Dialética em busca de hipóteses

July 23, 2017 | Autor: Constança Barahona | Categoria: Aristoteles
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A dialética em busca de hipóteses Constança Barahona UFRJ – PPGF Sessão Temática Antiga

Pensar sobre a dialética aristotélica traz consigo o desafio de se livrar, primeiramente, de preconceitos filosóficos ligados a ela e seu modo de funcionamento em geral. O que por si já seria uma tarefa hercúlea. Quando falamos em dialética é impossível não lembrar de Zenão de Eléa, Sócrates, Platão, Hegel, Kant, Marx e outros pensadores que se utilizaram dela. Em cada caso particular de seu uso, existem acepções diferentes do que seja e quais são suas funções. Contudo, há uma dialética nas obras de Aristóteles que permanece por desvendar. Costumamos achar que o trabalho basilar epistemológico do Estagirita já está acabado e resolvido, porém não é bem assim. A relação da dialética com o saber, seu método, a concepção dos Analíticos Posteriores, a caracterização dos personagens sofista-retórico e dialético-filósofo1, sobretudo a investigação dos princípios comuns do conhecimento? Qual importância a tradição interpretativa de Aristóteles deu à dialética? Dialégestai (, do grego antigo, indica a ação de conversar, calcular, refletir. A ciência2 dos Analíticos tendo por base um saber dado anteriormente, que é adquirido por definição ou intuição, lida com a adesão de princípios intuitivamente, o que Aristóteles pouco nos esclarece nesses textos do Órganon, mas que introduz como noûs (inteligência, intelecto), uma função que seria oposta ao raciocínio discursivo, pois não

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Aristoteles et Corpus Aristotelicum Phil., Sophistici elenchi, Bekker page 171b, line 7:

ὁ μὲν οὖν κατὰ τὸ πρᾶγμα θεωρῶν τὰ κοινὰ διαλεκτικός, ὁ δὲ τοῦτο φαινομένως ποιῶν σοφιστικός, καὶ συλλογισμὸς ἐριστικὸς καὶ σοφιστικός ἐστιν εἷς μὲν ὁ φαινόμενος συλλογιστικὸς περὶ ὧν ἡ διαλεκτικὴ πειραστική ἐστι, κἂν ἀληθὲς τὸ συμπέρασμα ᾖ (τοῦ γὰρ διὰ τί ἀπατητικός ἐστι), καὶ ὅσοι μὴ ὄντες κατὰ τὴν ἑκάστου μέθοδον παραλογισμοὶ δοκοῦσιν εἶναι κατὰ τὴν τέχνην. 2

Ciência aqui traduz o termo epistême, aproximadamente.

possui demonstração (apodeixis). E se possuirmos conhecimento de qualquer coisa, de acordo com os Analíticos Posteriores, é graças a um saber anterior. Faz-se, antes de qualquer coisa, referência a uma situação concreta de diálogo, ou de discussão, entre, ao menos, dois interlocutores, um dos quais sustenta certa tese, enquanto o outro a contesta. Esta é a primeira diferença fundamental entre a dialética e a apodíctida. Para Aristóteles, a prática dialética consiste em fazer avaliações sobre o que sabemos. Porém, não apenas no sentido de exercitá-la de modo técnico, isto é, segundo regras, mas também no sentido de teorizar tais regras. Usamos a dialética ao investigarmos alguns temas que começam a partir de uma análise do que as pessoas comuns costumam dizer, em outros casos são as teorias dos filósofos anteriores que fornecem o ponto de partida para problematizar e argumentar. Da mesma forma como em uma demonstração acatamos de início alguns conceitos não comprovados ainda em seu uso, na prática dialética devemos aceitar regras como as de uma conversação, para que o assunto possa ser desenvolvido e testado por meio de refutações dos contraditórios, até a comprovação da exposição proposta por um interlocutor. O que nos deixa a forte impressão de que sua metodologia seja a dialética é a maneira pela qual ela pode ser compreendida sinonimamente à lógica. Contudo a dialética aumenta a possibilidade de atuação sobre domínios das demonstrações que antes seriam não-científicas devido à ausência da determinação genérica exigida nos Analíticos. Se a dialética é a ferramenta do filósofo e auxilia-o na investigação do que é comum ao conhecimento geral, voltamos ao debate acerca dos princípios. Pressupomos a idéia de que não há conhecimento stricto sensu do próprio funcionamento da adesão à base da ciência. Ficamos com a impressão de que a dialética nada pode fazer a respeito disto, pois ela utiliza das opiniões mais reputadas, as endoxa, e essa investigação é bem maior e teria por objetivo expor algumas dificuldades em conciliar o papel do método dialético com as teorias do conhecimento e demonstração em algumas obras de Aristóteles tais como os Tópicos e os Analíticos Posteriores. O debate acerca dos princípios pressupõe a idéia de que não há conhecimento do próprio funcionamento da adesão da base da ciência. A dialética estaria fora do conhecimento científico de fato? Temos por meta expor algumas dificuldades em conciliar o papel do método dialético com a teoria da demonstração. Usos seguidos em contextos elencados nos Tópicos. Fórmulas para examinar os gêneros, as diferenças e os

