Diálogos Jurídicos na Contemporaineidade

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Descrição do Produto

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Guilherme Sandoval Góes Coordenação Acadêmica Carlos José de Souza Guimarães João Eduardo de Alves Pereira Patrícia de Vasconcellos Knöller Vanderlei Martins

Diálogos Jurídicos na Contemporaneidade Estudos Interdisciplinares em homenagem ao professor José Maria Pinheiro Madeira Participação Especial do Ministro Marco Aurélio Mello (STF) Apresentação Mauro Roberto Gomes de Mattos

Autores Adriano Moura da Fonseca Pinto Alexandre Ribeiro da Silva Alfredo Canellas Guilherme da Silva Armenia Cristina Dias Leonardi Bianca Freire Ferreira Bruno Maia Carlos Alberto Lima de Almeida Carolina Loureiro de Alves Pereira Cintia Maria Scheid Cleber Magalhães Cleyson de Moraes Mello Cristiane Binoto Vidal Rodrigues Danielle Riegermann Ramos Damião Déborah de Paula Iennaco de Rezende Elbert Heuseler Eron Dino Leite Pereira Esdras Rabelo dos Santos Fabiana de Almeida Maia Santos Fernando Chaim Guedes Farage Guilherme Sandoval Góes Hamerson Castilho do Nascimento Horácio Monteschio Isabela de Souza Galdino da Costa

José Flávio Barroso Madaleno José Maria Pinheiro Madeira Júlia Mara Rodrigues Pimentel Júlia Massadas Julia Wand-Del-Rey Cani Karla Corrêa Freire Larissa Toledo Costa Lorena Campos Vieira Luis Carlos de Araujo Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello Márcia Sleiman Rodrigues Marco Aurélio Mello Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira Mauro Roberto Gomes de Mattos Patrícia de Vasconcellos Knöller Raphael Villela Roberto Ferreira Dantas Rodrigo Caporusso Ruchester Marreiros Barbosa Sergio Leonardo Molisani Monteiro Thalissa Corrêa de Oliveira Vanderlei Martins Wellington Trotta William Albuquerque Filho

Editar Juiz de Fora-MG 2015

Conselho Editorial Prof. Dr. Bruno Lacerda (Membro Externo – UFJF – MG) Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Profa. Dra. Elena de Carvalho Gomes (Membro Externo – UFMG) Profa. Elizabeth Santos Cupello (Membro Externo – AVL) Prof. Mario Pellegrini Cupello (Membro Externo – ICVRP) Profa. Ms. Marcia Ignácio R M Mello (Membro Externo – Colégio Pedro II) Prof. Dr. Nuno M. M. S. Coelho (Membro Externo – USP) Profa. Dra. Núria Belloso Martín (Membro Externo – Univ. Burgos – Espanha) Profa. Especialista Patrícia de Vasconcellos Knöller Profa. Ms. Patrícia Ignácio da Rosa (Membro Externo IBC) Profa. Dra. Theresa Calvet de Magalhães Prof. Dr. Vanderlei Martins (Membro Externo – UERJ) Coordenação Geral Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Prof. Dr. Guilherme Sandoval Góes Coordenação Acadêmica Prof. Ms. Carlos José de Souza Guimarães Prof. Dr. João Eduardo de Alves Pereira Profa. Especialista Patrícia de Vasconcellos Knöller Prof. Dr. Vanderlei Martins

Dados internacionais de catalogação na publicação

Diálogos jurídicos na contemporaneidade: estudos em homenagem ao professor José Maria Pinheiro Madeira, Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2015.

1. Direito – Fundamentos – Brasil.

ISBN: 978-85-7851-086-2

A editora e os coordenadores desta obra não se responsabilizam por informações e opiniões contidas nos artigos científicos, que são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas. Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás beber da corrente das tuas delícias; Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz. (Salmos 36: 7-9)

José Maria Pinheiro Madeira Procurador do Legislativo (aposentado). Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor Honoris Causa em Ciência Política e Administração Pública pela Emíll Brunner University. Doutor em Filosofia da Administração Pública e Pós-Doutorado em Direito Público pela Cambridge International University (Inglaterra). Pós – Doutorado em Administração Pública pela Emil Brunner World University ( Flórida/USA). Integrou diversas bancas de Concurso Público. Membro Titular da Banca Examinadora do Concurso de Delegado do Rio Janeiro. Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, Membro da Banca de Concursos Públicos do DETRAN, do IBAMA e da Agência Nacional de Saúde, de Auditor Fiscal, da Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais

(nível Superior), do Estado de Sergipe para o cargo de Advogado, do Estado de Minas Gerais, Cargo Gestor Ambiental, no Concurso Público do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima (nível Superior), no Concurso Público, cargo de Procurador , Estado do Espírito Santos, , no Concurso Público da Agência Nacional de Saúde para o Cargo de Atividade Técnica de Suporte – Direito, no Concurso para os cargos de Escrivão e Investigador de Polícia do Estado de Mato Grosso, no Concurso Público da Secretaria de Estado da Segurança Pública do Estado de Sergipe para o Cargo de Delegado, no Concurso Público da Polícia Rodoviária Federal, no Concurso Público, para o cargo de advogado, no Estado do Espírito Santos, no Concurso Público para o Cargo de Auditor Fiscal, Salvador, Bahia. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no Exterior. Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professor-palestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ. Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estado de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público. Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo. Presidente da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores. É autor dos livros Administração Pública – Tomo I (12ª. edição); Administração Pública – Tomo II (12ª. edição); Servidor Público na Atualidade (9ª. edição); Comentários à Lei de Licitação e Contratos Administrativos Interpretados Pelos Tribunais (2ª. edição); A questão jurídico-social da propriedade e de sua perda pela desapropriação (esgotado); Concurso Público (2ª. Edição), Casos Concretos de Direito Administrativo; Estatuto da Cidade – Lei n° 10.257/01 – Comentários; Comentários à Lei de Improbidade Administrativa (esgotado); Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal (esgotado); Desapropriação, institutos afins (esgotado); Exame de Ordem – Segunda Fase – Direito Administrativo (4ª edição). Colaborador das seguintes publicações jurídicas: Revista Pró-Ciência, Revista Ibero-Americana de Direito Público, Revista Forense, Revista Fórum, Revista da EMERJ, ADV Advocacia Dinâmica, e Revista de Informação Legislativa.

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora/MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre/RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença/RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. Guilherme Sandoval Góes Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de Direito Constitucional e de Direito Internacional Público da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Conselheiro Nacional da Cruz Vermelha e Representante da CVB na Comissão Nacional para a Difusão e Implementação do Direito Humanitário no Brasil. Professor de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e de Metodologia da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Coordenador do Curso de Direito do Campus Tom Jobim (Barra da Tijuca) da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Professor Convidado do Programa de Mestrado Profissional da Universidade da Força Aérea (UNIFA). Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Criança e do Adolescente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na disciplina Direitos Humanos. Professor e Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade Estácio de Sá do campus Tom Jobim (Barra da Tijuca). Professor e Coordenador da Divisão de Geopolítica e Relações Internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG). Professor do Curso de Direito Internacional dos Conflitos Armados da ESG/ Comitê Internacional da Cruz Vermelha nos anos de 2010 e 2011. Diplomado pelo Naval War College dos Estados Unidos da América (Newport, Rhode Island). Membro do Conselho Editorial/Científico da Revista Legis Augustus da UNISUAM-RJ, da Revista da Universidade da Força Aérea e da Revista da Escola Superior de Guerra. É Autor e Organizador de diversas obras acadêmicas sobre Direito Constitucional, Neoconstitucionalismo, Direitos Humanos e Geopolítica com artigos traduzidos para o italiano e espanhol.

Coordenadores Acadêmicos Carlos José de Souza Guimarães Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC,1992) e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ,1996). É Professor da Faculdade de Direito da UERJ e Professor da EMERJ. Desde o ano 2000, é Advogado da União (AGU – Categoria Especial) e Diretor Regional da Escola da Advocacia-Geral da União na 2ª Região (RJ/ES). João Eduardo de Alves Pereira Geógrafo, com o registro 2007131366, CREA-RJ. Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986), Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). CREARJ. É Professor-Adjunto nas disciplinas Economia Política, Geografia Política e Economia do Petróleo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Professor-conteudista e responsável pela disciplina Geografia da População Brasileira do Curso de Licenciatura em Geografia (EAD) do Consórcio CEDERJ-UERJ-UAB. Patrícia de Vasconcellos Knöller Especialista em Direito Público. Professora de Direito Administrativo nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá. Professora da EMERJ. Advogada e Parecerista na área do Direito Administrativo. Membro Titular da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores. Vanderlei Martins Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/ Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008),  Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/ SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas.

Autores Adriano Moura da Fonseca Pinto Doutorando em Direito pela Universidad de Burgos-Espanha. Advogado. Professor Universitário. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estácio de Sá-campus Freguesia. Integrante da Coordenação Geral do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro-RJ.

Alexandre Ribeiro da Silva Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, Campus de Juiz de Fora e também mestrando no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa PósGraduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). É advogado e professor de literatura e português. Possui Pós-Graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), Graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2009) e Graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010).

Alfredo Canellas Guilherme da Silva Mestre em Direito – UGF/RJ. Bacharel Direito UVA/RJ e Filosofia UERJ. Professor de Direito Constitucional e Ciência Política – UNESA/RJ; Membro do Grupo de Pesquisas Novas Perspectivas na Jurisdição Constitucional – UNESA/RJ. E-mail: [email protected].

Armenia Cristina Dias Leonardi Professora do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Bianca Freire Ferreira Pós-Graduada em direito penal e processo penal pela UNESA. Advogada.

Bruno Maia Bacharel em Direito pela UNIPAC – Barbacena; Especialista em Direito Civil pela PUC – Minas; Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC – Juiz de Fora; Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino.

Carlos Alberto Lima de Almeida Doutor em Política Social PPGPS-UFF. Professor Auxiliar I e Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso da Universidade Estácio de Sá – UNESA. E-mail: carlosalberto.limadealmeida@ gmail.com

Carolina Loureiro de Alves Pereira Acadêmica do 3º período da Faculdade de Direito da UERJ.

Cintia Maria Scheid Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul/UNISC; Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e em Direito Notarial e Registral pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; MBA pela Escuela Superior de Administración y Dirección de Empresas – ESADE Barcelona, Espanha. Titular do 1º Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais e 5º Tabelionato de Notas de Maringá, Paraná.

Cleber Magalhães Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora/MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre/RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.

Cristiane Binoto Vidal Rodrigues

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Mestranda em Direito no curso de Hermenêutica e Direitos Fundamentais da Universidade Antonio Carlos – UNIPAC, possui especialização em Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá, Graduação em direito pela Universidade Estácio de Sá e Graduação em Administração pela Universidade Cândido Mendes (1996). Atualmente é Coordenadora do curso de Direito da UNESA, campus Freguesia, Professora Auxiliar I da Universidade Estácio de Sá além de advogada.

Danielle Riegermann Ramos Damião Doutoranda em Função Social do Direito – FADISP (2015). Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003). Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002). Autora de obras jurídicas. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN) e da Faculdade São Luís. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (Graduação e Pós-Graduação). Assessora Jurídica da FUNEP – Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial, Civil e do Trabalho.

Déborah de Paula Iennaco de Rezende Advogada, mestranda no programa de mestrado em Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e efetivação dos Direitos Humanos no contexto Social e Político contemporâneo”. Pós-Graduanda em Direito Trabalhista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC PUCMG. Graduada no curso de Direito pelo Instituto Vianna Júnior.

Elbert Heuseler Advogado. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestre em Direito. Curso de Pós-Graduação no Exterior. Pós-Graduado em Estratégia e Relações Internacionais. Especialista em Brasil Contemporâneo pela ESG. Aprovado em 1º lugar no Concurso para Professor Substituto de Direito Administrativo da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Coordenador e Professor do IBMEC Business Scholl – MBA em Direito Empresarial. Professor de Direito nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da UNESA. Coordenador do Curso de PósGraduação em Direito Militar da UNESA. Parecerista em Direito Administrativo e Militar. Autor de Livros e Artigos em Direito Público. Assessor Jurídico do Tribunal Marítimo e da Marinha do Brasil (RM1). Vice-Presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Público. www.ipdp-brasil.org

Eron Dino Leite Pereira Advogado inscrito na OABMG; Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho; Pós- Graduado em Direito Previdenciário; Formação em Docência de Ensino Superior; MBA Executivo em Petróleo e Gás; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais.

Esdras Rabelo dos Santos Advogado. Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Licitações e Contratos Administrativos – EAD. Polo Botafogo, Rio de Janeiro/RJ.

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Fabiana de Almeida Maia Santos Advogada; Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/FND/ UFRJ); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); pesquisadora dos grupos Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional (NP JURIS/UNESA), Observatório da Justiça Brasileira (OJB/ UFRJ) e do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT/UFRJ); bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].

Fernando Chaim Guedes Farage Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC de Juiz de Fora/MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora/MG. Advogado.

Guilherme Sandoval Góes Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Coordenador do Curso de Direito do Campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Professor de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação do Direito da Criança e do Adolescente da UERJ. Chefe da Divisão de Geopolítica e Relações Internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG). Conselheiro Nacional da Cruz Vermelha Brasileira.

Hamerson Castilho do Nascimento Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC – Juiz de Fora/MG; Pós-Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá; Pós-Graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Estácio de Sá; Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá; Professor de Direito do Consumidor, Responsabilidade Civil e História do Direito Brasileiro na Graduação da universidade Estácio de Sá; Advogado atuante inscrito na OAB/RJ.

Horácio Monteschio Mestre em Ciências Jurídicas pelo Unicesumar Maringá. Especialista em Direito Público e Direito Processual Civil pelo IBEJ; Direito Tributário pela UFSC; Direito Administrativo pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar; Direito contemporâneo pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Integrante da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Estado do Paraná. Membro do IPRADE – Instituto Paranaense de Direito Eleitoral. Professor das Faculdades OPET em Curitiba, advogado militante.

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Isabela de Souza Galdino da Costa Advogada e Pós-Graduanda em Direito Constitucional pela UCAM.

José Flávio Barroso Madaleno Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Direito pela Faculdade Doctum de Manhuaçu e advogado.

José Maria Pinheiro Madeira Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor Honoris Causa em Ciência Política e Administração Pública pela Emíll Brunner University e Pós-Graduado no Exterior. Pós-Doutorado pela Cambridge International University (Inglaterra). Foi Procurador do Legislativo (aposentado). Integrou diversas bancas de Concurso Público. Membro Titular da Banca Examinadora do Concurso de Delegado do Rio Janeiro. Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro da Banca do DETRAN, do IBAMA e da Agência Nacional de Saúde. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no Exterior. Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professor-palestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ. Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estado de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de PósGraduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público. Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo. Presidente da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores. 

Júlia Mara Rodrigues Pimentel Mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Ciências Penais pelas Faculdades Integradas de Caratinga; Especialista em Direito Público e em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhaguera-Uniderp. Advogada e Conselheira da “OAB Mulher” da 54ª Subseção da OAB. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Doctum de Manhuaçu e Professora da Rede Doctum de Ensino.

Júlia Massadas Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ); pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT/PPGD/UFRJ); e pesquisadora do Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). E-mail: [email protected]

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Julia Wand-Del-Rey Cani Professora Substituta de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ); Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/FND/UFRJ); Especialista em Direito Público pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP); pesquisadora do grupo de pesquisa Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ); E-mail: [email protected].

Karla Corrêa Freire Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e bacharelanda do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA). 

Larissa Toledo Costa Mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC); Pós-graduada em Direito Econômico e Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Lorena Campos Vieira Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas Vianna Júnior; Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestranda em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora.

Luis Carlos de Araujo Procurador de Justiça Aposentado do Estado do Rio de Janeiro; Professor Titular de Processo Civil da Universidade Estácio de Sá desde 1994; Professor de Direito Processual Civil, Direito Empresarial e Técnicas de Sentença da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro de 1985/2005; Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estácio de Sá de 1995/1999; Diretor de Campus João Uchoa de 1999/2001; Coordenador da Disciplina de Processo Civil de 2001/2009 da Estácio; Coordenador Nacional das Disciplinas de Processo Civil e Direito Empresarial de 2009/2012. Pós-Graduação na Estácio em 2012.

Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello Mestre em Direito. Professora de Processo Civil. Advogada.

Márcia Sleiman Rodrigues Doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Docente da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estácio de Sá. Coordenadora de Avaliação da Universidade Estácio de Sá.

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Marco Aurélio Mello Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira Jornalista e advogada. Possui Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e Graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2013). Atualmente é mestranda no programa “Hermenêutica e Direitos Fundamentais”, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e Efetivação dos Direitos Humanos nos Contextos Social e Político-Contemporâneos”, na Universidade Presidente Antônio Carlos. É também mestranda no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-Graduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Desenvolve pesquisas nas áreas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Direito Constitucional e Teoria da Comunicação (Agenda-Setting Theory).

Mauro Roberto Gomes de Mattos ADVOGADO no Rio de Janeiro/RJ- BRASIL. Autor dos Livros (dentre outros): “O Contrato Administrativo”. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002; “O Limite da Improbidade Administrativa: O Direito dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92”. 5. ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2010; “Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada : Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos da União”. 6. ed., revista e atualizada. Niterói/RJ: Impetus, 2012; “Tratado de Direito Administrativo Disciplinar”. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010; “Inquérito Civil e Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa: Limites de Instauração”. Rio de Janeiro, Forense, 2014. Vice Presidente do Instituto Ibero-Americano de Direito Público (Capítulo Brasileiro) – IADP; Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Membro do IFA – International Fiscal Association; Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; CoCoordenador da Revista Ibero-Americana de Direito Público – RIADP (Órgão de Divulgação Oficial do IADP); Colaborador permanente de diversas “Revistas de Direito” Brasileiras e Estrangeiras, com artigos doutrinários jurídicos bem como, de “Revistas Eletrônicas de Direito” no Brasil e Exterior; Colaborador de Jornais de grande circulação Brasileiros; Parecerista; Conferencista/Palestrante.

Patrícia de Vasconcellos Knöller Especialista em Direito Público. Professora de Direito Administrativo nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá. Professora da EMERJ. Advogada e Parecerista na área do Direito Administrativo. Membro Titular da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores.

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Raphael Villela Mestrando em População, Território e Estatísticas Públicas (ENCE/IBGE); Pós-Graduando em Análise Ambiental e Gestão do Território (ENCE/ IBGE); Geógrafo (UFRJ).

Roberto Ferreira Dantas Bacharel em Direito pela UNESA, Pós-Graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNESA.

Rodrigo Caporusso Graduado em Direito pela Faculdade São Luís – Jaboticabal. Advogado.

Ruchester Marreiros Barbosa Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Processo Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Processual Penal da Graduação e Pós-Graduação da UNESA/RJ, professor de Penal e Processo Penal da PósGraduação da Universidade Cândido Mendes, professor conteundista do site www.atualidadesdodireito.com.br dos professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Professor concursado da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos jurídicos e científicos. Membro Titular da Association Internationale de Droit Pénal, Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro da Law Enforcement Law Enforcement Against Prohibition. Palestrante e Conferencista. email: [email protected]. Janeiro de 2015.

Sergio Leonardo Molisani Monteiro Advogado Especialista e Mestrando; Professor de Direito no IPTAN – São João Del Rei.

Thalissa Corrêa de Oliveira Artigo Científico apresentado pela acadêmica do 8º Período de Direito da Faculdade de Direito de Valença, do Centro de Ensino Superior de Valença, da Fundação Educacional Dom André Arcoverde.

Vanderlei Martins Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo

e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008),  Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/ SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/ Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas.

Wellington Trotta Bacharelado em Direito (UGF) e Filosofia (UERJ), Mestrado em Ciência Política (UFRJ), Doutorado em Filosofia (UFRJ) e Pós-Doc em Filosofia (UFRJ). Atualmente leciona Filosofia na UNESA, responsável pelo Núcleo de Pesquisa de Ciências Jurídicas e Sociais pela UNESA de Cabo Frio.

William Albuquerque Filho Mestrando em Direito, Hermenêuntica e Direitos Fundamentais, Unipac/JF. Orientador: Prof. Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior.

Sumário Palavras da Coordenação

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Cleyson de Moraes Mello, Guilherme Sandoval Góes, Carlos José de Souza Guimarães, João Eduardo de Alves Pereira, Patrícia de Vasconcellos Knöller e Vanderlei Martins

Apresentação

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Mauro Roberto Gomes de Mattos

Artigos A Ética nas Funções de Estado

29

Marco Aurélio Mello

Fases do Processo Administrativo

39

José Maria Pinheiro Madeira

Delação Premiada não serve para fins de Admissibilidade de Ação de Improbidade Administrativa

57

Mauro Roberto Gomes de Mattos

Direito e Novas Demandas Sociais

69

Vanderlei Martins

Esboço sobre o Teórico e o Prático no Pensamento de Kant, Atravessado pela Liberdade

83

Wellington Trotta

Direitos Humanos: Pax Americana ou Metaconstitucionalismo?

99

Guilherme Sandoval Góes e Márcia Sleiman Rodrigues

O Curso de Direito e a Questão Racial: Racismo e Relações Étnico-raciais a partir de um Estudo Quantitativo com Alunos do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá 113 Carlos Alberto Lima de Almeida

O Direito Fundamental à Liberdade de Crença Cleyson de Moraes Mello e Lorena Campos Vieira

127

O Servidor Público Pós-moderno: a Gestão por Competências na Receita Federal do Brasil 141 Cleber Magalhães

Processo Administrativo: Leitura à Luz do Sistema Acusatório 153 Elbert Heuseler

Cooperação Internacional

167

Luis Carlos de Araujo

Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF 175 Patrícia de Vasconcellos Knöller

O Juiz Péricles: a Hermenêutica e o Constitucionalismo Democrático

193

Alfredo Canellas Guilherme da Silva

As Políticas Públicas Sociais no Contexto da Globalização: o Caminho para uma Cidadania Deliberativa

207

Cintia Maria Scheid

Aplicação da Teoria Objetiva nos Casos de Acidente de Trabalho 223 Danielle Riegermann Ramos Damião e Rodrigo Caporusso

Poder Geral de Natureza Administrativo-cautelar pelo Delegado de Polícia e sua Função Inerente ao Sistema Acusatório Garantista 243 Ruchester Marreiros Barbosa

A Defesa dos Direitos da Personalidade em Face da Preservação do Direito à Intimidade na Sociedade Contemporânea 267 Horácio Monteschio

A Tutela Executiva no CPC/73 e na Lei 13.105/2015: os Devedores Particulares Condenados ao Pagamento Quantia Certa, Fazer e não Fazer e Entregar Coisa Certa

283

Adriano Moura da Fonseca Pinto e Isabela de Souza Galdino da Costa

Sustentabilidade e Licitação: uma Perspectiva Conceitual

295

Esdras Rabelo dos Santos e Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello

A (de) ontologia dos Princípios em Robert Alexy Bruno Maia

309

A Legitimidade da Lei 12.318/2010 que versa sobre a Alienação Parental

317

Fernando Chaim Guedes Farage

O Reconhecimento do Outro Através de si Mesmo: a Busca de uma Justiça Equitativa sob a Concepção de Martin Heidegger 327 Armenia Cristina Dias Leonardi

Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

341

Eron Dino Leite Pereira

O Positivismo Legal de Hans Kelsen versus a Hermenêutica de Martin Heidegger: o Desvelamento do Direito através do Dasein 359 Alexandre Ribeiro da Silva e Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira

O Ecletismo Constitucional e os Limites Morais do Mercado – o Confronto Entre a Dignidade da Pessoa Humana e a Ideologia do Capital 373 José Flávio Barroso Madaleno

O Direito e a Moralidade Política em Ronald Dworkin

389

Júlia Mara Rodrigues Pimentel

Discurso Jurídico como Forma de Discurso Prático-moral

403

William Albuquerque Filho

A Evolução do Círculo Hermenêutico em Schleiermacher, Heidegger e Gadamer

413

Larissa Toledo Costa

Critérios Objetivos para Solução de Eventual Colisão entre Direitos do Empregador e Direitos do Trabalhador

423

Sergio Leonardo Molisani Monteiro

A Evolução Jurídica da Proteção do Cônjuge e do Companheiro no Direito Sucessório 437 Roberto Ferreira Dantas

Princípios Constitucionais Norteadores do Acesso à Justiça no Brasil 447 Cristiane Binoto Vidal Rodrigues

Corte Deliberativa, Fórum do Princípio e Constitucionalismo Democrático: Visões sobre formas de Deliberação da Corte 459 Fabiana de Almeida Maia Santos

A Estrutura do Supremo Tribunal Federal e Eficiência da Justiça Constitucional

473

Julia Wand-Del-Rey Cani

Modernização e Eficiência: os Eternos Desafios do Setor Portuário Brasileiro

487

Raphael Villela

Negociado versus Legislado

499

Déborah de Paula Iennaco de Rezende

Justiça Restaurativa e o Combate à Seletividade do Sistema Penal 513 Bianca Freire Ferreira

O Conceito de Direitos Humanos e seu Valor Moral

523

Hamerson Castilho do Nascimento

Redução da Maioridade Penal no Combate à Criminalidade: Tratamento do Efeito ou da Causa?

533

Thalissa Corrêa de Oliveira

Passé, Présent et Future: L’Anniversaire de 70 Ans de l’ONU et les Principaux buts deL’Agenda de Développement d’Après-2015 547 Carolina Loureiro de Alves Pereira

Audiências Públicas do Supremo Tribunal Federal: Práxis, Expertise e Democracia

555

Júlia Massadas

Provas Eletrônicas em Ações de Danos Morais e Crimes Contra a Honra Karla Corrêa Freire

569

Palavras da Coordenação É com grande satisfação que apresentamos à comunidade jurídica brasileira a obra Diálogos Jurídicos na Contemporaneidade: Estudos Interdisciplinares em Homenagem ao Professor José Maria Pinheiro Madeira. A produção jusfilosófica que conforma esta obra coletiva tem como autores renomados juristas nacionais, bem como integrantes dos corpos docente e discente de diversas Instituições de Ensino Superior. A edição desta obra expressa a preocupação dos Coordenadores no sentido de oferecer um espaço para a discussão e o diálogo interdisciplinares, fato que permite ao leitor o contato com diferentes saberes e diferentes posições doutrinárias. Nessa linha, é importante salientar que os artigos agora publicados têm como finalidade homenagear o ilustre Professor José Maria Pinheiro Madeira. Convidamos todos à leitura. Rio de Janeiro, julho de 2015. Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Guilherme Sandoval Góes Coordenação Acadêmica Carlos José de Souza Guimarães João Eduardo de Alves Pereira Patrícia de Vasconcellos Knöller Vanderlei Martins

Apresentação Com muita honra fui convidado para fazer parte de um seleto grupo de juristas que se uniram para homenagear, através de seus estudos, na presente obra coletiva, o grande mestre José Maria Pinheiro Madeira. Esta satisfação se soma a oportunidade de poder utilizar da presente apresentação para discorrer sobre a importância acadêmico-doutrinária do professor José Maria Pinheiro Madeira, de quem sou declarado admirador. A admiração que nutro pelo professor Madeira foi adquirida pelos seus Magistrais trabalhos jurídicos, consagrados em livros de leitura obrigatória para os cultores do direito público. O professor Madeira é autor dos seguintes livros: Administração Pública – Tomo I (12ª edição); Administração Pública – Tomo II (12ª edição); Servidor Público na Atualidade (9ª edição); Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos Interpretados pelos Tribunais (2ª edição); A questão jurídicosocial da Propriedade e de sua perda pela desapropriação (esgotado); Concurso Público (2ª edição); Casos Concretos de Drieito Administrativo; Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/010 – Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal (esgotado); Desapropriação, Institutos afins (Esgotado); Exame de Ordem – Segunda Fase – Direito Administrativo (4ª edição). A temática do direito administrativo, tão bem exposta nas obras jurídicas do homenageado, tem na atualidade importância fundamental, sendo de todos a preocupação na defesa do patrimônio, tanto do ente público, como do servidor destinatário de direitos e de garantias fundamentais. Essa importância temática, aliada ao alto grau de excelência jurídica do homenageado em seus estudos e obras, faz com que os estudiosos do direito público tenham uma referência segura na busca da solução de seus conflitos ou dúvidas. O professor Madeira, ora homenageado, também colabora com várias publicações, dentre elas: Revista Pró Ciência, Revista Ibero Americana de Direito Público, Revista Forense, Revista da EMERJ, ADV Advocacia Dinâmica e Revista de Informação Legislativa. Não bastasse essa fecunda e consagrada carreira jurídica no campo doutrinário, o professor Madeira contribuiu com os seus préstimos intelectuais como destacado Procurador Legislativo (aposentado), sendo professor Emérito da Universidade da Filadélfia, professor Palestrante da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estácio de Sá, Professor da Fundação Getúlio Vargas, professor do Corpo Docente do Curso de Pós Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense.

Inobstante esse invejável curriculum, o professor Madeira é Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor honoris causa em Ciência Política e Administração Pública pela Emil Brunner University, Doutor em Filosofia da Administração Pública e Pós-Doutorado em Direito Público pela Cambridge Internacional University, Pós Doutorado em Administração Pública pela Emil Brunner Word University, além de integrar, como membro titular, inúmeras bancas examinadoras de Concursos Públicos. Em síntese, o professor José Maria Pinheiro Madeira é um jurista nato, podendo e devendo ser considerado por toda comunidade científica acadêmicojurídica e pelos operadores do Direito, como um grande estudioso e porque não dizer, uma das máximas autoridades nacionais no âmbito do estudo do direito administrativo, em decorrência inclusive, de que, com maestria, produz textos e obras jurídicas que servem de referência para todos os que militam ou estudam a respectiva área do Direito Público. Dessa forma, todas as homenagens feitas ao professor Madeira são minúsculas em face da grandeza da sua obra e de seus ensinamentos. Os presentes estudos não possuem a pretensão de igualar a Obra do mestre homenageado, mas de exteriorizar toda a admiração e apreço que os articulistas participantes sentem pelo nosso Professor Madeira. Rio de Janeiro, 15 de junho de 2015. Mauro Roberto Gomes de Mattos

A Ética nas Funções de Estado Marco Aurélio Mello1 No Brasil, quem tem ética parece anormal. (Mário Covas) Será uma boa nova o retorno à velha discussão sobre a ética na gestão pública? Os otimistas decerto responderão que sim, vendo a questão como sinal do despertar da consciência cívica nacional ou, mais ainda, como prova viva do amadurecimento político do país. Os mais pessimistas, já descrentes, enxergarão, sem dúvida, os escândalos por trás da notícia, os abusos e desmandos que serviram de mote à volta do assunto às páginas dos jornais. Qualquer que seja a vertente escolhida, porém, o fato é que, a cada dia, a população parece mais intransigente e vigilante em relação ao comportamento dos agentes públicos. Daí a grande repercussão das manchetes em se tratando de desvios de conduta, sempre ganhando vulto, temerariamente, até um mero indício sobre uma mínima possibilidade de corrupção. Lenta, mas solidamente, vai-se incutindo na sociedade brasileira a exata noção acerca da importância da transparência nos atos de administração pública, do combate eficaz à corrupção, da cobrança diária nó tocante à responsabilidade dos agentes públicos. Hoje em dia, não parece se mostrarem suficientes, aos olhos do povo, eventuais bons resultados da ação estatal, mensurados no âmbito da eficiência e eficácia e estampados em relatórios recheados de cifras e índices alentadores. Exige-se daqueles que personificam o Estado postura compatível com o múnus público. Há de se cumprir e respeitar as leis, sim, mas à luz da ética como norte fundamental nas relações interpessoais. As proficientes palavras do professor Roberto da Matta retratam quase à perfeição esse entendimento: “Quando falamos em ética, não estamos simplesmente nos referindo a uma relação de eficiência entre uma agência governamental e suas tarefas junto ao Estado, mas estamos pondo em cena, pela primeira vez no caso do Brasil, a atitude que deve guiar o que se está fazendo. A ética introduz uma forte e irrevogável dimensão moral no âmbito da administração pública. Não se trata mais de multiplicar eficiência e recursos, mas de realizar isso dentro de certos limites e com uma certa atitude. Se, antigamente, os fins justificavam os meios – e os fins da administração pública brasileira sempre se confundiram com os objetivos políticos imediatos e práticos de quem governava –, agora a equação entre meios e fins muda de figura, pois os agentes devem estar conscientes e preparados para levantarem objeções a respeito dessa equação. Realmente, a ética sugere que nem todas as combinações entre meios e fins são moralmente coerentes ou aceitáveis. Ser eficiente pode levar a uma subversão dos meios relativamente aos fins. Ser ético, porém, conduz a um exame permanente entre meios e fins.” 1

Ministro do Supremo Tribunal Federal.

