Dialectic relationship between objectivity and subjectivity in Marxist theory (Relação dialética entre objetividade e subjetividade no pensamento marxista)

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XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE)

Grupo de Trabalho 05: Cultura, Política, Memória e Subjetividade

Título do trabalho: Relação dialética entre objetividade e subjetividade no pensamento marxista

Nome do Autor: Henrique André Ramos Wellen Instituição: Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro E-mail para contato: [email protected]

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Relação dialética entre objetividade e subjetividade no pensamento marxista Resumo: Pretendeu-se apreender a tese marxista de interdependência entre subjetividade e objetividade, entre as condições materiais de reprodução social e a formação das consciências humanas. Sendo o trabalho a esfera central na produção e reprodução social, as condições postas materialmente para que o trabalho seja executado, incidirão na própria subjetividade humana, na forma de interação entre homem e natureza. Longe de ter um caráter exclusivamente econômico, a perspectiva marxista considera como indispensável para analisar a sociedade a subjetividade humana, os sentimentos e as emoções que perpassam e conduzem as relações sociais. Todavia, não se confunde subjetividade com moralismo ou eticismo, como se os sentimentos e a consciência humana brotassem do vácuo, ou fossem inseridos num ciclo vicioso e formassem uma fórmula tautológica entre estes, um gerando e sendo gerado pela outro. É preciso analisar de forma dialética a relação da consciência humana com as atividades práticas e as condições estabelecidas que as influenciam e limitam. Deve-se romper com uma visão idealista, trazendo o homem concreto para sua realidade concreta, para seus problemas terrenos e, a partir daqui, conduzir as categorias para um entendimento da totalidade.

1. Trabalho e reprodução social: Para se ter uma compreensão concreta da vida humana, é importante buscar elucidar as formas de intervenção da natureza utilizadas pelos homens na manutenção de sua subsistência, uma vez que serão estes meios empregados para prover as condições materiais os influenciadores diretos da organização social. A relevância de se estudar a forma pela qual está organizada a produção material, no entendimento do funcionamento de uma sociedade, está presente no destaque de que é através da produção material que o ser humano consegue, de forma básica, organizar sua vida. A forma pela qual se organiza a base material, ou a prioridade ontológica objetiva do ser social, apresenta-se, portanto, como um fator determinante para a elucidação das formas históricas de produção e reprodução da vida social, assim como um fundamento no exame da organização das outras esferas da vida humana. Neste sentido, para compreender as regras e a lógica que regem as sociedades, é necessário privilegiar as formas de produção e reprodução da vida humana como problemas centrais de análise. Ao privilegiar a forma como está organizada socialmente a produção, passa-se o enfoque para uma dupla determinação: de um lado, questionam-se quais as variáveis determinantes na

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manutenção deste ordenamento social e, de outro, indagam-se quais os elementos que conduzem para a superação desta forma de produção. Mesmo sendo perguntas distintas, observa-se que, em ambos os casos, o trabalho constitui o ingrediente que representa o epicentro da questão. Devido ao fato de ser o elemento que concebe a relação entre homem e natureza, o trabalho será fator determinante tanto para a manutenção, como para a superação do modo de produção. Isso se dá porque, no momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o problema central, surge – tanto no próprio homem como em todos os seus objetos, relações, vínculos, etc. – a dupla determinação de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base. Como sempre ocorre em Marx, também nesse caso o trabalho é a categoria central, na qual todas as outras determinações já se apresentam in nuce: ‘O trabalho, portanto, enquanto formador de valores-de-uso, enquanto trabalho útil, é uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade; é uma necessidade natural eterna, que tem a função de mediatizar o intercâmbio orgânico entre o homem e a natureza, ou seja, a vida dos homens’ (LUKÁCS, 1979, p. 16).

Desta forma, se “por um lado, o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, a sua própria natureza”, por outro lado, “os objetos e as forças da natureza são transformados em meios, em objetos de trabalho, em matérias-primas, etc” (LUKÁCS, 1979, p. 16). É por meio do trabalho, de sua dupla interação humana, material e subjetiva, que o homem, a partir de suas concepções pessoais e sociais, promove uma transformação na natureza. É o trabalho o elemento que possibilita ao homem transferir sua história para a natureza, e, de forma inversa, com o seu contato com a natureza, com a interação entre homem e objeto, sua percepção de mundo é dinamicamente processada, mudando também sua forma de agir e pensar. É nesta relação dialética entre homem e natureza que se faz, de forma primária1 e central, pelo trabalho, a construção da história, as mudanças materiais e sociais, visto que “o primeiro acto histórico desses indivíduos, através do qual se distinguem dos animais, não é o facto de pensarem, mas sim o de produzirem os seus meios de existência” (MARX e ENGELS, 197?, p. 18). Seguindo esse pensamento, se a forma pela qual é possibilitada socialmente a intervenção humana se dá de forma restritiva, a sua objetivação pelo trabalho também será limitada, ou seja, sua formação social terá essa influência. Se a organização da produção e reprodução material da sociedade é estruturada de forma contraditória, baseando-se na apropriação privada dos bens socialmente produzidos e, antes, dos meios de produção, então o próprio trabalho sofrerá os 1

Destaca-se que, “Marx não reduz as objetivações ao trabalho e, menos ainda, não deriva dele as objetivações sociais. De fato, o processo de trabalho é tão somente a objetivação ontológico-social primária; ineliminável, tem gradualmente a sua ponderação alterada na constituição de uma estrutura antropológica sempre aberta que, cada vez mais rica, comporta outras objetivações e delas se realimenta” (NETTO, 1994, p. 36).

