Diálogos e Saberes: Lições, experiências e recomendações dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas - PDPI

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Descrição do Produto

Coordenação Toya Manchineri

Série Sistematização do PDPI

Diálogos e saberes

Diálogos e saberes

Lições, experiências e recomendações dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas para Políticas Públicas

Série Sistematização do PDPI

Diálogos e saberes

Série Sistematização do

Organização: Toya Manchineri (GIZ) e Andréa Borghi M. Jacinto

Série Sistematização do Coordenação Toya Manchineri

Diálogos e saberes Lições, experiências e recomendações dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas para Políticas Públicas

Organização: Toya Manchineri (GIZ) e Andréa Borghi M. Jacinto

Dilma Vana Rousseff Presidência da República Izabella Teixeira Ministério do Meio Ambiente José Eduardo Cardozo Ministério da Justiça Flávio Chiarelli Vicente de Azevedo Presidência da Fundação Nacional do Índio

Série Sistematização do Coordenação Toya Manchineri

Diálogos e saberes Lições, experiências e recomendações dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas para Políticas Públicas

Organização: Toya Manchineri (GIZ) e Andréa Borghi M. Jacinto

Brasília 2015

Ficha técnica A Série Sistematização do PDPI (Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas) busca sistematizar e disseminar conteúdos e lições aprendidas com o PDPI como subsídio para formulação, aprimoramento e inovação de políticas, programas e projetos voltados aos povos indígenas. Essa publicação é produto dos projetos PDPI e “Demarcação e Proteção de Terras Indígenas”. O PDPI é uma realização do Governo Brasileiro, coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), no contexto da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável. O Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha apoia a execução do PDPI por meio do apoio técnico da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH e apoio financeiro da Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW)

Edição: MMA/GIZ Equipe técnica do PDPI: Jânio Coutinho (MMA), Thiago Schinaider (GIZ), Sandra Araújo Rosana Silva (GIZ), Luiz Fernando Araújo Borges Lima (GIZ)

Coordenação: Katrin Marggraff e Tomas Inhetvin

Apoio: Bernd Mitlewski (GOPA Worldwide Consultants)

Equipe: Elcio Machineri (Toya Manchineri) Heike Friedhoff, Ingrid Ramos, Márcia Gramkow, Margit Gropper, Monica Berwanger, Nikolaus Sigrist

Coordenação da Série da Sistematização: Toya Manchineri Organização da publicação: Toya Manchineri (GIZ) e Andréa Borghi M. Jacinto (GOPA/GIZ) Organização do caderno Memória em imagens: Luís Fernando Araújo Borges Lima, Márcia Gramkow, Toya Manchineri e Andréa Borghi M. Jacinto Revisão de português: Laeticia Jensen Eble Projeto gráfico: Ribamar Fonseca Editoração: Supernova Design Foto capa: Paneiro Manchineri Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira – CRB 1100 Copyright © 2015 by MMA, GIZ Distribuição gratuita, preferencial, bibliotecas, organizações indigenistas e indígenas. Proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização expressa dos editores: MMA/GIZ.

Dados Internacionais de catalogação Biblioteca “Curt Nimuendaju”

Manchineri, Toya; Jacinto, Andréa Borghi M. (Orgs.) Diálogos e saberes: lições, experiências e recomendações dos projetos demonstrativos dos povos indígenas para políticas públicas. Brasília: (MMA, GIZ 2015). 264p. Ilust 1. PDPI – Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas. 2. Políticas Públicas I. Título

325.45(81)

SUMÁRIO 8 APRESENTAÇÃO 12 PREFÁCIO 18 APRENDENDO COM A SISTEMATIZAÇÃO DOS PROJETOS

DEMONSTRATIVOS DOS POVOS INDÍGENAS Toya Manchineri

34 Corregedoria Geral da União e Projetos

Demonstrativos dos Povos Indígenas

58 59 83 106

GERÊNCIAS TÉCNICAS INDÍGENAS



Gersen Luciano Baniwa Escrawen Sompré Euclides Pereira Macuxi

150 SUBPROJETO PROTEÇÃO DA TERRA INDÍGENA E MANEJO

DE RECURSOS PESQUEIROS JUTAÍ/AM (No 472)

198 SUBPROJETO AUMENTAR A QUANTIDADE E

QUALIDADE DA PRODUÇÃO ARTESANAL DAS MULHERES INDÍGENAS KAXINAWÁ (No 179)

212 SUBPROJETO EXTRAINDO RENDA DA FLORESTA (No 467) 236 REFERÊNCIAS 238 APÊNDICE A - MEMÓRIA EM IMAGENS 254 APÊNDICE B - Roteiros de entrevistas e orientaçòes de pesquisa

262 LISTA DE SIGLAS

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APRESENTAÇÃO

O Ministério do Meio Ambiente (MMA),

a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável, por meio da Deutsche Gesellschaft für International e Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), apresentam a Série Sistematização do PDPI. Reunindo um conjunto de quatro publicações, a concepção da série está articulada ao esforço de sistematizar e disseminar conteúdos e lições aprendidas do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI), como subsídio para formulação, aprimoramento e inovação de políticas, programas e projetos voltados aos povos indígenas. A proposta de sistematização foi idealizada coletivamente em 2012, em uma oficina de trabalho composta por representantes do Estado, do movimento indígena, da cooperação internacional e de organizações parceiras (Miccolis e Goulart, 2012a;

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Miccolis e Goulart, 2012b). A partir dessa idealização, foram concebidos quatro produtos, que organizam, de diferentes modos, esse conjunto de experiências vividas e realizadas por mais de dez anos. O primeiro produto é a publicação Diálogos e saberes, que reúne memórias, experiências e recomendações de pessoas que vivenciaram o PDPI ao longo da última década. Partindo de abordagens mais subjetivas e narrativas, a publicação privilegia uma linguagem direta e próxima à oralidade dos relatos. Reúne narrativas e impressões de diferentes participantes, indígenas e não indígenas, sobre como se concretizou a gestão do PDPI, sobretudo com a implementação dos subprojetos, e a compreensão que os diferentes atores envolvidos têm sobre suas vivências. O segundo produto, intitulado A formação de gestores indígenas de projetos, consiste em uma publicação que oferece especial atenção aos cursos de formação

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de gestores de projetos indígenas (Verdum, 2014). O trabalho compartilha textos de cursistas, técnicos, professores e coordenadores que participaram do primeiro curso de formação, entre 2004 e 2005, em Manaus, bem como da segunda edição, que apoiou outros seis cursos em diferentes regiões da Amazônia. Este volume apresenta também, de modo mais sistemático, em seu primeiro capítulo – “Os arranjos e processos institucionais do PDPI” –, o histórico da criação do PDPI, no âmbito do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), como desdobramento do Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA), executado pelo Ministério do Meio Ambiente. O capítulo oferece uma visão sobre o processo de constituição e arranjos institucionais do projeto, seus objetivos e princípios, bem como sobre as relações entre instâncias governamentais, internacionais e não governamentais da sociedade civil ao longo de mais de dez anos. Considera historicamente um ciclo inaugurado com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em 1992, e o papel fundamental do protagonismo indígena, que teve no Seminário de Tefé, em 1999, um de seus momentos emblemáticos, ao lado das gerências indígenas, da participação na estrutura de funcionamento do PDPI, e da própria gestão dos subprojetos. Assim, é um capítulo que não apenas contextualiza os cursos de formação de gestores indígenas, mas sintetiza e descreve os principais momentos, processos e atores envolvidos na história do PDPI. O terceiro produto é o Catálogo de projetos PDPI, que apresenta e descreve 183 projetos implementados por organizações, associações e comunidades indígenas na Amazônia Brasileira. O catálogo registra o vasto horizonte de iniciativas e a diversidade dos subprojetos nas áreas de proteção territorial, atividades econômicas sustentáveis e valorização cultural (Silva, 2014).

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O quarto e último produto envolveu a produção do vídeo Contando a história do PDPI, que traz, em linguagem audiovisual, narrativas sobre a proposta, resultados e experiências ao longo do processo idealização e implementação do PDPI. Esse vídeo permite a ampliação do olhar e uma aproximação mais colorida e humana dos vários aspectos que caracterizaram o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI). Espera-se que a sistematização e divulgação dessas experiências, em variadas perspectivas e linguagens, possa registrar um capítulo precioso da política indigenista e indígena, contribuindo de modo mais incisivo e permanente para a construção e consolidação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas no Brasil.

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PREFÁCIO

O Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas

(PDPI), foi uma ação desenvolvida no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que nasceu e foi realizada como trabalho conjunto e colaborativo entre Estado brasileiro, povos indígenas e cooperação internacional, entre o final dos anos 1990, e a primeira década do século XXI. Entre as principais inovações do PDPI como ação do Estado brasileiro está a participação indígena no gerenciamento de um projeto governamental, e o apoio a iniciativas indígenas nas áreas de proteção territorial, valorização cultural, atividades econômicas sustentáveis e fortalecimento institucional, por meio de suas organizações ou por organizações parceiras. A estruturação dessa ação foi feita processualmente, com a participação dos diferentes grupos envolvidos. O registro dessa experiência ocorreu, ao longo de sua história, em diferentes publicações técnicas e

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institucionais, e também em trabalhos acadêmicos e políticos, que avaliaram criticamente seus passos e etapas. Somando-se a esses registros, a proposta de sistematização e disseminação da experiência do PDPI que orienta esta publicação reforça a importância da participação e do protagonismo indígena. Ao lado dos outros produtos da sistematização, que oferecem uma descrição de como funcionou o PDPI, procurou-se aqui compartilhar boas práticas desenvolvidas, pensandose também nos cenários atuais e desafios futuros, e nas recomendações e orientações de diferentes atores, indígenas e não indígenas, envolvidos nessa história. O título – Diálogos e saberes – evoca as trocas e aprendizados entre pessoas comprometidas nos processos que ocorreram ao longo de mais de dez anos, com a gestão do PDPI e de seus subprojetos. O interesse no diálogo diz também dos saberes em

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questão – saberes abertos e construídos na experiência, na interpretação e feitura de histórias. A contribuição da publicação quer alcançar outras expressões de conhecimento sobre o PDPI que possam, como as narrativas, aconselhar – isto é, sugerir um modo de se continuar essa história. Além das questões direcionadas aos indígenas envolvidos nos subprojetos, a publicação pretende também apreender outros aprendizados: o das equipes que fazem gerenciamento do PDPI/MMA, e o de outros profissionais envolvidos, como os da cooperação internacional ou dos auditores que fiscalizam a prestação de contas dos projetos. O que representantes do Estado têm aprendido e podem ensinar sobre os encontros e desencontros da gestão de projetos indígenas? O que os subprojetos ensinam à gestão realizada ou planejada em Brasília, às suas lógicas e linguagens? Em que medida essas lições podem ter influenciado novas visões e perspectivas dentro do Estado, ou da cooperação entre Estados e povos indígenas? Em busca dessas respostas, promoveram-se encontros com os participantes deste livro, cujas conversas foram norteadas por um roteiro, também aberto a novas questões e olhares. Como método, os diálogos foram registrados e transcritos, privilegiando a oralidade e a comunicação entre diferentes públicos leitores. Tais diálogos tornaram-se, assim, a principal base desta publicação. Nesse percurso, o primeiro texto é de Toya Manchineri, responsável pelo trabalho de sistematização como assessor técnico da GIZ. Ele descreve esse trabalho e a produção do Diálogos e saberes a partir de sua própria história como Manchineri, participante do movimento indígena da organização indígena Mapkaha, e em outro momento, também responsável pela execução de um subprojeto do PDPI.

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Em seguida, são apresentados os textos que compõe os Diálogos. O primeiro texto apresenta, de um lado, Cássio Mendes David de Souza e Eduardo Ribeiro, auditores da Corregedoria Geral da União (CGU), órgão responsável pelo controle e fiscalização das atividades do Estado e pela defesa do patrimônio público – responsáveis, nesse sentido, pelo acompanhamento e controle das atividades do PDPI. De outro lado, Jânio Coutinho e Sandra Araujo, respectivamente, gerente técnico e assessora financeira do PDPI, responsáveis pela execução do projeto e também pela mediação entre razões administrativas e jurídicas da lógica do Estado, bem como razões acionadas pela complexidade dos contextos socioculturais e econômicos que caracterizam o universo indígena e os subprojetos. As questões levantadas por esse diálogo apontam alguns dos desafios enfrentados pelo PDPI e, de certa forma, são retomadas e respondidas de diferentes modos pelas outras narrativas e falas dos participantes desta publicação. O segundo bloco de textos traz o diálogo com os gerentes indígenas do PDPI, desde o início de sua operacionalização, em 2000, até 2012, quando começa seu processo de finalização. Seguindo essa ordem cronológica, a primeira conversa ocorre entre Gersen Luciano Baniwa, primeiro gerente indígena do PDPI, no período de 2000 a 2004, Márcia Gramkow, assessora técnica da GIZ, que acompanha o PDPI desde o período de sua formulação, e Toya Manchineri, responsável pela sistematização do PDPI. Em seguida, apresentase o diálogo entre Escrawen Sompré, gerente indígena do PDPI entre 2004 e 2006, Toya Manchineri, assessor técnico da GIZ e Andréa Borghi M. Jacinto, GOPA/GIZ, consultora para a publicação. Finalmente, fechando esse ciclo, tem-se o diálogo entre Euclides Pereira Macuxi, gerente indígena entre 2007 e 2011, que conversou com Thiago Schinaider, assessor financeiro do PDPI. É um bloco extremamente rico, que traz memórias e avaliações sobre as vivências na relação

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com o Estado, na história do movimento indígena, entrelaçadas às suas experiências pessoais e coletivas em diferentes regiões do Brasil e entre diversos povos. Sua leitura envolve também o leitor em histórias de vida, desenroladas em diferentes contextos e razões históricas, culturais e políticas. Lições sobre administração pública, política, cultura e a convivência na diversidade. Os três textos seguintes, que fecham a publicação, trazem visões do que o PDPI proporcionou à vida das pessoas em seus cotidianos em família, nas aldeias, em terras indígenas, municípios e regiões que desenvolveram projetos entre os povos Cocama, Kaxinawá, Cambeba, Kanamari e Maku. O texto sobre o subprojeto Proteção da Terra Indígena e Manejo de Recursos Pesqueiros Jutaí/AM (no 472) registra os encontros e diálogos mantidos com Ocemir Salve dos Santos, coordenador do projeto, juntamente com a equipe de participantes e os moradores das comunidades Cocama, da Terra Indígena Espírito Santo, no município de Jutaí, no Amazonas. Em seguida, temse o relato sobre o projeto Aumentar a Quantidade e Qualidade da Produção Artesanal das Mulheres Indígenas Kaxinawá (no 179), com as contribuições de Judite Carlos da Silva e Raimunda Nonata Silva Pinheiro (Raimundinha), do povo Huni Kui, e o trabalho desenvolvido pela Associação das Produtoras de Artesanato das Mulheres Indígenas Kaxinawá de Tarauacá e Jordão (APAMINKTAJ), no Acre. Finalmente, apresentam-se informações sobre o projeto Extraindo Renda da Floresta (no 467), trazidas por André da Cruz Cambeba e Mariano Cambeba, que compartilham as experiências desenvolvidas junto com povos Kanamari e Maku Nadeb, na Terra Indígena Maraã Urubaxi e Terra Indígena Paraná do Boá Boá, municípios de Japurá e Maraã, estado do Amazonas.

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Todos esses encontros e diálogos trazem também recortes sobre o tempo do PDPI. Muitos dos que participaram e contribuíram para esse processo não aparecem aqui, mas deixaram suas marcas em outras contribuições e produções. Como forma de contemplar algo desses outros momentos e pessoas, compõe a publicação uma pequena coleção de fotos para uma memória em imagens, que contou com a contribuição de Luís Fernando Araújo Borges Lima, assessor financeiro do PDPI. São relatos e registros de alguns povos e pessoas, entre os muitos que ajudaram a sonhar e realizar o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI). Que suas palavras e experiências possam fortalecer a memória do caminho percorrido, e contribuir para novos horizontes de participação dos povos indígenas no Estado brasileiro.

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APRENDENDO COM A SISTEMATIZAÇÃO DOS PROJETOS DEMONSTRATIVOS DOS POVOS INDÍGENAS Toya Manchineri

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Uma primeira apresentação: do Seringal Petrópolis ao movimento indígena

Toya Manchineri em reunião na comunidade Manchineri, aldeia Jatobá, TI Mamoadate. Foto: Eduardo Weizmann.

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Sou Elcio Severino da Silva Manchineri e nasci

em 8 de junho de 1968, no seringal Petrópolis. Sou conhecido como Toya por meu povo, os Manchineri, da família linguística Aruak. Meu pai se chama José Severino da Silva, ex-cacique da comunidade Manchineri da aldeia Extrema, Rio Iaco ou Kajpaha como é conhecida por meu povo. Minha mãe, já falecida, chamava-se Maria Severino de Souza. Em vida, ela era o esteio de nossa família, e toda educação que tenho hoje veio dela e de minha avó por parte paterna, que se chamava Petronia Maimará. Meu pai viajava muito a trabalho, juntamente com seus primos, sobrinhos e tios, a serviço do dono seringal Petrópolis. Quando em vida, minha mãe e minha avó gostavam de criar pequenos animais, como galinha, pato, carneiro e suínos, e isso garantia nossa alimentação quando meu pai estava em viagem. Tenho 45 anos, sou pai de sete filhos, sendo quatro mulheres e três homens. Atualmente, trabalho na Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH. Minha função é coordenar o processo de sistematização e disseminação dos projetos apoiados pelo Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI), executado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e com recursos destinados às comunidades, povos e organizações indígenas. Esse processo conta com recursos financeiros oriundos do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha por meio do Banco KfW e da assistência técnica da GIZ. Em 1979, fui enviado por meu pai e mãe para estudar na cidade de Rio Branco, no Acre. Na cidade, tive oportunidade de conhecer Rivaldo Apurinã, Antonio Apurinã, Biraci Yawanawa, Zezinho Kaxarari, Francisco Avelino Apurinã, Sales Yawanawa, Rondon Apurinã e Roque Yawanawa – todos com os meus objetivos:

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estudar. Em Rio Branco, fundamos a Associação dos Estudantes Indígenas do Acre e Sul do Amazonas. Nosso papel principal foi auxiliar as lideranças indígenas do Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia a marcar as audiências com as autoridades não indígenas, ou seja, fazer uma assessoria às lideranças. Em 1987 recebi um convite de Antonio Apurinã, recémeleito coordenador da União das Nações Indígenas (UNI/AC) para auxiliá-lo na organização. Nessa época, a UNI era registrada como Núcleo de Cultura Indígena (NCI) e só pudemos registrar nossa organização (Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia) como UNI após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), na qual o Estado brasileiro reconhece aos povos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (artigo 231 da CF/88). No ano de 1989, fui eleito para a tesouraria da UNI/ Acre, sendo reeleito em 1996 para mesma função. Antes de completar o segundo mandato, fui indicado pela coordenação da UNI/Acre para compor uma chapa com Gersen Baniwa, Maria do Carmo Wanano, Darcy Comapa Marubo para concorrer à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), e essa chapa foi eleita para o biênio 1996 a 1998. Na COIAB, fui eleito diretor de Áreas de Direitos Humanos e Políticas Sociais da Coordinadora de las Organizaciones Indigenas de la Cuenca Amazónica (COICA), para o quadriênio 1997-2001. Em 2003, fui indicado pelas lideranças indígenas do Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia para a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), ligada ao Ministério da Justiça (MJ). Mais recentemente, em 2008, fiz parte do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) que teve por objetivo elaborar proposta da Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas.

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Os Manchineri e a MAPKAHA

Humberto Sebastião Manchineri e família, aldeia Extrema, TI Mamoadate. Foto: Toya Manchineri.

Minha primeira informação sobre o PDPI veio da parte de Francisco Avelino Apurinã e, depois, de Carlos Brandão Shanenawa, coordenador e secretario da UNI/ Acre. Carlos era responsável pelo acompanhamento das reuniões sobre o PDPI. No final de 2004, encaminhamos ao Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI) o projeto Resgate, Revitalização e Registro da Cultura Manchineri, o qual foi aprovado em janeiro de 2005. As ações realizadas pela expansão da seringa e depois da pecuária no Acre desde o século XIX resultaram na extinção de vários povos indígenas. Os que conseguiram sobreviver ficaram dispersos pelas cabeceiras dos igarapés. A dizimação quase completa dos habitantes das terras do Acre foi inevitável. Somente poucos de uma dezena conseguiram

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sobreviver aos dias atuais, entre eles está o povo Manchineri. As atividades nos seringais forçaram os Manchineri a se adaptar ao modo de organização social do pairu (homem branco). Para se adaptarem a uma forma de viver e ver o mundo com o “olho” do outro, os Manchineri foram quase que de imediato forçados a esquecer de seu próprio mundo. Por várias décadas, o Povo Manchineri ficou sob a organização social do homem branco. Somente em 1975, quando foi instalada a Ajudância da Funai no Acre (Ajacre), é que se inicia a luta dos Manchineri e Jaminawá na reconquista de seu território tradicional. Nessa época, conforme relatório de identificação da Terra Indígena Mamoadate, de autoria do antropólogo Noraldino Vieira Cruvinel e do chefe da Ajudância do Acre na ocasião, José Porfírio de Carvalho, publicado em 1º de julho de 1977, a população Manchineri era de apenas 202 pessoas, vivendo em vários seringais do Rio Iaco. Atualmente, o povo Manchineri habita três terras indígenas (TIs) – Cabeceira do Rio Acre, Manchineri do Seringal Guanabara e Mamoadate –, com uma população de 997 pessoas.1 Ao comparar o crescimento populacional de 1977 a 2012, ou seja, 35 anos após o retorno ao seu território tradicional, há um crescimento baixo. Isso ocorre por vários fatores: deslocamento constante entre as aldeias e as cidades próximas; migração de jovens para outras aldeias de povos diferentes; saída de jovens Manchineri para trabalhar na Bolívia e Peru; além da migração de famílias Manchineri para as cidades como Sena Madureira, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Xapuri e Assis Brasil (Acre), e para outras terras indígenas como a Terra Indígena Kaxarari (Rondônia). Esses fatores são impulsionados 1 Fonte: Sistema de Informação da Atenção da Saúde Indígena (Siasi) da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai, 2012).

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porque as famílias Manchineri não têm uma fonte de renda constante que possa fortalecer a economia familiar, e falta educação escolar de qualidade nas escolas Manchineri, motivos pelos quais muitos passam a morar na cidade. A economia das famílias Manchineri é focada na produção de mandioca, milho, arroz, feijão e na criação de animais de pequeno, médio e grande porte (galinhas, patos, carneiro, suínos e bovinos). Esses produtos são comercializados nos municípios de Assis Brasil, no período em que as águas do Rio Iaco estão baixas, e em Sena Madureira, quando o Rio Iaco está com volume de água alto. Os compradores também vão até as aldeias Manchineri para fazer as compras, principalmente de bovinos e suínos. Os Manchineri, como a maioria dos indígenas no estado do Acre, tinham como referência política e de organização a União das Nações Indígenas do Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia (UNI-AC). Em 2000, por fatores políticos e administrativos, a UNI cessou suas atividades, e cada povo ou comunidade indígena instituiu suas associações para dialogar com instituições governamentais e não governamentais e acessar recursos financeiros. Seguindo os ventos de mudanças políticas no cenário do movimento indígena acreano, em 2003, as comunidades Manchineri das terras indígenas Mamoadate, Cabeceira do Acre e Guanabara Rio Iaco instituíram a Manxinerune Ptohi Kajpaha Hajene (MAPKAHA). A instituição da organização tinha como objetivo principal que as comunidades Manchineri trabalhassem em colaboração mútua, visando à prestação de serviços que pudessem: i) contribuir para o fomento das atividades econômicas sustentáveis com recursos naturais existentes em sua terra; ii) promover atividades de pesquisa em parceria com instituições nacionais relacionadas ao manejo sustentado da fauna e flora; iii) promover campanhas de

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conscientização sobre a preservação do meio ambiente; e iv) garantir a qualificação técnica e científica do povo Manchineri, em parceria com instituições públicas, privadas, nacionais e internacionais. A representação da MAPKAHA é somente externa, ou seja, cada aldeia continua com seu cacique, indicado pelas famílias das comunidades, que tem a função política de representar aquelas comunidades junto ao governo e frente a outras lideranças políticas, sejam elas Manchineri ou de outros povos. Os caciques das aldeias Manchineri estão no posto maior da organização, que é o Conselho de Administração. Dessa forma, os caciques Manchineri têm o controle da organização, e não há interferência na organização tradicional e sim fortalecimento das iniciativas das comunidades.

O projeto Resgate, Revitalização e Registro da Cultura Manchineri

Projeto Resgate, Revitalização e Registro da Cultura Manchineri, aldeia Jatobá, TI Mamoadate. Foto: Toya Manchineri.

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O projeto Resgate, Revitalização e Registro da Cultura Manchineri tinha por objetivo aprimorar o conhecimento de artesãos e artesãs Manchineri no acabamento de materiais produzidos a partir da argila e do algodão. A proposta principal do projeto era realizar um intercâmbio com a comunidade Piro, da aldeia Diamante, localizada no município de Boca Mano, no Peru. A primeira atividade do projeto consistiu na apresentação da proposta do projeto às comunidades Manchineri das terras indígenas Mamoadate, Manchineri do Seringal Guanabara e Cabeceira do Rio Acre. Assim, o intercâmbio foi estruturado para ocorrer em três momentos distintos. O primeiro, consistiu na visita de Toya Manchineri (então secretário-executivo da MAPKAHA) e Jaime Manchineri (diretor de etnodesenvolvimento e formação política na MAPKAHA) à aldeia Diamante para negociar o intercâmbio entre as comunidades Manchineri e Piro. Após essa apresentação, foram indicadas onze pessoas para viajar até a aldeia Diamante, no município de Boca Mano (Peru), onde vivem os parentes Piro. A seleção dessas pessoas se deu em função de seus conhecimentos na confecção de artesanatos elaborados a partir de argila, algodão, palhas e cipós, bem como na composição dos pigmentos para pintura dos materiais. O segundo momento consistiu na ida de onze Manchineris da Terra Indígena Mamoadate à aldeia Diamante, e teve como objetivo um primeiro diálogo entre as mulheres Manchineri e Piro sobre a confecção e acabamento dos artesanatos produzidos a partir da argila e do algodão. Essa visita durou 19 dias. A terceira e última etapa do intercâmbio consistiu na vinda de famílias Piro para a Terra Indígena Mamoadate. O objetivo dessa atividade foi a troca de experiência no tocante à confecção e ao acabamento de artesanato produzido a partir da argila e algodão,

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além da troca de informações a respeito de plantas medicinais (preparo, dosagem e uso). Os conhecimentos foram socializados por meio de seis oficinas sobre tecelagem, cerâmica, pinturas e desenhos, plantas medicinais, cantoria/danças e história Manchineri. As oficinas foram realizadas no período de 1º a 30 de agosto de 2006. Participaram representantes da aldeia Maria Montesa, localizada na Terra Indígena Cabeceira do Acre; representantes das aldeias Novo Milênio e Santa Rosa, da Terra Indígena Manchineri do Seringal Guanabara; representantes das aldeias Peri, Jatobá, Santa Cruz, Laranjeira, Água Preta, Alves Rodrigues, Cumaru, Lago Novo e Extrema, da Terra Indígena Mamoadate; e representantes da aldeia Diamante (Peru). O preparativo dos materiais necessários para as oficinas ficou a cargo de Tereza Brasil Manchineri, Rosinha Samarã Manchineri, Laura Manchineri , Luzia Cabral Manchineri e Maria Aparecida Manchineri. Os materiais utilizados nas oficinas foram todos naturais, com tecnologia Manchineri, ou seja, nenhum material utilizado nas pinturas corporais, cerâmicas e na tecelagem era industrializado. Tanto os Manchineri como os Piro detêm o conhecimento sobre como fazer as composições das cores com plantas da floresta para utilizar em seus artesanatos e pinturas corporais. A tecnologia externa utilizada nas oficinas restringiu-se a lápis, cadernos e filmadora.2 O projeto foi importante por ser um momento em que os detentores de conhecimento/intelectuais Manchineri (guardiões do saber) puderam demonstrar aos jovens o potencial de nossa cultura. Mesmo quando não praticado por muito tempo (pintura, dança e cânticos), 2 Os materiais de escrita foram utilizados pelos professores para registrar as falas das mestras na oficina e fazer o desenho dos produtos. Já a filmadora foi utilizada para captar as imagens do processo de revitalização da cultura Manchineri e, posteriormente, transformar essas imagens em um videodocumentário sobre a implementação do projeto.

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esse conhecimento ainda estava presente na memória de muitos Manchineri. Então, medir o resultado dessa iniciativa talvez seja difícil, mas para mim, que vivi esse processo, foi possível ver no olhar de meus parentes, principalmente os detentores desse saber, o orgulho pela valorização de seus conhecimentos. Essa ação ou atividade talvez não tenha significado para os gestores “brancos”, pois seus olhares estão focados em estatísticas (número de participantes, quantas peças foram confeccionadas, se modificou a situação da comunidade). O que posso afirmar, com toda certeza, é que houve respeito e valorização dos nossos conhecimentos ancestrais; e quando se respeita e valoriza o outro, isso gera uma cadeia de iniciativas positivas.

Aproximações com o Projeto Demonstrativo dos Povos indígenas: construindo a sistematização

Equipe Técnica do PDPI e da GIZ, membros das organizações indígenas e consultor, durante a oficina para construção de sistematização e disseminação do PDPI. Foto: Alexandre Goulart

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No início de 2005, a Coordenação Executiva da COIAB encaminhou a seus parceiros o edital do PDPI para selecionar indígenas para o 1º Curso de Formação de Gestores de Projetos indígenas. Com o formulário em mãos, indiquei José Ribamar Alves Rodrigues Manchineri e Maria das Graças Costa Silva para participar do curso. Ambos foram selecionados como representantes (cursistas) da MAPKAHA. Foi assim que iniciei os contatos com o projeto. Em 2011, a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH lançou edital para contratação de um indígena para coordenar o processo de sistematização e disseminação do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI). Naquela época, Francisco Avelino Apurinã estava na representação da COIAB em Brasília (DF), e enviou o edital da GIZ para mim, solicitando que enviasse meu currículo para a coordenação da COIAB. Em seguida, numa sexta-feira, recebi um telefonema de Brasília, da senhora Márcia Gramkow, que perguntou se eu poderia acompanhar uma equipe da Cooperação Técnica Alemã à Terra Indígena Igarapé do Caucho, para visitar a aldeia de mesmo nome, da comunidade Huni Kuin (Kaxinawá), localizada no município de Tarauacá (Acre). Ficou combinado que a senhora Katrin Marggraff iria telefonar para acertar os detalhes da viagem. Na segunda-feira, estava aguardando no saguão hotel, quando a senhora Katrin me apresentou ao senhor Helmut Eger como o novo colaborador da GIZ. Para mim foi uma surpresa, visto que havia passado quase seis meses desde que enviei meus dados para a COIAB para concorrer à vaga de coordenador do processo de sistematização e disseminação do PDPI. Em 1º de dezembro de 2011, iniciaram-se minhas atividades na GIZ, mas, somente em 12 de dezembro de 2012, assumi minhas atividades no Ministério do Meio Ambiente (MMA) para efetivamente iniciar o processo de sistematização do PDPI. 29

Oficina de disseminação do PDPI. Foto: Toya Manchineri.

A experiência da sistematização do PDPI implicou, primeiro, em achar uma linha de pensamento para a sistematização que contemplasse o pensamento do movimento indígena, do governo e da cooperação internacional. Isso porque o Projeto Demonstrativos dos Povos Indígenas foi construído por três segmentos, portanto, há pontos de vista distintos sobre a implementação dos projetos e seus resultados nas comunidades indígenas. Segundo, pensou-se em fazer um material diferente do já produzido. Essa diferença pode ser notada nos três produtos da sistematização: a publicação de A formação de gestores indígenas de projetos; a presente publicação – Diálogos e saberes; e, finalmente, o videodocumentário Contando a história do PDPI. Esses três produtos trazem também uma identidade indígena. Minha ideia sempre foi que os produtos oriundos da sistematização do PDPI pudessem demonstrar ao público não indígena o valor desse projeto para os povos, comunidades e organizações indígenas, colocando

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em foco as iniciativas indígenas. Também pretendia demonstrar aos gestores governamentais que os povos indígenas precisam e devem ser olhados de forma diferente da sociedade ocidental, principalmente quando o Estado institui política para os povos indígenas. Essa iniciativa deve ser feita em parceria com os povos indígenas, respeitando suas distintas peculiaridades. Ao longo do tempo, o trabalho de sistematização só veio reforçar e clarear meu pensamento acerca dos temas tratados. Isso porque havia textos produzidos por não indígenas que falavam muita coisa boa sobre o processo do PDPI, mas não havia textos nos quais os próprios beneficiários expressassem seus conhecimentos, suas fragilidades e seus aprendizados. Assim, nasceu a ideia de construir este Diálogos e saberes, visto que o PDPI foi construído a partir do diálogo e da sabedoria indígena, do governo e da cooperação alemã. Sobre o processo de sistematização, no período de 26 a 27 de abril de 2012, organizamos uma oficina de trabalho em Brasília (DF) para construir o plano de sistematização e disseminação do PDPI. Participaram dessa oficina representantes da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), representantes da Paiter Suruí, o ex-gerente técnico do PDPI, as equipes técnicas do PDPI/GIZ/MMA, representantes técnicos do MMA e representantes indígenas do Comitê Deliberativo do PDPI. O resulto final dessa oficina foi a elaboração do Plano de Sistematização e Disseminação do PDPI, e o indicativo dos produtos que se queria obter ao final da sistematização. No processo de sistematização, pude observar algumas realidades indígenas, por exemplo, o projeto de no 179, da Associação das Produtoras de Artesanato das Mulheres Indígenas Kaxinawá de Tarauacá e Jordão (APAMINKTAJ). Esse projeto proporcionou às mulheres Kaxinawá, pela primeira vez, ter acesso a

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recursos e participar de grandes eventos, como a ONU Mulher, além de valorizar o artesanato Kaxinawá. Um diferencial desse projeto é que, inicialmente, foi pensando por um homem (Kean Kaxinawá), mas depois de sua saída da organização, sua irmã Judite recepcionou o projeto, implementando-o junto às artesãs Huni Kui (Kaxinawá). Isso demonstra que nós do Norte não somos machistas como muitos pensam. Outro projeto muito bom foi o de no 472, proposto pelo Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju). Esse projeto propunha a proteção e o manejo de recursos pesqueiros na Terra Indígena Espírito Santo, do Povo Cocama, localizada no município de Jutaí (Amazonas). Conforme Ocemir Cocama, antes do projeto, as comunidades cocamas vendiam seu pescado a terceiros por preço irrisório, além de haver muita invasão de seus lagos. Com a implementação do projeto, as comunidades construíram o acordo de pesca, e aprenderam a fazer a contagem das espécies para definir o quanto cada comunidade poderá vender. Hoje as famílias cocama da Terra Indígena Espírito Santo conseguiram sair das mãos dos atravessadores. E mais, hoje, as famílias não dependem de terceiros para realizar suas viagens, pois, com a comercialização do pescado manejado, puderam comprar seus barcos para locomoção familiar. Esse apoio lhes proporcionou autonomia, mas também o reconhecimento do município sobre a atividade desenvolvida pelos coordenadores do Copiju. Ocemir hoje é responsável pelo manejo de pesca comunitária na prefeitura de Jutaí. Meu olhar sobre o PDPI mudou bastante com o trabalho da sistematização. Antes conhecia apenas os projetos Manchineri, então, tinha um conhecimento limitado sobre o PDPI. Quando fui contratado para sistematização do PDPI, tive de ler muitos relatórios, o que me deu a dimensão do que foi o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas. Antes, eu o via

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apenas como mais uma fonte de recursos para apoiar as iniciativas indígenas. Hoje vejo o PDPI como uma iniciativa que democratizou e facilitou para os povos, as comunidades e organizações indígenas o acesso a recursos para implementar seus projeto e ideias. Entre as lições que o PDPI ensinou está o aprendizado de que o movimento indígena amazônico, representado pela COIAB, juntamente com o governo brasileiro e a cooperação alemã, instituíram um programa que valorizou as iniciativas indígenas. Entre os 182 projetos apoiados existem iniciativas muito interessantes que precisam ser consolidadas, pois os recursos do PDPI não foram suficientes para consolidálas. A história também demonstra que, havendo apoio, as comunidades poderão viver e permanecer com dignidade em seus territórios. No entanto, percebo que o movimento indígena amazônico poderia, ao longo do período de implementação dos projetos PDPI, ter iniciado um debate com o governo para incluir no PPA rubricas para complementar os recursos do PDPI e, a partir daí, instituir um programa brasileiro para os povos indígenas, não somente os amazônicos. Penso que ainda há tempo de se fazer esse debate com o Estado, pois as experiências do PDPI ainda estão frescas e dão muitas dicas de como o Estado poderia trabalhar em conjunto com os povos indígenas brasileiros. Vi com bons olhos a forma com que as equipes da cooperação alemã atuam. O que considerei mais interessante foi o momento em que os técnicos avaliam seus chefes imediatos. Gostaria de compartilhar essa experiência com as organizações indígenas amazônicas, pois esse tipo de avaliação poderia contribuir muito para o êxito de nossas atividades.

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CORREGEDORIA GERAL DA UNIÃO E PROJETOS DEMONSTRATIVOS DOS POVOS INDÍGENAS O diálogo entre Corregedoria Geral da União

(CGU) e a equipe do Ministério do Meio Ambiente que desenvolveu o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI) traz ao leitor uma visão sobre dois campos de experiência fundamentais à gestão de projetos indígenas.

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Por um lado, Cássio Mendes David de Souza, coordenador-geral de Auditoria da Área de Meio Ambiente da CGU, e Eduardo Ribeiro, auditor, apresentam a missão e competência da CGU. Desse modo, levantam questões da perspectiva do setor do Estado responsável pelo controle das atividades e defesa do patrimônio público – responsáveis, nesse sentido, pelo acompanhamento e controle das atividades do PDPI. Do outro lado da conversa, o secretário técnico Jânio Coutinho (PDPI-SEDR/MMA) e Sandra Araújo, assessora financeira do PDPI, responsáveis pela execução do projeto no âmbito do ministério, representam a equipe do PDPI no MMA e apresentam uma análise, bem como a experiência de acompanhamento dos subprojetos indígenas. Nesse sentido, fazem também a mediação entre razões administrativas e jurídicas da lógica do Estado, e razões acionadas pela complexidade dos contextos socioculturais e econômicos que caracterizam o universo indígena e os subprojetos.

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A conversa ocorreu nas dependências da Secretaria de Extrativismo (SEDR) do Ministério do Meio Ambiente, em Brasília, no dia 19 de fevereiro de 2014. Desse encontro também participou Andréa Borghi M. Jacinto, consultora da GIZ. A seguir são apresentados trechos da conversa, que mostram tanto aproximações e visões comuns, quanto desafios para se ampliar a compreensão de setores do Estado sobre a diversidade que caracteriza o Brasil e seus povos.

Conhecendo o trabalho da CGU: entre contas e políticas públicas Cássio Mendes - A Controladoria-Geral da União é o órgão do governo federal responsável por assistir direta e imediatamente ao presidente da República quanto aos assuntos que, no âmbito do Poder Executivo, sejam relativos à defesa do patrimônio público e ao incremento da transparência da gestão, por meio das atividades de: controle interno; auditoria pública; correção, prevenção e combate à corrupção; e ouvidoria. Uma de suas principais atribuições está prevista na Constituição Federal (Art. 74): “I avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União”. A Secretaria Federal de Controle Interno (SFC) é o órgão da CGU responsável por essa atividade. Para cumprir essa missão, a SFC divide-se em coordenações-gerais de auditoria, responsáveis pelo acompanhamento das atividades dos ministérios. Atualmente, há cerca de uma coordenação para cada ministério, salvo algumas exceções. Essas coordenações de auditoria realizam diversas atividades de controle interno junto aos respectivos ministérios, sendo que, algumas dessas têm caráter obrigatório à CGU, como as auditorias de avaliação

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anual de contas (para subsidiar o julgamento das contas anuais dos gestores públicos); as de demandas formuladas pelo Ministério Público Federal, pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal (geralmente para apurar denúncias pontuais); e, ainda, as auditorias realizadas por força de acordos internacionais firmados pelo governo brasileiro com bancos e organismos internacionais (KfW, BIRD, BID, PNUD, IICA, Unesco etc.). Nesse último caso, a CGU presta um serviço de auditoria independente aos organismos internacionais. Considerando que as atividades obrigatórias ocupam grande parte de nossa força de trabalho, faz-se necessário otimizar as ações de controle. Assim, ao realizarmos uma auditoria para atender ao KfW, fazemos também exames relativos ao cumprimento dos programas e ações de governo executadas no âmbito daquela unidade auditada. Ou seja, além das verificações de conformidade contábil (geralmente o foco principal demandado pelos bancos), avançamos para verificar se os recursos daquele empréstimo ou doação estão alinhados com as políticas públicas vigentes e resultando e melhores serviços públicos à sociedade. Andréa Borghi – É interessante porque vocês estão em um diálogo com as estruturas das organizações internacionais, a partir do governo, e o PDPI coloca vocês também, em certa medida, em diálogo com a outra ponta, que são as comunidades e os povos indígenas. Então, é uma complexidade interessante. Como tem sido essa história? Cássio Mendes – Exato. O que a gente busca, em qualquer exame que fizermos, é entender. A gente sempre faz a pergunta: mas e daí? A gente pega o projeto, examina. Certo, o projeto tem essa finalidade aqui. Mas e daí? O que ele tem a ver? Tem relação com o quê? Aí a gente olha o panorama do ministério. Até

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pouco tempo, o ministério não tinha uma boa definição de quais as linhas dele, ou seja, cada secretaria tinha um entendimento de qual deveria ser o seu caminho. Isso torna o ministério muito vulnerável. Por exemplo, tem a questão da rotatividade, e quando se muda um dirigente, muitas vezes, ele vem com outra ideia. Então, uma coisa que está sendo positiva é que o ministério agora está mais na linha de ter um planejamento estratégico, ter um ato estratégico, ter agendas − aí é possível enxergar a relação com tudo isso. Mas quando a equipe da CGU vai visitar o PDPI − ou qualquer outro trabalho que se faça de auditoria contábil −, o que se tenta primeiro é entender para que ele foi feito, qual o objetivo. Uma vez identificado o objetivo geral do projeto, a gente tenta verificar aquele objetivo. A partir daí, tentamos fazer nossa obrigação − que é fazer a análise da administração financeira, da prestação de contas –, sempre tentando enxergar se o objetivo está sendo cumprido. Antes de falar especificamente do PDPI − para não parecer que queremos apontar coisas, ficar discutindo detalhes, questões pontuais do PDPI −, ainda falando da auditoria de uma maneira mais genérica, o que geralmente acontece quando se examina o objetivo do projeto é constatar que ele é tratado de uma maneira muito genérica. Andréa Borghi – Mas aí você está falando de uma maneira geral, projetos em geral? Cássio Mendes – Em geral, os projetos têm um objetivo muito abrangente; qualquer coisa cabe ali. Então, ao examinar uma despesa − se ele comprou uma caminhonete, se ofereceu uma capacitação ou fez um vídeo −, qualquer coisa se justifica: “ah, isso aqui tem a ver com...” Como o texto é genérico − “fomentar as festas” −, sempre dá, sempre cabe alguma coisa. Isso dificulta, porque a gente não consegue ver como o projeto foi estruturado. Como saber qual era a situação

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antes do projeto? E no fim do projeto? Como saber se valeu a pena? Porque as despesas que se observa ano a ano são feitas de maneira meio pulverizada – isso ainda falando de projetos de um modo geral. Somada a essa questão do objetivo genérico, o que é muito comum encontrar também quando se faz auditoria desse tipo, é uma dificuldade em manter as equipes – a rotatividade. Então, às vezes acontece de ter um diretor que ficou muito distante no final do projeto, que não acompanhou muito de perto, não sabe como é o dia a dia; às vezes há troca de pessoas; e às vezes a equipe responsável pela gestão de projetos aqui em Brasília conta com funcionários que cuidam de outros assuntos, ou com algumas pessoas que foram colocadas ali, mas não conhecem a história do projeto, e herdam uma série de atribuições que tendem a funcionar de forma mais operacional mesmo − precisa liberar o recurso, precisa analisar a prestação de contas −, e às vezes não consegue fazer essa vinculação para dizer: “para onde o projeto está levando tudo isso”? Isso cria uma dificuldade para avaliar se o projeto está conseguindo cumprir seu objetivo − ainda falando de projetos de uma maneira geral. Quando a gente vai para o terceiro nível, se eu não conseguir enxergar o objetivo de uma maneira mais firme, se as pessoas que estão disponíveis para conversar com a equipe não têm a memória do projeto, não sabem dizer a posição em que o projeto está em seu caminho, então, o que resta é examinar documentos, examinar a execução. E, frequentemente, a gente percebe que a execução está sendo muito pulverizada. O que se está montando com isso? É para construir um prédio? As peças estão soltas. Aqui eu tenho um pneu, um computador, uma rede, mas o que ele consegue montar com essas três coisas? Isso é outro ponto que a gente observa com frequência também.

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Sem conseguir entender o que vai ser feito com essas três peças tão diferentes, o que sobra é a possibilidade de examinar pelo menos se aquilo − se a aquisição do pneu, da rede, do computador − seguiu a parte legal; e é onde geralmente fica preso o relatório. O relatório fica muito preso nessa parte formal, operacional, e eu reconheço que muitas vezes é por pura dificuldade mesmo de entender no que aquilo está inserido. Então, reconhecemos, que, muitas vezes, a gente recebe esse tipo de retorno da parte dos gestores: “Poxa, vocês ficam tratando com carinho da nota, a questão das diárias, e a gente aqui com um desafio tão grande para resolver!” Mas, simplesmente, às vezes não é simples entender esse “desafio tão grande” que há para cumprir, não ficou claro ainda. Então essa é uma visão geral do que costumamos encontrar nos trabalhos que a CGU faz.