A Ética nas Funções de Estado

E o que vem a ser a ética, palavra que, originando-se do grego ethiqué ou ethos e do latim ethica, ethicos, tem a ver com costume, uso, caráter, comportamento? Passando ao largo da seara árida das definições acadêmicas, pode-se assentar, como o fez o professor Miguel Reale, revelar-se a Ética como a ciência normativa da conduta, ou como um conjunto de valores e regras de comportamento, um código de conduta que as coletividades – todas – adotam. Na verdade, a preocupação com a ética como princípio de conduta humana é tão antiga quanto a própria humanidade, já que, de acordo com o antropólogo francês Claude Levi-Strauss, a passagem do reino animal para o humano, isto é, a transição da natureza para a cultura, só aconteceu quando, em face da proibição de incesto, instaurou-se a lei, estabelecendo-se, desse modo, as relações de parentesco, de grupo e, consequentemente, de alianças sobre as quais se soergueu a organização social humana. Portanto, é de se afirmar que não existe um povo sem um conjunto de regras morais, imprescindíveis para garantir a convivência entre os homens, cujo trabalho coletivo alicerçou-se na concordância entre os partícipes, garantindo, assim, com o domínio das forças da natureza, a sobrevivência da espécie. Longe estou da pretensão de discorrer sobre o pensamento de Aristóteles – para quem a felicidade, o fim último da vida, só poderia ser alcançada por meio das virtudes intelectuais e morais ou de endossar a teoria de Thomas Hobbes – que, na obra Leviatã, concluiu ser necessária a presença de um Estado forte para reprimir a inerente maldade humana. Tampouco defenderei o Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual os homens, bons por natureza, corrompem-se pela vida em sociedade, mostrando-se os desvios éticos como consectários naturais dos desajustes sociais. A discussão sobre os desvãos teóricos da ética na história humana demandaria incursões à vasta obra de Kant – que, desprezando os efeitos, entendeu ser a motivação ética o substrato para se julgar a moralidade de determinado ato –, ou de Spinoza, cuja tese assentase na premissa de que a noção do bem e do mal deve ser delineada à luz das necessidades e interesses dos homens. Cumpriria também lembrar Nietzche, o irrequieto filósofo alemão que, numa crítica feroz à moral, sustentou ser bom tudo o que fortifica no homem o sentimento e a vontade de potência, e mau tudo o que provém da fraqueza, de maneira que a moral seria, então, a arma dos fracos à vista da natural auto-realização dos mais fortes. Em contraposição, caberia aludir às lições de Bertrand Russel, consoante as quais a humanidade imprescinde da organização moral, pelo que os homens só são completos se participam plenamente da vida em comunidade. Claro está que o tema afigura-se inesgotável. Para não me alongar em demasia, valho-me do argumento – cuja simplicidade contrasta com a complexidade da matéria –, mediante o qual o economista John Powerlson, citado pelo também economista Paulo Paiva, diz da utilidade prática da ética;

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Marco Aurélio Mello

“São poucas as pessoas que gostam de lavar pratos mas fazem isso diariamente porque dão um grande valor a ter uma mesa limpa. Nenhuma lei impõe esta tarefa, nenhum fiscal examina se foi feita, ou não, nenhum relatório é necessário, ninguém é multado ou preso por não fazer. Mas fazemos. (...) Proponho uma cultura econômica na qual nos comportamos moralmente pela mesma razão que lavamos pratos: isso nos dá vantagens, e as consequências de não fazer seriam penosas pessoalmente, não do ponto de vista legal.” Aí está, de uma forma quase trivial, o valor dos princípios éticos, quando menos na economia individual de cada um de per si e de todos, em última instância. A sociedade brasileira há muito já intuiu a serventia desses valores, pelo que, de uma maneira cada vez mais direta e atenta, vem reclamando dos dirigentes e autoridades uma conduta compatível com o mister de bem servir à coletividade. Como no exemplo acima, o raciocínio é simples; a equação, descomplicada: maior transparência conduz forçosamente ao aumento de credibilidade na gestão de recursos públicos, o que resulta no fortalecimento das instituições e da economia do país, de modo a permitir, quem sabe, um “orçamento ético” – nas sempre pertinentes palavras do ex-Governador Cristovam Buarque –, e, assim, a diminuição das desigualdades sociais, atávica mazela que nos expõe diariamente ao opróbrio do mundo. Mais do que justificada, portanto, desponta a necessidade de se fortalecer, aprimorar e divulgar amplamente os padrões éticos que devem reger a prestação do serviço público, com o objetivo tanto de coibir infrações como de difundir uma mentalidade que, de tão absorvida, torne-se arraigada, um modo de proceder tão usual como a mais rotineira tarefa. O ideal seria a introjeção completa desses princípios éticos como uma forma inequívoca de proporcionar benefício comum à nação, tanto quanto todos aceitam ser indispensável a obediência às leis de trânsito como única possibilidade de ter-se veículos e pedestres pelas ruas. Não se trata de uma utopia. Mais já foi feito, basta observar ser regra a convivência pacífica entre os povos, entre vizinhos, apesar da diversidade de interesses. A guerra, sim, é a exceção, bem como o desrespeito às leis. Daí a avançar-se para a observância concreta e corriqueira das normas de conduta não custa muito, mormente no âmbito restrito da atuação governamental. É questão de prioridade e determinação, para a qual inescusável vem a ser o empenho férreo, diligente, diuturno do Estado no intuito de estabelecer e difundir normas e procedimentos simples, claros e de fácil compreensão com vistas a firmar um padrão ético de conduta efetivo que vá ao encontro das expectativas da sociedade, atualmente eivada de crescente desconfiança em relação aos agentes públicos. A tarefa mostra-se hercúlea e demanda, além de tempo, investimentos maciços em educação – pilar central da cidadania porquanto a ninguém escapa ser árdua a missão de eliminar vícios culturais enraizados, decorrentes de práticas administrativas obsoletas e autoritárias, esteadas na abominável tradição coronelista de se confundir o patrimônio público com o domínio privado.

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A Ética nas Funções de Estado

Tão tradicionais quanto espúrias são essas relações na rotina administrativa brasileira. Colho do Professor Tércio Sampaio Ferraz magnífico trecho sobre a gênese e o jeito da corrupção, a qual, para a maioria, revela-se verdadeiramente “endêmica” no Brasil: “Corrupção tem a ver com percepções sociais. Estas percepções sociais são, por sua vez, importantes na formação das dimensões éticas da sociedade e, assim, do modo como os atos públicos são avaliados e julgados. Elas podem ser apresentadas na forma de estereótipos que são facilmente assimilados pela sociedade e mesmo por estrangeiros que com ela entram em contato. Num país subdesenvolvido não é difícil detectar esses estereótipos. Destaque-se, assim, por exemplo, a importância das relações pessoais na escolha de muitos funcionários públicos. Embora a Constituição do país exija concursos públicos para habilitação a cargos públicos, existem milhares de cargos chamados de confiança, que são preenchidos por indicação pessoal. Estes funcionários tendem a atuar com perspectivas de reciprocidade, fenômeno conhecido como “apadrinhamento”, estabelecendo-se uma relação de amizade e compadrio que pode envolver largos espectros: o amigo do amigo, a recomendação de uma pessoa importante etc. Quando essa relação não é possível, ela tende a ser substituída por redes informais em que o dinheiro conta, isto é, à falta do padrinho ou do amigo, surge a compra direta do favor. Esse pagamento em dinheiro de favores é, obviamente, ilegal e antiético. Não obstante, a corrupção não chega a ser percebida como tal quando o pagamento é de valor pequeno e usual. Aceita-se socialmente como uma espécie de compensação pelos baixos salários de funcionário. Neste caso, como no caso das relações por apadrinhamento, uma suspeita de corrupção não teria por base a moral, no sentido kantiano, pois não viria de um imperativo categórico puro, mas, talvez, de um sentimento de justiça distributiva violada, em termos aristotélicos, no sentido de que uns teriam vantagens sobre outros, sem obediência às razões de uma igualdade proporcional. Esta percepção, no entanto, vem acompanhada de sentimentos negativos, como a inveja, que desnaturam a reprovação moral da corrupção.”

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A preocupação com a conduta ética no serviço público é tão antiga que as Constituições brasileiras sempre abrigaram as balizas norteadoras da administração pública. O Diploma Máximo em vigor explicita detalhadamente os princípios que a regem, quais sejam: o da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Além desses, ressalta a probidade administrativa, sem a qual o exercício de atividade pública resulta em severas punições que incluem desde a suspensão de direitos políticos até a perda da função pública, com a consequente indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário. Não se há de esquecer também, como integrante desse caudaloso rol de princípios, a exigência de licitação para a aquisição de bens e serviços. No plano infraconstitucional, inúmeras leis contribuem para a regulamentação

Marco Aurélio Mello

e consolidação desse padrão de conduta almejado, ainda que quase todos os preceitos constitucionais reveladores de tais princípios sejam auto-aplicáveis: Lei n° 8.112/90 (sobre o Regime Único do Servidor Público), Lei n° 9.429/92 (concernente à tipificação dos casos de improbidade), Lei n° 9.784/99 (relativa ao processo administrativo), Lei n° 8.666/93 (acerca dos procedimentos alusivos às licitações) e, mais recentemente, o Código de Conduta da Alta Administração Federal, aprovado pelo Presidente da República em 21 de agosto de 2001. Vê-se, portanto, que de maneira alguma é por falta de previsão legal que se padece dos males ligados à falta de ética no serviço público, entre os quais se destacam: a) enriquecimento ilícito no exercício da função; b) tráfico de influência; c) utilização indevida de cargo público; d) mau uso de informação privilegiada; e) emprego de recursos públicos e servidores em atividades particulares; f ) assessoria ao setor privado; g) recebimento de presentes. Também muitos são os órgãos encarregados de controlar, fiscalizar, capacitar, treinar e punir os agentes públicos para alcançar esse padrão desejado, a exemplo da Corregedoria Geral da União, Secretaria Federal de Controle, Tribunal de Contas da União, Ministério Público Federal, Polícia Federal, comissões de ética (Decreto n° 1.171 /94), Secretarias de Gestão e de Recursos Humanos, comissões parlamentares de inquérito, ENAP e ESAF (escolas de governo destinadas ao treinamento e capacitação de servidores), além de toda a estrutura do Judiciário para julgar e punir as transgressões porventura notadas pelas auditorias, inspeções e fiscalizações realizadas por órgãos de controle interno e externo para aferir a legalidade, legitimidade e economicidade da gestão dos administradores públicos. Entrementes, a peça-chave de toda essa máquina, o verdadeiro botão de partida de todo o sistema chama-se “cidadão”, a quem é dado, inclusive, em verdadeiro reconhecimento a este poder-dever, o direito de ajuizar a ação popular, com o objetivo de anular ato prejudicial ao patrimônio público, bem como de provocar o Ministério Público para a propositura de ação civil pública. Se contamos com os meios legais e a infra-estrutura pertinente, por que tantos problemas de conduta são percebidos no serviço público? Infelizmente, a questão é mais cultural que de estrutura. Como bem assinalou o Poeta Maior, Carlos Drummond de Andrade, a grande falha da República é suprimir a corte, mantendo os cortesãos. Ao contrário do que aconteceu na América do Norte, cujos cidadãos construíram o país, no Brasil nascemos “feitos” pela Metrópole e por mais de três longos séculos vimo-nos impedidos de “fazermo-nos”. As capitanias hereditárias eram verdadeiras possessões de desmandos e, sem contar com um mínimo degrau de liberdade,

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foi realmente penoso construirmos qualquer anteparo de cidadania. Esbarramos nos comezinhos obstáculos da falta de educação formal, da pífia construção de valores sociais. Talvez em face mesmo desse início de história, do berço enviesado em que nasceu nossa pátria, o público, paradoxalmente, sempre nos pareceu pertencer a ninguém, ao invés de ser de todos, e, como tal, nunca mereceu consideração maior. Daí o lixo jogado na rua, a garrafa vazia arremessada do automóvel em trânsito, dada a incorreta percepção, à grande maioria dos brasileiros, de que pouco importa o que não se situa no âmbito da própria morada. Desafortunadamente, por estas paragens sempre vingou a mentalidade segundo a qual, “se não é meu, não me diz respeito nem demanda de mim cuidado algum”. Assim é que o descaso com a coisa pública vicejou, soberano, grassando a ineficiência, apesar desse tão forte aparato institucional voltado ao controle e à fiscalização dos atos públicos. Pode-se afirmar com segurança que ainda hoje grande parte das normas de conduta são desconhecidas pelos agentes públicos e por isso relegadas a segundo plano, quando não acintosamente descumpridas. Mesmo diante do esforço de modernização da máquina administrativa, com o precípuo objetivo de alcançar a máxima eficiência e eficácia, em atendimento ao afa de se obter urgentes e notórios resultados, em raras ocasiões houve preocupação com a promoção e divulgação desse almejado padrão de comportamento no tocante aos quadros públicos, de modo a, coerentemente, incluir a questão ética como instrumento da gestão governamental. Cuida-se, aqui, de um modo padronizado de lidar com a coisa pública, em relação ao qual o servidor, além de consciente da importância da atividade que desenvolve, saiba naturalmente de suas limitações, quer morais, quer administrativas. Acima de tudo, os agentes políticos, os agentes públicos hão de estar conscientizados de que são servidores, impondo-se a constante prestação de contas aos contribuintes. Aqui, abro um parêntese para externar perplexidade com o conhecimento de que é mais fácil um advogado avistar-se em audiência com um juiz da Suprema Corte do que, às vezes, com o da Comarca ou o do Tribunal de cassação. A óptica é sob todos os títulos condenável. O vocacionado para o ofício, para a sublime missão de julgar, deve atender, ouvir e refletir sobre o que exposto pelos profissionais indispensáveis à feitura da almejada Justiça. E essa a postura devida; é essa a postura imprescindível ao cumprimento do dever de bem servir; é essa a postura própria à preservação da grandeza do Judiciário. Prosseguindo, digo-lhes que a falha parece haver residido no próprio sistema institucional. Do contrário, por que pareceria autoincriminadora qualquer consulta de um agente sobre determinado procedimento? Ademais, diante do lento, ineficaz e burocrático processo investigativo sobre desvios funcionais, risível sempre se afigurou, à maioria, a possibilidade de uma punição severa. Rompido o substrato ético, o estrago, mostra-se irremediável. Os efeitos da corrupção se propagam nas mais diversas áreas, atingindo amplamente a imagem interna e externa da administração pública. A grosso modo, pode-se apontar as consequências mais aparentes desse autêntico malefício social como sendo:

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a) aumento dos custos de operação; b) majoração do endividamento externo e interno do país; c) maior dificuldade na captação de recursos para investimento; d) diminuição da qualidade e alcance das ações do governo; e) redução da produtividade do setor público; f ) desvio de recursos destinados a áreas sociais para setores ligados a construção e infra-estrutura (esfera mais propícia ao favorecimento indevido); g) por conseguinte, agravamento da desigualdade social, com acentuação dos sacrifícios impostos à população mais carente; h) descrédito no funcionamento e eficácia das instituições e serviços públicos; i) diminuição da auto-estima da população; j) visível perturbação no moral da nação; k) deterioração do nível de confiança na economia brasileira, desestimulando a vinda de capital produtivo estrangeiro e incentivando a fuga de capitais; l) prejuízo à formação dos valores na camada mais jovem da população, dada a divulgação de péssimos exemplos do que deveria ser a elite intelectual e moral brasileira. Só recentemente, em meio à sucessão de escândalos a envolver altos dirigentes, acompanhados incansavelmente por uma imprensa cada vez mais independente e ágil, e com a inegável mobilização da sociedade brasileira, o assunto reaparece como prato do dia, bastando uma rápida olhada nas eleições deste ano para se constatar que não vingam mais, por aqui, atitudes consideradas pouco éticas, como o louvor ao oportunismo que, anos atrás, deu margem até a um anúncio publicitário com o qual se divulgou a esperteza como um jeito de se dar bem na vida. Quem não se lembra da infelizmente famosa “lei do Gerson”? Como otimista que sou por convicção e natureza, enxergo no horizonte tempos alvissareiros. Senão, que dizer da Comissão de Ética Pública, cujos resultados já se entremostram, apesar da tenra idade do órgão? Importantíssimo e digno de aplausos parece-nos o mencionado Código de Conduta da Alta Administração Federal, aprovado “com o intuito de angariar a confiança da sociedade na conduta dos agentes públicos, a partir do exemplo dado pelos ocupantes dos mais altos cargos comissionados do Executivo Federal: ministros, secretários nacionais, presidentes, e diretores de autarquias, fundações, empresas públicas, agências reguladoras e sociedades de economia mista – pouco mais de 700 pessoas”. O próprio Presidente da República recomendou aos dirigentes das entidades e órgãos do Executivo Federal para que, dentro de suas atribuições e no âmbito de suas competências, empenhassem-se a fim de aprimorar o sistema. Esse Código toma claro o dever de esses servidores revelarem seus interesses particulares que venham a conflitar com o exercício da função pública. Delineia também os limites de atividades profissionais e de gestão patrimonial e financeira. Abrange itens como aceitação de favores, desde transporte, hospedagem, até presentes que possam comprometer a lisura da conduta. A um só tempo, o Código também serve de anteparo a denúncias infundadas, possibilitando aos acusados mais uma fonte de defesa.

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A propósito do desafio que essa Comissão vem enfrentando dia após dia, vale a pena transcrever as “lições aprendidas da experiência da CEP”, na laboriosa pena do Dr. João Geraldo Piquet Carneiro, Presidente da Comissão: a) Normas não têm o condão de alterar hábitos e condutas, se não estão respaldadas na exigência social e em uma estrutura de administração adequada. b) Quem não tem norma efetiva de conduta não tem um referencial ético objetivo. Mas um código de ética não deve ser visto como servindo apenas para “quem não tem ética”. Provavelmente, o inverso é mais verdadeiro. c) A efetividade das normas está diretamente associada ao seu conhecimento e compreensão e ao apoio político e engajamento das lideranças formais e informais. d) Fazer gestão da ética é fundamentalmente desenvolver ações direcionadas para a compreensão das normas de conduta e disseminação de conhecimento sobre como aplicá-las para resolver dilemas éticos. e) Um grande desafio da gestão ética é balancear adequadamente ações preventivas e ações repressivas.

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Disso tudo deflui que, em se almejando um Estado eticamente forte, faz-se mister um mecanismo eficaz para dizer aos agentes públicos das suas inerentes responsabilidades e, assim, alcançar resultados visíveis, ou seja, fomentar uma atmosfera capaz de fazer transparecer a conduta ética como padrão. Parece ser acertada a busca pela consolidação de uma cultura na qual se efetue eficaz e rotineiramente a prevenção contra a corrupção. Para tanto, a vigilância do cidadão comum é de fundamental importância, tornando-se antídoto contra abusos de poder. Nesse processo de assepsia cultural, não se afigura mera coincidência que a transparência caminha pari passn com o desenvolvimento da cidadania. É evidente que, quanto mais democracia, quanto maior a liberdade de imprensa e de opinião, mais contundente o compromisso dos agentes públicos com a ética. O resultado disso tudo será um Estado eficiente na promoção do bem-estar social, bem distante daquilo de que falava Montesquieu, ao advertir: “quando num governo popular as leis não mais são executadas, e como isso só pode ser consequência da corrupção da república, o Estado já está perdido”. Há quem aponte a necessidade de medidas práticas de grande repercussão. A propósito, soube, recentemente, por meio de uma notícia veiculada no site da Revista Consultor Jurídico, que, na China, exatamente há um ano, de acordo com uma nova norma, “o juiz que praticar o mau exercício da jurisdição em nome do Estado poderá receber um convite para renunciar ao cargo”. Se, porventura, o magistrado não assumir o erro, então a instância superior pedirlhe-á o posto. Ainda consoante o informe, foi o Presidente da Suprema Corte do Povo, Xiao Yang, quem pediu a aprovação das normas, ao argumento de que “a confiança pública no Judiciário e o respeito às suas autoridades é proporcional à atuação de seus membros. Devemos atuar com vigor em relação aos nossos juízes para restabelecer a autoridade judicial no país”.

Marco Aurélio Mello

Deste outro lado do hemisfério, somos mais parcimoniosos. De minha parte, defendo, sim: a) a diminuição da burocracia como método eficaz para aumentar a transparência, eliminando-se os indesejáveis “interpostos canais”, a famosa zona cinzenta na qual dificilmente o interesse público dissocia-se do privado. Atualmente, há inúmeras formas de se alcançar esse desiderato, já que, modernizada a máquina administrativa, é de se esperar maior eficiência no controle dos atos públicos. Basta lembrar da informatização e de instrumentos como a Internet, de grande aceitação e rapidamente assimilada pela população brasileira; b) uma equação mais ajustada, mais realista, entre a responsabilidade exigida pelos cargos e as remunerações percebidas pelos agentes. Se é certo, como afirmava Machado de Assis, que a ocasião faz o furto, pois o ladrão já nasce feito, há de se concordar que determinadas circunstâncias funcionam como autênticos chamarizes, incentivando o desvio de conduta, mormente numa época de apelo fácil ao consumismo desenfreado e mitigação de valores morais. Com salários compatíveis, menor o risco da corrupção. Ninguém haverá de expor um bem precioso como um bom emprego, principalmente nessa quadra de vacas magras, se a possibilidade de ganho ou impunidade não se sobrepuser, com vantagens, a uma eventual perda, sobretudo se grande a sanção; c) a capacitação profissional de agentes como condição sine qua non para uma boa administração, no mais amplo sentido. Parece ser consenso que os holofotes devem estar voltados, a par do aprimoramento técnico, à formação humanística dos servidores, o que envolve, necessariamente, a lapidação de valores éticos e morais; d) uma maior eficácia na aplicação das leis, o que inclui, talvez – e avento com a possibilidade a título de sugestão –, a aprovação de um código de conduta, à guisa do que foi feito para a alta administração federal, a ser aplicado à luz dos princípios da nossa Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Não que a Loman, já vetusta, não nos sirva mais. A questão deve ser vista pelo prisma da agilidade, abrangência e explicitude das normas, de modo a ajustar antigos comportamentos e obsoletas práticas à modernidade e velocidade que comandam os dias atuais. A efetividade das normas está hoje prejudicada pela omissão do Legislativo no exame do Projeto de Lei encaminhado, em 1992, pelo Supremo, visando, inclusive, à criação do Conselho Nacional de Administração de Justiça; Por derradeiro, para sacudir o último resíduo de descrença dos derrotistas, aponto a campanha presidencial deste ano como a mais iluminada vitrine de que em curso está o processo de aperfeiçoamento ético por que passa toda a sociedade brasileira. Vivemos, sim, uma época em que desponta o valor “solidariedade” entre a nossa gente, a incluir também o empresariado nacional, haja vista o notável crescimento do chamado “Terceiro Setor”, formado por entidades privadas que se unem ao Estado com o objetivo de alcançar um país melhor e mais justo. Essa consciência cidadã das elites pátrias vem da tardia constatação de

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A Ética nas Funções de Estado

que os problemas sociais não são da responsabilidade exclusiva do Estado, mas incubem à sociedade, de modo a se conseguir mais facilmente “o bem de todos e a felicidade geral da nação”, como profetizou D. Pedro I. Iniludivelmente, tal resultado diz com a prevalência da atitude, do ato ético, o qual, nas sábias palavras de Sua Santidade o Dalai Lama, vem a ser, exatamente, “aquele que não prejudica a experiência ou a expectativa de felicidade das outras pessoas”. Oxalá assim seja, a fim de que, num futuro bem próximo, o jeitinho brasileiro perca de vez a conotação pejorativa para ganhar somente as texturas da alegria e criatividade da gente morena daqui.

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Fases do Processo Administrativo José Maria Pinheiro Madeira

Considerações iniciais Surgido com o Estado de Direito, que promoveu uma profunda transformação nas ideias políticas absolutistas dos monarcas, doravante impondo ao Estado o império da lei, o Direito Administrativo sobreveio ao mundo jurídico justamente para proteger os direitos fundamentais dos cidadãos e defender os interesses da coletividade, ainda que somente a partir do final do século XIX. É ele, pois, sub-ramo do moderno direito público, que regula a conduta do Estado-Administração, disciplinado a ação dos governantes, detentores do exercício do poder estatal, que deve seguir padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, subordinando-os ao princípio da legalidade (art. 37 da CF), preceito consagrado na proposição “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art. 5o, II, da CF). Em outros termos, todos os agentes públicos, independentemente de sua função administrativa e/ou posição hierárquica, só podem fazer aquilo que a lei expressamente determina, e mesmo assim como e quando ela autoriza. Perante o direito positivo brasileiro, portanto, todas as atividades administrativas, discricionárias ou vinculadas, encontram-se atreladas a normas e princípios fixados em lei, sejam estes contemplados de forma explícita ou implícita na ordem jurídica. Sendo assim, qualquer ação estatal praticada sem o devido calço legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é antijurídica, expondose à anulação e seu autor responder a processo, civil, penal e administrativo, conforme o caso, por extrapolar os limites de sua competência legal. Visando manter o império da legalidade e da justiça, além de garantir os níveis de moralidade e eficiência de seus atos, a Administração Pública se utiliza, então, do processo, instrumento formal mais conhecido na prática jurisdicional – eis que as autoridades administrativas não desempenham tal função –, mas que a própria Constituição Federal o reconhece, em vários de seus dispositivos (arts. 5o, LV e LXXII, “b”; 37, XXI; 41, § 1o, II), como legítimo à função administrativa, na medida em que tal instituto, precipuamente, tem por finalidade específica o registro, ordenado e cronológico, de todos os atos da Administração, desde os mais simples, como a formalização das rotinas administrativas, aos mais complexos, como a outorga de direitos a terceiros, a compatibilização dos interesses público e privado, o controle da conduta de seus agentes, assim como do comportamento dos administrados, além de buscar solucionar, através dele, as controvérsias de natureza administrativa, que tanto podem envolver os administrados como os próprios servidores. Esse breve artigo limita-se, porém, a enfocar apenas o processo administrativo com objeto punitivo interno, ou seja, o processo administrativo disciplinar, o

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qual visa apurar condutas irregulares ou ilegais cometidas por agentes públicos, no exercício de suas atribuições, e que, se comprovadas, ensejam a aplicação de penalidades aos seus verdadeiros autores. Para revisar suas fases, que é o objetivo precípuo desse trabalho, além de se lançar mão da Lei nº 8.112/90, que instituiu o Regime Jurídico dos Servidores Públicos da União, das autarquias e das fundações públicas federais, busca-se também observar a Lei nº 9.784/99, porquanto lei subsidiária que regula os processos administrativos em geral, nela se encontrando não só as regras básicas a serem adotadas nos expedientes internos da Administração Pública, direta e indireta, mas também normas que representam princípios de observância constante, nos Estados de Direito, seja qual for o objeto do processo administrativo, preceitos dentre os quais se destacam, por exemplo: o da legalidade objetiva, o da oficialidade, o do informalismo e o da garantia de defesa.1

O processo disciplinar e suas fases Antes de se adentrar no mérito proposto desse trabalho, convém lembrar que, diante das inúmeras tarefas a cargo da Administração Pública na busca do cumprimento de sua função básica, que é promover o bem comum da população, o ordenamento jurídico brasileiro atribui aos agentes administrativos, conforme o cargo, emprego ou função ao qual foram investidos, determinados poderes, reconhecidos como verdadeiros instrumentos à concretização dos fins colimados pelo Estado, mas que devem ser empregados segundo as normas legais, a moral da instituição, a finalidade do ato e as exigências do interesse público. Dentre essas atribuições ou poderes-deveres conferidos à autoridade administrativa, um aqui se destaca: o de comandar os servidores de seu quadro de pessoal, que a ela devem obediência, vale dizer, cabendo-lhes executar suas tarefas em conformidade com as diretrizes fixadas por seu superior hierárquico, salvo as manifestamente ilegais (art. 116, IV, da Lei nº 8.112/90). Resultante desse sistema hierárquico, então, decorre o poder-dever de a autoridade disciplinar seus comandados, fiscalizando as atividades por eles desempenhadas e acompanhando sua conduta com relação ao cumprimento de seus deveres e obrigações, os quais devem estar de acordo com as normas legais e regulamentares. É obrigação da autoridade administrativa, portanto, quando lhe chega ao conhecimento a ocorrência de alguma irregularidade praticada por servidor, no exercício de sua função pública, seja por denúncia ou representação, instaurar imediatamente uma investigação, através de sindicância ou de processo administrativo disciplinar (art. 143, da Lei nº 8.112/90), tendo como finalidade apurar a materialidade dos fatos e sua autoria, de fato, e, caso reste comprovada 1

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed., atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 658.

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a inobservância ou desobediência às normas estabelecidas em lei, impor ao responsável, por consequência, a penalidade correspondente ao ilícito cometido. Insta observar, entretanto, que é ato discricionário da autoridade optar pela instauração de sindicância ou de processo administrativo disciplinar. Isto porque, se as provas existentes forem indiretas, inconsistentes, ou seja, baseadas em meras suspeitas, conjecturas, indícios, etc., estas serão consideradas insuficientes e inoportunas para justificar a instauração de um processo disciplinar, sendo então mais prudente, neste caso, a autoridade promover uma investigação sumária, através do procedimento da sindicância, objetivando um aprofundamento maior dos fatos, cotejando-os com a verdade real, além de identificar seu verdadeiro autor. Por essa razão é que o ato discricionário que determina a instauração do processo disciplinar deve conter os fatos e os fundamentos jurídicos da motivação que foi determinante à iniciação da investigação disciplinar2, pois na falta de prova direta que comprove a prática da infração disciplinar investigada, a autoridade determinará o arquivamento do feito, acatando o relatório final da comissão sindicante, assim evitando uma acusação formal, que poderá ser injusta, certamente abalando moralmente o servidor, ferindo-lhe direitos constitucionais, como a inviolabilidade de sua intimidade, de sua vida privada (e funcional), de sua honra e de sua imagem (art. 5o, X, da CF). De qualquer modo, ao imputar-se a prática de uma infração disciplinar a um determinado agente público, é-lhe assegurada a ampla defesa, eis que a Administração exige uma demonstração inequívoca da ocorrência da referida infração, reprovável pelas normas disciplinares, através de uma prova direta, dessa forma preservando-lhe as garantias constitucionais da inviolabilidade da intimidade e da segurança jurídica. Pronunciando-se a respeito, Mauro Roberto Gomes de Mattos3 declara que, “ofendida a honra objetiva e subjetiva do servidor público com a indevida e injusta instauração de procedimento investigatório ou de processo administrativo disciplinar contra o mesmo, caracterizado está o abuso de poder do direito de investigar.” Por outro lado, se a denúncia ou representação forem acompanhadas de provas concretas, ou o fato infracional e sua autoria forem devidamente identificados pela sindicância, a instauração do processo disciplinar é obrigatória, sobretudo se o ilícito funcional praticado implique em penalidade grave, como a perda de cargo de servidor estável (art. 41, § 1o, da CF) ou, nos termos do 2

Jurisprudência do STJ: “[...] A margem de liberdade de escolha de conveniência e oportunidade, conferida à Administração Pública, na prática de atos discricionários, não a dispensa do dever de motivação. O ato administrativo que nega, limita ou afeta direitos ou interesses do administrado deve indicar, de forma explícita, clara e congruente, os motivos de fato e de direito em que está fundado (art. 50, I, e § 1o da Lei nº 9.784/99). Não atende a tal requisito a simples invocação da cláusula do interesse público ou a indicação genérica da causa do ato.” (Rel. Min. Teori Albino Zavascki, MS nº 9.944/DF, 1a S., DJ de 13/06/2005, p. 157). 3 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de direito administrativo disciplinar. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2008, p. 674.

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art. 146 da Lei nº 8.112/90, suspensão do servidor por mais de 30 (trinta) dias, demissão, cassação de aposentadoria e disponibilidade, ou destituição de cargo em comissão. Note-se, assim, que o processo disciplinar é autônomo, não depende do procedimento da sindicância prévia para sua instauração, salvo se a lei disciplinadora do processo assim o exigir, pois, conforme entendimento firmado pelo STJ, contando com elementos concretos mais do que suficientes para a instauração do processo administrativo, a utilização da sindicância é dispensável.4 Para isso, no entanto, a autoridade administrativa competente deverá fundamentar e motivar o juízo de admissibilidade referente à instauração do processo5, objetivando demonstrar a existência de uma justa causa, de uma responsabilidade administrativa funcional a ser apurada, eis que o processo disciplinar é vinculado a critérios objetivos estabelecidos por dispositivos constantes na Lei nº 8.112/90, e, aí sim, dar seguimento ao rito estabelecido em lei para a tramitação do processo6, sob pena de nulidade absoluta. Para sua validade, então, o processo administrativo disciplinar deve observar o formalismo procedimental estabelecido em lei, embora sem necessidade de ser adotado o mesmo rigor dos atos processuais judiciais, por exemplo, mas dando ao servidor acusado, sim, a oportunidade de se manifestar em todas as fases do processo, de forma ampla e irrestrita, para que ele possa se defender da imputação que lhe é atribuída, não deixando a verdade presumida prevalecer sobre a verdade substancial. 4

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RMS nº 8.280, Rel. Min. Garcia Vieira, 1a T., j. em 01/04/1992. BDA, set./92, p. 540. A esse respeito, vale acrescentar o entendimento de José Armando Costa, que chama a atenção sobre o conhecimento dos fatos por meio da mídia, chamados “fatos notórios”, assim discorrendo, com propriedade: “Notícias sobre corrupção e improbidade política e administrativa, caindo assim no domínio do conhecimento comum da comunidade nacional, e às vezes internacional, chegam a configurar o conceito jurídico de fato notório. E, por isso mesmo, não deixam margem para que as autoridades administrativas das repartições referentes justifiquem as suas omissões sob o pretexto de que desconheciam tais denúncias. Posto que o notório se define como público e do domínio de todos, não mais assiste razão à autoridade administrativa que, sob qualquer pretexto, queira delas se esquivar. Isso porque tais matérias, uma vez veiculadas em jornais, revistas, rádio, televisão e outros meios de comunicação social, não podem mais ser desconhecidas da administração. Principalmente quando tais irregularidades, no todo ou em parte, tenham tido como cenáculo o próprio interior das repartições públicas.” COSTA, José Armando da. Prescrição disciplinar. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 201. 5 Jurisprudência do STJ: “[...] 2 – Consoante a jurisprudência de vanguarda e a doutrina, praticamente uníssona nesse sentido, todos os atos administrativos mormente os classificados como discricionários, dependem de motivação, como requisito indispensável de validade. [...]” (Rel. Min. Paulo Medina, ROMS nº 15.459/MG, 6a T., DJ de 16/05/2015, p. 417). 6 Nesse contexto, é sempre bom lembrar que processo não se confunde com procedimento, pois este significa cada uma das ações que, em conjunto, compõem o processo que, por sua vez, é “um conjunto de procedimentos, predeterminados na lei e executados em ordem certa e necessária, tendentes a dirimir alguma lide ou pendência”, como bem define Ivan Barbosa Rigolin. RIGOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao regime único dos servidores públicos civis. 8. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 252.

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Convém ressaltar, porém, que esse informalismo não significa desleixo da autoridade competente, um pretexto para que o processo administrativo tramite sem obedecer à ordenação e à cronologia dos atos praticados, faltando folhas ou com elas sem a devida numeração e rubricas, com rasuras suspeitas, ou seja, sem a observância dos elementos mínimos que denotem o zelo e a atenção dos órgãos administrativos para os fins do processo, que seria inócuo se assim se apresentasse, certamente não oferecendo a segurança e credibilidade que dele se espera. Vale acrescentar, a tempo, que o processo disciplinar não pode resultar em prejuízo comprovado para as partes, ou seja, deve respeitar o princípio do devido processo legal, assegurando o contraditório e a ampla defesa ao servidor acusado, no sentido precípuo da busca da verdade real, revelada pela produção de provas diretas, possibilitando um julgamento imparcial, justo e isento de dúvidas. Assim, por força do art. 151 da Lei nº 8.112/90, o processo disciplinar se desenvolve em três fases, a saber: da instauração; do inquérito administrativo, que compreende a instrução, a defesa e o relatório; e do julgamento.

Da instauração Para a autoridade administrativa competente dar início a um processo disciplinar, após ter sido levado a efeito o juízo de admissibilidade, o instrumento comumente utilizado para formalizá-lo é a Portaria, na qual devem constar, para sua legitimidade, a motivação, com a descrição clara e circunstanciada dos fatos, a individuação do servidor ora acusado e a infração disciplinar a ele imputada, atribuindo-a a exata qualificação jurídico-disciplinar, isto é, sua tipicidade, mesmo que em tese, valendo aqui lembrar a lição de Hely Lopes Meirelles7: “Processo com instauração imprecisa quanto à qualificação do fato e sua ocorrência no tempo e no espaço é nulo.” Da jurisprudência correlata, ainda se extrai: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DEMISSÃO. ILÍCITO ADMINISTRATIVO. INQUÉRITO DISCIPLINAR. INSTAURAÇÃO. DIREITO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. – A instauração do processo disciplinar é efetuada mediante ato da autoridade administrativa em face de irregularidades funcionais praticadas pelo servidor público, o qual deve conter a descrição e qualificação dos fatos, a acusação imputada e seu enquadramento legal, além da indicação dos integrantes da Comissão de Inquérito. – O inquérito administrativo disciplinar instaurado para apuração da prática de ilícito administrativo mediante Portaria que não contém a descrição dos fatos imputados ao servidor público contém grave vício de nulidade, porque afronta os princípios do contraditório e da ampla defesa. – Recurso ordinário provido (STJ, ROMS nº 10.578/PA, 6a T., Rel. Min. Vicente Leal). 7

MEIRELLES, op. cit., p. 661.