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condicionantes que apontaram para a formação humana. Sendo o trabalho a esfera privilegiada na formação do caráter e da consciência humana (mas, de forma alguma, a única) e, antes, da produção e reprodução social, então as condições postas materialmente para que o trabalho seja executado, incidirão na própria subjetividade humana, na forma de interação entre homem e natureza. Observa-se, desta forma, que longe de ter um caráter exclusivamente econômico ou até economicista para analisar a sociedade, a perspectiva marxista considera como indispensável para analisar a sociedade, assim como suas principais problemáticas, a subjetividade humana, os sentimentos e as emoções que perpassam e conduzem as relações sociais2. Todavia, não se deve confundir subjetividade com moralismo ou eticismo, como se os sentimentos e a consciência humana brotassem do vácuo, ou fossem inseridos num ciclo vicioso e formassem uma fórmula tautológica entre sentimentos e consciência, uma gerando e sendo gerada pela outra. É preciso analisar de forma dialética a relação da consciência humana com as atividades práticas e as condições estabelecidas que as influenciam e limitam. Deve-se romper com uma visão idealista, trazendo o homem concreto para sua realidade concreta, para seus problemas terrenos e, a partir daqui, conduzir as categorias para um entendimento da totalidade. Por meio da análise concreta, ao analisar as formas pelas quais o trabalho é condicionado, Marx irá demonstrar que não existe apenas um sentido libertador do trabalho, mas que, a partir do momento em que o trabalho é limitado pela forma na qual as condições materiais de produção e reprodução material estão estabelecidas, restringe-se do trabalho parte da possibilidade de realização e emancipação humana, passando este a ter um caráter majoritariamente negativo, derivado, centralmente, de sua transformação em mercadoria. Ao ser tratado como uma mercadoria, o trabalho passa a ser visto a partir da sua produtividade econômica, do seu dispêndio de energia, medindo-se apenas a sua capacidade de produção. Por isso, o trabalho passa a ter um rótulo que o limita a um caráter eminentemente econômico, é calculado como uma mercadoria especial e definido enquanto força de trabalho. Como a força de trabalho, dentro do modo de produção capitalista, é também uma mercadoria a ser apropriada de forma privada, isto é, a apropriação sobre o trabalho excedente ocorre de forma privada, impede-se uma prospecção de responsabilidade e funcionalidade coletiva, fazendo com que o próprio trabalhador só se torne significante dentro da sociedade capitalista quando ele está servindo para atender a estas necessidades mercantis impostas. Estando o trabalho compreendido, dentro do modo de produção capitalista, pela sua capacidade

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A relação entre subjetividade e condições materiais de reprodução social pode ser explicitada no entendimento de que a subjetividade cresce à medida que responde às questões objetivamente postas.

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produtiva, a importância do trabalhador também será medida por essa lógica, ou seja, o trabalhador somente será valorizado enquanto produtor de mercadorias. Desta forma, a partir do momento em que o capital não consegue mais obter lucros por meio de um determinado conjunto de trabalhos privados, de certa união de força de trabalho3, quando este serviço prestado pelos trabalhadores se torna um óbice para uma maior lucratividade4, para seguir às premissas da lógica do capital, os capitalistas livram-se prontamente desses obstáculos a uma geração maior de riqueza a ser apropriada e concentrada. Essa é, portanto, a diferença específica da produção capitalista: força de trabalho é aí comprada não para satisfazer, mediante seu serviço ou seu produto, às necessidades pessoais do comprador. Sua finalidade é a valorização de seu capital, produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que ele paga, portanto, que contenham uma parcela de valor que nada lhe custa e que, ainda assim, é realizada pela venda de mercadorias. Produção de mais-valia ou geração de excedente é a lei absoluta desse modo de produção. Só à medida que mantém os meios de produção como capital, que reproduz seu próprio valor como capital e que fornece em trabalho não pago, uma fonte de capital adicional é que a força de trabalho é vendável (MARX, 1985, p. 191).

O trabalho como mercadoria se apresenta, assim, nas características dos próprios trabalhadores, do próprio proletariado. Neste sentido se dá a própria definição econômica de trabalhador, de proletariado, como “assalariado que produz e valoriza ‘capital’ e é jogado na rua assim que se torna supérfluo para as necessidades de valorização de ‘Monsieur Capital’ [...] como Pecqueur chama a esse selvagem” (MARX, 1985, p. 188, n. 70)5. Ou, citando as palavras de Braverman (1981, p. 319), “a classe trabalhadora é a parte animada do capital, a parte que acionará o processo que faz brotar do capital total seu aumento de valor excedente. Nessa condição, a classe trabalhadora é antes de tudo matéria-prima para exploração”. Com a predominância da forma mercadoria, através do modo de produção capitalista, que passa a ser não “apenas a célula econômica da sociedade burguesa”, mas “também a matriz que 3