Bom para pensar as distâncias – sobre os gastos com combustível Cássio Mendes – Como eu mencionei antes, a gente faz auditorias de diversos tipos. Uma delas, que eu mencionei também, é essa de trabalhos articulados com o Ministério Público e a Polícia Federal. A CGU recebe denúncias de controle direto, de outros órgãos, que trazem uma visão do outro lado, quando as coisas não funcionam muito bem. E isso coloca as equipes em contato com um mundo não tão bonito, quando as coisas não funcionam do jeito que deveriam funcionar. Por vezes, quando essas duas coisas se sobrepõem, acontece uma coincidência que nos deixa preocupados também na hora emitir uma opinião dizendo se está tudo bem. Por exemplo, projetos que têm execução descentralizada e uma concentração muito alta de gastos de gasolina, de diárias, de viagens, de produção de material gráfico, de produção de audiovisual.

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Dependendo do período do ano em que esses gastos são feitos, isso fica muito parecido com financiamento de campanha, projeto bancando campanha eleitoral. Andréa Borghi – Vocês cruzam os calendários. Cássio Mendes – E tem a dificuldade também relacionada ao combustível, ou seja, gastos muito elevados de combustível. Andréa Borghi – Nos projetos localizados em áreas indígenas, vai muito combustível; é algo impressionante. Jânio Coutinho – Projetos indígenas na Amazônia Legal. Sandra Araújo – Então, os deslocamentos são de longas distâncias e envolvem tipos variados de transporte para atendimento por vias terrestres e fluviais. E, o volume de combustível envolvido costuma ser grande. Em algumas aldeias, temos que abastecer geradores de energia para podermos recarregar os equipamentos e realizar reuniões com as lideranças após o anoitecer – o que de fato costuma abreviar o tempo de permanência em área. Andréa Borghi – No início de janeiro, eu e o Thiago Schinaider fomos visitar um projeto nessa questão do acompanhamento e da memória, um subprojeto que teve êxito. Mas depois de todo aquele esforço de logística para chegar lá – percorrer o trajeto BrasíliaManaus; depois Manaus-Tefé, mais uma hora; depois Tefé-Jutaí mais dez horas, de barco; e depois mais o percurso para chegar nas aldeias –, ao chegar em Jutaí, o município estava com uma crise de abastecimento de combustível. Os postos não tinham combustível! Depois de todo esse esforço de logística, foi uma loucura para conseguir fazer a coisa acontecer. Aí você vê a realidade – esses confrontos entre as realidades locais e as regras.

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Sandra Araújo – Esses últimos projetos do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) irão envolver intenso trabalho de campo para construção – as equipes que vão fazer a medição das áreas junto com os pesquisadores, enfim, tudo que requer um plano de gestão territorial e ambiental. E vão implicar gastos elevados de combustível. Então, conforme as orientações que o Eduardo nos repassou na última auditoria realizada no início de 2014, foram dadas orientações complementares para que todos os contratados que estão recebendo a primeira parcela saibam como proceder em relação à aquisição e posterior prestação de contas dos gastos com combustíveis. Serão solicitados relatórios sintéticos, simples, para que todos tenham noção dos custos envolvidos em cada atividade, de forma que fique claro tanto para a equipe do PDPI que analisa as prestações de contas, quanto para os auditores, quando realizarem a verificação da execução do PDPI referente a 2014. Andréa Borghi – Como é uma orientação como essa? Como seria um procedimento? Sandra Araújo – No Manual de operações – Execução técnica e financeira dos projetos do PDPI, não existe uma orientação específica para aquisição de combustíveis nem para a prestação de contas dos gastos com esses combustíveis. Então, a partir da preocupação levantada pela auditoria, montamos orientações específicas para a realização de licitação para compra de combustíveis, de forma que o projeto possa adquirilos de acordo com o cronograma de atividades e cada nota fiscal emitida seja acompanhada de informações sobre os abastecimentos das viaturas e os condutores envolvidos nas ações. Eduardo Ribeiro – A ideia é ter uma informação mínima ali, para se ter um parâmetro.

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Sandra Araújo – As informações adicionais dadas por meio de um relatório são necessárias, pois, por vezes, as notas fiscais apresentam gastos diversos com atividades múltiplas. Eduardo Ribeiro – Todo ano, quando a equipe vai fazer auditoria, focamos em informações básicas. É muita gasolina – tem projeto que gasta 10 mil litros de gasolina; é um valor considerável para o valor que se recebe. Então, a gente sente falta pelo menos da indicação do veículo e da atividade. Essa gasolina foi para qual atividade? “Ah, foi gasto para pegar material para construir a maloca.” São informações básicas que devem constar: número da placa, atividade tal, e acabou. Sandra Araújo – Sim. E reforço a importância do relatório sintético criado e apresentado na capacitação inicial a todos os contratados para execução dos PGTAs. Ele contém justamente as informações solicitadas pelas auditorias da CGU.

Projetos, normas, entendimentos – o caso da corrida de toras Jânio Coutinho – Eu trabalhei hoje de manhã com um consultor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O BNDES está fazendo uma proposta de fomento coletivo, tirando ideias da Carteira Indígena3 e do PDPI; estão bebendo aqui, 3 “A Carteira de Projetos Fome Zero e Desenvolvimento Sustentável em Comunidades Indígenas (Carteira Indígena) é uma ação do governo federal, resultado de parceria entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA), através da sua Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável (SEDR), e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), através da sua Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), com o objetivo de contribuir para a gestão ambiental das terras indígenas e a segurança alimentar e nutricional das comunidades indígenas, em todo o território nacional. A carteira apoia projetos com foco na produção de alimentos, agroextrativismo, artesanato, gestão ambiental e revitalização de práticas e saberes tradicionais associados às atividades de autossustentação das comunidades indígenas, de acordo com as suas demandas, respeitando suas identidades culturais, estimulando sua autonomia e preservando e recuperando o ambiente das terras

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da fonte. Uma das coisas que eu disse para eles foi o seguinte: “no caso de projetos com índios e comunidades tradicionais, às vezes, o gestor pegou recursos, executou o projeto, mas há uma dificuldade de colocar isso no papel, entendem?” Andréa Borghi – De traduzir na linguagem da prestação de contas. Jânio Coutinho – De traduzir na prestação de contas. Tem um caso bastante claro disso com os Parintintins, no Amazonas, que têm um projeto do PDPI que está completo. Só que eles levaram um ano [...]. O indígena professor da escola, ele que fez os papéis: “ah, eu levei um ano para fazer o relatório e responder o projeto”. Você vai lá, a casa de farinha está funcionando, a escolinha está funcionando, o comércio produtivo porque eles estão contribuindo... Mas a dificuldade de colocar isso no papel é muito grande. Andréa Borghi – E é outra linguagem também, é uma linguagem técnica. Jânio Coutinho – “O projeto é uma forma que a gente faz para responder a linguagem dos brancos” – isso está no texto de um indígena que eu li agora. Sandra Araújo – O trabalho da equipe financeira do PDPI não é exclusivamente a análise fria de documentos. Em nossas viagens de monitoria técnica e financeira, procuramos entender a dinâmica de cada comunidade envolvida e levantamos os motivos que, por vezes, impedem a conclusão do objetivo principal do projeto. Em alguns casos, adequamos a solução encontrada pela comunidade, dentro das possibilidades de gastos, de forma que o projeto possa ser concluído mesmo com as despesas não tendo sido totalmente previstas no plano de trabalho do projeto. indígenas”. Disponível em: . Acesso em: 30 fev. 2014.

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Por exemplo, há um projeto que o próprio Eduardo acompanha, que é a corrida de toras,4 realizada durante a festa do Quarup. É uma festa que vai rodando as aldeias do Parque do Xingu, uma festa lindíssima. Em um ano, os enfeites para a festa estavam todos prontos, foi em 2012. O Eduardo veio em 2013, e perguntou: “E a corrida das toras?” Então, tivemos de explicar para ele que não teve a corrida das toras. Inclusive, em relação a isso, eu fui ao parque e vi a aldeia do Povo Kïsêdjê toda destruída, por conta de um incêndio que queimou 90% das malocas. E eles não fazem a festa com a aldeia destruída. Como eu disse, o Quarup roda entre aldeias. Então, a festa não poderia chegar numa aldeia que estivesse toda queimada, eles não fariam isso, porque eles considerariam uma desonra receber os parentes com a aldeia toda queimada; as malocas estavam todas cobertas com plástico preto. Diante dessa situação, eu fui falar com eles, para pensar como faríamos. Perguntei: “Qual é a proposta de vocês?” O objetivo do projeto é a corrida das toras e a festa. Os enfeites - tem uma atividade só de construção dos enfeites – foram queimados no incêndio. Assim a gente foi conversando, e eu tentando entender como eles iriam fazer. Eles queriam utilizar o restante de recurso que tinham para a reconstrução das malocas, e disseram que fariam os enfeites com recursos próprios, pois eles já tinham conseguido parte dos recursos para reconstrução por outras vias. Falaram assim: “Sandra, enquanto o dinheiro dessa outra fonte não chega, a gente pode ir reconstruindo as malocas com o dinheiro do projeto. E quando o dinheiro dessa fonte alternativa chegar, a gente faz os enfeites, e faz a festa no ano que vem.” Ficou tudo acertado. Mas aí, no ano seguinte, em

4 Subprojeto “Uma Corrida de Toras para Criação do Centro de Pesquisa da Cultura Kïsêdjê”, no 435. Proposto pela Associação Indígena Kïsêdjê (AIK), do Povo Kïsêdjê, na Terra Indígena Wawi, no Parque Indígena do Xingu.

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2013, morreu o filho adotivo do cacique. A aldeia inteira ficou um ano de luto. Nesse período, eles não pintam, eles não enfeitam, eles até recebem os parentes em algumas ocasiões, mas eles não fazem festa. Nós estamos agora cumprindo o período de luto que vai até junho de 2014. Vai ter uma grande reunião com as cinco aldeias de lá, do Moygü, e eles vão fazer uma reunião para tirar o calendário das festas, para cumprir esse acordo com o PDPI. Então, agora eu e o Thiago fomos a Canarãna, no Mato Grosso, e trouxemos a carta do representante, do cacique, que conta toda essa história, e essa carta vai ser anexada ao nosso relatório de auditoria. Ou seja, eu posso dizer que não tive problemas de passar os entendimentos. O Eduardo sempre acompanhou a gente, e ele tem essa sensibilidade. A gente vai explicando, argumentando e protocolando os documentos dentro das respostas durante as auditorias. Acho que é uma relação muito boa nesse sentido. Todo o processo de ajuste é feito por meio de notas explicativas dentro do processo de análise de prestação de contas. Assim, ao auditar o projeto, a CGU localiza todas as informações necessárias sobre o andamento do projeto. Cabe ressaltar o esforço da CGU, por vezes, na compreensão dos fatores religiosos e tradicionais dos índios, o que proporciona uma parceria que classificamos de inédita no âmbito da execução de projetos, e importante para o PDPI, que tem mais de 90% dos projetos geridos por associações indígenas. Andréa Borghi – Em um caso como esse, como fica essa tradução? Porque você tem um calendário religioso, e você tem uma exigência legal, técnica e burocrática. Como é isso? Cássio Mendes – Uma coisa que ouvimos com frequência, ao examinar projetos, principalmente quando é doação − empréstimo também, mas, principalmente, de doação: “ah, não se preocupe, não,

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que é coisa de doação, a regra é do banco”. Como se fosse assim: “pode fazer de qualquer jeito”. E nosso entendimento lá é até o contrário: se com o recurso nacional a gente tem que ter cuidado, imagina com uma doação? Eu acho que ia pegar muito mal para o país o que vão dizer lá fora – “ah, a gente faz doação para o Brasil, e lá é de qualquer jeito”. Aí, começa aquela corrida para gastar aquilo, para não perder o dinheiro, mesmo que não se justifique gastar de qualquer jeito. E nossa visão é muito contrária a isso. Então, situações desse tipo que você mencionou, da corrida de toras, estando tudo explicado, é mais fácil. Andréa Borghi − Há uma pergunta que eu trouxe do Toya Manchineri, responsável pela sistematização. Temos, de um lado, a Lei no 8.666, que universaliza regras que fazem sentido em contextos urbanos, formalizados, e estruturados pela ação do estado. Ao mesmo tempo, temos uma diversidade de contextos locais e regionais, em que essas regras têm difíceis condições de possibilidade de se fazerem cumprir (como condições de licitação, de emissão de notas fiscais, por exemplo). Por outro lado, temos reconhecido na CF de 1988 o direito dos índios sobre sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Como lidar com essa tensão, e adequar exigências e regras em relação aos contextos locais, para o desenvolvimento dos projetos e o reconhecimento dos modos de organização e vida dos diferentes povos envolvidos? Cássio Mendes − Como foi dito, a questão central é de melhores serviços à sociedade. De resultados! Quando auditamos algum projeto, ou convênio ou contrato, partimos dessa primeira questão: qual era a finalidade? Ela foi atendida? Os resultados foram alcançados? Vemos também o custo. Os valores são compatíveis com o mundo real? São razoáveis? Fazem sentido? Em muitos casos, infelizmente, isso não fica muito claro. Nem o objetivo, nem o resultado. Aí tentamos

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avaliar o que foi pago com recursos do projeto e os valores. Não é raro termos dificuldade de entender a relação entre os gastos apresentados e o objetivo do projeto. Se nesse “pacote” percebemos processos mal instruídos, descumprimento da lei de licitações em diversos pontos, o cenário fica ainda pior. Não é apego a leis e normas. Mas é uma sensação de: “alguém aqui consegue explicar de alguma maneira que faça sentido o que foi feito com o dinheiro do projeto?” Essa é a situação que mais nos entristece, e que vamos apontar em nossos relatórios sempre que acontecer. Não fazemos qualquer distinção se a questão envolve índios ou outros grupos. Nosso interlocutor é o gestor federal. Ele é o responsável pela prestação de contas de todo e qualquer recurso que administre (Constituição Federal). Assim, se ele repassa dinheiro para populações que não têm obrigação de saber como prestar contas, isso não muda o fato de que ele, o gestor, sabe muito bem como o dinheiro público deve ser tratado. Mesmo que, em algum caso, não seja viável seguir à risca todo o rigor da lei, o processo deve estar instruído com evidências claras de que suas decisões foram tomadas de acordo com os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência − e sempre, sempre, sempre: bom senso!

De onde vem, para onde vai – história e legado do PDPI Cássio Mendes − Lógico que a gente procura entender tudo, mas, considerando a característica do PDPI, sinceramente nunca consegui entender: Como era antes do PDPI? E como vai ficar depois? Precisa mesmo financiar essa corrida de toras lá? Não sei se precisa. Isso ainda falta para conseguirmos enxergar. Para fechar essa parte com isso, fica difícil às vezes para um colega emitir uma opinião quando vai fazer a monitoria.

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Jânio Coutinho – Antes de o PDPI existir, como era essa história? Eu entendo perfeitamente isso. Nós temos uma coisa, no PDPI especificamente, que é o seguinte: o PDPI tem um perfil de projeto demonstrativo, eu acho que é essa a questão. O Estado brasileiro, com o governo federal, ainda não conseguiu entender muito bem que um projeto demonstrativo tem duas coisas: ele tem início, meio e fim – ou seja, ele parte de um momento para ter um fim. O conceito de projeto é esse: é alguma coisa que começa, tem um desenvolvimento e acaba, não é? E ele vai ser tão exitoso quanto tenha boas experiências – já que o PDPI tem essa parte – e indique alguma coisa para frente. Ou seja, o que ficou? Se ele cumprir essas etapas, ele é um bom projeto; se ele não cumprir essas etapas, em algum momento vai ser prejudicado. Na verdade, o PDPI é uma experiência exitosa no sentido de que – primeiramente o PDPI, mas a Carteira Indígena também, de forma diferente –é o governo passando, reconhecendo as organizações indígenas e aportando recursos que permitam executar projetos de pequeno porte, iniciativas demonstrativas, pioneiras. Só que faltou uma historicidade para dizer assim: ela está alinhada com essa política, ela serve a determinadas coisas e não a outras. Isso é um grande problema gerencial − no PDPI menos, mas na Carteira tem muito. Em uma terra, o projeto não apoiou a piscicultura porque tinha preocupação com que área de cultivo se ia usar para a piscicultura, e se podia acabar em desmatamento; mas, em outra época, apoiou gado no charque, no Mato Grosso. Poxa, no charque, o gado pisando, vai desmatar, porque não é uma vegetação como se pensa. Então, acho que o PDPI tem esse problema, a carteira tem esse mesmo problema: muita coisa, muito tempo; aí mudam os gestores, os gestores mudam de orientação e assim por diante. No caso dos PGTAs, acho que é um esforço nosso − essa é a minha reflexão − de fazer projetos que apontem para outra coisa.

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Sandra Araújo – Mas acho que é preciso também fazer uma reflexão sobre como o PDPI surgiu. Porque a CGU não acompanhou desde o primeiro momento, a CGU entrou no PDPI em 2011, auditando de 2008 a 2010. Então, é bem recente. A história de quando surgiu foi assim: quando o PPG7 criou o PDA, o PDA começou a receber projetos demonstrativos de comunidades indígenas, de organizações indígenas.5 Ele começou a ser operacionalizado inicialmente dentro do PDA. Então, é uma questão de um avanço do movimento indígena. Eu estou acompanhando desde o PPTAL, na Funai, desde 1999 – não sou indigenista, não sou antropóloga, sou administradora que acompanha esses projetos, fiz trabalho numa organização indígena –, então, para mim, é fácil perceber essa movimentação com esse olhar também de burocrata, com esse olhar de administrador. O PDPI surge também dessa necessidade do movimento indígena de ocupar essa área da esplanada, de não ser uma coisa exclusiva da Funai e do Ministério da Justiça, não ser uma pauta federal, ou seja, ser uma pauta do Executivo também. Surgiu a necessidade de ampliar e começar a trabalhar com várias pastas do governo − tanto que hoje tem índio no Prouni, tem índio que tem projeto no MEC –, e foi o PDPI que abriu isso. Numa época em que o PDA já estava financiando, ele criou essa necessidade. Foi um esforço do movimento indígena, junto ao KfW, que o reconheceu como legítimo. 5 O PPG7 é o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, fruto de um acordo realizado em 1991 entre representantes do governo brasileiro, da União Europeia, do Banco Mundial e do G-7 (grupo que reúne os sete países mais ricos do mundo: Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, França, Itália e Japão). Entre as atividades do PPG7 voltadas às populações locais, visando conjuntamente à sustentabilidade econômica, social e ambiental, que garantisse a preservação das florestas tropicais, foi criado o Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA), iniciado em 1995. Foi nesse contexto, a partir das experiências indígenas desenvolvidas nesse âmbito, que representantes indígenas, das organizações parceiras, governo brasileiro e doadores, reunidos em Tefé em 1999, definiram as principais bases conceituais, diretrizes, regras e orientações. Por solicitação do movimento indígena, o nome do programa foi então definido como Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI), substituindo o que era utilizado até então (Projetos Demonstrativos para Populações Indígenas). Disponível em: . Acesso em: 30 fev. 2014.

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Então foi criado um acordo em separado, diante de uma demanda do movimento indígena. E, enfim, a gente tem que pensar no doador: ele queria essas temáticas, de valorização cultural, de sustentabilidade, uma pauta que o meio ambiente já vinha trazendo, que eles já estavam trabalhando via PDA, via PPG7. É interessante ver esse movimento que aconteceu. Hoje, o PDPI, tem um histórico de êxito, de projetos mínimos. Tanto que, no próprio VigiSUS,6 onde trabalhei, o PDPI foi usado como modelo em um dos componentes, que se chamava “iniciativas comunitárias”, e que tinha como padrão a sequência do que estava sendo exercitado pelo PDPI. Então, o PDPI, no que se refere a mostrar que os índios têm capacidade, sim, de montar seus projetos, apresentar, trabalhar, errar como todo mundo erra − sendo índio ou não, erra −, mas também consertar. Acontece também de se fazer o certo por caminhos não tão certos, assim como acontece de se fazer tudo certo, de se preocupar tanto em fazer tudo certo demais – cumprir as notas fiscais, prestar contas −, mas o projeto não servir para nada para comunidade. Eu posso dizer tranquilamente que ele cumpriu o papel dele enquanto projeto demonstrativo. E ele é discutido em pautas por toda a Esplanada dos Ministérios, em vários eventos, inclusive internacionais. Cássio Mendes – E onde fica esse legado? Que é outra coisa que a gente sente muita falta. Sandra Araújo – Aí entra o papel da sistematização, e o papel do Toya Manchineri, selecionado pela GIZ para assumir esse papel, a parte da sistematização, que são as publicações. E a preocupação de mostrar não 6 O projeto Vigisus é uma parceira entre Banco Mundial (BIRD) e o Ministério da Saúde (MS) que, por meio da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), financiou projetos comunitários em saúde. O subcomponente III – “inciativas comunitárias” apoiou projetos apresentados pelas próprias comunidades indígenas. Disponível em: . Acesso em: 30 fev. 2014.

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só o bonito, mas também o que não deu certo. Então, isso vai virar um material que será compartilhado pelas pastas e pelo próprio movimento indígena, que entra no Congresso, que quer discutir, que quer falar com a presidente da República, e quer que as políticas públicas olhem para essa publicação. Então, é mais ou menos assim. Eu tenho muito orgulho de fazer parte desse trabalho nesse sentido. Porque ele realmente tem um traço, tem uma marca, ele tem um sentido − ele deixou e vai deixar um legado. E os PGTAs, como o próprio Jânio disse, vai mostrar também que existem projetos que vão ser construídos, que vão apontar para próximas demandas.

Sistematizar e divulgar a experiência: do demonstrativo para a política pública Jânio Coutinho – Tem uma demanda forte por protagonismo. Ainda agora eu estava debatendo sobre a Convenção 169 da OIT, que é a convenção que estabelece as regras de consulta prévia para todos os projetos e políticas que impactam direta ou indiretamente povos indígenas ou quilombolas. Agora, o decreto está incluindo políticas. Então, se houver uma política pública a ser feita, antes de se aprovar, tem que consultar os índios. É um mecanismo de consulta; está bem armado. E deu uma repercussão muito grande, de protagonismo, de participar das decisões – chega desse negócio de o Estado brasileiro fazer a política, e a população não ficar nem sabendo. (...) Regulamentação da 169 da OIT. Porque se violar a regulamentação de alguma convenção, violou um mecanismo de controle, porque a conduta é um mecanismo de controle. É a maior confusão no grupo de trabalho.

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Cássio Mendes – Como eu disse no início, nós precisamos aprender a exercer esse papel cada vez melhor. Porque a gente sempre faz de conta que tem essa pergunta – o que você vai falar para Dilma se ela perguntar sobre esse assunto? Então, ele é um papel que, não é que ele seja duplo, mas ele tem que ser feito. Projeto demonstrativo – está demonstrando o que para quem? O que ele pretendia demonstrar, para quem? Está conseguindo? Está tendo avanço? A gente precisa ter segurança para dar esse respaldo para o próprio governo. Jânio Coutinho – São muitas questões. A que fim veio? Qual a estratégia? Essas ações estão articuladas a uma estratégia maior? A auditoria serve muito para essas questões. Eduardo Ribeiro – Mas isso tem a ver com uma questão em relação à demonstração do que foi feito. Tanto é que vocês fizeram essa reunião. Cássio Mendes – Lá, a nossa coordenação audita em média uns vinte projetos por ano, entre cooperação técnica e bancos. É difícil encontrar um que não tenha falhas na parte dos resultados. Andréa Borghi – Eu fiquei pensando nas pessoas que não têm dúvida sobre os resultados do projeto. Essa comunidade que nós fomos visitar, o resultado, e o que significou para aquela comunidade ali foi muito claro, muito forte. E conversando com o Toya também, do ponto de vista indígena, muita gente tem certeza do que significou. Então, o Toya perguntou na conversa, o que vocês recomendariam? Por exemplo, para onde vai o PDPI? Projetos, para quem quer continuar a desenvolver projetos. Os índios perguntam isso: e agora, o PDPI vai acabar, e para onde a gente manda esses projetos? Então, tem uma perspectiva, um lugar para dar continuidade a essa formulação de projetos...

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Jânio Coutinho – Essa reunião hoje de manhã no MDS foi só sobre isso. Porque, na verdade, é uma preocupação nossa não só de ter finalização, mas de ter projetos que incorporem essa experiência. Porque é isso que você está falando aí. Nós temos uma nota técnica que daqui para frente propõe uma regulamentação para fomento coletivo. Qual é a experiência objetiva da Carteira Indígena e do PDPI, que é distinta dessa? É que esses projetos reconheceram as comunidades como coletivos, como comunidades. Então, o PDPI contrata as associações, como entidades administrativas, e é por isso que a nota técnica tem isso, do comecinho de 2013, que a gente mandou para o MDS provocando a discussão. A experiência do fomento no Brasil, na experiência agrícola, é uma experiência individual. Por quê? Porque o conceito é todo alinhado com a ideia do produtivismo. O cara é indivíduo e cidadão quando ele é produtivo, se ele não é produtivo, ele não tem nem cidadania. Toda a lógica é essa. E aí a gente está querendo discutir isso no MDS. Por que não pode ter um cartão? Não tem bolsa família? Para fomento também não tem um cartão? Para uma empresa de agronegócio, para fazer soja, tem um cartão de R$ 1 milhão, e não pode ter um dinheiro coletivo para uma associação? Porque é institucional, fazer política pública, arranjos, governança, tem que sensibilizar atores, tem todo um debate, uma pressão política muito forte, é muita agenda... E na nossa nota técnica tem uma relação de uma coisa interessante. O Consea,7 que é um dos conselhos mais 7 “O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é um instrumento de articulação entre governo e sociedade civil na proposição de diretrizes para as ações na área da alimentação e nutrição. Instalado no dia 30 de janeiro de 2003, o Conselho tem caráter consultivo e assessora o presidente da República na formulação de políticas e na definição de orientações para que o país garanta o direito à alimentação”. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2014.

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igual a um projeto de arquitetura. A casa ficou pronta, o projeto é arquivado para futuras reformas; mas o projeto já cumpriu a sua parte. Então, o Banco Mundial sempre fez medições conosco, mas nunca perguntando: quanto você gastou para isso? Quanto foi gasto para aquilo? Ele sempre pergunta: onde chegamos? Vocês estão fazendo atenção básica – então, quais são os índices? Quais são os índices de mortalidade na área Xavante? O índice disso no Parque do Xingu? Então, a preocupação deles era com resultado: onde que o projeto estava chegando. Porque o que eles entendem é o seguinte: você botou ali, fez a matriz lógica do projeto, onde está tudo escrito como vai ser feito. Então, eles querem a cada etapa, monitorar o quê? O resultado em si. Então, quando eu vim para o PDPI, eu senti essa dificuldade realmente de saber: para onde a gente está indo? E até essa mesma questão de chegar na aldeia e ouvir: “Ah, mas o PDPI vai acabar!” Mas ele tem que acabar. A casa está lá; fez a parede, botou o telhado, acabou, e acabou o PDPI. Só que tem o seguinte: hoje ele é por doação. Então, ele tem que ser o quê? Ele tem que se firmar como política pública, e os órgãos do Executivo têm que puxar como pauta para si. Então, como demonstrativo, ele está cumprindo a sua parte. Para o KfW, para o financiador, ele está cumprindo a sua parte. Apesar desse distanciamento do KfW enquanto doador, que não se aprofunda, não faz missões – eu tenho registro aqui de uma missão do KfW, não mais. E a GIZ é quem faz mais esse papel, de monitoria dos resultados, tanto que as ações do PDPI estão no plano operacional da GIZ na Funai. É uma pauta da Funai saber o que o PDPI está fazendo aqui. Os PGTAs estão no POA da Funai. E a gente sente esse afastamento da KfW enquanto doador; porque o contribuinte alemão é um contribuinte exigente, ele quer saber para onde o dinheiro dele está indo, e eu sinto que eles estão sendo alimentados

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basicamente com esse relatório que vocês fazem, que a gente encaminha para a Alemanha. Eles não fazem esse acompanhamento. Eu penso o seguinte, dada essa sua preocupação: Como é que a gente poderia conduzir o relatório de auditoria para que começasse a transparecer isso? Seriam questões, recomendações que a gente pudesse gerar no relatório, que dessem essa resposta para vocês – onde está tendo participação, onde está sendo citado como demonstrativo, como ele é. Eduardo Ribeiro – Eu acho que teve um salto muito bom quando o Jânio entrou. Tanto que, no ano passado, foram feitas 74 cobranças, totalizando R$ 3 milhões. Acertamos nessa questão; eu acho que agora a gente tem que trabalhar na questão dos resultados. Agora é trabalhar e demonstrar o que foi feito, as coisas boas que foram feitas. Cássio Mendes – Que espaço esse assunto tem na agenda dos dirigentes da secretaria, pelo fato de ele estar aqui? Cobrança? O que eles pedem? Jânio Coutinho – Como o PDPI está em fase final, a expectativa dos dirigentes é a seguinte: nós temos que superar a estratégia dos projetos demonstrativos. Nós temos que ampliar a escala de demonstrativo para políticas públicas. Cássio Mendes – De demonstrativo para políticas públicas.

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GERÊNCIAS TÉCNICAS INDÍGENAS

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Gersen Luciano Baniwa Entre 2000 e 2004, na primeira fase do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, Gersen Luciano Baniwa trabalhou como seu primeiro gerente indígena, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Vindo da região do Alto Rio Negro, do povo Baniwa, com um longo percurso de atuação no movimento indígena, possui formação e experiência acadêmica em filosofia, antropologia e educação. Gersen conversou com Marcia Gramkow, antropóloga e assessora da Cooperação Técnica Alemã (GIZ), e Toya Manchineri, responsável pela sistematização do PDPI e assessor técnico da GIZ. Nessa conversa, Gersen retoma sua trajetória de vida e passagem pelo PDPI, refletindo sobre vários temas: protagonismo e movimento indígena, construção compartilhada de políticas públicas, relações entre lógicas 59

administrativas e lógicas da cultura, e a formulação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), entre outras questões. O encontro entre os três ocorreu em Manaus, no Amazonas, no mês de dezembro de 2013.

O PDPI e o reconhecimento do protagonismo indígena Márcia Gramkow – Diria assim, Gersen: fique à vontade para dizer o que foi mais marcante no PDPI em alguns aspectos − enquanto indígena, depois enquanto gestor, depois para o seu povo. O que você diria em relação ao registro da experiência, do que poderá ser lembrado, memoriado como aprendizado para os indígenas nessa relação com o Estado? Esse é o grande foco, porque está dentro dos Diálogos e saberes. Quais os saberes produzidos, nessa sua vivência dentro do PDPI, enquanto indígena? Toya Manchineri – fala um pouco da sua trajetória política. Gersen Baniwa – Eu sou Gersen Baniwa, do Alto Rio Negro. Minha primeira experiência fora de aldeia foi trabalhar com escola indígena. Depois trabalhei muitos anos no movimento indígena local, regional e nacional. Foi a partir do ativismo no movimento indígena que fui parar numa função desafiadora – eu fui indicado pelo movimento indígena –, em uma primeira experiência no campo de política pública, que foi o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI). Tudo era novo, para mim e para o movimento indígena. O PDPI foi, no Brasil, uma primeira iniciativa de projeto no âmbito governamental que reconheceu, de forma clara, a importância do protagonismo indígena – ou seja, os indígenas como potenciais sujeitos de suas iniciativas, de seus planos de trabalho, de suas estratégias de

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organização interna, do ponto de vista social, cultural, econômico, político e assim por diante. Foi a primeira iniciativa dessa natureza que claramente buscou superar a visão e práticas indigenistas coloniais, baseadas na lógica de projetos comunitários, que eram basicamente de cunho assistencialista, economicista e voltados aos interesses do mercado capitalista regional e nacional, e implementados pelo órgão indigenista, que definia as políticas e executava junto às comunidades indígenas. Portanto, o PDPI surgiu como uma possibilidade de buscar outras formas de relacionamento dos povos indígenas com as políticas públicas e com o governo, referenciado na ideia de indígenas como sujeitos e protagonistas de seus processos próprios de desenvolvimento e bem viver social, cultural, econômico, político, espiritual. Esta é sua marca característica. Foi uma experiência pioneira, que considerou e garantiu a participação e o envolvimento indígena em todo seu processo de construção, execução e avaliação de uma política e de uma ação junto aos povos indígenas. Foi realizado de forma conjunta e compartilhada entre os segmentos do Estado brasileiro, as comunidades indígenas e a cooperação internacional, como um terceiro ator estratégico extremamente importante. A contribuição técnica e financeira da cooperação internacional, particularmente do governo alemão e do Reino Unido foi de fato essencial para o desenvolvimento exitoso do projeto. Sem a decisiva contribuição da cooperação internacional, o projeto não teria sido desenvolvido, ou teria sido desenvolvido com muitas dificuldades, porque acho que o próprio Estado brasileiro, não estava tão interessado ou até talvez preparado para lidar com esse tipo de empreendimento. A cooperação internacional trouxe a riqueza de experiências similares de outros lugares do mundo. A gente

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sabe que outros países, vizinhos como a Bolívia e o Equador, já tinham mais anos a nossa frente com essas experiências de iniciativas de trabalho com os governos e estados nacionais em que o papel dos povos indígenas como sujeitos, como protagonistas tinha sido considerado e valorizado. Isso é outra marca forte do PDPI. Com isso, o PDPI alcançou resultados direitos e indiretos muito positivos e históricos. Penso que os resultados indiretos foram mais importantes que os diretos. Estamos falando de uma época em que os povos indígenas brasileiros estavam num momento ascendente de ampliação das garantias de seus direitos. Desse ponto de vista, considero a experiência do PDPI como um momento histórico que emergiu no período pós-Eco-92. A sensação era: poxa, até que em fim, estamos sendo considerados, reconhecidos como pessoas, como povos, como parte da sociedade, como cidadãos capazes de dar contribuições para nossas comunidades, melhorar nossas comunidades e também contribuir para o desenvolvimento dos nossos municípios, das nossas regiões. Porque políticas dessa natureza não se restringem apenas a discussões microlocais – dizem respeito a discussões, debates e experiências mais amplas no município, no estado e no país, e eu diria, também no campo internacional, porque acabamos, muitas vezes, buscando se espelhar em outras experiências similares. O PDPI, assim como o PPTAL, ajudou muito na recuperação da autoestima dos povos indígenas da Amazônia Legal, em um momento importante de conquistas de direito, no âmbito da Constituição Federal de 1988 e nas discussões e resultados alcançados na Conferência Mundial de Meio Ambiente, a Rio-92. O PDPI foi uma experiência muita rica, de resultados, de lições aprendidas, de erros e acertos. A experiência em si, sem considerar os seus

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resultados mensuráveis, foi rica e valiosa, de muitas aprendizagens. Infelizmente, eu já antecipo que é uma experiência que até hoje não foi adequadamente avaliada e tem sido pouco aproveitada. Muitos dos erros e fracassos que políticas públicas governamentais dirigidas aos povos indígenas continuam cometendo poderiam ser evitados e superados a partir das experiências do PDPI. As lições aprendidas do PDPI são extremamente importantes e muitas dessas lições são muito positivas –por exemplo, a necessidade de participação e a capacidade indígena de contribuir em processos dessa natureza. Quando o PDPI começou, todo mundo tinha dúvida: o governo brasileiro tinha dúvidas; a cooperação internacional tinha muitas dúvidas. Márcia Gramkow – (...) Um risco enorme. Gersen Baniwa − Os riscos do projeto eram altíssimos. Então, foi mesmo uma experiência de muito risco, mas também de muita ousadia. Para mim, o PDPI mostrou que as fragilidades, as dificuldades e alguns equívocos encontrados foram sendo superados ao longo do processo de implementação.

Políticas públicas compartilhadas: a metodologia do PDPI Gersen Baniwa − Olhando depois de quase duas décadas do início do processo de discussão do projeto, para mim e para centenas de lideranças indígenas que acompanharam todo o processo, o projeto revelou a certeza de que é possível, sim, construir e implementar políticas públicas exitosas − mais do que participativas − compartilhadas com os povos indígenas. O processo de participação compreendeu todas as fases do projeto: negociação política, concepção, construção, implantação, execução e avaliação do projeto.

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Foram articulados núcleos regionais representativos para facilitar maior capilaridade na participação, considerando os fatores territoriais, regionais, étnicos, linguísticos e geográficos/logísticos. Somos capazes, sim, de dar nossa contribuição. Acho que nunca mais alguém duvidou disso. Todas as outras discussões que vieram depois dessa experiência levaram em consideração a participação e o protagonismo indígena, a partir da experiência do PDPI, sem que os atores envolvidos tenham consciência disso. A metodologia do PDPI se aplica hoje, mesmo que pouca gente mencione ou reconheça que quem abriu esse caminho metodológico foi o PDPI. A primeira iniciativa similar que seguiu essa metodologia participativa e compartilhada foi a Carteira Indígena, ainda no âmbito do Ministério do Meio Ambiente. O Prêmio Culturas Indígenas, no âmbito do Ministério da Cultura também seguiu a mesma metodologia. As três experiências estão na linha de iniciativaspiloto. Mais recentemente, a PNGATI é o exemplo mais forte de tentativa de aplicação dessa metodologia de participação compartilhada, no âmbito da Funai, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, mas, dessa vez, na perspectiva de uma política pública permanente. Nesse momento está se tentando fazer isso com as discussões em torno da regulamentação da Convenção no 169, por meio de seminários regionais, similares às metodologias iniciadas pelo PDPI e pelo PPTAL, ainda nos anos finais da década de 1990. Márcia Gramkow – (...) a própria construção. Gersen Baniwa − Até hoje ninguém conseguiu inventar outra metodologia. Então, eu acho que essas lições são fundamentais. Sobre isso, poderia dizer várias coisas muito positivas, mas isso é muito amplo para o pouco tempo que temos. Mas são muitas conquistas. Acho que o mais importante foi o alavancamento da autoestima indígena, quando

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perceberam que eram capazes de gerar e gerir iniciativas próprias, com apoio do governo, ou seja, reconhecidos pelo governo. Com isso, os indígenas se sentiram valorizados, reconhecidos nos seus direitos ao perceberem que, pela primeira vez, os recursos destinados a eles estavam chagando de verdade em suas comunidades e em suas mãos, por meio de uma conta bancária coletiva da sua comunidade ou da sua organização e, com isso, eles foram podendo autonomamente gerir os recursos e desenvolver os trabalhos. Foi um exercício difícil, estranho e, por vezes, fracassado, mas o sentimento de reconhecimento, de confiança e de responsabilidade ajudou a superar as muitas dificuldades. Márcia Gramkow – (...) a autogestão. Gersen Baniwa – O arranjo de gestão é coisa incomparável e de extrema relevância. Márcia Gramkow – E para o povo? Queria que você falasse: Baniwa e PDPI, como é a relação? Teria algum significado? Gersen Baniwa – Eu acho que, como a gente costuma dizer, no chão da comunidade, o reflexo é praticamente direto e imediato. Primeiro é isso: a partir do sentimento de poder dizer “olha, nós não estamos tão isolados assim, não estamos tão excluídos assim; existem experiências que estamos executando agora”. Isso foi muito valioso; a comunidade se sentir parte de uma comunidade maior, das instituições, dos segmentos e da sociedade envolvida. Márcia Gramkow – Um fortalecimento étnico. Gersen Baniwa – Exatamente, um fortalecimento étnico. De como as coisas haviam mudado. Porque fora das discussões no campo da educação e da escola, foi o primeiro projeto que levou esse debate

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para a comunidade indígena, que trouxe essas novas percepções e essas novas perspectivas de práticas políticas, no cenário pós-Constituição de 1988. Então, foi o primeiro projeto a procurar de forma mais efetiva contribuir para tudo aquilo que a nova Constituição trazia como possibilidade: a valorização das tradições, das culturas, dos conhecimentos, dos saberes, da organização social – não apenas a preocupação material. A principal riqueza que o PDPI construiu e herdou, e que acho que ao longo do tempo foi se perdendo, foi justamente a valorização não material das coisas. Foi uma experiência que considerou a filosofia indígena de que para se viver bem não interessa apenas o ideário desenvolvimentista, materialista, mas também cultural e espiritual. Márcia Gramkow − Então, sistemas culturais indígenas podem ser vistos como reconhecidos nas práticas dos subprojetos? Gersen Baniwa – Foi uma oportunidade de sair das intenções da lei, com relação aos direitos culturais indígenas, para promover, valorizar e divulgar, de forma coordenada, coletiva e prática a rica diversidade do patrimônio material e imaterial dos povos indígenas. Então foi, digamos assim, uma coincidência muito produtiva. Coincidência no modo de dizer, porque foi parte de uma costura, de uma discussão, de um acordo feito. Mas como é que você podia, na aldeia, pensar essas várias dimensões da vida de forma concreta? Então, o projeto deveria contribuir, e acho que contribuiu muito para isso. Não é nada interessante avaliar o PDPI apenas pela perspectiva da gestão, do impacto material, econômico, desenvolvimentista, projetista, mas, sim, da perspectiva de seus resultados e impactos imateriais para a vida dos povos indígenas, no campo da cultura, da autoestima étnica, da cidadania e da autonomia

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política. Não se pode medir apenas quantas toneladas de produtos foram produzidos, comercializados ou dos erros e fracassos identificados, mas também − e talvez muito mais − o que mexeu na mentalidade, na cultura, na autoestima, na forma de percepção dos próprios cidadãos indígenas sobre si mesmos e sobre as relações com o governo, com a cooperação internacional e com a sociedade nacional e global para as quais o projeto os projetou. Tenho certeza de que os dirigentes e gestores governamentais nacionais e internacionais envolvidos também contribuíram e aprenderam com a experiência. Nesse sentido, é uma pena que até hoje não tenha sido feita nenhuma avaliação profunda da experiência do PDPI, que poderia estar ajudando a evitar a continuação de erros na condução de políticas, programas e projetos atuais voltados para os povos indígenas no país. Minha impressão é de que a experiência do PDPI não foi adequadamente valorizada como merecia na fase mais densa de seus trabalhos e seus resultados por pura mediocridade política. Pelo fato de ter sido de iniciativa e gestada no outro governo, no governo do PSDB. Espero que eu esteja enganado.

Lições dos subprojetos: entre a lógica da administração e as lógicas da cultura Márcia Gramkow – Você se lembra de algum projeto, alguma experiência que pudesse indicar, pela força, que fosse bastante reveladora desse aspecto? Gersen Baniwa – Principalmente os projetos de ordem cultural. Eu poderia citar, por exemplo, um projeto que eu pude acompanhar, dos Yekuana, que até hoje para mim é simbólico. Embora haja contradição na chamada relação intercultural ou nas tentativas de estabelecimento de diálogo entre culturas e racionalidades completamente diferentes, eu sempre

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me lembro da história do cacique Yekuana. Yekuana é um subgrupo Yanomami. A comunidade recebeu o financiamento e eles ficaram muito felizes com os resultados do projeto, que era de valorização das tradições, músicas, danças e mitologias. Por estarem felizes, convidaram seus parentes Yekuanas que moravam do lado da Venezuela para virem comemorar juntos os resultados do projeto com muitas atividades culturais. Em meio a tanta alegria, comemoração e festa, no final da festa, o cacique, que na verdade também era o gestor do projeto do PDPI, simplesmente resolveu dar de presente aos parentes convidados da Venezuela o motor de popa que havia sido comprado com os recursos do projeto. Aquilo, do ponto de vista do gestor público, da burocracia estatal, foi um escândalo. Mas para os Yekuana aquilo foi a coisa mais nobre, mais valiosa, mais fraterna, mais humana, mais solidária que o projeto poderia propiciar naquele dado momento. Márcia Gramkow – O chefe é aquele que pode dar mais. Gersen Baniwa – Exatamente. Então, isso, para mim foi uma coisa muito boa, inclusive para alguns da administração pública. Embora alguns dissessem que “não, isso não podia ser feito”, admitiram que aquela atitude tinha uma lógica de valor completamente diferente, uma ética coerente e que no fundo todo mundo aprovou e aplaudiu, vindo do pensamento, da nobreza da alma – uma coisa fantástica. Então, acho que isso revela um pouco disso que eu insisto em dizer, dessa autoestima, dessa possibilidade de se perceberem como sujeitos, como atores, como cidadãos. Márcia Gramkow – Nesse sentido, com a formação de antropologia que tem, e como assessor, você pode comentar essa experiência? Gersen Baniwa – As experiências do PDPI me ensinaram muita coisa. Clarearam muitas dúvidas como pessoa e como gestor público, que levei para

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as experiências seguintes, junto aos gestores não indígenas, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério Educação. Passei a defender, com maior clareza, nos diferentes espaços acadêmicos e de políticas públicas, a importância da diversidade cultural, das diferentes racionalidades, das diferentes ontologias e epistemologias, com suas diferentes lógicas: lógicas econômicas, lógicas culturais, lógicas de valores humanos e não humanos. Mas é um caminho longo e com muitos desafios. Como eu sou do Rio Negro, preciso falar um pouco das experiências locais ou mais precisamente dos Baniwa. O PPDI deu sua contribuição para o desenvolvimento do Projeto Arte Baniwa, voltado para a valorização do artesanato baniwa, tanto na perspectiva cultural quanto econômica. Pela própria inovação e flexibilidade do debate, foi a primeira vez que se discutiu no Rio Negro e, principalmente, entre os Baniwa que era possível pensar iniciativas econômicas que não fossem economicistas. Ou seja, que os produtores Baniwa do artesanato comercializado não precisavam se tornar reféns ou dependentes da racionalidade, da lógica e da cadeia exploratória do mercado. Lembro-me quando começou a venda do artesanato. A principal discussão era: como fazer para não entrar na engrenagem do mercado? Nós não podemos, não queremos entrar. Então, isso foi uma discussão tensa, uma discussão difícil, mas se provou também que era possível estabelecer uma relação autônoma com o mercado sem precisar se subjugar à sua lógica de tempo, preço, marca etc. Os produtores Baniwa continuaram praticando seus calendários culturais tradicionais e, nas horas vagas, produziam artesanatos para a venda às grande distribuidoras como a rede de supermercados Pão de Açúcar. Márcia Gramkow – Foi uma lição para o Estado?

