Dialogismo como jogo de caracterização da mulher no século XIX

June 29, 2017 | Autor: R. Juliana Prado ... | Categoria: Discourse Analysis
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Dialogismo como jogo de caracterização da mulher no século XIX Raquel Juliana Prado Leite de Sousa

Introdução Dentre as inúmeras publicações destinadas ao público feminino no século XIX, destaca!se o jornal carioca A Marmota na Corte, pelo alcance que teve. Esse periódico foi fundado em setembro de 1849 por Francisco de Paula Brito e Próspero Ribeiro Diniz, mas teve seu nome mudado para A Marmota Fluminense em abril de 1852, quando o jornalista Paula Brito passa a ser seu único proprietário. Em julho de 1857, após crise financeira, seu nome é alterado para A Marmota, o qual figurou até o fim de sua publicação, em dezembro 1861. (SANTOS, 2009). Era editado na Typographia Dous de Dezembro, de Paula Brito, à Praça da Constituição, no Rio de Janeiro, e circulava, à época d´A Marmota Fluminense, todas as quartas e sextas!feiras. Seu público!alvo era assumidamente o feminino “[...] não é por menos, uma vez que a esse público específico deve!se a relativa ampliação do quadro de leitores no Brasil.” (SANTOS, 2009, p. 61). A criação de escolas públicas femininas no país foi autorizada por lei em 1827, permitindo o acesso das mulheres à educação formal e, consequentemente, aumentando o número de leitoras. O Censo de 1872, apesar de ser posterior à época de publicação do jornal estudado, ilustra bem alfabetização das mulheres livres moradoras do Rio de Janeiro (BERNARDES, 1988, p.14). Das 92.153 mulheres livres residentes na corte, 33.992 sabiam ler, ou 36,9%, quadro razoável para a época. O jornal, que era redigido por homens, é repleto de textos que visam a descrever o papel da mulher na sociedade burguesa. Entretanto, “[...] esses artigos revelam numa tentativa de representação da figura feminina, não se pode dizer que eles vinham 167

ao encontro das preferências femininas; antes parecem voltar!se mais para os maridos e pais [...] (SANTOS, 2009, p.64). O feminismo já havia despontado no Brasil por volta de 1830; nesse primeiro momento, que perdurou até 1870, seus ideais baseavam!se em concepções estrangeiras de luta pela educação da mulher (DUARTE, 2003). Entretanto, as ideias feministas não eram abordadas nos jornais femininos editados por homens. É o que se pode notar, por exemplo, no artigo A mulher, e seu caráter, que será analisado no presente trabalho. O texto foi publicado na segunda fase do jornal em quatro edições consecutivas, do número 312 ao 315 (de 09 a 11 de novembro de 1852), sempre com o mesmo título e com a indicação “continuado do n.º antecedente” (no início) e “continúa” (ao final). A autoria é desconhecida, sendo que o autor usa o pseudônimo Carapuceiro. O objetivo do estudo é analisar as estratégias linguístico! ideológicas para a formação do perfil da mulher burguesa de meados do século XIX sob a ótica masculina. Para isso, o embasamento teórico!metodológico partirá das concepções bakhtinianas de dialogismo e polifonia. A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo!psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme a época ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo específico, vê!se dominar ora uma forma ora outra, ora uma variante ora outra. O que isso atesta é a relativa força ou fraqueza daquelas tendências na interorientação social de uma comunidade de falantes, das quais as próprias formas lingüísticas são cristalizações estabilizadas e antigas (BAKHTIN, 2006, p.150).