A força de trabalho, apesar de ter sua funcionalidade definida, dentro do modo de produção capitalista, como sendo igual a uma outra mercadoria qualquer, possui a especificidade de ser a única mercadoria capaz de produzir valor, o que a torna superior, além de ser dependente direta da subjetividade humana, isto é, “a força de trabalho é, no regime capitalista, uma mercadoria como as demais, sujeita à lei do valor. Trata-se, contudo, de mercadoria especial, a única cujo uso consiste na criação de valor e mais-valia. A única que se vincula à subjetividade do indivíduo trabalhador e, por isso mesmo, sofre a influência de fatores peculiares” (GORENDER, 1986, p. XIX). 4 É a lógica do capital sendo efetivada: toda relação social, principalmente a comercial, deve ter por base e fim a busca por um valor mais elevado do que o que existia no início do processo. Essa lógica está tão naturalizada que se torna uma tautologia pensar em geração de lucro quando se promove uma relação mercantil ou econômica. Entretanto, é preciso lembrar que uma relação econômica pode ser de troca entre artigos e valores semelhantes, uma forma de permuta, na qual não existam perdas para as duas partes envolvidas. 5 Em sentido inverso daquele que possui apenas como recurso para sobrevivência sua força de trabalho, o capitalista é compreendido como a pessoa que se utiliza da força de trabalho dos outros para enriquecimento próprio, ou seja, “não é a propriedade de terras ou de dinheiro, mas o comando sobre o trabalho (the command of labour*) que distingue os ricos dos pobres” (MARX, 1985, p. 190). * O termo labour aqui se refere ao trabalho no seu sentido abstrato. Para trabalho no seu sentido concreto, a utilização corrente é work. “O trabalho que gera valores de uso e é qualitativamente determinado chama-se de work, em oposição a labour; o trabalho que cria valor e é medido apenas quantitativamente chama-se labour, em oposição a work” (MARX, 1985, p. 53). Ver: Netto (1994, p. 35) e (2000, p. 69).

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contém e escamoteia a raiz dos processos alienantes que têm curso nesta sociedade” (NETTO, 1981, p. 78), os produtos passam a ser produzidos com a intenção exclusiva de venda, em busca de sua realização no mercado. Com esta sujeição da produção à venda, o trabalho só será valorizado enquanto produtor de mercadorias (valor de troca) e não de produtos (valor de uso). Assim, com esta determinação, dada pelo sentido final do trabalho como produtor de mercadorias, este só terá validade também enquanto mercadoria, gerando essa determinação recíproca entre trabalho e mercadoria, cada um servindo para gerar o outro e transformando-se no outro. A partir do momento em que a sociedade passa a ser fundamentada na produção e consumo de mercadorias, a atividade humana serve para a reprodução social como o objetivo de produção de mercadorias, como objeto para manutenção de uma configuração utilitária. O trabalho passa a se limitar a um escopo operativo ou instrumental, tornando-se, para o homem, uma atividade quase mecânica, uma vez que se volta para a continuidade da forma instaurada de produção e reprodução de mercadorias. O trabalho, dentro deste contexto, destina-se, portanto, a funções técnicas e até repetitivas, que restringem a capacidade crítica e reflexiva dos homens6. Isso faz com que, estando o trabalho deslocado para a exigência do modo de produção de mercadorias, seu caráter criativo e emancipador seja extenuado (mesmo trabalhos socialmente compreendidos como criativos – como as atividades de publicidade –, por serem condicionados pela lógica do capital, passam a ter uma caracterização operativa e instrumental).

2. Relação dialética entre objetividade e subjetividade: Estando o trabalho condicionado por esta forma de organização da produção e reprodução social, que o limita a uma caracterização de utilidade de economia privada, a partir do momento em que o homem passa a vender sua capacidade ou força de trabalho, o trabalho torna-se externo ao seu produto produzido, gerando uma negação da mediação existente entre o sujeito e o objeto, entre o trabalho e o produto produzido e entre o homem e a natureza, propiciando que mercadoria se apresente como uma coisa independente por não ser relacionada com o ser humano (o fetiche da mercadoria). Gera-se, desta forma, a negação da plena relação entre objetivação e subjetividade humana, visto que o trabalhador não mais reconhece seu produto como fruto de sua atividade física e mental7. Além disso, o próprio trabalhador vê a esfera do 6

Sobre isso ver: Capítulo XIII – Maquinaria e Grande Indústria – de Marx (1985). Com a negação da relação plena de objetivação e subjetividade humana, que se inicia a partir da entificação das mercadorias e constitui a base para os processos de fetichismo e reificação, geram-se as formas de alienação (em relação ao objeto, em relação ao trabalho e em relação ao homem). Vale salientar, ainda, que é essa forma de apreender a dinâmica da sociedade capitalista que marca uma relação de continuísmo e ruptura em Marx: “o giro rotundo que a sua angulação sofre decorre do procedimento imposto pela perspectivação ontológica explícita: ela deve apanhar a emergência da socialidade pela análise da organização da produção (o processo de trabalho) em seu conjunto, uma época histórico-social determinada – numa palavra, deve apreender o sistema social como totalidade (e este é o tônus d’O capital, como sabemos)” (NETTO, 1981, p. 77). Em 1844, a abordagem de Marx “é abstrata:

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trabalho, a partir de uma postura negativa, como sendo o espaço de produção um lugar de obrigatoriedade e insatisfação que, ao invés de o realizar, lhe é imposto. Desta forma, tendo por base a sensação de que a atividade produtiva é constituída por momentos de desgosto e revolta, a esfera do trabalho passa a ser tida hegemonicamente como um espaço voltado para prover o sustento material, relegando o potencial criativo do ser humano. Sendo a sociedade baseada na troca de mercadorias, limitando a atividade produtiva a apenas uma postura econômica, o sentido realizador do trabalho é corroído. Isso indica a vinculação entre a forma pela qual está estruturada a produção e o sentido do trabalho, podendo ser relacionada à seguinte análise de Napoleoni (1978, p. 130): para Marx, por conseguinte, a troca mercantil está longe de constituir a expressão da natureza ou racionalidade que, nele, o caráter intrínseco do trabalho humano – ou seja, o ser trabalho social – é negado, e a sociedade se recupera fora do trabalho, ou seja, quando o trabalho constitui apenas um objeto. Assim, ao contrário das sociedades baseadas em vínculos de dependência pessoal, a sociedade mercantil corresponde à dependência universal dos indivíduos a um 8 nexo social – a troca – estabelecido independente deles .