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Gersen Baniwa – Foi uma boa lição para o Estado, mas pouco aproveitado por ele. Poderia aproveitar muito mais das lições aprendidas para adequar seus instrumentos administrativos e lógicas políticas para trabalhar políticas públicas com maior qualidade, coerência e proximidade com as realidades, demandas e direitos indígenas. Porque o projeto trouxe uma imensa riqueza de aprendizagens para se pensar a relação do Estado com os índios e para que o Estado se adéque cada vez mais para atender as realidades específicas, não só indígenas, mas de comunidades tradicionais, quilombolas, e assim por diante. O PDPI trouxe lições tão claras, tão óbvias, mas hoje continuamos patinando na hora de pensar em implementar políticas, programas e ações junto aos povos indígenas. O PDPI é um laboratório excepcional a quem de fato tem compromisso na construção de políticas públicas sérias, coerentes e eficientes para os povos indígenas.

Movimento indígena, PDPI e Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena Márcia Gramkow – E para o movimento indígena na relação com o PDPI? O que mais vem à tona? Gersen Baniwa – Para o movimento indígena, o que vem à tona é novamente o gosto pela experiência e a consequente autoestima. Todo mundo gostou da experiência e hoje já começam a sentir saudades. De vez em quando, alguém (indígena) me pergunta se ainda vamos ter o PDPI de volta ou outra iniciativa semelhante. A experiência PDPI em si é valiosíssima para o movimento indígena. É uma referência histórica e um divisor de águas entre as práticas paternalistas e tutelares e as práticas protagônicas e autônomas dos povos indígenas na relação com o governo e com as políticas públicas. E como eu disse – foi a primeira vez que o movimento se sentiu reconhecido, de fato e 70

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para valer, como partícipe do processo. E ser partícipe do projeto não é ser dono, mas é sentir-se também responsável, e passar a colaborar, dialogar e envidar esforços na construção e sucesso da iniciativa. Mas isso não significa que tenha sido fácil e tranquilo. Lembrome de vários momentos de tensão, de impasses, de dificuldades e até rompimento de diálogos entre as partes. Mas tudo foi aprendizagem, ou melhor, interaprendizagens. A outra coisa é que o movimento indígena aprendeu muito. Na Região Amazônica, todos os outros projetos que vieram depois do PDPI seguiram a sua lógica, a sua metodologia. Cito como exemplo a Carteira Indígena, no âmbito, do MMA. No processo de discussão e de implementação, as lideranças indígenas do movimento amazônico diziam: “não, no PDPI foi assim, então, a Carteira Indígena tem que seguir essa lógica”. Então, o movimento se apropriou bem de algumas lições importantes do PDPI e deu prosseguimento, no caso específico da Carteira Indígena, que eu acompanhei mais de perto. Mas acho que em outras atividades também, como na PNGATI, foram considerados os processos participativos de construção do programa. Do ponto de vista de metodologia, foi fundamental. O que eu acho é que não conseguimos acumular força suficiente, como movimento indígena, para convencer o Estado brasileiro, a partir dessa experiência, a repensar suas lógicas, principalmente burocráticas e administrativas, quando se trata de segmentos sociais de realidades específicas, como são os povos indígenas. Márcia Gramkow – De acesso (...). Gersen Baniwa – Para mim é óbvio que o PDPI inovou em metodologia de participação, responsabilidade compartilhada e protagonismo indígena no desenvolvimento do programa, que outros projetos e programas que vieram depois foram seguindo e aperfeiçoando. Em minha opinião, este é e será o

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principal desafio da PNGATI, que é hoje uma política nova, e que deveria se espelhar nessas primeiras experiências. É o desafio de aproveitar as experiências e as lições aprendidas delas para se fazer as necessárias mudanças e aperfeiçoamentos, principalmente quando se fala de implementação de políticas públicas para povos indígenas. Toya Manchineri – Falando nisso, a relação da experiência de implementação do PDPI e da Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas, a minha pergunta seria a seguinte: com essa experiência, desenvolvida na Amazônia Legal brasileira, eu perguntaria se os povos indígenas teriam mais facilidade de implementar ou influenciar a implementação da política, já que foi uma experiência bastante interessante o PDPI. E uma das outras questões que eu vejo, com relação ao PDPI, é que ele colocou a ideia das comunidades e povos para a sociedade, através dos projetos, de proteção, de desenvolvimento sustentável etc. Gersen Baniwa – Para se pensar políticas públicas cada vez mais adequadas para as realidades amazônicas, o PDPI, assim como o PPTAL continuam sendo laboratórios relevantes – não no sentido de laboratório acadêmico de manipulação, mas laboratórios de construção de processos, de aprendizagens, de exercícios e vivências concretas, planejados, acompanhados e, de algum modo, avaliadas. As experiências do PDPI e do PPTAL apresentaram enormes vitalidades temáticas, metodologias e práticas políticas e administrativas, assim como processos dinâmicos muito ricos em termos de diversidade de lógicas, de racionalidades, de processos de vida, não apenas processos de desenvolvimento de práticas produtivas, econômicas, mas, também sociais, culturais, políticas, espirituais. Se pegarmos a religiosidade, a espiritualidade das comunidades

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indígenas amazônicas, é algo fantástico. A Amazônia é um celeiro de processos socioculturais que precisam ser considerados, e o PDPI foi um instrumento dessa valorização, visibilização e promoção dessas culturas. Isso também não é uma coisa gratuita. Eu acho que a Amazônia já recebeu muitos investimentos, públicos e privados, suficientes para criar uma espécie de capital de experiências. Márcia Gramkow – (...) social (...). Gersen Baniwa – Um capital social, para dar passos que precisamos dar. Eu acho que se tem uma região em que se tem um movimento social com muita experiência acumulada, capaz de impulsionar saltos que precisam ser dados no Brasil, essa região se chama Amazônia, justamente por esse processo histórico, de acúmulo de experiências. Experiências fracassadas e bem-sucedidas. Para mim, o PDPI é uma experiência bem-sucedida. Assim como o PPTAL – cumpriram suas funções experimentais. Acho que os dois projetos foram muito bem-sucedidos. Repito: pena que não há muita visibilidade, não se tenha avaliação, e pior – acho que os governos não se apropriaram dessas experiências, o que é um erro histórico. Márcia Gramkow – Mas ele é memória para os povos indígenas. Gersen Baniwa − O PDPI é uma memória importante, emblemática, mas relevante do ponto de vista das lições aprendidas. Os povos indígenas da Amazônia vão ter por um longo tempo isso como memória, como arma, como instrumento, como referência para avançar acertando e evitando erros revelados. Eu não tenho a menor dúvida disso. Penso que precisamos ter outras oportunidades similares, que partam de suas experiências, para que as comunidades indígenas continuem avançando na busca por superação de seus desafios e na conquista de seus sonhos, dando o salto

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que tanto queremos no Brasil, que é termos políticas públicas cada vez mais adequadas para atender às demandas e garantir os direitos indígenas. O que não podemos é continuar com os erros revelados pelo PDPI e cometidos por gestores, técnicos e planejadores, que é de tratar as comunidades indígenas ou comunidades tradicionais como coitadinhas ou, simplesmente, como cidadãos genéricos de segunda ou terceira categoria que precisam de esmolas. Não pode. Os povos indígenas apresentam suas realidades particulares, com seus conhecimentos próprios, suas culturas próprias, suas lógicas e racionalidades próprias e suas capacidades e potencialidades próprias, diferentes, mas suficientemente eficientes, e que as políticas públicas precisam considerar e levar a sério. Mas, infelizmente, hoje eu ainda não vejo concretamente, em nenhum ministério, em nenhuma instância governamental, esse compromisso, essa abertura mental para inovar no campo das políticas públicas. O que eu acho que é uma grande pena, porque essa é a grande lição. Os projetos do PDPI mostraram que é possível construir políticas públicas a partir de outras lógicas, de outras metodologias, aproveitando os conhecimentos locais disponíveis, associados aos conhecimentos de fora. Isso foi demonstrado por meio de vários projetos, que precisam ser incorporados na construção, elaboração e desenvolvimento de novas políticas, que eu ainda espero ver. Confesso que não conheço muito por dentro a PNGATI; minha esperança é que a PNGATI possa aproveitar mais dessas experiências. Mas como eu não conheço, eu não posso falar se ela está ou não. Tomara que ela consiga incorporar, se apropriar e aproveitar de tudo isso, porque com isso daríamos saltos significativos, adotando novas práticas metodológicas de trabalho com os povos indígenas, de modo que eles sejam os principais sujeitos de seus projetos e planos de vida. Toya Manchineri – Outra pergunta é com relação a esse capital social. Eu reconheço, inicialmente, que 74

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existe esse capital social. Mas a pergunta é: será que o movimento indígena consegue implementar? Ou não consegue porque não se apropriou dessas informações? Será que é isso? Gersen Baniwa – O movimento indígena também tem sua parcela de responsabilidade em tudo isso: nas conquistas e nos desafios. Penso, por exemplo, que os “dirigentes” do movimento indígena não se apropriaram suficientemente dos instrumentos e das lições do PDPI. Nós temos um problema no movimento indígena que é a tendência sempre de separar, melhor dizendo, de isolar a luta política discursiva e representativa das aprendizagens concretas, técnicas, burocráticas. Acho que esse isolamento não ajuda. Mas, de certa maneira, isso continua sendo capital social. Quer dizer, em algum momento, esse capital social vai, sim, emergir mais no campo das efetividades. Porque também as lideranças mudam. Mas nós ainda sofremos esse processo em que há essa separação entre os dirigentes políticos e os técnicos ou gestores indígenas, aqueles que tentam pôr a mão na massa, com todas as contradições e desafios. Penso que, nos próximos anos, vamos precisar fazer mais essa aproximação, entre as lideranças políticas e as lideranças técnicas e acadêmicas. Se a aprendizagem efetiva das experiências acumuladas for compartilhada no cotidiano do movimento indígena como um todo, principalmente a partir das lideranças, será a nossa chance de incidir e influenciar cada vez mais na formulação e execução de novas políticas. Porque a tendência é que as lideranças políticas cobrem cada vez mais as políticas e ações concretas, mas elas incidem e contribuem muito pouco para isso – e quem pode contribuir é justamente quem está com a mão na massa, quem está trabalhando com isso, que são os técnicos e gestores indígenas. Quando a gente conseguir aproximar isso, eu acho que vamos conseguir dar saltos maiores e com maior qualidade nas políticas públicas voltadas para nossas comunidades. A gente 75

já tem bagagem para dar esse salto de qualidade. Agora, como é que a gente consegue pôr isso na linha de frente, para incidir nas novas políticas? Esse é um exercício que nós temos ainda que fazer. Márcia Gramkow – Agora, nesse sentido, eu diria que a PNGATI – mesmo que você não tenha se aprofundado sobre ela, sobre seu texto –, nos seus acertos de capacitação e formação, e com os arranjos que estão começando a sair, os roteiros, os modos que estão sendo construídos, ela tem essa potencialidade de fazer. Porque, na medida em que você está fazendo a formação conjunta – brancos, índios, gestores não governamentais, gestores de Estado, instituições diferentes que estão sentando juntos, estão aprendendo juntos, estão trocando juntos –, eu acho que esse tem sido um grande desafio. Pode ser, eu acredito, mesmo que você trabalhe numa perspectiva multicultural nesse outro curso de formação, de licenciatura que você coordena, eu acho que a PNGATI tem esse outro lado. Ela está dentro do seu eixo, na sua implementação de eixo de formação, ela está fazendo um exercício de aproximação, porque foi para entender a própria política – saindo da perspectiva mais ampla desse projeto, do próprio entendimento de três instituições de governo, para saber o que eles achavam que era a PNGATI – foi um ano para eles poderem tratar, sentar junto. Então, agora estão sentando juntos para poder caminhar. Esse foi um aprendizado do PDPI também. Gersen Baniwa – Penso que é uma oportunidade ímpar, pela força que a PNGATI tem. O PDPI não tinha essa abrangência institucional que a PNGATI tem. Não envolvia, ou envolvia muito pouco, as instituições públicas locais, especialmente os estados e municípios. O PDPI tinha a responsabilidade compartilhada entre o governo federal (MMA e Funai) e os povos indígenas. Isso teve vantagens e desvantagens. Tinha como vantagem a menor 76

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complexidade na sua operacionalização, envolvendo apenas duas partes ou três partes, se considerarmos a cooperação internacional, mas carecia de maior disseminação, replicação, capilaridade e sustentabilidade institucional, por não envolver e comprometer as instituições locais. Era a mentalidade da época. A de que a temática indígena no país era de responsabilidade exclusiva da União. Nesse sentido, a PNGATI, se por um lado pode avançar bem mais na sua consolidação interinstitucional em níveis locais, por outro, enfrentará processos mais complexos de gestão, por envolver estruturas tão amplas, díspares e por vezes antagônicas. Sabemos das fragilidades técnicas e instabilidades políticas das instituições locais, que a PNGATI terá de administrar. O processo vai ajudar muito a formar capacidades locais nos diferentes segmentos indígenas, da Funai, do Ministério do Meio Ambiente, dos estados e municípios, mas, se você não mexe na estrutura racional, ou seja, se não houver força suficiente para mover a racionalidade dos procedimentos administrativos, vai adiantar muito pouco toda essa qualidade de recursos humanos. Márcia Gramkow – (...) a reforma fiscal que está sendo proposta. Gersen Baniwa – Reforma fiscal e reforma burocrática mesmo.

Gestão administrativa e sociodiversidade Márcia Gramkow – Reforma burocrática e fiscal, no sentido em que você tem a Lei no 8.666 na relação. Você está falando dos processos participativos, via comitês, em que se possa ter controle social, mas também que esse controle social possa ser um interlocutor a ser contratado, de acessar o recurso existente. É isso também, da confiança? Porque quem faz a fiscalização não dá conta.

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Gersen Baniwa – Porque isso impõe uma possibilidade muito cara também. Márcia – E transparência. Gersen Baniwa – Isso impõe um processo muito caro para o modelo de Estado que nós temos. Márcia Gramkow – Centralizador. Gersen Baniwa – O modelo de Estado que temos é muito centralizador e homogeneizador. Tudo isso que estou falando só tem sentido se um dia o ESTADO brasileiro puser na cabeça que não tem sentido e não dá para tratar os cidadãos brasileiros, que são tão diversos, de forma homogênea. Isso significa que, de alguma maneira, o Estado vai ter de romper com essa visão unicista, unitária, injusta e excludente, inclusive no campo administrativo e burocrático, para atender de forma digna e justa as diversas realidades dos diferentes segmentos sociais, da sociodiversidade brasileira. Esses segmentos exigem procedimentos administrativos diferenciados e políticas públicas igualmente específicas e diferenciadas. Isso é muito caro para o Estado; é muito difícil isso. Márcia Gramkow − E há incapacidade do Estado inclusive de dialogar diferentemente, ele não tem (...). Gersen Baniwa – É exatamente disso que eu estou falando. Ele até consegue dialogar teoricamente, mas na prática, é zero. Márcia Gramkow – Acho que o próprio PDPI, não sei se você concorda, mostra isso. Gersen Baniwa – A maior limitação do PDPI foram as amarras irracionais dos instrumentos administrativos do governo. O PDPI poderia ter tido resultados muito mais positivos se tivéssemos conseguido mexer na estrutura burocrática do Estado. A principal lição do

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PDPI é isso: sem mexer/mudar/adequar nas lógicas e estruturas administrativas e burocráticas do Estado, dificilmente os povos indígenas serão dignamente atendidos nos seus direitos e necessidades básicas, principalmente na Amazônia. Márcia Gramkow – Mas lembre-se do seguinte: quando o PDPI faz uso do banco, ele faz o convênio com o banco e usa o instrumento via projeto, para poder fazer o repasse de recurso, para acessar. É a única forma que você tem, você repassa para uma outra instituição público-privada, que no caso é o banco, para assumir a responsabilidade de acompanhamento, de aplicação de recurso, uma forma de responder a Lei no 8.666. Então vamos dizer que depois a própria instituição público-privada, que é de capital financeiro, diga: “Poxa, eu não posso assumir isso ou aquilo, que pertence a outro capital”. Então, essa é uma questão que o PDPI mostra. E o PPTAL também começa a fazer isso, quer dizer, manda o recurso estrangeiro que entra, que também vai se utilizar de convênio, via PNUD, para que haja o acesso. Gersen Baniwa – É, a PNGATI inclusive tem essa possibilidade. Márcia Gramkow – (...) de construir fundo. Gersen Baniwa – Inclusive de envolver mais os próprios recursos nacionais. No caso, o PDPI dependeu muito de recursos internacionais. Márcia Gramkow – Agora você já tem garantias dos custos da política; a discussão do PPA. Gersen Baniwa – Contar com recursos nacionais para política indigenista de grande fôlego é um grande desafio. Na experiência do PDPI, a cooperação internacional foi muito importante, principalmente, na garantia das condições financeiras e técnicas para

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o desenvolvimento do empreendimento. Algumas flexibilizações técnicas e administrativas que ocorreram no âmbito do PDPI foram possíveis muito mais por força da concepção e posição dos parceiros da cooperação internacional do que do próprio governo brasileiro. Quando o projeto depende muito ou exclusivamente de fundos públicos nacionais, o risco é maior em termos de garantia de recursos financeiros ou mesmo na flexibilidade do jogo técnico-burocrático. Sabemos das fragilidades orçamentárias pelas quais quase sempre passam os recursos previstos para os povos indígenas, no âmbito da Funai e de outros ministérios afins, que são sempre os primeiros a serem contingenciados, reduzidos, sofrerem cortes etc., mesmo quando fazem parte do PPA. A tendência de homogeneizar, de centralizar, é muito maior. Isso vai ser um desafio para a PNGATI. Se levadas a sério as lições do PDPI e do PPTAL, isso deveria ser um foco importante da PNGATI. Márcia Gramkow – Gestão administrativo-financeira (...). É um gargalo. Gersen Baniwa – A gestão administrativo-financeira não tem a ver apenas com o aspecto técnico de pessoas que podem ser bem qualificadas e preparadas. Tem a ver com as tomadas de decisões políticas de quem tem poder na mão e que impõem vigorosos limites à gestão econômico-financeira, como controle político e por conta de prioridades e interesses dos detentores do poder político no âmbito do governo. Márcia Gramkow – Eu vejo assim. Se a cooperação técnica tem que colaborar ainda nesses últimos anos, eu acho que ela só pode colaborar em estudos, tentando mostrar ao Estado, em sua gestão – é o grande desafio, não deixá-lo frágil, porque ele gosta de exercer seu controle –, quais são os tipos de legislações e recursos administrativos-jurídicos que permitiriam outro tipo de relação.

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Gersen Baniwa – Os estados nacionais modernos incluíram nas suas constituições a ideia de sociedades multiculturais, de países pluriculturais. A ideia de pluriculturalidade não pode ser apenas no papel e muito menos na teoria, tem que acontecer no chão e no meio onde as pessoas vivem e convivem. Márcia Gramkow – No nível concreto, é você mexer nas legislações, respeitando a adequação. Gersen Baniwa – E essa adequação é que precisa avançar no Brasil. Até hoje avançou muito pouco. Márcia Gramkow – O conceito de coletivo, comitês gestores, comitê participativo etc., essas instâncias estão postas. O jurídico-administrativo é que está atravancando. Porque dá uma vã ilusão de que você pode fazer controle do Estado sobre a aplicação dos recursos. Gersen Baniwa – E aí não consegue fazer; até hoje no Brasil não faz. Os coletivos são muito interessantes, mas quando eles tomam decisões, deliberam, depois aquilo não se aplica, porque não há uma lógica capaz de atender àquilo que foi deliberado. Márcia Gramkow – Mas acho que o PDPI também dá exemplo nessa hora. Pelo conceito coletivo de gerência, pelas organizações, prestação de contas, responsabilização etc. Gersen Baniwa – Existem coisas que são deveres e direitos básicos, que já são passivos e tranquilos. Agora existem processos que são indispensáveis, são fundamentais para que a iniciativa dê certo; outras coisas não são. Então, se a gente pensar em conta no banco, isso não é problema; você só precisa capacitar os índios. Agora tem coisas que são muito mais complicadas do que isso.

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Escrawen Sompré Escrawen Sompré, do povo Xerente, esteve à frente do PDPI como gerente técnico entre 2004 e 2006, período em que o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas contava com uma unidade de gerenciamento em Manaus, Amazonas. Esse escritório reunia, junto à gerência técnica indígena, a equipe de assessores técnicos, administrativos e financeiros, estagiários indígenas e a assistência técnica das agências de cooperação internacional. Em sua trajetória, atuou pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) em vários estados, e participou também do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). É engenheiro florestal com formação técnica em agropecuária e pós-graduação em gestão ambiental e ordenamento territorial. Sompré se reuniu em junho de 2014 com Toya Manchineri e Andréa Borghi M. Jacinto, quando concedeu a entrevista que se segue. Junto a uma memória e avaliação de sua experiência no PDPI, Escrawen Sompré reflete sobre as relações entre Estado e movimento indígena, bem como sobre novas perspectivas das políticas públicas voltadas aos povos indígenas.

Lições do PDPI: a memória para não se reinventar a roda Toya Manchineri – A Andréa fez a introdução do que nós estamos fazendo. Por que “diálogos e saberes”? Porque desde o Gersen, passando por você, todo esse processo do PDPI, há muito material produzido por antropólogos e por pessoas que olhavam o projeto PDPI. E nesse “diálogos e saberes”, nós estamos querendo trazer o olhar de pessoas que executaram os projetos, seja por parte da gerência do PDPI, seja por parte das organizações e de comunidades indígenas. Em janeiro,

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fomos a Jutaí, ver o projeto no 472, que é de proteção e manejo de pescado. Um excelente projeto que dá para ser replicado em outras terras indígenas. Ali se vê o envolvimento da comunidade, o processo de que ela saiu – em que todo mundo entrava na terra indígena para pegar o pescado, a riqueza deles lá –, até o momento de finalização do projeto, onde em três anos eles conseguiram fazer R$ 450 mil. Isso para uma comunidade de Amazônia é excelente. Pensando no montante que foi aprovado – em três anos eles ultrapassaram o que o PDPI apoiou. Esse projeto foi aprovado quando você era o gerente técnico. Então, poderia falar um pouco sobre a execução do PDPI? O que faltou para que pudéssemos transformar o PDPI em uma política pública, ou em um programa realmente permanente do governo para as comunidades indígenas? Faltou o movimento indígena ser mais incisivo em seus debates com o ministério? Queria sua opinião, saber de suas experiências, o que você viu nesse período em que foi gerente técnico. Escrawen Sompré – Então, Toya e Andréa, o PDPI – pelo menos era esse meu entendimento na época e até hoje – vinha como um projeto pequeno, tentando buscar políticas junto às autoridades, buscar uma nova forma de lidar com a questão indígena. E nós tínhamos aquela oportunidade para fazer uma coisa diferente, inovadora, buscando projetos exitosos para interferir em políticas públicas. Depois de muito tempo, o que me deixa triste, é que isso praticamente não foi aproveitado como a gente previa. Por quê? Atualmente estão aí discutindo a questão desse novo projeto do BNDES, em que se está reinventando a roda, se discutindo tudo de novo. Isso aí, para mim, só seria pegar o que foi feito no PDPI e fazer uns ajustes contemporâneos. Só que lá dentro deles, e aqui dentro da Funai, que é o órgão responsável para fazer a coisa funcionar, isso praticamente não é visto, ou se é visto, não recebe a atenção necessária.

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Dentro do Ministério do Meio Ambiente, que é onde nós nos encontrávamos naquela oportunidade, infelizmente, as pessoas que passaram por lá saíram e levaram com elas (...). E no que se refere ao governo, é o tempo todo nessa de o pessoal reinventado a roda, cada um com sua varinha de condão – e não se dá a atenção necessária às experiências exitosas passadas. E nós, povos indígenas, estamos sempre nesse meio, sempre conversando com pessoas que estão chegando, e não estão dando atenção necessária às experiências passadas. Com relação à questão do movimento indígena, sobre a governabilidade daquele projeto, para que ele pudesse ter tido sequência, também houve uma dificuldade enorme, porque as pessoas que estavam à frente do movimento indígena naquela oportunidade deram um tempo. Porque houve uma pressão forte das políticas que estavam naquele cenário, aí se afastaram um pouco, ou seguiram outros caminhos. E chegaram novos companheiros no movimento, e não sei por que – se quiseram ou não quiseram, ou foram orientados –, não deram a atenção necessária para dar sequência àquilo que estava sendo feito. Andréa Borghi – Não incorporaram essa história. Escrawen Sompré – Exatamente. E aí os companheiros que estão chegando hoje no movimento indígena – e a gente precisa discutir isso profundamente – estão numa situação de reinventar a roda, igual ao pessoal aqui de fora. Então, nós estamos caindo num círculo vicioso. É isso que aconteceu. O que nós temos que buscar – eu não sei de que forma – é que os companheiros do movimento indígena que estão entrando agora não percam a história, e vejam que determinadas ações, programas, projetos, enfim, já têm sua base consolidada. É só atualizar. Mas isso não está acontecendo, infelizmente. Nós estamos o tempo todo recomeçando, recomeça aqui, recomeça acolá. E isso está sendo um empecilho muito forte para o

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movimento, para os povos indígenas, e para as ações públicas, nas quais nós tínhamos esperanças de que viriam as políticas públicas voltadas para os indígenas – nas questões de proteção ambiental e proteção territorial, com ênfase no fortalecimento cultural, nas atividades de produção dentro do território indígena. Enfim, todo esse contexto praticamente ficou nessa situação de não aproveitar nossos projetos exitosos. Andréa Borghi – É uma questão do Estado, e que também está no movimento. Toya Manchineri – Ao dar esse depoimento, isso me remete à questão do Estado em si. Por exemplo, cada governo tem um marca. E me parece que, no movimento indígena, cada coordenação quer ter uma marca. Mas aí acho que pode colocar uma marca quando se faz o seguinte: ver o que está construído e, a partir daí, não reinventar a roda, mas consertá-la, dar sequência, tirar o que não está funcionando, e ir atualizando dali para frente. Não é assim também a questão do movimento indígena? Escrawen Sompré – Então, qual o objetivo de uma grande organização como a COIAB? É buscar alternativas políticas para povos indígenas da região. Mas, infelizmente, as pessoas estão chegando, não tiveram acesso anterior à questão de conhecimento, de como funcionou e tudo mais. E daí começa da estaca zero, e está sempre recomeçando. Então, o que o movimento tem de ter é uma biblioteca, mesmo que imaginária. Andréa Borghi – Virtual. Escrawen Sompré – Virtual, onde se possa pegar tudo isso e remoer. Eu acho que, antes de entrar em qualquer política, os políticos – como os dirigentes das nossas organizações são para nós – têm que conversar com os mais experientes. Não para que os mais

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experientes interferiram na condução do processo, mas para pegar essa experiência e tentar readaptá-la à contemporaneidade para levar isso para frente. Andréa Borghi – Mas você sabe que, sobre o próprio material que está sendo produzido aqui, nós ficamos pensando qual vai ser o lugar de referência de acesso? Qual pode ser a base virtual para que ele possa ser sempre acessado? Escrawen Sompré – Eu penso que nossos companheiros vão estar sempre acertando na medida em que eles não percam a história. Entendeu? Esse negócio do BNDES, por exemplo. Essa discussão que está sendo feita hoje eu fiz há 15 anos. Quinze? Foi em 1999 – há quinze anos eu fiz a mesma discussão: pode ou não pode, como é que vai? E nós estamos discutindo de novo, gastando recursos desnecessariamente. Os atores são outros, daqui não reconheço muita gente que participou daquela oportunidade. Mas, olha: não custa nada pegar a história, e ver como foi feito isso. A Márcia Gramkow participou naquela oportunidade. Então, nós estamos andando em círculos. Seria só o caso de adaptar o que está feito à atual conjuntura. Como é que nós vamos fazer? O que não falta é colegas para dar seu depoimento. Nós temos colegas que participaram ativamente da implementação: da parte indígena, era eu, o Gersen, o Euclides, entre outros companheiros; e além disso, nós temos os técnicos – o Fábio, o Cássio, toda essa galera – que contribuíram de forma brilhante para o processo. No entanto, essas pessoas não são chamadas para dar um depoimento. Seria o caso de assumir: “Olha pessoal, isso tudo está resolvido, vamos ver o que precisa adaptar” – e ver quais são as exigências do BNDES, ou do financiador, pode ser outro, e aí fazer a adaptação, porque isso já está bem discutido com as comunidades.

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Como os novos integrantes do movimento indígena não estão bem atentos à história, tudo para eles é novidade, assim como é novidade para o pessoal. Então, temse uma nova discussão, e daqui a cinco ou seis anos, vamos ter outra, vamos discutir tudo de novo – se é terra indígena, se ela tem que estar legalizada ou não... Sabe? Essas coisas. A compra, quem é que pode, quem não pode etc. Tudo na mesma linha! Toya Manchineri – Você falando isso aí, analisando outros projetos e programas que foram feitos para os povos indígenas, a gente pode perceber que no PDPI houve uma diferença, porque foi pensado com os povos indígenas. Com o BNDES não; há um financiamento, mas tem de ser tudo de acordo com o banco... Escrawen Sompré – Exatamente. Então, o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas foi, no meu entendimento, exitoso, porque fez uma diferença que não havia sido feita antes. O que foi? A participação ativa e direta dos povos indígenas no processo de construção do PDPI. Essa participação facilitou o acesso dos povos, comunidades e organizações aos recursos financeiros. A intenção dos parceiros (ingleses, alemães, japoneses) no processo de arranjo institucional do PDPI era colocar os recursos para a Funai administrar. O movimento indígena optou pela execução dos recursos via Ministério do Meio Ambiente (MMA), por ser mais flexível, porque, na Funai, a burocracia seria muito grande, o que poderia inviabilizar a implementação do PDPI. Isso possibilitou e muito que as comunidades que participaram do projeto tivessem uma noção de como funcionava a coisa. Tanto é que aprovamos aí uma centena de projetos, muitos, na sua grande maioria, talvez uns 80% exitosos – obviamente, tivemos problemas, nem todos são iguais. Mas tivemos pessoas indo in loco com os povos indígenas, com as comunidades, com os chefes tribais, fazendo o projeto

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como deveria ser feito, permitindo o empoderamento – a conversa na produção do projeto empoderava os indígenas, porque era feito in loco, e não fora. Fizemos o acompanhamento, o monitoramento, fazíamos a avaliação final de cada projeto com a participação dos povos. Então, isso tudo teve um ponto positivo. Claro, isso tem um custo. Custo que o governo brasileiro, através da sua agência de fomento – nesse caso específico, a Funai, o Ministério do Meio Ambiente e outros que têm uma linha voltada para a questão indígena –, não quer ter. Dá trabalho, tem custo, “enche o saco” – desculpe a expressão... Mas são fatores necessários para um bom acompanhamento do projeto; isso o PDPI fez. Andréa Borghi – Enfrentou. Escrawen Sompré – Enfrentou. Conversávamos outro dia com o Cássio, devaneando, e ele falou: “Poxa, Sompré, eu estou triste, porque tudo o que a gente fez com um carinho especial, tudo, não está sendo aproveitado em lugar nenhum!” Isso também me deixa triste. As pessoas nem sequer querem olhar. Andréa Borghi – Não sabem. Escrawen Sompré – Não sabem, e não querem saber! O pior é isso. Porque o fato de não saber, não significa dizer que você não possa conhecer. E tem pessoas que não querem, e dizem: “Lá vem ele com esse negócio do PDPI!” “Isso aí não deu certo!” Claro, não deu certo na continuidade, porque era um projeto com começo, meio e fim. Agora, as políticas públicas podem e devem ser analisadas como algo perene. E a participação dos povos indígenas está nessa questão: de fazer as interferências de forma inteligente, e fazer as modificações – seja na Funai ou em outros órgãos por aí a fora, que fazem essa assistência, essa atenção à questão indígena.

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Tentamos fazer isso na saúde. Estamos lá, na saúde. Hoje, particularmente, a questão da educação – pode não estar legal, mas os professores estão ali, estão atuando. Estão no Conselho Nacional de Educação; estão nos Conselhos Estaduais, alguns estados, tem indígenas que estão batalhando; os professores estão contratados pelas secretarias estaduais. Na questão da saúde, temos nossos agentes, temos nossos técnicos contratados de forma perene para questão da saúde. Na área ambiental e na área produtiva, nós não temos ninguém da comunidade envolvida. Não tem quem pague. Nós estamos preparando nossos agentes – que o PDPI também providenciou, e foi um sucesso na questão da formação dos agentes ambientais em vários estados da Amazônia. Mas não tivemos sucesso na continuidade disso, porque o pessoal se formava e não atuava, porque falta recurso para a manutenção desse pessoal, a exemplo de agentes de saúde, a exemplo de professores. Então, não tivemos uma política voltada para isso. E quando nós conversamos isso no Ministério do Meio Ambiente, o que se ouve é: “Ah, vamos ver.” “Dentro da Funai também não dá” – e todo mundo cai fora. E as pessoas que foram capacitadas para tal não tiveram estímulo de progredir com isso dentro da comunidade.

Trajetória pessoal e a memória da gerência indígena Andréa Borghi – Voltando para uma pergunta do início. Queria que você se apresentasse: quem é Sompré? Escrawen Sompré – Meu nome é Escrawen Sompré, sou do povo Xerente. Sou técnico em agropecuária, formado na Escola Agrotécnica Federal do Pará, em Castanhal – na época, hoje já são Institutos Tecnológicos, têm outro nome. Também sou engenheiro florestal, formado pela Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. E tenho pós-graduação em gestão

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ambiental e ordenamento territorial pela Universidade de Brasília. Essa é minha formação acadêmica. Fora isso, minha atuação no movimento, atuação política, dentro da COIAB, como conselheiro, e na atuação da COIAB nos mais diversos estados, como Pará, Maranhão e Tocantins, tivemos a felicidade de estar atuando em organizações locais e regionais, além de uma atuação dentro do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Foi uma época em que a COIAB passou por um processo de transição, eu me senti só, e acabei me recolhendo. Mas tivemos uma contribuição nesse aspecto, contribuímos também na questão da implantação do sistema de saúde para os povos indígenas, naquela época, pela Funasa. Enfim, tivemos dificuldades, porque, uma coisa são as discussões, outra coisa é a implementação de fato, concreta, que deu numa outra situação. Naquela oportunidade, eu fui um dos precursores, pelo menos teoricamente, para que nossas organizações fizessem convênio com o Estado para cuidar da saúde. Só que alguns companheiros não pensavam da mesma forma. Porque nosso objetivo era se empoderar economicamente para fazer as nossas ações e, ao mesmo tempo, fazer uma ação direta na saúde, como outros fizeram. Só que alguns companheiros não tiveram essa mesma perspicácia, e acabaram não fazendo a gestão de fato, e aí nós tivemos problemas. Em relação à educação, já discutimos bastante a questão da educação superior. Na época, tivemos em Brasília, junto com o Ministério da Educação, a questão das cotas e tudo mais, ajudamos na discussão, participamos, entre outras atividades que realizamos. Andréa Borghi – No caso do PDPI, em que momento você chegou ao PDPI? Como você se recorda desse momento? Escrawen Sompré – Eu cheguei ao PDPI da seguinte forma: eu estava junto com a COIAB, junto com

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o pessoal nas discussões – foi em 2004. Mas eu acompanho o PDPI desde a sua formação, que foi a discussão que eu me lembrava lá em Tefé, foi aquela grande! Lá, sim, lá foi o marco. Por quê? A história era para pegar o aval dos índios, para que a Funai ou outro órgão pudesse fazer a execução do projeto. E aí foi onde nós batemos o pé: negativo! Lá foi o marco nesse aspecto que eu acabei de falar, os índios e a COIAB tomaram a rédea naquele momento. Então, o que acontece? Desde lá, vínhamos acompanhando. Eu passei a participar representando a nossa região, o Tocantins; passei a ser um componente da comissão executiva de aprovação de projetos. Pela minha formação acadêmica, isso me facilitava um pouco a desenvoltura na conversa e a observação. E não sei como foi, mas isso de certo modo foi se acumulando no credenciamento para estar. Na oportunidade, o Gersen também estava saindo, porque ele queria fazer o mestrado dele, e achou que já era tempo de sair, que já tinha dado a contribuição dele dentro desse processo. Aí ele e o grupo passaram a procurar pessoas – e chegaram em mim, depois ele me falou, não pelo Sompré, mas pelo currículo que eu apresentava naquele momento. Aí eu fui apresentado e consultado. Disseram: “Olha, diante do que você já conhece desde o princípio e acompanha, seu currículo corresponde aos anseios das comunidades, e corresponde também de certo modo ao anseio do governo”. Ao governo, por causa da formação – essas coisas que o pessoal dá importância aqui fora. Então, naquela oportunidade, fui credenciado para isso. E eu falei: “Eu vou nessa.” E aí o Gersen falou: “Eu acredito que você vai dar conta pela sua formação, mas, fundamentalmente, por sua forma de agir, por não ter problemas que desabonem sua indicação a gerente técnico do PDPI. Enfim, eu vim em 2004 para o PDPI. A gerência do PDPI, eu tenho o privilégio de falar, foi mamão com

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açúcar. Porque o PDPI andava por música! Ele não precisava de que alguém ficasse em cima, todos sabiam quais eram suas funções. Eu não precisava estar em cima do técnico A, do técnico B; todo mundo fazia a coisa andar tranquilamente. Por quê? Nós tínhamos uma atenção especial – e isso nós tentamos passar, acho que algumas organizações visualizaram e assimilaram, outras não. Porque as organizações são feitas de pessoas; então as pessoas vão, se não deixam, levam consigo o legado, o conhecimento. E nós fazíamos nosso planejamento anual. Todo ano nós fazíamos o planejamento do PDPI, e nós seguíamos aquilo. Porque você não pode ser um ferreiro com espeto de pau! Nós primávamos por aquilo, porque nós levávamos aquilo para comunidade. Fazíamos nosso planejamento e, de vez em quando, fazíamos uma avaliação do planejamento para efetuar as correções necessárias ao bom funcionamento das atividades. Então, não tinha erro. Estavam lá as viagens, estavam lá as reuniões da comissão executiva e, com isso, estava tudo planejado. Era uma questão só de colocar em prática, e ficar tranquilos. Nossa dificuldade não era dessas ações. Nossa dificuldade era do enfrentamento, às vezes, entre determinados segmentos do movimento indígena, de algumas organizações, com as suas insatisfações, muitas das vezes até louváveis, mas outras não, outras não tinham muito fundamento, era uma questão mais para querer ganhar espaço politicamente. E por outro lado nós tínhamos essa situação junto ao governo, que era a questão do nosso escritório em Manaus, que estava lá de forma irregular. O escritório, juridicamente falando, legalmente falando, ele estava em Brasília. Tanto que, naquela oportunidade, eu vinha para Brasília e não tinha diária, porque não tinha como justificar, já que o escritório estava em Brasília. E era uma situação difícil! Eu estava para lá, venho para cá, tenho custos, como eu faço? A nossa internet lá não 92

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dava para pagar, porque o ministério não paga nada fora dele. Como é que paga lá a internet, a água, a luz? E esse escritório? E chegou a um ponto que ficou difícil de pagar o aluguel, não tinha mais nem como. Andréa Borghi – Quando você entrou, já tinha o escritório lá? Escrawen Sompré – Já tinha. Então, naquela oportunidade, a GIZ contribuiu financeiramente com a manutenção em Manaus. E como a Sondra, que era responsável por essa questão lá, estava conosco, entendeu que o processo não tinha dificuldades. Mas chegou a um ponto em que não deu mais para GIZ contribuir (na época era GTZ), e aí o governo brasileiro teve que assumir. Quando foi para o governo brasileiro assumir, aí deu problema juridicamente. Aí o Jorge Zimmerman, que estava à frente do MMA, disse: “Sompré, eu não tenho mais como fazer, não tenho como justificar.” Foi quando surgiram algumas divergências, porque tivemos que reunir a coordenação da COIAB e explicar. E a reação foi: “Não, ele não sai daqui!” Mas não tínhamos condições de manutenção, de sobrevivência. E foi um impacto muito forte, viemos praticamente forçados para Brasília. E o que me deixou muito triste é que entrou uma coordenação nova, e o pessoal fez um planejamento, e com a vinda de lá para cá, eu fiquei praticamente como uma pessoa non grata. Só que nunca quiseram saber os motivos. E o que aconteceu? Veio uma carta, da COIAB endereçada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), dizendo que minha afinidade com o movimento já não era a mesma e, portanto, fazia-se necessária a minha troca por outro. Eu fiquei desiludido com aquilo. Cheguei para o Jorge e falei o que estava acontecendo, e o Jorge falou: “Eu acompanho tudo, em momento algum você foi danoso à questão do governo, e muito menos ao movimento indígena, a gente sabe disso. Mas isso é com você. Você quer ficar?” Eu pensei, quer saber?! Eu estava cansado

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também, vindo de problemas pessoais, particulares. Então eu falei: “Jorge, vamos fazer o seguinte, deixa para lá.” Foi aí que eu pedi para sair, e veio o Euclides. Ai eu saí, mas tranquilamente, numa boa. Foi esse o processo. Toya Manchineri – Mas teve um período entre você e o Euclides, que ficou sem ninguém. Por que não era compatível a vinda do Euclides para o Ministério do Meio Ambiente? Escrawen Sompré – Ficou menos de um ano. Era o seguinte: o Euclides era funcionário do governo do estado de Roraima, e tinha incompatibilidade, tem essas coisas políticas, e houve dificuldade para ele assumir. Até que chegaram a um acordo, e ele veio para cá. Mas, politicamente, a diferença do PDPI – voltando ao começo da ideia – é que o PDPI foi concebido, e a gestação dele, o crescimento da “criança”, foi feito junto com os povos indígenas, juntos nas discussões o tempo todo. Essa foi a diferença. Foi um projeto que teve uma contribuição marcante para as políticas públicas na atuação da questão indígena, nessa questão produtiva, cultural, de proteção territorial, em todos esses contextos. Andréa Borghi – Da sua experiência, nesse período que você ficou, de 2004 a 2006, houve momentos, situações, que você achou marcantes? Escrawen Sompré – Tem. Os momentos mais marcantes para mim eram os momentos de aprovação dos projetos. Eram discussões profundas, às vezes muito teóricas, nós tínhamos embates. Nós tínhamos dentro da Comissão Executiva um representante do Ministério do Meio ambiente, um representante da Funai, e um representante dos povos indígenas, claro. Era 50% de um, 50% de outro. Tanto é que o voto do gerente-executivo, no meu caso, era o minerva. Se empatar, ele decide. Mas aí a gente fazia uma articulação, e as discussões eram bem democráticas, todo mundo falando. Então, isso para mim marcava

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muito, o momento da aprovação. E quando se aprovava, tínhamos um montante de recurso aprovados. E eu me sentia feliz, porque aquilo ia chegar nas comunidades, aquilo tudo que nós discutimos, era o princípio de uma realização, a realização final mesmo, como o Toya falou aqui anteriormente, de projetos exitosos que até hoje estão lá. E nós sabíamos que alguns projetos iriam perpetuar, e seriam um ponto de partida para o pessoal. Isso para mim marcava muito, a aprovação dos projetos e a discussão das experiências. E entre outras coisas, tinha essa relação do movimento indígena com o governo através do PDPI, isso também era marcante. Andréa Borghi – E a gerência indígena fica nesse meio. Escrawen Sompré – E é uma dificuldade para o gerente indígena. E o pessoal aqui fora fala muito disso, é a questão de você estar ali, porque o movimento indígena te apoia, mas, ao mesmo tempo, muitas coisas lhe engessam, porque você é governo, e o governo tem suas dificuldades burocráticas. E você tem que ficar numa situação de “morder e assoprar”, “morder e assoprar”, não é fácil. Andréa Borghi – Você é Xerente. Teve algum subprojeto entre os Xerente de que você tem notícia? Escrawen Sompré – Teve. Foram projetos culturais pequenos, eu diria assim, temporários. Eu me lembro de um projeto que foi feito lá para uma festa indígena. Foi legal, passou, foi realizado, prestaram contas direitinho. Agora, projetos estruturantes, uma coisa assim mais a longo prazo, não tivemos. Tivemos no Maranhão, eu me lembro bem, um projeto que até hoje está por lá, no Toco Preto; era de criação de queixada. O pessoal já fazia isso, nós simplesmente entramos no jogo para fomentar ainda mais, e fortalecer o que já faziam. Acho que ainda está lá até hoje. Era importante também, nessa coisa do projeto, o seguinte: quando o projeto tinha alguém que era daquela região lá, ou

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tinha alguém mais ligado, na hora da aprovação, ele se ausentava para não ter interferência. Então, foi muito legal, me marcava muito isso. Sinto feliz de ter participado e contribuído nesse contexto para os povos indígenas. Mas o que fica marcante mesmo para mim, foi o empoderamento de algumas comunidades indígenas através dos projetos que a gente ajudou a levar, ajudou a estar lá. Andréa Borghi – Tem algum específico que você queira indicar ou lembra agora? Escrawen Sompré – Faz quase dez anos! Deixa-me ver... Os projetos de fortalecimento institucional para a Amazônia Oriental, por exemplo. Esses projetos me deram grande satisfação. Porque as organizações da Amazônia Ocidental estavam praticamente consolidadas de certo modo. E na Amazônia Oriental não tínhamos muito. Então, o que fizemos? Tentamos buscar nas regiões, junto à Coapima,8 no Maranhão; à OIT,9 no Tocantins; e à Cita,10 lá em Santarém. Então, teve um momento em que eles bombaram! Hoje, a Coapima é uma referência para os povos indígenas no Maranhão. Outro dia, estava numa discussão aqui em Brasília, e a Suzano estava implantando a indústria em Imperatriz, e colocando para lá, e recolocando para cá, a questão do parque florestal para produção de matéria-prima. Aí o pessoal da Coapima foi lá e contestou: “Ei, nós estamos aqui!” Foram no Ministério Público, e não amenizou, não. Hoje a Suzano tem uma equipe, até uma antropóloga se não me engano, só para lidar com as questões indígenas. Então, quer dizer, conseguimos empoderar a Coapima, e a Coapima agora pode falar legal, e buscar os direitos indígenas. O Cita não sei como é que está, estou um pouco mais

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Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão.