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É essencial, portanto, que a peça inaugural descreva os fatos com bastante clareza e especificidade, de modo a circunscrever o objeto do processo e a possibilitar ao servidor acusado o exercício da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, e do contraditório (art. 5o, LV, da CF). Além disso, para sua validade, a portaria inaugural também deverá designar, nominalmente, uma comissão disciplinar, ao mesmo tempo elegendo, dentre seus integrantes, o que irá presidir os trabalhos. O que há de se observar a respeito é que esse colegiado, a quem caberá decidir pelo indiciamento ou não do servidor ora acusado, atendo-se exclusivamente aos fatos descritos na peça inicial, deverá ser composta de três servidores estáveis, preferencialmente da mesma repartição do acusado – exceto nos casos de absoluta e comprovada necessidade – que deverão ser dotados de indiscutível idoneidade moral e comprovada capacitação intelectual, ainda que estes últimos requisitos, por serem dotados apenas de vinculações éticas, não cheguem a constituir causa de nulidade absoluta do processo8. Não obstante, nos termos do art. 149 da Lei nº 8.112/90, aquele que presidir a comissão “deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado.” Após o recebimento dessa peça inicial pela autoridade competente, por força do princípio da oficialidade, é de sua responsabilidade proceder a autuação da mesma e o seu impulsionamento, sendo a partir da publicação da portaria que o processo disciplinar, então, passa a ter eficácia, pretendendo assim a comissão disciplinar fazer valer não só os direitos e garantias do servidor acusado, como também os preceitos legais que protegem a Administração Pública de eventuais abusos praticados por servidores de má conduta profissional.

Do inquérito administrativo Oficializada a instauração do processo disciplinar, com a designação feita pelo presidente da comissão constituída do servidor que irá secretariar os trabalhos apuratórios, a fase seguinte do processo administrativo é a do inquérito, que se subdivide em três etapas: da instrução, da defesa e do relatório.

Instrução É na fase instrutória do processo administrativo que a comissão disciplinar procura deliberar as primeiras providências a serem tomadas no sentido de elucidar a verdade dos fatos descritos na peça inicial, atendo-se exclusivamente aos fatos nela constantes, vale repetir, buscando os elementos comprobatórios necessários para a tomada de decisão sobre o indiciamento ou não do servidor. Tais providências sintetizadas em ata, é então obrigação da autoridade responsável pela condução do processo notificar o servidor (pessoalmente, por 8

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Apud COSTA, José Armando da. Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. 6. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2015, p. 176.

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carta precatória, rogatória, edital, etc.) de que ele está sendo acusado, inicialmente, de uma suposta infração disciplinar, descrevendo-lhe detalhadamente os fatos que lhe são imputados e os fundamentos legais que ensejaram a abertura do processo, definindo inclusive a tipicidade da infração. A publicidade e a transparência dessa notificação citatória é que irão garantir ao servidor o devido processo legal (art. 5o, LIV, da CF), com a observância do princípio da ampla defesa, com a utilização de todos os meios e recursos admitidos em Direito (art. 5o, LV, da CF; art. 153 da Lei nº 8.112/90) que possam produzir provas a demonstrar sua inocência, assegurando-lhe também o contraditório, com o arrolamento e a reinquirição de testemunhas, a produção de contraprovas e a formulação de quesitos à perícia técnica, se for o caso, razão pela qual o servidor acusado tem o direito de acompanhar todo o processo pessoalmente ou, se assim desejar, ser representado por procurador legalmente constituído para o processo (art. 156 da Lei nº 8.112/90), desde que este não seja servidor público, face a impedimentos legais, sobretudo ao estatuído no inciso XI do art. 117, da Lei nº 8.112/90. Nesse sentido, anote-se: ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. OMISSÃO DOS FATOS IMPUTADOS AO ACUSADO. NULIDADE. PROVIMENTO. 1. A Portaria inaugural e o mandado de citação, no processo administrativo, devem explicitar os atos ilícitos atribuídos ao acusado. 2. Ninguém pode defender-se eficazmente sem pleno conhecimento das acusações que lhe são imputadas. 3. Apesar de informal, o processo administrativo deve obedecer as regras do devido processo legal. 4. Recurso conhecido e provido (STJ. MS nº 10.756/DF, 3a S., Rel. Min. Paulo Medina). MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. TERMO DE INDICIAMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. OCORRÊNCIA. 1. O processo administrativo disciplinar não é estranho ao poder jurisdicional do Estado, próprio que é da competência de seus órgãos o controle da sua legalidade e constitucionalidade e, por consequência, o julgamento da regularidade do procedimento, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sem, contudo, adentrar no mérito administrativo. 2. “Tipificada a infração disciplinar, será formulada a indiciação do servidor, com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas.” (artigo 161 da Lei 8.112/90). 3. Em não tendo sido especificadas as provas que serviram de elemento de convicção da comissão processante para o indiciamento do servidor, é de se reconhecer a violação do princípio da ampla defesa. 4. Corolário do princípio da ampla defesa, é obrigatória a presença de advogado constituído ou defensor dativo no processo administrativo disciplinar. 5. Ordem concedida. (STJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, MS nº 6.913/DF (2013/0033901-6).

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Como medida cautelar, porém, a fim de que o servidor não venha a influir na apuração da falta que lhe é imputada, é lícito a autoridade instauradora do processo pedir o afastamento do servidor de suas atribuições legais, cujo prazo é de até 60 (sessenta) dias, podendo ser prorrogado por igual prazo, sem prejuízo da remuneração do servidor, mas findo o qual cessarão os seus efeitos, ainda que o processo não tenha sido concluído (art. 147, caput, da Lei n° 8.112/90). Assim, na fase da instrução, são realizadas investigações, diligências, oitivas do servidor acusado e de testemunhas, coleta de provas documentais e outras informações necessárias à comprovação da falta disciplinar, podendo inclusive haver necessidade de serem feitas acareações, reconhecimentos de pessoas ou coisas, além de perícias feitas por técnicos especializados, no caso de depoimentos controversos, tudo de modo a permitir a completa elucidação dos fatos, desvendando a verdade real, e o convencimento dos membros da comissão disciplinar na tomada de sua decisão. Nessa esteira, mister se faz salientar que, nos termos do art. 5o, LVI, da CF, e do art. 30 da Lei nº 9.784/99, as provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis no processo, não se prestando a instruir o processo administrativo disciplinar, portanto, a comprovação de irregularidades funcionais, e sua autoria, conseguida por meio de interceptações telefônicas não autorizadas por lei, confissões e depoimentos obtidos sob coação, provas conseguidas com a violação do domicílio ou de correspondência, bem como com infringência à intimidade, dentre outras formas, casos que cerceiam o direito de defesa do acusado, o que torna o processo passível de nulidade. Concluídos os primeiros procedimentos pelos membros da comissão e examinando minuciosamente todo o material obtido, havendo provas suficientes da prática de transgressão disciplinar e elementos que indiquem ser o servidor acusado seu autor, restará à comissão fazer o termo de seu indiciamento, último ato da fase instrutória, no qual a comissão apontará, em síntese escrita, as razões autorizadoras de tal ilação, bem como declinando as disposições da lei ou do regulamento em que deve ser feito o enquadramento, procedimento citatório formal que abre espaço para a segunda etapa do inquérito administrativo: a defesa.9

Defesa Garantia constitucional aos acusados em geral (art. 5o, LV), o direito de defesa deve ser exercido da forma mais ampla possível por quem se encontra 9

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De acordo com a jurisprudência do STF: “Somente depois de concluída a fase instrutória (na qual o servidor figura como “acusado”), é que, se for o caso, será tipificada a infração disciplinar, formulando-se a indicação do servidor, com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas (artigo 161, “caput”), sendo, então, ele, já na condição de “indiciado”, citado por mandado expedido pelo presidente da Comissão, para apresentar defesa escrita, no prazo de 10 (dez) dias (que poderá ser prorrogado pelo dobro, para as diligências indispensáveis), assegurando-se-lhe vista do processo na repartição (art. 161, “caput” e parágrafos 1o e 3o). Mandado de segurança deferido” (STF, Rel. Min. Moreira Alves, MS nº 21.721-9/RJ, Pleno).

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nessa situação10 e, na dinâmica processualística disciplinar, esse direito pode ser colocado em prática durante todo o transcorrer dos trabalhos apuratórios, conforme já observado, na medida em que o servidor acusado, ou seu representante legal, pode inquirir e reinquirir testemunhas e denunciantes, acompanhando ativamente a todas as diligências realizadas pela comissão, para isso devendo ser notificado das mesmas com antecedência mínima de três dias úteis, a ele oportunizando a fiscalização dos atos formalizados pela comissão. Por oportuno, extrai-se da jurisprudência: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. NULIDADE. PRAZO PARA NOTIFICAÇÃO DO ACUSADO. INOBSERVÂNCIA. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO CONTRARIADOS. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Na sindicância, não se exige observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa quando, configurando mera fase inquisitorial, precede ao processo administrativo disciplinar. 2. A omissão existente no Regime Jurídico dos Servidores Públicos – Lei 8.112/90 – quanto ao prazo a ser observado para a notificação do acusado em processo administrativo disciplinar é sanada pela regra existente na Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. 3. O servidor público acusado deve ser intimado com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis a respeito de provas ou diligências ordenadas pela comissão processante, mencionando-se data, hora e local de realização do ato. Inteligência dos arts. 41 e 69 da Lei 9.784/99 e 156 da Lei 8.112/90. 4. Ilegalidade da audiência de oitiva de testemunhas e, por conseguinte, do processo administrativo disciplinar em razão do fato de que o impetrante foi notificado desse ato no dia que antecedeu a sua realização, contrariando a legislação de regência e os princípios da ampla defesa e do contraditório. 5. Segurança concedida. (STJ, MS nº 9511/DF (2012/0008267-0), 3a S., Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima).

Assim, depois de concluída a fase instrutória, sendo formalizado o recebimento do mandado citatório, é concedido ao servidor agora indiciado o prazo legal de 10 (dez) dias para a apresentação de sua defesa por escrito, sendo-lhe assegurado o direito de vista dos autos do processo na repartição a que pertence (art. 161, § 1o, da Lei n° 8.112/90), desde que na presença do secretário ou de um dos membros do colegiado, sendo lícito ao indiciado requerer certidões de todos os atos e documentos contidos no processo disciplinar (art. 3o, II, da Lei nº 9.784/99). 10

Nesse sentido, vale citar as pontuais palavras de José Armando da Costa: “Em qualquer quadra ou momento da vida, o ato de defesa não é apenas um direito natural ou constitucional, é bem mais que isso, revelando-se insofismavelmente como o esforço humano que enobrece o indivíduo e o reconhece como digno de integrar o processo que a humanidade lhe conferiu, além de configurar o traço mais proeminente e característico de toda uma civilização”. COSTA, Teoria..., op. cit., p. 107.

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Cabe observar que o prazo para a defesa escrita poderá ser prorrogado pelo dobro do tempo, isto é, de 10 (dez) para 20 (vinte) dias, quando for solicitada pelo indiciado a realização de diligências outras (art. 161, § 3o, da Lei n° 8.112/90), por ele consideradas como indispensáveis à sua defesa. Contudo, essa solicitação poderá ser indeferida, de imediato, caso a autoridade da comissão processante verifique que os motivos alegados pelo servidor constituem, apenas, mera artimanha protelatória da defesa (art. 156, § 1o, da Lei n° 8.112/90), valendo apontar as seguintes ementas: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR FEDERAL INATIVO. CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA. INFRAÇÃO DISCIPLINAR PRATICADA QUANDO NA ATIVIDADE. FALTA DE DEFENSOR QUALIFICADO NA FASE INSTRUTÓRIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA.1. A falta de procurador constituído durante a fase de instrução do inquérito não configura nulidade, pois ao servidor acusado foi dada a oportunidade de acompanhar o processo pessoalmente, ou por intermédio de procurador, não podendo, em razão de sua própria omissão, pretender ver reconhecida pretensa irregularidade a que teria dado causa. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 2. “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Súmula Vinculante nº 5/STF. 3. A teor do artigo 156, § 1o, da Lei nº 8.112/1990, “o presidente da comissão poderá denegar pedidos considerados impertinentes, meramente protelatórios, ou de nenhum interesse para o esclarecimentos dos fatos.” 4. Denegação da segurança. (STJ, MS nº 10.837/DF (2010/0120158-6), Rel. Min. Paulo Gallotti). MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRODUÇÃO DE PROVA ORAL REQUERIDA EM DEFESA ESCRITA PELO INVESTIGADO. RECUSA PELA COMISSÃO PROCESSANTE. FUNDAMENTAÇÃO INSUFICIENTE. CERCEAMENTO DE DEFESA CONFIGURADO. Conforme entendimento firmado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no processo administrativo disciplinar, o presidente da comissão deve fundamentar adequadamente a rejeição de pedido de oitiva de testemunhas formulado pelo servidor (art. 156, § 1º, da Lei 8.112/90), em obediência aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV). No caso, a autoridade administrativa indeferiu os depoimentos requeridos na defesa escrita, pois não trariam maiores esclarecimentos para o desfecho da investigação. Deveria, contudo, ter explicitado o motivo porque tais testemunhos seriam desnecessários, e não fazer mera repetição da regra do citado art. 156, § 1º, da Lei nº 8.112/90. A insuficiente fundamentação da recusa ao pleito do impetrante configura cerceamento de defesa, o que importa na declaração de nulidade do processo administrativo disciplinar desde tal ato. Segurança concedida. (STJ, MS nº 10.468/DF (2012/0030834-5), Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura).

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Como se observa, nesse último acórdão, o despacho de indeferimento deverá ser bem fundamentado, embasando-se em circunstâncias e argumentos verdadeiros, inteligentes e justos, caso contrário a negativa da solicitação poderá configurar cerceamento do direito de defesa do(s) indiciado(s), comprometendo a validade do processo, que poderá ser anulado, mais adiante, pela própria Administração ou, até, pelo Poder Judiciário. No caso de o processo envolver mais de um indiciado, o prazo para a defesa escrita será comum para todos, qual seja, de 20 (vinte) dias, e que também poderá ser prorrogado por 40 (quarenta) dias, pelos mesmos motivos antes citados (art. 161, §§ 2o e 3o, da Lei n° 8.112/90). Na hipótese de o servidor indiciado se negar a apor o ciente na cópia da citação, porém, seu prazo de defesa será contado a partir da data declarada, em termo próprio, pelo membro da comissão que entregou o mandado, com a assinatura de duas testemunhas (art. 161, § 4o, da Lei nº 8.112/90), o que importa dizer que o responsável pela entrega da citação deverá voltar à presença do servidor indiciado acompanhado das tais testemunhas para, assim, lavrar o competente termo de que foi cumprida a citação. Ao servidor indiciado que estiver em local incerto e não sabido, a citação será feita por edital, com o prazo de 15 (quinze) dias, sendo este publicado no Diário Oficial da União e em jornal de grande circulação na localidade do último domicílio conhecido. Em ocorrendo este caso, o lapso de tempo para a apresentação da defesa somente começará a fluir depois da última publicação feita do edital convocatório (art. 163, caput e parágrafo único, da Lei nº 8.112/90). Já ao servidor formalmente indiciado que, por iniciativa própria, não apresentar sua defesa por escrito no prazo legal, este será considerado revel, cabendo à autoridade da comissão processante designar-lhe um defensor dativo, ex officio, que deverá ser da mesma classe e categoria do indiciado, ou que tenha nível de escolaridade igual ou superior ao dele (art. 164, caput e § 2o, da Lei nº 8.112/90). Nesta hipótese, o prazo de defesa só começa a fluir na data da publicação da nomeação do defensor designado. Aspecto importante de se ressaltar, portanto, é que não existe a figura jurídica da revelia no processo administrativo disciplinar, embora ela seja declarada, a termo, nos autos do processo. Desse modo, mesmo que o indiciado não seja obrigado a se defender, dispensando a elaboração de sua defesa por escrito, ou ser coagido a fazê-la, isto não significa dizer que ele possa, ad libitum, dispor dessa garantia legal e nem que as alegações contra ele sejam verdadeiras, pois o que deve prevalecer, por certo, é a verdade real.11 Nesse sentido: 11

Conforme bem explicita José Armando da Costa: “Tal colocação omissiva de defesa, caso fosse aceita pela comissão, configuraria um juízo disciplinar truncado, o que não é permitido, em princípio, pelo Direito Punitivo Geral. Com esse desfalque de defesa, o processo disciplinar, com certeza, inclinar-se-á para o desaguadouro da nulidade absoluta”. COSTA, Teoria..., op. cit., p. 218.

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ADMINISTRATIVO. SERVIDOR. APLICAÇÃO DE PENA DISCIPLINAR. AMPLA DEFESA. OBSERVÂNCIA. 1. É nulo procedimento administrativo-disciplinar de que resulta aplicação de pena sem que se tenha nomeado defensor dativo ao funcionário revel (Lei nº 8.112/90, art. 164, § 4o). 2. Violação da garantia constitucional do devido processo legal e do contraditório (CF, art. 5o, LV). 3 Sentença confirmada. 4. Apelação e remessa desprovidas (TRF-1a Reg., Rel. Juiz Conv. José Henrique Guaracy Rebelo, AMS nº 0130.1857/BA, 1a T.).

Como nenhum acusado poderá ser condenado sem o devido processo legal, sendo-lhe cerceado o direito do contraditório e da ampla defesa, por força dos incisos LIV e LV do art. 5o, da CF, note-se, por conseguinte, que a aplicação de sanções administrativas só tem validade se assegurada a oportunidade de o indiciado se manifestar, defendendo-se de forma verbal e por escrito da irregularidade funcional que lhe é imputada, seja essa defesa feita pessoalmente, seja por intermédio de seu representante legal ou de defensor dativo. Da jurisprudência correlata: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DEFESA TÉCNICA CONSTITUÍDA APENAS NA FASE FINAL DO PROCEDIMENTO. INSTRUÇÃO REALIZADA SEM A PRESENÇA DO ACUSADO. INEXISTÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INOBSERVADOS. DIREITO LÍQUIDO E CERTO EVIDENCIADO. 1. Apesar de não haver qualquer disposição legal que determine a nomeação de defensor dativo para o acompanhamento das oitivas de testemunhas e demais diligências, no caso de o acusado não comparecer aos respectivos atos, tampouco seu advogado constituído – como existe no âmbito do processo penal –, não se pode vislumbrar a formação de uma relação jurídica válida sem a presença, ainda que meramente potencial, da defesa técnica. 2. A constituição de advogado ou de defensor dativo é, também no âmbito do processo disciplinar, elementar à essência da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 3. O princípio da ampla defesa no processo administrativo disciplinar se materializa, nesse particular, não apenas com a oportunização ao acusado de fazer-se representar por advogado legalmente constituído desde a instauração do processo, mas com a efetiva constituição de defensor durante todo o seu desenvolvimento, garantia que não foi devidamente observada pela Autoridade Impetrada, a evidenciar a existência de direito líquido e certo a ser amparado pela via mandamental. Precedentes. 4. Mandado de segurança concedido para declarar a nulidade do processo administrativo desde o início da fase instrutória e, por consequência, da penalidade aplicada. (STJ, MS nº 10.837/DF (2013/0120158-6), Rel. Min. Paulo Gallotti, 3a S.).

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Ultimada a fase defensória formal, com a apresentação da defesa escrita do servidor indiciado, restará aos membros da comissão disciplinar constituída partir para a terceira e última etapa do inquérito administrativo, que é elaborar o relatório, com tudo o que ficou apurado durante as fases iniciais.

Relatório Peça informativa e opinativa elaborada por quem presidiu a comissão processante, é no relatório que os membros desse colegiado se manifestam acerca da conclusão a que chegaram após os trabalhos apuratórios, decidindo pela absolvição ou punição do servidor, cumprindo o que dispõe o art. 165, § 1o, da Lei nº 8.112/90, deferindo ou não a pretensão postulada na peça inaugural. Para tanto, caberá à comissão apreciar, com justiça, imparcialidade e seriedade, os fatos apurados, reexaminando provas, cotejando-as com os argumentos da defesa e as provas que porventura foram produzidas pelo indiciado, nelas embasando-se para fazer um relatório minucioso, sintetizando tudo o que foi efetivamente apurado no processo, o qual deverá espelhar, de forma convicta, uma conclusão lógica da comissão, fundamentando os dispositivos transgredidos e as circunstâncias agravantes ou atenuantes, opinando, ao final, sobre a cominação legal cabível ao caso. Nesse contexto, é importante salientar que, não obstante a comissão processante deva ater-se à apuração dos fatos descritos na peça inaugural, a qual delimita o objeto do processo, imputando ao servidor determinada infração, por vezes o trio processante se defronta, no decorrer dos trabalhos apuratórios, com irregularidades alheias ao objeto do processo, ilícitos funcionais outros, que exigem a necessária responsabilização disciplinar. Estes, porém, não podem ser efetivamente apurados, porquanto não guardem relação com o objeto do processo em andamento. Nesse caso, deverá o presidente da comissão levar o fato ao conhecimento da autoridade hierárquica competente, no sentido de que sejam adotadas as medidas cabíveis12, podendo até sugerir, desde que motivadamente, a instauração de outros processos, correspondentes àqueles outros ilícitos verificados, e apontar providências complementares de interesse da Administração.13 Assim, embora não fique jungido a fórmulas preestabelecidas, o relatório da comissão processante deverá reportar-se, necessariamente, a certos aspectos, dentre os quais aqui se destacam14: o cumprimento do prazo ou prazos do processo (art. 152 da Lei nº 8.112/90); a ocorrência de procedimentos incidentes, tais como a nomeação de defensor ex officio, solicitação de abertura de inquérito policial, etc.; a localização da sede dos trabalhos, especificando os 12

Nesse sentido, o regime disciplinar do policial federal acentua: “A comissão poderá ainda apontar fatos que, tendo chegado ao seu conhecimento no curso da instrução, devam ser apurados em outro processo” (parte final do parágrafo único do art. 422 do Decreto nº 59.310/66). 13 MEIRELLES, op. cit., p. 667. 14 Apud COSTA, Teoria..., op. cit., p. 227.

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possíveis deslocamentos da comissão; o resumo das acusações que motivaram a instauração do processo disciplinar; a menção das oitivas de testemunhas, fazendo remissão para as folhas dos autos; a relação dos termos de acareações e reconhecimentos de pessoas ou coisas, bem como dos exames periciais, todos com remissões às folhas dos autos do processo; a síntese dos fatos catalogados na instrução indiciatória, logo depois da conclusão da fase instrutória; as razões apresentadas pela defesa e sua apreciação e consideração; e, por fim, a conclusão a que chegaram, inocentando ou culpando o servidor acusado com a devida fundamentação, indicando os dispositivos legais transgredidos e, se for o caso, fixando o valor dos prejuízos causados à Fazenda Pública. Concluído o relatório, este será juntado aos autos do processo, que deverá ser encaminhado à autoridade administrativa competente que o instaurou, para que seja ultimada a terceira e última fase do processo: o julgamento.

Do julgamento Ao receber os autos do processo disciplinar, a autoridade ou órgão competente que vai julgá-lo deverá proferir sua decisão à luz dos elementos do relatório e dos contidos no próprio processo, decisão esta que geralmente acata o relatório da comissão processante em todos os seus termos, baseando-se em sua conclusão e aceitando, inclusive, a punição nela sugerida. Não se pode descartar, todavia, a possibilidade de a autoridade julgadora opor-se à pretensão postulada pela comissão processante, desprezando ou contrariando o parecer conclusivo de seu relatório, por interpretação diversa das normas legais aplicáveis ao caso ou por ter chegado a conclusões fáticas diferentes das provas dos autos, o que pode significar que a decisão final poderá abrandar ou agravar a pena do servidor, ou mesmo isentá-lo de sua aplicação (art. 168, parágrafo único, da Lei nº 8.112/90), mas sendo certo que, para isso, qualquer seja a discordância, é imprescindível que ela seja motivada, lastreada com base na acusação, na defesa e na prova, e não sob fundamentos outros, ilicitamente citando fatos, provas ou informações estranhas aos autos do processo, muito menos ignorando as razões do acusado, o que desviaria o devido procedimento legal, conduzindo o julgamento à nulidade por cerceamento de defesa15, sendo conveniente, então, transcrever o seguinte acórdão: ADMINISTRATIVO – DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL – PROCESSO DISCIPLINAR – DEMISSÃO – RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO PROCESSANTE – CONCLUSÃO CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS – AUSÊNCIA DE VINCULAÇÃO – POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO – INTELIGÊNCIA DO ART. 168 DA LEI 8.112/90 – ATO DEMISSIONÁRIO – ACOLHIMENTO 15

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Segundo Hely Lopes Meirelles: “Realmente, se o julgamento do processo administrativo fosse discricionário, não haveria a necessidade de procedimento, justificando-se a decisão como ato isolado de conveniência e oportunidade administrativa, alheio à prova e refratário a qualquer defesa do interessado”. MEIRELLES, op. cit., p. 663.

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DO PARECER DA CONSULTORIA JURÍDICA – AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO – INOCORRÊNCIA – PARECERES POSTERIORES AO RELATÓRIO FINAL – DESNECESSIDADE DE MANIFESTAÇÃO DO ACUSADO – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO – CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO – PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E FINALIDADE – VIOLAÇÃO – INEXISTÊNCIA – “WRIT” IMPETRADO COMO FORMA DE INSATISFAÇÃO COM O CONCLUSIVO DESFECHO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – ORDEM DENEGADA. I – A Lei 8.112/90, em seu artigo 168, permite que a autoridade competente para aplicação da pena discorde do relatório final apresentado pela Comissão Processante, desde que a conclusão lançada não guarde sintonia com as provas angariadas nos autos e a sanção imposta esteja devidamente motivada. II – Tendo a autoridade administrativa encampado parecer de sua Consultoria Jurídica, devidamente fundamentado, não há qualquer vício no ato demissionário por falta de motivação. III – Descabido o alegado cerceamento de defesa pela ausência de manifestação do acusado quanto aos pareceres lançados após o relatório final da Comissão Processante pois a Portaria de demissão não se baseou em tais peças, mas fundamentou-se nas provas colhidas na ação disciplinar. Ademais, segundo a cediça jurisprudência desta Corte o indiciado se defende dos fatos que lhe são imputados. Assim, aplicável o princípio do “pas de nullité sans grief ”, tendo em vista que eventual nulidade do processo administrativo exige a respectiva comprovação do prejuízo, o que não ocorreu no presente caso, em que o acusado teve ciência desde o início dos fatos ensejadores da instauração do processo administrativo, sendo-lhe oportunizado o contraditório e ampla defesa. IV – A aplicação da pena de demissão não visou privilegiar interesses privados, mas teve como base delitos disciplinares autônomos, que não dependem do cometimento de outra falta para a sua configuração, não se cogitando da aplicação do princípio da consunção, muito menos em ofensa aos princípios da impessoalidade e finalidade. V – Evidenciado o respeito aos princípios da legalidade, da motivação, do contraditório e da impessoalidade, não há nulidade do ato atacado, principalmente quando o “writ” é impetrado como forma derradeira de insatisfação com o robusto e conclusivo desfecho da ação disciplinar. VI – Ordem denegada. (STJ, MS nº 9.719/DF (2012), Rel. Min. Gilson Dipp, 3a S.).

O que de importante há de se observar, portanto, é que à autoridade julgadora é concedida a liberdade na produção de provas e na escolha e graduação da sanção aplicável, quando a norma legal consigna penalidades sem indicar os ilícitos a que se destinam, ou lhe é facultado instaurar ou não o processo punitivo. Entretanto, jamais se admitiu a qualquer autoridade punir o impunível, negar direito individual comprovado em processo administrativo regular ou desconstituir sumariamente situação jurídica definitiva e subjetiva do servidor ou do administrado.16 16

MEIRELLES, op. cit., p. 663.

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Contudo, no que diz respeito à aplicação de penalidade mais grave – reformatio in pejus –, convém reprisar que a autoridade competente não está vinculada à opinião da comissão processante, o que nada impede que assim seja decidido, mesmo porque, consoante o entendimento do STJ, “é lícito à autoridade administrativa competente divergir e aplicar penalidade mais grave que a sugerida no relatório da comissão disciplinar. A autoridade não se vincula à capitulação proposta, mas sim aos fatos”.17 Ressalte-se, no entanto, aproveitando o contexto, um aspecto de suma relevância: a necessária observância da autoridade julgadora na imposição da penalidade disciplinar, porquanto ela deve obediência ao princípio da proporcionalidade (ou da adequação punitiva), devendo antes confrontar a gravidade da falta, o dano causado ao serviço público, o grau de responsabilidade do servidor e seus antecedentes, de forma a demonstrar a equivalência da sanção aplicada, pois sua dosimetria deve funcionar “como uma fórmula de equilibrar a aplicação da pena, para que ela corresponda à justa medida do delito praticado, em respeito a segurança jurídica”.18 Depreende-se, portanto, que a sanção disciplinar não se presta a perseguir fim diverso do traçado pela lei ou desequilibrar, ou inutilizar, o servidor, acarretando-lhe prejuízos funcionais irreversíveis, muitas vezes até pessoais, e sim para reprimir uma conduta ilícita. Assim visto, na hipótese de a autoridade competente verificar que o processo encontra-se eivado de vícios insanáveis, o mesmo poderá ser declarado nulo, total ou parcialmente, conforme o caso, ordenando, no mesmo ato, a constituição de outra comissão para a instauração de um novo processo (art. 169 da Lei nº 8.112/90), sendo assim aplicado o princípio da autotutela da Administração Pública, consagrado na Súmula nº 473 do STF, que assenta que a Administração pode invalidar seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, ou revogá-los, por conveniência e oportunidade. Seja como for, depois de recebido o relatório da comissão processante, a autoridade julgadora competente terá o prazo de 20 (vinte) dias para proferir sua decisão, conforme dispõe o art. 167 da Lei nº 8.112/90, embora tal regra tenha sido mitigada pelos próprios legisladores, que abriram o ensejo para o descumprimento desse prazo ao estabelecerem que “o julgamento fora do prazo legal não implica nulidade do processo” (§ 1o do art. 169). Em sendo assim, é de se ver que não acarreta nenhuma consequência de natureza jurídica relevante à autoridade julgadora que, mesmo agindo com dolo ou culpa, deixar de observar tal prazo, a não ser que seu comportamento desidioso venha a dar causa à prescrição do feito, quando então poderá ser responsabilizada consoante o que dispõe o § 2o do art. 169, do referido diploma legal, mas valendo dizer que só na esfera civil, caso tenha causado prejuízo ao erário (art. 122 da mesma lei).19 17

STJ, Rel., Min. Paulo Medina, MS nº 8.184/DF, 3a S. MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 interpretada. 3. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 1.090. 19 Isto porque, conforme José Armando da Costa assevera, [...] as responsabilidades penal 18

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Convém salientar, todavia, que a Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004, acrescentou, ao art. 5o da Carta Magna, o inciso LXXVIII, o qual prescreve que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Com efeito, tal orientação já não era sem tempo, devendo ser um poder-dever para todas as Administrações Públicas, pois que, do contrário, os processos disciplinares, como os de âmbito federal, cujo prazo para o encerramento do feito é de 140 (cento e quarenta) dias, continuarão a ser arrastar, a ser eternos, com graves prejuízos para todos: à Fazenda Pública, pelas intermináveis diárias aos servidores envolvidos na apuração administrativa; e, aos acusados, que sofrem adversidades de toda a ordem sem uma decisão final, por conta do transcurso moroso do processo, sobretudo quando estes se encontram em condições de se aposentar voluntariamente, pois isto somente poderá ocorrer após a conclusão do processo e o cumprimento da penalidade, se esta lhe for aplicada, segundo o que dispõe a parte final do caput do art. 172 da Lei nº 8.112/90. Por essa e outras razões, não raro os prejudicados formularem, em juízo, pleito alusivo à decretação de nulidade do procedimento em face da superação do prazo para sua conclusão, exigindo o cumprimento do art. 152 da Lei nº 8.112/90, que estabelece o prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias, a contar da publicação do ato que constituiu a comissão, conjugando-o com o novel dispositivo constitucional acima aludido, tese esta que, vale dizer, não pode ser de todo ignorada, por ser infundada, pois a orientação da doutrina especializada é no sentido de que, não tendo sido os trabalhos concluídos dentro dos prazos estipulados em lei, a autoridade administrativa competente deve destituir a comissão, nomeando outra para, no interregno legal, ultimar essa espinhosa tarefa.20 No entendimento de Mauro Roberto Gomes de Mattos21: Não cumprida a presente regra constitucional, entendemos que a Administração Pública causará lesão ao direito líquido e certo do servidor, em ter seu processo disciplinar encerrado no tempo razoável de 120 (cento e vinte) dias e julgado nos 20 (vinte) dias após o recebimento do processo pela autoridade competente. Via de consequência abusará do direito de investigar e de acusar, devendo ser encerrados os trabalhos imediatamente, para que seja constituída outra Comissão Disciplinar, que se não cumprir o prazo legal declinado, dará azo ao arquivamento das investigações. e disciplinar somente encontram justo título nas respectivas hipóteses de incidência previamente definidas, e pelo que sabemos, tal comportamento, embora desidioso, não chega a enquadrar-se em qualquer tipo de natureza penal ou disciplinar. Mesmo assim, achamos muito difícil que tal responsabilização, ainda que sendo apenas de feitio civil, venha um dia a ser realmente concretizada neste imenso e grandioso País campeão mundial da impunidade [...]. COSTA, Teoria..., op. cit., p. 239. 20 REIS, Palhares Moreira, 1993 apud MATTOS, Lei nº 8.112/90..., op. cit., p. 973. 21 MATTOS, Lei nº 8.112/90..., op. cit., p. 979.

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Por fim, ainda que não se tenha a pretensão de aqui esgotar-se a matéria, acrescente-se que, extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora deverá registrar o fato nos assentamentos funcionais do servidor (art. 170 da Lei nº 8.112/90). Todavia, a qualquer tempo, o processo administrativo que resultou em aplicação de penalidade ao servidor pode ser revisto, a pedido ou de ofício (arts. 174 a 182 da Lei nº 8.112/90), quando surgirem novos fatos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada. Por outro lado, no caso de a infração cometida for tipificada como crime, a autoridade julgadora encaminhará a cópia dos autos ao Ministério Público para a propositura da ação penal corresponde (art. 171 da Lei nº 8.112/90).