Com essa limitação concreta da esfera do trabalho a um espaço eminentemente utilitário, ocorre um desfavorecimento do potencial de vinculação entre a contemplação e a ação, dissociando-se estas duas esferas do ser social, ficando cada uma reduzida a si mesma: de um lado uma atividade meramente operativa, ausente de reflexões críticas, e de outra apenas contemplativa, sem perspectiva de ação, as duas reprodutoras da ordem vigente. Ocorre a negação da possibilidade de uma complementaridade entre consciência e realidade material, sobrando, de um lado, apenas uma perspectiva abstrata limitada à importância das idéias e, de outro, somente uma proposta mecanicista restrita às condições materiais, ambos com a negação do papel efetivo do ser humano no desenvolvimento histórico da sociedade9.

ela não consegue determinar a especificidade das alienações engendradas pela sociedade burguesa” (NETTO, p. 70). “Aquilo que a ótica marxiana de 1844 não pode dar conta, com efeito, é que a sociedade burguesa constituída, abrigando e recolhendo as antigas formas de alienação, repõe-nas em outro nível – justamente o engendrado pelo fetichismo. É por isto, aliás, que a elaboração marxiana de 1844, brilhante e sugestiva, tomada em si mesma, não pode – ao contrário das formulações posteriores a 1857 – servir à compreensão das formas sociais do capitalismo maduro e tardio. Aqui, ela adquire, quando muito, o sentido de uma crítica cultural anticapitalista de marcado sabor eticista” (NETTO, p. 70-71). Sobre a relação teórica entre as obras de juventude e maturidade em Marx, especialmente no que se refere ao conceito de alienação, ver, além de Netto (1981), também Vázquez (1977a). 8 Uma outra afirmação ilustrativa, ouvida recentemente por um conhecido representa bem a concepção hegemônica sobre o trabalho: “porque você sabe que não importa qual o tipo de trabalho que a pessoa faz, pois o principal é o salário no final do mês”. 9 Mesmo indicando uma aproximação um pouco precoce por falta de teorização, pode-se relacionar essa problemática às críticas destinadas ao idealismo e ao materialismo. Isso pois, segundo afirma Fischer (1970, p. 140), “na filosofia idealista, o espiritual tornou-se o princípio criador e ativo; [...] Ao contrário, para o filósofo materialista, o homem era apenas produto do mundo exterior e êsse mundo exterior era tão-somente objeto da percepção que se refletia nas impressões sensoriais, cuja abstração eram as idéias”. Ou ainda que “a narração hegeliana, mesmo recuperando o papel da natureza e do trabalho coletivo, concebe a ‘objetividade’ do mundo físico e das relações sociais exclusivamente como manifestação da ‘consciência ideal’, enquanto Feuerbach, ao reconhecer nas entidades espirituais e metafísicas que povoam o pensamento religioso e especulativo os produtos fantasmagóricos da sensibilidade e do entendimento humano, estabelece a origem ‘corpórea’ da alienação, sem porém vincular os seus conteúdos às práticas sociais concretas dos diferentes grupos e indivíduos” (PIOZZI, 2002, p. 164).

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De forma sintética, pode-se afirmar que são duas as conseqüências ou os resultados desse processo: a) o homem em sociedade capitalista não percebe nas coisas a incorporação do seu trabalho acumulado, criando uma ilusão concreta de independência das mercadorias, que passam a regular as relações sociais; caso contrário, se as mercadorias ao serem trocadas fossem compreendidas como produto do trabalho (salientando-se que isso seria uma abstração dentro do modo de produção capitalista), as relações sociais passariam pela feição humana, situando o papel do trabalhador na sociedade, tendendo-se, assim, a uma convivência não reificada que se tornaria impeditiva da lógica do capital (por isso pensar o trabalho como elemento mediador dentro de uma sociedade capitalista é problemático)10; b) por outro lado, como se faz necessária a imposição da mercadoria como ente independente (reificação) deve-se gerar uma ideologia que induza ao desconhecimento do papel social do ser social, visando ao favorecimento da legalidade da mercadoria per si, e não como produto do trabalho11. A partir desse enfoque, observa-se que, com base na elucidação de algumas das negatividades inerentes ao modo de produção capitalista, o trabalho, mesmo representando a esfera que possibilita realização humana, pode, dentro dos limites impostos por esta forma de sociabilidade vigente, estar inserido numa perspectiva contrária, de alienação. Como visto anteriormente, o trabalho, além de representar a forma pela qual o homem transforma a natureza, que constitui a sua vinculação com a materialidade, sendo a mediação entre o sujeito e a matériaprima (objeto), também é o elemento que dá base à consciência, pois no processo de transformação da natureza, tentando torná-la semelhante ao seu projeto intelectivo, será a consciência processada e indutora da ação. O trabalho é o elemento que une a ação e a consciência, a prática e o conhecimento, é, portanto, a esfera privilegiada da práxis. É devido a esta concepção de trabalho humano que se apresenta o processo teleológico, expresso na famosa passagem de Marx: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objeto, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 1985a, p. 149).

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Salienta-se que essa análise deriva-se do estado de desenvolvimento atual do capitalismo, pois o trabalho é efetivamente a principal mediação de qualquer sociedade; pensadores burgueses antes de Marx entenderam isso: Hegel, Smith e Ricardo, entretanto, depois da decadência ideológica da burguesia é que ficou impossível esta afirmação. 11 Da mesma forma que a nota anterior, ressalta-se que, mesmo pensadores burgueses como Smith e Ricardo analisaram a mercadoria como produto do trabalho. Só depois que a classe produtora se tornou historicamente autônoma é que ficou impossível para burguesia entregar o ouro para o bandido.