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Organização Indígena do Tocantins.

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Conselho Indígena Tapajós Arapiuns.

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distante, mas eles também começaram; eles são dos povos ressurgidos. Nós os empoderamos para que eles pudessem ter uma referência, conversar com Funai, com Ministério Público Federal e outros mais para buscar os benefícios nas áreas de saúde e educação. Qual foi nossa parcela de contribuição nessas três organizações específicas? Nós ajudamos no planejamento estratégico deles; ajudamos na questão de estabelecer uma referência, que era um escritório na cidade – com as coisas mínimas, mas que eram necessárias: água, luz, telefone, aluguel etc. Essas coisas básicas que não havia. Tão pouco, mas tão significativo, que faz a diferença. E eles foram, e deram sequência. Não sei como está hoje no Maranhão. No Tocantins, a coisa não foi adiante, porque alguns colegas nossos parece que não entenderam. Eu volto lá constantemente, e agora a gente quer retomar. Se nós tivéssemos a oportunidade do fortalecimento institucional como tivemos no PDPI, hoje lá (...). Porque hoje nós temos lá cerca de cem estudantes indígenas universitários, e todos eles com a ideia do movimento indígena em outra perspectiva. Então, não tivemos muito sucesso em Tocantins, mas teve um momento em que o pessoal de Tocantins sentou também para conversar com o governo do estado, sentou para conversar com a Funai, com o Ministério Público, com as autoridades competentes e resolveram muitos problemas. Agora, o projeto durou por determinado tempo, e depois que acabou, o pessoal não conseguiu financiamento para manutenção disso. E o governo do estado não tem linha de crédito para isso. Então, o pessoal infelizmente foi obrigado a ceder. Então, isso me conforta, saber que tive participação nesse processo construtivo. Andréa Borghi – Nessa conversa, várias questões que havíamos pensado foram colocadas aqui.

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Escrawen Sompré – Conversa é bom por isso, ela flui. Transversalmente, ela vai indo, entra e sai, e volta e vira... Andréa Borghi – Os pontos da conversa eram mesmo esses: movimento indígena, estado, cooperação internacional...

Lições sobre a relação entre cooperação internacional, Estado brasileiro e povos indígenas Escrawen Sompré – Eu gostaria de falar da cooperação internacional. A cooperação internacional para os povos indígenas, através do PDPI, fez a diferença, porque ela ouviu os índios. Ela acatou o anseio do movimento indígena, através das organizações. Isso foi marcante para nós. O DFID, o KfW, a GTZ, eles nos ouviram e respeitaram. Era uma relação de respeito, de admiração um pelo outro. Em nenhum momento houve dificuldade – nós tínhamos nossas dificuldades, chamávamos uma reunião, havia discussões tensas, mas no final, saía todo mundo abraçado. Terminava e estava todo mundo sorrindo, e com a resolução, na prática do processo, do questionamento, enfim, do que estávamos ali para discutir. Nós avançávamos muito. Os negociadores da cooperação internacional, para nós, aqueles que nos foram apresentados, foram muito bons. O KfW tem vários negociadores. Agora teve um negociador do DFID, é até um holandês se não me engano, que foi fantástico conosco: ele sentou, ouviu, até brigou com o chefe dele para que nossos anseios, nossas demandas fossem respeitadas e colocadas ali. Houve mudança na direção dos recursos preestabelecidos, e nós sentimos uma dificuldade – como estava indo, não ia chegar a lugar algum. E aí sentamos com o representante do KfW, que fazia o apoio institucional, conversamos com ele, e ele foi até seu chefe para conversar e fazer nossa defesa. Depois

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trouxe, e fizemos as modificações necessárias para ele funcionar, porque senão, ele estava se engessando. Exemplo: nós tínhamos dinheiro para fazer o apoio institucional, mas o que era? Era dar dinheiro para os índios? Como seria isso? E aí foi quando resolvemos – tinha um resto de recurso, e aí também resolvemos em assembleia, a executiva – buscar dentro do movimento indígena, na Amazônia, a destinar um pouco do recurso que tinha para as ações na Amazônia Oriental. E não fomos nós que falamos: havia todo um estudo indicando que a fragilidade do movimento indígena na Amazônia Oriental era em função de não ter um apoio mínimo para fazer o apoio institucional. E começamos a fazer essa discussão, e fomos apoiados. Então, a cooperação internacional foi muito boa para nós nesse sentido. Andréa Borghi – Foi um aprendizado mútuo, pelo que você está falando... Escrawen Sompré – Foi ótimo. A Sondra foi fantástica com a gente, através da GTZ; e o Itagiba e o Marcel do DFID. No KfW foram vários, mudaram muitos, eles têm essa política lá. Mas do que eu me lembro aqui, foi muito boa a cooperação. Além disso, tivemos uma relação e apoiamos o movimento indígena para conversar com o governo brasileiro. E não era só o Ministério do Meio Ambiente, mas a Funai e outros órgãos envolvidos com a questão indígena, o pessoal empoderado vindo a Brasília para discutir tranquilamente, e nós também, os nossos técnicos auxiliavam nas discussões, empoderavam nossos representantes... Andréa Borghi – No período em que você estava – porque tem essa questão de que as coisas se perdem –, mas o Estado aprendeu alguma coisa com essa experiência? Escrawen Sompré – O Estado é feito de pessoas. E as pessoas – naquela época, por exemplo, a

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Raimundinha, no Ministério do Meio Ambiente, lembra? A Saragossi, e também a Ana Langue –, esse pessoal todo, eram uma fonte enérgica da questão, como a própria Ministra Marina Silva. Eles foram fundamentais para nós. O Zimmerman, todo mundo fantástico! Só que esse pessoal saiu, e não deixou ou não houve uma transição de pessoas que dessem continuidade a essa questão. Então, era um governo que foi. E a nossa dificuldade é fazer com que a política pública seja perene. Para que você discuta, planeje e tudo mais, e aquilo fique, independentemente de quem esteja à frente. E a dificuldade de um projeto é isso: o projeto tem começo, meio e fim. E aí não fica nada. Mas se você constrói uma política definitiva, independentemente de quem assume, vai ter que atuar daquela forma. Toya Manchineri – Sompré, eu vejo assim. Naquela época, por exemplo, havia mais ambientalistas que conheciam os índios. Isso também facilitou. Escrawen Sompré – Tinha uma afinidade. Nós tínhamos o GTA11 conosco, que também era parceiro nosso; tinha o CNS,12 que também estava conosco, nós tínhamos uma articulação na Amazônia. Nós tínhamos uma rede de articulação, que pegava todo esse pessoal, que era a Rede Povos da Floresta. Toya Manchineri – Aliança dos Povos da Floresta. Escrawen Sompré – Isso, Aliança dos Povos da Floresta, que era uma discussão bonita, linda! Onde nós não éramos “mais” um, nós éramos um, os índios eram um nesse contexto. Era uma discussão muito legal. E nós fizemos parte disso. O PDPI facilitou as coisas para nós. Claro, ele não era o único ator, mas foi um dos atores que fortaleceu para que os povos 11

Grupo de Trabalho Amazônico.

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Conselho Nacional dos Seringueiros.

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indígenas atuassem dentro dessa aliança de forma independente, tranquila. Andréa Borghi – Talvez você já tenha respondido... Mas a última pergunta é a seguinte: pensando no diálogo de saberes, nessa memória institucional e na relação entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, pensando na construção de políticas públicas etc., tem mais alguma coisa que você acha que deva constar desses diálogos, pensando nisso, quer dizer, na implementação de políticas públicas para os povos indígenas no Brasil? Escrawen Sompré – Aí vou querer puxar a sardinha para minha brasa, até porque eu participei... Mas eu vi no Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas uma oportunidade de mostrar – como se mostrou – ao governo brasileiro que se pode, e se deve fazer, uma política voltada para os povos indígenas, de desenvolvimento sustentável, de forma diferente. A que ele coloca ao longo do tempo. Nós temos isso não só na memória, nós temos isso escrito, em livros. Nós temos toda a memória escrita, e eu acho que o governo brasileiro, através de seus comandantes, claro, pode visualizar e tentar internalizar alguma coisa disso. Só daquela forma – claro, na atual conjuntura, fazendo alguns ajustes, muito poucos a meu ver – é que se consegue realmente dar uma assistência, uma atenção aos povos indígenas nessa questão da proteção territorial, na questão produtiva, enfim. Eu sinto hoje, por exemplo, que já há uma discussão de projetos dentro da Funai. Depois disso, o PDPI foi um dos precursores para Carteira Indígena, que atuava quase nas mesmas condições. Então, o PDPI pode colaborar nesse processo. Não sei como está isso hoje na Funai, porque saiu do ministério e veio para Funai. E parece que as mulheres indígenas hoje também estão discutindo essas questões: fazem projetos, fazem acompanhamento, monitoramento, avaliação. Esse aprendizado parece que ficou. Eu não sei se fomos nós,

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ou se foi porque a Funai está cheia de gente jovem, com novas ideias, mas o que nós tentamos implantar naquela oportunidade era uma coisa nova, com um diferencial. E o diferencial era o projeto, a construção de um projeto participativo, esse projeto com um planejamento claro, democrático e tudo o mais. Da mesma forma, cuidar da implantação dele, do monitoramento; e depois dele pronto, acabado, fazer uma avaliação dos erros e acertos. Então, isso é o que a gente pensa até hoje. E a discussão que acontece hoje, no BNDES, tem tudo a ver com aquilo que a gente deixou. Quando começamos a falar da forma como atuávamos, tem lá... De vez em quando, tem alguém falando sobre os projetos do PDPI, a forma como ele era. E se você for ter com os povos indígenas que atuaram nos projetos, eles vão querer que alguma coisa do que foi discutido naquele sentido, seja repetida agora. Mas é isso. Toya Manchineri – Eu teria mais uma pergunta – que não sei se é um fechamento ou a abertura de mais uma reunião – voltada para a questão do próprio reconhecimento do PDPI como um projeto bom para os povos indígenas. Pois, geralmente, o que é bom para os povos indígenas é bom para outras instituições. Mas pergunto: Quais foram as parcerias que faltaram no PDPI para que decolasse, e quando terminasse o recurso das doações, nós seguíssemos? Escrawen Sompré – Em relação às parcerias, é o seguinte: o PDPI veio para demonstrar ações exitosas às instâncias do governo brasileiro que trabalham com a questão indígena. Quem trabalha com a questão indígena hoje é a Funai. O pessoal da Funai visualizava o PDPI – eu sentia isso – como uma certa pedra no sapato. Porque muitos colegas da Funai aqui, que tiveram o comando ao longo do tempo, sempre optaram pelo assistencialismo. E o PDPI não vinha nessa linha do assistencialismo. Ele dava uma certa assistência, claro, mas havia muita discussão, e se tentava ver as

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coisas por outra ótica. Então, até hoje fico triste pelo fato de isso não ter ficado, e de a Funai, enquanto responsável pela questão indígena, não ter conseguido captar e internalizar isso, que era nosso objetivo. Eu estou falando da Funai, mas estou falando da agência do governo que trata da questão indígena. Mas temos a Funai, e temos o Ministério do Meio Ambiente. Toya Manchineri – Era nisso que eu estava querendo chegar: Será que faltou um acordo entre o movimento indígena e a Funai? Será que faltou chamar mais para uma parceria, talvez, em nível regional? Por exemplo, muitos projetos do PDPI foram bem elaborados, mas não deram certo porque a comunidade ficou só, não houve uma assistência técnica mais permanente. Aí nesses casos, faria sentido a presença mais forte da Funai. Escrawen Sompré – O que tem de haver hoje? O primeiro passo é o seguinte: nós temos que ter alguém com uma visão ampla dessa questão, de como foi o PDPI e de outras novidades que tiveram aí, no comando da Funai. Não estou falando nem da presidência; talvez seja a presidência, mas estou falando nas coordenações que existem. Esse pessoal vai ter que chegar na direção da instituição, na presidência ou no conselho, e falar: “Olha, nossa atuação de agora para frente vai ser assim. Quanto é que nós temos para trabalhar com a questão da proteção territorial das terras indígenas? Temos tanto. Então, de agora em diante, a nossa forma de trabalhar com os índios vai ser nessa linha, ou seja, de ir lá, construir os projetos e trazer para cá, e não mais naquela relação ‘supermercado’: queremos vinte litros de combustível, queremos uma voadeira, queremos não sei o quê...” Porque não é isso. Isso são ferramentas que você tem para poder cumprir uma determinada ação. E o pessoal da ponta da Funai, eles fazem essa “lista de compras”, e não discutem nem propõem uma fiscalização; não se discute essa fiscalização, com o pessoal lá, atuando de forma interna.

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Andréa Borghi – Foi o que vimos em Jutaí. Escrawen Sompré – Pois é, e depois disso, a “lista de compras” é incorporada pelo projeto. Por exemplo, nós temos lá uma proposta: “Vamos fazer a vigilância.” Então, vamos discutir a forma, com quem, quando, como, algumas perguntinhas básicas. E depois disso, vamos ver quanto é que custa? Aí você vai para lista: para isso nós precisamos de tanto, para aquilo tanto. E aí vai para lá, que é onde está o projeto propriamente dito. É isso. E a Funai parece que não consegue internalizar isso, infelizmente. Fico feliz quando vejo a PNGATI. Eu acho que a PNGATI tem muita coisa do PDPI também, as discussões, as referências. Acho importante. Eu não participei, estou há quase dez anos fora desse contexto, mas eu acho que a PNGATI levou em consideração algumas coisas nas quais o PDPI foi inovador. Andréa Borghi – Tem mais alguma coisa? Acho que passamos então pelos pontos: a apresentação – saber quem é Sompré, e em que momento você participou do PDPI; sua reflexão em relação ao movimento indígena, ao Estado e à cooperação, esse trânsito; e um pensamento sobre as comunidades também, você falou um pouco. Acho que cumprimos. Escrawen Sompré – Fico aberto também. Você pode me mandar a transcrição se faltar alguma coisa. Hoje eu estou à vontade, mas quando estava no governo, era difícil ser gerente do PDPI! Por quê? Uma hora era representante do governo, outra hora era do movimento; era uma situação complicada! E quando juntava o movimento com o governo, eu ficava no meio! No entanto, quer queira, quer não, era governo, mas estava pelo movimento. Andréa Borghi – Obrigada, Sompré. Aprendi muito, e espero que a gente consiga disseminar um pouco essas ideias.

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Escrawen Sompré – Foi um prazer. Toya Manchineri – E quando começamos a trabalhar a sistematização, o objetivo era também o de tentar colocar essas ideias dos índios para circular, para tentar influenciar a política. Não sei se vamos conseguir, mas as entrevistas vão estar aí para demonstrar as experiências do PDPI. Escrawen Sompré – Pois é, por onde eu passo, onde tenho oportunidade de falar com autoridades, levo essa ideia do PDPI. Algumas vezes falo do PDPI, outras vezes não. Depende de como está incorporado na prática. Quando colocam: “Nós vamos fazer lá um projeto com os índios”. É ótimo! Mas aí dizem: “Vamos fazer aqui e depois mandamos para vocês.” É preciso intervir: “Não, calma, calma! Vamos inverter o processo! Primeiro vamos lá conversar, trazer de lá para cá.” E aí começa essa questão. Não é fácil, mas se não for assim, termina sem sucesso.

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Euclides Pereira Macuxi Entre 2007 e 2011, Euclides Pereira Macuxi atuou como gerente indígena em Brasília, fechando o ciclo das gerências indígenas do PDPI. Professor indígena, atuante no movimento indígena regional e nacional, exerceu por duas vezes a direção da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Entre seu povo Macuxi, em Roraima, esteve também envolvido na execução de subprojetos vinculados ao PDPI, além de outras experiências. Em conversa com Thiago Schinaider, assessor financeiro PDPI/GIZ, Euclides oferece uma visão rica sobre esses vários pontos de vista e vivências, compartilhando sua trajetória, tratando dos desafios atuais do movimento indígena, e de suas relações com o Estado. Discute também o papel do conhecimento desenvolvido com os projetos, sobre relações interétnicas, e o desafio da proteção e da gestão territorial, ambiental e econômica das terras indígenas. O encontro ocorreu em Roraima, em maio de 2014.

Um projeto pensado, discutido e implementado pelo movimento indígena Thiago – Para começar, Euclides, eu queria saber se você poderia se apresentar e dizer qual foi sua participação e seu papel dentro do PDPI, e também qual foi o momento de sua participação e contribuição. Você poderia contar para nós, por favor? Euclides – Eu sou Euclides Pereira, do povo Macuxi, nascido na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, na comunidade do Limão. Comecei a participar do movimento indígena já com o Conselho Indígena de Roraima, em 1987, e depois fui para a COIAB, em 1998. Foi o momento em que eu comecei a participar

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da discussão realizada em Tefé sobre a criação desse novo programa, subprojeto do PPTAL, que era o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas. Então, praticamente, foi uma discussão com várias lideranças indígenas da Amazônia Brasileira que queriam algum apoio, um projeto que pudesse consolidar a demarcação das terras indígenas. Entendíamos que era importante não só demarcar as terras indígenas, mas dar condições para que as pessoas, os povos, ficassem morando nas terras demarcadas, e morando com uma qualidade de vida melhor. O que se tem visto é muitas terras indígenas com invasões; outras terras sem recursos naturais; outras terras com muitos recursos naturais, mas com pressão de pessoas estranhas para tirar essas riquezas das terras indígenas. Depois dessa discussão, tive a oportunidade de participar do PDPI na gerência do projeto; fiquei em Brasília, na gerência do projeto. E também experimentei um trabalho na ponta, o projeto Maloca na Roça, que era um projeto de roça e alternativas econômicas. Então, praticamente foram três fases de participação: a primeira, na discussão da implementação do projeto; a segunda, na gestão do projeto; e a terceira na experiência de implementação desse projeto na comunidade da Maloca da Roça, na Terra Indígena São Marcos. Thiago – E você entrou quando no PDPI? Essa discussão em Tefé foi a discussão da construção do PDPI, não? Em sua participação no movimento indígena, para constituição do PDPI, em qual momento houve essa transição do subprojeto e que o PDPI passou a ter um gestor e um gerente indígenas? Euclides – Então, como disse, quando fui para COIAB, em 1998, já havia essa discussão do projeto. Primeiro, era projeto demonstrativo tipo A, que era para que todos acessassem, mas, dificilmente, os

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povos indígenas tinham acesso a esse projeto. Mas, antes do projeto do PDPI, eu participei da comissão, tinha uma Comissão Consultiva do PPTAL, da qual algumas lideranças participaram – eu fui de Roraima, pois participava do CIR na época; o Pedro Garcia, lá no Alto Rio Negro; o Chico Preto, em Rio Branco; e Darci Marubo. Era um grupo que fazia parte desse comitê. Não era um comitê deliberativo, mas consultivo, que ajudava a discutir a questão das terras indígenas, quando teve, nesse início, a discussão desse projeto. Agora, com a aprovação do projeto em Tefé, havia várias outras mudanças nas propostas para trabalhar no PDPI. Claro que a gente não avançou muito em algumas propostas interessantes. Dentro do movimento indígena, pensávamos que o recurso do PDPI era efetivamente para as organizações indígenas, para ser implementado pelas organizações indígenas de forma mais flexível. E lá também ficou acertado que a gerência do projeto seria indicada pela COIAB. E, de fato, o primeiro gerente foi o Gersen Baniwa, depois foi o Sompré, e eu participei como terceiro gerente, na fase final, praticamente para finalizar o projeto. Thiago – Isso foi quando? Quando você entrou no ministério indicado pela COIAB? Euclides – Eu fui indicado pela COIAB já havia um tempo, mas só entrei em 2008. Foi uma experiência nova, porque, na verdade, você entra dentro do Estado pensando que “tem de ser do jeito do índio”, mas, então, descobre um Estado diferente do que a gente pensava que seria executado. Na verdade, como disse Aymoré um dia: “Euclides, você tem que participar de uma reunião e de outra”. Eu disse: “Olha, eu vim para cá para trabalhar no PDPI, não para discutir questão de terra, ou outras coisas, não”. E ele contestou: “Bom, aqui não: você está no ministério e tem que trabalhar nas atividades do ministério.” Eu acho que foi uma experiência importante.

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Assim, a meu ver, o PDPI foi importante, porque foi um projeto pensado, discutido e implementado pelo movimento indígena. Era para ser o carro-chefe de fortalecimento do nosso movimento indígena, que é a COIAB. Infelizmente, a gente percebeu que, por fim, a COIAB ficou um pouco distante da implementação desses projetos – com projetos importantes na área econômica, na proteção das terras indígenas, na valorização cultural –, que, na verdade, fortaleceriam ainda mais a presença da organização nas regiões. Por isso, deveria ter sido abraçado com todas as forças, para estimular o fortalecimento das nossas organizações, a implementação de projetos, e que norteasse novos projetos para as comunidades indígenas. Infelizmente, não conseguimos dar prioridade a esse projeto, porque era um projeto com recursos definidos para áreas, inclusive com temas definidos também, e que, inicialmente, a gente até percebia que haveria possibilidade de um PDPI II. No entanto, com vários projetos que não deram certo, a gente não teve muita força para dar continuidade a um projeto dessa natureza. Thiago – Entendi. Você ficou de 2008 até quando? Euclides – Até 2011, de 2008 a 2011. Thiago – Três anos. Certo. Tem algumas perguntas orientadoras aqui para seguirmos. Então: Qual foi o momento ou situação mais significativa da sua experiência como gestor do PDPI? Você falou agora há pouco que, dentro da máquina do Estado, além de você estar como representante do movimento indígena, ser um gestor, gerente indígena dentro do PDPI, você foi direcionado para acompanhar outras agendas do próprio ministério. Então, você estava inserido no ministério tanto para poder fazer a parte do PDPI quanto para fazer a parte das agendas exigidas pelo próprio ministério. Nessa transição, nesses momentos

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de trabalho de três anos, o que você poderia contar como uma experiência mais significativa para você?

O Estado visto por dentro: política indigenista, meio ambiente e política indígena Euclides – Como eu disse há pouco, o PDPI é um projeto importante, foi um projeto importante para o movimento indígena. Agora, o que me chamou atenção mesmo é que, dentro do ministério, você tem a possibilidade de estar articulando com outros setores do governo federal para apoiar as questões indígenas, como o Corredor Ecológico, outros projetos de preservação de terras indígenas, além do contato diretamente com o pessoal da Funai, que era parceira na implementação desse projeto. Mas o que chama mais à responsabilidade na gerência, além da implementação, é que você tem de ser o ordenador de despesas. Quer dizer, você tem uma responsabilidade enorme, porque você termina autorizando liberação de recurso, implementação etc., e se alguma coisa não der certo, a responsabilidade é do gestor. Então, era uma situação em que não estava simplesmente na condição de representação, mas de implementação de ações diretas mesmo dentro do próprio ministério. Acho que isso é uma experiência que eu não tenho visto em outros setores, em que você trabalha efetivamente com recursos, inclusive com recursos de parceiros internacionais, como é o caso do governo alemão. Thiago – Isso é a sua percepção quanto funcionário. E do ponto de vista do movimento indígena? Você falou que foi uma conquista, realmente batalhada e discutida, você foi o terceiro gerente. Mesmo sendo o terceiro gerente, você também participou da eleição dos outros, dos primeiros gerentes do PDPI. Então, do ponto de vista

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do movimento indígena, qual foi a sua participação para conseguir criar e implementar o PDPI? Euclides – Logo no início, a gente enfrentou certa dificuldade para implementação do projeto. Nós tínhamos o PPTAL, que é o Programa de Demarcação de Terras Indígenas, sendo realizado no Ministério da Justiça, na Funai. Então, o certo seria o PDPI ser trabalhado dentro da Funai. Só que nós não tínhamos muito trânsito dentro na Funai, a gente sempre teve dificuldade de relacionamento com a Funai, que sempre se colocava como tutora dos índios; e até então era tratado dessa forma. Buscamos o Ministério do Meio Ambiente porque lá havia mais abertura para trabalhar, com a Secretaria da Amazônia, com a Maria Alegretti, com a Isa Pacheco – que depois nos deixou, faleceu –, a Ana Maria Carvalho R. Langue e a Raimundinha. E havia o GTA, que tinha mais aproximação com o ministério, porque estava lá a Marina Silva; tinha um pessoal que estava ocupando esse espaço no ministério, e que dava uma abertura. Isso gerou certa resistência, certa divergência entre a Funai e o Ministério do Meio Ambiente acerca de quem faz e quem não faz. E nós – eu como coordenador da COIAB – pedimos para ter uma conversa direta com o Ministério do Meio Ambiente, com a Secretaria da Amazônia. A Maria Alegretti deu todo o suporte para reunir a nossa equipe. Nós queríamos discutir o projeto em si, mobilizar as pessoas, mas decidimos que só faríamos isso depois que tivéssemos essa discussão, e ficasse definido quem seria o responsável, se seria a Funai ou se seria o Ministério do Meio Ambiente. Definido isso, marcamos a reunião para Tefé com a maior parte das lideranças indígenas da Amazônia. Nesse momento, também tivemos outros parceiros que nos ajudaram nessa discussão. Isso também possibilitou fazer algo como o movimento pensava que deveria ser tratada essa questão da política para terras indígenas. 111

Thiago – Mesmo na construção, você fazia parte, você era coordenador da COIAB; você fez as interlocuções entre os órgãos governamentais para poder fazer essa mobilização, inclusive essa separação, pelo que entendi, entre Funai e Ministério do Meio Ambiente. Isso é inovador, porque, como se tratava de povos indígenas, geralmente isso caberia à Funai. Então, quando isso foi repassado para o Ministério do Meio Ambiente, também representou algo novo para os indígenas, foi uma ação nova. Euclides – Foi uma ação nova, porque, na verdade, eu vejo como um protagonismo indígena mesmo puxar essa discussão – dizer: “Olha, nós queremos uma discussão séria da implementação desse programa” – para definir com quem ficaria. Fomos então com o Ministério do Meio Ambiente. Thiago - Nesse caso, a Funai queria puxar o PDPI para ela em algum momento? Euclides – Ela tinha, mas já havia uma discussão. Como eu estou dizendo, a Funai trabalhava com PPTAL, o Programa de Proteção das Terras Indígenas, e havia experiências com projetos direcionados para algumas comunidades, que já estavam caminhando. Naturalmente, o PDPI seria implementado pela Funai. Só que o PDA era do Ministério do Meio Ambiente. Então, tinha esses projetos ali no meio, e a gente terminou levando o PDPI para ser trabalhado no Ministério do Meio Ambiente. Como eu disse, o cenário político era favorável para nós na época, com a Marina, com um pessoal que tinha mais sensibilidade para as questões indígenas. Isso facilitava muito mais nossa interlocução com o governo, do que com a Funai. Porque, tinha um presidente da Funai que não estava nem aí, era aquela visão mesmo, como dizem: “papai Funai” e “mamãe Funai”. Era uma relação assim: “Vocês vão ter que fazer como a Funai vai determinar”. E trazendo isso para o ministério não, porque a gente

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tinha também outros parceiros importantes, como eu disse. Não era só o movimento indígena; o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) também eram nossos parceiros nessas discussões com o governo. Thiago – Como Estado e como movimento indígena, o que você poderia citar como aprendizado, para que possa ser registrado, ou para que possa servir de orientação para uma outra construção? Da parte do movimento indígena, na sua concepção, e da parte do Estado, já que você fez parte do Ministério do Meio Ambiente, qual seria a postura adequada ou a orientação a ser seguida para haver um aprendizado, ou implementação, ou modificação do sistema do PDPI como um todo? Euclides – Eu acho que nós erramos lá em Tefé. Tivemos alguns problemas que podem ser corrigidos em projetos futuros. Um deles foi na implementação do projeto, pois queríamos que os projetos fossem implementados exclusivamente por organizações indígenas. E na implementação, além do recurso limitado, percebemos que deixamos de fora vários parceiros que poderiam ter sido incluídos, como as ONGs, que, depois, aos poucos, foram entrando: a Comissão Pró-Yanomami (CCPY); o pessoal do Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), lá no Amazonas, com os Yanomamis; ou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que poderia ser um parceiro. Nós excluímos a própria Funai regional, os municípios, os Estados; eles poderiam ter sido trazidos para a implementação desses projetos. O movimento indígena poderia manter o protagonismo, mas chamando os parceiros para a implementação. O que se percebe hoje? Que o governo implementa as ações dele, e chama os indígenas para fazer parte da discussão, com reunião e consultas. O PDPI não, era algo diferente. Por quê? O recurso definido ficava à disposição, então era com esse recurso que se fazia

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a implementação. Então, é preciso costurar parcerias, criar uma rede de parceiros que pudessem ajudar a implementar – por exemplo, ter lá no município o prefeito disponibilizando combustível ou um técnico; ter a secretaria do índio. No Acre, tínhamos uma assessoria indígena; o governo colocou à disposição dois assessores para fazer transporte e um engenheiro para o trabalho de construções. Fomos percebendo isso depois. Claro, que nem todos os municípios iriam dar total apoio, mas era algo que deveria ter sido pensado desde o início. Se conseguíssemos, digamos, que novos programas fossem implementados, as organizações indígenas poderiam tomar a frente disso, mas levando em consideração esse outro lado, incluindo as organizações não governamentais e as organizações do governo, para fortalecer o movimento indígena. Aí sim, nós teríamos uma ação forte, executada pelos índios, do jeito dos índios, e trazendo essa parceria para o jeito indígena de fazer as coisas. Eu vejo assim, que no futuro a gente pudesse trabalhar esses grandes projetos – dizem que no BNDS tem não sei quantos milhões de reais para as organizações indígenas, mas esse dinheiro nunca chega –, mas que tivesse a ajuda desses parceiros na implementação. Porque a questão indígena não é só do índio. A questão indígena é questão de política do Estado, então temos que trazer o Estado para dentro da ação, inserir o Estado nas nossas ações, e não a gente ser inserido no Estado, para “ser igual a todo mundo”. Porque, aqui em casa, em Roraima, eu sempre digo para os parentes – todo mundo diz, é sabido por todos – que a maior parte das terras de Roraima são indígenas. O que nós vamos fazer com 1,7 milhão de hectares da Terra do Sol, somados aos 600 mil hectares de São Marcos? Só naquele pedaço a gente tem mais de 2,5 milhões hectares. Como nós vamos gerenciar esse território? É

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preciso que nossas organizações tenham programas específicos, seu plano de desenvolvimento, seu plano de vida, para aí sim buscar apoio do Estado para essas expectativas, tanto no nível econômico como no social e no ambiental. Thiago – Mas isso não foi discutido lá entre vocês? Foi colocado: “E aí, vamos chamar alguém?” Ou decidiram: “Vamos fazer do nosso jeito, sem chamar os parceiros”. Foi isso mesmo? Euclides – Aconteceu isso mesmo. Na maior parte dos projetos, quem são os parceiros? Aí você coloca a Funai, mas sem conversar com a Funai! Sem conversar com a Secretaria do Índio! No Acre, que era o estado mais aberto para a questão do índio, colocavam a parceria lá, mas nem consultavam a Funai sobre como seria a participação, como colocar isso nosso orçamento, no nosso plano anual de atividades, ou se havia recursos para apoiar esses projetos implementados pelo movimento indígena. Então, se esses parceiros não estão no momento de elaboração o projeto, eles têm de estar, para que se possa definir essas coisas – recursos disponíveis, apoio técnico, contrapartida etc. –, mas não fizemos isso. Se você pegar todos os projetos, eles são elaborados com 100% de execução indígena, colocam alguns assessores para algumas atividades, mas não na discussão do projeto, na elaboração e na execução dos projetos. Thiago – Isso poderia ter sido evitado se na constituição do PDPI tivesse tido esse arranjo. Porque, na realidade, eu já percebi muitas ações, muitos projetos, onde você vê contrapartida da Funai, do Ibama, da Sema, de uma série de organizações governamentais e não governamentais dentro de um cronograma de atividades. Só que quando começa a execução e implementação do projeto, vêm as perguntas: “Ah, e o curso de formação de agente ambiental, vai acontecer

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quando?” “Então, Thiago, estava previsto para acontecer em abril, mas como não falamos direito com o Ministério nem com o Ibama, não vamos conseguir um técnico agora em abril, só em junho”. Então, eu percebi isso um pouco também, essa falta de comunicação com os parceiros, antes de fechar a proposta dos projetos. E, em alguns casos, falta de compromisso do próprio governo, porque em alguns projetos, mesmo sem essa articulação inicial na elaboração do projeto com parceria do governo, havia ações conjuntas, com compromissos assumidos, mas às vezes a pessoa que ia fazer, que estava comprometida, mudou de setor. Então, do meu ponto de vista, teve falha do governo também. Não sei se você concorda com isso. Euclides – É, em alguns casos, sim. Mas eu acho que aconteceu assim, principalmente, pelo que eu disse, que o erro na constituição do PDPI foi exatamente não abrir espaço para novos parceiros, com novos potenciais. Fechamos mesmo entre nós, somos nós. Aí os projetos não têm sequência, terminam... acabou a grana, acabou a atividade, acabou tudo. Então, se fosse uma coisa mais articulada, aí, sim, aos poucos, você ia trazendo o Estado. Quer dizer, acabando essa ação, os estados, os municípios, poderiam continuar dando apoio às atividades indígenas. Thiago – Concordo. Que já estaria dentro do plano anual de alguns ministérios, dos organismos etc. Euclides – Exatamente. Pois é, se tivermos resultado nessa linha, aí precisa de pouca coisa. Não tem mais novos programas, porque a gente não conseguiu envolver o Estado dentro dessas ações – ministérios como o MDA, o MDS, esses outros ministérios que têm recursos pulverizados por aí. Eu vejo assim, enquanto fiz parte da gerência desse projeto, desde o início, não conseguimos envolver esses outros ministérios para que fosse possível alocar recursos: “Bom, terminou esse

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projeto aqui, mas na área da agricultura, o MDA tem recursos? Pode colocar lá? Quem vai gerir esse recurso desses ministérios?” Depois, aos poucos, se vai percebendo que nem todo mundo que está lá nos ministérios tem interesse na questão indígena. Porque, se houvesse mesmo interesse de fortalecer a questão dos índios, seria o caso de criar uma gerência de projetos indígenas para trabalhar os recursos do MDA, do MDS, dos outros ministérios, que passassem por ali, dentro do Ministério do Meio Ambiente, que era nossa relação mais forte. Infelizmente, não conseguimos construir isso lá, e aí a coisa foi se esvaziando. Prova disso é que, quando eu cheguei lá, tinha cerca de oito técnicos; quando eu saí, só sobraram dois. Em vez de fortalecer equipe, montar uma estrutura para cuidar desse projeto para o Brasil todo – aí não seria só Amazônia –, terminou esvaziando. O PDPI foi condenado a se extinguir em vez de crescer. E havia a ideia de se juntar a Carteira Indígena e o PDPI. O PDPI, para nós da Amazônia, era importante, porque havia um volume significativo de recursos, mas, ao longo desses dez, doze, quinze anos que já se passaram, poderia já ter outros recursos, de outros ministérios, para alguém que vai implementar agora. Seria diferente daquilo que é implementado pela Funai, que tem uma burocracia danada. Seria possível aperfeiçoar o sistema de elaboração de projeto que já existia; arrumar essa questão do formulário; trabalhar a questão da equipe de campo e o fortalecimento das equipes regionais – essa era uma questão dos núcleos regionais, que não deram certo, porque não havia pessoal para acompanhar tudo isso –; capacitar os nossos gestores indígenas para aplicação desses recursos, de recursos públicos etc. Infelizmente, está acabando e não há nenhuma perspectiva de projeto parecido com esse.

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Municípios, estados, Amazônia: articulações e administração dos projetos Thiago – Só para deixar claro, os núcleos foram projetos pensados para serem sedes do PDPI em algumas localidades, em pontos estratégicos, para que pudessem apoiar os projetos nas regiões. É isso? Euclides – Exatamente. Foi essa a ideia de criar os núcleos. Porque a gente sabe que a Amazônia é muito grande, e uma equipe que está lá não tem condições de dar acompanhamento a esses projetos. Então procuramos lugares estratégicos como o Amazonas. No Amazonas, tínhamos a Coiam, principalmente; no Alto Rio Negro, tinha a assessoria do pessoal do ISA, que está mais organizado; mas tinha muitas outras regiões que precisavam de um apoio técnico para a implementação desses projetos. E o Maranhão, por sua particularidade, seus problemas – muitas invasões, povos com situações complicadas, diferentes – tem uma relação diferente com a Funai. A Coapima era um núcleo estratégico lá. Assim como no Alto Solimões, onde tiveram poucos projetos na região. É um povo grande, o povo Ticuna, mas suas duas organizações começaram com brigas internas, o que, infelizmente, inviabilizou a implementação daqueles núcleos. Mas o núcleo pensava em uma possibilidade técnica para ir acompanhando as pontas, que a meu ver, deveriam ser os municípios, os estados é que deveriam entrar. Fazer com que os prefeitos, e os governos dos estados, alocassem recursos de algum lugar para dar apoio ao projeto que está lá. Só para o projeto Maloca na Roça, foi quase R$ 0,5 milhão; é muito dinheiro. Quanto então o Conselho Indígena de Roraima (CIR) trouxe para cá? E quanto o governo do Estado colocou nesses recursos? Nada. Por quê? Porque a gente não foi atrás. Porque no princípio nós erramos, porque a gente não foi atrás, não abriu para os estados em

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algumas regiões, achando que: “Ah, se tem o Estado, lá vem politicagem, aquela coisa toda, e nós queremos uma coisa séria”. Mas não vai acontecer coisa séria se a gente não discutir seriamente com os governos estaduais como eles podem ajudar. Por isso eu digo que o PDPI foi um projeto importante, só que nós falhamos na sua execução – eu digo nós do movimento indígena. Nós falhamos porque não fomos atrás da parceira com os estados. A própria GIZ – antes era GTZ – tentou fazer um encontro entre os estados, com as organizações indígenas. Fez uma ação nessa tentativa de tentar fortalecer as organizações indígenas com o apoio dos estados – no Pará, no Acre, no Amazonas, várias reuniões foram feitas dessa forma. Só que o nosso carro-chefe, quem puxa mesmo o nosso movimento indígena, é a COIAB, e nesse período, nós tivemos gerências que não deram muita atenção a esses projetos. Nós perdemos a oportunidade, enquanto movimento indígena, de estar bem fortalecido, com capacitação de nossas lideranças, de nossos técnicos indígenas para implementar esses projetos. Com certeza, a gente já teria conseguido recursos do BNDES, outros recursos iriam para as organizações indígenas, mas perdemos essa oportunidade. Ficamos aí. E eu vejo hoje que não tem mais um movimento forte como tinha antigamente, está todo mundo “cada qual no seu cada qual”. No que se refere à Amazônia, a gente não tem ainda algo forte que pudesse reunir essas nossas organizações. A COIAB, como tantas outras, tinha problemas no convênio com a Funasa, e tudo isso acabou enfraquecendo as organizações indígenas. Pois é, Thiago, eu vejo, como disse, o PDPI foi uma oportunidade importante e séria para a questão da Amazônia, e a gente não conseguiu fazer com que o ministério fortalecesse essa ação. Fomos lá desprezando, deixando os técnicos irem embora – eram técnicos bons que a gente tinha, isso poderia ter sido ampliado.

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Mas não, foi se fechando cada vez mais. Com certeza, nós tínhamos muitas organizações indígenas com dificuldades para fechar seus projetos, com o tempo que já passou. E eu sempre disse que esses projetos eram como se fossem uma escola para nós, para saber fazer o plano de ação, a prestação de contas, entender um pouco da legislação que cuida da aplicação de recursos públicos. Eu dizia: “Vamos fazer um curso sobre como que se aplica, como é essa lei.” Mas a gente não trabalhou isso. Só pegou lá, fez um projeto com algumas pessoas, prestou contas, como um negócio muito pontual – o PDPI tem prazo, então acabou aqui, acabou ali. Mas no formulário havia uma pergunta: “Como vocês vão continuar depois que os projetos acabarem?” Isso porque o projeto tinha a perspectiva de continuar. E ao longo desse tempo, nós não capacitamos o pessoal. Sabe como são nossas organizações indígenas, como todas por aí também – muda o coordenador, muda a equipe, tiram aquele cara que está aprendendo a fazer as coisas, esse cara vai embora, trazem outras pessoas, até que começa tudo de novo. Não consolidamos nosso fortalecimento institucional. Ficamos perdidos. Thiago – Teve uma capacitação, mesmo com essa discrepância de “cada um no seu cada qual”. Uma coisa que eu vejo hoje, bacana também, foi a capacitação dada nos cursos de gestores. Mesmo que só alguns, mas tiveram alguns. Muitas pessoas não deram continuidade, eram vários módulos, várias dificuldades diferentes em cada região – mas eu acho que tem muita gente atuando ainda, graças ao PDPI. Não de forma unida, mas cada um com suas comunidades. Você concorda com isso? Euclides – Nós tivemos pessoas. Aqui em Roraima, nós tivemos, por exemplo, o caso do Mário, que passou pelo curso do PDPI aqui no CIR; depois o levamos para Brasília, e ele ficou lá no Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP). Teve um

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papel importante no PDPI. Em outras regiões, tivemos informações de pessoas que participaram disso e que continuam. O Zuza, ali no Alto Solimões, no Médio Solimões, tem acompanhado... Essas pessoas continuam trabalhando, inclusive buscando novas parceiras para seus projetos. Mas as nossas organizações, essas que fizeram convênio com a Funasa, praticamente acabaram. O CIR quase vai também. A COIAB, com os problemas sérios que tivemos, e a UNI-AC também praticamente acabaram. Nós tínhamos três organizações fortes que conduziam esses processos de movimento, de articulação na Amazônia – o CIR, a FOIRN e a UNIAC. Eram essas três organizações que a gente tinha capacidade de articular com as outras. Depois desses convênios com a Funasa, acabou; outras organizações foram extintas. Mas, mesmo com todas essas dificuldades, a gente tem como fazer uma avaliação do PDPI hoje. Não é hora de chorar, mas tivemos a oportunidade de entender todo esse processo, como se faz a articulação desses trabalhos com o Estado, onde se pressiona, onde se busca etc. E a COIAB deixou esse negócio um pouco de lado, porque ficamos mais congressistas agora. Tantas reuniões, Congresso Nacional, negócio da PEC, porque nós estamos com a questão das nossas terras. Eu disse lá na COIAB – e, aqui o CIR tem levado isso mais a sério – que eu vejo como estava na bandeira inicial da COIAB; era assim: “Terra demarcada, vida preservada”. A gente sabia qual era o foco principal, a luta pela demarcação da terra indígena e o direito à vida, aos direitos humanos. Então, era essa nossa bandeira inicial. Hoje, as terras foram praticamente todas demarcadas. E agora, o que temos que fazer? Eu penso que a bandeira atual é a questão da gestão territorial: como

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é que nós vamos gerir esse território que nós temos demarcado? Oito milhões de hectares no Javari, um milhão aqui no Alto Rio Negro, esses territórios grandes, os outros – como é que nós vamos, em outras palavras, governar esse território que nós temos? As terras que nós temos? As riquezas que nós temos? Está lá que o subsolo não nos pertence de forma exclusiva, mas como disse o parente: “mas também que nós ficamos na flor da pele. Porque para o cara olhar para baixo, ele tem que passar por cima!” Então, eu vejo que a bandeira hoje é a questão da gestão territorial. O cara está fazendo emenda dos minérios, se a gente começar a fracassar aqui dentro, uma liderança diz “sou de acordo”, e a outra não é, começa a dar uma confusão danada aqui. E aí a gente vai perder a oportunidade de buscar apoio. Acho que nós temos força ainda para reverter o quadro, chamar nossos parentes para essa discussão da gestão territorial. A Funai está aí com a implementação da PNGATI; esse é o momento. Esse é o caminho. Está lá, e vem recursos junto com isso também, para organizar nossas comunidades. No Centro de Formação no qual a gente está trabalhando – sou professor lá –, estão lá três palavras: terra, identidade e autonomia. O que eu vejo é que nós estamos discutindo terra enquanto território: gente, floresta, ar, água, tudo isso como território, essa relação terra e território. E identidade; nós estamos falando de povos. Povo e território. E autonomia é autogoverno. Todo mundo que tem medo de falar autogoverno, está pensando que nós queremos separar a terra indígena do Estado brasileiro. Não! Nós queremos ser gerentes mesmo, tudo que nós queremos é dizer o que fazer com nossas terras. É possível reverter essas discussões com esse trabalho que a Funai está fazendo agora com essa questão da gestão territorial, com a PNGATI.

