências e 17 comunicações, e mais um CD (no qual se incluem numerosas imagens, ilustrações, etc., vinculadas a Valle-Inclán); os trabalhos reunidos, nas palavras dos editores, são um “espejo de las relaciones del escritor y su obra con las artes, música, cine, pintura, artes gráficas y escé-

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nicas, en el marco de las corrientes estéticas y el pensamento estético de su tiempo” (p. 8). Dividido em três secções, “El arte y su representación en la obra de Valle-Inclán”, “Valle-Inclán y el Arte” e “La imagen de Valle-Inclán”, é notório o cuidado da edição, em sintonia com o assunto em análise. Abre a primeira secção Darío Villanueva (USC, Real Academia Española), com “Valle-Inclán y el cine”, onde, através de incisivas incursões na origem do cinema, o autor em foco é considerado “imprescindible figura del precinema”, fazendo parte da “selecta nómina de escritores encuadrables en el Modernismo internacional que antes y mejor respondieron al nuevo horizonte de expectativas generado por los logros estéticos, a partir de los años veinte, del ya reconocido como ‘séptimo arte’” (p. 51). Segue-se o contributo de José Manuel González Herrán (USC), sob o título “Una adaptación cinematográfica de ValleInclán: La cabeza del Bautista (1967), de Manolo Revuelta”. Sem deixar de afirmar ser “ya un tópico repetir que la literatura de ValleInclán no ha tenido mucha fortuna en la pantalla, ni en cantidad ni en calidad” (p. 55), debruça-se sobre uma versão cinematográfica da produção valleinclaniana quase completamente desconhecida. Por seu turno, Antonio Gago

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Rodó (Universidad Autónoma de Madrid), em “Resistencias de ValleInclán: Hacer cine con el teatro”, coloca a hipótese da filiação cinematográfica do silencio no repertorio teatral de Valle-Inclán, para além de tratar outras questões. Juan José Prats Benavent (Instituto Superior de Enseñanzas Artísticas de la Comunidad Valenciana), com o trabalho intitulado “Martes de Carnaval, una adaptación a medio caminho entre la televisión y el cine”, fecha esta primeira sequência que, no seu conjunto, trata do interesse de Valle-Inclán pelo cinema assim como, segundo os vários autores, da sua eventual ‘precocidade’, isto é: as marcas, questionáveis, em todo o caso, do cinema na sua obra e a sua fortuna cinematográfica. Sob a epígrafe “Música y danza”, Carlos Villanueva (USC) aborda o “supuesto desinterés” de ValleInclán pela música, assim como analisa vários projetos musicais vinculados à produção do autor, nomeadamente a Divinas Palabras. A seguir, Dru Dougherty (University of California, Berkeley) põe em diálogo a produção de Valle-Inclán e o mito de Orfeu, destacando o sentido metaliterário presente em Luces de Bohemia, entre outros. O último trabalho deste grupo é de Bruce Swansey (Trinity College) com o críptico título “Terpsícore funamfulesca y sicalíptica: la musa cinética”.

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Na parte que se refere às “Artes plásticas”, Jesús Rubio Jiménez (Universidad de Zaragoza) contextualiza detalhadamente o pensamento pictórico de Valle-Inclán relativamente aos pintores El Greco e Velázquez, afirmando que as “opiniones de Don Ramón pertenecen a los debates que salpicaban las páginas de la prensa al hilo de la celebración de efemérides y de la reflexión sobre la identidad española. Responden tanto a motivaciones estéticas como de orden político” (p. 149). A seguir, Francesca Crippa (Università Cattolica del Sacro Monte, Milão), em “Ideario estético y representación artística en la Sonata de Primavera de Ramón del Valle-Inclán”, consegue ultrapassar o elevado risco de paráfrase e mesmo de inventio ao estabelecer um necessário diálogo entre produtor e produção e os campos em foco. José Servera Baño (Universitat de les Illes Balears), em “Técnicas pictóricas en los poemas de la historia del crimen del Medinica en La Pipa de Kif”, vincula o texto elegido de Valle-Inclán ao conceito de ‘España negra’, associado a pintores como Ignacio Zuloaga ou, nomeadamente, José Gutiérrez Solana. A seguir, o estudo de Epicteto Díaz Navarro (Universidad Complutense de Madrid) aborda a descrição e a imagem em Martes de carnaval e La corte de los milagros.