Não há texto hermético, fechado em si, que não seja interpenetrado por outros textos, por outras vozes. Sempre há diálogos de textos com outros textos, verbais ou não!verbais. “O discurso não é único e irrepetível, pois um discurso discursa outros discursos. Nessa medida, o discurso é social” (FIORIN, 1994, p.35). Dizer que o discurso não é irrepetível implica em dizer também que ele não é propriedade de seu enunciador, mas da sociedade em que está inserido, pois “As condições da comunicação verbal, suas

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formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e econômicas da época” (BAKHTIN, 2006, p.157). Esse diálogo não se dá apenas por duas vozes, pode ser dada também pela polifonia, ou seja, “um diálogo entre diversas vozes, não apenas enquanto um elemento de citação estático, mas no sentido de constituir um discurso entre duas ou mais vozes que se mostram e interagem em um diálogo intertextual” (ZANI, 2003, p.125). Essa intertextualidade pode ser construída de três formas: A citação firma!se por mostrar a relação discursiva explicitamente e todo o discurso citado é, basicamente, um elemento dentro de outro já existente. Por sua vez, a alusão não se faz como uma citação explícita, mas sim, como uma construção que reproduz a idéia central de algo já discursado e que, como o próprio termo deixa transparecer, alude a um discurso já conhecido do público em geral. Por fim, a estilização é uma forma de reproduzir os elementos de um discurso já existente, como uma reprodução estilística do conteúdo formal ou textual, com o intuito de reestilizá!lo (ZANI, 2003, p.123).

Em A mulher, e seu caráter, o autor se utiliza mais constantemente de citações e alusões, que aparecem não só como recursos de inserção de outros discursos, mas também como recursos de constituição de seu texto. A intertextualidade é intensa e revela não só o estilo adotado pelo autor; mais do que isso, demonstra como a sociedade pensava a mulher no século retrasado. “O discurso citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma inter!relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da inter!relação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal” (BAKHTIN, 2006, p.151!152). Assim, analisar o jogo de diálogo utilizado em um texto publicado no jornal Marmota Fluminense, é também estudar a ideologia que rege a dinâmica social das mulheres na sociedade brasileira burguesa do século XIX. Entretanto, a mulher, no texto estudado, não aparece apenas como tema, mas como a outra ponta da dinâmica: a leitora. [...] a transmissão leva em conta uma terceira pessoa – a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas. Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso (BAKHTIN, 2006, p.149).

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Essa terceira pessoa, no texto estudado, é a mulher brasileira burguesa e branca do século XIX: a orientação do discurso se dará a fim de que seja apreendido por ela, com base nos saberes socialmente aceitos à época – apesar de que, como discutido anteriormente, o discurso do jornal estudado vinha ao encontro dos maridos e pais. Discussão Notou!se durante a leitura e análise do texto, alguns enunciados recorrentes. Dessa forma, trechos das quatro partes do artigo foram agrupados em eixos temáticos, que serão discutidos abaixo. 1. A natureza da mulher Antes de analisar o texto, convém traçar consideraçõesa a respeito da autoria do texto. O próprio pseudônimo do autor, Carapuceiro, já indica uma certa ironia. Carapuceiro, ou aquele que faz carapuças, dá a ideia de uma pessoa que fala indiretamente a outra. Vestir a carapuça traz a ideia de aceitar uma indireta como se ela fosse dirigida a si. Carapuça também pode ser o papel criado para um ator. Então, o pseudônimo Carapuceiro pode ter sido usado para indicar que se faz uma alusão disfarçada a alguém ou para remeter aquele que cria o papel a um único ator. No último caso, a autor seria o criador de um papel único, pois à mulher cabe encarar apenas uma personagem. Daí o título A mulher, e seu caráter: a mulher no seu sentido único (que é todas as mulheres) e o conjunto de traços que a define (comum a todas as mulheres). Essa ideia de natureza inata vai aparecer em vários trechos, como visto mais abaixo. “Quem poderá definir exatamente esse sexo amável, primor d´obra da criação?”. Assim o autor inicia sua sequência de textos, afirmando que é impossível definir a mulher. Entretanto, seu discurso está orientado para conceituá!la. Fazendo uma alusão à Bíblia, coloca a mulher na categoria de mais perfeita criação de Deus. A mãe (diz o doutor Virey) fecunda, e sagrada a fonte da vida, é a criatura mais respeitável da natureza! Dela é que dimanam sobre a terra as gerações, que perpetuam a raça humana. A mãe é Era, ou o ser vivificante, que nos agasalha, e

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que aquece em seu seio, que nos amamenta em seus peitos, que nos aperta em seus braços, e que protege a nossa infancia no grêmio de sua inexaurível ternura. Mulher! Mãe! Honra da criação! Que eternas homenagens vos não são devidas por todo o universo (MARMOTA, 1852a, p.3, grifo nosso).