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Equipes, povos e organizações indígenas: sobre o uso de recursos, planejamento e o tempo das comunidades Thiago – Então, voltando na parte da equipe e tudo mais, você gostaria de comentar mais alguma coisa? Euclides – Com relação à equipe que a gente teve incialmente, era uma equipe boa, com bastante gente. Depois, com o passar do tempo, houve uma redução. E por último agora, sobraram só vocês, não é? O Thiago, que está trabalhando ali há muito tempo, vai para área, sempre dando um jeito de se encontrar com a comunidade, com sua forma de trabalhar com as pessoas, com respeito, ouvindo as lideranças. Acho isso importante, Thiago. Queria, nesse momento, agradecer a oportunidade de, mais uma vez, participar desse trabalho, desse empreendimento, para divulgação do resultado das atividades de todos, nossos como indígena, dos doadores, os daqui e das equipes de apoio. Todas essas pessoas contribuíram para que efetivamente pudéssemos chegar com benefícios aos nossos povos lá nos lavrados, nas serras, dentro da mata, na beira dos rios. E o papel dos técnicos foi importante para o sucesso dos projetos do PDPI. Eu sei que você também se dedicou a essa parte, de ir lá nas comunidades, pedir com a cuia nas estradas, sempre ativo e jovem, com muita energia para gastar. E tomara que a gente encontre novos projetos, novos desafios. Thiago – Euclides, e como você vê o PDPI para os povos indígenas, para os grupos envolvidos, os apoios, do ponto de vista dos contextos locais e regionais? Como você vê o PDPI como um todo? O que significou o PDPI para o movimento indígena, para os povos indígenas? Euclides – Logo no início do PDPI, houve uma grande mobilização para sensibilizar as organizações e apresentar projetos. Foram feitos vários encontros, em

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várias regiões da Amazônia. Tivemos certa dificuldade ao divulgar o PDPI. Eu vi alguns informes da COIAB, mas pouca coisa foi citada: “Olha o PDPI está aqui, está com recursos”... O PDPI, como eu disse, foi um projeto bastante estratégico, diferente, que rompeu com a questão do paternalismo, do assistencialismo, tanto do governo federal, quanto dos governos estaduais. Porque o sujeito do projeto são os povos indígenas, são as comunidades indígenas. É uma coisa totalmente diferente dentro dessas políticas vistas até agora, tanto dentro do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI) quanto da Funai, porque foi um projeto nascido da necessidade das comunidades indígenas. Quando se definiram também as áreas temáticas do projeto, foi exatamente em cima daquilo que se queria: a garantia das terras indígenas, sua proteção e fiscalização, que é um ponto; o uso dos recursos naturais, de todos os tipos, na área econômica; e o fortalecimento e a valorização da cultura desses povos. Então, três temas que têm tudo a ver com a questão indígena em debate atualmente. A questão de sua autonomia econômica, de viver bem, de ter a garantia de seus territórios, de poder, inclusive, divulgar a cultura indígena. Aqui no estado de Roraima, tivemos a música “O cachimbo na cuia”, por exemplo, que foi um sucesso, só parou de tocar esses dias. Então, como resultante dessa possibilidade de as organizações, os povos, gravarem suas músicas e divulgarem para outros, há muitas outras experiências que foram divulgadas, mas não se deu tanta visibilidade a essa ação importante acontecendo. A gente sempre diz que só se divulga o que tem de ruim, mas a coisa boa, que é essa experiência nova, essa parceira do governo alemão, e de outros governos que acreditaram na proposta, não aparece. Por que acreditar numa proposta dessa natureza? Porque se você perceber o volume de recursos que entrou, realmente, o governo alemão acreditou nessa proposta, uma 124

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proposta interessante, nova, que dá certa autonomia para os indígenas colocarem no papel o que eles querem, executarem da forma que querem. É preciso apoiar essas iniciativas. O PDPI realmente trouxe esse novo momento para a história do nosso movimento. Essa é a importância dessa iniciativa. Inclusive, o próprio nome, antes, era PDI – Projeto Demonstrativo para os Índios. Mas aí a gente disse: “Não, não é projeto para os índios, nós queremos que isso seja um projeto indígena.” A nomenclatura foi definida politicamente: Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, e não para os povos indígenas! Então, é uma discussão que, no fundo, tem ideias diferentes, porque a gente queria experimentar coisas novas. Então com o que essa experiência trouxe, veio a Carteira Indígena em nível nacional, mas como uma experiência diferente. Porque não foi qualquer experiência; foi um projeto coordenado, bem elaborado, com acompanhamento. Infelizmente, esvaziaram nossa equipe do PDPI. Além de milhares de técnicos indígenas que nós tínhamos alí, digamos nesses projetos, nas suas regiões, nós tínhamos outros técnicos que fariam a sistematização, a divulgação disso nos ministérios, para que a gente pudesse juntar essas experiências, como se discutiu em outros momentos, para argumentar com o estado: “Essa é uma experiência nova, que deu certo, a forma de colocar recursos para projetos indígenas é dessa forma aqui”. No meu entender, o PDPI possibilitou a criação de mecanismos de repasse de recursos para as organizações indígenas. Nós não temos isso. Thiago – Não tem, direto não tem. Não tem outro mecanismo dando autonomia para que os índios fizessem uso dos recursos. Euclides – Direto você não tem. É convênio, outra coisa. Essa é uma experiência nova, muito flexível, em que você pode fazer ajustes. Não é uma coisa fechada, não é que começa num ano e termina no mesmo ano.

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Thiago – Realmente, mudou o cenário; sem ser por convênio, sem ter ONG executando recursos, foi um passo muito grande também. E entra nessa questão da confiança do governo alemão, juntamente com o governo brasileiro, de falar: “Toma aqui o dinheiro, executa o dinheiro”. Alguns projetos tiveram um sucesso bacana; outros não tiveram justamente por isso, porque essa autonomia acabou prejudicando algumas organizações. Mas, no panorama geral, visto por quem é do movimento indígena, o PDPI teve total significado para o atual cenário que vivemos. Euclides – Com essa forma de gerenciar o recurso, de se organizar e discutir os projetos com a comunidade, na hora de fazer a prestação de contas, quando não está certo, a comunidade também reclama. Você tem aí um momento diferente dentro da cultura indígena, que é essa questão de trabalhar com planejamento mais a médio e longo prazo. Não é que o índio não tenha a cultura de planejamento, ele tem lá, mas é diferente. Thiago – Da forma dele. Euclides – Da forma dele. Essa questão do tempo do projeto também foi outro diferencial do projeto; eram projetos de um ano, dois anos. Mas qual é o tempo da comunidade? É completamente diferente. Se você pega o tempo do lavrado, nós temos mais facilidade de mobilidade, você vai de um canto para outro, vai de cavalo, bicicleta, carro, a coisa é mais rápida. Quando você pega o tempo do Alto Rio Negro, Alto Solimões, é completamente diferente: é uma semana de viagem até chegar à comunidade. Mas há necessidade de fazer uma adaptação desses recursos como o nosso tempo. A gente perde um pouco, mas no final também ganha um pouco. Alguém tem de ceder para tentar organizar essa forma de gerir o recurso, para fazer o plano, o projeto, e executar. E tem a dificuldade da prestação de contas; precisa apresentar para a comunidade por que tem que ser desse jeito e não pode ser do outro.

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Com isso, você mexe na estrutura da organização, da comunidade. Porque, na comunidade, é o cacique que coordena as ações, mas, no projeto, você tem o coordenador, que não é o cacique. Isso começa a mexer com várias situações, com relações entre as pessoas. Aí o cara que está com o cheque, com o dinheiro na mão, parece mais importante que o outro que está lá no cabo da enxada; e aí começa... Então, com esse projeto, vamos dizer assim, com dinheiro direto na comunidade, você termina mexendo com essas estruturas organizacionais. Mas é importante, porque a gente precisa organizar, como eu disse antes, esse planejamento de utilizar os recursos que nós temos. Como nós vamos utilizar esses recursos naturais que nós temos? Qual é a produção que se tem dentro desse trabalho? Alguns trabalhando com criação de peixe, aqui na nossa região, outros trabalhando com agricultura – então, como vamos organizar esse nosso trabalho, a questão da atividade econômica mesmo? O PDPI, eu digo sempre, foi uma escola para nós, para aprender a gerenciar os recursos. A gente nunca teve uma organização lá na comunidade e dinheiro para gerir esses recursos. Quem recebe salário administra aquilo. Mas como trabalhar com recurso assim, para ser aplicado em uma atividade coletiva na nossa comunidade? Entre as coisas que talvez a gente pudesse analisar com mais profundidade é: qual o efeito disso? Uma coisa é você executar coisas lá, mas e a questão financeira? Como efetivamente funciona? Como a comunidade pensa esse projeto? Thiago – Qual é a lógica? Qual o objetivo desse dinheiro na comunidade? Euclides – Isso suscitou curiosidade, rivalidade, dentro das comunidades, mas é o que está lá. Isso termina mexendo com outros recursos, digamos “individuais”, como o salário do professor, o bolsa-família, e não sei mais o quê. Então, tem muitos recursos entrando nas

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nossas comunidades que, se a gente não tomar cuidado, vão criar mais problema do que melhorar a qualidade de vida das pessoas. A gente precisa reorganizar nosso sistema financeiro, digamos, nas comunidades indígenas, que já não é mais baseado na troca. Como esse dinheiro pode beneficiar todos os povos? Porque é assim: na Maloca da Roça, o professor recebe R$ 1.200,00. Ele vem para cidade e fica devendo trezentos reais, porque ele gasta R$ 1.200,00, e ainda empresta no banco mais R$ 300,00, e aí já são R$ 1.500,00. Ou seja, já fica devendo para o outro mês. E o que ele leva para a comunidade? Não leva nada; leva para a esposa dele. E deixa tudo aqui. Lembro que aqui perto da casa de apoio da Associação dos Povos Indígenas, o comércio cresceu com recursos dos parentes. Esses recursos que vêm a mais com um projeto, é como se fosse recurso de cada um. Então, como é que vamos trabalhar esses recursos, nessa parte econômica? Então, o PDPI não só discutiu a questão do projeto em si, a proteção das terras indígenas, mas como a gente trabalha essa questão do recurso financeiro, pois isso vai ter implicação direta na utilização dos recursos naturais. Daqui a pouco vão ser explorados os minérios; será que vai acontecer o que está acontecendo com as terras indígenas? Quer queira ou não, a hidrelétrica Cachoeira do Tamanduá vai sair; e como é que fica essa questão dos royalties? Como a gente participa ou não participa desse negócio? São tantas coisas acontecendo à nossa frente, independentemente da nossa vontade, e como nós vamos nos preparar para esse momento? Eu acho que outro aspecto importante que a gente teve que aprender são as relações com o banco. Aqui em Roraima, na época da hidrelétrica Raposa Terra do Sol, o pessoal que trabalha nos bancos queria conversar com os índios. Então, você acaba tendo de mexer com um monte de coisas além da comunidade. Além de romper com a estrutura da comunidade, com a forma de se organizar, fez você ir para fila do banco, com cheque,

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tirar cópia etc. Então, houve, digamos, uma grande confusão positiva para as comunidades indígenas. Muitas não pegaram recursos grandes – são R$ 50 mil ou R$ 60 mil para executar um projeto –, mas é um valor significativo para comunidade. Thiago – No panorama geral, foi bom. Você vê o PDPI de forma positiva, não é? Pelo que você falou agora, o PDPI foi bom no fomento dos recursos, e querendo ou não, para a inserção das comunidades indígenas nos processos do branco. Para gerir recursos autonomamente, muitas vezes, os indígenas aprenderam na raça, errando, ou tiveram que gastar do próprio bolso para poder se inserir e conseguir. Mas chegavam num nível de consonância com as atividades da comunidade, as atividades do projeto, as lideranças que gerenciam as atividades da comunidade, e as pessoas que gerenciam o projeto. Então, teve esse mix de informação, várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, como você falou. O tempo do índio nem sempre é o tempo do branco, e o projeto já vem com um tempo predeterminado, começa agora e termina daqui a pouco, um ano, dois anos, o que seja. Mas o que eu acho importante registrar como técnico, na lógica indígena, se você pegar toda a carteira de projetos do PDPI, poucos projetos, 10% no máximo, conseguiram executar seus projetos no tempo proposto. A grande maioria extrapolou muito o tempo. Tinha possibilidade de prorrogação, tinha possibilidade de estender um pouco mais, porque tinha recurso, por conta mesmo de fatores naturais, chuva, fatores climáticos que acabam ocorrendo, e culturais também: se morre alguém na família, às vezes se tem um mês de luto em um mês que seria de atividades. Então, é importante registrar essa questão de visibilidade para o tempo de execução ser em conformidade com a cultura indígena. Acho que isso é algo importante e que precisava ser revisto.

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Tem outra pergunta orientadora aqui, acho interessante. A gente fez uma avaliação do PDPI como um todo, para os povos indígenas, os grupos e comunidades atuantes. E tem outra pergunta que é do ponto de vista do seu próprio povo. Eu acho até engraçada essa pergunta, a gente conversando, porque, nesse caso, teve vários momentos: teve o momento “Euclides – movimento indígena”, pelo seu povo; “Euclides – gerente indígena do PDPI”, para a atuação de vários projetos, inclusive projetos de fomento para o seu próprio povo; e depois que você saiu da gerência, “Euclides – gestor de recursos”, de projetos de sua própria comunidade. Eu acho que você tem um panorama bem grande em relação a isso; inclusive, como gestor do projeto, você pode contar um pouco mais também. Além de gestor do PDPI, você teve a gerência de dois projetos, e atualmente, com sua experiência, você está ajudando a resolver problemas de outro projeto, da Comunidade do Barro. Então, com a sua experiência, você pode também colaborar com eles, que não tiveram a capacidade ou os problemas corriqueiros para poder executar os projetos. Queria que você falasse um pouco do seu próprio povo, e desses três momentos que você viveu, desses três lados da moeda.

PDPI em três perspectivas Euclides – Com relação ao nosso povo, povo Macuxi, nós tivemos alguns projetos, principalmente o CIR, em que se teve uma relação muito mais das organizações do que das comunidades. Veja bem, muitas comunidades aqui tiveram pouco acesso aos projetos para suas comunidades, porque muitas delas não têm associação. E a luta do CIR na época – diferentemente do Alto Rio Negro, que conseguiu bastante recurso – era a demarcação da Raposa Serra do Sol, a prioridade era

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a Raposa Serra do Sol. Então, poucos projetos foram apresentados para as comunidades. Se você vir os projetos que o CIR apresentou, poucos são direcionados diretamente para as comunidades. Tem projeto cultural, projeto do Centro de Formação, mas não tem muitos projetos que apoiassem efetivamente uma experiência na comunidade, na questão econômica. Não tem. A outra organização era a Associação dos Povos Indígenas de Roraima (Apir), que teve dois ou três projetos, mas se apresentado assim como organização maior. As que ficaram mais próximas, mesmo que para ver se o negócio ia dar certo ou não, foram a daquele projeto Maloca na Roça e a desse projeto da Comunidade do Barro, que eram com a comunidade mesmo. Então, os impactos maiores do PDPI diretamente na comunidade foram intermediados pelas organizações maiores. Se pegarmos esses projetos do CIR – que foram os maiores captadores de recursos: o projeto Maloca na Roça e o projeto da Comunidade do Barro – que estão começando lá, são projetos que eles estão vivenciando diretamente. Eles é que estão com a “mão na massa”, e aí vem essa preocupação: “vamos fazer” ou “não vamos fazer”. Por quê? Porque nós estamos em uma experiência de transição. Eu vou ter que falar do meu povo. Faz pouco tempo que a gente está vivendo só no meio dos indígenas, com a conquista da terra indígena, em 2005, a homologação da Raposa Serra do Sol. Então, como está nossa relação dentro, com aquelas comunidades que eram contra a demarcação e as que eram pródemarcação? Agora está todo mundo dentro do mesmo espaço, um espaço indígena, por isso, é preciso fortalecer nossa organização para trabalhar esse projeto de futuro. A gente precisa ter um cacique, Macunaíma talvez, que pudesse unificar nosso povo. Porque senão, como dizem, “se ensebar depois”, a gente vai estar de novo com uma confusão danada nas terras indígenas. Por quê? Teve um tuxaua que disse: “Olha, Euclides,

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um dia meu avô me falou que lutaram para conquistar a terra, mas, se a gente não cuidar, os netos de vocês vão entregar as terras para os brancos de novo”. E está acontecendo de forma bastante sutil o retorno desse pessoal para as terras indígenas. Estão lá colocando comércio, e não tem mais cantinas das comunidades; está lá um maranhense e não sei quem mais. Aí casa com a parenta, já cria relação lá dentro... E, tem outro, peruano. Já não tem mais as cantinas da comunidade para as famílias que estão lá. É uma forma de entrar de novo nas terras indígenas. E se não tivermos uma política forte, de planejamento socioeconômico e cultural da nossa região, a gente vai ter um problema sem solução, sem um norte para isso. Então, tivemos esse projeto, o PDPI, mas eu penso que a gente teria que ter um volume maior de recursos do governo federal para tentar implementar essas ações de desenvolvimento econômico das comunidades indígenas. Como eu estou dizendo, nós temos muitas onças espalhadas por esse lavrado aí, e muito tucunaré também, mas a gente precisa domesticar o nosso sistema econômico indígena, para não criar desigualdade entre as famílias que estão lá. Quando o projeto é pensado aqui, é um projeto coletivo; então, como é que a gente vai poder distribuir essa riqueza entre as pessoas que estão lá? E a orientação que nós temos, acreditando que o PDPI foi essa experiência nova de inserir recursos diretamente na comunidade, também vai nessa direção: como pensar de forma coletiva a utilização desses recursos? Porque senão, daqui a pouco, vai ter parente subindo em cima de parente. Aí vem uma discussão mais forte dos princípios – o ajuri e aquele negócio de solidariedade. Se não tivermos uma ação forte nossa, de planejamento entre as lideranças, como vamos trabalhar essas riquezas, esses recursos, dentro das comunidades? Por exemplo, o recurso da Conab, que compra produtos da comunidade: No que é usado o recurso? Para onde 132

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vai o recurso? Como vai? Então, precisamos montar um sistema financeiro nosso, que não vai ser mais um sistema de troca. Como é que vamos trabalhar o excedente dessa produção? Claro que a gente não discutiu isso no PDPI, não pensamos em como seria isso depois, mas o fato de se ter uma maneira nova de passar esse dinheiro para as organizações termina trazendo outras coisas que a gente precisa estar acompanhando mais de perto. Thiago – Esse é o caso na sua comunidade? Na sua comunidade, na sua terra, no seu povo, teve a atuação do PDPI. Qual é o nome da sua terra? Euclides - No projeto Maloca na Roça, em São Marcos, houve uma reunião, trabalhou-se com as pessoas, foi feito um projeto. Como eu estou dizendo, tinha o coordenador do projeto, o tuxaua. O tuxaua não deu certo como coordenador, porque quem manda mais não é o tuxaua, mas o coordenador do projeto. Mas os problemas contribuem para resolver outros problemas, porque você começa a trazer essa discussão do projeto, do seu planejamento, da aplicação dos recursos dentro da comunidade. Começa a opinar, a ver, a tratar da prestação de contas, decidir quem vai, quem não vai, como é que fica. Então, esse projeto possibilitou trazer a comunidade para discutir de que forma utilizar esses benefícios que vêm do governo. Antigamente, todo o benefício que ia para comunidade era centralizado na mão do tuxaua, então, ele que decidia. Não tinha esse negócio de ouvir a comunidade. Já estava tudo resolvido. Mas esse projeto aqui não; aqui é uma discussão coletiva – o projeto é nosso, e se tem problema, então vamos resolver. Lá naquela reunião da Comunidade do Barro, que eu estava participando agora, eu disse: “Não, a gente tem que trazer para cá. Como é que nos vamos discutir a questão do PDPI?” Lá, essa forma de distribuição do trabalho, de certa forma, também é resultado desse trabalho coletivo. Eles estão

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com trator lá, e dizem: “Vamos ter que cobrar R$ 100,00 por hora”. Mas por que R$ 100,00? São R$ 20,00 para o tratorista, não sei quanto para o diesel, e o restante é reservado para manutenção. Isso já é resultado de uma discussão coletiva. Então, quando esses projetos vão para a comunidade, como foram discutidos e construídos coletivamente, continuam funcionando coletivamente até o final. Até o erro é tratado coletivamente – isso está errado, vamos corrigir. Como eu disse, ele traz para a comunidade uma discussão nova sobre a aplicação de recursos, que passa a ser discutida coletivamente. Thiago – Na sua comunidade, você acha que foi positivo? Eu lembro que, quando visitei a comunidade, achei interessante o envolvimento. Lembro que tinha uma atividade que era de sensibilização e comunicação dos resultados. Para a reunião, vocês chamaram as crianças do ensino fundamental e médio, que são os potenciais futuros gestores dentro da comunidade. Eu vi a tentativa de mostrar para aqueles jovens que eles também fazem parte de um projeto, para que eles não precisem sair para cidade, evitando a evasão das comunidades. Eles tomam consciência de que também fazem parte da comunidade; de que podem mudar a história da comunidade. Toda vez me lembro dessa ação, penso que achei uma ação positiva, de inserção dos jovens e crianças dentro de um processo grande, construído pelos mais velhos, os mais experientes. Euclides – Quando eu estava lá, a gente tentou trazer essa discussão do projeto para dentro da sala de aula. Porque ali você está com as crianças, desde os 5 anos, até seus 15, 16 anos. Então, praticamente, a responsabilidade ali está na mão dos professores. Era bom. E para trabalhar isso, fizemos uma oficina com as pessoas que trabalharam no projeto; foi um tipo de seminário que a gente fazia na escola, com as crianças, para discutir o que é economia, o que tem

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na comunidade, como eles enxergam a questão do território. Isso foi muito importante. Thiago – Voltando à sua comunidade, na implementação do projeto, na construção, qual foi a reação das pessoas? Por exemplo, quando foi dito: “Vai ter um projeto”. Mas para discutir o que é um projeto, teve esse diálogo comunitário, participativo, com todo mundo? Porque muita gente, eu imagino, desconhecia o que seria um projeto, e qual seria a participação de cada um e tudo o mais. Então, teve essa reunião de sensibilização? De informar, qual foi a primeira reação deles ao saber de um projeto? Euclides – Nós estávamos acostumados a fazer uma carta para mandar para o governo; dizíamos: “Olha, nós estamos precisando disso e daquilo”. E o governo mandava. Agora, quando começou o PDPI, a discussão era a de elaborar um plano mesmo. Quando a gente falava de projeto para o parente, ele já imaginava logo: “Opa, lá vem dinheiro, ferramenta, é alguma coisa!”. Mas não como algo planejado, um plano, com o que nós temos que fazer. O importante do projeto, quando você faz com os outros, é chamar atenção para a questão da contrapartida, como aquela atividade que a comunidade está fazendo – não é alguém de fora falando o que temos de fazer. Não, não é. Você tem um meio, que é esse recurso financeiro, para apoiar uma atividade da comunidade. A meu ver, o que fez o PDPI então? Exatamente isso, ele nos trouxe novas formas de planejar as atividades, de saber o quanto custam essas atividades. Então a gente vai elaborar um projeto, tem um plano, uma ação, para discute custo, quanto a comunidade tem, quanto pode usar, buscar parceria para implementar aquilo. Por exemplo, nosso projeto com caju não deu certo, só tinha 1 hectare de caju lá. Mas por quê? O pessoal falava: “Ah, esse tal de caju vai demorar muito!”. Queriam algo rápido. Então, essa forma

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de discussão, de trazer o projeto para dentro da comunidade, de envolver, discutir com os alunos, que nós temos um plano, que aquele caju lá do Seu Manoel está dando caju hoje, mas não foi de forma rápida. Tudo isso aí é o processo. Então você começa colocando na cabeça a forma de se organizar dentro desse território. Aqui na minha terra não tem mais buriti, acabou, vou ter que ir lá na terra do outro pegar. O cara não vai deixar ir pescar ao lado, está dentro de uma terra indígena. Então, precisamos organizar como vamos viver nesse espaço, e fazer o reaproveitamento, aproveitamento desses recursos de forma organizada, de forma planejada. Além desse projeto do PDPI, nós começamos dentro da nossa região, com a COIAB, pelo fortalecimento das comunidades regionais. Não tínhamos isso, a gente precisava se organizar. No Alto São Marcos, tem transporte, mas aqui, na Maloca da Roça, só vem para cá quem vem para cá mesmo. Se a gente não se organizar, não se unir, lutar para organizar, vai ficar sem nada. Agora temos uma escola de ensino médio, com transporte que traz alunos de outras comunidades. Mas foi com aquele apoio pequeno que tivemos do PDPI, acho que não chegou a R$ 5 mil, mas deu suporte para discutir isso lá. Além do projeto Maloca na Roça, o CIR tinha um projeto de criação de peixe que envolveu a comunidade Xiriri. Então, é uma discussão que começa a mexer na forma como vamos planejar nosso tempo, nossos passos. Aí nós temos outra atividade, que é a de criação de gado. Com isso, começam disputas por territórios melhores, e quando vem rebanho do outro, quer passar etc. Como nós vamos trabalhar? Vamos plantar capim? Então, esse aspecto do PDPI, que nos deu liberdade para pensar e gastar, também nos permitiu pensar nosso futuro, pensar como se organizar melhor, como trabalhar a questão dos nossos projetos. Agora

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estamos discutindo o manejo do pirarucu na região. Onde o manejo afeta mais diretamente? E as outras comunidades que se envolvem, as de mais longe? São nove comunidades, como vamos planejar nossa ação? É uma discussão que pega carona na fase inicial, que foi a divulgação do PDPI. Thiago – De modo geral, você achou positiva essa implementação? Ela foi bem aceita pelo seu povo, os Macuxi? Euclides – Foi aceita, a gente está vendo resultados, como disse. Lá na comunidade Maloca da Roça, houve uma aplicação de recursos significativa nas ações. Estão lá com os tanques para criar os peixes que eles têm lá. Disseram: “Olha, se a gente não deu conta 100% de criar pirarucu lá, pelo menos a gente cria traíra, e não vai precisar comprar ração fora!” Então, como a gente vai trabalhar aqueles tanques com outros tipos de peixes da região? Por quê? Porque, antes, a gente tinha lá os lagos, que praticamente secavam todos os anos. Então, você tem cinco tanques lá. Com os peixes que colocaram lá dentro, já dá para começar a trabalhar. Thiago – Como você participou dos dois lados, o que pode servir como dica ou orientação para um próximo programa? Quando você saiu, você era gestor, gerente do PDPI. O que você achou do seu papel naquele momento, e quando você retornou para comunidade, para tocar o projeto da associação, da comunidade? Quais foram as dificuldades que você sentiu, os mecanismos de acompanhamento, os mecanismos financeiros? Como era a gestão do projeto para você, que viveu dois mundos diferentes? E para o pessoal da comunidade, que não teve a mesma experiência que você teve, não tinha tanto discernimento de como fazer? Euclides – Quando eu retornei para a comunidade, eu já sabia qual era o volume de recursos que havia para ser gasto. Aí cheguei perguntando o que aconteceu,

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qual era o gargalo do projeto e fiquei sabendo que o assessor tinha ido embora e não fez mais a prestação de contas. Aí eu disse: “Ah, então quem fazia tudo era ele, vocês não faziam nada?” E me responderam: “Não é bem assim...” Assim o negócio está errado, nós temos que fazer. Eu disse: “Não é fácil, e nem é toda comunidade que tem um projeto de R$ 400 mil! É difícil conseguir recursos, dinheiro para comunidade! Não tem! A Funai não dá, o governo do estado não dá. Então, com esse projeto parado, estamos perdendo a oportunidade de beneficiar nossa comunidade, nossa produção. E o recurso está lá! Vamos fazer! Então, vamos formar uma equipe, está aqui a planilha, vocês é que vão fazer! Pega o projeto, vamos ler o projeto”. Como eu fiz com o pessoal da Comunidade do Barro, eu fiz com esse aqui. Qual é a parcela, para isso e isso...? Está tudo separado, não tem como errar! Só que, às vezes, as demandas são outras: falta um arame aqui, falta só pagar a luz etc. Como faz? Pega recursos, e aí “o bicho pega”! E às vezes se compra além daquilo que estava previsto... Então eu digo: “Vamos lá, precisamos retomar. É um projeto importante, é flexível, vocês não têm ideia de quanto recurso vocês estão mexendo aqui.” E vamos para Brasília, então? Fui até a Funai: “Olha, a gente precisa de passagem para ir para Brasília, é para o projeto Maloca na Roça, que é importante. A Funai pode nos ajudar, pois ela é parceira dentro do projeto. Mas a coisa não é fácil. Aí não foi o coordenador, foi só o presidente da associação. Tivemos uma reunião com o Klinton Senra , e ele disse assim: “Euclides, não é porque você foi gerente aqui que nós vamos liberar o recurso. Vai depender da prestação de contas que apresentar. E quem garante que o negócio não vai dar problema?”. Eu disse: “Eu vou ajudar o pessoal lá, claro, vendo a questão do projeto.” Aí cheguei lá, mas a maior parte dos recibos estava espalhada; tinha sumido até um computador. Tive que corre atrás.

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Então, aconteceu tudo isso. Conseguimos duas parcelas boas, quase R$ 50 mil. Fomos ao mercado para comprar, reativamos as atividades e o planejamento. Mas quando a coisa começa a aparecer, o chefe lá, o Tuxaua, começa a se sentir inferior: “Eu não posso?”. Aí eu disse: “Não é nada disso, Tuxaua! O cara é responsável pela ação; você é Tuxaua, tem tanta coisa para fazer, mexer com a política, viajar para lá e para cá. Esse cara é para colocar a mão na massa, chamar o pessoal para trabalhar, cavar buraco, para fazer isso e aquilo; uns vão plantar melancia para esse lado, outro vai para esse canto aqui.” Então, começamos a trabalhar. E o cara que vendeu os insumos agrícolas recebeu R$ 4 mil na mão! Quem quer perder um cliente desses? Aí o cara falou: “Eu trabalho na Secretaria de Agricultura também. Eu posso dar assessoria para vocês lá, é só mandar a carta da comunidade, e eu ajudo a fazer. Eu peço a meu chefe. E eu não vou cobrar nada de vocês, não!” (...) O cara falou que precisava de uma carta da comunidade; e aí fizemos uma reunião pedindo para o cara para vir aqui – eles queriam trabalhar a melancia – dizer o que é, como faz etc. Aí o Tuxaua falou: “Não! Quem vai lá sou eu! Eu sou o Tuxaua e vou resolver esse negócio. Não precisa fazer carta, não”. Aí o cara falou: “Mas precisa de carta!” Foi isso que esculhambou com o projeto. Isso que deu o problema! Porque a gente ia fechar a prestação de contas todinha em dezembro, para continuar com as outras parcelas. Eu disse: “Vamos lá, vamos ver a questão dos alevinos, como é que nós vamos trabalhar com o tanque?” Tem muita traíra nos tanques. Aí o coordenador falou: “Olha, vamos fazer um tanquerede para criar os bichinhos, depois, quando crescer, a gente muda”. O Tuxaua disse: “Não tem negócio de tanque-rede, não! Eu vou conseguir uma bomba para secar esses tanques todinhos, depois enche de novo.” Aí passou dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril... E a coisa não andou. Sei que são irmãos, se desentenderam, o cara veio embora da comunidade, abandonou tudo lá. Mas eles já tinham seus problemas.

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Essas dificuldades terminam ajudando a gente a rever nosso posicionamento. Como será com os novos projetos? Quem coordena a briga? Ou é melhor colocar na mão do cacique? Porque, na verdade, ele comanda as coisas, o Tuxaua. Os outros são só operadores. Está aqui a conta, a prestação de contas. Mas na ideia dele, aquele que chega com o carro cheio de mercadoria, aquele “é o cara”! Isso é importante par os Tuxauas; a gente vai ter que lidar com esse momento. Não tem outra saída. Alguém vai ter que pôr a mão na massa, alguém vai ter que se qualificar para fazer o relatório, para participar da reunião, quem sabe vai apresentar o projeto fora etc. Alguém vai ter que fazer isso. E assim foi. Depois teve uma feirinha para apresentar os produtos que a comunidade tinha. E qual era o plano de futuro deles? “Como nós temos dificuldade agora, que não está chovendo, nós precisávamos plantar mandioca irrigada. Nós temos três comunidades com potencial para fazer isso: a Maloca da Roça, o Xiriri e o Lago do Caranguejo Seco. Vamos fazer com o pessoal da área; quantas áreas nós vamos irrigar?” Porque todo ano, nós temos dificuldade de encontrar maniva. Quando seca, seca tudo. Quando alaga, alaga tudo. Então, vamos fazer um plano da região, do que vamos trabalhar. Isso envolve toda uma programação. Mas quem vai bancar isso? Isso a gente vê depois. A experiência que eu tive fora me ajudou nisso, a fazer o plano. O recurso vem depois. Aquelas pessoas que passaram por isso estão conseguindo atuar na comunidade. Thiago – Quais foram as dificuldades enfrentadas que fizeram o projeto não ter continuidade? Qual foi o gargalo? Eu sei que as atividades continuam com ou sem o projeto. Mas, dentro do cronograma de ações do projeto, qual foi, na sua percepção, a maior dificuldade para não se ter concluído com êxito? Euclides – O nosso projeto era econômico, e o resultado deveria aparecer. Como um projeto econômico, nós

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tivemos muito mais dificuldades. No universo de projetos do PDPI, a maior parte dos projetos na área econômica não deu certo. Por quê? Sobretudo, por falta do nosso planejamento interno na área econômica. O peixe, por exemplo: trabalhamos o peixe, criamos o peixe, vendemos o peixe, mas depois a gente não teve um plano de continuidade. Quanto é que custou isso aqui? O desentendimento foi uma coisa secundária; no fundo, o que faltou mesmo foi a questão de planejamento, de trabalhar com o fator econômico mesmo, da produção, da produtividade. Quanto caju, por exemplo? Quanto tempo vai levar para vender o caju? Onde vai ser o mercado do peixe? Quais foram as dificuldades que a gente teve para criar peixe? De tantos tanques que tivemos, apenas três deram peixe. E os outros deram pau? Os peixes morreram? O que aconteceu? Houve algumas falhas técnicas, e a gente não teve como dar suporte a esse projeto com finalidade econômica. Então, aquele erro que eu disse lá, de não incluir alguém com especialidade na questão do peixe, fazer parceria, levar o pessoal do Sebrae para qualificar nosso povo para essa questão do mercado. O gargalo foi esse. Plantou-se muito feijão, colheu-se muito feijão. Mas não se vendeu tudo; uma parte estragou. Quiseram trabalhar com a melancia. Eu disse: “Os produtores, no dia em que começam a cavar o buraco da melancia – que dá aqui em Roraima, em 65 dias –, já estão procurando mercado”. O parente não, ele vai procurar mercado no dia em que ele vai colher. Aí coloca tudo em cima do caminhão, traz e fica esperando na estrada. Então, nosso projeto teve essa dificuldade. E isso desestimula aquele que produz. No projeto Maloca da Roça o problema foi esse. Faltou acompanhamento técnico para esse trabalho mais específico, de criação de peixe, de produção da melancia, de mercado. O pessoal até produziu. Mas o feijão foi do mesmo jeito, e a mandioca também. Mas a ação continua; conseguimos um equipamento agrícola,

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um trator. Tivemos esse problema de gestão, que foi o gargalo lá, e a falta dessa visão de mercado. Também não se discutiu a produção do excedente: o excedente vai para onde?

Experiências, educação e orientações para o futuro Thiago – Você falou no começo de uma equipe que foi diminuindo, mas de certa forma teve uma participação; houve uma experiência tanto de equipe grande como de equipe pequena. Como você vê o empenho da equipe da parte dos gestores do PDPI, dos coordenadores e dos técnicos? Eles fazem um trabalho de ponta? Estão na ponta com vocês, convivendo na comunidade? Eu queria que você falasse abertamente sobre isso. Euclides – Eu vi três tipos de equipe lá. Vamos começar pelo mais fácil. Primeiro, nós tínhamos uma equipe – apesar de ser bastante reduzida – do Ministério do Meio Ambiente, com funcionários do ministério que estão lá. Eu sou funcionário público, sei como é: os funcionários têm final de semana, têm suas famílias, têm férias. Mas esses eram funcionários que quiseram ir para lá e ter essa experiência. E havia outra equipe, a dos temporários, que não era uma equipe ruim. Era uma equipe boa, que se identificava com a causa. O pessoal que foi para lá foi porque quis ir para lá. A maior parte deles já conhecia a região, tinha uma dedicação para acompanhar essa parte técnica, de campo. E a terceira equipe, a da GIZ, que era muito reduzida para o trabalho que faz, que envolve a questão da aplicação financeira. Era uma equipe que, como os temporários, não media esforços para ir a campo, passar uma semana, pegar regatão, subir barranco, banho de chuva, aquela coisa toda. A equipe permanente era mais reduzida, e tinha essas limitações, com toda razão,

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pois eles têm lá seus direitos. Mas, de forma geral, foi essa equipe que conduziu o PDPI por mais de dez anos, que esteve à frente, foi a campo, que sistematizou as informações. E a partir dessa sistematização, nós temos muitas informações que permitem construir uma política nova, diferente, para estabelecer uma relação entre povos indígenas e o Estado brasileiro. Então, a publicação dessas informações serve não somente como um relato do que aconteceu e do que foi, mas como orientações futuras para os projetos do governo. É dessa forma mesmo? Será que os indígenas tem potencialidade para implementar esses projetos? E se a gente pensasse nessa parceria com os estados? Eu vejo assim: se o governo traça políticas, mecanismos de distribuição e liberação desses recursos para ponta, a gente trabalha a qualificação desse nosso pessoal na ponta. Não podemos pensar que o Estado e o município vão fazer tudo para os índios, como os índios querem. Aqui em Roraima, por exemplo, o governo vai olhar a sociedade de forma geral, e trabalhar de forma geral. Mas do nosso lado, dos indígenas, o olhar é específico. Se a gente não correr atrás, a gente vai entrar nesse geral, e como nossas comunidades estão em terras demarcadas, tendo política ou não, às vezes vai só o que sobra, se sobrar. Nós temos aqui o caso da educação. Nós temos aqui mais de 200 escolas. Tem mais escola indígena que escola do Estado. Segundo estudos do IBGE, nós temos 15% da população indígena de Roraima; mas tem mais do que isso. Mais da metade do território de Roraima é nosso, indígena. Então, nós temos que trabalhar numa proposta nossa – eu digo nossa, assim, porque me espelhei um pouco também naquela proposta lá do Alto Rio Negro. O Alto Rio Negro tem inclusive o Plano de Desenvolvimento Social deles. E custa tantos milhões. É muita grana? É. Mas aquilo tudo é feito por

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etapas. A questão das estradas, do barco – porque lá, barco, todo mundo requer. Não é material permanente, é descartável. Thiago – Porque tem muita pedra lá, acaba quebrando. Euclides – Então, se nós temos esse plano, os povos indígenas, a política tem que ser direcionada para isso. Mas como isso acontece? Precisamos construir para a Funai? Ou juntar com o Ministério do Meio Ambiente? Como nós vamos fazer para trabalhar esse programa dos povos indígenas? Porque a Funai está, basicamente, em todos os territórios indígenas. Só que, como diz o Raul Seixas, com “aquela velha opinião formada sobre tudo”. Eles precisam buscar o novo. Como é que nós vamos estabelecer essa relação? Então, acho que essa publicação deve dar uma orientação para esse novo trabalho, daqui para frente, um trabalho de educação. Claro que fazer uma publicação como ferramenta de educação é uma coisa, mas aqueles que trabalharam no projeto, só de o cara se ver lá, vai se sentir sensibilizado: “Poxa, olha o nosso projeto aqui, nós participamos disso.” Daqui, a gente não consegue entender o PDPI em sua dimensão amazônica. Parece que é só o nosso projetinho aqui mesmo, de R$ 400 mil. Não enxergamos que isso aqui está ligado ao que está sendo feito lá em São Gabriel da Cachoeira, com os Kaiapó. Não temos a dimensão de que é um conjunto de ações do Estado para a população indígena, para a gente se sentir inserido nessa política, e não um projeto à parte: “Não, isso aqui é o governo alemão que decidiu”. Não é assim. Isso faz parte de uma política indigenista do Estado brasileiro. Essa publicação, eu acho que mostra, como disse no início, que alguém acreditou nisso, apostou na ideia e nos resultados importantes que a gente tem alcançado em várias comunidades.

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Essa era a lógica que eu queria para pensar essas novas ações além de saber se esses recursos vão vir de emenda parlamentar ou não. Porque tem tudo isso. A gente quer trabalhar emenda parlamentar. Mas como é que se vai administrar essa grana? Quem vai estar lá na coordenação de execução para trabalhar isso lá? Então há a necessidade de uma equipe que trabalhe isso. Thiago – Só para fechar a questão da publicação, tem alguma recomendação que você considera importante, além de tudo isso que você já falou, que queira deixar ou que deva constar? Quer oferecer uma dica, alguma outra forma ou mecanismo para se pensar em um novo desafio daqui para frente sobre essa questão de repasse de recursos, de programas de apoio para povos indígenas, de projetos? Euclides – Tem uma questão de que falei pouco, é a questão das organizações indígenas. Quando estava lá no ministério, nos últimos momentos, e até durante a atuação no ministério mesmo, havia a discussão acerca da representatividade dos coordenadores das organizações indígenas, e das organizações indígenas. As organizações indígenas representam ou não representam o povo indígena? Quando o governo quer fazer alguma coisa, utiliza todos os mecanismos necessários para implementar sua ação. Mas quando o governo não quer realizar uma ação, começa a colocar obstáculos, acusando as organizações indígenas de serem as únicas interessadas, e não as comunidades indígenas. Em um encontro das lideranças indígenas que ocorreu em São Gabriel, eu levantei essa discussão. Exatamente por entender que as organizações indígenas não representam os povos indígenas e nunca tiveram essa finalidade. Eu disse: a própria nomenclatura das organizações não tem nada a ver com representação. Representação é uma obrigação de cumprir um papel. Todas elas foram criadas para contribuir, para ajudar, para orientar. O Conselho

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Indígena, por exemplo. O Conselho Macuxi é um conselho. As pessoas idosas é que representam o Conselho, que aconselham as pessoas. A FOIRN, por exemplo, foi criada para fortalecer as alianças entre organizações indígenas; a UNI-AC é do mesmo jeito, isso está definido no objetivo da organização. Então, essa é a função das nossas organizações: fazer articulação entre as comunidades, os povos e as organizações. E o Estado tem de considerálas como tal, enquanto organização e não como representação. São instituições que buscam articular as organizações, trabalhar coletivamente, levar os interesses de nosso povo ao Estado brasileiro. Então, a relação que vamos manter com o Estado será através das nossas organizações. Às vezes é muito fácil. Quando incomoda, aí se leva um Roberto para cá, um Paulo para acolá, no sentido de tirar o foco dessa mobilização do movimento indígena. Então, nas relações com o Estado, é isso que as organizações buscam. Já falei do mecanismo, do programa e do protagonismo do movimento indígena. E que, com muitas lutas, a gente tem feito avanços significativos. Tanto na questão das terras quanto na questão da educação e da saúde indígenas, muitas coisas aconteceram por lá, por conta da mobilização desse povo e, agora, da pressão no Congresso Nacional, com a mobilização dessas organizações, que têm um papel importante para os nossos povos. Thiago – Então você acha que os próximos passos, com programas e projetos grandes do governo, devem ser dados dessa maneira, aproximando-se de cada povo e de suas organizações. Claro que não se vai criar uma política específica para cada um, mas estou entendendo que você defende que se faça uma consulta geral, com cada povo, para que se construa algo alinhado, que seja bom para todo mundo. É isso?

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Euclides – Por quê? Eu estou falando da segunda fase das ONGs. Antes, nós tínhamos o Cimi e muitas organizações não indígenas que trabalhavam com a questão indígena. Da década de 1980 para cá, apareceu o movimento indígena, os primeiros, a mobilização, e chegou onde chegou. E nesse terceiro momento, eu vejo que nosso movimento está um pouco de lado, de escanteio. Já não há protagonismo, e o que está entrando no meio, assim como nós temos o sistema de agentes de saúde (AS), nós temos o sistema de agentes indígenas de saúde (AIS). E aí vejo o movimento sendo puxado por eles agora. Nós temos aí muitas organizações não indígenas que se profissionalizaram de tal forma que não há nem mais disputa com as organizações indígenas; elas praticamente já assumiram as discussões, a implementação e a execução de projetos. Quem é que faz o PGTA? E os cursos? Como isso está sendo feito? Então, a interlocução não é mais apenas entre Estado e movimento indígena, mas é com essas organizações que estão presentes lá. E elas poderiam se colocar lá dessa forma: “Eu sou da organização do povo Macunaíma, você vai ser um bom assessor com sua instituição, você vai ser nosso parceiro para fazermos isso aqui, e a gente te paga, ou você com seus recursos...” Mas não, agora é assim: “Euclides, veja o que eu faço aqui...” É essa relação. A gente precisa retomar o fortalecimento das nossas próprias organizações, qualificar os nossos quadros. Thiago – Acho bom ter ouvido isso. A gente está fazendo essa entrevista com várias outras pessoas, inclusive com a própria CGU, que audita os projetos e questiona a gente. Tivemos uma entrevista bacana também com a Sandra e com o Jânio, atual secretário do PDPI. É importante a visão que cada um tem do contexto. Porque cada um viveu um momento: você viveu um, o Klinton viveu outro, e o Jânio, pegou a reta final. Então, agora com o encerramento, a gente quer

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fazer com que esse trabalho de vários e vários anos de luta e de conquista do movimento indígena gere frutos. Claro que já gerou vários e vários frutos, mas se alguém não chegar, sistematizar e divulgar, isso não vai ter muita visibilidade. Então, o que você falou no começo, que seria uma forte dica e percepção para o próximo programa, é a questão da união. O PDPI foi construído, mas as ONGs, os parceiros, foram deixados de fora. Agora, já se vê de forma diferente, com a inclusão, a inserção deles caminhando lado a lado – não sendo deles a questão indígena, mas somando forças em uma luta por uma causa objetiva que vocês queiram em determinado momento. Em relação ao que eu falei dos PGTAs, a Constituição prevê o direito das terras indígenas, e o direito de preservação e de gestão é de vocês. E agora que se entrou com a política de gestão, com o PNGATI, vamos ver esses planos de gestão. Acho que isso também seria mais ou menos por esse lado. Como você falou, a luta antes era pelas terras indígenas, agora é pela preservação. Então são momentos diferentes. Queria te agradecer, Euclides, por seu tempo e sua paciência.