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Delação Premiada não serve para Fins de Admissibilidade de Ação de Improbidade Administrativa Mauro Roberto Gomes de Mattos1

Delação premiada e a sua normatização A delação premiada no Brasil, foi introduzida pelas Ordenações Filipinas, em 1603, no Título VI, item 12 e título CX VI. Apesar de ser antiga, a delação premiada não teve grande progresso no passado, ficando relegada durante vários anos ao “esquecimento”. Com o aumento da violência e do surgimento de organizações criminosas, a então “esquecida” delação premiada ganhou contorno de efetividade pelos legisladores nas décadas de 80 e 90. Nessa vertente, a Lei n.º 8.072, de 26 de julho de 1990, ao dispor sobre crimes hediondos, em seu artigo 8º, parágrafo único, trouxe o instituto da delação premiada como forma de o imputado colaborar com a justiça, em prol da diminuição de sua penalidade. Na sequência, várias outras leis preconizaram pela efetividade da delação premiada como forma de plena utilização, na busca de informações necessárias para combater o crime organizado e diminuir a crescente violência. Uma delas, a Lei n.º 9.034/95, que dispõe sobre utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas (art. 6º), reforçou a base da delação premiada, como um estímulo a denúncia voluntária de membros dessas organizações, no sentido de se identificar todos os responsáveis por tais organizações. 1

ADVOGADO no Rio de Janeiro/RJ-BRASIL; Autor dos Livros (dentre outros): “O Contrato Administrativo”. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002; “O Limite da Improbidade Administrativa: O Direito dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92”. 5. ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2010; “Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada: Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos da União”. 6. ed., revista e atualizada. Niterói/RJ: Impetus, 2012; “Tratado de Direito Administrativo Disciplinar”. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010; “Inquérito Civil e Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa: Limites de Instauração”. Rio de Janeiro, Forense, 2014. Vice Presidente do Instituto Ibero-Americano de Direito Público (Capítulo Brasileiro) – IADP; Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Membro do IFA – International Fiscal Association; Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Co-Coordenador da Revista Ibero-Americana de Direito Público – RIADP (Órgão de Divulgação Oficial do IADP); Colaborador permanente de diversas “Revistas de Direito” Brasileiras e Estrangeiras, com artigos doutrinários jurídicos bem como, de “Revistas Eletrônicas de Direito” no Brasil e Exterior; Colaborador de Jornais de grande circulação Brasileiros; Parecerista; Conferencista/Palestrante.

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Dessa forma, a Lei n.º 9.807/99, dentre outras, trouxe importante avanço para a presente matéria, ao dispor normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, instituindo o programa federal de assistência as vítimas e as testemunhas ameaçadas, dispondo sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo penal. Nessa linha de evolução legislativa, o artigo 13, da Lei n.º 9.807/99, conferiu ao juiz, de ofício ou a requerimento das partes conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado o seguinte: – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; – localização da vítima com a sua integridade física preservada; – recuperação total ou parcial do produto do crime. Devendo a concessão do perdão judicial levar em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso. Em continuidade, o artigo 14, da citada Lei n.º 9.807/99, estabelece que o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços. E, por fim, o artigo 15 e seus parágrafos, da mesma Lei n.º 9.807/99, manda aplicar em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva. Também a Lei n.º 12.850/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, alterando normas do Código Penal e revogada a Lei n.º 9.034/95, contribuiu para a colaboração premiada como meio lícito para obtenção de prova. Sendo definida a colaboração premiada no artigo 4º, da Lei n.º 12.850/2013, da seguinte forma:

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Art. 4o    O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais co-autores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

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III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada § 1o    Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. § 2o   Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). § 3o    O prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional. § 4o  Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I – não for o líder da organização criminosa; II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. § 5o   Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos. § 6o  O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor. § 7o  Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor. § 8o   O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto. § 9o    Depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações. § 10.   As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. § 11.  A sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia. § 12.   Ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial.

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§ 13.   Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações. § 14.  Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. § 15. Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor. § 16.   Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.

E o colaborador possui os seguintes direitos (artigo 5º, da Lei n.º 12.850/2013): – ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservadas; – ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais co-autores e partícipes; – participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; – não ter a sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem a sua prévia autorização por escrito; – cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados. O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito, contendo o relato da colaboração e seus possíveis resultados; a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu advogado, e a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário. Como visto, o instituto da delação premiada ocorre, portanto, quando o acusado/indiciado imputa a autoria do crime a um terceiro, coautor ou partícipe, fornecendo às autoridades informações necessárias e fiéis a respeito das práticas delituosas promovidas por grupo criminoso, permitindo a localização da vítima ou a recuperação do produto do crime. Com isso, o colaborador visa reduzir a sua pena, ou obter o perdão judicial. A delação premiada difere da confissão em razão desta se referir à autoincriminação, enquanto aquela representa a imputação do fato criminoso a terceiros. Apesar de muito criticada por parte da doutrina, a delação premiada se encontra em pleno desenvolvimento de aplicação na esfera do direito penal, e é uma realidade que tende a crescer ainda mais. Resta saber se esse instituto da delação premiada possui plena eficácia e aplicação na esfera da improbidade administrativa.

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Improbidade administrativa não é direito disponível e não permite a transação como na delação premiada Se na delação premiada a lei penal permite que o acusado ou indiciado possa colaborar para identificar coautores, partícipes ou terceiros vinculados ao objeto da apuração penal, na ação de improbidade administrativa não há espaço para a transação ou conciliação, não sendo admitida a utilização analógica do aludido instituto para fins da Lei n.º 8.429/92. Aliás, essa é a dicção do § 1º, do artigo 17, da Lei n.º 8.429/92, verbis: “Art. 17 – A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. § 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.”

A transação é a convenção em que, mediante concessões recíprocas, as partes ajustam certas cláusulas e condições para prevenirem litígios, que possam suscitar entre elas, ou ponham fim a litígio já suscitado. Como o direito explicitado na Lei n.º 8.429/92 é indisponível, o legislador expressamente proibiu acordo, conciliação ou transação. Por ser indisponível, o titular da ação de improbidade não pode aplicá-la, ou transacionar redução de punibilidade, em face da colaboração ou da delação premiada, diferentemente da regra adotada no direito penal. Não se aplica, portanto, perante a Lei n.º 8.429/92 o instituto da delação premiada, sendo ilícita a obtenção de confissões ou quaisquer outros meios de prova que não sejam os admitidos em direito. Ou seja, quando muito a delação premiada pode servir para dar ensejo a uma investigação através de inquérito civil público, em prol da produção de outras provas que possam demonstrar indícios de autoria e de materialidade da prática, em tese, de ato ímprobo. Inobstante, a delação premiada não se presta para fins de admissibilidade de ação de improbidade administrativa, por não produzir perante a Lei n.º 8.429/92 efeitos geradores de indícios de atos ímprobos, como será melhor desenvolvido a posteriori. O artigo 17, § 1º, da Lei n.º 8.429/92, já transcrito, proíbe a extensão dos benefícios da delação premiada perante a lei de improbidade administrativa, Em abono ao que foi dito, segue o seguinte precedente do TRF – 1ª Região:2 “(...) 8. Não se afigura juridicamente possível a extensão dos benefícios da  delação premiada  aos requeridos em ação de  improbidade,  uma vez que se trata de benefício penal e a  legislação  não  prevê qualquer extensão  dos  benefícios  à esfera cível, como fez o julgador. 9. De fato, diferentemente do que ocorre na ação civil pública regida pela Lei nº 7.347/85, 2

TRF – 1ª Reg., Rel. Juiz Fed. Conv. Clemência Maria Almada Lima de Ângelo, Ap. Cível n.º 200442000001738, 4ª T., DJ de 2.06.2014.

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em se tratando se ação civil por ato de  improbidade administrativa,  não há que cogitar na mitigação do princípio da indisponibilidade do interesse público, por aplicação, na espécie, do estabelecido no art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92. 10. Sentença reformada em parte em relação aos réus Carlos Eduardo Levischi, Diva da Silva Bríglia e a Lize da Rocha Pereira, para afastar a aplicação do benefício da delação premiada, devendo ser extraída cópia integral dos autos a ser remetida à origem, a fim de que o magistrado profira nova sentença, como entender de direito no que concerne a esse réus, sem o aludido benefício. Parcial ressalva do entendimento da relatora que entendia aplicável o disposto no artigo 515, I, do CPC. 11. Sentença confirmada em relação aos réus Neudo Ribeiro Campos e Suzete de Macedo Oliveira. 12. Apelações dos réus desprovidas. 13. Apelações do Ministério Público Federal e da União parcialmente providas.”

A indisponibilidade do direito vinculado na Lei n.º 8.429/92 não permite a flexibilização de transação ou acordo para fins de diminuição de penalidade criminal ou de meio de prova isolada perante a lei de improbidade administrativa. Isso porque, em se tratando de ação com a finalidade de apuração de atos de improbidade administrativa, a prova ganha relevância fundamental, na medida em que se faz necessário identificar-se as condutas e o nexo de causalidade dos atos praticados e o poder de ofensividade à Lei n.º 8.429/92. Ou seja, é de se provar, através da produção de meios diretos e robustos, o dolo do agente público ou do particular nos casos elencados no artigo 9º e 11, da Lei n.º 8.429/92 e a culpa precedida de má-fé no tipo descrito no artigo 10 da citada lei de improbidade administrativa. Por isso a prova válida é fundamental para a caracterização do elemento subjetivo dos tipos descritos na Lei de Improbidade Administrativa. A relevância do termo de colaboração do direito penal somente confere efeitos jurídicos para aquela esfera do direito, não podendo ser transportado para fins de juízo de admissibilidade ou de condenação da prática do ato de improbidade administrativa, em face da expressa vedação a que aduz o artigo 17, § 1º, da Lei n.º 8.429/92. O Código de ritos autoriza a divisibilidade da confissão para evitar que o confidente use a confissão complexa como um instrumento simulado, produzido única e exclusivamente em seu próprio interesse, com o objetivo de desviar o rumo da investigação, ou prejudicar terceiros de forma irresponsável ou desatrelada de materialidade e de autoria. Da mesma forma, a guisa de ilustração, destaque-se que outros institutos do direito penal, como por exemplo o princípio da bagatela ou da insignificância também não é aplicado perante a Lei de Improbidade Administrativa, justamente por permitir a mitigação à violação ao princípio da moralidade qualificada, para fins de excludente de responsabilidade. Justamente contra a aplicação do princípio da insignificância perante a Lei de Improbidade Administrativa, seguem os seguintes arestos: STJ, AGA 1320840, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª T., DJ de 2.02.2011; STJ, REsp

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892.818/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., DJ de 10.02.2010; TRF – 1ª Reg., Ap. Cível 528386, Rel. Des. Fed. Maximiliano Cavalcanti, 3ª T., DJ de 30.11.2012, p. 266; TRF – 1ª Reg., Ap. Cível 200333000275408, Rel. Juiz Fed. Conv. Saulo Casali Bahia, 3ª T., DJ de 9.11.2007, p. 70; TRF – 1ª Reg., Rel. Juiz Fed. Conv. Marcus Vinícius Reis Bastos, 4ª T., DJ de 16.10.2012, p. 181. Mesmo não sendo aplicado o princípio da insignificância do direito penal, a baixa potencialidade de ofensa à Lei n.º 8.429/92 possui eficácia quando da fixação da penalidade, visto que ela terá que se basear na proporcionalidade/ razoabilidade, isso porque a extensão (poder de ofensividade) da lesão deverá guardar correlação com a condenação na lei de improbidade administrativa. Dessa forma, pode-se concluir, com toda certeza, que não são todos os institutos do Direito Penal que se projetam perante a Lei n.º 8.429/92, sendo que um deles é o da delação premiada ou colaboração, como já dito alhures, por total vedação e incompatibilidade do mesmo quando aplicado fora da esfera do direito criminal. Delação premiada não serve como juízo de admissibilidade de ação de improbidade administrativa – ausência de materialidade do ato ímprobo Como visto, o instituto da delação premiada não se aplica ao contexto da Lei n.º 8.429/92 por ser incompatível e também por não haver a possibilidade da celebração de transação ou de acordos perante a Lei de improbidade administrativa. Se os benefícios da obtenção da delação premiada não são extensíveis ao contexto da lei de improbidade administrativa, por óbvio que os seus efeitos também não possuem validade de meio de prova idôneo capaz de gerar indício do ato ímprobo. O artigo 17, § 6º, da Lei n.º 8.429/92 estabelece que a ação de improbidade administrativa será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas. A delação premiada não é prova de um delito, ela é o início da busca de provas, que irão confirmar ou rejeitar os termos do conteúdo da mesma. Não sendo admitido o instituto da delação premiada no direito administrativo sancionador, por razões lógicas não há como admiti-lo como demonstração da ocorrência de indícios da prática de ato de improbidade administrativa para fins de admissibilidade da petição inicial. É que no direito administrativo sancionador, vinculado diretamente aos princípios da legalidade e da tipicidade, como fundamento das garantias constitucionais, não se admite a utilização de analogia ao instituto da delação premiada, aplicado única e exclusivamente ao direito penal e sob condições específicas. Inexistindo, na hipótese sub oculis, o necessário elemento normativo legitimador da aplicação da delação premiada perante a Lei n.º 8.429/92, a sua admissibilidade, como prova emprestada, inclusive, implica em grave transgressão, por parte do órgão julgador, ao princípio da reserva constitucional

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de lei formal em tema de punições disciplinares.3 Isso porque, a “confissão” e a “denúncia” levada a efeito através da delação premiada, deve ser aprofundada/ confirmada por outro meio idôneo de prova, visto que ela não se materializa em prova, e pode ter sido produzida pelo seu interlocutor como instrumento simulado, erigido única e exclusivamente em seu próprio interesse, em detrimento da verdade real. Para embasar a fumaça do bom direito em relação à ocorrência dos atos de improbidade administrativa, o Ministério Público possui o dever de demonstrar, mesmo através de indícios, que os depoimentos do colaborador possuem lastro de plausibilidade indiciária perante o escopo da Lei n.º 8.429/92. A petição inicial que é lastreada tão somente no “depoimento” do beneficiado pelo instituto da delação premiada em sede criminal não serve como demonstração de indício de autoria e de materialidade perante a Lei n.º 8.429/92, não se prestando para o fim de recebimento da petição inicial da ação de improbidade administrativa. A autoria de ato ilícito geralmente é verificada pela pessoa que comete determinado fato vedado pelo ordenamento jurídico. Havendo indícios de autoria instaura-se a suspeita de prática de ato ilícito pelo investigado. Já a materialidade do fato é a demonstração, através de provas válidas, da existência de ato ilícito. Havendo indício4 de autoria e de materialidade da prática de ato ímprobo, em tese, haverá legitimidade de propositura da ação de improbidade administrativa, visto que esse é o requisito legal estabelecido na lei como pressuposto de admissibilidade de ações de improbidade administrativa. A validade da “palavra” ou da confissão da pessoa que faz delação premiada, por si só, não possui o condão de afastar a presunção de inocência de outros interlocutores, indicados pelo mesmo como responsáveis pela prática de atos ilícitos, bem como não se presta para substituir a apresentação de indícios da prática do ato ímprobo. 3

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Ação Civil Pública. Improbidade Administrativa. Dano ao Erário. Art. 10, incisos I, VIII e XI, da Lei n.º 8.429/92. Dispensa Indevida de Licitação. Delação Premiada. Instituto Restrito à Esfera Penal. Multa Civil. Critérios para a fixação Proporcionalidade. As penalidades decorrentes da Lei de Improbidade Administrativa independem das sanções penais, civis e administrativas previstas quando um mesmo ato puder, com fundamento legal, justificar suas aplicações, sendo, contudo, necessária a adequação das penas à gravidade do ato praticado. Em se tratando das sanções por atos de improbidade administrativa, não há como se aplicar, analogicamente, os benefícios da delação premiada, mesmo porque, no presente feito, a procedência do pedido decorreu da documentação oriunda do tribunal de contas do Distrito Federal.  Mesmo que o instituto da delação premiada não se destine ao caso dos autos, a contribuição do recorrente à justiça, aliado à confissão firmada em juízo, além dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade levam à diminuição da multa civil de duas vezes para uma vez o valor do dano causado ao erário.” (TJ/DF, Rel. Des. Carmelita Brasil, Ap. Cível n.º 20050110626076, 2ª CC, julgado em 11.09.2013). 4 O Código de Processo Penal em seu artigo 239 estabelece como indício: “Art. 239: Considera-se indicio a circunstância conhecida e provada que tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”

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Não resta dúvida que apesar da presunção de inocência ser relativa, podendo ser elidida por acervo probatório robusto, o depoimento levado à efeito em outros processos de natureza criminal, motivados pelo interesse na obtenção do benefício da delação premiada, não se presta para demonstrar a existência de indícios de autoria da prática de ato de improbidade administrativa. Os indícios de autoria da prática de ato ímprobo devem vir fundamentados em provas testemunhais ou documentais que levem a conclusão que existem “rastros” ou indicativos da prática do ato de improbidade, em tese. Como o depoimento do colaborador deve vir agregado de outras provas que lhe tragam suporte de veracidade, a sua confissão ou depoimento isolado não se presta para gerar indício de autoria de infração disciplinar contra outrem, pois não se afigura como prova propriamente dita o conteúdo firmado na delação. Não é necessária prova incontestável da prática do ato de improbidade administrativa, mas, para o ingresso da competente ação, o seu autor não poderá lastrear suas razões no “ouviu dizer” ou em notícias isoladas e sem fundamento, pois é necessário para o exercício lídimo do direito de acionar que haja indícios ou justa causa capazes de embasar o ingresso no Judiciário, sem que ocorra abuso de direito, por parte do autor da demanda. Se, de um lado, o depoimento tomado da pessoa que faz delação premiada não possui valor de prova suficiente para gerar indício de autoria, também não se coaduna com a demonstração de indícios de materialidade da prática de ato ímprobo. As ações sancionatórias, como é o caso da improbidade administrativa, exigem requisitos legais mais completos do que as condições genéricas das demandas judiciais (legitimidade das partes e a possibilidade jurídica do pedido). Por isso, a inicial deve, logo de plano, demonstrar a presença de justa causa, consubstanciada em elementos indiciários que demonstrem, pelo menos em tese, a tipicidade da conduta e a viabilidade da acusação. Essa viabilidade da acusação capaz de ensejar a justa causa, liga-se a demonstração indiciária de autoria e de materialidade. Sem indícios revelados pela prova pré-constituída é retirado o interesse de agir do autor da ação de improbidade administrativa, por falta de justa causa.

Sobre o tema deixamos averbado anteriormente:5 A atual Constituição Federal estabelece limites à atuação do Estado, conferindo ao cidadão direitos e garantias fundamentais contra abusos ou excessos de poder. Qualquer agente público só poderá ser molestado em sua honra e intimidade se houver um justo motivo, revelado por uma possibilidade jurídica, extraída de indícios de cometimentos, em tese, de ilícitos reprimidos pelo ordenamento legal utilizado como suporte legal. 5

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O Limite da Improbidade Administrativa. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 564/565.

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A ação de improbidade administrativa envolve um conflito de interesses indisponíveis, em que de um lado o interesse primitivo do Estado, lastreado no combate a uma ilicitude cometida pelo agente público, de outro, os interesses de dignidade e do bom nome por parte do acusado. Por isso mesmo, em razão do perigo de sanções tão severas, exige-se a justa causa para toda e qualquer ação de improbidade administrativa, consubstanciada em documentos ou justificações que contenham indícios suficientes do ato ímprobo.” Por conseguinte, para que seja legitimado o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, é necessário que os possíveis atos infracionais atribuídos ao agente público, estejam configurados, por seguros elementos que apontam para a existência de indícios de improbidade: esses elementos são a tipicidade, a lesividade, a antijuridicidade e a culpabilidade. Dessa forma, quanto a jurisdição atua na esfera do direito sancionador, a atenção dos julgadores há de concentrar-se em todos esses detalhes, que podem ser agrupados, apenas para efeito de sua melhor apreensão, sob a denominação de justa causa.

Conclusão O ingresso da ação de improbidade administrativa não pode ser lastreado no “ouviu dizer” ou embasado em depoimento ou confissão, objeto de delação premiada, como já dito alhures. Necessita a petição inicial de regularidade formal, onde o ilícito imputado aos acusados deve vir precedido de viabilidade jurídica, a fim de se evitar o manejo de natimortas ações de improbidade administrativas. O rigor é total, pois sendo a Lei n.º 8.429/92 uma norma vaga e aberta, o legislador exigiu que fossem, desde o início, demonstrados os índicos da prática do ato ímprobo, como condição mínima de seu manejo. Isso significa dizer, que a autoria e a materialidade devem estar invencivelmente demonstrados nas provas que carreiam a referida ação de improbidade administrativa, para que ela seja a subsistente ou temerária. Deve ser indeferida, via de consequencia, a petição inicial que não demonstre, com precisão, a prática do ato de improbidade, porquanto a demonstração do elemento subjetivo que conecte a conduta do agente ao fim ímprobo, não é aquela demonstrada revelada em uma delação premiada, que somente se baseia na “palavra” livre do acusado ou suspeito que faz a aludida transação penal e sim, em outros idôneos meios de prova que atestem a existência de que há autoria e materialidade na prática do ato de improbidade administrativa. Consoante o disposto no artigo 17, § 8º, da Lei n.º 8.429/92, a rejeição da ação de improbidade administrativa está vinculada ao convencimento motivado do juízo quanto à inexistência do ato de improbidade, a improcedência da ação ou à inadequação da via processual eleita.

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Por isso o contexto fático-probatório deve ser suficientemente explicitado na petição inicial, capaz de comprovar a prática de ato de improbidade, tendo em vista, que a delação premiada, como objeto de transação entre o Estado acusado, não serve isoladamente como elemento de base de prova capaz de induzir a admissibilidade da ação de improbidade da ação de improbidade administrativa. Há que se ter a efetiva caracterização dos elementos subjetivos e objetivos indispensáveis à tipificação e à punibilidade de atos de improbidade, revelados por outros confiáveis tipos de provas (documentos, perícias, provas testemunhais, etc.) Portanto, deve ser inadmitida a ação de improbidade administrativa que se revele carente do seu dever de demonstrar, logo em sua petição inicial, da existência de provas que conduzam a plausibilidade do direito invocado. Como é recente, e ainda pouco explicitado o presente tema sob o prisma da improbidade administrativa, resolvemos estudar o impacto da delação premiada sob o âmbito de uma possível admissibilidade da petição inicial, para que não haja graves e injustas ações, manejadas sem um mínimo de plausibilidade jurídica e movidas por insubsistentes meios de acusação. A delação premiada surte o efeito desejado no âmbito criminal, é importante para desarticular quadrilhas e revelar detalhes de possíveis crimes ou esquemas inescrupulosos. Não somos contra o referido instituto para os fins que a lei o destinar. Pelo contrário, através da delação premiada muitas verdades virão à tona, e “esquemas” de corrupção poderão ser coibidos ou punidos, após a devida investigação e comprovação das imputações. Contudo, o que é aplicado no direito penal apesar de quase sempre balizar o direito sancionador, quando transposto para a improbidade administrativa, deve se compatibilizar com a presente esfera, para que não seja aplicado por analogia, trazendo graves consequências injustificadas para a parte acusada ilegítima ou irresponsavelmente. Por isso todo o cuidado e zelo ao direito é pouco quando se trata de direito sancionador e a sua efetiva aplicação nos diversos ramos do direito. Deve o Ministério Público aprofundar-se no objeto da delação e produzir provas indiciárias robustas, que de plano, demonstrem, que a ação de improbidade administrativa possui viabilidade perante a Lei n.º 8.429/92. E matéria de prova, e na dúvida acerca da oportunidade da sua produção, deve-se, num juízo de razoabilidade, optar pelo deferimento, dentro dos padrões da ampla defesa, especialmente no caso, onde se investiga a prática do ato de improbidade administrativa, permitir que haja uma investigação mais técnica e robusta, não necessariamente exauriente, com a finalidade de embasar a futura petição inicial do Ministério Público. Não resta dúvida que a delação premiada serve como ponto de partida de uma investigação cível, através do inquérito civil, mas jamais ela possui o requisito legal elencado pela Lei n.º 8.429/92, para dar início à ação de improbidade administrativa.

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Em sendo assim, a petição inicial que somente traga a delação premiada como meio de prova, não cumpre o requisito formal a que impõe o artigo 17, § 6º, da Lei n.º 8.429/92, salientando-se que não pode ser aplicada por analogia. Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 2014.

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Direito e Novas Demandas Sociais Vanderlei Martins1 Resumo O presente artigo aborda os desafios que se apresentam para o Direito dentro do contexto social contemporâneo globalizado. Considerando a globalização como um fenômeno peculiar, uma vez que materializa o desenvolvimento tecno-científico, o que se potencializa de forma categórica é uma forma também peculiar de convivência. O pragmatismo e o utilitarismo tecno-científico contemporâneo, condutores da globalização, provocam impactos significativos nos valores e nos costumes sociais, quebrando-lhes o sentido permanente ou duradouro, uma vez que a velocidade das inovações tecnológicas é algo ininterrupto e sistemático. Nesse sentido, o Direito, em sendo uma instituição de caráter mantenedor, tem certa dificuldade em manter-se sintonizado à uma lógica altamente mutante que, em última análise, estabelece, como decorrência, novas demandas sociais, novas formas de convivências institucionais, uma nova cultura. Como contraponto à essa lógica inovadora da globalização contemporânea, esse trabalho entende que a pesquisa jurídica é uma possibilidade latente de adequação e sintonia entre os discursos desse contexto global e os dis cursos jurídicos nesse mesmo tempo. Palavras-chave: Direito; tecnologismo; globalização; sociedade; mudanças sócioinstitucionais; pesquisa jurídica; ética. Abstract This article discusses the challenges that present themselves to the law within the globalized contemporary social context. Whereas globalization as a peculiar fenemeno since materializes the techno-scientific development, which enhances categorically also is a peculiar form of coexistence. Pragmatism and the contemporary techno-scientific utilitarianism, globalization drivers cause significant impacts on values and social mores, breaking them permanent or lasting sense, since the speed of technological innovation is something continuous and systematic. In this sense, the law, in which one character maintainer institution, has some difficulty in staying tuned to a highly mutant logic that ultimately establishes, as a result, new social demands, new forms of institutional cohabitation, a new culture. As a counterpoint to this innovative logic of contemporary globalization, this paper considers that the legal research is a latent possibility of adaptation and harmony between the discourse of global Keywords: Right; technologism; globalization; society; social and institutional changes; legal research; ethics. 1

Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/ UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008), Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas.

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Introdução Esse artigo é decorrência direta de um projeto maior que desenvolvemos, a partir de 2014, intitulado DIREITO, GLOBALIZAÇÃO E CONVIVÊNCIA SÓCIO-JURÍDICA. Trata-se de um segundo produto dentro de nossa incursão investigativa e cujo primeiro trabalho intitulou-se DIREITO E GLOBALIZAÇÃO. A globalização contemporânea pode ser entendida, primordialmente, como um fenômeno de natureza técnica, como um processo cumulativo decorrente do desenvolvimento da tecnologia. Em sendo assim, impõe, como concepção de mundo, sua própria razão de natureza técnica, de caráter pragmático, utilitário e funcional. Tal concepção, se insere na convivência social, moldando e induzindo os indivíduos e as instituições sociais a se comportarem também de forma pragmática, utilitária e funcional. Nesse sentido, prevalece, em todos os níveis do convívio contemporâneo a lógica da funcionalidade objetiva. Outra caracteristíca marcante da globalização contemporânea, é o dinamismo pelo qual se processa através de seu caráter mutante, uma vez que, em sendo, em sua origem, um fenômeno de natureza tecnológica, novas tecnologias se sucedem de forma sistemática e inovadora, se sobrepondo às tecnologias até então existentes. Essa lógica também se insere na convivência social, onde valores e conceitos são constantemente alterados ou adequados às novas demandas de natureza técnica. Dentro desse raciocínio, tudo se relativiza, uma vez que as referências sociais, passam a ser, primordialmente, as referências impostas pela racionalidade tecnológica. A vida, antes centrada no presente e atrelada ao passado, transfigura-se, agora, a partir da globalização, toda exixtência se projeta para o futuro, mesmo que sejamos incapazes de defini-lo precisamente. A velocidade tecnológica impõe uma nova noção do chamado tempo histórico. Assim é que, a razão de natureza técnica condutora da globalização contemporânea, não preserva qualquer instituição social de maneira menos intensa, ao contrário, a lógica da funcionalidade objetiva de escopo tecnicista interfere de maneira categórica em todos os ordenamentos sociais. No plano institucional econômico, por exemplo, se afirma um modelo econômico que globaliza as finanças do capitalismo, alterando as relações de trabalho, transformando as antigas formas de gestão das empresas e virtualizando o capital. Inicia-se a era das chamadas “corporações estratégicas transnacionais”, responsáveis diretas pela vertiginosa expansão do capitalismo, cuja nova essência passa a deconsiderar a questão das fronteiras. Todos os conceitos políticoeconômicos de gênese nacionalistas começam a ganhar uma outra dimensão, e exigindo releituras que redefinam significados prevalentes até então, como nos demonstra René Armand Dreifuss em “A Época das Perplexidades”. Podemos dizer que a globalização contemporânea é altamente contraditória, uma vez que, ao mesmo tempo que aproxima culturas e estreita convivências, provoca afastamentos no sentido de que interesses de naturezas

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político-econômicos se sobrepõem à interesses de naturezas sociais. Dentro desse raciocínio, com a globalização, vivenciamos uma nova configuração do capitalismo à nível mundial, que ganha um caráter financeiro-especulativo através das grandes corporações bancárias, principalmente. A associação entre produção e especulação financeira definem esse capital mundializado. “A expressão ‘mundialização do capital’ é a que corresponde mais exatamente à substância do termo inglês ‘globalização’, que traduz a capacidade estratégica de todo grande grupo oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta ‘globais’. O mesmo vale, na esfera financeira, para as chamadas operações de arbitragem. A integração internacional de mercados financeiros resulta, sim, da liberalização e desregulamentação que levaram à abertura dos mercados nacionais e permitiram sua interligação em tempo real... Não é todo o planeta que interessa ao capital, mas somente partes dele, mesmo que suas operações sejam poluidoras a nível mundial, no plano da ecologia como em outros. Ligar o termo ‘mundialização’ ao conceito de capital significa dar-se conta de que, graças ao seu fortalecimento e às políticas de liberalização que ganhou de presente em 1979-1981 e cuja imposição foi depois continuamente ampliada, o capital recuperou a possibilidade de voltar a escolher, em total liberdade, quais os países e camadas sociais que tem interesse para ele” (CHESNAIS, 1996:17). Toda essa expansão do capital a nível global, mencionada por Chesnais, é amparada por uma estrutura política que lhe dá a devida legitimidade a nível mundial. Essa nova concepção de política globalizante, conduzida pelos países centrais, detentores não só do capital, mas também de toda tecno-ciência de ponta, impõe regras aos países periféricos, historicamente dependentes dos países mais ricos nos dois aspectos, econômico e tecno-científico. Tal imposição, obriga os estados nacionais dependentes a estabelecerem uma nova ordenação política de adequação, porque não dizer de submissão, aos interesses hegemônicos dos países centrais. Na verdade, essa nova política de sustentação da nova ordem global, não deriva necessariamente ou diretamente dos poderes políticos tradiocinais, mas sim de uma nova elite “interdisciplinar” que envolve represntantes de vários segmentos institucionais, de maneira mais específica, dos segmentos científico, tecnológico, econômico, político e midiático. “Essas novas elites orgânicas, que configuram os megasistemas de poder (científico, tecnológico, midiático e econômico), no início do século XXI, formam uma GLOBAL TECH NETWORK de empresários, engenheiros, executivos, analistas, tecnólogos e cientistas que, transcendendo as estruturas estatais, atua como ‘gerência’ da política planetária e matriz da orientação estratégica. Esses homens, os mais influentes do planeta, possuidores de poderes jamais vistos na história da humanidade , se encontram regularmente em centros de conferências virtuais e em ‘espaços’ privilegiados de articulação, seguros e afastados do ‘olho público’, como o Fórum Econômico Mundial. Embora tenha sede em Genebra, essa espécie de ‘senado’ da economia mundial (na expressão de Alain Touraine), congrega cerca de quarenta chefes de Estado, aproximadamente 200 ministros e governadores de

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bancos centrais e quse mil dos mais importantes CEOs, pensadores, consultores e autoridades econômicas no já tradicional ‘Foro de Davos’, na bela localidade homônima no alto das montanhas suíças” (DREIFUSS, 1996: 173 ). Já no aspecto social, podemos dizer que as angústias contemporâneas decorrem das imposições formais que se colocam para a sociedade através das diferentes instituições sociais, transformando esse contexto globalizado em um ambiente repleto de novos significados. Curioso observar que, como já referido no parágrafo anterior, a globalização é um fenômeno que se manifesta desatrelado do poder convencional imposto pelos Estados Nacionais, sendo conduzida, agora, por uma elite de “nômades”(a expressão é de Z.Bauman) que circulam pelos diferentes territórios globais impondo novos paradigmas institucionais. Dentro desse novo cenário, o homem contemporâneo, individualizado, troca sua liberdade pela segurança oferecida pela nova ordem planetária, sendo, de maneira inapelável, sofocado pela funcionalidade objetiva impositora de “negócios”. Nesse sentido, a vida, apesar de ser um princípio de natureza societária, se nos apresenta como um agir de natureza individualizada, onde o que se busca de maneira angustiada é a auto-afirmação de caráter materialista. Nessa lógica, a ética fica, de certa forma ou de forma direta, comprometida enquanto princípio referenciador da convivência, não sendo entendida como o princípio maior da lógica dos “negócios” do mundo globalizado. Ao contrário, relativiza-se, tendo muito mais um sentido de norma do que de princípio. Podemos deduzir que, não sendo a ética a referência maior na convivência contemporânea globalizada, o compromisso da responsabilidade com o Outro torna-se naturalmente desprezado. Por conta disso, vivenciamos uma contemporaneidade de tensões latentes, onde interesses se sobrepõem a interesses, desestabilizando a convivência. Impossibilitando uma ordem estável ou duradoura. Contudo, há uma insubordinação formalmente estabelecida e crescente em contextos pontuais contra o controle imposto pelos países mais ricos, ou seja, não é errado dizer que o livre trânsito que o capital financeiro internacional adquiriu na globalização, estimula e amplia desigualdades políticas e econômicas. Tal realidade instável, acaba por sedimentar, como dedobramento, incertezas, estimulando desordens em todos os níveis institucionais. Estimulado pelo sistema econômico capitalista contemporâneo, o individualismo consumista radical também é responsável pela ausência de uma convivência harmoniosa e duradoura. Ironicamente, é “cada um por si e o mercado para todos”, como fica subentendido nas relações cotidianas globais. Dentro desse raciocínio, a convivência contemporânea globalizada tem como finalidade e referência maior o consumo e, nesse sentido, o indivíduo se comporta muito mais como consumidor, do que propriamente como cidadão, dentro daquilo que seria a ordem natural das coisas. Vale também dizer que, o cidadão transformado em consumidor, perde, por derivação, o espírito de natureza pública e assume um espírito de natureza privada. Perde, ainda, o chamado espírito crítico consistente, tornando-se um crítico pouco convicto, apenas das circunstâncias aparentes que lhe envolvem enquanto consumidor.