Aludindo mais uma vez a obra divina – “Honra da criação!” – e citando outro discurso – “(diz o doutor Virey)” – coloca a mulher no topo da classificação natural – “criatura mais respeitável da natureza”. Assim, fixa o papel da mulher na sociedade da época: a mãe responsável pela procriação e criação dos filhos. Ao retomar o mito de Hera, irmã e esposa de Zeus, rainha do Olimpo, simboliza a mãe perfeita e a fertilidade (representada junto à romã) e é patrona das mulheres casadas (FALCON MARTINEZ; FERNANDES!GALIANO; LÓPES MELERO, 1997), marca o papel da mulher branca na sociedade: o de mãe e esposa. Entretanto, há um episódio em que Hera teria atirado do alto do Olimpo o filho Hefesto, por ter nascido deformado, faceta que não foi considerada no discurso, mas que pode ter sido apreciada pela leitora que conhece a história. Outra característica de Hera é sua personalidade vingativa, que a faz perseguir suas rivais, amantes de Zeus. A temática do ciúme e da rivalidade entre as mulheres será recorrente no discurso, como será visto mais adiante. Ainda em relação às características inatas, o autor não leva em conta a construção de gênero como um fenômeno social; mas atribui à natureza a personalidade da mulher: Para se conhecer bem a natureza original da mulher releva separar dela todas essas instituições artificiais que a modificam: releva examinar como a sua constituição se amolda aos diversos jugos da vida social, quer a vejamos escrava odalisca de um Sultão nos haréns d´Ásia, quer serva oprimida e desgraçada do selvagem, quer doce companheira do homem civilizado, e ídolo feliz d´um povo polido e halante (MARMOTA, 1852a, p.3, grifo nosso).

Do trecho acima, compreende!se que a sociedade da época não levava em consideração a construção socialmente dada do gênero feminino, ao contrário, acreditava que a mulher já nascia com sua personalidade definida. Mesmo as mais diferentes mulheres (escreva 171

odalisca ou doce companheira do homem civilizadado) no fundo são iguais, pois há nelas uma natureza original, que se adapta conforme a sociedade. É o que se percebe também em outros trechos: Relativamente ao caráter, e até ao espírito, menos diferença se encontra de mulher a mulher, do que de homem a homem: elas conservam!se mais perto da sua natureza, do que nós da nossa: parece, que a sociabilidade fortifica as suas propensões inatas, ao mesmo passo que diminui as nossas (MARMOTA, 1852d, p.3).

Como acreditava!se que a personalidade da mulher era inata, então também se considerava que todas as mulheres eram iguais. Entretanto, nesse trecho da última sequência de textos (publicado em 19 de novembro), aparece uma ideia antagônica àquela colocada na primeira sequência (publicado em 09 de novembro): a de que a vida social faz com que a mulher conserve sua natureza original. O autor, ao descrever a mulher, porta!se como um cientista que examina à distância o objeto de pesquisa. “Quem quiser estudar a mulher, observe como a natureza dispos essa tímida e loureira Galathéa, da qual disse o Mantuno / “El fugit ad satices, et se cupit ante videri.14” (MARMOTA, 1852c, p.3). Ao se referir novamente à natureza e ao empregar as palavras estudar e observe, o autor dá um toque de cientificidade ao artigo. Durante todo o texto, há um jogo de estilização que o aproxima de um texto científico. A natureza tímida da mulher é comparada à personalidade de Galateia que “[...] encarna a delicadeza e a doçura [...]” (FALCON MARTINEZ; FERNANDES! GALIANO; LÓPES MELERO, 1997, p.160). A ideia de personalidade inata aparece ainda em outros trechos, como “O requebro coquetterie, essa antiga precisão de agradar, inata na mulher [...]”(MARMOTA, 1852a,. p.3). A coquetterie, ou a arte de agradar e seduzir pela aparência, é também atribuída à natureza. Não se leva em consideração a função social da vaidade, que é apreendida, e não inata. A arte da sedução feminina através da moda teve um papel fundamental na sociedade do século XIX, uma vez que o