próprios das coisas que se encaixam no mesmo termo e assim definir se são distintas ou não, subordinadas ou não. Caso da matemática, ótica, geometria, astronomia e música. Temos a possibilidade da teorização do método dialético? No quadro teórico estabelecido pelo Órganon, no qual se realiza a delimitação do discurso científico, a dialética aparece como um momento de ultrapassagem das (aparentemente) estáveis fronteiras existentes entre as diversas ciências. Aristóteles atribui a dialética o papel de uma investigação acerca dos princípios comuns, o que leva a crer que seu procedimento não acarreta numa eliminação de sua cientificidade e deu seu uso na construção das mesmas. Sobre o método dialético, que aparece como um tipo diferente de discurso científico, Aubenque afirma: “Mas quando ele quer reabilitar a dialética, vemos que essa mesma imperfeição torna-se uma vantagem: a propriedade do raciocínio científico envolve o cientista em um gênero, enquanto a dialética se move em todos os gêneros, ou mais precisamente, para além de qualquer gênero.” 3 Sobre as hipóteses, no silogismo, as declarações preliminares de fato (se comprovadas ou não) a partir das quais começa a inferência, isto é, as premissas (προτάσεις), τῶν ἀποδείξεων αἱ ὑ., equivalentes as ἀρχαί, investigar a partir de hipóteses, ἐξ ὑποθέσεως σκοπεῖσθαι , suposição, de raciocínio por meio de análise. Definição (ὁρισμὸς), de acordo com Pellegrin, em seu Vocabulaire d´Aristote: “A definição é, para Aristóteles, um tipo de princípio. A ciência se apóia então, entre outras coisas, sobre as definições para deduzir as propriedades essenciais e necessárias dos objetos que ela estuda. (...) Existe, enfim, um tipo de definição que se aplica aos “imediatos”, há então a postulação da essência sem demonstração. Ela se diz da definição dos primeiros princípios das demonstrações. De uma certa maneira, a pesquisa das definições é o ato principal da ciência aristotélica. Em um mundo composto de substâncias ontologicamente autônomas, a definição exibe a essência do definido, que se acha em ser também a causa principal, o “porquê último” (Anal. Post. II, 10).”4 De sorte que cada silogismo partirá de definições formuladas previamente. Entretanto, o que vem a ser uma 'definição'? Pesquisar as variações conceituais ao separar essências está ligado diretamente com o modo de se atingir uma definição verdadeira? Como a experiência, os gêneros próprios e as diferenças específicas se

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AUBENQUE, 1935, p.288. Tradução nossa. PELLEGRIN, P. Le vocabulaire d´Aristote.

relacionam com as definições? Quais as distinções entre uma demonstração e uma definição, se são predicáveis uma da outra, ou não? A série de dificuldades que Aristóteles aborda em escritos investigativos, passando pelos desafios do saber demonstrativo, nos conduz ao questionamento sobre o funcionamento e papel da definição no pensamento do filósofo. Qual é sua relevância no pensamento de Aristóteles? Seria um uso seguido apenas nos contextos elencados no princípio dos Tópicos, isto é, um método que nos capacite raciocinar a partir de opiniões de aceitação geral? Fórmulas para examinar os gêneros das coisas que se enquadram no mesmo termo e definir se são distintas. Existem aquelas definições adquiridas pela soma do gênero próprio à diferença específica. Não obstante, Aristóteles chama-nos a atenção para a definição através da identificação da semelhança: “Ἡ δὲ τοῦ ὁμοίου θεωρία χρήσιμος πρός τε τοὺς ἐπακτικοὺς λόγους καὶ πρὸς τοὺς ἐξ ὑποθέσεως συλλογισμοὺς καὶ πρὸς τὴν ἀπόδοσιν τῶν ὁρισμῶν. πρὸς μὲν οὖν τοὺς ἐπακτικοὺς λόγους5, διότι τῇ καθ' ἕκαστα ἐπὶ τῶν ὁμοίων ἐπαγωγῇ τὸ καθόλου ἀξιοῦμεν ἐπάγειν· οὐ γὰρ ῥᾴδιόν ἐστιν ἐπάγειν μὴ εἰδότας τὰ ὅμοια. πρὸς δὲ τοὺς ἐξ ὑποθέσεως συλλογισμούς, διότι ἔνδοξόν ἐστιν, ὥς ποτε ἐφ' ἑνὸς τῶν ὁμοίων ἔχει, οὕτως καὶ ἐπὶ τῶν λοιπῶν. ὥστε πρὸς ὅ τι ἂν αὐτῶν εὐπορῶμεν διαλέγεσθαι6, προδιομολογησόμεθα, ὥς ποτε ἐπὶ τούτων ἔχει, οὕτω καὶ ἐπὶ τοῦ προκειμένου ἔχειν, δείξαντες δὲ ἐκεῖνο καὶ τὸ προκείμενον ἐξ ὑποθέσεως δεδειχότες ἐσόμεθα· ὑποθέμενοι γάρ, ὥς ποτε ἐπὶ τούτων ἔχει, οὕτω καὶ ἐπὶ τοῦ προκειμένου ἔχειν, τὴν ἀπόδειξιν πεποιήμεθα. πρὸς δὲ τὴν τῶν ὁρισμῶν7 ἀπόδοσιν, διότι δυνάμενοι συνορᾶν τί ἐν ἑκάστῳ ταὐτόν οὐκ ἀπορήσομεν εἰς τί δεῖ γένος ὁριζομένους τὸ προκείμενον τιθέναι· τῶν γὰρ κοινῶν τὸ μάλιστα ἐν τῷ τί ἐστι κατηγορούμενον γένος ἂν εἴη. ὁμοίως δὲ καὶ ἐν τοῖς πολὺ διεστῶσι χρήσιμος πρὸς τοὺς ὁρισμοὺς ἡ τοῦ ὁμοίου θεωρία,”