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Novas demandas sociais A humanidade, ao longo de toda sua existência, sempre buscou novas ideias, associadas a novas técnicas que lhe permitisse o bem-estar e o bem-viver. Nessa idealização, o Homem percebeu de imediato que viver em sociedade era a possibilidade mais viável como garantia de sobrevivência e perpetuação. Assim nasceram as Cidades, assim nasceram os Estados, assim nasceu o Cidadão, entendido aqui como o indivíduo na Pólis e, como derivação direta, tudo passou a girar em torno da chamada res publica. O comprometimento, a cooperação e a solidariedade foram conceitos, entendidos desde o início, como fundamentais para a harmonia da vida societária. Estamos nos referindo à Grécia Clássica, assumida por nós como berço da civilização ocidental, onde o Estado passou a ser responsável direto pela administração da coisa pública e responsável, também, pelo bem-estar e bem-viver acima aludidos. Ali, na Grécia Clássica, sedimentouse aquilo que definimos hoje como projeto civilizatório. A nosso ver, foi a aurora da Modernidade, onde o Homem, através de sua razão de natureza intelectual, tornou-se o centro da própria existência. Dentro dessa concepção de mundo, de natureza orgânica, a Ética era um princípio de natureza absoluto a conduzir a convivência em todos os níveis das emergentes instituições sociais. A Idade Moderna pode ser entendida como a quebra desses paradigmas, para o estabelecimento de outros, ou seja, o preceito de destino é substituído pelo preceito de livre-arbítrio, o preceito de absoluto é substituído pelo preceito de relativo, o sentido organicista/universal da existência também é categoricamente substituído pelo sentido pluralista/particular. Nessa nova concepção de mundo conduzida pelo livre-arbítrio, tudo se fragmenta, tudo se particulariza, tudo se individualiza, inclusive o próprio Homem. Nessa mudança de paradigmas, a vida não perde o sentido societário, mas a convivência ganha, progressivamente, sentido individualista. O que queremos dizer, por derivação, é que a antiga res publica perde seu caráter original e se assume como privada, o Homem também perde seu caráter original, deixando em segundo plano sua gênese de cidadão e se assumindo como indivíduo na convivência social moderna. Dentro desse raciocínio, podemos dizer que o livre-arbítrio moderno altera a configuração política com a afirmação dos Estados nacionais, altera a configuração econômica com a afirmação do Capitalismo e sua tendência privatista da livre-iniciativa. No plano religioso também vai ocorrer impacto significativo com a afirmação do Protestantismo, entendido como livre interpretação dos textos sagrados. No âmbito da cultura, passa a prevalecer a lógica da funcionalidade objetiva como valor costumeiro, impondo a chamada ‘convivência de resultados’. O que passamos a ter, assim, é uma espécie de positivismo social, materialista por excelência, individualista e competitivo. Vale dizer que, o individualismo, entendido como princípio de natureza material, torna-se o grande emblema da cultura moderna. Assim é que a Modernidade, agora globalizada, impõe novas formas de convivências institucionais, aqui denominada por nós como novas demandas sociais. Em síntese, não é errado afirmar que, o Homem moderno desconectado

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dos valores tradicionais, rejeita, como prioridade, a transcendencia, apostando em sua autonomia. Nessa idealização, sua presença lhe basta para enfrentamento do mundo e, a partir da autonomia conquistada, reformula valores e critérios, substituindo, conscientemente, o preceito de destino pelo preceito do livrearbítrio, conforme já referido acima. Tratando de maneira mais específica do mundo ocidental contemporâneo globalizado, no que concerne às novas demandas sociais emergentes desse contexto global, será essa a nossa preocupação maior, a partir de agora, nesse texto, lembrando ser esse o objeto central de nossa incursão reflexiva através desse artigo. Inicialmente, podemos constatar que as novas demandas sociais não tem caráter permanente e duradouro, ao contrário, são dinâmicas e altamente mutáveis, o que se torna um grande desafio para qualquer tentativa de estabelecimento de uma ordem estável e duradoura. O que nos fica evidente em um primeiro momento, é que o tecnologismo contemporâneo introduz nos indivíduos uma espécie de “feitiço” que seduz e acaba provocando o que Milton Santos chama de “encantamento do mundo”. O tecnologismo, associado à ideologia do capitalismo global, torna o dinheiro o centro da existência humana e que, como desdobramento inevitável, transforma a vida em “negócio” e não em princípio. Em outra palavras, na convivência contemporânea globalizada, a vida é muito mais de natureza econômica do que de natureza filosófica, onde o homem se torna refém da técnica, colocando em segundo plano sua própria razão. Ainda como desdobramento “natural” dessa lógica, o consumo é o motor que conduz a existência do homem contemporâneo e o define socialmente, bem como a competitividade selvagem, de viés individualista, inviabiliza a solidariedade e a aproximação entre os indivíduos. Assim é que, a economia e o consumo se assumem como princípios absolutos, colocando categoricamente a ética como um princípio de natureza relativa ou secundária. Importante mencionar também que essa nova ordem global, tirânica por excelência porque aprisiona o homem, provoca um sentimento dúbio nos indivíduos, ou seja, confia-se cegamente no tecnologismo contemporâneo globalizado e no capitalismo a ele associado, mas essa confiança se transforma, simultaneamente, em medo por conta da possibilidade de não ser devidamente acolhido por essa lógica hegemônica. Da confiança que gera segurança, vive-se uma desconfiança que gera insegurança e ansiedade. Dentro desse raciocínio, lembrando Bauman, a confiança e o medo se estabelecem como sentimentos simultâneos porque fica muito bem subentendido que não existe outra escolha, o destino do indivíduo contemporâneo globalizado é adaptar-se à esse “motor único”, assim chamado por Milton Santos ‘o mundo atual’. Isso posto, o projeto de vida desse indivíduo globalizado passa a ser a busca do prazer e da felicidade material. O verbo ‘buscar’ tem sentido profundo na convivência globalizada, pois é a busca por aquilo que nem sempre é fruto de uma necessidade consciente, a condutora e motivadora desse novo indivíduo. Por extensão, o consumo passa a ser a motivação maior desse mesmo indivíduo, agora conduzido apenas pelo desejo de desejar e não pelo desejo de buscar aquilo que lhe é, de fato, necessário.

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Segundo Milton Santos, aqui citado por Max Peter Schulvater Filho, “...o papel despótico da informação é marcante no período de procedência atual, já que suas técnicas são usadas pelos atores majorantes do processo em função de objetivos privados. Desse modo, a periferia do sistema capitalista apenas recebe a informação manipulada, já ideologizada, programada para a filiação à lógica do consumo, enquadrando-se, assim, mais à margem ainda. Segundo Santos, isso se dá em muito pela íntima confusão entre realidade e ideologia coisificada ao homem comum: o discurso e a retórica tornaramse capazes de exercer encantamento, ou seja, não mais a função principal da informação é a da instrução, mas sim, agora, a de convencimento, função da propaganda. O consumo mostra-se, prossegue Max Peter, como o grande emoliente de imobilismos, sendo apontado por Milton Santos, somado à publicidade, como redutor da moral e do intelecto do indivíduo, tal qual de sua personalidade e visão de mundo. Consumir por si torna-o elemento massificado, de modo que, no embate entre cidadania e posição de consumidor, aquela é suprimida e, em pior hipótese, absorvida pela identidade do consumidor. O homem torna-se, assim, marionete do capital, movido pelas cordas da publicidade e da competitividade amoral” (SCHULVATER FILHO, 2015:5). Podemos dizer que,na lógica de mercado que conduz a globalização contemporânea, os indivíduos se transformam também em mercadorias, onde todos perdem, progressivamente, sua condição de produtores e se transformam, potencialmente, em consumidores. Essa lógica do consumo assumida pelos indivíduos na convivência social torna-se perversa porque, o consumidor não tem referenciais sólidos, convicções conscientes e duradouras, opiniões lúcidas e consistentes, ficando extremamente vulnerável enquanto pessoa no mundo. Aí vem a perversidade maior, transforma-se em presa fácil para a indústria do consumo e da política economica que conduz essa indústria, transformando-se em uma espécie de mercadoria que é estimulada a consumir outras mercadorias. Segundo Bauman, esse é o segredo mais bem guardado da sociedade dos consumidores. Podemos afirmar ainda que, essa nova cultura planetária que nos impõe uma espécie de pensamento único, nos tira a possibilidade de compreensão plena das coisas que nos cercam, pois compreender demanda tempo ou, usando uma expressão do senso comum, para compreender é preciso ‘parar para pensar’, mas, dentro desse padrão de comportamento categoricamente estabelecido, parar significa sair da lógica do ‘MOVIMENTO’, tornar-se vítima da exclusão sócio-digital que paira por sobre nossas cabeças. Afinal de contas, lembrando aqui M. Maffesoli, ‘sou o que sou porque outros me reconhecem como tal’. Não é exagero afirmar, pois, que, na convivência sócioinstitucional contemporânea globalizada, os indivíduos trocam a liberdade plena de SER no mundo pela segurança plena de ESTAR incluído socialmente nesse mesmo mundo. A ascenção dessa cultura de natureza pragmática, basicamente derivada de uma razão de natureza técnica, tira dos indivíduos,

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ou coloca em segundo plano, a natureza humana que deveria lhes conduzir na convivência societária. É cada um por si e o mercado para todos, conforme já aludido aqui anteriormente. Citando Bauman, “Na hierarquia herdada de valores reconhecidos, a síndrome consumista degradou a duração e elevou a efemeridade. Ela ergue o valor da novidade acima do valor da permanencia. Reduziu drasticamente o espaço de tempo que separa não apenas a vontade de sua realização (como muitos observadores, inspirados ou enganados por agências de créditos, já sugeriram), mas o momento de nascimento da vontade do momento de sua morte, assim como a percepção da utilidade e vantagem das posses de sua compreensão como inúteis e precisando de rejeição. Entre os objetos do desejo humano, ela colocou o ato de apropriação, a ser seguido com rapidez pela remoção do lixo, no lugar que já foi atribuído à aquisição de posses destinadas a serem duráveis e a terem um aproveitamento duradouro” (BAUMAN, 2008:111). Portanto, partindo do pressuposto de que é a lógica do ‘MOVIMENTO’ que conduz a cultura globalizada contemporânea, conforme referido acima, movimento esse que tem como finalidade última o consumo, transforma toda existência humana em uma espécie de grande investimento (de natureza técnica) voltada para a auto-afirmação segura enquanto consumidor. É dessa lógica do movimento que derivam as transformações sistemáticas e ininterruptas que alteram velozmente a convivência sócio-institucional em todos os níveis, ou seja, dinamiza-se a economia, dinamiza-se a política, dinamiza-se a cultura e, por extensão, dinamiza-se a convivência e os comportamentos sociais.Tudo se torna perigosamente provisório, como já disse Gilberto Gil em uma de suas composições. É justamente nesse ambiente social estreitado e devidamente conectado pelas grandes redes e sistemas globais, que reside o desafio maior que se antepõe ao Direito contemporâneo, ou seja, dar respostas legais à uma convivência repleta de interesses nem sempre são pacíficos ou convergentes.

Direito e novas demandas sociais Podemos considerar a globalização contemporânea como um fenômeno típico daquilo conhecemos e chamamos hoje de Pós-Modernidade. No que concerne às demandas sociais, foco central desse nosso artigo, é pertinente considerar que a era pós-moderna coloca em discussão ou rediscute os paradigmas estabelecidos pela Modernidade no que concerne à convivência social propriamente dita. Vale dizer que a Modernidade não cumpriu as promessas estabelecidas pela ideologia do progresso, foco central de seu discurso afirmativo como concepção de mundo. Ao contrário, agravou os abismos sociais em decorrência do descaso com que tratou as demandas sociais modernas, como por exemplo, distribuição de renda, emprego e justiça social, bem como o negligenciamento do papel do Estado enquanto regulador dessas demandas de naturezas sociais.

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Dentro do chamado tempo histórico, a Pós-Modernidade se inicia por volta de 1945, imediatamente após o término da Segunda Grande Guerra Mundial. Época em que se evidencia o que hoje para nós se transformou em discurso corriqueiro, ou seja, a vivência de uma era caracterizada por crises sistemáticas em todos os segmentos institucionais. Crise da Política, crise da Economia, crise Sócio-Cultural e, por derivação direta, crise do Direito. O que temos hoje, então e assim, é uma discussão de antigos paradigmas falidos pela própria convivência sócio-institucional moderna. Em linhas gerais, permanece o grande modelo imposto pela Modernidade, o que difere em relação aos tempos atuais é a queda da crença inabalável na ideologia do progresso, apresentada pela Modernidade como modelo de sociedade ideal para o homem ocidental. O que queremos dizer na verdade, é que o que conhecemos como realidade pós-moderna não é, ou não deve ser entendido, como um movimento antagônico ou de rejeição à Modernidade. A estrutura do sistema permanece inalterada, ou seja, a política ainda é a representação do Estado liberal, a economia ainda é conduzida pelo sistema capitalista e a sociedade segue dentro dos parâmetros estabelecidos pela cultura do consumo. A Pós-Modernidade é apenas e tão somente a inserção de um discurso questionador e revisionista da lógica moderna, em outras palavras, podemos dizer que a Pós-Modernidade é a crítica que a Modernidade faz de si própria. É a tomada de consciência de que o Iluminismo consagrador do discurso da razão científica, que se impôs como concepção de mundo, fracassou como promotor pleno do bem-estar e do bem-viver social. O fato é que, com a afirmação plena da Globalização, esse um fenômeno pós-moderno, pulveriza-se a convivência sócio-institucional e os valores e princípios de caráter absoluto idealizados pelo racionalismo científico moderno deixam de ser as referências maiores. Segundo Bauman, aqui referido através de Jorge Jose da Fonseca Filho, “...há que se fazer uma distinção entre a modernidade que perdurou até o século XIX e início do século XX, a que chamou de ‘pesada’, e a modernidade da segunda metade do século XX em diante, denominada ‘fluída’, ‘leve’ ou ‘líquida’. Enquanto a modernidade ‘pesada’ carcterizou-se pela conquista de territórios, pela produção em massa e pelo uso de instrumentos postos a serviço do desenvolvimento científico e industrial (racionalidade instrumental), a modernidade ‘leve’ teve por principal característica o encurtamento de distâncias, tanto em sentido real (criação de meios de transportes mais velozes e eficazes, capazes de ultrapassar as fronteiras outrora intransponíveis – como ocorreu com as viagens ao redor do mundo) como em sentido virtual (desenvolvimento dos meios de comunicação – software – capazes de conectar pessoas em distâncias inimagináveis). Conforme aduzido pelo próprio autor, a noção de longe e perto perde todo o sentido a partir da ‘fluidez’ desses elementos de interação global, sendo esta a marca distintiva dos períodos pré-metade e pós-metade do século XX. Some-se a tudo isso a dinâmica dos negócios, organizados de forma mais

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fluída a permitir o descarte de peças “humanas’ de produção e a volatibilidade dos serviços realizados, fatores que, em conjunto, levam a uma relativização do espectro tempo-espaço.”(FONSECA FILHO, 2011:19). O fato é que a Pós-Modernidade, conduzida pelas diretrizes da globalização, estreita e plulariza a convivência sócio-institucional, provocando muito mais incertezas do que certezas e onde se entrelaçam o real e o virtual. Nessa lógica pósmoderna, as interações sociais se processam quase que de forma incontrolável, dentre outras razões, devido a provisoriedade dos valores e dos costumes. É justamente nesse ambiente social conectado e multifacetado, que reside o grande desafio do Direito contemporâneo, adequar interesses, equilibrando necessidades e possibilidades, conforme já dissemos anteriormente. Tarefa, em nosso entendimento, de enorme dificuldade se partirmos do pressuposto de que a globalização contemporânea pós-moderna e o Direto possuem geneses díspares, isto é, enquanto a primeira é conduzida pela lógica das inovações tecnológicas, o segundo tem como natureza a manutenção/conservação/normatização daquilo que está formalmente estabelecido. Entretanto, o ambiente sócio-institucional contemporâneo globalizado é marcado por uma crise de natureza orgânica que acirra conflitos e acentua antagonismos, tais como a relação pobreza/riqueza entre países centrais e periféricos ou entre segmentos sociais dentro de um mesmo país, o crescimento gradativo de mão-de-obra ociosa a nível mundial, a questão da soberania e independência dos estados nacionais, a questão da degradação ambiental e seus malefícios à humanidade ao colocar em risco o próprio planeta, os conflitos bélicos que, devido aos altos investimentos em novas tecnologias armamentistas por parte dos segmentos industrial-militar, tornam-se ameaças cada vez mais graves. O Direito Positivo, hierarquizado e normativista concebido como ajustamento legal para a Modernidade, não mais se adéqua à realidade pósmoderna, havendo, assim, uma necessidade latente de redimensionamento do Direito enquanto instituto dc referência social. A nível nacional, o novo cenário de convivência social globalizada impõe ao direito brasileiro respostas eficazes à crise estrutural instaurada em nosso país e manifesta em todos os níveis institucionais. A questão da economia, a questão do Estado, a questão da política, a questão da saúde, a questão da educação, a questão ambiental, a questão que envolve trabalho/emprego, a questão que envolve segurança/criminalidade/violência e uma questão que perpassa todas as instituições de natureza pública, qual seja a questão da corrupção, realidade patológica que, devido sua constância, transformou-se em “normalidade” institucional. No que concerne ao papel do direito brasileiro no cenário social nacional, é preciso superar o Positivismo Jurídico (atrelado à Modernidade) e dar ao Pós-Positivismo Jurídico (atrelado à Pós-Modernidade) um viés preferencialmente social, democrático e justo. Concordando com alguns teóricos da globalização contemporânea, principalmente com Zygmunt Bauman, já mencionado por nós ao longo desse trabalho, temos a sensação latente que vivenciar essa realidade social

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globalizante é nosso destino e não uma escolha pessoal nossa. Tendo diante de nós diferentes formas de interação tecno-digital, estreitamos convivências mas, ironicamente, ampliamos diferenças e desigualdades. A globalização contemporânea redimensiona a economia, redimensiona a democracia, redimensiona a política e o Estado, redimensiona a convivência e, por derivação, exige também um redimensionamento do Direito, exigindo-lhe uma postura agregadora para os problemas de natureza sócio-econômicopolítico mal resolvidos ou desprezados pelo pensamento hegemônico condutor da globalização, leia-se países centrais orquestradores da nova ordem mundial que colocam em segundo plano os países periféricos. Em uma palavra, o Direito contemporâneo tem que ser tão variável quanto as relações derivadas da convivência globalizante que, devido ao estreitamento conectivo, torna-se naturalmente complexa. Conforme já nos disse San Thiago Dantas, o Direito é, antes de qualquer coisa, um instituto para solução de conflitos, não podendo, pois, se eximir dessa responsabilidade. É inegável que as profundas transformações que se manifestam na convivência social atualmente, seja nas interações sociais, seja nos anseios populares ou na transfiguração dos costumes e valores, tudo isso afeta diretamente o comportamento do Direito em sua prática normativa, obrigando-o a um ininterrupto diálogo com tais transformações, superando referenciais paradigmáticos modernos que já não atendem ao dinamismo do ambiente social pós-moderno. Dúvidas e indagações substituem categoricamente as certezas e as soluções positivamente definidas de outrora. Objetivamente, o Direito tem que ser, no contexto pós-moderno, tão aberto quanto a realidade que se lhe apresenta de forma desafiadora e por que não dizer, uma realidade absolutamente dependente de seu aparato legal. Segundo Campilongo, “A globalização impõe ao direito o tratamento jurídico de matérias não rotinizadas e muito específicas. Sem entrar no mérito da existência ou não de um pluralismo jurídico devinculado de fundamentos jusnaturalistas é certo que essa fragmentação normativa diminui a capacidade do Estado-nação em fazer prevalecer os interesses públicos sobre os interesses específicos dos agentes produtivos. O que está em jogo não é tanto a duvidosa eficácia da promoção de mudanças sociais a partir do direito, tampouco a improvável capacidade do direito em atuar como mecanismo de controle social. A indagação final, para a teoria jurídica, está em saber se as estruturas do direito são suficientes para estabilizar expectativa s normativas nessas novas áreas ou se, ao contrário, o direito não estaria cedendo parcialmente lugar a alternativas diferenciadas, não propriamente jurídicas, da organização social, especialmente nas periferias” (CAMPILONGO, 2011: 150). Dentro desse mesmo raciocínio, podemos dizer que, em um contexto tão fragmentado e repleto de especificidades, como é o contexto global contemporâneo, o Direito não deve desconsiderar essas características pósmodernas, mas sim reconhecê-las e a elas se ajustar para que não se torne refém dos interesses neoliberais impostos pela política e pela economia hegemônica.

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Esse, em nosso entendimento, é o obstáculo principal a ser superado pelo Direito pós-moderno, ou seja, marcar presença respondendo de forma digna os conflitos e contradições que permeiam a convivência sócio-institucional de nosso tempo. É importante que se mencione, fundamental até, que, essa intenção legalista e normativa condutora do Direito nessa empreitada, deve ter como referência maior uma atuação que se entenda como virtuosa e vá além de uma presença meramente mecânica ou normativa, o que significa dizer que o Direito, antes de ser aplicado como um instituto técnico-normativo, formalmente positivado, deve ser idealizado como um princípio filosófico de promoção e proteção ética da convivência globalizada. Nos países mais pobres, considerados dentro do contexto globalizado pó-moderno como países periféricos, tal empreitada do Direito torna-se muito mais dificultosa haja visto que as contradições de natureza interna estão históricamente enraizadas e de difícil superação. Nesses países, dependentes por natureza, via de regra, democracia, cidadania e espírito público são princípios mal construídos ou categoricamente desconsiderados nos âmbitos político, econômico, cultural e porque não dizer, no próprio âmbito jurídico. A ausência desses princípios, como fundamento maior na convivência, obstruem o estabelecimento de uma realidade que se entende como justa e democrática. A formação intelectual desses países, historicamente influenciados por uma concepção de mundo de natureza externa, impediu, ou não permitiu que se construísse de maneira plena aquilo que chamamos de identidade nacional soberana e virtuosa. Assim é que, por conta de uma má formação de natureza histórica, tenhamos nesses países instituições políticas, econômicas e sociais imaturas e vulneráveis éticamente, incapazes de neutralizarem corrupções e desmandos antidemocráticos, onde, vale dizer, a própria instituição jurídica não fica imune a essas anomalias. É legítimo afirmar que, nos países periféricos, de uma má formação histórico-intelectual, derivam fragilidades políticas, econômicas e culturais que comprometem a afirmação de um ambiente social virtuosamente democrático, propício à uma atuação também saudável, democrática e justa do Direito contemporâneo.

Algumas considerações finais Como síntese das ideias por nós aqui desenvolvidas, algumas considerações podem ser destacadas. Em primeiro lugar, vale dizer que o modelo paradigmático de totalidade idealizado pela Modernidade, sucumbiu diante da fragmentação da ordem moderna imposta pela Pós-Modernidade. Repetindo Bauman, entramos em um mundo pós-moderno fluido, leve e superficial, contraponto à modernidade ‘pesada’ com seus discursos fechados e de tendências totalitárias. O que define melhor a Pós-Modernidade é justamente o anúncio que faz do fim da Idade Moderna, mas sem definir de maneira precisa e categórica o significado da nova era pós-moderna. Dentro dessa perspectiva, o futuro é incerto, mas que deve ser projetado sem atrelamentos às contradições e aos erros cometidos

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pelo discurso racionalista científico moderno. Que a nova ordem não cometa o principal erro cometido pela Modernidade, qual seja o de postar-se ‘de costas’ para a humanidade, desprezando a razão humana em detrimento de uma razão de natureza técnica, elitista e excludente. Tal erro foi cometido ao longo de todo o percurso da Idade Moderna, inclusive pelo Direito enquanto instituição social normatizadora das relações intersociais modernas. A Pós-Modernidade, ao quebrar os paradigmas modernos de convivência, desestabiliza o que antes era entendido como estável e duradouro, deixando como consequência mais visível um sentimento de perplexidade e instabilidade em todos os níveis socio-institucionais ao se colocarem diante de uma realidade em constante mutação a exigir mudanças. É justamente esse cenário multicultural e multifaceto por interesses distintos, que faz com que o Direito pós-moderno também se sinta perplexo por conta das pressões que sofre no sentido de redimensionamento de seus próprios discursos. O que fica latente nesse novo tempo é que conceitos de outrora, tidos como de caráter universal e derivados principalmente do espírito da Revolução Francesa, não mais atendem aos anseios pós-modernos. A nova realidade global tem novos cenários, completamente distintos daqueles cenários do séculos XVIII e XIX. O tecnologismo e suas inovações, provocou e facilitou o estabelecimento desses novos cenários. Os direitos agora são entendidos dentro de particularidades cada vez mais pontuais e específicas, tais como os direitos econômicos, direitos políticos e direitos sociais, uma vez que, cada um desses segmentos, traz consigo especificidades também pontuais. Vivenciamos uma era de afirmação de discursos que nem sempre são convergentes, ou melhor, quase sempre são divergentes, eclodindo daí o que definimos hoje como CRISE. Em nosso entendimento, o papel que cabe ao Direito pós-moderno é, antes de agir normativamente, precisa captar filosoficamente a alma da PósModernidade e, a partir dessa absorção, definir princípios ético-legais que atendam às diferentes necessidades emergentes dessas novas demandas sociais. É por essa razão que o Direito deve ser, antes de qualquer ingerência normativista no contexto pós-moderno, um instituto que se entenda como de natureza filosófica, sensível aos novos tempos, às novas demandas sociais. Usando uma expressão de Bittar, esse é o papel da Jusfilosofia como pensamento da Pós-Modernidade para estabelecimento de uma sintonia fina entre Direito e contexto. O Direito pós-moderno deve ser ambicioso, pois tornou-se principal referência para ajustamento dos interesses múltiplos que se manifestam de maneira simultânea na convivência globalizada contemporânea. Para todas as variações presentes nessas convivências, a presença do Direito é obrigatória, uma vez que são os aparatos legais que dão o pleno reconhecimento social aos diferentes interesses políticos, econômicos ou sociais manifestos. Em uma palavra, a responsabilidade do Direito pós-moderno é a de assumir-se como contraponto ético em uma convivência sócio-institucional pragmática repleta de contradições e que colocam o agir ético como um valor relativo e/ ou circunstancial.

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Esboço sobre o Teórico e o Prático no Pensamento de Kant, Atravessado pela Liberdade Wellington Trotta1 Resumo Este esboço é o resultado de alguns anos de pesquisa sobre o pensamento éticopolítico de Kant, especificamente no que tange a sua reflexão sobre a relação entre o teórico e o prático atravessado pela liberdade como valor. Outrossim, deve-se destacar que a razão é capaz de fornecer as condições de se conhecer a lei moral que está dentro de nós, por isso a moral que organiza a vida comunitária não seria uma convenção, mas algo inato por ser a priori. Nisso consiste a novidade da ética kantiana. Palavras-chave: Kant; liberdade; moral; razão; vontade. Abstract This paper is the result of several years of research on Kant´s ethical-political thought, specifically concerning the relationship between the theoretical and the practical crossed for freedom as a value. Furthermore, it should be noticed that the reason is able to provide the conditions of knowing the moral law that is within us, so the moral that organizes community life would not be a convention, but something innate to be a priori. Herein lies the novelty of Kantian ethics. Keywords: Kant; freedom; moral; reason; will.

Introdução O fim deste esboço, sob a forma de ensaio, consiste em analisar o pensamento ético-político de Kant no que tange a sua reflexão sobre a relação entre o teórico e o prático atravessado pela ideia de liberdade como fundamento. Outrossim, estudar o papel da razão em fornecer as condições do conhecimento da lei moral que está dentro de nós, por isso a moral que organiza a vida comunitária não seria uma convenção, mas algo inato por ser a priori. Nisso consiste a novidade da ética kantiana. Assim, este esboço ficou dividido em três tópicos e uma conclusão, que, no lugar de resumir o texto do ensaio, tomou a forma de instância reflexiva. No tópico 1, A Crítica da razão pura e a razão como normatização do conhecimento traçou-se, em linhas gerias, o papel da razão na apreensão do 1

Bacharelado em Direito (UGF) e Filosofia (UERJ), Mestrado em Ciência Política (UFRJ), Doutorado em Filosofia (UFRJ) e Pós-Doc em Filosofia (UFRJ). Atualmente leciona Filosofia na UNESA, responsável pelo Núcleo de Pesquisa de Ciências Jurídicas e Sociais pela UNESA de Cabo Frio.

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conhecimentos verdadeiro, o a priori. No tópico 2, A Crítica da razão prática e a legislação moral dada pela razão, estudou-se que não há oposição entre o puro e o prático, o que há, de fato, é que, no domínio especulativo, houve um exame crítico das condições e do uso da razão pura quanto ao seu objeto que são os conceitos, ao passo que o uso prático da razão passa a ter o objeto moral como fundamento. No tópico 3, A liberdade como pressuposto da igualdade, a Crítica da razão prática não é uma crítica da razão prática pura, mas uma crítica da razão prática em geral.que compreende o plano da vontade boa dos atos. O sentido dessa crítica é revelar-se prática, isto é, clarear os princípios a priori das leis morais, dados pela razão, ao mesmo tempo em que estabelece a liberdade como fundamento ético-político, uma vez que Kant a toma como único direito natural originário.

A Crítica da razão pura e a razão como normatização do conhecimento A importância de se refletir sobre a filosofia kantiana e sua visão prática, especificamente, é justificada pela grande influência que esse sistema exerceu sobre aqueles que o seguiram. Kant se destaca por ser um divisor de águas, pois ao retomar dos gregos aspectos fundamentais da filosofia clássica, ao mesmo tempo em que é influenciado pela contribuição da tradição, é marcadamente impactado pelo pensamento cristão-luterano na medida em que propugna por uma nova ordem política profundamente moral de caráter individual e ascético, concomitantemente.2 Não se pode pensar a filosofia em geral e, a filosofia política em particular, após os escombros da revolução francesa de 1789, sem antes levar em consideração as formulações teóricas estabelecidas por Kant. Destaca-se, precipuamente, sua síntese ético-política que contribui para a compreensão do direito enquanto sistema positivado (BOBBIO, 1984, p. 49). Para esse filósofo, a razão deve ser conhecida a priori porque se trata de fundamento das ciências e, nessa condição, o conhecimento da razão tem dois sentidos. Primeiro, identifica o entendimento como seu objeto determinado conceitualmente; segundo, torna a razão como algo real, existente. Por isso, o conhecimento, ao mesmo tempo em que se apresenta como teórico da razão – Crítica da razão pura, CRP -, é também conhecimento prático da razão – Crítica da razão prática, CRPr (KANT, 1996, p. 36). A metafísica é um conhecimento da razão especulativa que trabalha com conceitos se pondo acima da experiência. Mas, até agora, a metafísica, segundo Kant, foi um simples tatear porque os seus vários partidários sempre procuraram a primazia de tê-la como uma verdade particular, tomando o um pelo todo, 2

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“A velha filosofia grega dividia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. Esta divisão está perfeitamente conforme com a natureza das coisas, e nada há de corrigir nela, a não ser acrescentar o princípio em que se baseia, para que deste modo, por um lado, nos assegurarmos da sua perfeição” (KANT, 1973, p. 197). Refere-se à platônica.

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retornando sempre ao mesmo ponto em que parou como se estivesse no mesmo lugar sem ter dado um só passo (KANT, 1996, p. 38).3 Portanto, pergunta-se: qual a possibilidade de a metafísica tornar-se ciência? Pois bem, a base desse problema está na maneira de como pensá-lo. As ciências como Física e Matemática obtiveram, conforme Kant, verdadeiros êxitos quando reduziram o seu objeto para depois poder ampliá-lo, ao passo que o projeto de tornar a metafísica uma ciência fracassou, até agora, pelo fato de persistir com a tese de que o objeto deveria regular o saber do sujeito. Esse método não conseguiu estabelecer conceitos a priori e muito menos ampliá-los (KANT, 1996, p. 37-38). Naquelas ciências houve progresso quando elas não mais se deixaram regular pelos objetos, mas submetendo-os ao olhar do sujeito cognoscente, fazendo com que os objetos gravitem em torno de conhecimentos a priori, estabelecendo sobre eles uma ideia antes de serem dados. Assim, “se a intuição tivesse que se regular pela natureza dos objetos, não vejo como se poderia saber algo a priori a respeito da última” (KANT, 1996, p. 39). A ciência da experimentação se regula a priori porque a experiência é um modo de conhecimento “que requer entendimento, cuja regra tenho que pressupor a priori em mim ainda antes de me serem dados objetos” (Ibidem). Os objetos dados são posteriores ao conteúdo do sujeito, portanto das coisas conhecemos a priori só o que nelas colocamos, pois a tentativa de subordinar o objeto ao sujeito pode lograr êxito, assegurando à metafísica o caminho da ciência na sua primeira parte, em que se ocupa com conceitos a priori. Essa verdadeira reviravolta que Kant opera na forma de pensar após as objeções de David Hume constitui profunda mudança na teoria do conhecimento, ficando conhecida como revolução copernicana, visto que o sujeito passa a ser o elemento central no processo de conhecimento, regulando os objetos pela categoria a priori determinada pela razão (KANT, 1996, p. 39). A partir dessa maneira de pensar pode-se obter um conhecimento seguro em virtude do plano subjetivo ser determinado a priori, isto é, aquilo que conhecemos acerca do objeto está nas estruturas do próprio sujeito. Vale lembrar que isso tudo só se refere ao fenômeno, visto que o projeto de se conhecer a coisa em si não nos é possível, uma vez que nos é impossível conhecê-la pelas nossas condições cognoscíveis. Quando o conhecimento da experiência não se deixa guiar pelo objeto como coisa em si, a contradição desaparece em virtude de agora esses fenômenos serem conduzidos pelo nosso modo de representá-los. O que conhecemos sobre um determinado objeto deve ser regulado por nossa 3

“Ora, até agora, a metafísica não conseguiu demonstrar validamente a priori nem este princípio, nem o princípio de razão suficiente, ainda menos alguma proposição mais complexa que dissesse respeito, por exemplo, à psicologia ou à cosmologia, em suma, nenhuma proposição sintética: portanto, nada se cumpriu, nada se produziu e se fez progredir através de toda essa análise e, após tanta agitação e ruído, a ciência continua ainda onde estava no tempo de Aristóteles, embora a preparação, se apenas se tivesse descoberto o fio que conduz aos conhecimentos sintéticos, seja incontestavelmente muito melhor do que outrora” (KANT, 1988, p. 167).

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representação a priori. Por isso, a metafísica deve conseguir elevar-se acima dos limites de toda experiência possível, cujo propósito no futuro também é prático. Nesse sentido, o propósito do: Assunto desta crítica da razão pura especulativa consiste naquela tentativa de transformar o procedimento tradicional da Metafísica e promover através disso uma completa revolução [...] É um tratado do método e não um sistema da ciência mesma (KANT, 1996, p. 41).