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Tradução

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casamento era a única oportunidade da mulher ascender socialmente. (SOUZA, 1951, apud BERNARDES, 1988). 2. Liberdade e fraqueza Outra temática recorrente aparece nas discussões sobre a fraqueza e a liberdade da mulher, como visto no seguinte trecho: E em verdade, nós procuramos a independência, ao passo que elas folgam de dar e receber uma doce escravidão. O homem reina pelo valor e autoridade; a mulher, prende!nos por laços e cadeias de mil afeições. Nós procuramos generalizar a nossa existência, ela particularizá!la; nós aspiramos a glória, ela a felicidade doméstica (MARMOTA, 1852d, p.3).

A mulher aqui é colocada na antítese do homem; enquanto ele busca a liberdade, ela quer ser escrava e, ao mesmo tempo, escravizar. A doce escravidão de que se fala diz respeito novamente ao casamento, uma vez que a felicidade da mulher é a vida doméstica. Ao mesmo tempo em que ela quer se amarrar ao casamento, também quer prender o homem a ele. Daí pode!se perceber o papel da mulher para a manutenção do casamento e da monogamia, mesmo contrariando a vontade do homem de ser livre, generalista e glorioso. O fraco não se liga ao forte senão para obter deste proteção. Daqui, segundo a fábula, Vênus tornou!se a amante de Marte: maravilhosa providência da natureza para a manutenção das espécies em todo o seu vigor, em sua perfeição original! No amor, bem como na guerra, a vitória cabe sempre aos destemidos. A mulher apaixona!se pelos caracteres belicosos, empreendedores e audazes: ela crê!se mais forte, porque é tímida, tirando motivo de glória em vencer um coração indomável, em segurar um inconstante, em dobrar uma soberba independência (MARMOTA, 1852a, p.3).

Aqui aparece mais uma antítese entre mulher e homem: ela é fraca e só se liga a ele, que é forte, para se proteger. Novamente aparece o casamento, dessa vez como uma instituição que visa à união de interesses e à manutenção da família. Fazendo uma alusão à relação amorosa dos deuses romanos Vênus – deusa romana da beleza e do amor – e Marte – deus da guerra sangrenta episódio inspirado na união de Afrodite e Ares, narrada pela mitologia grega, retoma!se o caráter do casamento 173

enquanto mantenedor das espécies e da sociedade. Também recoloca a ideia da mulher voltada para o casamento. Ao comparar o amor à guerra, aponta mais uma vez o interessa da mulher pelo matrimônio. A mulher mais destemida sempre vence na guerra por ter convencido um homem, naturalmente livre, a se casar. Percebe!se mais uma vez o valor do casamento enquanto ascensão social para as mulheres. “A flexível vinha há mister um arrimo. Nunca à mulher convém a liberdade, ou a independência. Nunquam salvis suis (diz Tito) exuitur servitus muliebris, et ipsae libertatatem quam viduitatas et orbitas facit detestantur15” (MARMOTA, 1852a, p.3). É socialmente aceito que a mulher, assim como a vinha, conjunto de trepadeiras de videira, precisa de um arrimo, de uma estaca para se desenvolver. O arrimo, no caso, é mais uma vez o casamento. Nesse trecho se misturam duas vozes, pois o autor, emenda uma construção sua a uma citação de Tito, indicando!a apenas no meio da frase. O autor toma a frase para si, coloca!a no texto como se fosse sua e também indica sua autoria. Assim ao mesmo tempo em que faz uma citação, realiza uma estilização, casando a palavra do outro à sua, para ratificá!la “Qual é a mulher capaz de resistir sempre ás ocasiões, à perseverança, a seduções de um homem teimoso e ageitadas às inclinações? Há poucas deste jaez! Por isso, dizia Montagne, “que furiosa vantagem, que é a oportunidade” (MARMOTA, 1852b, p.2!3). Mais uma vez aparece a mulher como fraca, ideia ratificada pela citação de Montagne: incapaz de rejeitar a oportunidade, cede ao sedutor perseverante. Aqui aparece o sexo fora do casamente e o adultério, entretanto, percebe!se que a mulher é colocada como vítima da sedução do homem. Não é ela que busca o sexo, o homem que é o responsável por convencê!la. Revela!se aqui a subserviência da mulher, como no seguinte trecho: Quanto não é para lastimar o que muitas vezes nos mostra a história, isto é, que os melhores maridos tiveram as mais corrompidas mulheres, por causa da demasiada indulgência deles! Para prova desta triste verdade bastam os dois