O método ἐξ ὑποθέσεως συλλογισμούς, Εἷς μὲν δὴ ὅρος ἐστὶν ὅρου ὁ εἰρημένος, ἄλλος δ' ἐστὶν ὅρος8 λόγος ὁ δηλῶν διὰ τί ἔστιν. ὥστε ὁ μὲν πρότερος σημαίνει μέν, δείκνυσι δ' οὔ, ὁ

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108b.10 108b.15 7 108b.20 8 94a.1 6

δ'στερος φανερὸν ὅτι ἔσται οἷον ἀπόδειξις τοῦ τί ἐστι, τῇ θέσει διαφέρων τῆς ἀποδείξεως.

Aubenque escreveu a respeito dos Tópicos: “O objetivo deste tratado é encontrar um método pelo qual podemos raciocinar (syllogizesthai) sobre qualquer problema proposto a partir de teses prováveis (ex endozwn)”. O papel de destaque para os Tópicos, o Tratado da Dialética, surge, na chamada lógica nova, no período dos estudos escolásticos. Assim, na leitura de Aubenque: “Em ambos os pontos sublinhados por Aristóteles – universalidade da capacidade dialética e a probabilidade do ponto de partida – a dialética se opõe à ciência, a teoria da ciência de Aristóteles nos Segundos Analíticos”9. Aubenque defende um tipo de definição do que seja ciência para Aristóteles, baseada nos Segundos Analíticos, como sendo válida. A dialética, descrita como ferramenta do filósofo no livro Γ da Metafísica, busca estabelecer axiomas gerais de todas as ciências. No entanto, ao deparar-se com a colisão da nomeada ciência do filósofo com essa dura restrição teórica dos Analíticos, Aubenque explica: “Aristóteles dá à relação entre o discurso e as características gerais das suas afirmações, provavelmente, apenas uma justificação filosófica: podem-se provar os primeiros princípios de cada ciência, como qualquer manifestação pelos preceitos do gênero e não pode ser considerado projeto dentro da ciência em questão, antes dos preceitos dos primeiros princípios. Podem ser apenas princípios primeiros anteriores de cada ciência, os princípios comuns a todas as ciências.”10 O método dialético poderia ser definido como arte dialógica de argumentação cuja função central é examinar proposições hipotéticas e suas conseqüências lógicas. A demonstração é um modo de extrair conclusões de premissas estabelecidas anteriormente pela dialética. A exposição da função da dialética nos Tópicos não nos exige escolher entre o método dialético ou demonstrativo de Aristóteles, e mesmo aqueles que poderão insistir na superioridade das explicações científicas a partir de princípios que são estabelecidos com argumentos dialéticos baseados em opiniões comumente aceitas. Segundo Berti as endoxa usadas por Aristóteles “não têm uma

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AUBENQUE, 1935, p.257. Tradução nossa. AUBENQUE, 1935, p.258. Tradução nossa.

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aparência exclusivamente superficial, como ocorre com os endoxa aparentes, razão pela qual, em certa medida, merecem o consenso de que gozam11.” Berti: “Obviamente, o alto valor epistemológico dos endoxa faz que eles possam ser utilizados não apenas nas argumentações dialéticas ou retóricas, mas também nas científicas. O próprio Aristóteles declara nos Analíticos Posteriores – o tratado dedicado à teoria da ciência – que “do que ocorre por acaso não há ciência demonstrativa, pois o que ocorre por acaso não é nem necessário nem tampouco na maioria dos casos”, admitidno, assim, que também pode haver ciência do que ocorre na maioria dos casos.”12

Bibliografia ARISTOTLE, Posterior Analytics, Topica. LOEB CLASSICAL LIBRARY, Edited and translated by E.S. Forster, Harvard University Press, Cambridge Massachusetts, London, England, First published 1960. Reprinted 1966, 1976, 1989, 1997. AUBENQUE, P. Le problème de l´être chez Aristote, Paris: Ed. Tananá, 1935. BERTI, E. Novos Estudos Aristotélicos I, II. Edições Loyola. São Paulo, 2010. PELLEGRIN, P. Le Vocabulaire d´Aristote.

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BERTI, 2010, Vol. I, p. 372. BERTI, 2010, Vol I, p. 384.

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