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Por outro lado, verifica-se que na conjuntura contemporânea ocorre a prevalência do trabalho em seu sentido negativo, o trabalho alienado, que não se constitui enquanto mediação plena entre o homem e o objeto. Uma forma de atividade humana que, no lugar de servir para uma coletividade, para a espécie humana12, torna-se um apêndice da mercadoria, condicionada pela sua lógica. Em outros termos, o trabalho passa a ser subsumido pelo capital, servindo funcionalmente para atender aos seus ditames.

3. Contradição e transformação: Entretanto, diferentemente de uma perspectiva nostálgica ou pessimista13 da realidade surgida com o modo de produção capitalista, é preciso salientar que nem tudo são cinzas, ou que é possível, mesmo através desse contexto de negatividades, vislumbrar um outro tipo de sociabilidade. Além disso, merece destaque o fato de que é a partir das negatividades advindas desse sistema, assim como das suas contradições inerentes, que se abrem possibilidades para a formação de uma nova organização das relações humanas socialmente mais avançadas. Mesmo a partir de uma análise objetiva, na qual verificam-se argumentos críticos que caracterizam a atual forma de organização social como sendo constituída por fatores perversos à humanidade, como a exploração do trabalho, é preciso, ao contrário de posturas pessimistas – que induzem à resignação e ao desfavorecimento da insurgência crítica – situar essa realidade perversa como um ponto inicial pelo qual se estabelecem os elementos importantes para sua transformação. Em uma frase, faz-se necessário entender de que forma as contradições inerentes ao modo de produção capitalista se relacionam com a luta de classes. Uma das premissas expostas por Marx que mais repercutiu ao longo da história foi a de que “a burguesia produz, antes de mais nada, seus próprios coveiros” (MARX e ENGELS, 1998, p. 20), ou, de forma semelhante, que a “burguesia não forjou apenas as armas que a levarão à morte; produziu também os homens que usarão essas armas; os trabalhadores modernos, os proletários” (MARX e ENGELS, 1998, p. 14). Mas, de que forma se podem entender essas duas afirmações? Serão estas um resultado de pensamentos ou desejos abstratos, sem possibilidades de concretização real? A perspectiva de superação do sistema capitalista pela classe trabalhadora representava, e continua sendo, somente uma fantasia produzida idealmente, como resultado da 12

Em relação ao termo espécie humana, ocorrem nas traduções das obras de Marx (especialmente dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos) algumas diferenças: enquanto Octávio Alves Velho (MARX, 1983) relaciona com “ente-espécie”, Jesus Ranieri (MARX, 2004) apresenta o homem visto como “ser genérico”. Isso também se repete no que diz respeito à diferença entre “consciência de espécie” - advinda da tradução de Octávio Alves Velho (MARX, 1983), que pode ser relacionada, na tradução de Jesus Ranieri (MARX, 2004,) com “consciência que o homem tem do seu gênero” (p. 186), ou “caráter inteiro de uma species” (p. 184). Sobre a temática da essência humana em Marx ver: Vázquez (1977b) ou, de forma mais introdutória, Wellen; Souza (2003). 13 Característica que permeou grande parte do pensamento de vários autores, tanto clássicos, como contemporâneos, com destaque para Nietzche e Weber.

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vontade de pessoas insatisfeitas com a realidade vigente? Ou, por outro lado, a validade dessas premissas está no fato de que o capitalismo possui contradições que lhe são inerentes e que essas induzem as pessoas a se rebelar? E que, como as pessoas que experienciam de forma mais direta as contradições econômicas e sociais são as constituintes da classe trabalhadora, então serão essas potencialmente responsáveis pela ruptura com esse sistema? É como forma de tentar propiciar indícios que auxiliem na compreensão da relação entre superação do sistema capitalista e a função histórica classe trabalhadora, que é importante a análise da interface entre trabalho e luta de classes. Por meio da análise das negatividades ocasionadas pelo modo de produção capitalista, derivados da transformação do trabalho em mercadoria, que passou a ter importância somente enquanto produtor de valor de troca, ou seja, apenas quando servir para gerar mais valor ou maisvalia para o capitalista, verificou-se que o trabalho, neste contexto, envolveu-se num caráter de abstração. Isto é, por ter como elemento que fornece semelhança entre todas as especialidades de trabalhos que estão a serviço do capital a destinação para produzir mercadorias e gerar lucros para quem o explora, existirá um elo que ligará as diferentes especialidades produtivas: o trabalho entendido como produtor de valor de troca e também como sendo um próprio valor de troca. Por isso o homem vende sua capacidade produtiva, seja esta mental ou física, no lugar de seu trabalho, visto que fornece sua força de trabalho em troca de remuneração. Como os meios de produção estão concentrados nas mãos de poucas pessoas – os capitalistas – restam aos trabalhadores, como forma de arregimentar condições para a sua sobrevivência e de sua família, a venda de sua força de trabalho em troca de uma remuneração14. O pagamento referente ao preço pela venda da mercadoria força de trabalho significa salário. As mais diversas formas de trabalho que ficam à disposição dos capitalistas para serem utilizados na produção de mercadorias e que, em totalidade, fornecerão um valor mais elevado do que o pago ao trabalhador, terá como unidade de definição, como característica central que as tornam comuns, a sua forma de uso. Não importando que tipo de mercadoria se é produzida, uma vez que esta escolha está determinada pela lógica do capital (o emprego do trabalho no setor que possibilite lucratividade), todos as opções de trabalho se igualam numa mesma função: dispêndio de força física e mental para geração de valor excedente. Essa função, que torna todos os trabalhos iguais perante a ótica do capitalista (expressa na subsunção real do trabalho ao capital) é que fornece o caráter abstrato ao trabalho. Essa dimensão do trabalho, intitulado abstrato, portanto, terá como singularidade o fato de ser utilizado e explorado para produzir mercadorias, de acordo com as leis do mercado, sendo útil

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Sobre o processo que levou à concentração dos meios de produção nas mãos de poucas pessoas - as que integram a capitalista, ver: Capítulo XXIV – A assim chamada acumulação capitalista – de Marx (1985).