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LIVIO, Tito. Ab urbe condita. Tradução

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excelentes imperadores Antonio e Marco Aurelio, que casaram com as duas Faustinas, mãe e filha, ambas infames por suas desenfreadas devassidões, e ambas todavia colocadas por seus esposos no catalogo de deusas, a ponto de terem, depois de sua morte, templos e culto público! (MARMOTA, 1852b, p.2!3, grifo nosso).

As devassidões das esposas de Antonio e Marco Aurélio não são atribuidas a elas, mas sim ao seus maridos. A personalidade tolerante deles é a responsável pelos erros das mulheres. Essa ideia mostra o papel do homem de regular, inclusive, a conduta da esposa. 3. Amor, ciúme e rivalidade feminina O amor, o ciúme e a rivalidade entre as mulheres aparece recorrentemente para explicar causas e consequências de seu comportamento, como, por exemplo, no trecho “As mulheres naturalmente amam!se pouco umas às outras, porque são rivais” (MARMOTA, 1852b, p.2!3). Dizem, que o amor, que na vida não passa d´um episódio, é para a mulher um romance inteiro. Enquanto é menina, ela ama as suas bonecas, e já dá preferência aos bonecos: se está na idade núbil, ama a seu esposo e a seus filhos: na velhice, não havendo mais homem que se namore dela, volta!se para Deus, e para Santo Antonio, vindo a trocar um amor por outro, a fim de que nunca deixe de amar (MARMOTA, 1852b, p.2!3, grifo nosso).

À mulher só é possível amar verdadeiramente o masculino: o boneco, o esposo, o filho e o santo. Aqui antecipa!se o discurso de rivalidade entre mulheres, que também pode ser percebido em : “As mulheres naturalmente amam pouco umas às outras, porque são rivais. [...] Só para o homem ou para os filhos é que os sentimentos da mulher se exaltam até o heroísmo (MARMOTA, 1852b, p.2!3). É a competição pela ascensão social através do casamento e a preservação da família que colocam as mulheres como rivais, e o ciúme seria a arma de luta nessa concorrência: O ciúme é a paixão mais violenta do belo sexo. [...] Tais são os funestos ímpetos, que arrastam tantas esposas de amantes sensíveis à demência e a moléstias de languidez cuja origem ela debalde disfarçam, e que para serem adivinhadas hão mister, como o amor escondido, de perspicazes Erasistratos, que as descubram (MARMOTA, 1852b, p.2!3).

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Ao ciúme é dado um papel tão forte para a preservação do casamento, que ele é o responsável pelas doenças femininas. Vemos uma senhora pálida, desfeita, triste e pensativa, vítima da pílulas, de bichas e de xaropadas, ou ingredientes da botica: perguntamos!lhe de que se queixa: e responde!nos, com olhos de piedade, e soltando um suspiro: que sofre do estômago, da cabeça, que está atacada do nervoso; mas, na verdade, a causa de todo o seu mal é um amor infeliz, um pungente ciúme que a pobrezinha não pode manifestar. E qual será a razão porque, de ordinário, as mães aborrecem a sua nora, e quase sempre ama a seu genro?.. Digam!nos outros, que nós não queremos dizê!lo!.. (MARMOTA, 1852b, p.2!3, grifo nosso).