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Sob o rótulo “Artes escénicas”, Urszula Aszyk (Universidade de Varsóvia) explora a representação teatral da morte atendendo ao tratamento desta na pintura coetânea e de épocas imediatamente anteriores. César Oliva (Universidad de Murcia) trata da estética e do drama em Retablo de la avaricia, la lujuria y la muerte e, por seu turno, Juan Trouillhet Manso (Centro Complutense del Español, UCM), em “La belleza del horror en el teatro bárbaro de Valle-Inclán”, analisa a representação da violência, da crueldade e do sinisto como uma mostra de “radical oposición al realismo escénico dominante” e como reivindicação de “una vuelta a los orígenes del teatro (…) a una mayor ilusión escénica y a la exhibición de sus recursos más espectaculares” (p. 263). Para Pilar Veiga (Instituto Cervantes de Bucarest), em Voces de gesta destaca-se a presença da pintura nas didascálias. Antonio Espejo Trenas (Universitat de València), em “Arte de salón, marionetas y divertimento modernista en Ramón del Valle-Inclán. Noticia de un proyecto escénico pionero de 1903”, resgata um projeto “que anticipa su interés [de Valle-Inclán] por el mundo del guiñol” (p. 277). A seguir, Yoice Rodrigues Ferraz Infante (Universidade Federal de São Carlos) aborda a adaptação brasileira de Nehle Franke (1997) de Divinas Palabras, onde a misteriosa

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e periférica Galiza se transforma no sertão brasileiro. Na segunda secção, “ValleInclán y el Arte”, Elizabeth Drumn (Reed College, Portland, Oregon), no artigo intitulado “La estética del recuerdo en La lámpara maravillosa: el proceso de pensar el tiempo” e, saltando a ordem, Rosario Mascato Rey (GIVIUS), em “De la Image mediatrice al Enigma del matiz: el pensamento estético valleinclaniano a la luz de la filosofía bergsoniana”, exploram, desde diferentes perspetivas, as presenças (e/ou coincidências) da obra de Henri Bergson na produção de Valle-Inclán. Em “Fundamentos quietistas en la poética de ValleInclán”, Guillermo Aguirre Martínez (Universidad Complutense de Madrid) entende Valle-Inclán como um produtor para quem a “estética (…) constituyó siempre un elemento válido y redentor para el poeta” (p. 328). A seguir, Luisa Castro Delgado (GIVIUS) aborda o retrato em Valle-Inclán, plástico e/ ou literário, como configurado pela memória “en todas sus manifestaciones y facetas, de manera más radical y profunda que los postulados comúnmente aceptados por el género” (p. 341). Por sua vez, Jesús Mª Monge López (TIV-Universitat Autònoma de Barcelona) estabelece relações entre o românico, o quietismo e o esperpento. Conclui esta secção Carmen E. Vílchez Ruiz

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(GIVIUS) que aborda, em sintonia com a cuidada edição do volume em análise, o tratamento artístico que Valle-Inclán dedicou aos seus livros, particularmente a La Lámpara Maravillosa. Na terceira e última secção, intitulada “La imagen de Valle-Inclán”, Adolfo Sotelo Vázquez (Universitat de Barcelona) empreende uma incursão no relacionamento de Valle-Inclán com a Catalunha, nomeadamente com Barcelona, pondo em relevo as leituras que desde o emergente sistema literário catalão eram feitas de produtor e produção. A seguir, José Manuel B. López Vázquez (USC) põe o autor, sempre interessado na pintura, nomeadamente no retrato, em diálogo com as linhas de força dos retratistas espanhóis (Joaquín Sorolla, Ignacio Zuloaga e Fernando Álvarez Sotomayor). O volume encerra com um estudo de Sandra Domínguez Carreiro (GIVIUS) que se debruça sobre a evolução da cari-

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catura partindo de uma análise das numerosas caricaturas de que ValleInclán foi alvo. Em jeito de breves observações finais, anoto o seguinte: com intenção interrogativa, caberia problematizar a assumida (e manifesta) orientação interdisciplinar do volume em foco. Será possível trabalharmos interdisciplinariamente em literatura, por exemplo, ampliando os nossos corpora com elementos estranhos ao fenómeno literário mas sem o concurso decisivo e sistemático de especialistas de outras disciplinas? Cabe frisar, por último, que o conjunto dos estudos que foram nesta resenha brevemente comentados corresponde inequivocamente à premissa expressa no prólogo do volume: a da existência de um poliédrico Valle-Inclán cujos interesses e trabalhos longe de se restringirem ao fenómeno literário, passaram necessariamente também pelas artes.

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