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SUBPROJETO PROTEÇÃO DA TERRA INDÍGENA E MANEJO DE RECURSOS PESQUEIROS JUTAÍ/AM (No 472)

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Ocemir, coordenador da Copiju, e liderança da aldeia São Cristovão, em Jutaí/AM, autorizando a publicação e divulgação do projeto. Foto: Toya Manchineri.

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Desenvolvido na Terra Indígena Espírito Santo, no município de Jutaí (AM), o projeto de no 472 envolveu quatro aldeias do povo Kokama – São Cristóvão, Guariba, Espírito Santo, Novo Progresso – e tratou da proteção da terra indígena (TI) e do manejo de recursos pesqueiros, principalmente do pirarucu. O projeto teve como proponente o Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju), e foi executado pela equipe formada pelos próprios indígenas, que coordenaram o projeto na base. Em janeiro de 2014, Ocemir Salve dos Santos, coordenador do projeto, juntamente com a equipe de execução realizaram um evento de encerramento na aldeia Novo Progresso, que reuniu moradores das aldeias e convidados. Thiago Schinaider e Toya Manchineri, do PDPI/GIZ, e Andréa Borghi, como consultora, realizaram uma visita à TI nesse período, conhecendo as aldeias, os participantes, as atividades e a região entre o Médio Solimões e os rios Jutaí e Copatana. O texto a seguir apresenta trechos de conversas, resultantes dos registros de dois encontros. O primeiro, realizado em 17 de janeiro de 2014, durante uma visita à aldeia Espírito Santo, a convite de Ocemir Santos, presidente da Copiju. Na ocasião, a comunidade se reuniu na escola e relatou as experiências do projeto, como é a vida na região e a história da demarcação da TI. O segundo momento, realizado em 18 de janeiro, traz trechos das apresentações feitas durante o evento de encerramento, bem como falas de vários dos participantes, que compartilharam seus resultados e perspectivas com as comunidades. O que significou o projeto para os diferentes participantes? Como ele mudou o cotidiano das aldeias? Que dificuldades seus executores enfrentaram? Como dar continuidade ao que ele proporcionou e ofereceu? Quais questões políticas e administrativas o projeto enfrentou? São algumas das questões que

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os encontros e conversas desses dois dias na Terra Indígena Espírito Santo revelaram.

Boas-vindas aos convidados para o Encerramento do Projeto no 472. Comunidade Novo Progresso, janeiro de 2014. Foto: Andréa Borghi.

Discutindo o projeto em uma aldeia: manejo, proteção e participação Ocemir – Nós marcamos um encontro aqui na Terra Indígena Espírito Santo às dez horas da manhã, mas nós chegamos onze horas. Vocês me ouviram mencionar várias vezes o nome do Thiago. Hoje temos o privilégio de tê-lo aqui com a gente. Em relação ao projeto, ele deu o suporte de orientação, para que pudéssemos conduzir as atividades do projeto. Eu tive muito contato com ele, mas, nesse primeiro momento, gostaria de agradecer também à equipe do PDPI que se encontra aqui agora com a gente. Gostaria de dizer que é um prazer estar aqui na TI Espírito Santo, e que me sinto honrado de receber essa equipe

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aqui, porque foi através deles que recebemos o projeto aqui na terra indígena, na qual as famílias, as comunidades, foram beneficiadas. O projeto se encerra amanhã, lá na comunidade Novo Progresso, onde a gente vai apresentar os resultados, os pontos positivos e negativos, e o que pretendemos fazer daqui para frente. Como vai ser a caminhada dessas quatro comunidades após o projeto? O projeto tem começo, meio e fim. Graças a Deus, nós estamos chegando ao final do projeto. Eu gostaria de colocar uma coisa para vocês que, junto com a gente, foram beneficiados: o projeto só ocorreu por causa da participação das comunidades que acompanharam e ajudaram a discutir. Eu queria muito agradecer ao Osório, ao Isaac, e a outras pessoas que se destacaram aqui na comunidade, que ajudaram a pensar: “Não, precisa fazer isso!”; “Precisa discutir isso”; “Tem que reunir em tal canto”. Muitas vezes, nós fizemos reuniões em prol do projeto com recursos da Associação dos Comunitários de Jutaí (ACJ),13 que apoiou o manejo de lagos na região do Médio e Alto Solimões. Nós tínhamos as mesmas atividades, então, nos associamos para fazer reuniões extras, além das que estavam previstas no projeto. Então, conseguimos. Não sei se o projeto foi um dos melhores, mas para nós, como é o primeiro projeto, dentro do nosso alcance, nós fizemos o possível. E eu gostaria que vocês falassem, para equipe do PDPI que hoje está aqui, um pouco do projeto, o que o projeto trouxe de benefício, e o que vocês esperam daqui para frente. Paulo, que foi o técnico de pesca e acompanhou nossas atividades aqui, a gente conta 13 Associação que trabalha com desenvolvimento sustentável no município de Jutaí, através do projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Proderam).

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contigo, mesmo após o projeto, para que possamos fazer um trabalho de manejo aqui na TI Espírito Santo. Queria agradecer muito a você. Você tem a palavra, junto com a comunidade, para falar um pouco sobre isso, agradecer e propor (...). Paulo – Então, gente, boa tarde a todos. Para mim, hoje, é um privilégio estar aqui com vocês, junto com a equipe. Também quero agradecer à comunidade, por ter nos recebido; à equipe do PDPI; e também à equipe que coordenou o projeto durante esses dois anos que venho acompanhando o projeto. E também ao Copiju, que foi a proponente desse projeto. Antes, as comunidades sabiam o que era o manejo, tinham uma noção, mas não tinham um apoio através de um projeto. Então, eu acho que esse apoio do PDPI trouxe um grande resultado para as quatro aldeias da Terra Indígena Espírito Santo, que é uma das áreas de maior potencial de pescado, tanto de pirarucu e de tambaqui, quanto também de outras espécies. Eu acho que a maior parte do desenvolvimento econômico das comunidades aqui hoje vem do pescado. Em segundo lugar, da agricultura. Mas a parte da agricultura é mais para consumo interno da comunidade. Então, eu também acho que contribuí para desenvolver esse projeto. O primeiro ano que eu trabalhei aqui pelo projeto foi em 2010; foi quando nós começamos a fazer o trabalho de levantamento do estoque de pirarucu. A partir daí, nós tivemos uma noção e, de 2010 até agora, creio que houve um aumento no estoque do pirarucu. E de 2010, 2011, até 2013, a cada ano foi aumentando o estoque. Eu vejo assim: para ter desenvolvimento tem que ter sustentabilidade, pois desenvolvimento sem sustentabilidade não existe. Então, esse projeto trouxe um grande resultado, as comunidades tiveram apoio mesmo, tanto na parte física quanto na parte econômica.

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Anteriormente, as comunidades trabalhavam, comercializavam o pirarucu, mas de forma clandestina. Era cada um por si e Deus por todos. Então, no lago, quem pegasse mais lucrava mais. Com o manejo, hoje a pesca é realizada de forma coletiva. Até o nome já diz: manejo comunitário participativo, por isso, o manejo é dividido em partes iguais. Esse é um resultado bom, além das capacitações que foram ministradas para as comunidades através do projeto. E tem os flutuantes. Hoje eles servem como uma base de apoio para fiscalizar e fazer o monitoramento da área, dos lagos. Isso foi muito bom para as comunidades, porque antes esse trabalho era muito sacrificante. Hoje não, cada comunidade tem um flutuante como base de apoio para fazer o trabalho durante a semana. A vigilância é feita na área por meio de revezamento; cada semana é uma equipe. Quando termina uma semana, já vai outra equipe fazer o trabalho, tendo onde ficar durante a noite, onde se alojar. Então, esse foi outro ponto positivo.

Flutuante de monitoramento. Foto: Andréa Borghi.

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Também quero agradecer muito à coordenação, ao Ocemir e à equipe dele, que coordenaram o projeto. Essa foi uma equipe competente, que atuou com muita responsabilidade durante o desenvolvimento do projeto, porque não houve desvio de recursos. Então, eu creio que o recurso do projeto foi aplicado de acordo com o cronograma que estava dentro do projeto. No mais, era isso que eu tenho a dizer para equipe sobre o projeto. Dentro do projeto, meu trabalho foi prestar assistência na parte de monitoramento de pesca e contagem nas quatro comunidades: Guariba, Espírito Santo, Novo Progresso e São Cristóvão. Eu vejo que o projeto trouxe um grande resultado e agora a continuidade vai depender das comunidades, que vão ter de trabalhar para dar continuidade ao trabalho de manejo. O manejo é um trabalho contínuo, ou seja, não é porque terminou o projeto que vai terminar a parte do manejo. O manejo continua, e agora a comunidade precisa andar com seus próprios pés. E a gente espera que futuros projetos venham para dar apoio, porque eu creio que essa equipe que coordenou esse projeto tem competência também para coordenar outros projetos que virão. É isso gente, meu muito obrigado. Isaac – Boa tarde a todos. Eu quero agradecer a presença de vocês do PDPI; a do Thiago, que eu tive a oportunidade de conhecer lá em Manaus; e a dos demais, o Toya e a Andréa, que estão fazendo parte da equipe e que chegaram aqui. Para mim, é uma honra, uma satisfação vocês terem chegado aqui. E quero agradecer também ao Ocemir. Eu faço parte da coordenação do projeto, e fui eu quem assinou os papéis, os documentos que foram enviados. Essa foi uma oportunidade que a gente não esperava que fosse acontecer assim; é como um sonho que está sendo realizado. O projeto trouxe tudo de bom. Eu digo assim, porque antes não se via o que está

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acontecendo hoje. Hoje, a gente tem uma maior preservação, isso não tinha antes. Antes era assim, como o Paulo falou, era cada um por si para pescar, não se dividia em partes iguais. Hoje mudou. Hoje, quem mata e quem não mata peixe ganham a mesma quantia. Com esse modo diferente de distribuir a produção, também veio uma maior preservação, pois cuidar da nossa área é muito importante. Eu gostei, e gostaria de ver coisas ainda mais importantes. Quem sabe, no futuro, outro projeto traz mais apoio, para a gente poder melhorar e trabalhar mais firme. A gente não esperava por isso, mas espero que hoje todo mundo se sinta à vontade, porque o que a gente tem hoje é da gente; e o que o projeto trouxe, vai ficar de herança. Isso foi uma coisa muito importante, e todo mundo está vendo. A parte da coordenação, que também foi uma responsabilidade muito grande, está chegando ao final. Hoje nós estamos na reta final do projeto, e a coordenação foi muito bem. Quero agradecer a Deus, e que Deus dê saúde a eles e a nós, e bastante trabalho, para a gente continuar. É só isso. Luciano – Eu também quero falar um pouquinho. Boa tarde. Eu sou o Luciano, sou morador da comunidade Espírito Santo e também faço parte do serviço da comunidade, no manejo do lago, além de outros trabalhos na comunidade. Quando chega o dia da contagem, a gente participa, a gente vai e faz tudo direitinho. Aí vem o nosso companheiro, o Paulo, que é o técnico, e traz mais informação para a gente, sobre como trabalhar na organização. Eu acho que o manejo foi muito importante para nós, porque está trazendo a cada dia uma melhoria de vida. Antes – faz 34 anos que moro aqui na comunidade –, a gente não via algo assim tão importante. A gente ouvia falar, mas era por aí afora, e a gente não tinha

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conhecimento. Mas agora a gente já participou de várias reuniões e tem mais informação. O manejo é uma coisa importante e, por mim, a gente nunca vai abrir mão desse trabalho, porque, antes, esse lote de terra, logo que foi demarcado, não tinha vigilância, qualquer um entrava e fazia o que queria aí dentro: tirava madeira, pescava, serrava etc. Agora não, já mudou o esquema. Em relação ao projeto e do que ele trouxe para nós, acho que ajudou bastante também. Hoje a gente tem um flutuante e trabalhar dentro dele. Ele já está com dois anos, e tem garantia de pelo menos mais um, mas a gente vai reformando para não se acabar. Enfim, a gente está aí para dar qualquer serviço de apoio à comunidade. Obrigado. Sidney – Boa tarde a todos. Eu sou Sidney e moro aqui na aldeia. Eu sempre coordeno uma reunião aqui na comunidade. Eu gostei muito do projeto. O projeto conduziu a gente e a comunidade vizinha. A gente tinha pessoas aqui que não sabiam o que era uma reunião, não sabiam amenizar os casos que aconteciam. Hoje os problemas aqui dentro se acabaram. Por intermédio do meu irmão, Ocemir, eu venh desde jovem trabalhando na organização. Eu agradeço muito pelo trabalho do projeto. Antes eu ouvia falar em projeto, mas não sabia como era. Um colega que já tinha trabalhado com projeto me explicou, aí a gente fez uma cartinha e mandou. Tive resposta, e hoje a gente está em cima disso, conduzindo um trabalho para tirar da nossa área essas pessoas que vinham do município para destruir os peixeiros. Foi muito bom, já em 2009, as coisas foram avançando, o projeto foi crescendo e concluímos até o primeiro passo, que foi muito bom para prevenir as invasões. A gente gostou também do colega Jean, do Cimi, que ministrou o curso de agente ambiental para a

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gente. Esse foi um passo dado que melhorou muito a vida dentro da reserva; melhorou muito mesmo. Ao conhecer a gente e nosso trabalho, os invasores até se esqueceram da nossa área. Eu estou com 45 anos e posso dizer que, há cerca de 28 anos, na área da aldeia Espírito Santo, nunca mais uma árvore foi torada para ser destruída como era antes. Com o projeto ganhamos mais facilidade para cuidar do nosso lago. Agora o tempo de vocês está curto, senão a gente ia até o lago para vocês olharem o que tem, para levar mais conhecimento para capital e mostrar lá. Dos eventos que aconteceram dentro do nosso projeto, amanhã a gente vai ter uma oportunidade muito boa de assistir. Tenho certeza de que o Ocemir tem os vídeos para nos mostrar. E eu espero que os projetos conduzidos nessa aldeia a tornem cada vez mais legalizada. Se Deus quiser, vocês voltarão aqui e a gente vai ter mudado a situação. A gente está mudando também, o projeto trouxe para a gente uma boa qualidade de educação, muito boa. Hoje, principalmente, nós sabemos conversar com qualquer entidade para resolver os nossos casos. Isso foi algo que me conquistou; eu queria que todo mundo tivesse essa minha opinião, e pudesse falar o que estou falando. Eu estou falando disso com minha juventude, meus sobrinhos, que estão aqui ao meu lado... Mais tarde eu quero vê-los falando algo tão importante para família; dar gosto à família. Nós não podemos deixar o nosso trabalho. Nós já vínhamos há muito tempo mesmo nesse trabalho, há muitos anos. Antes de o projeto chegar ao nosso conhecimento, nós já vínhamos trabalhando em cima disso. Mas o que iluminou melhor nosso caminho foi quando a gente buscou a parceria com pessoas de fora, que deram um apoio para a gente. Nosso município fica próximo daqui, mas não dava o apoio como a gente queria.

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Hoje nós somos mais qualificados dentro do município, porque hoje eles nos respeitam como índios. Foram muito negligentes com a gente, mas hoje isso não existe mais. Hoje somos cidadãos, somos reconhecidos; sabem que a gente também tem como falar e trabalhar. Acho que amanhã vai ser uma oportunidade muito boa de abrir espaço para a gente trocar ideias e para vocês ficarem cientes do que a gente fez nessa área. Sobre o flutuante, muitas comunidades vizinhas já cobraram meu irmão pelo fato de ele nos dar apoio. Mas como ele ia providenciar o recurso para as comunidades deles, que não têm? Outra experiência boa foi quando eu acompanhei a equipe na demarcação dessa área para ser homologada. Eu passei um tempo na mata com eles, e eles me falaram sobre esse ponto que eu mencionei hoje: “Quando a terra for homologada, vocês vão ser procurados. E vocês podem zelar, que quando vocês ficarem velhos, vão deixar esse trabalho para os filhos e netos”. Eu gostei muito daquela equipe, foi uma experiência muito boa e a gente pôde amenizar muitos dos casos. Antes, eu via muitas pessoas – até hoje vejo muito pessoas que falam coisas que doem no coração, mas que não têm conhecimento. Eu gostei muito daquela equipe que acompanhei – nessa época eu já tinha a minha mulher, e tinha dois filhinhos, senão eu tinha ido trabalhar com eles –, e eles gostaram muito de mim. Hoje, o recurso não é tanto que faça os peixes subirem na terra, mas tem para a gente se alimentar com a família. Vocês pediram para as mulheres darem uma entrevista. Elas não souberam falar disso, mas elas visitam a gente quando a gente está lá tirando alimentação, buscam lá na beira do lago e trazem, graças a Deus, para todos ficarem satisfeitos aqui. Meu muito obrigado, e amanhã a gente espera ter uma conversa melhor.

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Thiago – Ocemir, sobre a questão do manejo: isso está sendo passado para os jovens? Antes os jovens saiam para pescar também? Ou agora tem divisões de tarefas incluindo os jovens nas atividades? Ocemir – Acontece. Isaac – Já acontece. Os jovens hoje já estão fazendo parte do trabalho. A gente está ficando mais velho e cansando; então, a gente está sendo multiplicador para eles. Participante – Eles já estão acompanhando desde agora; assim, quando a gente for saindo, eles já sabem como trabalhar. Então, estão acompanhando o trabalho. Daqui para frente, a gente vai parar, e eles é que vão continuar. Ocemir – Inclusive, lembro que estou analisando um item para apresentar amanhã, sobre como começou essa questão da solicitação da área indígena. Na época, meu pai e meus tios– alguns já morreram, outros ainda estão vivos –começaram esse trabalho de lutar pela área indígena, por causa de uma perseguição da comunidade vizinha, que queria expulsar todo mundo daqui. Então depois eles foram buscar meios para continuar. Mas outra coisa que precisamos buscar mais dentro das comunidades é a participação. Participação da juventude, participação das mulheres, que são muito ausentes. E nós trabalharmos mais essa questão manejo. Mas, dentro do projeto, nós trabalhamos além do que estava previsto, Thiago. Nós fizemos mais reuniões internas, isoladas, em comunidades que não estavam previstas no projeto; mas a gente fez. Que mais? Nós não temos ainda essa capacidade de trabalhar a articulação com as mulheres; seria outra modalidade. Precisamos de uma outra pessoa com essa visão. Então, trabalhamos mais a questão da organização interna das comunidades, para poder alcançar o objetivo do projeto; senão,

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ninguém conseguia. A gente trabalhou bastante isso, não é, Paulo? Trabalhamos a organização interna das comunidades, a parceria com as famílias, que buscavam participar; e depois, fomos buscar uma parceria com as comunidades vizinhas. Eu vou deixar para falar disso amanhã, pois eu gostaria que eles falassem mais o que aconteceu.

Exposição de pirarucus durante evento de encerramento do Projeto no 472. Comunidade Novo Progresso, janeiro de 2014. Foto: Andréa Borghi.

Paulo – Nas comunidades vizinhas, teve uma reunião, ali em São Cristóvão. Antes dessa reunião, organizada pelo projeto, a gente tinha muito conflito com as comunidades na área indígena. A partir dessa reunião, foi assinado um termo de convivência, para que cada comunidade respeitasse o limite das outras, cada qual usasse o espaço que tem para ser usado, para se manter. Antes dessa reunião, havia muitos conflitos e invasões de outras comunidades de entorno, que não faziam parte da área indígena, como a Vila Copatana, que era do entorno. Então, foram chamadas todas as

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comunidades vizinhas para essa reunião, para que tivessem conhecimento de qual era o objetivo do projeto, e como os coordenadores do projeto pretendiam desenvolver o trabalho. Nessa reunião, foi definido que cada comunidade respeitasse o limite da outra, e partir daí, a questão da invasão nos lagos foi minimizada. Andréa – Foi histórica essa reunião, então? Paulo – Isso. Cada uma sabia qual era o limite da outra, não tinha por que ultrapassar. Nem a de lá nem a daqui tinha por que estar ultrapassando o limite da outra. Se quisesse entrar na área da outra comunidade, tinha de ir na outra comunidade, conversar, pedir licença até para pegar um peixe. Essa reunião com as comunidades vizinhas foi de grande importância. Andréa – Todo mundo que estava nela concordou? Paulo – Todo mundo concordou; os representantes das comunidades assinaram o termo. Andréa – Para vocês chegarem nesse entendimento foi um esforço. Paulo – Foi. E a partir daí, não houve mais muitas invasões. Porque, a partir dessa reunião, eles começaram a entender e a respeitar. As quatro aldeias daqui, da TI Espírito Santo, estão trabalhando dessa forma. Se pegassem alguém invadindo, o infrator seria penalizado. E a partir de então, diminuiu, não é, Ocemir? Ocemir – Zerou. Zerou a invasão. Luciano – O curso de agente ambiental também foi um grande passo que a gente deu, porque a gente não sabia como lidar com o invasor. Foi uma parte muito importante ter feito isso. A maioria das pessoas que participou entendeu também – até mesmo os moradores da comunidade vizinha mudaram, eles não

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fazem mais esse tipo de invasão. Eu gostei, achei muito importante isso. Cada um retornou para sua própria comunidade para falar a seu pessoal que não ia mais existir aquele tipo de invasão que havia antes. Isso foi colocado para todo mundo da sua própria comunidade mesmo. Foi um passo que envolveu até mesmo as pessoas da cidade, os parentes que moravam na cidade, que vinham para cá. Somos nós que cuidamos da preservação – a gente sabe quem entra e quem sai. E invasão de madeira, graças a Deus, não tem. Ocemir – Também é bom falar que houve um outro acordo, entre as famílias da comunidade. Qual era o acordo? Os lagos são separados em três modalidades: de manejo, em que se pesca uma vez por ano, com autorização pelo Ibama, para capturar pirarucu, tambaqui – tem que ter uma autorização para pescar esses peixes; de procriação, para manter o equilíbrio das espécies, para multiplicar as espécies; e os de manutenção, em que se define a quantia certa que pode tirar para a manutenção no decorrer do ano. Então, para isso, também houve discussão interna nas comunidades, o que exigiu muito da gente, para estar junto na definição dos lagos para todo mundo. Por exemplo, aqui tem lago que há quatro anos não é usado para pesca; é um lago de manejo. Mas estão pescando em outros lagos, que são de manejo também. Então, tem de haver esse entendimento interno aqui para não pensarem que nós vamos só guardar, “guardar e sofrer” – não é isso. O manejo sustentável, como a gente entende, é poder tirar, sabendo de onde se está tirando e mantendo o estoque para sempre ter como garantia. E se chegou a um consenso sobre esse ponto, dentro da comunidade, junto com a gente.

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Comunidade Espírito Santo, janeiro de 2014. Foto: Andréa Borghi.

Thiago – Ocemir, eu queria falar uma coisa, sobre a participação das mulheres. Às vezes, muitas das mulheres, das jovens, participam, mas não participam diretamente, ou seja, participam indiretamente. Por exemplo, quando um homem está pescando, ela está de olho nas crianças; está fazendo o jantar, o almoço, para ele ter o que comer quando voltar; ou está preparando o que ele traz, a caça, a pesca. Essa é uma forma de participar. Se fosse vocês que tivessem de cuidar das crianças, não teriam como sair para pescar. Então, acho que todo mundo tem uma participação, querendo ou não, às vezes sem saber que está participando, mas está de certa forma ajudando – tanto que se chama “comunidade”. Todo mundo participa, de uma forma ou de outra. Umas pessoas estão mais à frente, outras pessoas estão na retaguarda, de certa forma, fazendo com que as pessoas lá da frente se sintam protegidas para fazer suas atividades. Esse é o recado que eu queria deixar.

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Ocemir – É isso mesmo, Thiago. Eu vejo que ainda falta melhorar essa questão da participação, falta incentivar, falta as pessoas dizerem: “Não, precisa mudar sua ideia”. Ou seja, é preciso ampliar o diálogo entre os comunitários em suas reuniões, o que não significa que devam mudar sua forma de pensar. Mas ainda não acontece muito isso. Inclusive nós temos carência de lideranças aqui. Quando eu coloco na nossa perspectiva “formação de lideranças”, significa buscar mais pessoas com visões diferentes, homens e mulheres – porque tem mulheres que sabem fazer um trabalho melhor do que um homem. Luciano – Em várias reuniões eu já falei: “Pessoal, é o seguinte, quando a gente faz uma reunião para repassar as coisas de um curso que a gente tenha participado ou quando tiver outras pessoas de fora, vocês têm de colocar a nossa realidade, a realidade de nossa moradia, o que a gente usa ou não usa”. Eu gosto muito de pessoas idosas, mais avançadas do que eu, eu gosto muito de conversar, de entrosar. Por quê? Porque eu gosto de ouvir muitas ideias, todas vão ser aproveitadas. Eu já fiz isso, aqui dentro, várias vezes. Quando eu marco uma reunião, eu digo: “Pessoal, nós temos que conhecer nossa realidade, nossa economia”. Então, não é falta de a gente tentar. Mas eu acredito que todos são adultos. Minha mulher não está aqui no momento, mas eu converso muito com ela. E converso muito com meus filhos – são três meninas e um menino; o menino está fazendo 1 ano. Quando eu estou parado, eu me dedico a eles. Nós repetimos e discutimos tudo e o que é mais necessário para nós. Assim a gente consegue saber o que fazer diante do nosso espaço. Isso é muito bom. Eu digo para eles: a comunidade é uma família, é uma casa. Já disse isso. Ocemir – Amanhã vamos ter um espaço para vocês falarem lá, e eu queria que vocês já fossem pensando mais sobre isso aí.

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Luciano – Depois que eu aprendi mais um pouco, a gente conversou muito entre as lideranças. Eu conversei até com um delegado, para articular isso para a gente, dar uma orientação melhor. A gente chegou a concluir... Eu queria buscar o conhecimento das pessoas que são mais qualificadas. Graças a Deus, fizemos isso, eu e os outros tuxauas – nessa época eu era o tuxaua –, e a gente se entrosou e melhorou muito. Tem alguns que ficam bêbados ainda, mas esses já são mais novos, entre os de 40 anos você não vê mais isso. Tem brincadeira, mas você não tem mais aquela coisa... Então, esperamos daqui para frente não mais deixar os mais novos ficarem assim, como vivíamos antes. Tinha menino que vinha para cá, não jogava bola nem dançava, não fazia nada – só ficava bêbado. E a gente está trabalhando em cima disso. Eu e o Juscelino prestamos atenção ali no Novo Progresso, e as coisas estão mudando muito lá também. Quando a gente se encontra, a gente fica muitas horas conversando com eles. Muitas pessoas de fora já perceberam isso. Thiago – É bom ouvir vocês dizerem que o projeto trouxe mais união entre as comunidades. Ao implementar um projeto, sempre fica a dúvida: vamos ajudar ou vamos atrapalhar? Porque, às vezes, quando o dinheiro chega para a comunidade, traz discórdia, traz desconfiança, tudo o que a gente não quer que aconteça. Então, é bom ter o exemplo de vocês. No projeto de vocês até que não foi tanto dinheiro assim. Tivemos projetos de valores muito mais altos, com o dobro, o triplo do valor, e nos quais houve problemas em torno da questão do dinheiro. E aqui não; o recurso foi pouco, foi bem aplicado, vocês buscaram parcerias lindas, na própria comunidade, entre vocês, com os brancos, com as comunidades vizinhas. Um dos objetivos foi atingido: a harmonia. Esse é um grande aprendizado para este que foi um primeiro projeto.

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Eu lembro que, várias vezes, o Ocemir me ligava para falar da questão de gastar o recurso, com medo de gastar errado: “Puxa, se gastar errado, vou ter que devolver?” Então, eu fico contente de saber que o projeto trouxe essa união, que vocês fizeram um acordo de convivência, para respeitarem o espaço um do outro, respeitarem os acordos, respeitarem as comunidades. Fico realmente satisfeito de poder partilhar isso com vocês. Só tenho que agradecer também. Ocemir – Thiago, eu mandei um documento para vocês dizendo ser necessário que a equipe do PDPI mandasse alguém. Não sei se você se lembra desse documento. Thiago – Lembro. Ocemir – Isso foi aprovado em assembleia, porque não queríamos fazer o encerramento do projeto sozinhos. Nós já temos o dia a dia em conjunto. Alguém confiou na gente, alguém mandou um dinheiro para melhorar nossa vida. Então, esse alguém precisa saber quem somos nós e se isso realmente aconteceu. Nós temos que mostrar nossa realidade, e alguém precisa vir aqui ver. Por isso eu digo que é uma honra para nós ter vocês aqui hoje, para nos conhecermos de perto. Seria bom se tivéssemos mais tempo, vai ser corrido hoje. Eu vejo vocês depositaram muita confiança na gente. Talvez isso não pague o que vocês pretendiam, talvez vocês esperassem mais, mas a gente fez o que podia. Graças a Deus valeu a pena. Não sei se ainda posso ser coordenador aqui do projeto, mas eu tenho algumas propostas de trabalho, quem sabe possa melhorar. Mas aqui tem pessoas que podem fazer ainda melhor do que a gente. Thiago – Vocês estão formando multiplicadores. É importante não ficar com o conhecimento parado, e ir repassando. Imaginem se o curso que o Paulo deu para vocês ficasse só com as pessoas que participaram? As

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pessoas sairiam daqui, e teríamos de fazer outro curso para o resto da comunidade? Não, vamos aproveitar o conhecimento, e ir repassando um para o outro. Assim também com a gestão de projeto; eu falei para o pessoal do Copiju: “Procurem o Ocemir para ajudar vocês no projeto”. Alguns procuraram, algumas vezes, alguns não. Ocemir – Eu também estou colocando para comunidade, Thiago, que o projeto, após seu término, ainda tem cinco anos de vida. A qualquer tempo, pode surgir uma auditoria. Eu falei ontem lá para os meninos que, após a prestação de contas, os documentos do projeto vão para um arquivo. Ali estão meus compromissos, e talvez, enquanto não passar esses cinco anos, eu nem vá disponibilizar para ninguém, nem para alguém da comunidade. Se alguém precisar, tiramos uma cópia. Thiago – Deixa eu falar mais uma coisinha relacionada ao PDPI. É que o pessoal fala assim: “Ah, o Thiago do PDPI”. Não sou só eu, viu, gente? O PDPI tem uma equipe, é um programa desenvolvido por meio de uma pareceria entre o Ministério do Meio Ambiente e o banco alemão, que é o doador. Eu estou na equipe financeira, tem o Fernando, e também a Sandra, que é a supervisora. E do Ministério do Meio Ambiente, também tem o André e a Iara. A equipe de monitoramento é bem pequena: são dois técnicos do ministério e a gente. E tem o Toya também, que é responsável pela parte de sistematização de toda a experiência do PDPI, e a Andréa, que é consultora e está apoiando nesse trabalho de produção dessa nova publicação, nas entrevistas, na coleta de informações com vocês. Andréa – Eu gostaria de dar uma palavrinha. Quando eu comecei esse trabalho, surgiu a ideia de visitar um projeto do PDPI que tivesse tido êxito. Conversando com o Thiago e o Toya, o projeto de vocês foi indicado como um projeto de sucesso, porque conseguiu enfrentar

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as dificuldades que apareceram no meio do caminho, realizaram as atividades, alcançaram os objetivos, e já estão vendo continuidade. Então, eu fui ler os relatórios de vocês, os planos, a papelada. E hoje, fico muito feliz de ver a verdade por trás do papel. Porque no papel vale tudo, mas aqui a gente vê a verdade que estava ali por trás, vê as pessoas, os seres humanos, as histórias – às vezes tem muitas histórias que não cabem no papel. A gente veio aqui também para ouvir isso: as histórias que não vão para o papel, mas que também são importantes, como a da participação das mulheres: não está no papel, não está escrito, mas a gente sabe que houve um apoio. Então, eu agradeço, acho que essa tarde foi muito bonita desde que a gente chegou, com essa chuva gostosa, esse almoço... D. Divina – O vento... Andréa – Um vento forte, que acho que representa a força que a gente sente aqui com vocês. Thiago – Essas foram as boas-vindas! Toya – Vou me apresentar aos parentes: meu nome é Toya Manchineri, sou do estado do Acre. O povo Manchineri está localizado na divisa entre Peru, Bolívia e Brasil. Vocês já ouviram falar da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que é a maior organização indígena da região Norte. A COIAB contribuiu muito com o PDPI. O recurso era 100% do governo alemão, e o movimento indígena da Amazônia e os coordenadores da COIAB trabalharam muito para sua realização. Acho que foi o Euclides Macuxi, um parente também, que começou esse processo, em Roraima. Ele também trabalhou nesse processo. Outro, o Jorge Terena, do Mato Grosso, morreu. Foi um esforço enorme do movimento indígena da região Amazônica, com a COIAB acompanhando o processo, para termos esse pequeno espaço dentro do Ministério

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do Meio Ambiente. Esse projeto ofereceu mais facilidades para nós acessarmos, porque ele surgiu para pensar pela perspectiva do índio também. Não só pelo branco, que pensa de um jeito meio amarrado, mas também com um pensamento indígena, para facilitar o acesso a várias comunidades. Em 2011, a COIAB, juntamente com a GIZ, lançaram um edital para contratar uma pessoa para fazer todo esse trabalho de sistematização, para coordenar esse trabalho de sistematização – é isso que nós estamos fazendo, eu e a Andrea. Isso servirá para demonstrar a importância que esse programa teve para as comunidades. Porque, muitas vezes, o governo financia, mas ele quer ver o resultado. Na maioria das vezes, o governo financia construções, financia prédio, porque prédio todo mundo vê. Esse programa foi diferente: ele financiou ideias. Ocemir – Ele financiou uma coisa sem saber se teria uma estrutura. Toya – Pois é. O PDPI veio para possibilitar que nossas ideias, as ideias indígenas, ideias da comunidade, pudessem aparecer lá fora. O PDPI serviu para isso. Por exemplo, o manejo: vocês colocaram na cabeça, claro, com a contribuição de outras pessoas, mas a ideia do manejo é de vocês, é um investimento, um empreendimento e um projeto de vocês. Então, o PDPI veio para pegar essas ideias e colocar para os brancos verem que o índio também tem cabeça, e que ele pensa. Da mesma forma com outras questões também, como a questão na área da cultura, a questão da proteção territorial etc. Eu trabalhei em um projeto que se chamou Resgate, Revitalização e Registro da cultura Manchineri. Nós fizemos um intercâmbio com nossos parentes que moram no Peru, para demonstrar também a qualidade de pensamentos e culturas indígenas, que muitas vezes não são valorizados. Esse programa, o PDPI, proporcionou tudo isso.

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É uma responsabilidade grande da minha parte, porque por um lado, fui indicado pela COIAB, e por outro, pela Cooperação Técnica Alemã. Então aí nós temos três visões: temos que atender ao pensamento do Ministério do Meio Ambiente, que também é parte do processo, do programa; nós temos que atender também às expectativas da cooperação alemã, e temos que atender também ao movimento indígena, ao pensamento do movimento indígena. Então, nesse documento, nesse trabalho, nós temos que fazer aparecer esses três lados. Muitas vezes aparece apenas uma única face: a do Estado. Então, nesse trabalho, nós vamos tentar mostrar a junção desses dois momentos – por isso que o produto se chama Diálogos e saberes. Um diálogo construído ao longo do processo, que veio desde 1997, quando o movimento começou a trabalhar esse pensamento; e os projetos de hoje. Nós também queremos que vocês possam nos dar ideias, para que nós possamos consolidar um trabalho que possa também servir de cartilha para o governo na criação de novos programas para as comunidades indígenas. Então, nosso trabalho aqui é escutar e colocar no papel as ideias de vocês. Quem sabe a gente consegue, com as ideias de vocês, e com a valorização dessa história que vamos contar, mudar a ideia do governo. Essa publicação também vai servir para divulgar o trabalho de vocês, pois esse trabalho é o mais importante. Então, é isso que nós estamos fazendo aqui, com a sistematização do PDPI. Toda colaboração é bem-vinda. Assim como vocês tiveram as colaborações de outras pessoas, de outros recursos, o trabalho de sistematização também envolve isso: pegar as pessoas que estão antenadas com a gente, com as ideias, e ir construindo aos poucos. Por isso que o último produto se chama Diálogos e saberes, conversa e sabedoria.

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Eu estou muito grato por estar aqui na comunidade e ser bem recebido: eu comi muito aqui! Ocemir – Eu tenho várias fotos que podem ajudar vocês. A gente consegue, mas eu tenho dificuldade de emprestar, sinceramente. Toya – Você pode selecionar cinco ou seis fotos; é o suficiente, porque o catálogo vai conter apenas uma ou duas fotos. A gente está fazendo o livro, e todos vão ter os respectivos direitos autorais lá. Cada fotografia que for usada lá vai ter a indicação de quem é o autor. Nós queremos trabalhar com tudo legalizado – as pessoas que derem entrevista, cederem imagens, tudo o que for utilizado, vai ter a indicação da aldeia. As pessoas geralmente não respeitam essa questão do direito de imagem; mas nós queremos e é possível fazer um trabalho respeitando o direito de todo mundo. Ocemir – Um dia, chegou um professor da universidade, mandou um rapaz ir lá: “Ah, o professor mandou pegar contigo umas fotos do manejo”. Rapaz, eu não tenho foto para dar, não. Então, faça uma solicitação, diga quantas fotos ele quer e para que ele quer. Ele ficou com raiva de mim, e muita gente me critica por isso. Mas não é fácil; você tem um banco de dados, mas enquanto você facilita para alguém subir na vida, você fica na mesma. O mínimo que o rapaz devia fazer era se explicar. Porque não é do Ocemir, é da instituição, é da comunidade, é do projeto. Mas outros também vem pedir. Andréa – Vocês estão ensinando como é que tem de ser feito. Ocemir – Pois é, pedimos para mandar um documento e explicar... Já que ele é da universidade, é só enviar um documento dizendo quantas fotos precisa, que eu posso selecionar; mas ele precisa trazer por escrito. Andréa – Está ensinando o professor...

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Evento de encerramento do projeto: aldeias, equipes e relatos sobre conflitos, relações e demarcação da terra indígena Ocemir – Bom dia. Eu gostaria de convidar o seu Zé – tuxaua em exercício aqui na aldeia, porque o Juscelino não está – para fazer a abertura da reunião para a gente. Se mais alguém da comunidade quiser falar alguma coisa sobre a movimentação da comunidade, a expectativa, convido vocês da comunidade para fazer a abertura com a gente. Jucildo – Então, parente, bom dia aos parentes e a todos os presentes. [Cumprimenta os presentes na língua dos Kokama]. Graças a Deus, nós estamos hoje todos reunidos aqui. Fazendo a abertura dessa reunião, quero dizer que para mim é muito importante ver a comunidade recebendo esse evento como encerramento do nosso projeto, que veio apoiar a nossa área. Nós temos uma área de quatro aldeias, e fico muito contente de ver esse povo tão bonito. Que vocês sejam bem-vindos, desejo uma boa reunião para a equipe que está aqui. Espero que essa reunião seja muito proveitosa. Quem tiver suas dúvidas, pergunte. Se pudermos tirar as dúvidas, não vamos voltar com elas para casa. O Ocemir sempre falava dessa equipe, então, hoje é o momento de tirar alguma dúvida com eles se vocês quiserem. É isso. Ocemir – Queria que vocês falassem também como está a mobilização da comunidade, como estão sediando, a questão de alimentação. Jucildo – Hoje nós estamos desfalcados das mulheres, porque as mulheres estão empenhadas na cozinha, mas, no final do evento, a gente vai chamá-las para cá. A comunidade está toda empenhada no trabalho. Qualquer coisa, vocês podem ver comigo ou com o Irani, que a gente vai procurar ajudar. De lideranças,

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temos três pessoas: eu, que sou o professor aqui da aldeia; o professor Ronaldo, que está ali; e o professor Alair, que está carregando os pirarucus. Então, a gente está aqui, mas a comunidade está toda empenhada na organização desse evento. É só isso mesmo.

Pirarucus para exposição no evento de encerramento do Projeto no 472, janeiro de 2014. Foto: Toya Manchineri.

Ocemir – Uma salva de palmas! Gente, eu nem preciso me apresentar, vocês já me conhecem. A gente está recebendo hoje a equipe do PDPI: a Andréa, o Thiago e o Toya. Vocês tomaram a decisão de trazê-los em assembleia. Nós estávamos em assembleia, discutindo, e decidimos que gostaríamos de ter a presença dessas pessoas, nesse momento, hoje. Eu sinto falta de algumas pessoas ainda, que eram para estar aqui, mas

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que tiveram de ir para Tefé receber o seguro defeso dinheiro – que tem prazo para receber; se deixar passar desse prazo, perde. Como são pescadores, recebem o seguro defeso, que é um auxílio dado pelo governo. Isso desfalcou a população das comunidades hoje, mas estão presentes todas as quatro comunidades que pertencem à Terra Indígena Espírito Santo; tem um pouco de cada. Hoje, durante o dia, a nossa atividade é aqui, no Novo Progresso; e à noite, fica à critério da comunidade – a gente pode assistir a um filme; não sei se a comunidade vai fazer uma festa... Jucildo – Antes de começar a festa, a comunidade vai apresentar duas danças: a dança do mergulhão e a dança da sicuriju. Ocemir – Beleza. Está programado. Gente, nós temos uma pauta para seguir. Eu gostaria só que a equipe do PDPI se apresentasse para vocês, já que eu falava tanto dessa equipe. Mas eu falava mais do Thiago, que era com quem eu tinha contato. Eu o perturbava lá, e ele me perturbava aqui. Então, eu falei o nome dele muitas vezes para vocês, mas hoje temos mais dois componentes da equipe conosco. Depois do nosso batepapo aqui, eles vão avaliar, vão colocar outros pontos. Queria esse momento para apresentação. Uma salva de palmas para o pessoal do PDPI. Thiago – Então, primeiramente, bom dia a todos. É um prazer estar aqui; nunca tinha vindo na aldeia. Fico contente de ver todo mundo reunido. Vou só me apresentar, depois a gente entra com mais detalhes. Eu sou o Thiago; sou o assessor financeiro do PDPI, que tem uma equipe com mais pessoas – para deixar bem claro que tem outras pessoas por trás: a Sandra; o Fernando; o André; e a Iara; além do Toya e da Andréa, que estão fazendo parte desse trabalho agora. Andréa – Bom dia a todos. Agradeço também a recepção que a gente está tendo, a acolhida. Eu sou

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professora, sou pesquisadora, e agora estou como consultora da GIZ/PDPI, acompanhando esse projeto e conhecendo um pouco dessa história de vocês e desse esforço coletivo. Toya – [Cumprimenta na língua dos Manchineri] Bom dia, meus irmãos. Sou do estado do Acre, meu povo fica na fronteira do Brasil com o Peru, e fui contratado pela cooperação alemã, através da COIAB, para trabalhar a sistematização do PDPI. O PDPI é mantido por uma pareceria entre a cooperação alemã e Ministério do Meio Ambiente. Tem o KfW, o banco alemão, e tem uma equipe que trabalha dentro do PDPI, que faz toda a parte financeira, composta pelo Thiago, pela Sandra e pelo Fernando. Eles recebem os projetos, enviam recursos, analisam a prestação de contas etc., ou seja, toda essa parte financeira é uma contribuição da cooperação alemã. E tem a minha parte: eu fui contratado em 2011 para trabalhar todos os projetos e sistematizar as informações. Eu não analiso prestação de contas, não analiso projetos: nós contamos história! Eu e a Andréa, que há três meses foi contratada pela cooperação alemã para ajudar a gente a fazer um livro intitulado Diálogos e saberes. Esse livro pretende captar as ideias de vocês sobre o projeto que vocês desenvolveram, o ganho que a comunidade teve realmente etc. Alguns brancos valorizam mais a questão da prestação de contas, mas eu acho que o ganho social é importante. A prestação de contas também é importante; é bom a gente prestar contas direitinho, porque assim a gente recebe mais recursos. Mas o ganho social da comunidade ultrapassa a questão do recurso. A melhoria da qualidade de vida alcançada pelo trabalho é interessante. E é um grande prazer estar na comunidade de vocês. É a primeira vez que viajo por essas bandas. Muito obrigado pela acolhida.

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Equipe de coordenação do projeto durante evento de encerramento. Aldeia Novo Progresso, janeiro de 2014. Foto: Andréa Borghi.

Ocemir – Uma salva de palmas! Dando continuidade, eu gostaria de convidar nossa equipe de coordenação, que ajudou no decorrer da trajetória do projeto; foi essa equipe que não deixou as coisas se atrasarem. Ao contrário: a gente fez o possível para que as atividades fossem executadas como previsto. Queria convidar o Jucildo para que se apresente; e as pessoas de destaque, que apoiaram a gente: seu Birica, por favor, vem para cá; Sidney; Osório; Isaac; Diomir, que é colaborador do projeto; Paulo, que é técnico de pesca; seu Coisinha; Genival, que entrou recentemente na equipe, mas está colaborando muito com a gente nesse encerramento. Muito obrigada a todos, e quem quiser vir aqui na frente para fazer parte da equipe, será uma honra ter vocês. O Jorge, lá do Guariba, que também foi uma pessoa de destaque dentro do projeto, e não nos deixou sozinhos. Tem também o Juscelino, tuxaua da aldeia, que foi a Tefé. Essa equipe que

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segurou os desafios com a gente. Então, eu gostaria de pedir uma salva de palmas para eles. Eu passo a palavra para se alguém quiser falar alguma coisa, e no decorrer do dia vocês vão ajudando a gente a explicar o que aconteceu. Diomir – Oi, gente, bom dia. Não preciso me apresentar muito, vocês já me conhecem. Quero agradecer à comunidade Novo Progresso por nos receber mais uma vez, juntamente com a equipe do PDPI. Estou vendo aqui que hoje é um grande dia para a gente, porque é o encerramento do nosso projeto. Vamos dizer, assim, que nos sentimos realizados porque o projeto deu certo. Todo mundo se empenhou, e é uma coisa que acho a gente deveria dar continuidade. Eu quero agradecer a todos da comunidade, aos que vieram, e também aos que não conseguiram vir, mas que nas outras atividades sempre estavam presentes. Agradeço a vocês por tudo que a gente conseguiu aqui, através do projeto. Paulo – Bom dia a todos. Queria agradecer a todas as comunidades aqui presentes, as quatro comunidades; e em especial a comunidade Novo Progresso, que está sediando o evento. Nosso objetivo aqui, hoje, é participar do encerramento do projeto. É o momento de estarmos reunidos para saber do projeto. Hoje vai ser mostrado a vocês o que o projeto trouxe, o que surtiu efeito, o que foi negativo e positivo. Foi um projeto do qual eu participei, prestando assistência técnica às quatro aldeias; o projeto pagou a minha mão de obra. Foi em 2010 que comecei a trabalhar nas comunidades Novo Progresso, São Cristóvão, Guariba e Espírito Santo.