Nesse trecho aparece novamente a rivalidade entre as mulheres, mais especificamente entre sogra e nora, motivada pelo ciúme que a mãe nutre pelo filho. O ciúme também seria a arma de combate do homem na manutenção do casamento, sentimento primordial também para a mulher sentir!se segura e amada como vista neste trecho que faz alusão à literatura: Todas as mulheres perdoam a Orosmane o apunhalar a Zaira por exesso de ciúme, por isso, que sendo essa paixão devoradora prova do amor mais violento; qual a mulher, que antes se não ofendesse da fria indolência de um amante, que quasi sem pezar a visse arrebatada por outro? (MARMOTA, 1852c, p.3).

Zaira (Zaire) é uma tragédia escrita por Voltaire, transformada em ópera nos século XIX. Cristã levada ainda bebê para um palácio da Turquia, Zaira aceita a religião muçulmana e, anos mais tarde, torna! se noiva do sultão. Ao encontrar seu pai e irmão, promete a eles se batizar em segredo. Para isso, pede ao sultão que adie em um dia o casamento; esse, desconfiado da traição da noiva, apunhala!a. Descobrindo a inocência de Zaira, o sultão se suicida com o mesmo punhal (MERCADANTE; ROMANI; VOLTAIRE, 1837). Pode!se aqui retomar a ideia de legítima defesa da honra que, no Brasil, era socialmente aceita na época e, até a mudança no Código Civil em 2002, também era legalmente aceita. Aparece também um discurso em defesa da honra feminina, que teria mais um caráter de vingança:

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Notunque furens quid femina possit16, disse Virgílio. [...] Quem não conhece a raiva d´uma Medéa, que envia a sua rival uma túnica envenenada, e que degola os filhos com suas próprias mãos? Quem não tem ouvido na cena o gemido de dor d´uma Hermione desprezada por Pyrrho? Por isso dizia Propercio “Nulle sunt inimicitia nici amoris acerba17” (MARMOTA, 1852c, p.3).

Medeia, sendo preterida por Jasão, seu amante, envia joias e um vestido envenenado à noiva dele, matando!a. Após assassinar os próprios filhos, Medeia foge para Atenas (FALCON MARTINEZ; FERNANDES!GALIANO; LÓPES MELERO, 1997). O ciúme, aliado à fúria, é novamente colocado como arma de preservação do casamento. A mesma ideia é vista em outra alusão à mitologia: Hermíone, não conseguindo ter filhos com seu marido, Neoptólemo (Pirro), acusa a amante desse, Andrômaca, pela infertilidade. A história foi transformada em ópera por Domingos dos Reis Quita, daí a alusão à cena do gemido. Para comprovar sua tese sobre o ciúme feminino, o autor ainda usa uma citação que se assemelha à citação de um dado científico: “Nas casas dos alienados tem!se notado sempre maior número de mulheres loucas por ciúme, do que de homens pela mesma causa” (MARMOTA, 1852c, p.3). 4. Virtude feminina Outro discurso recorrente é o da mulher virtuosa, esteriótipo da esposa cristã e burgesa ideal. A mulher quanto mais se facilita, menos mérito conserva aos olhos do homem... Quanto mais se cuida em tornar ascendente pela profusão de favores, mais diminue da estima que adquirira. Pelo contrário, o homem prende!se mais àquela que se vende mais caro, porque em todas as coisas a raridade aumenta o preço, e o amor aguça!se por seus generosos sacrifícios (MARMOTA, 1852b, p.2!3).