No conhecimento, a priori, não se pode acrescentar aos objetos nada a não ser o que o sujeito pensante retira de si mesmo, porquanto a crítica é um conjunto orgânico em que cada elemento funciona um em relação ao outro, sendo que cada um não pode ser tomado isoladamente, porque as relações entre os elementos pautam pela universalização com todo o uso puro da razão. Mesmo que não possamos conhecer a coisa em si mesma, temos que, pelo menos, conhecê-la por meio de sua manifestação como fenômeno, até porque isso nos levaria ao absurdo de não se considerar que haveria fenômeno sem que houvesse algo aparecendo. A Crítica é fundamental para uma metafísica como ciência, pois a Crítica é instrumento necessário para que o objeto de investigação da metafísica seja reduzido para depois ampliar o conhecimento que lhe diz respeito (KANT, 1996, p. 42-43).4 Kant pontua que o nosso conhecimento começa com a experiência (objetos tocando os sentidos). Mas, mesmo o conhecimento começando com a experiência, nem todo ele se origina da mesma condição. Existem conhecimentos independentes da experiência que são os a priori, enquanto os a posteriores são aqueles que têm sua fonte na pesquisa. As condições do juízo a priori são universalidade e necessidade absolutas. A universalidade não é derivada da experiência, uma vez que não lhe é permitida nenhuma exceção como condição possível de validez, sendo que a necessidade é uma proposição que só pode ser pensada naturalmente, não derivando de nenhuma outra, não admitindo nada em contrário (KANT, 1996, p. 53-54). A metafísica precisa de conhecimentos a priori. Certos conhecimentos abandonam mesmo o campo de toda experiência possível, elevando os juízos acima dela mediante conceitos. Nesses conceitos que superam a experiência residem as investigações da razão, pois a experiência não pode mais nos guiar. A razão comum constrói o sistema e depois verifica se os fundamentos estão bem assentados. Ao contrário disso, a razão deve trabalhar com conceitos, proporcionando conhecimentos verdadeiros. Por isso a razão deve ser de outra natureza. 4

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“O propósito último da razão humana está voltada para a prática, para o suprassensível [por isso] a liberdade é uma ideia prática, mas é igualmente uma ideia especulativa, e, nesta medida, é relacionada com a ideia de mundo” (TERRA, 1995, p. 19-20). Assim como a razão faculta conhecer as leis naturais, a mesma razão possibilita conhecer as leis morais; estas, como aquelas, são universais e necessariamente válidas.

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Nesse caso, para a razão pura, todos os juízos em que se pensa o sujeito com relação ao predicado se dão de dois modos, a saber: o predicado faz parte do sujeito ou o predicado está fora do sujeito. Nos juízos analíticos, a conexão do predicado com o sujeito é pensada por necessidade, cujo predicado faz parte do sujeito nada lhe acrescentando, sendo denominados juízos de elucidação. Enquanto isso, nos juízos sintéticos, a conexão do predicado com o sujeito é pensada sem necessidade; o predicado acrescenta algo ao sujeito, podendo tais juízos serem designados de juízos de ampliação. Assim, os juízos de experiência são todos sintéticos (KANT, 1996, 58-59). Os juízos analíticos não precisam de testemunho da experiência porque já possuem todas as condições no seu conceito, “os princípios analíticos são, na verdade, altamente importantes e necessários, mas só para chegar àquela clareza dos conceitos exigida para uma síntese segura e vasta em vez de a uma aquisição realmente nova” (KANT, 1996, p. 59). Contudo, é sobre a experiência que se funda a possibilidade da síntese do predicado com o conceito do sujeito. Os juízos sintéticos a priori são as condições do sujeito. Nesses juízos, devo sair do conceito A para conhecer o conceito B como ligado a ele, proporcionando a síntese. Como? Os juízos sintéticos a priori são universais e necessariamente válidos e, além disso, permitem ampliar os conhecimentos, sendo condição de toda experiência: Antes de mais, cumpre observar que as verdadeiras proposições matemáticas são sempre juízos a priori e não empíricos, porque comportam a necessidade, que não se pode extrair da experiência [...] A proposição aritmética é, pois, sempre sintética, do que nos compenetramos tanto mais nitidamente, quanto mais elevados forem os números que se escolherem, pois então se torna evidente que, fossem quais fossem as voltas que déssemos aos nossos conceitos, nunca poderíamos, sem recorrer à intuição, encontrar a soma pela simples análise desses conceitos [...] Do mesmo modo, nenhum princípio de geometria pura é analítico. Que a linha reta seja a mais curta distância entre dois pontos é uma proposição sintética, porque o meu conceito de reta não contém nada de quantitativo, mas sim uma qualidade. O conceito de mais curta tem de ser totalmente acrescentado e não pode ser extraído de nenhuma análise do conceito de linha reta. Tem de recorrer-se à intuição, mediante a qual unicamente a síntese é possível [...] Mas o problema não é saber o que devemos acrescentar pelo pensamento ao conceito dado, é antes o que pensamos efetivamente nele, embora de uma maneira obscura. Então é manifesto que o predicado está sempre, necessariamente, aderente a esses conceitos, não como pensado no próprio conceito, antes mediante uma intuição que tem de ser acrescentada ao conceito [...] O que pretendemos, pelo contrário, é alargar o nosso conhecimento a priori, para o que temos de nos servir de princípios capazes de acrescentar ao conceito dado alguma coisa que nele não estava contida e, mediante juízos sintéticos a priori, chegar tão longe que nem a própria experiência nos possa acompanhar (KANT, 1994, p 46-49).

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Os juízos analíticos constituem a possibilidade de conhecer a estrutura do conceito por parte do sujeito. A Crítica da razão pura conduz necessariamente à ciência, enquanto o dogmatismo da razão sem crítica, com afirmações infundadas, remete à estagnação. Para isso, segundo Kant, é que a razão deve ser pensada como “a faculdade que fornece os princípios do conhecimento a priori [...] Por isso a razão pura é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori” (KANT, 1996, p. 65). Logo, a razão deve fornecer à metafísica os conhecimentos analítico e sintético a priori, resumindo a condição da intuição como elemento capaz de ser acrescida pela experiência. De fato, o relevante são os juízos sintéticos a priori, pois possibilitam a apoditicidade e a experiência não deixa de ser condição necessária, assumindo a ordem de validar os conhecimentos a priori intuídos pela razão pura.5

A Crítica da razão prática e a legislação moral dada pela razão Não há oposição entre o puro e o prático, o que há de fato é que, no domínio especulativo, houve um exame crítico das condições e do uso da razão pura quanto ao seu objeto que são os conceitos, ao passo que o uso prático da razão passa a ser o objeto moral como fundamento. Dessa forma, Kant demarcou que a Crítica da razão pura preocupa-se com o conhecimento e os seus objetos, ao passo que, na Crítica da razão prática, a razão se ocupa com a relação vontade e causalidade moral dada por leis universalmente necessárias (KANT, 2008a, p. 25). A lei moral não pode depender da experiência, ela deve ser a condição da própria experiência que pode validá-la universalmente pelos juízos sintéticos a priori. A razão pura pode ser prática quando, pela autonomia, toma como princípio fundamental a moralidade que determina a vontade da ação. Logo, a lei moral só tem sentido pelo fato de o homem ser livre, tendo como princípio o dever pelo dever. Esse é o princípio moral oriundo da liberdade: deves, logo podes. Assim, “do aduzido resulta claramente que todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente ‘a priori’ na razão” (KANT, 1973, p. 216). O bem e o mal só devem ser apreendidos após a compreensão determinada pela lei moral, e “foi este, precisamente, o erro dos antigos, como, aliás, da maioria dos moralistas: o de procurarem estabelecer primeiro um conceito do sumo bem, para definir, de acordo com ele, a lei moral.” (PASCAL, 1992, p. 132). Nesse caso, Kant inverte a relação, pois para ele a lei moral deve, pela razão, estabelecer os conceitos de bem e mal, visto que a consciência do dever é comum aos homens, tornando a razão legisladora em matéria moral. A Crítica da razão prática pensa a liberdade a partir da consciência da lei moral universal em que duas ideias são importantes nessa obra. Primeiro, a razão como legisladora do mundo moral, pois somos livres pela consciência moral; 5

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“A razão é a faculdade de unificar as regras do entendimento mediante princípios. Nunca se dirige, portanto, imediatamente à experiência, nem a nenhum objeto, mas tão só ao entendimento” (KANT, 1994, p. 300).

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segundo, a lei moral como princípio de determinação imediata da vontade que pode definir o supremo bem como objeto (dignidade humana). Logo, os conceitos bem e mal são a priori, inteligíveis, que não precisam de mediação. Assim, a razão crítica entende que os julgamentos morais só podem ser realizados pela lei moral, determinante dos móveis da vontade boa porque fornece os conceitos de bem e mal a priori. Ao contrário de Rousseau e dos moralistas ingleses, Kant pensa que o sentimento de respeito não é anterior à lei moral, mas é a lei moral que determina o seu respectivo sentido. As leis puras práticas, ditadas pela razão, ensejam o sentido de liberdade definida como autonomia dada pela razão. Liberdade fundamenta-se na lei moral, isto é, tudo que for independente em relação à vontade deve estar submetido à moral. Ser livre é não depender da compulsão sensível dada pelas inclinações, porém superá-las pelo uso prático da razão. Nesse sentido, “a razão pura pode ser prática, mas que unicamente ela e não a razão limitada empiricamente é incondicionalmente prática” (KANT, 2008a, p. 26). O homem é totalmente responsável por si mesmo quando se autolimita pela razão, tendo o bem supremo como objeto da CRPr, e sua compreensão é definida pela relação virtude-felicidade que passa pelo sentido de dignidade da pessoa humana. A felicidade está relacionada à lei moral como conduta. O homem só pode ser moral por força da liberdade. Dessa feita, a amplitude da razão especulativa, para Kant, é fonte de grandeza, pois se ela não se estendesse ao mundo suprassensível a moralidade deixaria de existir. O valor do homem é a boa vontade como ação dirigida pelo dever, e a CRPr examina o fundamento da legislação moral, enquanto a Metafísica dos costumes investiga a aplicação dessa legislação. Por isso a tese central: Geral de Kant, em relação a questão sobre a ação humana em sua diferença com os eventos naturais, é que a ação humana não é somente um caso mais complexo de eventos, mais difícil de ser determinado, não por isso menos eventual, mas sim que difere destes em gênero (ZINGANO, 1989, p. 35).

Assim, a liberdade é a condição essencial de diferença entre ação humana e evento natural. Este é um acontecimento determinado pelas leis naturais, ao passo que aquela se baseia nas leis morais, por isso a razão pode ser pura e prática, concomitantemente. Por prático, têm-se dois sentidos. O primeiro é tomado como as regras da arte e indústria, as habilidades etc.; o segundo, filosoficamente, define-se como o que deriva da causalidade livre de um ente racional. Desse modo, a razão deve determinar o arbítrio, pois quando se cultiva a razão mais os homens se afastam de uma alegria ilusória como inclinação e, através dela, procura impor a si uma compreensão mais profunda do valor da liberdade. Por conta disso, criam-se obstáculos às paixões, o que leva Zingano a ponderar que “o sistema kantiano move-se na suposição básica de uma crítica da razão consigo mesma, medida pelas doutrinas históricas nas quais se realiza, mas que não pode ser reduzida a esse composto” (1989, p. 36).

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Embora o pensamento kantiano esteja situado historicamente como uma filosofia cercada pelos problemas do seu tempo, sendo influenciada pela oposição que faz a Hume, ainda assim seus fundamentos são tirados da mais profunda especulação filosófica onde a razão moral é a vontade boa como noção do dever em obediência ao princípio, e não se determinando pelos fins, visto que o mais alto bem é o princípio determinante da ação, cuja universalidade é a base da moralidade enquanto objetiva: o dever como finalidade sem fim. Nesse caso: Agir por dever opõe-se ao agir por interesse. A virtude não está em agir contra os fins individuais, mas agir independemente deles. O homem deve libertar-se de seu interesse [...] Decerto, Kant não queria que por ação moral se entendesse uma ação sem motivo, embora ele tenha considerado a ação por interesse a lei natural do homem. Entretanto, o motivo moral assenta-se no respeito à lei moral (HORKHEIMER, 2008, p. 62).

Da análise de Max Horkheimer, apreende-se que o agir moral kantiano assenta-se em uma lei fornecida pela razão para combater uma suposta lei natural humana que visa os seus interesses individuais. Todavia, essa lei moral a que Kant se refere também é uma lei natural porque é invariável; só que esta se apoia na razão propriamente dita, ao passo que naquela o homem é movido por sua inclinação, alegando ser racional, mas que não passa de um cálculo egoísta. A análise kantiana da ideia de moral consiste em três proposições importantes: primeiro, o que é bom sem restrições é a vontade boa; segundo, uma ação por dever é moral pelo princípio do querer que a determina e não pelo fim que a visa; terceiro, o dever é a necessidade de agir por respeito à lei moral. O imperativo hipotético, que é a necessidade prática de uma ação visando um fim, cede à primazia do imperativo categórico cujo sentido é a ação necessária em si, pois é imperativamente moral, tornando-se critério de universalidade racional. “Para a razão comum moral, o que é bom sem restrições é a vontade boa. A noção de vontade boa está contida na noção de dever; ela age por dever e não somente conforme o dever” (ZINGANO, 1989, p. 41). A razão moral comum busca agir como felicidade, ao passo que a Crítica da razão prática procura submeter a vontade ao plano do dever. Kant pensa na lei moral tendo por modelo a lei da natureza. Se as leis naturais são invariáveis por condição apodítica, a lei moral é, fundamentalmente, a priori porque significa condição universal do sujeito fornecida pela legislação moral por meio da razão. Dessa forma, “a proposição moral reivindica necessidade e universalidade segundo o conceito de dever; o imperativo categórico é o único a partilhar o conceito de dever a necessitação por si” (ZINGANO, 1989, p. 46). A razão pura é prática porque pretende delimitar o mundo da ação em que o dever é obediência ao mais alto bem que é o princípio, não se determinando pelos fins, ou seja, a universalidade é a base da moralidade objetiva. Nisso Kant se distingue de Aristóteles, pois, para este, o fim determinava os meios

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da ação. A ética dos fins significa que o caráter teleológico da conduta deveria ser guiado pelos fins políticos que a determinavam, no caso o interesse comum. Por isso que, para William Ash, em Kant “o valor não reside no que é desejado; é uma característica da vontade, dirigida para o que deve ser escolhido [...] Assim o imperativo categórico que é a exigência da razão sobre a vontade só pode ser deduzido dos princípios autocoerentes da racionalidade pura” (1965, p. 27). A crítica à teoria ético-política de Kant está no fato de que sua concepção sobre o prático se submeteu ao plano naturalístico da razão, tornando-a uma impossibilidade capaz de mediar as ações humanas. Ao contrário, segundo os antigos, especificamente Aristóteles, a razão é naturalística, mas necessita de uma linguagem (lógica) que deve mediar às relações entre os indivíduos a partir do que pode ser bom em si e para todos. O lógico é uma dedução das leis da razão que não isola o indivíduo, mas o torna um ser comunitário. Assinala-se que: Aristóteles pudo efectuar fácilmente la transición de la ética a la política porque su política ‘presupone los resultados de la ética: primero y sobre todo una conciencia normativa común y compartida’. Hoy carecemos de esa unanimidad en el saber. Por eso, la transición de la ética a la política ha de ser otra cosa (CAMPS, 1988, p. 225).

A ética pretendida por Kant, embora não possa ser acusada de subjetivista, tem consigo a dificuldade de posicionar o sujeito como um ser político, pois o isola da comunidade na medida em que preceitua o cumprimento do dever pelo dever determinado pela razão a priori sem levar em consideração o outro. Salvo engano, esta razão prática pura não é uma inferência lógica, mas uma lei determinada por uma naturalização da moral. Para o estagirita, toda a lógica política se resume na alteridade, o outro como instância de si mesmo. Nesse caso, Kant em vez de estudar a natureza da virtude como reflexão política, a moraliza como um valor prático individual dado por uma razão de perspectiva subjetiva, uma vez que sua naturalização pode levar ao entendimento de que o dever é uma necessidade a priori. Ao que parece, Kant tenta salvar o indivíduo hobbesiano moralizando-o com o sentido do dever, salvando a liberdade de interesses mesquinhos para o compromisso ditado pela razão. Assim, à primeira vista, o imperativo categórico nos remete à ideia de que o indivíduo age pelo puro dever, renunciando a todo e qualquer interesse não prático em que é tomado pelo espírito de irracionalidade. Contudo, essa não inclinação o torna um indivíduo comprometido com uma racionalidade que o desvincula de uma parcialidade condenada pela pura razão. Essa mesma parcialidade pode ser o outro que a denominada razão pura suprime. O problema desse dever em si, amparado pela razão, é que seu significado parece ser subjetivista e não ter mediações para verificar o fim político a que o indivíduo pode estar determinado historicamente.

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A liberdade como pressuposto da igualdade A Crítica da razão prática não é uma crítica da razão prática pura, mas uma crítica da razão prática em geral, demonstrando a existência de uma razão prática pura que critica toda prática empírica. Há uma presunção da razão especulativa que Kant pôs fim na CRP. Todavia, a CRPr busca compreender o plano da vontade boa. Nesse sentido, o fim da CRP é revelar-se prática, isto é, estabelecer os fundamentos a priori para compreender o mundo moral. Com a CRPr fica estabelecido a liberdade transcendental, a liberdade que existe por conta da razão se manifestar na lei moral, pois “a liberdade é também a única entre todas as ideias da razão especulativa de cuja possibilidade sabemos a priori, sem contudo, ter perspiciência, dela, porque ela é a condição da lei moral” (KANT, 2008a, p. 5-6). A CRPr, conceitualmente, esclarece os conteúdos da moralidade e da liberdade, assinalando que a liberdade existe por conta da manifestação da lei moral. Nesse caso, a liberdade é universal e necessariamente válida. A CRP estabeleceu os limites da razão e com isso ponderou sobre a natureza racional humana. Essa natureza, porém, obriga o homem a perceber a moral como algo de si, devendo ter o cuidado de compreender, corretamente, a ideia do todo entre a CRP e a CRPr. O sistema deve ser entendido racionalmente para ser apreendido sinteticamente. Nesse sentido, para Kant, o uso teórico da razão ocupa-se com objetos da faculdade de conhecer. Ao contrário, com o uso prático da razão já se passa diferentemente, este “ocupa-se com fundamentos determinantes da vontade” (KANT, 2008a, p. 25). Dessa forma, toma-se a liberdade como conceito de causalidade, justificado pela CRP, incapaz de sua exibição empírica, o que faz a CRPr. Logo, se conclui que o uso da razão pura existe, sendo imanente, ao passo que a razão empiricamente condicionada é transcendente porque se dá em mandamentos subjetivos e não universais. “Portanto a CRPr em geral tem a obrigação de deter a presunção da razão empiricamente condicionada de querer, ela só exclusivamente, fornece o fundamento determinante da vontade” (KANT, 2008a, p. 26). Não se pode falar em vontade, querer etc. sem levar em conta a liberdade como causalidade, visto que determina os objetos da ação humana. A razão tem como seu produto a regra prática, que preserva a conduta enquanto fim em si mesma. Destarte, “a regra prática é sempre um produto da razão porque ela prescreve como visada a ação enquanto meio para um efeito” (KANT, 2008a, p. 34). O mundo moral, mutatis mutandi, é semelhante ao mundo natural. Os objetos naturais podem ser pensados por meio dos seus princípios que são leis, explicações de suas condições, ao passo que no mundo moral a objetivação dependerá do êxito da razão pura. O uso prático da razão pura é a utilidade positiva, estando acima dos limites da sensibilidade em que a CRPr tem sua utilidade positiva (prática). Segundo Kant, a razão pura pode ser prática e possibilitar uma lei que determine a vontade, sem que esta aja a partir de petições. A razão não está a serviço das inclinações, mas ao propósito de, em

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si mesma, oferecer condições de entendimento sobre nossas ações. “Todos os princípios práticos, que pressupõem um objeto (matéria) da faculdade de apetição como fundamento determinante da vontade, são no seu conjunto empíricos e não podem fornecer nenhuma lei prática” (KANT, 2008a, p. 36). O termo liberdade tem três significados muito importantes que, de certa forma, dominam a história do pensamento filosófico. Primeiro, o sentido de autodeterminação ou autocausalidade que se justifica como ausência de limites; segundo, a necessidade como autodeterminação à totalidade; terceiro, a possibilidade ou escolha (finitude). A partir disso, conforme o segundo aspecto, livre é a qualidade do sujeito impor a si mesmo limites práticos (políticos). Para os estoicos, os sábios são livres porque se fundamentam no logos. Assim, segundo Kant, na Fundamentação da metafísica dos costumes, estudam-se os objetos de conhecimento referentes às virtudes, por conseguinte pensa a vontade como objeto de sua experiência. “A metafísica dos costumes deve investigar a ideia e os princípios duma possível vontade pura, e não as ações e condições do querer humano em geral” (KANT, 1973, p. 199). Nesse caso, não existe a ideia de desenvolver a razão tanto individual como coletiva, mas somente desencobrir a que está no homem para o progresso da humanidade como síntese da razão moral. A razão deve ser estimulada para superar os limites das inclinações, por isso a felicidade deve ser buscada fora da esfera do instinto, através razão. Na dialética acerca do Esclarecimento tem a razão o dever de almejar o conhecimento, pois não se pode ignorar a ilustração; olvidá-la é condenar as futuras gerações ao obscurantismo. Assim, a liberdade torna-se um termo polissêmico, visto que pode ser o livre uso da razão, o livre uso da razão pública, a escolha da religião, uma crítica à religião, ser consciente de seus atos etc. (KANT, 2008b). A complexidade das construções ético-políticas de Kant não difere daquelas existentes nas demais escolas filosóficas, sua peculiaridade talvez consista na influência do pensamento cristão-luterano que marcou a formação moral desse portentoso filósofo. Sua visão ético-política sem dúvida é a síntese marcante do jusnaturalismo que vai de Hugo Grotius até Rousseau. Seus elementos teóricos, ao mesmo tempo em que refletem a tradição na qual estão inseridos e o momento histórico como matriz de suas preocupações, levando em consideração o Iluminismo, possibilita que, originalmente, se apresente um conjunto de reflexões que aponte saídas mediante o umbral que separa o século XVIII do XIX, muito embora, segundo Horkheimer, a sociedade burguesa ainda viva sob o império da propriedade (2008, p. 63). Segundo Victoria Camps, “Kant confiaba en la realización del sistema de moralidad, la definitiva reconciliación en um reino de los fines, un mundo justo donde la felicidad y el mérito coincidieran (1988, p. 222). Entretanto, a construção ético-política kantiana se depara justamente com aquilo que seu pensamento moral mais combate: o plano da vontade que, por sua vez, talvez seja, de fato, o elemento organizador da vida quotidianamente sem se preocupar com as consequências advindas de uma irracionalidade imperante.

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Embora considerando as disposições naturais como um plano de realização da natureza, uma concepção metafísica da história em que o seu conteúdo tem que se realizar ao lado da liberdade, o pensamento político kantiano é uma severa crítica ao velho e novo modelo de vida em pleno século XVIII. Por um lado, faz ácidas críticas a aristocracia e seu luxo, como também nos chama atenção para o fato dos então novos ricos (burgueses) explorarem o trabalho humano até o limite da miséria alheia (KANT, 1995, p. 272-273). A crítica ético-política kantiana é marcada por uma visão moral. Não se toma este termo como pejorativo, mas como um mapeamento de condutas necessárias ao indivíduo em sociedade, sem preocupar-se com mecanismos políticos advindos dessa crítica, pois a CRPr, assim como a Fundamentação da metafísica dos costumes ainda apresentam um conteúdo que pretende superar a ética aristotélica por uma normatividade subjetiva dada pela razão pura, talvez incapaz de ser conhecida pelos indivíduos em sua totalidade. Julga-se procedente, ainda, refletir acerca da melhor noção de liberdade apresentada por Kant na sua Metafísica dos costumes, obra em que o autor se ocupa com uma série de problemas ligados às dimensões da virtude e do direito. Então a “liberdade (independência de ser constrangido pela escolha alheia), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes” (KANT, 2003, p. 83). Logo a liberdade não é uma condição social ou estatal, mas natural percebida pela razão. Apesar de alguns autores insistirem na tese de que Kant não tem uma definição clara sobre o que é liberdade, pode-se ponderar que o filósofo alemão tem mais do que isso. Ao pensar profundamente sobre esse problema, acabou nos legando um rol de significados para o termo, pois não se contentou em estabelecer um limite àquilo que por si mesmo não pode ser restringido. A liberdade é um valor sui generis que preferiu, mais uma vez, localizá-la na idealização da razão quando asseverou ser algo inato, um direito natural como fonte de princípios diretivos ao direito positivado. Assim, Kant eleva a liberdade à condição de essencialidade da dignidade humana, se constituindo no conceitochave quanto à condição de existência dos demais direitos individuais, inclusive a igualdade e a felicidade humanas (KANT, 2003, p. 84). A preocupação kantiana de procurar uma ordem moral objetiva que impusesse ao homem o dever como condição de sua humanidade, uma necessidade posta pela razão, talvez seja influenciada pela leitura que tenha feito de Rousseau, muito embora, para este, a igualdade seja o fundamento da liberdade. Entretanto, as análises kantianas são um forte indício de uma crítica à nascente sociedade, cujos valores burgueses gravitam em torno da desresponsabilização como valor de uma nova moral que desconsidera o outro na dimensão política, ensejando, com isso, a legitimação da exploração do homem pelo outro homem. Essa desresponsabilização de um para com o outro e de todos entre si é uma lógica que aparentemente parece ter “descoberto” a natureza das relações humanas quando Adam Smith assegura que seu bem-estar não deve contar

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com a caridade do açougueiro em lhe oferecer um tanto de carne, mas está associado ao fato do açougueiro também buscar suas oportunidades de prosperidade, nisso constituindo o elo de utilidade da cadeia social. Pois “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse” (SMITH, 1996, p. 74).6 Mesmo se opondo à concepção ética aristotélica do bem como fim, Kant parece mais se opor à teoria do bem como útil, como se bem pudesse ser medido por aquilo que se toma como aprazível a despeito do número de beneficiados. Essa naturalização do hedonismo retira do homem o sentido de sua conduta como responsabilidade, isso por não considerar que há uma lei moral universal como parâmetro da vontade boa superando as inclinações da vontade. Embora o sistema filosófico kantiano tenha pensado o problema ético sobre o ponto de vista formal-abstrato, estabelecido pelo plano da razão pura, sempre preocupado entre os limites natureza-liberdade; muito embora tenha separado as dimensões moralidade-legalidade, alegando que o plano moral não é suficiente para uma associação que contemple a liberdade como um sentido de justiça, defendendo a coercitividade da lei mesmo constrangido; ou despolitizando a ética pensada por Aristóteles, moralizando-a a ponto de subjetivá-la, Kant aponta para uma perspectiva de que há um comando da razão que os indivíduos devem tomar ciência, e esse comando é o imperativo categórico como juízo de valor universal que critica a finalidade útil da ação em detrimento de uma finalidade do dever como evento racional, cujo interesse está posto como verdadeiro, mas que não seja uma inclinação da vontade. No entanto, segundo Horkheimer: O imperativo, nesta sociedade de indivíduos isolados, se acha na impossibilidade de realizar-se com pleno sentido. Por isso, a mudança desta sociedade é sua consequência necessária. Com ela deveria também desaparecer exatamente aquele indivíduo para o qual está voltado o imperativo e cuja formação parece ser o seu único objetivo (2008, p. 67).

Compartilha-se da mesma impressão que Horkheimer tem acerca do imperativo categórico como comando moral sobre o político. Para Horkheimer, sendo a moral kantiana de ordem burguesa, essa pretende que o dever possa ser pensado como uma necessidade social para contemplar a natureza dos indivíduos como seres que contratam uma sociedade com o intuito de pôr fim às impossibilidades da vida fora de uma ordem jurídica que viabilize a própria 6

Isto é, Smith parte da premissa de que todos, ao buscarem seus respectivos interesses, contribuem na prosperidade do todo social. Porém, embora essa tese pareça ser nova, o jurista italiano Leonardo Bruni no séc. XV acena para semelhante princípio ao defender o enriquecimento dos comerciantes florentinos, se opondo à moral católica (SKINNER, 2009, p. 64 e 95).

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condição do indivíduo. Assim, depreende-se das observações de Horkheimer, que essa sociedade é incompatível com o princípio moral kantiano, pois como se pode ser racional ao ponto de cumprir o dever pelo dever se se está voltado à felicidade como condição individual de existência enquanto lei natural da preservação? Parece que a filosofia prática kantiana funda-se numa concepção política abstrata para resolver problemas de ordem política concreta. Nesse caso, Horkheimer atenta para o aspecto da superação de uma sociedade cujo antagonismo é flagrante: indivíduo como realidade isolada vivendo sob uma suposta razão que impõe o dever como fim acima de suas próprias inclinações. Ao que parece Kant entende que a moral, embora limitada, alenta para a possibilidade da sociabilidade.

Conclusão Kant destaca-se por eleger a liberdade como princípio fundamental da existência humana, reconhecendo, nos limites da estrutura social, a liberdade como princípio que enseja ao indivíduo a possibilidade da vontade em fazer ou deixar de fazer algo nos limites da razão. Porém, para Kant, o indivíduo é responsável por encontrar-se na condição de ignorante porque não ousa saber – sapere aude. Para tanto, é preciso compreender que chegou o momento do esclarecimento, isto é, da responsabilidade sobre si por conta da condição de maioridade ética e intelectual. Se Aristóteles afirmou que o homem é um ser político necessariamente e Hobbes se opõe a essa ideia com a tese do homem isolado que se reúne com outros para fugir do medo da morte violenta, nisso o Estado é um mal necessário, Kant se esforça em encontrar um meio termo entre a vida política e as exigências da liberdade como valor inato. Nesse sentido, Kant compreende que a razão enseja condições para que se conheça a lei moral que está nós homens para instruir os fins da vida enquanto liberdade individual e as obrigações responsáveis na comunidade. O argumento de Kant é poderoso: a razão faculta ao homem a possibilidade de compreender as leis morais a priori, nesse caso, universais e necessariamente válidas, independente da cultura, mas ligadas a ela como exigência do bem comum enquanto dever.

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Direitos Humanos: Pax Americana ou Metaconstitucionalismo? Guilherme Sandoval Góes1 Márcia Sleiman Rodrigues2 Resumo Este trabalho busca comparar as duas grandes perspectivas que se apresentam à democracia pós-moderna, quais sejam, o projeto unilateral de Pax Americana e o projeto epistemológico do Metaconstitucionalismo. Na linha epistêmico-conceitual, o regime dos direitos humanos ganha relevância universal, na medida em que a ética e o direito irão se encontrar na realização da vida digna para todos, independentemente da fixação de normas constitucionais nacionais. Ou seja, a força normativa do direito cosmopolítico kantiano não dimana de normas feitas internamente por Estados soberanos, mas, sim, buscam sua seiva normativa nas normas metaconstitucionais cosmopolitas de curso universal. Palavras-chave: Direitos humanos; Pax Americana; metaconstitucionalismo. Abstract This study aims at comparing two great perspectives presented to Post-modern democracy, namely, the Pax Americana unilateral project and the epistemological project known as Metaconstitucionalismo. In the epistemicand conceptual line, the human rights regime gain universal relevance, to the  extent that ethics and the law will meet in achieving decent life for all, regardless of the setting of national constitutional requirements. That is, the normative force of Kantian cosmopolitanlaw not emanate standards made internally by sovereign states, but rather seek its legislative sap the cosmopolitan metaconstitucional rules universal relevance. Keywords: Human rights; Pax Americana; metaconstitucionalism.

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Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Coordenador do Curso de Direito do Campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Professor de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação do Direito da Criança e do Adolescente da UERJ. Chefe da Divisão de Geopolítica e Relações Internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG). Conselheiro Nacional da Cruz Vermelha Brasileira. Doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Docente da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estácio de Sá.  Coordenadora de Avaliação da Universidade Estácio de Sá.

Direitos Humanos: Pax Americana ou Metaconstitucionalismo?

Introdução O estudioso dos direitos humanos do tempo presente deve ser capaz de captar a conexão entre a evolução do contexto mundial e os diferentes regimes jurídicos de proteção dos direitos humanos. Sem dúvida nenhuma, tal liame marca a trajetória jurídico-protetiva dos direitos e sua incessante caminhada de avanços e retrocessos. Isto significa dizer que a efetividade ou eficácia social dos direitos humanos deve ser aferida a partir da proteção que cada um dos diferentes paradigmas estatais foi e é capaz de emprestar aos direitos do cidadão comum. Nesse sentido, o fim da Guerra Fria criou condições de expansão da engenharia constitucional neoliberal, cuja lógica de construção é o retorno da estatalidade mínima, que denega, por essência, a proteção jurídica dos direitos sociais, econômicos s culturais e trabalhistas (segunda dimensão dos direitos fundamentais). É certo afirmar que essa questão da efetividade dos direitos humanos sofreu mudança radical com o surgimento do novo cenário mundial pós-Guerra Fria, seja pela ascensão do neoliberalismo, seja pela globalização da economia, que, conjuntamente, gestam um modelo de predominância geopolítica dos Estados Unidos da América e seus principais aliados democráticos, quais sejam a União Europeia e o Japão. Com efeito, o fim da Guerra Fria gestou a expansão da doxa neoliberal e suas antinomias ligadas ao processo de globalização da economia, edificadas sob a égide da liderança unipolar dos EUA, única superpotência global remanescente. Tal perspectiva é denominada pax americana, que Vicente Barretto associa ao termo “globalização”: O termo “globalização” foi, também, associado a um projeto sócio-político, a Pax Americana, que após a queda do Muro de Berlim, foi considerado como hegemônico. O projeto, tanto para alguns teóricos, como na prática das relações financeiras, passou a ser considerado como qualitativamente superior aos demais modelos de regimes políticos, econômicos e sociais, encontrados nas diferentes nações do planeta. Desde as suas origens, a identificação da globalização com uma experiência nacional trouxe consigo distorções na avaliação crítica do fenômeno.3

E assim é que a expressão “processo de globalização” ou “mundialização”, como preferem os franceses, denota o fenômeno maior que se desdobra em diferentes epifenômenos (sociais, políticos, econômicos, militares, tecnológicos e culturais), que se entrecruzam na concepção 3

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BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 215-216.

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de pax americana e cujo significado epistemológico abarca um plexo de outros conceitos, tais como a universalização dos valores norte-americanos, ideologia política neoliberal, vitória do capitalismo financeiro, neutralização axiológica da Constituição, abertura mundial do comércio, primazia da autonomia privada, não-intervencionismo estatal, relativização da soberania estatal, desterritorialização etc. De tudo se vê, por conseguinte, que o fim da Guerra Fria gerou um sistema internacional hipercomplexo, no qual se destacam duas grandes perspectivas, a saber: de um lado, a concepção da pax americana, edificada no neoliberalismo e na desconstrução do Estado Democrático Social de Direito e, do outro, o projeto epistemológico metaconstitucional, edificado na ordem mundial multipolar e na construção da democracia cosmopolita kantiana. É nesta esteira de complexidade que a dinâmica do constitucionalismo hodierno também se acelera, especialmente a partir da crise do welfare state e do surgimento de um novo ciclo estatal, ainda em construção e que a doutrina vem denominando de Estado pós-social ou Estado pós-moderno. Parece inexorável, portanto, a relevância do exame do atual estádio de proteção jurídica dos direitos humanos, herdeiro de um quadro de lutas e conquistas, cuja trajetória é longa e tortuosa e transita desde a pré-história dos direitos humanos, perpassando-se pela fase de afirmação dos direitos naturais até, finalmente, alcançar os tempos pós-modernos, uma nova era ainda indefinida entre dois grandes caminhos que coloca, de um lado, a pax americana, pautada na retomada da cidadania liberal burguesa de inspiração lockeana e, do outro, o metaconstitucionalismo, calcado na cidadania cosmopolita de inspiração kantiana. Vale, pois, examinar essas duas grandes vertentes do constitucionalismo da pós-modernidade.