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Visita da equipe do PDPI à Comunidade Guariba, janeiro de 2014. Foto: Toya Manchineri.

Com certeza, eu acho que o projeto trouxe um grande resultado para essas quatro comunidades; vocês estão de parabéns, porque a partir do projeto, vocês começaram a incentivar a prática do manejo. Antes vocês não trabalhavam de forma legalizada, então veio o projeto, e vocês começaram a trabalhar de forma coletiva. As comunidades têm o manejo como alternativa de trabalho, renda e melhoria da qualidade de vida. Hoje o projeto está sendo encerrado, mas eu espero que as comunidades continuem esse trabalho. Porque dá para perceber, pelos dados coletados durante o desenvolvimento do projeto, que houve um aumento do potencial de pescado aqui na área da TI Espírito Santo. Não é porque o projeto vai terminar hoje, que vocês vão deixar de dar continuidade ao trabalho do manejo, porque isso só vai acabar se vocês quiserem, se vocês não trabalharem de forma sustentável. Porque o manejo é isso: controlar a espécie que está sendo comercializada durante o ano todo. Então, meu muito obrigado e, no decorrer do evento, a gente vai contribuindo.

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Também quero agradecer à equipe que coordenou o projeto, ao Ocemir, à equipe que está aqui, que coordenou o projeto. Eu vi, de uma forma transparente, que não foi necessário vir pessoas de fora para coordenar esse projeto. Hoje, se vocês conseguiram chegar ao final de um projeto, vocês são capazes de coordenar outros projetos que virão. Não houve fraudes, os recursos do projeto foram aplicados de acordo com o cronograma, então, hoje estamos aqui para ver e para que seja passado para vocês tudo o que o projeto proporcionou – as reuniões comunitárias, as capacitações que vocês receberam, tudo isso foi através do projeto. Meu muito obrigado. Seu Raimundo − Parentes, bom dia para vocês. Para quem não me conhece, meu nome é Raimundo Rodrigues Coelho, eu sou tuxaua lá da comunidade São Cristóvão. Eu hoje vim para esse evento satisfeito com os parentes e as notícias que a gente tem acompanhado com o encerramento do nosso projeto. E eu espero que, depois desse projeto, venham outros melhores ainda do que esse que aconteceu para nós. Só isso que eu quero dizer. Muito obrigado. Participante – Bom dia. A maior parte do pessoal também me conhece. Eu sou tuxaua lá da comunidade Espírito Santo. Ontem a gente teve uma reunião lá na aldeia, e para mim é uma honra estar aqui apresentando novamente. É um prazer chegar o final desse projeto, após dois anos de trabalho. Graças a Deus chegamos ao final e correu tudo bem. Espero que o outros tragam coisas melhores para nós. E é só isso mesmo que tenho a dizer. Participante − Bom dia a todos. Todo mundo já me conhece; somos vizinhos. Só quero dizer para vocês que a gente está vivendo hoje o derradeiro dia de um trabalho que a gente realizou durante dois anos. Foi um ótimo trabalho para todos; vocês são testemunhas disso, do que aconteceu, do movimento.

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É um trabalho, como o Paulo colocou aí para a gente, que só acaba se a gente quiser. O manejo acabou por unir as comunidades; ele veio para unir o povo dentro das comunidades. Porque, como eles já falaram, as reuniões traziam a união; e o manejo acabou de unir o povo em cada comunidade. É o que se vê. É como eu estava dizendo há uns poucos minutos ali: hoje você consegue pegar um peixe na hora e bater uma foto, antes não havia isso. Hoje, a gente já tem certeza: “Vá buscar o peixe logo!” Porque ele já estava preso. Então, isso é um trabalho muito bom que a gente conseguiu aplicar dentro do grupo. Antes de projeto, a gente já vinha trabalhando nisso, mas o projeto nos ajudou a completar esse trabalho. Estamos buscando uma caminhada melhor para esse ano de 2014. Se Deus quiser, vamos nos desenvolver mais, participar mais, e se for possível, a gente sai para fora para buscar mais soluções para os parentes que estão aqui. Que fique o exemplo. Eu estou aqui para o encerramento, e para contribuir com algumas perguntas também. Muito obrigado. [palmas] Jucildo – Bom dia. Meu nome é Jucildo de Carvalho Neves. Sou uma das pessoas que ajudou no projeto, trabalhando como voluntário. Eu também era professor aqui na comunidade e, com a chegada do projeto, fui remediado para Jutaí. Não me acostumei – porque, sabe como é, índio para acostumar em cidade é ruim mesmo! Graças a Deus, hoje já estou voltando para a aldeia. Então, como os parentes falaram aí, o projeto trouxe essa união para as quatro aldeias. Há dois anos, essa união não existia. Os parentes moravam numa área só, mas eram rudes. Índio para se unir, era só um com outro, quando se encontrava. Então, graças a Deus, a gente trabalhava numa frente, sempre convocando os parentes para reunião, pois é conversando que a gente se entendia. E hoje estamos chegando num momento de conclusão, como já falaram, de encerramento. Creio que o projeto já deixou um caminho, então, hoje basta

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as comunidades seguirem o caminho que já está aí, com seu benefício social. Creio que a renda que os parentes não tinham agora já está chegando no bolso deles todo ano. Creio que isso já melhorou a qualidade de vida dos parentes nas quatro aldeias. Então surtiu efeito. É só isso mesmo. Muito obrigado.

Pirarucu sendo levado para a exposição durante evento de encerramento do Projeto no 472. Foto: Toya Manchineri.

Jorge – Quero dar bom dia a todos. Meu nome é Jorge Ferreira Carvalho. Eu sou tuxaua da comunidade Guariba, e estou aqui também para compartilhar com vocês nessa reunião, e agradecer à equipe que coordenou nosso projeto – o Ocemir, o Jucildo, o Isaac, toda a equipe – e à equipe do PDPI também. É um prazer hoje estar aqui vendo vocês na nossa frente, pois antes não tínhamos isso – só sabíamos que existia o PDPI porque o Ocemir comentava com a gente. Acredito que esse projeto teve o apoio de vocês para chegar até nós, e foi uma coisa que nos trouxe só boas coisas, nos

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ajudou muito, e hoje está deixando o caminho para que cada um de nós continue seguindo na busca por mais conhecimento. Esse projeto foi desenvolvido na comunidade – onde antigamente não se ouvia falar de projetos, ninguém tinha conhecimentos sobre projetos ou sabia trabalhar com isso – e hoje estamos aqui finalizando um projeto que deu muito orgulho para as todas as comunidades envolvidas. Ele trouxe união para as quatro aldeias que convivem nessa terra indígena. Hoje as quatro aldeias se encontram aqui nessa reunião; é algo grandioso que estamos vendo. É só isso mesmo que eu queria dizer. Muito obrigado. Ocemir – Vamos desfazer a equipe, mas vocês podem ficar à vontade. Vocês vão contribuir com a gente no processo durante a reunião; e a palavra ainda está franqueada caso alguém da assembleia queira falar alguma coisa. Genival – Bom dia a todos. Meu nome é Genival, faço parte da comunidade vizinha, aqui do acordo de pesca, e já faz quatro meses que faço parte da liderança da ACJ, ou seja, estou há quatro meses trabalhando voluntariamente na ACJ. Na semana passada, eu tive o privilégio de assistir e ajudar no encerramento desse projeto, na área da Terra Indígena Espírito Santo. Juntamente com o Ocemir, visitei as quatro aldeias. Fiquei muito animado e me senti privilegiado também por estar com os irmãos e ouvir todos falarem que o projeto foi bom, que foram beneficiados com os flutuantes, os materiais, os lanches etc. É um prazer estar aqui com vocês. Obrigado. Ocemir – Nós convidamos o poder público municipal – convidamos a Prefeitura, a Câmara, as secretarias, as associações parceiras –, mas hoje de manhã o celular não estava funcionando mais lá em Jutaí. Como nós chegamos à tarde, não tive mais contato com eles,

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então, provavelmente, não vão poder vir. Mas tem muita gente lá querendo vir, querendo participar com a gente; o problema era o diesel. Eles garantiram que vinham, o secretário de pesca também disse que viria. São pessoas, entidades, com as quais a gente contava, porque daqui para frente, teremos uma caminhada a mais, como vocês falaram. Não é porque o projeto se encerra hoje que amanhã todo mundo vai brigar, vai comer o outro. Não. Temos que dar continuidade. Mas quem deve se preocupar com uma comunidade, uma área, um povo, se não o poder público do município? Nós elegemos, todo o ano de eleição, pessoas para nos representar, para nos dar esse apoio na organização dessas comunidades. Mas hoje era para eles conhecerem nossa realidade, como ela funciona, como nós trabalhamos, o que nós investimos no município. O investimento de R$ 158 mil do PDPI para o município de Jutaí. O dinheiro para o manejo é para o município de Jutaí, mas os caras não enxergam a gente como pessoas, como organização, porque não querem, não têm compromisso. Então é bom que as famílias, as pessoas, as comunidades entendam que nós somos capazes, muito mais do que eles. Nós fazemos hoje – Jucildo, eu garanto isso, não sei se vocês concordam – muito mais que o vereador que está lá na Câmara ganhando um salário bom. Nós trabalhamos hoje com 54 comunidades no município de Jutaí. O Jucildo é membro da diretoria da ACJ, e nós atendemos cerca de 4 mil famílias, nós damos assistência ao município em relação ao manejo. Nós temos quatro setores, em 54 comunidades, além desse projeto aqui, que era em uma área isolada. Nós temos grande respeito e consideração, nós sempre reunimos na assembleia da associação ACJ cerca de 110, 120 pessoas, e conseguimos fazer o trabalho. Então, eu acredito que nós fazemos mais do que eles, porque é a economia das comunidades que

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está em jogo, e é uma economia muito forte na questão do manejo. Eu tenho uma apresentação de 2013, muito bacana, com os resultados. Às vezes, eles falam: “Mas é a ACJ quem faz.” Não! Quem faz é a comunidade, a gente dá uma parcela de contribuição, e eles deveriam dar muito mais. Mesmo assim, eles são os representantes, e a gente vai respeitar, e buscar aquilo que for possível. Então, nesse momento, eles fazem falta no meio da gente, não é porque eles têm que dar as coisas para a gente, ao contrário, é porque se entende que a Prefeitura, a Câmara, as instituições de base, elas têm que comentar isso. A Prefeitura não é deve fazer o manejo, mas ela tem que ajudar a buscar meios de apoiar. Mas eu vou aproveitar esse momento para falar um pouco de como começou essa questão da Terra Indígena Espírito Santo. Eu não sei muito não, mas do pouco conhecimento que eu tenho, a comunidade do Novo Progresso não existia aqui, ela não existia quando começou esse processo de demarcação da terra indígena. O Guariba, só tinha duas famílias, mas agora que tem uma comunidade melhor. Quem começou o processo em torno da Terra Indígena Espírito Santo foram os moradores da comunidade Espírito Santo, em especial: o Tio Vitor, que está aí também; o tio João; meu pai; o Xico; o Antonio Rodrigues, que é meu padrinho; o tio Valter; e o Francisco Cordeiro, que já morreu. A área indígena começou ali, por causa de uma preocupação com um conflito que havia com o pessoal de Porto Alegre. Aqui era cheio de placas, eles expulsavam o pessoal. Por isso, houve uma mobilização para que os moradores passassem a se autoidentificar como indígenas e a requerer uma área própria, para que as pessoas pudessem ter uma garantia de vida. Nós não tínhamos esse contato com a comunidade São Cristóvão, não havia esse diálogo, e a gente nem sabia quem morava lá em São Cristóvão. Lá era uma

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propriedade do seu Davi, e era ele quem determinava as regras, não é, seu Birica? Seu Birica sabe disso. Ele que mandava os caras cuidar dos lagos; na época só ele ia lá pescar. Aquele que matasse, lucrava, aquele que não sabia matar, saia com as mãos vazias do mesmo jeito. Então aconteceu uma viagem do papai, do seu Benjamin e – quem era o outro, papai? Seu Silvino – Marino Ramires. Ocemir – Foram levar um documento para dar entrada na solicitação da Terra Indígena Espírito Santo. Esse documento foi feito em Jutaí – eu lembro, eu fiz parte dele juntamente com o tio João; na época nós fizemos o levantamento populacional, e deu que havia 64 indígenas vivendo ali. Eu lembro desse dado, tio João sabe disso também, pois foi ele quem anotou. E quem fez o documento de solicitação foi o Antonio Cândido. Nós levamos lá no Movimento de Educação de Base (MEB) – não é, pai? –, digitaram, e o papai levou de canoa, daqui até Fonte Boa. De lá não sei como foram, não lembro. Seu Silvino – Aí nós pegamos o recreio Benjamin. Ocemir – Lá em Fonte Boa é que conseguiram passagem; não sei quem era o prefeito de lá, mas deram uma passagem para eles. Aí foram e deram entrada. Sofreram fome por aí, sei que voltaram, um veio na frente, o outro veio atrás. E aqui não existia a comunidade Novo Progresso ainda, e o Juscelino começou a mobilizar as pessoas. Nós ajudamos a roçar, ali em cima, para fazer a comunidade Novo Progresso. Nós até comemos um peixe-boi, que mataram nesse dia. Mas a área ainda não estava legal. Quando as coisas foram se consolidando, a Funai despertou para o fato de que havia um povo aqui, e a partir daí o Juscelino organizou a comunidade, Guariba também se organizou... Participante – Guariba se organizou agora, mais recentemente.

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Ocemir – Mas a Novo Progresso foi a que se organizou mais rápido depois. A Espírito Santo já era uma comunidade muito antiga. Então, essa história da criação da terra indígena começou a partir de uma preocupação com um conflito. E quando a terra indígena foi demarcada – antes de ser demarcada veio uma equipe de antropólogos, que passou em todas as comunidades –, já tinha a comunidade Novo Progresso, e estava sendo feito um levantamento populacional, para ver como era a situação das famílias e tal. Foi aí que se depararam com a manipulação do Davi Coelho lá na comunidade São Cristóvão. Alguém de lá disse que não queria ser índio, e os caras lascaram isso no relatório: “Você não é índio, tudo bem. Ninguém vai obrigá-lo a ser índio. Você está aqui; mas a terra vai ser dos índios”’. E mandaram o relatório. Quando a resposta retornou, após a terra ter sido demarcada, as famílias de lá teriam que sair – não é, seu Birica? Teriam que sair, porque não eram indígenas; e a terra era indígena. E aí se deu um protocolo muito grande, que envolveu o Copiju. O Copiju defendeu muito isso, não é, Jucildo? O Copiju defendeu a permanência dessas pessoas; mas tem gente ainda lá na comunidade São Cristóvão que pode ter de sair a qualquer tempo, porque houve um processo na justiça mesmo, e as pessoas não compareceram. A gente está deixando ficarem lá porque são parentes, colegas, é gente da comunidade; mas no dia que a justiça vier, a gente não vai ter como socorrer. Ainda corre esse risco de alguém ter de sair de lá, não é, seu Birica? Tem uns que não, uns já estão aqui. Tem uns que ainda precisam ajustar alguma coisa com a justiça, não é com a gente. Por nós, vocês vão viver lá até morrer, mas tem momentos em que a justiça ataca, e quando ela vem, pesa. Então, ainda tem esse risco de algumas famílias de São Cristóvão precisarem sair, porque não foram identificados como indígenas. Mas isso é só um pouco do relato, eu não sei bem, porque já sou de uma geração mais nova, mas a

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demarcação da TI Espírito Santo passou por esses começos. Hoje nós estamos no meio da história, e ainda tem muita coisa pela frente. Então, no decorrer desse tempo, antes da demarcação, houve um conflito grande com Porto Alegre para não demarcar a área, vocês lembram disso. A Polícia Federal foi lá na comunidade, vocês foram demarcar a área, foram fazer o limite. Então, hoje, eu sinto que as comunidades estão independentes; o que resta agora é viver: cuidar, buscar meios de apoio. Mas, eu falava outro dia numa reunião, numa conversa com Chico Romão, que aqui a vida de vocês está bem melhor que de outras comunidades. A gente conhece todas as comunidades do município de Jutaí. Nós conhecemos de fazer reunião, de festa, de brincadeira, de raiva... Já fomos muitas vezes na delegacia com os caras lá, para não deixar prender os invasores. O delegado já chegou a dizer assim para mim: “Ocemir, a gente prende o cara ou não?” Não, não prende ele ainda. Da próxima vez pode prender. Mas quem sou eu para mandar prender? Mas o cara estava pedindo o meu aval. Então: “Não, não prende; mas aqui ele vai se comprometer a não vai praticar mais.” Mas agora, graças a Deus, tem o secretário de pesca, tem o de meio ambiente, agora eles resolvem essas coisas lá. Então, essa questão da TI Espírito Santo tem um pouco dessa história, mas eu não sei contar bem o começo. Não sei se meu papai quer falar alguma coisa, eu contava com a presença do tio Valter, meu padrinho Antonio e do tio Vitor, que fizeram parte disso. Vocês podem ficar à vontade, é um pouco do relato. Hoje estamos vivendo uma nova era.

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Visita projeto 472 - Jutai - AM, aldeia Espírito Santo Foto: Toya Manchineri

Seu Silvino – A todos bom dia. Aqui me apresento como primeiro tuxaua da comunidade do Espírito Santo. Eu trabalhei, a bem dizer, quase como voluntário. Venci como tinha que vencer. Trabalhei como trabalhei. Quando foi o momento de resolver esse caso, fizemos uma reunião, e decidirmos ir para Manaus pedir a demarcação da terra. Passamos um mês em Manaus e conseguimos resolver tudo, só que não pude pegar o material. Eu não sabia como era. E tinha que pegar a assinatura do chefe de posto. Quando eu cheguei lá, me disseram: “Olha, está aqui seu material todinho” – eram dois motores Yamaha, um de 5,5 Hp, e um de 8 Hp; dois fornos; barca de pesca completa... Parecia que estava tudo pronto para mim. Aí me disseram: “Agora o senhor sobe, vai buscar essa assinatura lá em Betânia, ou em Tefé”. E: “Se você resolver, você vem buscar seu material”. Mas quando eu cheguei na minha comunidade, nenhum dos meus quiseram acreditar em mim. Quando eu pedi uma cooperação, ninguém disse nem

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que sim, nem que não – e não era muita coisa que precisava, era uma lata de gasolina para repartir. Eu comprava meia lata de gasolina e usava o dinheiro que eu tinha para ir para Betânia e para baixar. Mas quando eu cheguei lá, ninguém falou nada. Aí eu não quis também. Pensei: “Eu não vou pegar esse material. Se precisarem, que peguem esse dinheiro para poder ir pegar essa assinatura.” Depois de passar mais de um mês, eu fui para São Sebastião. Quando cheguei lá, onde todo mundo me conhece, comecei a olhar o material e vi que tinha meu nome no material. Então, um cara que me conhece falou: “Olha, está aí o seu material que você não foi buscar. Por que você não foi buscar?” Não busquei porque não teve cooperação. Fiquei olhando os motores, os fornos etc. Tudo que era para eu ir buscar e perdi. Aí fiquei trabalhando aqui. Quando eu cheguei, fui fazer uma reunião: nenhum dos meus queria acreditar em mim. Depois de três domingos é que começaram a acreditar, e eu ainda falei: “Hoje eu estou de pé, não estou sentado, não! Quando eu peguei essa responsabilidade, foi para trabalhar, não foi para brincar, não!” Trabalhei aquele ano na agricultura, nós fizemos nove roçados. Trabalhei como nunca tinha trabalhado. Mas eu venci. Aí Porto Alegre começou a nos cutucar. Foi encrenca atrás de encrenca. Até que um dia a Polícia Federal chegou lá e perguntou: “Há quantos anos vocês moram aqui?” E Porto Alegre disse: “Eu estou há 50 anos!” Aí eu disse: “Ele está mentindo”. Aí ele se abaixou. O policial perguntou: “Por que ele está mentindo?” Eu respondi: “Quando esse cara chegou aqui, ele era desse tamanhinho, e eu já era pai de três filhos. Por isso que ele está mentindo”. Aí apagou-se Porto Alegre nessa hora. Então, eu trabalhei quatro anos, quando saí, entreguei a outros, e até hoje não tenho mais vontade como tinha. Só isso. Obrigado.

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Alguns dados sobre gestão, parcerias e resultados do projeto Ocemir – Vamos ver uma apresentação de slides agora. Depois vocês vão falar. Vão poder agradecer, vão poder criticar a execução do projeto, conforme a responsabilidade de cada um de vocês no projeto.

Participantes do evento de encerramento do Projeto no 472, janeiro de 2014. Foto: Andréa Borghi.

[Inicia a apresentação dos slides] Então aí nós temos “unidade de manejo”, na Terra Indígena Espírito Santo, município de Jutaí, Amazonas. Por que unidade de manejo? Porque a unidade de manejo tem um complexo de lagos, de comunidades, de pessoas – então ela é um complexo. Considera-se unidade de manejo porque ela tem esses componentes: tem as comunidades; tem os lagos e seus potenciais; e tem as pessoas que moram ali, que trabalham e cuidam, que precisam. Então é uma

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unidade de manejo, que é a Terra Indígena Espírito Santo, que é uma terra federal, vocês sabem disso. O nome do projeto, que recebeu apoio nesses três anos, do final de 2011 até 2013, e entrando no primeiro mês de 2014, é: Projeto Proteção da Terra Indígena e Manejo de Recurso Pesqueiro. O número do projeto é 472. O valor do projeto vocês já sabem: R$ 158.479,94. É o que a gente está pretendendo prestar contas. Período de execução: final de 2011 a 2013. Seria o período de um ano, mas como houve vários atrasos de repasse, a gente ainda está trabalhando em 2014. Mas, felizmente, a gente teve um acerto, o que ajudou muito. Sobre a coordenação do projeto. Quem coordenou o projeto? Eu coloco meu nome ali, como coordenador; o nome de Jucildo de Carvalho Neves, aqui da comunidade Novo Progresso, que participou com a gente na coordenação do projeto. Colocamos também os nomes do: Juscelino, que também deu bastante ideia e ajudou, como membro da equipe, porque foi pessoa de destaque da comunidade; Isaac, auxiliar do projeto; e Jorge, que sempre ia lá com a gente, perguntava, ajudava, falava como poderia ser. Então, são pessoas que conseguiram ajudar a gente a vencer os desafios do projeto. O seu Birica também, lá da comunidade São Cristóvão – o seu Birica nunca nos deixou sozinhos nessa luta. Obrigado, seu Birica. E o Sidney, que também fez parte desse diálogo dentro da diretoria. O Diomir, que é membro voluntário dentro do projeto, é colaborador. O Antônio Cândido, que foi o assessor local nosso, esse cara foi ponto-chave dentro do projeto. Porque o Zuza é nosso assessor, mas é externo; a gente precisava de um cara para estar junto, na hora que a gente precisasse de um documento mais técnico. A gente não tem essa habilidade, não é, Jucildo? Ele estava sempre presente nos momentos para socorrer a gente, participou de várias reuniões, aqui e lá no São

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Cristóvão, Espírito Santo, em todos os lugares por aí, ele deu esse apoio. E o Paulo Inema Paiva, que foi o técnico contratado pelo projeto para trabalhar a questão do manejo, para fazer o levantamento do estoque junto com as comunidades; e também a capacitação, através da ACJ. Todo o levantamento que vocês vão ver daqui para frente tem o apoio técnico do Paulo, técnico em pesca. Então, são essas pessoas que eu queria mencionar, que são as pessoas de coordenação do projeto, junto com a gente. Acerca das comunidades, famílias e populações atendidas, nós fizemos um levantamento populacional para hoje podermos dizer aqui quantas pessoas foram atendidas pelo projeto. Nós fizemos um levantamento, um cadastramento – e ainda fomos criticados por outras comunidades, recebemos uma denúncia de que estávamos tirando registro falso para os índios... [risos]. Mas o objetivo era apresentar isso no final do projeto. Na comunidade Espírito Santo, são 18 famílias e 128 pessoas; na Guariba, 13 famílias e 112 pessoas; na Novo Progresso, 36 famílias e 160 pessoas; e na São Cristóvão, tem 17 famílias, com 121 pessoas. No total, são 84 famílias e 521 pessoas. Claro, tem algumas pessoas que já saíram da comunidade. Aqui nós estamos somando todas as pessoas, crianças, jovens e adultos; só não estão aqueles que estavam na barriga ainda, mas depois devem aparecer! Então, essa foi uma preocupação nossa, de apresentar que o projeto veio atender a essas famílias. Então, nós tínhamos que apresentar o número: quem ele está atendendo?

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TABELA 1 - Resumo da pesca de manejo (2011-2013) Descrição do pescado

Famílias beneficiadas

Pessoas beneficiadas

Capturado (unidade)

Capturado (Kg)

Valor (R$)

Piracuru

84

521

1.651

80.615

416.678,50

Couro do pirarucu

32

156

475

--

38.000,00

Tambaqui

84

521

--

13.421

68.530,75

Total Fonte: Coordenação do Projeto no 471.

Aqui nós colocamos também as entidades parceiras que a gente procurou para apoiar o projeto e participaram com a gente, direta ou indiretamente. Nós tínhamos como proponente do projeto o Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju), que é proponente do projeto. Tínhamos também o PDPI, que é o financiador do projeto Thiago – O financiador é o KfW. Ocemir – Pois é, mas veio pelo PDPI, única fonte financiadora no Brasil. Nós colocamos a ACJ, que coordena o manejo do município, mas eu faço parte da diretoria com o Jucildo e, onde quer que a gente esteja, a gente é ACJ e é o projeto. Então, a ACJ é a alma do negócio também, juntamente com o projeto. E a Proderam/Banco Mundial. A Proderam é a alma do negócio dentro do manejo no município de Jutaí. A Funai dá anuência para nós capturarmos o pirarucu. E o Ibama, pessoal com quem a gente tem grande afinidade, dá autorização geral ao município para pescar, pela qual as quatro comunidades aqui estão contempladas também. A autorização, direito de transporte, orientações sobre manejo. E a empresa Cândido Assessoria, que é o Cândido, de quem eu já falei. E a Secretaria de Estado para os Povos Indígenas (SEIND), através do Zuza, que contribui também, em

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523.209,25

todas as dificuldades, e também foi útil dentro desse processo. A gente entende que ele atende a outros projetos, da gestão passada, da Secretaria Municipal de Produção. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi/ Tefé) ministrou dois cursos: de agente ambiental e de associativismo, que estava previsto no projeto. E a Associação dos Produtores Rurais de Jutaí (Asproju), foi parceira nossa – num momento que não havia transporte, a gente usou algumas vezes a baleeira da Asproju, e eles participaram de algumas reuniões com a gente. Então, essas foram as entidades parceiras que apoiaram a gente. Ocemir – [...] para fazer uma análise do projeto para todos nós, e ver o que eles têm para falar para a gente, o que eles acharam do nosso trabalho, da vida da comunidade, da vida das pessoas, se nós acertamos, se erramos. A gente errou muito, ainda erra – a gente nunca é 100%, mas o que é possível fazer a gente faz, e o que foi possível fazer, nós fizemos.

SUBPROJETO AUMENTAR A QUANTIDADE E QUALIDADE DA PRODUÇÃO ARTESANAL DAS MULHERES INDÍGENAS KAXINAWÁ (No 179)

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Maria Rosilene Kaxinawa produzindo um desenho Sei Kate Hina, Tarauacá/AC. Foto: Raimunda Kaxinawa.

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Proposto pela Associação das Produtoras de Artesanato das Mulheres Indígenas Kaxinawá de Tarauacá e Jordão (APAMINKTAJ), o projeto envolveu várias comunidades Kaxinawá da Praia do Carapanã, do Rio Jordão, da Terra Indígena Seringal Independência, da Terra Indígena Ashaninka/Kaxinawá do Rio Breu, da Terra Indígena Kaxinawá do Humaitá e da Terra Indígena Kaxinawá, no Acre. Seu período de execução ocorreu entre 2005 e 2006, partindo de um orçamento aprovado de R$ 84.268,00, articulado à linha “valorização cultural”. No projeto apresentado ao PDPI (2004), e em seu relatório final (2006), a história de sua elaboração conta sobre a importância da tecelagem entre os Kaxinawá, que se autodenominam Huni Kui. A criação do projeto esteve ligada à realização de assembleias gerais de mulheres, às trocas com o departamento de mulheres da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), e à participação de mulheres kaxinawá em oficinas de treinamento e produção artesanal. Duas situações chamam atenção nesses documentos. De um lado, a indicação de que as técnicas tradicionais de confecção de artesanato em algodão seriam muito demoradas e dolorosas para as mulheres, havendo um desejo expresso pelo projeto em adquirir e aprender o manuseio de equipamentos como descaroçador, batedor e fiador de algodão, que facilitariam o processo para as mulheres. De outro lado, havia também a preocupação de fortalecer a importância e origens culturais da tecelagem kaxinawá e dos desenhos kene, marcas importantes da identidade Huni Kui. A entrevista abaixo foi concedida por escrito, via e-mail, em comunicação entre Toya Manchineri e as coordenadoras do projeto, Judite Kaxinawá e Raimundinha Kaxinawá, em janeiro de 2014.

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Contando a história e a participação no projeto Toya – Qual sua participação no subprojeto? Em que momento essa participação aconteceu? Judite e Raimundinha – Nossa participação se deu no acompanhamento de longa duração e dividida em etapas. Acompanhamos um coletivo de mulheres huni kui a um curso que teve por objetivo receber informações sobre o trabalho na área de sustentabilidade e sobre como gerar sua própria renda. A primeira etapa do projeto consistiu na atividade de capacitação de mulheres indígenas, realizada pelos técnicos do PDPI. A segunda etapa foi a preparação de carta consulta para: aquisição de material de construção e manutenção; alimentação; reformas; prestação de serviço e transportes. A terceira etapa se deu na Oficina de Capacitação de Mulheres Huni Kui, realizada na cidade de Tarauacá. A oficina foi ofertada por 12 mestras em artesanatos huni kui, que tiveram o dever de repassar as tradições para as jovens por meio da oralidade. Essa participação se deu entre os anos de 2005-2006. Toya – Como contar a história do subprojeto? Ele tem um nome entre as comunidades? Judite e Raimundinha – Houve, nos últimos anos, principalmente quando estávamos implementando o projeto, um grande avanço no reconhecimento e na divulgação dos artesanatos de mulheres indígenas da região de Tarauacá e Jordão. Anteriormente, nosso artesanato não era valorizado como cultura local, tínhamos muitas dificuldades para realizá-lo. Entretanto, o desafio que se coloca e se colocou naquele momento foram os entraves da dificuldade de acesso às aldeias e a falta de parcerias, bem como de apoio dos governos municipal e estadual.

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Com o projeto, tivemos a oportunidade de ser capacitadas e produzir mais artesanatos, bem como abrir nosso próprio negócio com base na sustentabilidade de nossos recursos naturais e dar continuidade ao nosso trabalho com as mulheres huni kui. Nosso projeto ficou conhecido na aldeia como “o projeto do PDPI”, porque não tínhamos outro investimento naquele momento e porque foi o único projeto aprovado para a compra de equipamentos para tecelagem. Toya – Como surgiu a ideia do subprojeto? Que práticas e/ou atividades precederam o projeto? Judite e Raimundinha – O projeto, a princípio, surgiu da necessidade de aumentar a qualidade da produção artesanal das mulheres kaxinawá, com o objetivo de aprimorá-la para um mercado sustentável e de qualidade. A atividade que precedeu o projeto consistiu numa Oficina de Capacitação de Mulheres Indígenas, realizada pela Coordenadoria de Agroextrativismo do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Essa oficina foi realizada no município de Tarauacá, com participação de 30 jovens Kaxinawá, e teve como objetivo o resgate e a revitalização da cultura huni kui por parte de alguns jovens. Sobre os técnicos do MMA, eles não estiveram presentes na capacitação, pois esta parte de repassar as tradições para as jovens coube às mestras anciãs. O MMA teve participou com o financiamento integral do projeto. Apresentamos relatório final e a prestação de contas. E, como resultados finais, tivemos o aprendizado das jovens Kaxinawá, pois além de aprenderem a tecer, aprenderam a confeccionar com miçangas e sobre as pinturas corporais. Toya – Que momentos e situações mais significativas de sua experiência poderiam indicar? Por quê?

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Judite e Raimundinha – O que consideramos mais significativo na nossa experiência com a realização do projeto foi o resgate cultural. Com esse resgate, tivemos a oportunidade de ultrapassar a densa barreira da incomunicabilidade e tornar acessível a um público mais amplo um pouco do que se produz no âmbito das culturas Kaxinawá. Mas isso somente se efetivou por meio da capacitação dada pelo projeto, assim, é essa capacitação que podemos indicar, pois, pensamos que esse tipo de capacitação é relevante para as comunidades. Toya – Quais as maiores dificuldades enfrentadas? E quais as principais vitórias alcançadas? Judite Kaxinawá – Tivemos a priori diversas dificuldades, mas as principais foram: i) compra de material, pois no momento que fizemos o projeto foi aprovado um determinado valor, mas, após a aprovação, os preços das mercadorias e materiais já tinham aumentado, então tivemos que reajustar os valores; ii) deslocamento das lideranças da aldeia para a cidade, pois, quando convidamos uma liderança dentro das comunidades, a liderança somente viaja com toda sua família, então, tivemos que fazer um novo orçamento para a alimentação e manutenção desses convidados na cidade. Com relação às vitórias alcançadas, tivemos como resultados positivos a compra dos projetos e sua distribuição nas comunidades kaxinawá.

Experiência e pontos de vista: movimento, terra indígena e comunidades Toya – Do ponto de vista da organização e do movimento indígena, o que a experiência do subprojeto significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados?

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Judite – Do ponto de vista da organização e do movimento indígena, o projeto teve um marco significativo, pois teve a participação da comunidade Huni Kui em todas as reuniões e em todas as decisões do projeto. Fizemos a convocação das mulheres kaxinawá de Tarauacá e Jordão de maneira geral. Com relação aos desafios e aprendizados, podemos registrar que foi uma experiência única com o PDPI, pois, até o momento, tivemos somente esse projeto junto ao PDPI. Toya – Do ponto de vista da terra indígena, o que essa experiência significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados?

Elena e Eugênia Kaxinawa na sede da APAMINKTAJ, Tarauacá/AC. Foto: Raimunda Kaxinawa.

Judite – Do ponto de vista da terra indígena, essa experiência foi uma oportunidade de melhorar a qualidade do artesanato em função dos novos equipamentos que foram distribuídos nas aldeias. O desafio foi o fato de termos solicitado uma contrapartida do estado do Acre, através da antiga Secretaria dos Povos Indígenas, visando à liberação

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de um técnico para ministrar uma oficina para as mulheres huni kui. A priori, essa solicitação tinha sido autorizada, porém, na data prevista, nos foi enviado um novo documento alegando que isso não seria mais autorizado. Portanto, solicitamos um técnico ao Sebrae/ AC, que nos cedeu um técnico para ir até a cidade de Tarauacá. Para finalizar, o aprendizado que tivemos foi que as mulheres kaxinawá se tornaram multiplicadoras dos conhecimentos tradicionais, e isso foi uma experiência única. Toya – Do ponto de vista das comunidades/aldeias, o que essa participação significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? Judite e Raimundinha – Do ponto de vista da comunidade, foi significativo, pois foi representou uma oportunidade relevante que as mulheres huni kui tiveram, já que muitas delas nunca tinham se deslocado da aldeia para a cidade. Essa foi a primeira experiência de algumas dessas mulheres. Obtivemos uma participação satisfatória das anciãs – as mestras – e das jovens; foi uma conexão de saberes entre elas. Os aprendizados que podem ser registrados foram a técnicas aprendidas para aprender a manejar um tear tradicional e um tear não tradicional; essa experiência foi marcante para as mulheres. Ressaltamos que não houve resistência e a introdução do tear não tradicional foi muito bem recepcionada, já que se tratava de uma prática nova para facilitar a produção do artesanato, posto que, até os dias atuais, as mulheres huni kui utilizam o tear tradicional. A utilização do tear não tradicional veio auxiliar a confecções das peças de algodão, facilitando nosso trabalho na tecelagem. Toya – Do ponto de vista das relações com o Estado, o que essa participação significou? E com a prefeitura municipal? Com o governo do estado? Com o governo federal? Que desafios e aprendizados podem ser registrados?

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Judite e Raimundinha – Não tivemos a participação e o apoio da prefeitura municipal nem do governo do estado. Tivemos o financiamento do projeto por meio do PDPI, e pedimos apoio e contrapartida ao Sebrae/ AC, além do esforço da própria comunidade e da associação. Do nosso ponto de vista, poderia ter sido muito mais proveitoso para a comunidade, pois seria uma parceira relevante para ambos, e poderíamos até ter tido melhores resultados. Seria possível envolver a Funai, o governo de estado e a prefeitura, assim como seria conveniente que estas instituições estivessem mais integradas conosco no momento de realização do projeto. Infelizmente, não foi possível fazer essas parcerias; até tentamos, mas nos foi negada. Toya – Há outros parceiros/agentes que tiveram papel significativo? Judite Kaxinawá – Sim, o Sebrae/AC, nosso parceiro à mais de dez anos, além de ser nosso principal aliado na divulgação nacional e internacional de nossos artesanatos, tem sido nosso principal financiador nas feiras de artesanatos pelo Brasil. Toya – Houve pessoas, indígenas e não indígenas, que tiveram papel marcante para a realização do subprojeto? Judite e Raimundinha Kaxinawá – Alguns indígenas tiveram papel relevante para a realização do subprojeto, como o senhor João Carlos da Silva Keãn, que era coordenador da Organização dos Povos Indígenas de Tarauacá e Jordão (OPITARJ) – hoje essa organização não existe mais. O João Carlos foi uma peça fundamental para a concretização desse projeto, foi a pessoa que incentivou as mulheres huni kui de Taraucá a começarem a escrever seus primeiros projetos para que tivessem autonomia e começassem a divulgar seus artesanatos, sem precisar dos homens huni kui. Foi a partir daí que surgiu a APAMIKTAJ, uma associação

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somente de mulheres e com projetos elaborados por mulheres.

Acertos, erros, mudanças e novas perspectivas

Laurita Marina Kaxinawa, na sede da APAMINKTAJ, Tarauacá/AC. Foto: Raimunda Kaxinawa.

Toya – O que foi bom e deu certo no subprojeto? Por quê? O que não foi tão bom, e não deu certo? Por quê? Comente as mudanças e redirecionamentos ocorridos durante o subprojeto? Judite Kaxinawá – O projeto em si foi ótimo, e o que deu certo no projeto foi a capacitação de mulheres. Muitos projetos são aprovados em nossas comunidades, mas nenhum destes tinha sido destinado especificamente às mulheres kaxinawá. O que não foi bom foi a demora na aprovação do projeto. Com relação ao projeto ter dado certo ou não, podemos afirmar que o projeto em si deu certo, pois todas as metas foram alcançadas, mesmo com as dificuldades. Houve, sim,

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mudanças principalmente nos ajustes de valores para a compra de material; e também tivemos de fazer um novo planejamento para a capacitação, além de solicitarmos uma nova parceria institucional – antes era com o governo do estado, depois foi com o Sebrae/AC. Toya – Como o PDPI é visto? Qual o entendimento que se tem sobre o PDPI? Esse entendimento se transformou com o tempo? E sobre a relação/ comunicação com a equipe e os assessores do PDPI? Judite Kaxinawá – O PDPI é visto como um dos principais apoiadores e financiadores de projetos indígenas. O entendimento que temos dele é que ele é um programa de desenvolvimento voltado para os povos indígenas; e sim, esse entendimento se desenvolveu com o tempo. A relação que tivemos e temos com a equipe e assessores é de amizade e profissionalismo, pois a equipe tem muita afinidade com os povos indígenas. Toya – Entre os participantes do subprojeto, houve participantes do Curso de Formação de Gestores Indígenas? Judite e Raimundinha – Nesse projeto não houve participantes do Curso de Formação de Gestores Indígenas. Toya – Com a finalização do subprojeto, há perspectiva de continuidade das ações? Se não, por quê? Se sim, quais são essas perspectivas? Judite Kaxinawá – Após a finalização do projeto, demos continuidades às ações do projeto, pois, depois do projeto, a demanda e a produção de artesanato teve um crescimento bastante relevante, e chegamos a comercializar nossos artesanatos de maneira significativa, como se pode ver pela tabela 2.

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TABELA 2 - Vendas de artesanatos produzidos pelas mulheres kaxinauá (2011 a 2013) Ano

Feira

Valor (R$)

2011

Fenafra

12.000,00

2012

Rio +

15.000,00

2013

Fenafra

10.000,00

Lojas*

-

54.000,00

Total

-

91.000,00

Nota: * Soma do valor arrecadado durante os três anos.

Toya – Para o caso da continuidade das ações, como ela será sustentada? Há outros agentes ou outras organizações/instituições envolvidos nessa continuidade? Judite e Raimundinha – Sim, essas ações são sustentadas pela comercialização do artesanato das mulheres huni kui é pela associação. Há outra instituição envolvida, o Sebrae/AC. Foi através deste que tivemos o reconhecimento do Programa Top 100 e o reconhecimento da Mulher Artesã Brasileira na ONU.14 Toya – O subprojeto é uma parceria entre indígenas e não indígenas, entre organizações, povos e instituições. O que a experiência e o conhecimento indígenas podem ter ensinado aos outros? Ao estado e aos governos? A outras instituições? Judite e Raimundinha – A experiência que esse projeto pôde levar a outros foi o conhecimento indígena e a troca de saberes envolvendo um conhecimento intercultural. Naquele momento, 14 Raimunda Kaxinawá, participante do projeto, foi uma das quinze artesãs selecionadas, de doze estados do Brasil, para a exposição Mulher Artesã Brasileira, realizada na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, em setembro de 2013. A exposição foi organizada pela Associação Brasileira de Exposição de Artesanato (Abexa), com patrocínio do Sebrae e apoio do Instituto Capacitação e Apoio ao Empreendedor (Centro Cape), da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) e da Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência.

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o projeto era o único do Brasil a beneficiar especificamente mulheres indígenas, além de proporcionar um intercâmbio entre mulheres indígenas de outros estados brasileiros. Sobre o estado e o governo, com essa experiência, recebemos o convite para produzir artesanato de decoração para o governo. Com relação ao estado, obtivemos um reconhecimento de produtoras de artesanatos de qualidade. Toya – Por outro lado, o que os participantes indígenas do subprojeto aprenderam com a experiência? Judite Kaxinawá – Aprenderam sobre as trocas de saberes do próprio povo, pois o Povo Kaxinawá do Jordão tem uma técnica de artesanato diferente do Kaxinawá de Taraúca. Essa foi umas das experiências mais importantes para as mulheres huni kui. Toya – Gostariam de fazer algum comentário, alguma sugestão ou observação? Judite Kaxinawá – Gostaríamos de receber novamente o apoio do PDPI para novos projetos de mulheres. Agradecemos ao PDPI pelo apoio e pela divulgação do nosso projeto. Foi uma ótima parceria.

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SUBPROJETO EXTRAINDO RENDA DA FLORESTA (No 467)

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O projeto Extraindo Renda da Floresta foi proposto pela União dos Povos Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (UNIPI-MSA), envolvendo os povos Kanamari e Maku Nadeb, das terras indígenas Maraã Urubaxi e Paraná do Boá Boá, nos municípios de Japurá e Maraã, estado do Amazonas. Seu objetivo, segundo a proposta original, era melhorar a geração de renda das comunidades, visando à implantação de um sistema de comercialização direta e autônoma dos produtos indígenas da região, envolvendo, principalmente, castanha, puxuri e artesanatos de cipó-titica. Além do levantamento de potencialidades, o projeto previa o estabelecimento de mecanismos de manejo sustentável dos produtos, mapeamento das áreas de coleta, qualificação das comunidades para o desenvolvimento de atividades de extrativismo sustentável de recursos não madeireiros, e organização do processo de qualificação dos produtos para comercialização.

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Iniciado em março de 2011, o projeto enfrentou alguns imprevistos em sua gestão, e obteve uma prorrogação até 2014. O diálogo abaixo ocorreu em Tefé, na sede da UNIPI, em 20 de janeiro de 2014. Participaram André da Cruz, coordenador-geral da UNIPI, e Mariano Fernandes Cruz, coordenador do projeto, ambos da etnia Cambeba. Mariano Cruz foi aluno do Curso de Formação de Gestores de Projetos Indígenas do Corredor Central da Amazônia, ocorrido entre 2009-2010 em Manaus, e traz uma reflexão sobre a contribuição do curso para a gestão efetiva do projeto. Nessa conversa, estavam presentes também: Thiago Schinaider M. da Cunha, assessor financeiro no PDPI junto ao Ministério do Meio Ambiente; Elcio Severino da Silva Machineri, responsável pela sistematização do PDPI contratado pela GIZ; e Andréa Borghi M. Jacinto, consultora da GIZ. A conversa começa como o assunto das distâncias e deslocamentos no Amazonas. O que parece uma conversa sobre amenidades é, de fato, uma das principais questões enfrentadas no Norte do país: o custo e o tempo dos deslocamentos. Assim, o diálogo bem-humorado vai revelando aos poucos alguns dos desafios enfrentados pelos gestores indígenas ao lidar e viver as regras de gestão de projetos e, ao mesmo tempo, os contextos indígenas e regionais do médio Solimões. Mostra também o esforço das equipes e grupos para vencer as dificuldades e fazer o projeto acontecer.