Na competição pela ascensão social, a mulher deve guardar seu valor enquanto “mercadoria”, deve zelar pelo valor cristão de castidade para conseguir seu papel na sociedade: o de esposa. Sabe!se do que é capaz uma mulher furiosa. [Virgílio, Eneida 5.6] http://www. hkocher.info/minha_pagina/dicionario/n17.htm 17 Tradução 16

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Deverá o clima servir de escusa a muitos vícios, assim como querem, que dê razão de algumas virtudes? Parece que nos climas adustos, o amor, tornando!se mais ardente, exige mais reservas entre os dois sexos, porque ali os sentidos são mais inflamáveis, do que debaixo de céus gelados (MARMOTA, 1852d, p.3).

Também aparece um discurso parecido com o científico, quando há uma tentativa de encontrar nas causas naturais a explicação pela conduta feminina. Essa ideia foi bastante utilizada no século XIX pelos escritores do Naturalismo. No trecho acimo, essa explicação é aceita, na próxima, é negada: Essa influência dos climas, a que vários filósofos querem dar uma força quase fatal, é desmentida a muitos respeitos sobre o nosso Brasil. A haver exatidão nessa teoria, os nossos animais deviam ser dos mais fracos: mas observa!se o contrário. [...] Pelo lado moral, duvido que haja em todo o mundo mulheres mais virtuosas que as Brasileiras, e isso não obstante o perigoso contacto das escravas, que desde o berço oferecem exemplos senão de devassidão e torpeza? (MARMOTA, 1852d, p.3).

Aqui aparece a única a única referência que se faz à mulher negra, que é colocada fora do sexo feminino, possui outro caráter diferente daquele descrito pelo autor. Isso não é de se estranhar, uma vez que essa, salvo raríssimas exceções, não estava inserida no sociedade burguesa cristã. Considerações finais Percebe!se que sociedade do século XIX não levava em consideração a construção de gênero enquanto fenômeno social. Entendia!se que havia um caráter inato na mulher e comum a todas. Esse caráter estava embasado em torno de características como fraqueza, ciúme, subserviência, rivalidade e aspiração pela felicidade doméstica. Para caracterizar a mulher, o autor utilizou!se do dialogismo enquanto constituidor do texto e da a polifonia para convergir as diversas vozes do discurso. Todas as vozes aparentes são masculinas, todas as citações e alusões feitas partem de discursos elaborados por homens e socialmente aceitos durante longo tempo. E essas vozes masculinas são (re)tomadas pela voz do autor de texto.

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A teoria formulada por Bakhtin leva em conta tanto o que é de ordem individual, quanto o que é do domínio social [...] pretende considerar não só as polêmicas políticas, culturais, econômicas, que refletem visões de mundo diversas, mas também fenômenos como a fala – que se vai moldando pela opinião do locutor ou a reprodução da fala alheia (FIORIN, 2006, p.177).

As várias vozes presentes revelaram não apenas o discurso de domínio social, como também a opinião do locutor. Essas vozes não refletiram visões de mundo diversas; ao contrário, serviram para corroborar a posição pessoal do autor. Percebe!se assim, que tanto as ideias da esfera individual quanto as do domínio social são unívocas. À época, as mulheres já haviam ingressado na literatura, iniciando carreiras como escritoras e jornalistas e tentando modificar o discurso machista vigente na época. Entretanto, o discurso feminino, por não ser ainda socialmente aceito, não fez parte do jogo de vozes utilizado na construção do texto. O autor não buscou distinguir os diferentes comportamentos femininos, mas estabelecer um único comportamento, que seria próprio e inato em todas as mulheres (exceto nas escravas), revelando o “[...] ideário da moral cristã, que define papéis específicos para o homem e para a mulher no convívio social, bom como reforçando os esteriótipos da mulher desejada pelo homem e pela sociedade” (SILVA, 2004, p.116). O papel que se revelou durante todo o texto foi o de esposa. Como o casamento era a única forma de ascensão social da mulher, percebeu!se que, no século XIX, era colocado no centro das relações sociais femininas.

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