Direitos humanos e Pax Americana: neutralização da primeira dimensão de direitos Os ataques terroristas aos símbolos do poder nacional dos Estados Unidos da América Alteraram drasticamente a ordem jurídica internacional até então vigente. Com efeito, a queda das torres gêmeas é o marco de um novo tempo que fixou diferentes imperativos de segurança nacional para os EUA, imprimindolhes nova roupagem voltada para a Guerra contra o Terror. Nasce uma nova ordem militar denegadora dos direitos humanos. No dizer de Giorgio Agamben: O significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão aparece claramente na “militaryorder”,

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promulgada pelo presidente dos Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, e que autoriza a “indefinitedetention” e o processo perante as “militarycommissions” (não confundir com os tribunais militares previstos pelo direito da guerra) dos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades terroristas.4

Nesta mesma linhagem jurídico-estratégica, exsurge a concepção da Doutrina Bush, que faz retornar a primazia da dimensão militar no plano mais amplo da segurança nacional dos Estados Unidos. Realmente, se, por um lado, a queda do muro de Berlim propiciou a retomada da onda neoliberal, fomentando a aceleração da globalização da economia, por outro, a queda das torres gêmeas estabeleceu o projeto hegemônico de Pax Americana, fomentando ações unilaterais neutralizadoras do direito internacional, e.g., a implantação da tão contestada Doutrina Bush e das leis patrióticas de cunho racista-arbitrário. Em lição lapidar, Antônio Celso Alves Pereira ensina que: Consagrada como “Doutrina Bush”, a nova estratégia destaca, entre seus pilares o contraterrorismo e a legítima defesa preventiva. Formulada pelo Conselho de Segurança Nacional, mais precisamente pela então assessora presidencial Condoleezza Rice, e anunciada de forma definitiva pelo presidente em discurso na Academia Militar de West Point, em 01/06/2002, representa uma radical mudança dos conceitos geoestratégicos que vigoravam no país desde a Guerra Fria, e se justificaria por sua finalidade, ou seja, criação de instrumentos legais para controle absoluto de todas as atividades individuais, principalmente de imigrantes, e, da mesma forma, de concessão ao presidente de poderes para atacar preventivamente, emqualquer parte do mundo, grupos terroristas ou Estados hostis aos norte-americanos.5

A chamada lei patriótica aprovada sob os influxos da Doutrina Bush neutralizou os direitos fundamentais em prol da segurança nacional. De feito, o constitucionalismo estadunidense desloca para a sua centralidade a Guerra contra o Terror. Com isso, pode-se constatar que o alvorecer do terceiro milênio vivencia um fenômeno jurídico no mínimo curioso e paradoxal, qual seja: a maior potência democrática do planeta veste a roupagem absolutista para neutralizar os mais antigos direitos fundamentais do homem: os direitos 4

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AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 21. ALVES PEREIRA, Antônio Celso. Direitos Humanos e terrorismo. In: Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres (Orgs. Daniel Sarmento e Flávio Galdino. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 130.

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civis e políticos de inspiração liberal burguesa. Nega-se, dessarte, a primeira dimensão dos direitos fundamentais, consolidada desde os tempos da Revolução francesa de 1789. Sob a égide de um realismo hobbesiano-maquiavélico, a configuração estratégica pós-11 de setembro dos Estados Unidos da América adotou a posição unipolar, na qual os interesses norte-americanos são colocados em primeiro plano, não importando as tendências contemporâneas ao multilateralismo e ao metaconstitucionalismo da sociedade internacional pósmoderna. Portanto, o projeto estadunidense de pax americana tem aspirações hegemônicas sobre o mundo globalizado, valendo ressaltar, com as palavras de José Luis Fiori, o poder unipolar estadunidense que nasce com o fim da Guerra Fria, verbis: O fim da Guerra Fria transfere para os Estados Unidos uma centralidade militar e monetária sem precedentes na história da economia-mundo capitalista. Ambos os poderes seguem concentrados nas mãos de uma única potência que ainda responde pelo nome de Estados Unidos.6

Eis que plenamente justificado, sob a perspectiva estadunidense, o projeto hegemônico de pax americana, que traz no seu bojo os conceitos de ataque preventivo (Doutrina Bush) e globalização da economia a partir da abertura mundial do comércio (engenharia neoliberal globalizante); tudo isso dentro de um quadro geopolítico mais amplo de implantação de uma ordem jurídica internacional unipolar, moldada exclusivamente pelos Estados Unidos da América. Em consequência, é certo afirmar que o projeto unilateralista da pax americana nada mais faz senão enfraquecer as tendências de cooperação internacional dentro de uma perspectiva antikantiana de democracia cosmopolita. Nesse diapasão, a pax americana mantém as normas internacionais como fórmulas jurídicas vazias desprovidas de força normativa. De fato, a dimensão maquiavélico-hobbesiana do projeto estadunidense neutraliza a aplicação axiológica das normas metaconstitucionais cosmopolitas, e, na sua esteira, enfraquece a efetividade dos direitos humanos na esfera internacional. Assim sendo, a normatividade internacional não consegue superar a lógica realista da geopolítica de poder do projeto hegemônico unipolar dos Estados Unidos da América. Sem dúvida, a ideia de pax americana torna desnutrido o processo de evolução dos direitos humanos em sede internacional, vez que a efetividade de tais direitos deixa de contar com o jogo concertado de princípios morais internacionais, que são – hoje em dia – os principais instrumentos hermenêuticos de concretização de direitos. 6

FIORI, José Luís. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 59.

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Direitos Humanos: Pax Americana ou Metaconstitucionalismo?

Desta feita, a única superpotência remanescente da Guerra Fria fomenta um projeto de poder unipolar que se contrapõe ao metaconstitucionalismo, ou seja, com as palavras de Vicente Barretto aprende-se que: As normas metaconstitucionais cosmopolitas são aquelas que exigem uma superioridade normativa sobre as normas constitucionais estatais, que elas se propõem autorizar, influenciar, suplementar ou suplantar. O metaconstitucionalismo assume diversas formas jurídicas, tais como, os acordos internacionais referentes aos direitos humanos que têm efetividade legal ou então leis não-constitucionais, como o NAFTA ou o Acordo da Irlanda com o Reino Unido; esse novo tipo de lei não-constitucional trata das relações interestatais, mas têm suficiente autoridade para estabelecer uma comunidade política não-estatal ou meta-estatal, como é o caso da União Europeia.7

Destarte, as normas metaconstitucionais cosmopolitas não encontram guarida no projeto epistemológico da pax americana, na medida em que não há valorização da normatividade internacional em relação às leis constitucionais, símbolos da vontade soberana dos Estados nacionais. Como amplamente visto alhures, o modelo estadunidense é realista e caminha na direção da neutralização axiológica do metaconstitucionalismo, vale dizer a pax americana é um modelo político-institucional que visa atender os interesses hegemônicos de uma única superpotência, não se coadunando, portanto, com o metaconstitucionalismo, que se atrela à geração de normas não dimanadas dos Estados soberanos. Infelizmente, a doutrina jurídica pátria ainda não despertou para a temática do projeto unipolar da pax americana e permanece alheia aos elementos teóricos que informam tal perspectiva e seus reflexos no campo jurídico-constitucional. Além de Vicente Barretto, um dos poucos autores que enfrentou o tema foi Daniel Sarmento, valendo, pois, reproduzir seu magistério, in verbis: O colapso do comunismo, simbolizado pela queda do muro de Berlim, eliminou uma das ideologias rivais que se defrontavam e disputavam espaço num mundo até então bipolar. Com o fracasso retumbante da experiência marxista-leninista e o advento da Pax Americana, o capitalismo ficou mais a vontade para impor, agora sem concessões, o seu modelo econômico e social, que constituiria, segundo alguns, o ‘fim da história’. Como se o fiasco do socialismo pudesse ofuscar os problemas crônicos do capitalismo, em especial a sua tendência para promover a desigualdade e aprofundar a exclusão social.8 7 8

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BARRETTO.op. cit. 2010, p. 227. SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e póssocial-(pós-modernidade constitucional?). In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio (Coord.). Crises e desafios da Constituição brasileira. Rio de Janeiro, 2002, p. 399.

Guilherme Sandoval Góes e Márcia Sleiman Rodrigues

Com a devida vênia, não assiste razão ao eminente jurista, na medida em que associa o conceito de pax americana ao fim da história de Francis Fukuyama9 e, portanto, com a ideia de triunfo do capitalismo e fiasco do socialismo. Mais adequada é a intelecção de Vicente Barretto, que associa a pax americana a um projeto muito mais amplo e superior aos demais modelos de regimes políticos, econômicos, e sociais, encontrados nas diferentes nações do planeta. Na verdade, como bem destaca Guilherme Sandoval Góes, por ser a única superpotência ainda remanescente, acredita-se que estamos vivendo sob os auspícios dessa Pax Americana. No entanto, destaca-se que tal tipo de intelecção é errônea, na medida em que os EUA não têm capital geopolítico suficiente para impor um cenário internacional unipolar, vale dizer, um quadro mundial onde não haja reação política, econômica, militar, cultural e tecnológica por parte das demais nações do mundo. O estabelecimento da pax americana seria sinônimo da natural envergadura estadunidense para reger unilateralmente as relações internacionais, o que evidentemente não parece ser verdadeiro.10 Portanto, sob a égide de uma sociedade internacional multifacetada, não há falar em ideologia única, capitalista, democrática, culturalmente universal e neoliberal. Ao contrário, é o choque entre civilizações imbricado com disputas comerciais, religiosas e tecnológicas que estão a esgotar o complexo cenário político-constitucional contemporâneo. De suma importância, por conseguinte, a rejeição do modelo de pax americana como paradigma democrático universal de proteção dos direitos humanos. Esta afirmação bem revela que o modelo político-institucional da democracia cosmopolita implica na reavaliação da pax americana a partir de diversos fatores, a saber: em que medida as relações da comunidade com o poder asseguram a governabilidade dessa nova ordem políticoinstitucional; quais as relações entre o sistema de produção econômica e a sociedade civil, tendo em vista os desafios sociais; qual o mecanismo político-institucional próprio para agregar de forma orgânica os fatores acima adiantados. O problema central da pax americana é a desconstrução da democracia cosmopolita, ou seja, o modelo político-institucional do neoliberalismo não favorece a visão metaconstitucional como solução para a superação da teoria constitucional tradicional, que se fundamenta no conjunto de normas geradas internamente, sejam elas as normas de reconhecimento de Hart ou a norma fundamental de Kelsen. 9

FUKUYAMA, Francis. O fim da história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998. GÓES, Guilherme Sandoval. Geopolítica e pós-modernidade. In: Revista da Escola Superior de Guerra, v.23, n. 48, ago/dez 2007

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Assim sendo, é certo afirmar que o metaconstitucionalismo surge como um novo olhar para as relações entre Estado Democrático de Direito e cidadania cosmopolita, uma vez que projeta, de per si, a força normativa das normas constitucionais estatais. Trata-se de uma nova perspectiva que se perfaz a partir da ruptura da teoria constitucional clássica, calcada na supremacia de normas constitucionais criadas por um poder constituinte originário soberano dentro dos limites territoriais do Estado nacional. Portanto é a superação histórica do constitucionalismo clássico que abre caminho para o metaconstitucionalismo e para a democracia cosmopolita. Existe, indubitavelmente, um campo amplo de reflexões a fazer, no entanto, já é possível diagnosticar a dimensão humana da sociedade internacional cosmopolita, cujo centro de gravidade gira em torno da força normativa das normas metaconstitucionais. Vale, pois, examinar essa segunda grande perspectiva que se apresenta no âmbito do Estado de Direito hodierno.

A dimensão metaconstitucional dos direitos humanos: proteção para além das fronteiras do estado soberano O atual estado da arte dos direitos humanos aponta para uma perspectiva democrática cosmopolita, na qual a proteção internacional dos direitos humanos ganha dimensão supraconstitucional, valendo nesse sentido trazer a lição de Celso Duvivier de Albuquerque Mello, que já ensinava que o nível de constitucionalização da política externa de um país depende do grau de internacionalização da sua vida nacional e da intensidade de suas relações internacionais. Isso significa dizer que a perspectiva cosmopolita universalizante circunscreve a ideia de que as normas de direito constitucional devem ser limitadas e interpretadas conforme as normas de direito internacional.11 Já para Vicente Barretto, “o conceito de direito cosmopolita, proposto por Kant, refere-se, principalmente, ao entendimento de que a evolução histórica, e com ela as luzes da razão, iriam encontrar ou formular normas de fundamentação ética, que poderiam ser consideradas como uma forma de direito”.12 É preciso, pois, galgar patamar científico mais elevado para olhar com olhos de ver que o atual estado da arte dos direitos humanos caminha na direção cosmopolita, cuja racionalidade universalizante é a determinação de valores livremente aceitos por todos os homens, independentemente de cultura, etnia ou religião. 11

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MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 5. 12 BARRETTO, Vicente de Paulo. “Bioética, biodireito e direitos humanos”. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais, 2002,p. 385.

Guilherme Sandoval Góes e Márcia Sleiman Rodrigues

Em consequência, o atual estado da arte dos direitos humanos pressupõe justificativas universais para a aceitação do direito cosmopolita. Compreender a dimensão cosmopolita dos direitos humanos é fundamental para a sua evolução. Mas o grande desafio da perspectiva cosmopolita é a busca de um “consenso universal” de modo a rejeitar toda e qualquer modalidade de subordinação dos direitos humanos à vontade soberana dos Estados nacionais. Trata-se de reconhecer a realidade supraconstitucional dos direitos humanos, abrindo-se o debate para a questão da proteção dos direitos humanos em escala planetária. Há que se estabelecer conexão exegética entre direito e moral. É a virada kantiana privilegiando a dimensão ética das normas jurídicas e homenageando iniciativas de proteção ao núcleo intangível de dignidade humana dos hipossuficientes. Seu grande desafio é teorizar modelos avançados de hermenêutica supraconstitucional capazes de neutralizar as estruturas hegemônicas das Constituições nacionais. Com efeito, alerta Norberto Bobbio: Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo.13

Assim, desta feita, em companhia de Celso Mello, destaca-se que já não mais existe aquela antiga solidão da Constituição, deslocada de seu entorno internacional e que a inteligência do eminente mestre não deixou escapar: A abertura constitucional evidencia que uma Constituição não está só porque a interdependência internacional aumentou de modo notável nos últimos tempos e ainda deve aumentar. A recepção de conteúdos internacionais nos documentos fundamentais. (...) Já não cabe falar em “solidão da Constituição”, em considerá-la como um “Universo fechado e excludente”, mas de um pluriverso baseado no pluralismo interno, internacional e comunitário. (...) Parece-nos ser esta a melhor posição para ver uma Constituição, vez que estamos vivendo em uma época histórica de grandes transformações, que ocorrem simultaneamente e 13

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 21.

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de modo contraditório impedindo que se possa discernir o seu rumo. Acrescente-se ainda que a “Constituição Aberta” mostra estar o estado inserido em uma sociedade internacional. Na verdade, a própria palavra “estado” só tem sentido em uma sociedade internacional.14 (grifos nossos)

De outro lado, é muito importante compreender que a perspectiva cosmopolítico-kantiana não é a única existente no mundo acadêmico. Ao contrário, grande parte da doutrina, notadamente cientistas políticos e geopolíticos, tende a vislumbrar a questão dos direitos humanos como uma questão de estratégia de inserção internacional dos Estados nacionais. É por tudo isso que se tem a impressão de que o atual estado da arte dos direitos humanos ainda tem um longo caminho a percorrer até atingir o patamar almejado pelo direito cosmopolítico. A temática dos direitos humanos circunscreve, sem nenhuma dúvida, uma complexa matriz de impactos cruzados que rege as relações internacionais entre centro e periferia do sistema mundial; uma relação de poder e influência que penetra no núcleo essencial dos princípios da soberania estatal, da autodeterminação dos povos, da não-interferência e, principalmente, nos valores morais que alicerçam a vida democrática. É a negação do pensamento kantiano: a violação do direito, cometida em um lugar do mundo estrategicamente aliado aos Estados Unidos da América – EUA, não repercutirá em todos os demais. Já a violação do direito, cometida em um lugar do mundo que resiste aos EUA, repercutirá em todos os demais. Enfim, os Estados Unidos da América tentam, assim, conciliar força e direito de acordo com seus próprios interesses estratégicos; para Estados resistentes, a intervenção humanitária patrocinada pela lei internacional; para Aliados subservientes, a omissão aética por conveniência estratégica. Destarte, a ideia de justiça e a proteção dos direitos humanos transformam-se em instrumento das estruturas hegemônicas do poder estadunidense. Em consequência, constata-se, facilmente, a inaplicabilidade da eticidade nas relações internacionais de poder, e, na esteira acadêmica de Norberto Bobbio, constata-se a relevância da realização da eticidade enquanto manifestação do espírito superior do direito, isto é, a missão do Estado é a de realizar a eticidade, o que evidentemente traz no seu bojo a ideia de que as leis, na qualidade de manifestações da vontade do Estado, devem sempre ter um valor ético.15 No plano teórico, o projeto epistemológico do metaconstitucionalismo fomenta a 14 15

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MELLO. op. cit.,2000, p. 1. Para Norberto Bobbio, o Estado é o portador da missão de realizar a eticidade, que é uma manifestação do espírito superior não só para o direito, como também para a moral. Estando assim as coisas, agora fica evidente que as leis, como manifestação da vontade do Estado, possuem sempre um valor ético. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 229.

Guilherme Sandoval Góes e Márcia Sleiman Rodrigues

prática de um constitucionalismo democrático cosmopolita, no qual a fonte primária das normas jurídicas não vem do estado soberano nacional, mas, sim, da natureza do próprio elemento humano, cuja legitimidade é extraída da comunidade internacional como um todo e não do reconhecimento de um poder estatal soberano. Enfim, examinar o atual estado da arte da proteção internacional dos direitos humanos é comparar estes dois grandes paradigmas auto-excludentes, quais sejam, de um lado, a Pax Americana neoliberal e seu projeto geopolítico unipolar dos EUA, e, do outro, o projeto epistemológico metaconstitucional e seu projeto geopolítico de multipolaridade de escopo global. Trata-se, em essência, de um estudo voltado para a verificação das tendências de evolução dos direitos humanos e sua fundamentação ética em termos universais. Com rigor, o que se pretendeu demonstrar é que a queda do muro de Berlim é o grande momento de ruptura paradigmática em termos de efetividade dos direitos sociais, na medida em que o novo eixo epistemológico do mundo pós-Guerra Fria se desloca para o arquétipo neoliberal, que somente se ocupa da primeira dimensão de direitos (direitos civis e políticos). Em termos simples, isto significaria dizer que o Estado pós-moderno não pode se alinhar automaticamente ao neoliberalismo de pax americana. Ao revés, com a devida acuidade científica, é preciso compreender que, na contemporaneidade, o metaconstitucionalismo de índole kantiana deveria ocupar o vértice do regime jurídico dos direitos humanos, mas, no entanto, tal regime vem correndo crescente risco de neutralização eficacial em virtude da avalanche neoliberal que se materializa dentro de um processo de globalização neodarwinista conduzida por um projeto hegemônico unipolar de poder nacional.

Conclusão É tempo de concluir, ressaltando a relevância da compreensão da perspectiva cosmopolita na teoria constitucional contemporânea. Não há mais espaço para intelecções ingênuas no campo político-constitucional. O estudioso dos direitos humanos tem a tarefa de desvelar os princípios fundantes do metaconstitucionalismo, notadamente aqueles focados na proteção da dignidade da pessoa humana e do estado democrático de direito. Nesse sentido, constatou-se que os Estados Unidos da América, maior potência econômico-militar do planeta, tenta impor seu projeto hegemônico de pax americana, verdadeira antítese do metaconstitucionalismo e da democracia cosmopolita. E assim é que, falar e defender a pax americana, no momento em que a proteção internacional dos direitos humanos vivencia sua fase mais crítica,

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seria anuir com a imagem de violação de direitos dos detidos em Guantánamo; seria concordar com leis patrióticas que fazem os direitos humanos retrocederem ao seu estágio primitivo dos tempos das revoluções liberais do século XVIII. Ainda, seria concordar com a funesta Doutrina Bush, símbolo máximo de desmoralização ao direito internacional público e de menosprezo ao conceito de soberania nacional dos países mais enfraquecidos no cenário global. Enfim, o projeto epistemológico de pax americana não se coaduna com a força axiológica dos princípios reitores do atual estado da arte dos direitos humanos, cuja base teórico-conceitual é calcada no Estado Democrático de Direito e na dignidade da pessoa humana. E é exatamente nesse sentido que o metaconstitucionalismo busca promover a dignidade da pessoa humana como novo eixo axiológico do estado democrático de direito, afastando-se, por via de consequência, da leitura mecânico-aética que a pax americana faz, quando usa a dignidade da pessoa humana como vetor geopolítico de elevada densidade axiológica com o mero objetivo de legitimar intervenções humanitárias militares em solo estrangeiro. Desta forma, os princípios metaconstitucionais cosmopolitas devem visar a preservação dos relacionamentos humanos em todas suas dimensões, ou seja, na qualidade de direitos da pessoa humana devem ser reconhecidos pela comunidade internacional, não podendo ser objeto de interferência, nem jusprivatista (influência das empresas multinacionais, centros financeiros mundiais, ONG etc.), nem juspublicista (intervenção de estados soberanos). Daí a diferença entre as duas principais tendências epistemológicas da era pósmoderna: de um lado a pax americana e, do outro, o metaconstitucionalismo de inspiração kantiana. No primeiro projeto epistemológico, a tendência de neutralização dos temas axiológicos contidos nas constituições democráticas de modo a possibilitar que o pensamento neoliberal possa espargir seus efeitos sobre o planeta. O que prevalece são os interesses geopolíticos dos Estados Unidos enquanto nação hegemônica na era pós-Guerra Fria. No outro projeto epistemológico, o que deve ser preservado é a dignidade da pessoa humana, enquanto cidadão cosmopolita, vale dizer, enquanto cidadão do mundo. A nobreza do metaconstitucionalismo, aqui compreendido como o constitucionalismo transnacional ou constitucionalismo global, reside na busca da impenetrabilidade do núcleo da dignidade da pessoa humana enquanto ser individualizado, não importando sua raça, sua cor, sua religião, sua preferência sexual, seu estado nacional. Em suma, preservando-se os limites da dignidade da pessoa humana, estará no novo campo do projeto kantiano de constitucionalização universal, afastado, por via de consequência, do projeto da pax americana. Àquele cabe disciplinar as regras de um direito cosmopolítico calcado na moralidade mínima universal e tudo o mais que diga respeito às pessoas enquanto indivíduos a partir da criação de um regime jurídico supranacional.

Guilherme Sandoval Góes e Márcia Sleiman Rodrigues

Referências bibliogrãficas AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2004. ALVES PEREIRA, Antônio Celso. Direitos Humanos e terrorismo. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.). Direitos Fundamentais:estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres.Rio de Janeiro:Renovar, 2006. BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ____. Bioética, biodireito e direitos humanos. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais,Rio de Janeiro:Renovar,2002. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. _____. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. FIORI, José Luís. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo, 2007. FUKUYAMA, Francis. O fim da história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998. GÓES, Guilherme Sandoval. Geopolítica e pós-modernidade. In: Revista da Escola Superior de Guerra, v.23, n. 48, ago/dez 2007. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

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O Curso de Direito e a Questão Racial: Racismo e Relações Étnico-raciais a partir de um Estudo Quantitativo com Alunos do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá1 Carlos Alberto Lima de Almeida2 Resumo O presente artigo desenvolve reflexões relacionadas à alteração instituída nas diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei 10.639/2003 (que alterou a Lei 9394/1996 para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”), contextualizando a pesquisa3 realizada com alunos ingressantes e concluintes do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá no segundo semestre letivo do ano de 2014, visando à investigação quantitativa (a) da percepção dos alunos em relação às vivências relacionadas à discriminação racial; (b) da percepção dos alunos sobre o desenvolvimento de ações, por parte das instituições de ensino da educação básica, com foco específico no ensino fundamental e ensino médio, que revelem a efetivação da política de afirmação e valorização do negro em nossa sociedade, em decorrência dos objetivos previstos na Lei 10.639/2003; e (c) da percepção dos alunos sobre o conteúdo estudado ou a ser estudado no curso de Direito que guardem relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnicoracial. A metodologia utilizada para o desenvolvimento deste trabalho foi uma pesquisa de campo, tendo como instrumento metodológico a aplicação de questionários contendo perguntas que abertas e fechadas, buscando intercalar informações quanti e qualitativas. Palavras-chave: Direito; racismo; antirracismo; educação escolar; Lei 10.639/2003. Abstract This article brings up reflections related to the changes of the guidelines and bases of national education, introduced through the Law 10.639/2003 (an amended of Law 9394/1996, made in order to include in the official curriculum of the Elementary School 1 2

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Pesquisa vinculada ao Edital Pesquisa Produtividade 2014 – Universidade Estácio de Sá Doutor em Política Social PPGPS-UFF. Professor Auxiliar I e Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso da Universidade Estácio de Sá – UNESA. E-mail: [email protected] Em cumprimento à orientação institucional o Projeto de Pesquisa foi submetido na Plataforma Brasil – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CAAE 32024014.7.0000.5284, recebendo aprovação por intermédio do Parecer nº 699.054.

O Curso de Direito e a Questão Racial: Racismo e Relações Étnico-raciais a partir de um Estudo Quantitativo com Alunos do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá

the topic “History and Culture Afro- Brazilian”). Those reflections are related to an ongoing research with junior and senior undergraduate students of the Estácio de Sá University Law School that aimed produce quantitative data regarded to (a) the perceptions of students about experiences of racial discrimination; (b) the perception of the students about the development of actions from educational institutions in order achieve the objectives set by Law 10.639/2003, specifically on primary and secondary education, revealing the effectiveness of the policy statement and appreciation of black in our society; and (c) the perception of the students on the content taught in law school related to racial issue in Brazil and/or educational and pedagogical strategies that value diversity policies in order to overcome prejudicial attitudes ethnic-racial nature. The methodology used in this research was a field research, and the methodological instrument was the application of questionnaires composed of opened/closed questions in order to produce quantitative and qualitative information. Keywords: Right; racism; antiracism; school education; Law 10.639/2003.

Introdução O presente trabalho decorre de pesquisa realizada no período de fevereiro de 2014 a janeiro de 2015, financiada pela Universidade Estácio de Sá a partir da seleção realizada por intermédio do Edital Pesquisa Produtividade 2014, envolvendo uma amostra de alunos do curso de direito da referida instituição de ensino superior nas unidades do município do Rio de Janeiro e tem por objetivo contribuir para a produção de conhecimentos relativos à operação do racismo na sociedade brasileira, em especial no campo da política de educação.

A Lei 10.639/2003 e a pesquisa no curso de direito Este trabalho discute, a partir de reflexões relacionadas à alteração instituída nas diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei 10.639/2003 (que alterou a Lei 9394/1996 para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”), a problemática das relações étnico-raciais no ambiente escolar, revelando a importância do tema no campo da política social brasileira e sua inserção na pesquisa envolvendo o curso de direito, numa perspectiva interdisciplinar. A emergência de políticas sociais afirmativas orientadas para a raça, especialmente no campo da educação, é provavelmente a causa principal da crescente importância dada aos estudos que unem os temas raça e educação nas Ciências Sociais brasileiras nas últimas décadas, tanto no ponto de vista político quanto social (BARBOSA, 2005). Na concepção de alguns autores, tais políticas, originárias de terras estrangeiras, teriam o efeito de ferir a singularidade das relações raciais no Brasil. Para outros, tais medidas sinalizam para a possibilidade de reversão do quadro histórico de desigualdades entre os grupos raciais no país. (SILVA, A.P. et al, 2009, p.23) Por intermédio da citada lei procura-se a promoção de uma mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras, a partir da disseminação da história e cultura africanas. A lei 9.394/1996

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estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e já em seu artigo 1º define que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.” Em relação à educação escolar é preciso entender que esta abrange os processos formativos que se desenvolvem nas instituições de ensino e, na perspectiva do direito, é correto observar os critérios fixados nas leis tanto para o funcionamento de tais estabelecimentos educacionais quanto para os objetivos que serão perseguidos com a atividade por eles desenvolvida. Observar a legislação aplicável à educação, portanto, é um dever para as instituições de ensino e para os profissionais da educação. Pensar na atualidade sobre o processo histórico de construção do mito da democracia racial, noutra perspectiva, nos leva também a refletir sobre a escola e o seu papel na reprodução das desigualdades sociais, noção estruturada por Nogueira e Nogueira (2002) acerca dos limites e contribuições da Sociologia da Educação, por intermédio da qual, a partir da obra de Bourdieu, contextualiza a escola e seu papel na reprodução das desigualdades sociais. O presente estudo traz as seguintes hipóteses de trabalho: a) O aluno reconhece situações de desigualdade racial no ambiente escolar da educação básica4. b) O aluno reconhece ações em prol da efetivação da política de afirmação e valorização do negro em nossa sociedade, em decorrência dos objetivos previstos na Lei 10.639/2003. c) O aluno reconhece conteúdo estudado ou a ser estudado no curso de Direito que guarde relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas sociais e de estratégias de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial.

Enquadramento teórico e metodologia O enquadramento teórico do presente estudo parte da problemática das relações raciais no ambiente escolar, especialmente na investigação quantitativa (a) da percepção dos alunos em relação às vivências relacionadas à discriminação 4

Investigar a percepção dos alunos que atualmente estão no ensino superior, 11 anos após o início da vigência da Lei 10.639/2003, nos resgatar suas memórias acerca da realidade vivida num período em que os profissionais da educação já deveriam estar unindo esforços para a sua efetiva implementação, sendo relevante destacar, ainda, que a Lei nº 10.639 foi regulamentada pelo Parecer CNE/CP nº 3/2004 e pela Resolução CNE/CP nº 1/2004. A leitura de tais instrumentos, na percepção desse pesquisador, é fundamental. O Parecer CNE/CP nº 3/2004 é dirigido aos administradores dos sistemas de ensino, de mantenedoras de estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino, seus professores e a todos implicados na elaboração, execução, avaliação de programas de interesse educacional, de planos institucionais, pedagógicos e de ensino. Além destes, também é dirigido às famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos os cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros.

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racial; (b) da percepção dos alunos sobre o desenvolvimento de ações, por parte das instituições de ensino da educação básica, com foco específico no ensino fundamental e ensino médio, que revelem a efetivação da política de afirmação e valorização do negro em nossa sociedade, em decorrência dos objetivos previstos na Lei 10.639/2003; e (c) da percepção dos alunos sobre o conteúdo estudado ou a ser estudado no curso de Direito que guardem relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial. A metodologia que foi adotada pode ser sintetizada em pesquisa de campo efetivada com alunos do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, que no semestre letivo 2014.2 foi oferecido em 14 unidades no município do Rio de Janeiro, a saber: Unidade Barra World – Recreio, Unidade Dorival Caymmi, Unidade Freguesia, Unidade Ilha do Governador, Unidade João Uchoa, Unidade Madureira, Unidade Menezes Cortes (Centro III), Unidade Nova América, Unidade Santa Cruz, Unidade R9, Unidade Sulacap, Unidade Via Brasil, Unidade Tom Jobim e Unidade West Shopping. A pesquisa foi desenvolvida utilizando o método quantitativo e consistiu numa representação do alunado do Curso de Direito, cuja amostra tivesse por base a representação do aluno ingressante, com recorte específico nos alunos matriculados no 1º período em 2014.2, e a representação do aluno concluinte, com recorte específico nos alunos matriculados no 10º período em 2014.2. Os alunos, portanto, não foram escolhidos de forma aleatória e todos os que estiveram na sala de aula no momento da realização da pesquisa foram conclamados a colaborarem, somente participando aqueles que manifestaram sua anuência por intermédio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido5. Participaram da pesquisa 1012 discentes, sendo validados os questionários referentes ao total de 995 alunos, sendo descartados 17 questionários por ausência 5

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O referido Termo apresentava campo para preenchimento dos DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO PARTICIPANTE DA PESQUISA e as seguintes informações: Título do Protocolo de Pesquisa, dados do Pesquisador responsável, Avaliação do risco da pesquisa, Objetivos e Justificativa, Procedimentos, dados para contato com o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) – da Universidade Estácio de Sá, esclarecimento que para a referida pesquisa não haveria nenhum custo do participante em qualquer fase do estudo e que, do mesmo modo, não haveria compensação financeira relacionada à participação dele. Por fim, que o pesquisado teria total e plena liberdade para se recusar a participar bem como retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa. Finalmente, o seguinte texto antes do espaço destinado para a coleta da assinatura: “Acredito ter sido suficientemente informado a respeito das informações que li ou que foram lidas para mim, descrevendo o estudo: “O que mudou na educação básica 10 anos após a edição da Lei 10.639/2003?”. Os propósitos desta pesquisa são claros. Do mesmo modo, estou ciente dos procedimentos a serem realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de esclarecimentos permanentes. Ficou claro também que a minha participação é isenta de despesas. Concordo voluntariamente na minha participação, sabendo que poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem penalidades ou prejuízos. Este termo será assinado em 02 (duas) vias de igual teor, uma para o participante da pesquisa e outra para o responsável pela pesquisa”.

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ou não preenchimento correto do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os alunos responderam as questões apresentadas por intermédio do questionário. As perguntas foram respondidas, uma a uma, precedidas da orientação em cada questão formulada pelo professor presente no momento da realização.