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somente quanto à sua valorização econômica. Sua valorização econômica se relaciona de forma imediata com a troca, com a venda da mercadoria, distanciando-se da preocupação com a esfera da produção e do consumo, uma vez que estas esferas passam a figurar em segundo plano, apenas vislumbradas a serviço de transações comerciais. O trabalho abstrato se distingue, neste sentido, do tipo de trabalho que se volta para a produção e o consumo per si, pois, enquanto esse é compreendido pela finalidade de produção de produtos, determinados pelo valor de uso, aquele se limita à produção de mercadorias destinadas à venda (a realização da mercadoria no mercado, ou a realização da mais-valia). Enfim, enquanto o tipo de trabalho que se estabelece como produtor de valor de uso, denominado de trabalho concreto, tem caracterização subjetiva, o trabalho realizado com a destinação comercial, produtor de valor de troca, intitulado trabalho abstrato, é medido pela sua produtividade, de forma quantitativa15. No modo de produção capitalista, além da mediação das relações sociais efetivar-se com base na mercadoria, esta também é estruturada pela quase totalização dos trabalhos com o sentido abstrato. Nos espaços em que há a prevalência da forma mercadoria16 (todos que são perpassados pela legalidade do sistema capitalista), tende-se a existir de forma quase completa o trabalho abstrato ou, de forma mais correta: nos lugares onde a produção está organizada de forma privada, nos quais os trabalhos são apropriados privadamente pelo capital, pela dominância de trabalhos abstratos, a tendência será que as relações sociais sejam pautadas pela forma mercadoria e, conseqüentemente, pela lógica capitalista17. Tem-se, assim, conforme já salientado, uma característica peculiar que distingue o sistema capitalista dos seus antecessores: a predominância da forma de trabalho destinada à produção de valor de troca, requisito para atender à lógica lucrativa do capital. Com isso, dentro do sistema vigente, surge o seguinte paradoxo: como o capital, enquanto tal, é indiferente com respeito a toda particularidade de sua substância – tanto em qualidade de totalidade plena de si mesma, quanto enquanto abstração de todas as suas particularidades -, o trabalho, àquele contraposto, possui subjetivamente a mesma plenitude e abstração em si. No trabalho corporativo, artesanal – no qual o próprio capital possui ainda uma forma limitada, embora integralmente submersa em determinada substância, ou seja, 15 Conforme citado em outro texto (WELLEN, 2004, p. 58): “em outras palavras, ‘o valor de uso é o valor que as coisas têm para as pessoas que se servem delas, ele reside na utilidade das coisas’, não podendo ser medido, nem traduzido em quantidade ou expresso em números, pois ‘é sempre subjetivo: depende do sujeito que está usando ou pretende usar a coisa’. O valor de troca, ‘ao contrário do valor de uso, não é subjetivo e sim objetivo’, se manifestando ‘objetivamente nas relações sociais, na troca, na compra e na venda dos produtos’, sendo, por isso, a ocupação exclusiva da análise econômica dentro da tradição marxista (KONDER, 1998, p. 127)”. 16 Com a hegemonização da forma mercadoria na sociedade, ocorre também uma ampliação do fetichismo da mercadoria, fazendo com que, “o fetichismo da mercadoria passa a ser fetichismo de todo o intercâmbio humano” (NETTO, 1981, p. 85). 17 Com base em Silveira, afirma Evangelista (2002, p. 33): “a alienação opera pondo a mercadoria no lugar de elemento fundante de toda sociabilidade, desfazendo os laços e os vestígios sócio-históricos que permitiram o aparecimento do sistema de produção de mercadorias e que garantem a sua reprodução social. A mercadoria surge naturalmente como sujeito, transcendendo a história, perante os homens-mercadorias. Todas as relações desses homens entre si e com a natureza sofrem necessariamente a mediação da mercadoria, do dinheiro e do capital. A mercadoria aparece como autônoma e exerce uma determinação unilateral sobre os homens. Desse modo, a coisa (mercadoria) se torna o centro irradiador da sociabilidade e subordina sujeitos e objetos, transformando-os em coisas. As relações intersubjetivas são coisificadas e o homem vê a si mesmo e aos outros como coisas”.

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ainda não se afigura como capital propriamente dito -, também o trabalho se apresenta como submerso em seu caráter determinado particular; não na plenitude e abstração, não como o trabalho, tal qual este se defronta com o capital (MARX apud NAPOLEONI, 1978, p. 134).