O projeto e as distâncias Thiago – Como eu falei para o senhor, aquela lancha em que nós fomos de Tefé para Jutaí melhorou demais. Está mais espaçosa; antes era um espacinho assim... Agora há uma lei que normatiza o espaço para gestantes e idosos. Teve essa melhoria.

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André – No mês de dezembro, fui para Tabatinga nessa lancha que vocês foram. O trajeto daqui para lá leva 24 horas. Thiago – De Manaus leva 36 horas. Toya – Daqui para Tabatinga, quanto é? André Cambeba – São R$ 480,00. De Manaus para Tefé é mais barato, custa aproximadamente R$ 200. Thiago – Pois é, por um lado é bom, porque não depende somente de voos, mas às vezes tem voos que são baratos. Naquela época que eu vim aqui, comprei com muita antecedência, acho que paguei R$ 370,00 pelas passagens de ida e volta, de Manaus para Tefé André Cambeba – Quando eu fui, agora no mês de dezembro, só a ida de avião era R$ 740,00. Aí achei mais barato pagar R$ 480,00. Andréa – Às vezes, é mais caro do que ir de Manaus para Brasília. Thiago – Sr. André, o número do projeto Extraindo renda da Floresta é 467, não é? André Cambeba – Isso. Andréa – Sr. André, nós estamos fazendo esse trabalho de memória dos projetos, produzindo uma publicação intitulada Diálogos e saberes, e eu queria saber se o senhor poderia contar um pouco para a gente a história desse projeto: como começou? Como foi a ideia? André Cambeba - Nós pegamos esse projeto já no meio. Foi assim: em uma assembleia, o pessoal foi eleito na UNIPI, e eu saí em 2008. Aí os coordenadores que foram eleitos pensaram esse projeto. Quando pegamos o projeto, ele já estava montado. Quando foi aprovado em 2009, já estava feito o projeto. Nós fomos

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ouvir para saber como foi aprovado, e aí fomos lá fazer a capacitação. Pelo que vimos, a elaboração do projeto foi feita olhando para o povo lá, nessa distância que é igual a uma distância dessas... Andréa – Que distância é? Que comunidades? André – É muito longe; daqui para lá é muito distante. É muito mais longe do que daqui para Tabatinga. Andréa – Nossa. André Cambeba – É longe; leva tempo. Olharam a necessidade do povo, mas não mediram o valor para poder chegar lá – isso é que gerou o problema. Mas a gente chegou. E vemos que o projeto foi algo bom, para nós e para eles, lá. Deu para a gente visitar lá e trabalhar um pouco. Chegamos a conduzir o projeto, mas até chegar lá, com essa distância toda, era difícil... Não tinha dinheiro para pagar os fretes, e também não tinha combustível suficiente para chegar lá. Tivemos que pegar do nosso. Thiago – Remanejar combustível. André – Remanejar combustível, fazer tudo isso. Toya – Essa distância não foi prevista dentro do projeto. Com certeza interferiu na implementação e nas conclusões das atividades do projeto. André Cambeba – Essa distância não foi prevista no projeto; aí encalhou um pouco por essa razão. Andréa – E lá, que comunidades são? São Cambeba, também? André Cambeba – Não. Lá as comunidades são Kanamari, no município de Maraã, e Maku, no município de Japurá.

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Andréa – São dois municípios e dois povos. Thiago – Foram dois centros. André Cambeba – Dois municípios, Maraã e Japurá. Ficam longe, no médio Japurá. Maraã fica mais longe que daqui para Jutaí. Thiago – Para lá que vocês levaram aquele material todo? André Cambeba – Isso; foi para lá. Para lá que sofremos só para chegar. Foi difícil até pensar em como fazer para conduzir daqui para a cidade, e depois, da cidade para a aldeia. Dava para ficar doente só de pensar... Thiago – E sem o dinheiro do projeto, que ainda não tinha saído... André Cambeba – Sem o dinheiro. Foi um sacrifício, mas chegamos lá. Conseguimos. Está tudo lá, graças a Deus. Andréa – E lá, quantas aldeias estão envolvidas? André Cambeba – Em Maraã, são duas aldeias: São Francisco e Patuá. E no Japurá, são três aldeias: São Joaquim, Jutaí e Jeremias. São três aldeias lá. Lá é difícil de chegar. Deus o livre. Thiago – E nessa dificuldade toda, teve apoio da comunidade? Porque não sei se foi essa ideia que eu captei, mas como vocês disseram que estavam sem combustível, eu queria saber se houve união do pessoal para comprar combustível. Teve isso ou foi só mão de obra? André Cambeba – Não. É assim: para o combustível, nós nos articulamos. Já a mão de obra, sim, eles ajudaram a tocar.

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Entre a formulação e a execução do projeto: reajustes, articulações e três dias de conversa Andréa – E qual era o objetivo do projeto Extraindo Renda da Floresta, sr. André? O que o projeto quis fazer lá? André Cambeba – Nós vimos que a necessidade vender castanha. E ali é difícil; tem que armazenar, porque para poder falar com os compradores, para chegar lá na aldeia, a distância é grande. Esse foi o pensamento. Sentimos que era preciso isso, porque é longe. Nunca trabalhei nessa distância, a primeira vez foi agora. Foi difícil, mas a dificuldade já passou; agora já está tudo lá. Agora a gente vai aperfeiçoar o material. E no projeto também falamos do trabalho do artesanato com cipó. Como é, Mariano, o nome do cipó da terra firme? Mariano – Cipó-titica. André Cambeba – Cipó-titica. Mas aí os parentes não fazem só isso. Eles fazem várias coisas de cipó, de madeira e de tala. Para eles, como se diz, para não “empatar” eles fazerem o que estão acostumados, a gente aceitou fazer isso: trabalhar com cipó, mas também fazer aquilo que já era do costume deles. Eles gostam de fazer outras coisas; ninguém ia proibir de fazer isso, temos que acompanhar. Andréa – Isso entrou depois no projeto? Mariano – Não fazia parte do projeto, mas na hora da execução, teve que entrar tudo, senão... André Cambeba – Senão ia prejudicar o trabalho deles. Mariano – Eles desanimariam. Andréa – É uma coisa que eles queriam, porque eles já faziam.

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Mariano – E a equipe que elaborou o projeto, deve ter tentado entrar no eixo temático do projeto com alguma coisa específica; mas para eles já não foi muito legal por causa disso. Na hora da execução mesmo, não tem como você separar. Aí eles me falaram que seria preciso um projeto mais abrangente, mais estudado. Andréa – Mas quem tinha feito? Quem foram as pessoas que elaboraram a primeira versão do projeto? Mariano – Foi a coordenação anterior da UNIPI. Essas pessoas todas já saíram. A gente não sabia nem da existência desse projeto. De repente, chegou uma carta dizendo que o projeto tal tinha sido aprovado. Aí a gente foi fazer o reajuste em Manaus, em dezembro de 2010. Andréa – Em dezembro de 2010 foi a aprovação? Thiago – Não. Foi quando houve a articulação e organização para reajuste e capacitação do projeto. Andréa – Foi quando vocês descobriram que existia o projeto? Thiago – Descobriram em meados de 2010. E entre outubro e dezembro de 2010, foi o contato, a articulação. E o projeto se iniciou mesmo em 2011, não é, seu André? André Cambeba – É. Thiago – Quando foi liberada a primeira parcela. Mariano – Em 21 de abril de 2011. Thiago – A gente mandou três dias antes, no dia 18; e aí demora três dias para poder cair. Andréa – Então vocês cuidaram de organizar a comercialização e o armazenamento – dessa parte do artesanato com o cipó, e da castanha –, é isso?

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Mariano – Primeiro cuidamos do artesanato. A castanha ainda estava na fase (...). Andréa – Então, primeiro foi o artesanato. E como é que foi a história na cidade, no município? O que aconteceu? Mariano – Foi importante porque a gente conseguiu envolver os gestores municipais. Foi uma das coisas que contribuíram. Não aconteceu de acordo com o que estava no projeto, porque o primeiro passo foi errado, com essa questão de não ter sido inserido no projeto o transporte dos materiais. Então, tivemos que articular com o município, com as entidades parceiras, os Mamirawá; nós tentamos articular de todas as formas. Mas na hora de executar, de fazer concretamente, só apareceram alguns. Isso foi um ponto fundamental que a gente enfrentou. E no reajuste que teve, foi muito difícil para a gente tentar ver o que era prioridade nesse momento, ver o que era melhor. Como o transporte tinha um custo muito mais alto, não pode ser incluído, e contávamos justamente com os parceiros – que, no caso, era a Funai. A Funai, justamente nesse momento, estava num processo de articulação, e o município acabou sozinho. Mas não foi assim com tudo, só com uma pequena parte do transporte. Tanto é que, no projeto, a parte de artesanato foi executada. Mas, como é difícil essa questão do transporte, ainda estamos nessa situação. Para ir, levamos, fizemos tudo que foi possível. Agora, para ficar acompanhando, tivemos essa dificuldade. Aí veio o tempo das políticas e tal, essa coisa toda. Então vamos aguardar. Daqui para lá, o custo é grande também. Para sair daqui, pode ser de expresso ou pode ser de barco. Mas chegando lá, ainda tem um custo para sair do município, como aqui. Você consegue ir de lancha, mas de rabeta, nem pensar!

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Então isso tudo é uma das dificuldades que tivemos. A nossa sorte foi que, quando conseguimos articular, a água estava num nível que dava para chegar até as aldeias. Mas tem períodos em que não se consegue chegar. Então, a gente pensou: se fosse para conduzir do município para aldeia de canoinha, seria muito tempo e trabalho! E dinheiro também. Andréa – Vocês saem daqui e vão para Maraã? Ou Japurá? Mariano – Maraã fica no caminho. O último é Japurá. Andréa – E quanto tempo daqui para lá? Mariano – De expresso, daqui a Japurá, são 12 horas de viagem. É quase como o trecho de Tefé-Manaus. Andréa – E depois, para a aldeia? Mariano – Para a aldeia, com motor de 40 Hp, a gente gasta 8 horas. Com quatro pessoas dentro. Andréa – Nossa. Thiago – Quantas horas? Mariano – São 8 horas, se for com motor de 40 Hp. Thiago – Mariano, para ressaltar: quando o projeto foi apresentado, ele tinha inicialmente R$ 118 mil. Quando a gente fez o reajuste, a gente acrescentou R$ 11 mil reais para combustível, equipamento, reestruturação da sede, ajuda de custo para os técnicos e os coordenadores, e para as diárias. Mas quando a gente lê o projeto, a gente não tem a sensibilidade de saber como é mesmo. E com a presença de vocês lá, explicando o que faltava, o que dá certo, como é na realidade, a gente teve essa margem para poder acrescentar. Certo? Só para lembrar que teve essa conversa.

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Mariano – O reajuste é que foi o negócio; porque a gente pensava na coisa toda: e agora, como fazemos? Mas, graças a Deus, o mais difícil já conseguimos. Agora, nesse início de ano, já está tudo lá dentro. Mas, mesmo assim, nós vamos ter que ir atrás dos gestores. Por exemplo, a diária de motosserra, que na época estava R$ 70,00, agora custa R$ 100. Não foi possível alterar no projeto. A gente pensava que daria, porque lá nas aldeias também tem operador de motosserra, entre os próprios índios, só que o problema é que não temos o motor. E fica tudo assim. Tem gente que manuseia, mas não tem o equipamento. Então, a gente acaba indo atrás de alguém que pode pagar. No caso, mandamos documento para as prefeituras e, quando chegarmos lá, vamos conversar para ver o que faz, com o que eles podem contribuir. Andréa – A prefeitura foi um parceiro importante? Mariano – A prefeitura foi. Principalmente a de Maraã. Inclusive, foi o prefeito de Maraã que nos ajudou a chegar ao outro município. Primeiro disseram: “Já que vocês estão no barco, e o barco é de Maraã, essa foi a parte do município de Maraã.” E a gente disse: “Podemos ir até Maraã e descarregar todo esse material? Vai ficar em Maraã? Como é que nós vamos fazer? Ficar cuidando daquele material lá? Deixar onde? Vai ter que pagar pra ficar cuidando?” Então, conversando, ele reconheceu isso. “Está bom, já que está no barco, depois a gente dá um jeito; leva os homens até lá”. E assim conseguimos ir para o outro município. O prefeito de Japurá ainda não teve como contribuir. Acho que agora, quando chegarmos por lá, vamos ter que sentar com ele. Enquanto o pessoal está fazendo outras coisas, a gente está se articulando. Toya – No caso da castanha, vocês vão construir um galpão?

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Mariano – É. No caso, é a retirada da madeira, porque no projeto já tem o combustível, parte do combustível. André Cambeba – Para poder chegar lá. Mariano – Aí nós vamos querer que eles contribuam. Por um lado, foi bom. Porque a desculpa deles era que eles tinham acabado de ser empossados, eram novos. Então, agora é outra conversa. Temos quase certeza de que agora vamos ter uma contribuição por parte do município. Andréa – A parceria foi mais das prefeituras. E localmente, nas aldeias Kanamari e Maku, como foi? Eles participaram da elaboração do projeto, ou também foi uma surpresa para eles? Como é que foi a participação deles, das aldeias? Mariano – Nós da coordenação não tínhamos conhecimento. E eles nem lembravam mais do projeto. Ele tinha sido feito em 2009, e não foi um projeto que envolveu toda a comunidade. Foi feito com duas ou três lideranças da aldeia. O pessoal chegou, contou que fez o projeto, mas o tempo passou, e eles esqueceram. Mas, eles ficaram muito contentes depois disso: “Ah, o projeto! E tem o parente, bom parente.” Então, houve uma conversa, contei um pouco essa questão do reajuste, o que significa. Nós passamos três dias conversando. Mas a visão que eles tinham do projeto era de vender, comercializar, para poder gerar renda. Para eles, o projeto era só para que eles fizessem o produto e vendessem, porque já ia ter alguém para comprar o que eles precisavam. E não é bem assim, tem que ter uma preparação. Mas a aceitação foi boa. Só que eles não querem fazer só uma coisa, eles querem logo fazer muito. No curso apareceu muito essa questão: eles não queriam saber de qualidade, queriam saber de quantidade, queriam fazer para vender. Então tudo foi acontecendo aos poucos...

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E nesse meio tempo, com a chegada do projeto, tiveram alguns impactos, como sempre tem. Numa aldeia, dos Maku, havia o problema de um pastor, que dizia que a gente estava ganhando muito dinheiro, que era para tomar cuidado e não ficar dizendo ou fazendo certas coisas. E tivemos um atrito com um tuxaua, depois de duas viagens para lá... A discussão começou porque eram três aldeias. Foi feita uma reunião para discutir onde seria construído o galpão e todo mundo queria. Das três aldeias, todo mundo queria. E aí? Ficou decidido que seria construído na do meio, que é estratégica. A última aldeia, que é mais distante, queria que fosse para lá. E o motor 15 Hp também ficou lá onde vai ser o centro. Então, isso aí causou uma divergência tanto com a equipe de coordenação quanto com outros parentes, pois eles sentiram assim que... André Cambeba – Que o benefício era para outro. Mariano – Que o benefício era para outro. Mas depois, com o tempo, parece que eles se sentiram um pouco isolados. Depois até com o próprio povo deles, entre eles. Agora estão nos chamando; nós não vamos demorar a ir lá. Andréa – Então, quer dizer que tem um galpão na aldeia, e outro na cidade? Mariano – Não. São dois galpões: um é do povo Kanamari; e outro é dos Maku. André Cambeba – Nos dois municípios: um em Maraã; e outro em Japurá. Ficam na aldeia. Andréa – E depois, na etapa de comercialização, o projeto não atua? Para ajudar a encontrar comprador etc.? Mariano – Bom, no projeto fala de a gente poder articular em nível local. Ou seja, ver quais são os

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meios que a gente tem de poder vender; e ver outros canais com o município também. Então, isso aí a gente também tem que ver, pois eles estão esperando que isso venha a acontecer. Mas assim, concretamente, dizer que o projeto já vai abrir canal para outras coisas, não chegar a ser... Andréa – Mas vocês já têm algum horizonte, alguma coisa em vista, ou não? Mariano – Nós já tivemos um pequeno horizonte, através da Secretaria de Estado Para os Povos Indígenas, a SEIND. Chegamos a conversar, só que a SEIND não tem muita clareza sobre quais são os objetivos da SEIND para a gente poder dialoga. E temos poucas oportunidades para conversar; a comunicação é difícil. Então, nós tivemos essa conversa com a SEIND, mas não aprofundamos, não chegamos a definir alguma coisa. Participação, articulação e parcerias: o projeto como uma ferramenta de articulação política Andréa – Eu estou reparando aqui que o projeto começou mais ou menos quando você terminou o Curso de Formação de Gestores Indígenas. Mariano – Foi em 2010. O curso terminou em março de 2010, e o projeto foi no finalzinho de 2010. Andréa – Você acha que quando você começou o projeto aqui, tendo terminado o curso, você viu algo que aprendeu no curso acontecendo aqui? A gente queria saber se o curso serviu. O que serviu? Mariano – Uma das primeiras coisas que eu vi é que o projeto não foi feito com as comunidades. Já pensei: vai complicar um pouco. Na verdade, não foi o pouco que eu imaginava: foi muito! Precisamos fazer várias reuniões para poder explicar. Já começa pela questão da participação – porque se não tem participação, o entendimento é difícil. Isso tudo nós enfrentamos. Aí, 225

ao mesmo tempo, eu imaginava: bom, nós estamos preparados. Chegamos num lugar em que o pessoal tem o hábito de fazer o projeto para alguém e não com alguém. Esse momento foi importante, e agora estamos mais preparados ainda, Isso fez com que a gente conversasse muito sobre a parte da coordenação que envolveu o projeto, o quanto mais a gente pudesse se informar, melhor. Outro ponto foi que o projeto tinha um bom objetivo, mas ele foi mal pensado. Tinha coisa ali dentro do projeto não foi pensada. A questão do orçamento; atividades que também não foram pensadas; entre outras coisas que o projeto exigia, mas não tinha sido considerado. Tivemos que fazer outras coisas para poder ajustar, e apareceram outras despesas e atividades que não constavam do projeto, mas tivemos que realizar. Enfim, o pensamento que a gente tinha era: fazer com que o projeto fosse executado e a partir daí se pudesse garantir a continuidade ou a ampliação do projeto. Isso era um das questões mais preocupantes. Porque ali, basicamente, foi só o começo do projeto. Até porque o povo ali tinha necessidade de fazer muita coisa. Mas, aos poucos, a gente percebe que eles estão confiantes, que o projeto não vai se acabar em dois anos. O recurso pode acabar, mas não o projeto em si. A comunidade tem que começar a sentir que o projeto veio só para dar aquele incentivo que faltava. André Cambeba – Agora, a gente viu que o projeto serviu muito em dois pontos. Serviu bastante para nos articularmos, e também para vermos a situação aqui da coordenação, ver o que era necessário etc. O projeto veio para abrir um leque de possibilidades para caminharmos. Como que nós conheceríamos aquela distância toda se não fosse o projeto? Outro ponto também: quando a gente ia saber que os prefeitos queriam trabalhar em parceria? Tudo isso foi um

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avanço para chegarmos até lá. E eu espero que, até o final do projeto, nós vamos concluir tudo direitinho. Andréa – Quer dizer que ajudou na articulação da organização, do movimento indígena... Mariano – Além do objetivo, o projeto, ajudou muito na articulação da calha do rio Japurá, que compreende hoje 17 aldeias. Andréa – Na articulação da calha do Japurá, e com as prefeituras... Quer dizer que o pessoal se interessava. Mariano – Isso. Pois é, tinha até não índios querendo fazer parte dos projetos. Não é, seu André? André Cambeba – Quando via aquela coisa acontecendo, queriam logo entrar... Mariano – Aparecia gente da cidade e de outras comunidades querendo saber, querendo participar dos cursos. André Cambeba – Eu falava: “Eu preciso pedir desculpas, mas não é para vocês, é para os povos indígenas que estão nesse projeto”. E eles retrucavam: “Ah, é, mas a gente também queria participar”. Toya – Nessa altura, tem também as necessidades do movimento dos ribeirinhos, que são iguais ou piores que a situação das comunidades e povos indígenas na Amazônia brasileira, pois a presença de programas governamentais é quase inexistente.

Monitoramento, articulações e políticas Thiago – Mariano e seu André, eu tenho que preencher um relatório aqui. Foram pensadas três atividades, na verdade quatro, com o gerenciamento do projeto. Então, entre essas atividades, a primeira é fazer um

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levantamento do potencial produtivo da castanha, do puxuri, e de artesanato do cipó-titica, a fim de estabelecer mecanismos sustentáveis desses produtos. Ou seja, a primeira atividade era fazer um levantamento nas comunidades sobre a produção de castanha, identificar áreas de coleta, forma de coleta, quantidade, e possíveis quantidades para venda – tinha para consumo e para venda também. Isso foi feito inicialmente no projeto? Mariano – Foi feito, nós fizemos o levantamento. O caso da construção dos galpões é um exemplo disso. Por isso que o galpão ficou na comunidade bem do meio; não foi só pela localização, mas também porque se verificou que ela tinha a maior produção e ficava mais próxima da cidade. A decisão foi baseada nesse levantamento: quantidade, acesso, período – todas essas questões foram levadas em consideração. A gente preencheu todos os formulários que tinham nesse levantamento. Thiago – Tem a questão da monitoria. Não é muito fácil de chegar lá para conversar com a comunidade. Eu não sei se me lembro do relatório, pois teve a parte que vocês dividiram entre quem ia fazer o manejo da castanha e quem ia fazer o manejo do artesanato. Vocês fizeram esse balanço... Mariano – É isso mesmo. Thiago – Outro item era identificar o potencial produtivo em Puxuri. Isso foi feito também? Mariano – Foi feito um mapeamento em Puxuri. Como eles não têm costume de trabalhar vendendo, não têm como dizer a quantidade que produzem, e nós não tínhamos como medir. Aí tem lá apenas a indicação se extrai, e se outras pessoas vão lá e levam... Thiago – Então não foi feita uma identificação, mas foi feito um mapeamento para começar a desenvolver essa

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atividade com eles... Teve possibilidade de desenvolver mecanismos de manejo sem agressão a esses recursos, sem prejudicar a floresta? Esse mapeamento foi feito com um trabalho de conscientização também? Mariano – Pois é, saber usar a natureza. Só no período do curso, por exemplo, deu para colocar para eles que, no projeto, se a gente começar a trabalhar, a gente vai ter que saber usar a natureza, senão... Quando a gente ia coletar o material, já se encontrava um monte – agora já pensou a comunidade toda trabalhando para ganhar dinheiro durante o ano todinho? Antes, em dois dias daqui para dentro já não se achava mais matériaprima. Isso tudo eles começaram a entender. Se tem de colher, onde tem seis, colhem-se três. Então, eles já estão se conscientizando disso, de como fazer para nunca acabar. Toya – Isso é o manejo. A conscientização tem que estar prevista no projeto. Mariano – Todo mundo vai colher, e quando vai para o mato, chega-se lá com facilidade, e se tira o material com facilidade também. É diferente de quando o povo tira o material só para usar diariamente ou para as danças. E eu sei que quando começa a mudar esse hábito para comercializar, aí não tem mais jeito. Então, o projeto começou a pensar nisso. Durante a extração do material, foram realizados pequenos momentos de conscientização. E, possivelmente, se o projeto continuar dando certo, nós vamos ter que plantar essas espécies. Thiago – Depois do mapeamento, segundo o projeto, haveria dois planos de manejo. Vocês conseguiram fazer isso? Mariano – O plano de manejo não foi feito.

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Thiago – Mas vai ser feito? O plano de manejo foi sendo construído, de certa forma, pela conscientização. Então, falta colocar no papel? Toya – Foi feito um mapeamento, mas tem que ser feito um inventário da área. Só a realização do plano de manejo consumiria todos os recursos do projeto. Precisamos enviar um documento para o PDPI justificando. Mas se conseguirmos fechar um acordo com a SEIND para a elaboração do plano de manejo, vai ser ótimo. Mariano – Para levar os técnicos para o local, por mais que não se paguem diárias, tem que ter transporte. Combustível é com o que mais se gasta. E até água para beber tem de comprar. O pessoal de Mamirawá, por exemplo, só anda com caixas e caixas de água. Qualquer um que vier de fora. O dinheiro para custear tudo isso vai ter que sair do projeto, não é deles. E o projeto não oferecia condições. Quando a gente estava conversando para fazer essa articulação, foi quando aconteceu esse problema da saúde, que bagunçou mesmo. Andréa – O que foi que aconteceu? Mariano – Foi uma mudança política forte que teve aqui. A saúde tinha uma determinada quantidade de recurso. Quando a gente recebia lá no papel, era um valor x, mas esses recursos não estavam chegando nas aldeias. Aí, através das organizações indígenas, do contato entre as aldeias, começou a discussão. Quando colocaram o dedo na ferida, pegou fogo. Começaram a tentar comprar os indígenas: “Vem cá para o nosso lado, que você vai ganhar um dinheirinho”. Aí começou um divergência grande; foi complicado. Thiago – Foi em que ano? Mariano - Foi em 2012. Ou melhor, começou em agosto de 2011 e foi até março de 2012. Houve uma total

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divergência; não tinha como segurar! Era índio vindo para defender o movimento, era índio para defender a Unipi, era índio para defender a Sesai, e para defender o chefe do distrito. André Cambeba – Foi uma revolta feia. Mariano – Foi uma coisa feia. E os boatos rolando, como sempre: “Ah, os índios vão invadir não sei de onde”. Aí não teve como continuar; todos os projetos pararam. Thiago – É preciso considerar também que, o valor previsto no projeto foi de R$ 128 mil, mas no decorrer da construção do projeto e das várias atividades que foram previstas, os valores foram mudando gradativamente. O valor do combustível, dos equipamentos, tudo subiu. Em 2009, foi orçado um valor, mas em 2010 era outro, e em 2011 já estava outro valor. E a elaboração do projeto foi em 2009, por isso, foi preciso fazer esse ajuste, que realmente ajudou um pouco. Ajudou, mas não foi suficiente. Sem querer criticar, de forma alguma, porque dificilmente alguém consegue prever tudo num projeto, é difícil. Mas essa atividade, a ideia de fazer um plano de manejo, é muito boa para região, mas vocês têm que atentar para a complexidade de custos, de prazos, de técnicos, enfim, de uma série de itens que acabam impossibilitando a atividade. Como o Toya bem colocou, nessa atividade que não foi feita, vocês colocaram como justificativa que faltou apoio do estado, da SEIND, e que, inicialmente, a atividade foi pensada de forma mais simples, não tão complexa como realmente é. Andréa – O que o projeto já desenvolveu prepara um futuro plano do manejo. As questões do manejo são essas – por exemplo, pensar se vai tirar para comercializar. Ou seja, já começou um preparo para quando vier o manejo.

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Thiago – E já começa a atividade seguinte, de “preparar as comunidades para o trabalho de manejo de recursos não madeireiros”. Esse trabalho foi feito nos relatórios – a sensibilização, a capacitação. Nessas viagens, algum técnico acompanhou vocês? Mariano – Não foi feito o curso. O curso só pode ser feito depois que a estrutura estiver pronta. Senão, a gente faz o curso lá longe, mas depois, quando concluir a estrutura, não vai saber mais nada. Então, primeiro a estrutura, depois o curso.

Sobre a relação entre o projeto e o PDPI Thiago – Outra pergunta. Sobre a relação entre vocês e o PDPI: Vocês acham que surtiu efeito para as comunidades, para vocês, tanto as experiências quanto o objetivo final? E o que poderia melhorar, o que foi bom, o que foi ruim, em relação ao PDPI mesmo, durante a execução do projeto? Isso é porque queremos ter uma opinião de vocês sobre o que a gente deve rever, melhorar etc. Mariano – Eu acho que essa relação foi suficiente. O que não foi possível fazer melhor não dependia nem da UNIPI nem do PDPI. A questão era de comunicação às vezes; ou seja, de a gente tentar enviar documentos, repassando e-mails ou até via correio, mas os documentos não chegavam. Aí o PDPI não pode dizer que foi culpa nossa, nem podemos dizer que foi culpa do PDPI. Isso são coisas que a gente reconhece. Com relação ao projeto em si, o projeto foi um aprendizado, e para mim foi fundamental. Ter acabado de vir de um curso, e poder já começar um projeto, com aquela vontade; isso foi maravilhoso. André Cambeba – E deu para a gente se entender. A gente ligava para o Thiago, e quando não dava, ligava para o Toya. A comunicação com o PDPI era boa, nunca

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ficamos sozinhos. Às vezes as coisas demoravam a chegar, mas não era nossa culpa nem de vocês. É uma burocracia, que não chegava a se desenvolver como a gente gostaria. Mas foi bom, muito bom mesmo. Thiago - Que bom, fico feliz. Mariano – O Thiago também foi muito bacana. André Cambeba – O Thiago nos atendia dia e noite. Mariano – Sempre estava disponível, representando o PDPI para nós aqui do projeto. Eu ia mandar uma carta para o Fernando; eu tinha essa carta pronta, mas eu acho que perdi o e-mail. É o Fernando que é o chefe? Thiago – Não. É o Jânio. Era o Klinton, mas agora é o Jânio. Mariano – Ele me passou o e-mail, mas eu perdi. Eu ia escrever para fazer essa colocação da importância de alguém vir aqui, acompanhar, conversar diretamente, e agradecer à pessoa dele. Thiago – A gente até pede desculpas também pelo fato de a equipe ser pequena; somos poucos para muitos projetos. E a logística de estar em campo é pesada, demanda muito tempo; a gente não consegue estar em todos esses projetos. Nosso dia a dia é difícil, principalmente nessa fase final. Então, por um lado, a gente reconhece nossa falha, como técnicos, de não estar tão presentes, mas por outro lado, fica a nossa confiança de vocês estarem executando as atividades, é uma relação de confiança. Por exemplo, quando vocês falam para a gente que está acontecendo a atividade lá em Japuri. É assim que tem de ser essa relação com o PDPI, de associação com o PDPI: vocês executam, vocês tomam conta; e de toda forma, vocês conseguem se mobilizar, com a gente ou sem a gente. Claro que se a gente pudesse estar mais presente, a gente gostaria.

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Mariano – A gente queria marcar com o Thiago quando estivesse na aldeia mais distante. Thiago – Tem que marcar! De repente dá certo, ainda esse ano... Eu vou aguardar essa finalização, dos pontos-chave. A gente também quer mandar para vocês um ofício de finalização – de quitação dos débitos, das atividades realizadas, justificativas etc. –, que possa ser uma carta de apresentação do Ministério do Meio Ambiente para outros projetos de vocês aí para frente. É como se fosse o certificado do curso: está aqui a experiência do projeto, aprovado por todos. E até o final do ano estamos com essa parceria. Mariano – E aproveitando o encontro: não tem como dar continuidade numa segunda fase do curso? Porque o projeto é um processo, nunca é só aquilo...

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

REFERÊNCIAS

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

MICCOLIS, Andrew; GOULART, Alexandre. Plano de trabalho para a sistematização e disseminação dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas – PDPI. Brasília: [s.n.], 27 abr. 2012. MICCOLIS, Andrew; GOULART, Alexandre. Relatório da oficina para construção do plano de trabalho de sistematização e disseminação do PDPI. Brasília: [s.n.], 3 e 4 abr. 2012. VERDUM, Ricardo (Org.). A formação de gestores indígenas de projetos: temas, problemas e soluções. Brasília: MMA; Funai; GIZ, 2014. SILVA, Franklin Paulo Eduardo (Org). Catálogo de Projetos do PDPI. Brasília: MMA; Funai; GIZ, 2014. Contando a história do PDPI. Vídeo-documentário. Direção: Pedro de Castro Guimarães. Goiânia, AV Filmes, 2014.

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APÊNDICE A MEMÓRIA EM IMAGENS

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

© Márcia Gramkow © Márcia Gramkow

© Márcia Gramkow

Construindo formulários para apresentação dos projetos PDPI. Realizado em São Gabriel

© Márcia Gramkow

© Márcia Gramkow

da Cachoeira/AM

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© Márcia Gramkow © Márcia Gramkow

Oficina de planejamento PDPI.

© Márcia Gramkow

© acervo PDPI

Tefé/AM - 1999

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

Gersen Baniwa - Oficina de planejamento PDPI.

© Márcia Gramkow

Agosto de 1999

241

© Márcia Gramkow

Participação do PDPI na reunião da Abanne. Realizado na UFAM/AM - 2005

© acervo Márcia Gramkow

Oficina de planejamento PDPI. Equipe Técnica

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

© Sondra Wentzel © Sondra Wentzel

Oficina de fortalecimento institucional. Belém/PA - março de 2002

243

© Sondra Wentzel

Mudança do escritório. Manaus/AM - 11 a 14 de junho 2002

© Clóvis Araújo

Comissão Executiva do PDPI vota projetos indígenas. Manaus/AM

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

© Márcia Gramkow

© Márcia Gramkow

Participação do PDPI na reunião da Abanne. Realizado na UFAM/AM - 2005

Oficina para construção de formulários para projetos PDPI com lideranças indigenas da Amazônia Legal e Coordenação da COIAB.

245

© Acervo OCKMA © Acervo OCKMA

Oficina de capacitação financeira dos povos Kulina e Kanamari Erunepé-Opan/AM - 03 a 06 março de 2003

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

© Clóvis Miranda

© Clóvis Miranda

Primeira reunião da Comissão Executiva do PDPI. Manaus/AM - 11 e 12 de dezembro 2001

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© Clóvis Miranda © Clóvis Miranda

Segunda Reunião da Comissão Executiva do PDPI para o julgamento e seleção dos primeiros projetos. Manaus/AM - 11 a 14 de junho de 2002

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

© Sondra Wentzel © Sondra Wentzel

Terceira Reunião da Comissão Executiva do PDPI. Brasília/DF - 11 e 12 de dezembro 2001

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© acervo PDPI

© acervo IEB

Primeiro curso de gestores indigenas de projetos.

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© Acervo PDPI

© Toya Manchineri

Equipe GIZ/PDPI e Supernova Design em reunião para definir a identidade visual dos produtos sistematização e disseminação do PDPI. Foto: Toya Manchineri, 2014

Euclides Pereira e equipe técnica do PDPI. Foto: Acervo PDPI

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© Toya Manchineri © acervo PDPI

Equipe de filmagem da GOPA/GIZ, em visita ao Centro de Formação Intercultural Raposa Serra do Sol/RR. Foto: Toya Manchineri.

Equipe financeira do PDPI realizando monitoria de projetos na sede da FOIRN, em São Gabriel da Cachoeira/AM. Foto: Acervo PDPI.

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

APÊNDICE B ROTEIROS DE ENTREVISTAS E ORIENTAÇÕES DE PESQUISA

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

B.1 Conversa com a CGU: apresentação escrita da proposta aos auditores A publicação Diálogos e saberes tem como temas centrais, indicados pelo Plano de Trabalho para Sistematização e disseminação dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (Miccolis e Goulart, 2012), a “importância da participação e protagonismo indígena” e a “incorporação do olhar indígena nos projetos e processos”. Entre os temas sugeridos para compor a publicação estão: i) “descrição de como funcionou o PDPI”; ii) “boas práticas com exemplos e estudos de melhores projetos”; iii) “cenários atuais e desafios para o futuro”; e iv) recomendações e orientações de boas práticas. A proposta pretende reunir e acrescentar às lições apreendidas um registro de memórias, relatos e impressões de diferentes participantes, indígenas e não indígenas, sobre como se concretizou a gestão do PDPI

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– sobretudo com a implementação dos subprojetos –, para registrar a compreensão que os diferentes atores envolvidos trazem sobre suas experiências. O título Diálogos e saberes remete a um diálogo entre pessoas envolvidas e comprometidas ao longo de mais de dez anos com a gestão do PDPI e de seus subprojetos: indígenas, representantes do Estado, representantes de organizações governamentais e não governamentais, entre outros. O interesse no diálogo diz também dos saberes em questão – saberes abertos e construídos pela experiência, pela interpretação e troca de histórias. Sua contribuição específica será explorar outras expressões de conhecimento sobre o PDPI que possam, como as narrativas, aconselhar – isto é, sugerir um modo de se continuar a história Além das questões direcionadas aos indígenas envolvidos nos subprojetos, a publicação pretende uma aproximação também de outros aprendizados: o das equipes que fazem gerenciamento do PDPI junto ao Ministério do Meio Ambiente, e de outras equipes e profissionais envolvidos, como os da Cooperação Técnica Alemã, ou os auditores da Corregedoria Geral da União (CGU), que fiscalizam a prestação de contas dos projetos. Assim, pretende-se verificar: O que representantes do Estado têm aprendido e podem ensinar sobre os encontros e desencontros da gestão de projetos indígenas? O que os subprojetos ensinam à gestão realizada ou planejada em Brasília, às suas lógicas e linguagens? Em que medida essas lições podem ter influenciado novas visões e perspectivas dentro do Estado, ou da cooperação entre estados? Do ponto de vista do formato, a publicação privilegiará uma linguagem direta e mais próxima à oralidade dos relatos, que facilite o acesso e o trânsito entre diferentes públicos leitores.

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

B.2 Roteiro para entrevista com gerentes indígenas 1) O seguinte roteiro orientou as três conversas realizadas com Gersen Baniwa, Escrawen Sompré e Euclides Pereira Macuxi. Foi usado como instrumento aberto, transformado ao longo dos encontros, com novos direcionamentos oferecidos pelos próprios entrevistados. 2) Você poderia se apresentar, dizendo também qual foi sua participação/papel no PDPI? Em que momento/período essa participação aconteceu? 3) Que momentos e/ou situações mais significativas de sua experiência poderia indicar? Por quê? 4) Do ponto de vista do movimento indígena, o que essa participação significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? 5) Do ponto de vista do Estado, o que essa participação significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? 6) O que poderia dizer a respeito da mediação entre o movimento indígena e o Estado? 7) Que avaliações e considerações você pode fazer sobre o significado do PDPI para os povos, grupos e comunidades indígenas envolvidos? Do ponto de vista dos contextos locais e regionais, que memórias ou considerações poderia partilhar? 8) Do ponto de vista de seu próprio povo, poderia fazer algum comentário? 9) Gostaria de comentar algo sobre a atuação de outros grupos, de outras instituições ou parcerias? 10) Sobre a experiência de gestão do PDPI e sobre a gestão dos subprojetos: O que deve ser registrado para ser legado como lição aprendida? 11) Para finalizar, uma questão mais aberta sobre a publicação Diálogos e saberes: estamos coletando

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relatos para uma memória institucional e coletiva sobre o que foi vivido, e o que deve ser lembrado para outros desafios e ações nas relações entre povos indígenas e Estado brasileiro, como a construção de políticas públicas para povos indígenas. Você tem algum relato ou indicação específica sobre o que deve constar desse diálogo? B.3 Roteiro e orientações para diálogo com coordenadores e participantes dos subprojetos Do ponto de vista metodológico, as conversas e encontros podem ter uma forma mais livre, construída em conjunto com os participantes. Podem ser realizadas reuniões em grupo ou conversas/entrevistas com pessoas específicas, que tiveram atuação ou experiências mais intensas em alguma das etapas do subprojeto. É importante também considerar quem acompanhou o subprojeto de modo mais distanciado. A partir do consentimento dos envolvidos, serão documentados os diálogos (escrita, áudio e fotos), e parte desse material comporá a publicação. De modo geral, os registros devem contemplar os seguintes aspectos: 1) apresentação da equipe e da pesquisa: um pouco da história do PDPI e o momento de seu encerramento; 2) a proposta da publicação Diálogos e saberes: registro de memórias, relatos e experiências de diferentes participantes indígenas e não indígenas; e 3) proposta de trabalho: a ser definida entre equipe PDPI/GIZ e coordenação do projeto. B.3.1 Sugestões para guiar conversas As perguntas a seguir podem ser usadas de forma livre e adaptadas a diferentes interlocutores, conversas e situações. Não precisam ser respondidas de modo

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

exaustivo, nem em sequência, pois algumas podem ser repetitivas. Caso alguém prefira responder por escrito, algumas poderão ser selecionadas para compor um questionário. 1) Qual a participação/papel do entrevistado no subprojeto? Em que momento/período essa participação aconteceu? 2) Como descrever ou contar a história do subprojeto? Ele tem um nome entre as comunidades? 3) Como surgiu a ideia do subprojeto? Que práticas e/ ou atividades precederam o projeto? 4) Que momentos e/ou situações mais significativas de sua experiência poderia indicar? Por quê? 5) Quais as maiores dificuldades enfrentadas? E quais as principais vitórias alcançadas? 6) Do ponto de vista da organização e do movimento indígena, o que a experiência do subprojeto significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? 7) Do ponto de vista da terra indígena, o que essa experiência significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? 8) Do ponto de vista das comunidades/aldeias, o que essa participação significou? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? 9) Do ponto de vista das relações com o Estado, o que essa participação significou? Com a prefeitura municipal? Com o governo do estado? com o governo federal? Que desafios e aprendizados podem ser registrados? 10) Há outros parceiros/agentes que tiveram papel significativo? 11) Houve pessoas – indígenas e não indígenas – que tiveram papel marcante para a realização do subprojeto?

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12) O que foi bom e o que deu certo no subprojeto? Por quê? O que não foi tão bom, e não deu certo? Por quê? Comente as mudanças e redirecionamentos ocorridos durante o subprojeto. 13) Como o PDPI é visto? Qual o entendimento que se tem sobre o PDPI? Esse entendimento se transformou com o tempo? E sobre a relação/ comunicação com a equipe e com os assessores do PDPI? 14) Entre os participantes do subprojeto, houve participantes do curso de formação de gestores indígenas? Caso afirmativo, buscar a relação entre essas experiências. 15) Com a finalização do subprojeto, há perspectiva de continuidade das ações? Se não, por quê? Se sim, quais são essas perspectivas? 16) Para o caso de continuidade das ações, como ela será sustentada? Há outros agentes/organizações/ instituições envolvidos nessa continuidade? 17) O subprojeto propõe uma relação entre indígenas e não indígenas, entre organizações, povos, instituições? 18) O que a experiência e o conhecimento indígenas podem ter ensinado aos outros? Ao Estado e aos governos? E a outras instituições? Por exemplo, na gestão do subprojeto, em relação à proteção de terras indígenas, sobre o manejo de recursos pesqueiros, entre outros. 19) E o que os participantes indígenas do subprojeto aprenderam com a experiência? 20) Gostaria de fazer algum comentário, sugestão ou observação além do que já foi dito?

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LISTA DE SIGLAS

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Série Sistematização do PDPI | Diálogos e Saberes

ACJ

Associação dos Comunitários de Jutaí

AS

Agente de saúde

AIS

Agente indígena de saúde

APAMINKTAJ

Associação das Produtoras de Artesanato das Mulheres Indígenas Kaxinawá de Tarauacá e Jordão

Apir

Associação dos Povos Indígenas de Roraima

Asproju

Associação dos Produtores Rurais de Jutai

BID

Banco Interamericano de Desenvolvimento

BIRD

Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

BNDS

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CCPY

Comissão Pró-Yanomami

CGU

Corregedoria Geral da União

Cimi

Conselho Indigenista Missionário

CINEP

Centro Indígena de Estudos e Pesquisas

CIR

Conselho Indígena de Roraima

Cita

Conselho Indígena Tapajós Arapiuns

CNPI

Comissão Nacional de Política Indigenista

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CNS

Conselho Nacional dos Seringueiros

Coapima

Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão

COIAB

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

Coiam

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia

COICA

Coordinadora de las Organizaciones Indigenas de la Cuenca Amazónica

Conab

Companhia Nacional de Abastecimento

Conama

Conselho Nacional do Meio Ambiente

Consea

Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Copiju

Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí

DFID

Department for International Development

ECO92

II Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento

FOIRN

Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro

Funai

Fundação Nacional do Índio

Funasa

Fundação Nacional de Saúde

GIZ

Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH

GTA

Grupo de Trabalho Amazônico

GTI

Grupo de Trabalho Interministerial

IICA

Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura

ISA

Instituto Socioambiental

KfW

KfW Entwicklungsbank (Banco Alemão de Desenvolvimento)

MAPKAHA

Manxinerune Ptohi Kajpaha Hajene

MDA

Ministério do Desenvolvimento Agrário

MDS

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MEB

Movimento de Educação de Base

MEC

Ministério da Educação

MMA

Ministério do Meio Ambiente

MS

Ministério da Saúde

OIT

Organização Indígena do Tocantins

ONU

Organização das Nações Unidas

OPITARJ

Organização dos Povos Indígenas de Tarauacá e Jordão

PDA

Subprograma Projetos Demonstrativos

PDPI

Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas

PGTA

Plano de Gestão Territorial e Ambiental

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PNGATI

Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas

PNUD

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPG7

Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil

PPTAL

Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal

Prouni

Programa Universidade para Todos

Sebrae

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

Secoya

Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami

SEIND

Secretaria de Estado para os Povos Indígenas

SPI

Serviço de Proteção aos Índios (extinto, atual Funai)

TI

Terra Indígena

Unesco

United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)

UNI-AC

União das Nações Indígenas do Acre, Sul do Amazônia e Noroeste de Rondônia

UNIPI-MSA

União dos Povos Indígenas do Médio Solimões e Afluentes

VigiSUS

Vigilância em Saúde

265

Coordenação Toya Manchineri

Série Sistematização do PDPI

Diálogos e saberes

Diálogos e saberes

Lições, experiências e recomendações dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas para Políticas Públicas

Série Sistematização do PDPI

Diálogos e saberes

Série Sistematização do

Organização: Toya Manchineri (GIZ) e Andréa Borghi M. Jacinto

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