Neste sentido, “a indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma sociedade na qual os indivíduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito, e, portanto, é-lhes indiferente” (MARX, 1986, p. 17). Com a dominância da forma mercadoria na sociedade, que limita a forma do próprio trabalho a um apêndice da sua reprodução (uma ferramenta a serviço da produção de mercadorias), ocorre uma igualação entre as distinções concretas existentes das formas de produção: todas passam a ser vistas predominantemente pela lógica do lucro, como uma abstração das suas especificidades, o que faz com que o trabalho seja fortuito na sociedade. Devido a esse fato, de homogeneização das diferentes formas de trabalho, ocasiona-se, contrariamente aos interesses do capital, uma potencialidade de unidade entre todos os trabalhadores. Se, por um lado, a predominância do trabalho abstrato serve para reforçar a dominação da forma mercadoria, pois desfavorece a percepção da mercadoria enquanto produto do ser humano, de outra forma, representa um potencial elo de ligação entre as diversas categorias de trabalhadores, pois, independente da forma ou do tipo de mercadorias que produzem, todos estão vendendo sua força de trabalho, gerando um valor excedente ao capitalista, em troca de seu custo de reprodução, isto é, de um salário18. Em síntese, todos estão, de forma contraditória, gerando ou valorizando riqueza econômica através de seu trabalho e sendo expropriados de grande parte da sua riqueza produzida19. São os trabalhadores, em sua totalidade, portanto, “devido a sua situação na sociedade moderna”, aqueles que vivenciam diretamente “o nexo entre o trabalho que dá aos homens, em sua luta com a natureza, ferramentas cada vez mais poderosas, por um lado, e a renovação constante de uma organização obsoleta, que o faz cada vez mais miserável e impotente, por outro” (HORKHEIMER, 1980, p. 134). Com a predominância do trabalho abstrato, os distintos trabalhos privados relacionam-se entre si a partir de uma qualidade que os tornam semelhantes, fazendo com que os próprios trabalhadores também possuam qualidades materiais que delimitam o contorno de sua especificidade. Assim, dentro do modo de produção capitalista, “o caráter privado do trabalho 18 Enquanto houver contradição entre capital e trabalho, expressa na usurpação da capacidade produtiva humana e representada na apropriação da riqueza produzida, permanecerá latente a potencial unidade entre os diversos trabalhadores, independente se estes não são mais fabris (como exposto na época de Marx e Engels (1998)), mas estão terceirizados, precarizados, no setor de serviços ou empregados em outras formas contemporâneas de trabalho. Por falta de espaço e para não desviar o foco deste artigo, não se debruçou aqui sobre a discussão sobre a operacionalidade desta unidade, que seja dada, por exemplo, por meio de um bloco histórico ou de organização de uma vanguarda comum. 19 Por isso que: “o trabalho dos pobres é a mina dos ricos” (BELLERS apud MARX, 1985, p. 188).

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reside no fato de que as tarefas dos trabalhadores particulares acham-se unificados no trabalho de um só trabalhador coletivo” (NAPOLEONI, 1978, p. 141). Devido a essa contradição inerente ao sistema capitalista, de que, ao expandir a lógica do lucro para as variadas esferas do convívio humano, alcançou-se uma predominância da mercadoria como elemento central de mediação social, tendo também como conseqüência a igualação dos distintos trabalhos privados numa mesma singularidade. Se por um lado a contradição entre capital e trabalho é escamoteada pelo processo de reificação, por outro surge uma materialidade que agrega sujeitos históricos que, por sua peculiar localização no processo produtivo, possuem uma carga de ruptura com esse próprio sistema. Para os trabalhadores, que sentem diretamente as contradições do sistema capitalista, restam-lhes, ou a continuidade enquanto explorados, expropriados de grande parte de sua riqueza produzida e de sua capacidade plena de realização a partir do trabalho20, ou uma formação coletiva que dê respostas a esse quadro de negatividades, objetivando sua transformação. Utilizando uma frase famosa: “os proletários não têm nada a perder nela, além de seus grilhões. Têm um mundo a conquistar” (MARX; ENGELS, 1998, p. 41). Existem, portanto, duas conseqüências do desenvolvimento das relações de troca e aumento da produtividade numa realidade fundada na apropriação privada dos meios de produção: a disseminação da lógica pautada na busca pelo lucro e a possibilidade de unidade da classe trabalhadora. Entretanto, são de ampla importância as mediações entre estas duas conseqüências, pois, tanto o imperativo da mercadoria influencia na conduta da classe trabalhadora, quanto a conduta da classe trabalhadora gera rebatimentos no imperativo da mercadoria. Como os trabalhadores também estão integrados e interagem dentro da sociedade presente, sendo por esta tendenciada, sua visão de mundo é influenciada por essa ideologia hegemônica. Mesmo tendo um potencial revolucionário, sua faculdade de intervenção social depende da capacidade de se postar criticamente diante dessa realidade, através da busca pela superação da ideologia capitalista. De pouco importa ter condições materiais potenciais de se postar como sujeito histórico central da transformação social, se não existe uma compreensão sobre tal fenômeno21. Mesmo com a tendência de aumentar a classe trabalhadora, existe, de forma contrária, uma ofensiva cada vez maior de impor uma visão alienada do processo produtivo, uma vez que, como se observou anteriormente, no momento em que se analisa a produção a 20

Mesmo salientando que em momentos mais propícios economicamente os trabalhadores obtiveram conquistas trabalhistas e salariais, ainda assim, seu trabalho, sua capacidade criativa primária, foi negada, ou seja, ocorreu apenas uma remuneração melhor de escravos: “de seu próprio mais-produto, em expansão e expandindo a parte transformada em capital adicional, flui de volta para eles uma parcela maior sob a forma de meios de pagamento, de maneira que podem ampliar o âmbito de suas satisfações, podem prover melhor seu fundo de consumo de vestuário, móveis etc., e constituir um pequeno fundo de reserva em dinheiro. Mas assim como melhor vestuário, alimentação, tratamento e um pecúlio maior não superam a relação de dependência e a exploração do escravo, tampouco superam as do assalariado” (MARX, 1985, p. 191). 21 A recíproca também é verdadeira.

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partir de uma perspectiva baseada na totalidade se percebem as fragilidades da naturalização e legitimação da forma mercadoria e da lógica do capital, convergindo para a ruptura com o véu fantasmagórico da reificação que envolve as mentes humanas. Neste sentido, faz-se necessário a agregação de ferramentas subjetivas que auxiliem no processo de superação da alienação imposta pela ideologia dominante. É preciso ter ciência da importância dos atos humanos para o desenvolvimento histórico da sociedade e, mais especificamente, do significante papel da classe trabalhadora no desenrolar da história e do advento de uma nova realidade. É aqui que entra o papel dos intelectuais que se propõem a pensar uma sociedade livre da exploração e que amplie as condições materiais e subjetivas de realização e plenitude humanas. Se existe uma possibilidade de vinculação dos trabalhadores em torno de uma unidade, se há potencialidades materiais postas, privilegia-se, como passo fundamental, a difícil tarefa de superação da consciência alienada para uma perspectiva crítica do mundo que circunda o ser social. É neste sentido que a teoria deve ser requisitada. Para romper com esse ordenamento social, é importante pensar em formas de interações e intervenções que sirvam para atentar sobre os ditames e desmandos do capital, para mostrar que se vive numa sociedade condicionada pela ótica da propriedade privada que impossibilita o desenvolvimento das qualidades autenticamente humanas e que faz com que o acesso aos avanços sociais se dê de forma restrita22.

Referências: BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho mo século XX. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. EVANGELISTA, João Emanuel. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2002. (col. Questões de nossa época – v. 07). GORENDER, Jacob. Introdução. In: MARX, Karl. Para a crítica da economia política; salário preço e lucro; o rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, 1986. (col. Os Pensadores). 22

Explicita-se que, dentro do sistema capitalista, estando o desenvolvimento social e das capacidades humanas determinado pela lógica capital, este é feito às custas de uma classe de homens e, assim, não pode generalizar seus avanços para o todo social. Sobre esse tema, merece menção à seguinte passagem de Marx (1980, p. 549): “com razão para o seu tempo, Ricardo considera o modo capitalista de produção o mais vantajoso para a produção em geral, o mais vantajoso para a geração de riquezas. Quer a produção pela produção, e está certo. Querer sustentar, como fizeram os adversários sentimentais de Ricardo, que a produção como tal não é o objetivo, é esquecer que a produção pela produção significa apenas o desenvolvimento das forças produtivas humanas, ou seja, desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si. Opor a essa finalidade o bem do indivíduo, é afirmar que o desenvolvimento da espécie tem de ser detido para a assegurar o bem do indivíduo, e que assim não se deve, por exemplo, conduzir uma guerra onde, seja como for, alguns indivíduos pereçam (Sismondi só tem razão contra os economistas que dissimulam ou negam essa contradição). Além da inutilidade de tais meditações edificantes, deixa-se de compreender que esse desenvolvimento das aptidões da espécie humana, embora se faça de início às custas da maioria dos indivíduos e de classes inteiras, por fim rompe esse antagonismo e coincide com o desenvolvimento do indivíduo isolado; que assim o desenvolvimento mais alto da individualidade só se conquista por meio de um processo histórico em que os indivíduos são sacrificados”.

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HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. In: BENJAMIN, W. et alii. Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980 (col. Os pensadores). KONDER, Leandro. Marx - vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 1998. LUKÁCS, Georg. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. MARX, Karl. Trabalho estranhado e propriedade privada. In: ANTUNES, Ricardo. (Org.). Dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004. ______. Para a crítica da economia política; salário preço e lucro; o rendimento e suas fontes. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986. (col. Os pensadores). ______. O Capital: crítica da economia política, vol. I, tomo I, (o processo de produção capitalista). Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1985. (col. Os economistas). ______. O Capital: crítica da economia política, vol. I, tomo II, (o processo de produção capitalista). São Paulo: Nova Cultural, 1985. (col. Os economistas). ______. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista de homem. 8. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. ______. Teorias das mais valia. vol 2. São Paulo: Difel, 1980. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista. In: FILHO, Daniel Aarão Reis (Org.). O manifesto comunista 150 anos depois. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. _______. A ideologia alemã I: crítica da filosofia alemã mais recente, na pessoa dos seus representantes Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner, e do socialismo alemão na dos seus diferentes profetas. Lisboa: Editorial Presença, 197?. NAPOLEONI, Cláudio. Trabalho abstrato, troca e capital em Marx. In: NAPOLEONI, Cláudio. Smith, Ricardo, Marx: considerações sobre a história do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Graal, 1978. NETTO, José Paulo. Razão, ontologia e práxis. In: Revista serviço social e sociedade. v. 44, ano XV, abril de 1994. São Paulo: Cortez, 1994. _______. Capitalismo e reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981. PIOZZI, Patrícia. Resenha de “A câmara escura” de Jesus Ranieri. In: Revista crítica marxista. n. 15. São Paulo: Boitempo editorial, 2002. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Sôbre o conceito de alienação em Marx. In: VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a. _________. O conceito de essência humana em Marx. In: VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977b. WELLEN, Henrique André Ramos. O “novo” aos olhos do “velho”: uma leitura da economia de comunhão a partir do pensamento de Marx. Dissertação de mestrado. Natal: UFRN, 2004. WELLEN, H. A. R.; SOUZA, W. J; TEIXEIRA, J. R. M.. Consciência de espécie em Marx: bases para uma discussão em torno da experiência de EdC. In: Anais do IX seminário do CCSA. Natal: CCSA, 2003.

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