Resultado da pesquisa Em apertada síntese, a análise dos dados coletados e apresentados nesta pesquisa revelou a percepção de 995 alunos em relação às vivências relacionadas à discriminação racial. Destes, 771 alunos eram do 1º período e 224 do 10º período do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. O perfil dos entrevistados era majoritariamente formado por pessoas do sexo feminino (51,7%) e por pessoas com idade entre 15 e 29 anos (51,7%). No que se refere à auto-identificação da cor ou raça do entrevistado, segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – “branco”, “preto”, “pardo”, “amarelo”, “indígena” e “sem declaração” – constatou-se a predominância de 41% de alunos autodeclarados como brancos. Porém, quando somados os percentuais dos grupos autodeclarados pretos (17%) e pardos (34%), se constatou o total de 41% da amostra, o que se iguala, percentualmente, ao número de brancos. Recorte bi-racial no Brasil: num universo de 995 pesquisados, 103 alunos não declararam sua cor/raça a partir de um modelo bi-racial, representando 10,4% da amostra. Quando é observado o critério do IBGE de classificação, considerando as opções “branco”, “preto”, “pardo”, “amarelo”, “indígena” o percentual de “sem declaração” foi de apenas 3%. Entendo existir uma grande dificuldade de se estabelecer um recorte bi-racial para fins de classificação na realidade social existente no Brasil. Imprecisão da categoria afro-descendente para fins de análise: a categoria afro-descendente também se revelou complexa para fins de determinação da efetiva ascendência de cada aluno e para sua determinação em relação à sua opção quando o aluno foi instado a se autoclassificar. Temos 58,4% de declarados afro-descendentes, porém apenas 41% de pretos e pardos quando observada a classificação do IBGE e o mais discrepante foi a identificação de apenas 32,6% de negros na classificação bi-racial. As características fenotípicas são preponderantes para definição do padrão brasileiro de relações raciais: O exame dos dados quantitativos relacionados ao critério que cada aluno se utiliza para definir a autoindicação de sua cor ou raça revela que para 54,4% dos pesquisados a cor da pele é o fator determinante. Neste contexto, torna-se relevante destacar que o conjunto relacionado às características fenotípicas, nestas compreendidas as opções cor da pele (54,4%), fisionomia (2,4%) e cabelo (1,7%), expressa a preferência de mais da metade dos entrevistados (58,5%). Porém, quando a questão envolve a definição da cor do outro, nas respostas apresentadas pelos alunos a cor da pele foi o determinante para 59,3%

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dos pesquisados. O conjunto relacionado às características fenotípicas, nestas compreendidas as opções cor da pele (59,3%), fisionomia (5,8%) e cabelo (1,8%), expressou a preferência de mais da metade dos entrevistados, alcançando a representativa marca de 66,9% dos alunos. Tal conjunto de informações ajuda a entender a lógica do padrão brasileiro de relações raciais, apontado como de marca6, afinal a marca que os negros carregam se relacionam diretamente com suas características fenotípicas. Existe racismo no Brasil: os alunos entrevistados foram contundentes ao afirmar que existe racismo no Brasil, afinal 925 responderam sim, representando 93% da amostra. Os alunos não se consideram racistas: quando questionados se consideravam eles próprios racistas, 906 alunos responderam que não, representando 91,1% da amostra. É importante destacar que apesar da expressiva resposta, ainda assim foram encontrados 65 alunos que admitiram que são “mais ou menos” racistas, representando 6,5% da amostra. Finalmente, 18 alunos responderam que eram racistas e 5 alunos assinalaram a opção “sem declaração”, representando cada subconjunto, respectivamente, 1,9% e 0,5 da amostra. Considerando que são alunos do Curso de Direito é que o racismo é crime, a existência de um grupo de 65 alunos neste subconjunto formado por “racistas/mais ou menos racistas/sem declaração” deve merecer atenção por parte dos profissionais da educação que integram a equipe de colaboradores da Universidade Estácio de Sá. Conclusão em relação ao 1º objetivo específico: os alunos identificam situações de discriminação racial no ambiente escolar.



O exame das respostas apresentadas para a questão “Você já presenciou ou tomou conhecimento de alguma situação de racismo na escola?”, indica que 45,7% dos alunos que se encontravam no ensino superior no segundo semestre de 2014 ainda traziam em sua lembrança situações interpretavam como racismo no ambiente escolar, isto após 11 anos da Lei 10.639/2003, criada exatamente para tornar a escola um ambiente mais acolhedor e de valorização do negro em nossa sociedade. 6

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Uma outra importante contribuição produzida no interior das pesquisas do projeto da Unesco acerca do padrão brasileiro de relações raciais consistiu nas conclusões de Oracy Nogueira. [...] No Brasil vigoraria uma modalidade de preconceito entendido como de marca, em que a questão da origem racial de um indivíduo seria pouco relevante. Nesse caso, o preconceito e as formas correlatas de discriminação se reportariam à intensidade dos fenótipos de cada pessoa. Entre esses fenótipos incluem-se: a tonalidade da cor da pele, o tipo de cabelo e o formato de parte da face: nariz, boca etc. Considerando-se a inexistência de uma linha rígida de cor no Brasil, quanto mais próximas forem as características pessoais de um indivíduo em relação a um tipo negróide, maior será a probabilidade de que essa pessoa venha a ser discriminada ao longo de sua vida. (PAIXÃO, 2006, p. 49-50).

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Ao investigar as situações de racismo presenciadas pelos alunos na escola, vemos que estes 45,7% que responderam afirmativamente, identificaram 113 situações supostamente relacionadas ao racismo, várias delas apresentadas em respostas obtidas em mais de um questionário, sendo agrupadas a partir do exame dos 455 questionários em que os alunos responderam que haviam presenciado situação de racismo na escola. Foram constadas 148 indicações de nomeação genérica (quando a situação de racismo envolver as expressões nega (o), negra (o), negrinho (a), pretinho (a), preto (a) e/ou assemelhadas), 80 indicações fora da classificação proposta (interpretadas em relação ao local da ocorrência), 54 indicações relacionadas à natureza (quando a situação de racismo envolver as expressões desgraça, maldita, raça e/ou assemelhadas e/ou fenotípicas), 35 indicações relacionando animal/raça (quando a situação de racismo envolver as expressões macaco (a), urubu e/ou assemelhadas), 08 indicações envolvendo defeitos físicos, mentais e doenças (quando a situação de racismo envolver as expressões cancerosa, queimada, idiota, imbecil e/ou assemelhadas); 07 indicações relacionadas à hierarquia social (quando a situação de racismo envolver as expressões analfabeto, desclassificado, favelada, maloqueira, metida, senzala e/ ou assemelhadas) e 01 ocorrência indicando delinquência e defeitos morais (quando a situação de racismo envolver as expressões aproveitador, folgado, incompetente, ladrão, maconheiro, pilantra, safado, sem-vergonha, traficante e/ou assemelhadas), conforme pode ser observado no apêndice 01, como já mencionado. Tais ocorrências devem merecer especial atenção por parte dos profissionais da educação envolvidos com a educação básica, notadamente porque, para além dos objetivos expressos na Lei 10.639/2003, devem também perceber a importância de um efetivo trabalho no ambiente escolar considerando as já mencionadas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A conclusão é que as respostas dos alunos apontam para variados tipos de insultos raciais que precisam receber tratamento adequado por parte dos profissionais da educação. Conclusão em relação ao 2º objetivo específico: investigar a percepção dos alunos sobre o desenvolvimento de ações, por parte das instituições de ensino da educação básica, com foco específico no ensino fundamental e ensino médio, que revelem a efetivação da política de afirmação e valorização do negro em nossa sociedade, em decorrência dos objetivos previstos na Lei 10.639/2003.



A situação constatada no 1º objetivo da pesquisa, em que se percebe na memória dos alunos diversas lembranças de situações de racismo vivenciadas na educação básica, se agrava quando se percebe que dos 45,7% de entrevistados que responderam ter presenciado situação de racismo, apenas 8,5% afirmaram que foram tomadas providências.

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Neste contexto, tomando por base os 455 relatos de situações envolvendo racismo, em apenas em 38 deles teria sido adotada alguma providência por parte das instituições de ensino onde ocorreram. Noutras palavras é possível concluir que é inexpressivo o cuidado em relação à questão racial, mesmo após 11 anos da edição da Lei 10.639/2003. Quando se observa o cenário trazido pela Lei 10.639/2003, a expectativa que se tem é no sentido de que o conteúdo envolvendo a contribuição do negro para a área social, econômica e política pertinentes à História do Brasil será efetivado pelo menos em três disciplinas que compõem a educação básica: Educação Artística, Literatura e História Brasileiras. A pesquisa revela, quando agregados os dados de “História” e “História do Brasil”, que temos 41,26% de um total de 1190 respostas em História é citada como uma disciplina relevante no contexto dos objetivos traçados pela referida lei. Agregando as respostas de “Artes”, “Artes Cênicas”, “Dança”, “Educação Artística” e “Música” temos um total de 31,25% respostas que podem ser agregadas na Disciplina “Educação Artística”. Ainda, o que seria a última previsão normativa, Literatura e Língua Portuguesa, temos assim 0,84% das respostas, agregando as respostas “Literatura” e “Português” e Gramática. Das restantes, que não compõem uma unidade que possa ser identificada em uma disciplina, temos o restante de 26,25%. É possível concluir que História é a disciplina que obtém o melhor resultado na lembrança dos alunos. Porém, entendo que os profissionais da educação podem ter um olhar mais atento para as disciplinas de Educação Artística e Literatura Brasileira, no que se refere aos objetivos da lei. Neste contexto, entendo que a observância do Parecer CNE/CP nº 03/2004 é fundamental para os profissionais da educação, inclusive para superar o foco meramente relacionado ao conteúdo das disciplinas para de fato avançar no sentido de entender a proposta nele contida de toda uma mudança na maneira de se pensar e agir nas instituições de ensino, dentro e fora da sala de aula. Noutras palavras, que o referido parecer busca não é apenas a mudança de condutas, mas tradições culturais persistentes em nossa sociedade, que mascaram e perpetuam estruturas racistas e opressoras, tendo em vista que o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não, em que se explicitem, busquem compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formule, diferentes formas de expressão e de organização de raciocínios e pensamentos de raiz da cultura africana. A possibilidade da abordagem do conteúdo de forma transversal e não apenas nas disciplinas de Educação Artística, Literatura e História do Brasil, o que autoriza a percepção de que o ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana, a educação das relações étnico-raciais se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, tanto como conteúdo de referidas disciplinas, quanto em outras atividades curriculares ou extracurriculares, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes, entre outros ambientes escolares.

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A pesquisa também revelou que para 54,2% dos entrevistados, são importantes os estudos relacionados à questão racial efetivados na Educação Básica, conforme previsto na Lei 10.639/2003. Conclusão em relação ao 3º objetivo específico: investigar a percepção dos alunos sobre o conteúdo estudado ou a ser estudado no curso de Direito que guardem relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnicoracial.



As respostas apresentadas na última parte da pesquisa foram instigantes e antes de apresentar as minhas conclusões, o que farei no contexto do exame da percepção dos alunos sobre o conteúdo estudado ou a ser estudado no curso de Direito que guardem relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial, entendo ser muito relevante consignar nesta pesquisa a existência do Projeto de Lei do Senado nº 153, apresentado pelo Senador Paulo Paim em 14 de maio de 2012, que inclui a disciplina Direito e Relações Étnicas nos cursos de graduação em Direito, de formação de oficiais e soldados da Polícia Militar, delegados de polícia e agentes, de delegados de polícia e agentes da Polícia Civil e de oficiais e soldados das Forças Armadas Brasileiras. Se for aprovada a proposta apresentada, a disciplina na graduação em Direito terá a carga horária de 60h/a e deverá contemplar o estudo dos temas relativos ao Direito e Relações Étnicas no Brasil tendo como referencial a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como toda a legislação infraconstitucional pertinente. Tais informações guardam relação com a última pergunta formulada na pesquisa, tanto para os alunos ingressantes quanto para os concluintes, no sentido de que respondessem se achavam importante estudar no Curso de Direito conteúdo que guardasse relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas sociais e de estratégias de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial. Como dito, a última parte desta pesquisa teve por foco investigar a percepção do aluno ingressante e a do aluno concluinte do Curso de Direito em relação aos conteúdos que guardassem relação com a questão racial no Brasil e/ ou com políticas sociais e de estratégias de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial. Entendo que as respostas, tanto dos ingressantes quanto dos concluintes, revelam uma grande dificuldade de identificação dos diversos conteúdos existentes e relacionados à questão racial e sua relação com os conteúdos desenvolvidos no decorrer da graduação em Direito.

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Dos 771 discentes que estavam cursando o 1º período letivo, 552 responderam que achavam que estudariam no decorrer do Curso de Direito conteúdo que guardasse relação com a questão racial no Brasil e/ ou com políticas sociais e de estratégias de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial. Embora pareça um percentual muito expressivo, o fato é que quando provocados a apontarem os “conteúdos” e associarem tais conteúdos às respectivas “disciplinas”, apresentaram respostas tão diversificadas que não permitiram um agrupamento ordenado na dimensão pretendida, ou seja, em que o aluno conseguisse apontar o conteúdo relacionando com a disciplina a ser estudada. E destes 552, apenas 470 alunos achavam importante estudar tais conteúdos na graduação em Direito. Dos 224 discentes que estavam cursando o 10º período letivo, apenas 72 responderam “sim”, representando 32,2%, os que achavam que estudariam no decorrer do Curso de Direito conteúdo que guardasse relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas sociais e de estratégias de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial. Ou seja, ao término do curso de Direito ainda é muito baixo o conhecimento do alunado sobre a questão racial brasileira. O exame de gráficos, tabelas e dados desafia um olhar para o futuro, tanto por parte de quem escreve quanto de quem lê. E por ser um profissional oriundo da área do Direito, talvez eu necessite, como costumo dizer e mais uma vez reitero em meus escritos, de uma licença poética para transitar no meio acadêmico e assegurar o entendimento que “o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente” (ANDRADE, 2005, p. 158). O que são ações afirmativas? Ainda existe escravidão no Brasil? Quais os direitos dos quilombolas? Qual a diferença entre racismo e injúria racial? Quem são os grandes juristas negros brasileiros? Quais as leis que se relacionam com a questão racial brasileira? Qual o papel do Estado em relação às manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras? Qual o tratamento a ser dispensado aos documentos e aos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos? Como os futuros advogados, defensores públicos, juízes, promotores de justiça, entre outros profissionais do Direito, se apropriam de conceitos relacionados a temas como “racismo”, “antirracismo”, “preconceito”, “discriminação racial”, entre outros tantos, quando são provocados a se manifestarem em conflitos de interesse que envolvam tais questões? Independente da existência ou não de uma lei que crie a obrigatoriedade de uma disciplina “Direito e Relações Étnicas” nos cursos de graduação em Direito, tenho a percepção que o resultado da pesquisa em relação aos dados obtidos por intermédio das respostas oferecidas pelos ingressantes e concluintes nos aponta, enquanto profissionais envolvidos com o ensino superior na formação dos futuros profissionais do Direito, um caminho desafiador a seguir, com muitas possibilidades e estratégias de enfrentamento da questão.

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Noutras palavras, entendo que pouco importa se para percorrer o caminho apontado nos valeremos de disciplinas obrigatórias, disciplinas eletivas, cursos de extensão, atividades acadêmicas complementares, atividades de pesquisa, atividade de extensão, palestras, seminários, entre outras tantas possibilidades. Mas, certamente, o caminho a ser seguido passa por proporcionar aos alunos do Curso de Direito a ampliação de seus conhecimentos envolvendo o Direito e a questão racial brasileira.

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______. Projeto de Lei nº. 259-B, de 1999. Dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, da temática – História e Cultura Afro-Brasileira – e dá outras providências; tendo pareceres: da Comissão de Educação, Cultura e Desporto, pela aprovação (Relator: Deputado Evandro Milhomem); e da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, pela constitucionalidade, juricidade e técnica legislativa, (Relator: Deputado André Benassi). Diário da Câmara dos Deputados. Brasília, DF, 09 nov. 2001. ______. Comissão de Constituição e Justiça e Redação Projeto de Lei nº. 259-C, de 1999, Redação Final. Dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática – História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Brasília – DF, jun. 2000. ______. Projeto de Lei nº 3.198, de 2000. Institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências. Diário da Câmara dos Deputados. Brasília, DF, 16 de jun.2000. ______. Projeto de Lei nº. 213/2003. Institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências. Diário do Senado Federal. Brasília, DF, 29 de mai.2003. ______. Projeto de Lei do Senado nº. 154/2012. Inclui a disciplina Direito e Relações Étnicas nos cursos de graduação em Direito, de formação de oficiais e soldados da Polícia Militar, delegados de polícia e agentes, de delegados de polícia e agentes da Polícia Civil e de oficiais e soldados das Forças Armadas Brasileiras. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=108153&tp=1 Acesso em 03 de fevereiro de 2015. ______. Ministério da Educação – SECAD. Parecer 03/2004, de 10 de março, do Conselho Pleno do CNE, aprova o projeto de resolução nº 1, de 17 de jun. 2004 das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília – DF, 2004 ______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília (DF), 10 de março de 2004. ______. Resolução 01/2004 – Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico–Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana. Brasília – DF, 17 jun. 2004. CARDOSO, Fernando Henrique. Reunião de Trabalho Marcha contra o racismo, pela igualdade e a vida. Biblioteca da Presidência da República, 1995. Disponível em http://www.biblioteca. presidencia.gov.br/area-presidencia/pasta.2008-10-08.1857594057/pasta. 2008-1008.9262201718/pasta.2008-12-16.0710539708/pasta.2009-01-08.2570974211/96%20 -%20Reuniao%20de%20Trabalho%20Marcha%20contra%20o%20racism%2C%20 pela%20igualdade%20e%20a%20vida%20-%20Palacio%20do%20Planalto%20-%20 Brasilia%20-%20Distrito%20Federal%20-%2020-11-1995.pdf Acesso em 28 de outubro de 2012. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 1999. ______. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002. ______. Preconceito Racial: Modos, Temas e Tempos. Cortez editora: São Paulo, 2008 ______. Discriminação e preconceito raciais. In: Notícias e reflexões sobre discriminação racial. PAIVA, Angela Randolpho. (Orgs.) Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO: PALLAS, 2008b, p.97102. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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O Direito Fundamental à Liberdade de Crença Cleyson de Moraes Mello1 Lorena Campos Vieira2 Resumo A Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito, o qual visa assegurar a todos os brasileiros o exercício dos direitos sociais e individuais, tendo como valores supremos a liberdade, a segurança, o bem-estar, a igualdade, o desenvolvimento e a justiça, a fim de que se tenha uma sociedade fraterna e justa. O direito à liberdade religiosa, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988, dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.” Dessa forma, o presente artigo objetiva fazer uma análise da colisão existente entre o direito fundamental à liberdade religiosa e o poder empregatício, utilizando-se o princípio da dignidade da pessoa humana e o da proporcionalidade. Palavras-chave: Direitos fundamentais; princípio da dignidade humana; liberdade de crença religiosa. Abstract The Federal Constitution of 1988 established the democratic rule of law, which aims to ensure all Brazilians the exercise of social and individual rights, with the supreme values freedom, security, well-being, equality, development and justice, so that it has a fraternal and just society. The right to religious freedom, provided for in art. 5, VI, of the Constitution of 1988 provides that “is inviolable freedom of conscience and religion, and guaranteed the free exercise of religious cults and guaranteeing, according to the law, the protection of places of worship and their rites.” Thus, this article aims to analyze the existing collision between the fundamental right to religious freedom and the employment power, using the principle of human dignity and that of proportionality. Keywords: Fundamental rights; principle of human dignity; freedom of religious belief. 1

Professor Adjunto de Metodologia da Pesquisa Jurídica da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; atualmente é professor universitário (graduação e Pós-Graduação). É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora/MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre/RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. 2 Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas Vianna Júnior; Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestranda em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora.

O Direito Fundamental à Liberdade de Crença

Introdução O direito a liberdade é um direito constitucional fundamental, denominado de 1ª geração, previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, mais precisamente no inciso VIII, onde prevê de forma mais específica a liberdade de crença: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. A própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prescreve essa liberdade, enaltecendo também a liberdade dos cultos religiosos e a proteção as organizações religiosas. As gerações ou dimensões são processos evolutivos das conquistas dos direitos do homem em prol da liberdade, igualdade e fraternidade. Esse processo evolutivo pode ser dividido em três fases distintas, mas conexas. A primeira fase buscou a efetivação da liberdade, sem amarras estatais, para que o indivíduo pudesse percorrer sua trajetória sem qualquer intervenção por parte do Estado. Essa fase pleiteava uma abstenção do Estado nas relações intersubjetivas privadas, com intuito de proteger o indivíduo dos ataques do Estado, a sua essência (integridade física e psíquica) e a sua propriedade. A liberdade da primeira fase dos direitos essenciais do homem tornou possível que a consciência do indivíduo pudesse ser exteriorizada através da liberdade de pensamento. A possibilidade de o indivíduo transmitir a sua mais íntima reflexão acabou por originar outras espécies de liberdades, como a liberdade de crença religiosa.  A liberdade de pensamento, consagrada na primeira fase desses direitos, possibilitou a exteriorização da crença religiosa dos indivíduos, já que antes era proibida de exteriorizar o seu pensar e mais ainda de divulgar a sua fé. A liberdade de crença iniciou seu caminho no Brasil com a separação da Igreja do Estado, com a Proclamação da República. A separação político-religiosa, conjugada com neutralidade religiosa adotada pelo Estado brasileiro, originou a criação de mecanismos constitucionais capazes de permitir o exercício da liberdade de crença. O direito a liberdade ampla, alcançada com o passar dos anos, através da história, fomentou a liberdade de pensamento, logo a liberdade religiosa. A possibilidade de o indivíduo transmitir a sua mais íntima reflexão acabou por originar outras espécies de liberdades, como a liberdade de crença religiosa, o que antes não era muito permitido, já que a pessoa humana era proibida de exteriorizar o seu pensar e mais ainda, de divulgar sua fé. Essa garantia fundamental da liberdade, inclusive da liberdade religiosa, sendo o Brasil um país laico, fez com que se desse maior a difusão de pensamentos e de religiões diferentes, por não adotar o nosso país uma religião oficial. A liberdade de crença foi introduzida no pensamento jurídico através da Declaração de Direitos da Virgínia no ano de 1776, o qual ditava que “todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, segundo os ditames de sua consciência”.

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Mais tarde na França, em 1789, a Declaração de Direitos do Homem, no artigo 10, determinava que “ninguém deve ser inquietado por suas opiniões mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. E, ainda em seu artigo 18 “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. Já em 1890, adveio o Decreto 119-A, decretado pelo Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, com vigência restabelecida pelo Decreto 4.496 de 2002, onde: “Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias.” A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, determina no seu artigo XVIII que “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.” A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950, trata no artigo 9º da liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Vejamos: “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.” Já o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, afirma no artigo 18 que “1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos países e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.

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Vale ainda destacar o artigo 12 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, de 1969, mais conhecido como Pacto São José da Costa Rica, já que este dispositivo trata da liberdade de consciência e de religião. Artigo 12 – Liberdade de consciência e de religião – 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. A Convenção Europeia de Direitos Humanos trata da liberdade de pensamento, de consciência e de religião, em seu artigo 9º, ao dizer que “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem. A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, diz em seu artigo 8º que “a liberdade de consciência, a profissão e a prática livre da religião são garantidas. Sob reserva da ordem pública, ninguém pode ser objeto de medidas de constrangimento que visem restringir a manifestação dessas liberdades.” Vale destacar, também, a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, proclamada pela Assembleia Geral das nações Unidas a 25 de novembro de 1981 – Resolução 36/55. Da mesma forma, a Proclamação de Teerã de 1968 e a Declaração de Viena de 1993 também tratam das questões religiosas. Aquela informa que a discriminação por motivo de religião ofende a consciência da humanidade e põe em perigo os fundamentos da liberdade, da paz e da justiça. Esta dispõe sobre a proteção de minorias nacionais ou étnicas, religiosas ou linguísticas. Já a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, do ano de 2000, em seu artigo 10, determina que “Liberdade de pensamento, de consciência e de religião – 1. Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas

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e da celebração de ritos. 2. O direito à objecção de consciência é reconhecido pelas legislações nacionais que regem o respectivo exercício.”3 Dessa maneira, considerando os principais instrumentos internacionais de proteção à liberdade religiosa, vejamos, abaixo, como esta liberdade foi protegida ao longo do tempo: Ano

Instrumentos de Proteção

1776

Declaração de Direitos da Virgínia,4 5 Primeira Emenda.

1948

Declaração sobre a Liberdade Religiosa do Conselho Mundial das Igrejas

1948

Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos 2o e 18o.

1948

Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, artigo 2o.

1950

Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, artigo 9o.

1965

Declaração sobre a Liberdade Religiosa pelo Conselho do Vaticano

1966

Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, especialmente, os artigos 18, 20, 24, 26 e 27.

1969

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigos 12, 13, 16, 17 e 23.

1981

Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigos 2, 8 e 12.

1981

Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação baseadas na Religião ou Crença.

1989

Convenção sobre os Direitos da Criança, artigo 14.

1990

Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islão.

1992

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a Minorias Étnicas, Religiosas e Linguísticas, artigo 2.

1993

Declaração para uma Ética Global, apoiada pelo Parlamento das Religiões do Mundo em Chicago.

1994

Carta Árabe dos Direitos Humanos, artigos 26 e 27.

1998

Carta Asiática dos Direitos Humanos, artigo 6.

2001

Conferência Internacional Consultiva das Nações Unidas sobre a Educação Escolar em relação à Liberdade de Religião e Crença, à Tolerância e à Não Discriminação, Madrid.

2001

Congresso Mundial para a Preservação da Diversidade Religiosa, Nova Deli.

2004

Carta Árabe dos Direitos Humanos, artigo 30.

2007

Declaração da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) sobre Intolerância e Discriminação contra Muçulmanos.

2011

A OSCE, a UNESCO e o Conselho da Europa publicaram importantes Diretrizes para Educadores sobre o Combate à Intolerância e Discriminação contra os muçulmanos.

3

A Carta dos Direitos Fundamentais reconhece um conjunto de direitos pessoais, cívicos, políticos, econômicos e sociais dos cidadãos e residentes na UE, incorporando-os no direito comunitário. Em Dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Carta foi investida de efeito jurídico vinculativo, à semelhança dos Tratados. Para o efeito, a Carta foi alterada e proclamada pela segunda vez em Dezembro de 2007. Disponível em: http:// europa.eu/legislation_summaries/justice_freedom_security/combating_discrimination/ l33501_pt.htm. Acesso em: 08 de jul 2014. 4 Secção 16. Que a religião ou os deveres que temos para com o nosso Criador, e a maneira de os cumprir, somente podem reger-se pela razão e pela convicção, não pela força ou pela violência; consequentemente, todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, de acordo com o que dita a sua consciência, e que é dever recíproco de todos praticar a paciência, o amor e a caridade cristã para com o próximo. 5 Marco do nascimento dos direitos humanos na história.

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Além dos textos internacionais, acima mencionados, é importante destacar a participação de organizações da sociedade civil, como no âmbito estatal, que possuem a finalidade de proteção à liberdade religiosa. Dentre elas, é possível citar: a ICRF – International Coalition for Religius Freeedom;6 a International Association for Religius Freedom,7 a International Religius Freedom Watch,8 dentre outras. A Constituição da República Portuguesa, de 1976, trata a liberdade de consciência, de religião e de culto em seu artigo 41º. Vejamos: “1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável. 2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa. 3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder. 4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto. 5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades. 6. É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.”9 A liberdade religiosa foi tratada na Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, no artigo 179, inciso V, que determinava que “ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública.” Verifica-se, pois, que não houve nenhuma referência a liberdade de consciência. Já a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, no artigo 72, § 3º, diz que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e 6

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The International Coalition for Religious Freedom is a non-profit, non-sectarian, educational organization dedicated to defending the religious freedom of all, regardless of creed, gender or ethnic origin. ICRF acknowledges with gratitude that, at the current time, it receives the bulk of its funding from institutions and individuals related to the Unification Church community. Disponível em: . Acesso em: 23 jul 2014. 7 The  International Association for Religious Freedom (IARF) is a UK-based charity working for freedom of religion & belief at a global level. The world’s oldest global interreligious organization, we have a century-plus history of encouraging interfaith dialogue & tolerance, with member groups in 25 countries, from faith traditions including Buddhism, Christianity, Hinduism, Islam, Shinto & Zoroastrianism. With member organisations, regional co-ordinators, and national chapters in 16 countries, IARF is well placed to obtain local perspectives on religious freedom concerns and issues. Disponível em: . Acesso em: 23 jul 2014. 8 Religious Freedom Watch  exposes people who are known to attack religious groups. Religious Freedom Watch believes in helping persons of all religions and does not discriminate or advocate violence against persons of any religion. Disponível em: . Acesso em: 23 jul 2014. 9 Disponível em: < http://www.parlamento.pt/Legislacao/>; Acesso em: 07 jul 2014.

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adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926). O § 5º, do referido dispositivo constitucional afirmava que “os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral publica e as leis. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)” A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, no artigo 113, n.5 determinava que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costumes. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil.” Já a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, no artigo 122, n.4, dizia que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes;” Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, a liberdade de consciência e de crença foi tratada no artigo 141, § 7º: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.” A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 tratou o tema no artigo 150, § 5º, afirmando que “é plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.” O mesmo texto foi mantido no artigo 153, § 5º da Emenda Constituição n.1 de 1969. Estabelece a Constituição da República de 1988 em seu art. 5º, VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Embora a liberdade de consciência e a liberdade de crença (ou religiosa) constem no mesmo dispositivo constitucional e possuam certas semelhanças, os mesmos distinguem-se. Por liberdade de consciência (ou pensamento) podemos entender pela faculdade de o indivíduo formular um juízo sobre si mesmo e sobre o que o circunda e, por liberdade religiosa a faculdade de aderir a um culto religioso, a uma fé específica e manifestá-la ou, até mesmo, de abster-se de crer ou professar. A liberdade de crença (religiosa) é um direito complexo (cluster right) visto a partir de um viés subjetivo (direitos subjetivos individuais: titulares pessoas físicas e direitos subjetivos das pessoas jurídicas: igrejas e confissões religiosas) e viés objetivo, revestindo-se de uma dupla dimensionalidade (dimensões negativas e positivas), vinculando, pois, os órgãos estatais e os particulares. Esta liberdade religiosa é diferente da liberdade de consciência.

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O Direito Fundamental à Liberdade de Crença

A liberdade religiosa pode, grosso modo, ser classificada em: (a) liberdade de exercer práticas individuais específicas; (b) liberdade de exercer práticas coletivas; (c) liberdade de determinadas entidades de proteger locais e objetos sagrados; e (d) liberdade de não ter religião. Ora, a liberdade religiosa não é um direito absoluto. Dessa forma, este direito pode ser relativizado, encontrando limites em outros direitos fundamentais, bem como na dignidade da pessoa humana. Nessa seara, José Afonso da Silva afirma: “Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a  liberdade  (ou o  direito) de  mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o livre agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.”10 No Estado brasileiro a laicidade é presente e encontra fundamento no artigo 19 da nossa Carta Magna, onde: “É vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; A laicidade não é apenas uma questão afeta às religiões. O Estado não assume qualquer tipo de religião ou crença filosófica, sem embargo de optar por valores éticos considerados juridicamente protegidos. Não caberia ao Estado posicionar-se por esta ou aquela tendência. É natural que as ideologias e as crenças influam na sociedade e na elaboração das leis; mas não cabe ao poder público assumir este ou aquele conjunto de ideias ou crenças religiosas, de modo direto e explícito. Desta forma, o Estado não está autorizado a adotar uma religião oficial, nem impor qualquer crença, devendo respeitar e tratar todos os indivíduos igualmente, consequentemente o Estado não poderá legislar com base em pautas ditadas por representantes dessa ou daquela religião. A liberdade de crença foi analisada na obra de Canotilho, sob a perspectiva dos direitos fundamentais: “A quebra de unidade religiosa da cristandade deu origem à aparição de minorias religiosas que defendiam o direito de cada um à verdadeira fé. Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a ideia de tolerância religiosa e a proibição do Estado em impor ao foro íntimo do crente uma religião oficial.”11 10

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SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 248. 11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Livraria Almeida, 1993, p. 314.

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A liberdade de crença autoriza o indivíduo a escolher uma religião, bem com a não escolher nenhuma. Essa escolha não poderá ser influenciada por ações estatais. Neste contexto, é ofensivo a liberdade de crença o emprego de símbolos religiosos em repartições públicas. Vejamos o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “Limitações à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas. Restrição que há de estar explícita ou implicitamente prevista na própria Constituição.” (ADI 869, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 4-899, DJ de 4-6-04).12 Do outro lado dessa discussão encontramos o Poder Empregatício, bem conceituado por Maurício Godinho Delgado quanto ao “estudo do fundamento de um instituto ou fenômeno jurídico concerne à pesquisa acerca do fato jurídico que responde pela origem desse fenômeno ou instituto e que lhe confere validade no campo do Direito. O fundamento jurídico do poder empregatício desdobra-se em duas dimensões: a doutrinária, através de pesquisa busca a efetiva fundamentação do poder empregatício e a legal, que tem por finalidade investigar os textos legais vigentes acerca de título e substrato jurídicos ao fenômeno do poder empregatício”.13 Segundo Godinho, “o Poder Empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego”.14 A relação de emprego, ou o vínculo empregatício, é um fato jurídico que se configura quando alguém (empregado ou empregada) presta serviço a uma outra pessoa, física ou jurídica (empregador ou empregadora), de forma subordinada, pessoal, não-eventual e onerosa. Ter um emprego, não só constitui o principal recurso com que conta a maioria das pessoas para suprir as suas necessidades materiais, como também lhes permite plena integração social. Por isso, a maior parte dos países reconhece o direito ao trabalho como um dos direitos fundamentais dos cidadãos. Emprego é a função e a condição das pessoas que trabalham, em caráter temporário ou permanente, em qualquer tipo de atividade econômica, remunerada ou não. Por desemprego entende-se a condição ou situação das pessoas incluídas na faixa das “idades ativas” (em geral entre 18 e 65 anos), que estejam, por determinado prazo, sem realizar trabalho em qualquer tipo de atividade econômica, remunerada ou não. Após breve explanação dos institutos da Liberdade de Crença e do Poder Empregatício, abordamos com mais clareza problemas recorrentes no âmbito trabalhista no que diz respeito a esta liberdade. 12

Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2015. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12 ed. São Paulo: LTR, 2013, p.391. 14 Ibid., p.395. 13

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Casos abordados Observamos, especialmente em Tribunais Superiores, que a prática de ofensa a liberdade a crença é mais frequente do que imaginamos. Diversas questões suscitam controvérsias, clamam soluções e aplicabilidade de princípios e garantias constitucionais. A exemplo dessas questões, temos os adventistas do sétimo dia que tiram o dia de descanso, de guarda, do pôr-do-sol das sextas feiras ao pôr-do-sol dos sábados. Desta forma, os mesmos não trabalham, não realizam provas, como também qualquer outra atividade em decorrência da religião. Cabe-nos esclarecer que situações como essa no âmbito trabalhista devem ser resolvidas pelo que ficou estabelecido pelo empregador, de forma que o candidato a uma vaga de trabalho tem o direito de não revelar sua crença religiosa ao ser indagado, por exemplo, em uma entrevista pessoal, pois a prática religiosa não pode constituir obstáculo para acesso ao trabalho. Mas por outro lado, se estivermos diante uma questão, como essa, do adventista do sétimo dia, é importante ressaltar que ele deverá levar ao conhecimento do empregador, já que sua jornada de trabalho não poderá alcançar os sábados. Observamos que uma relação aberta entre empregado e empregador, torna o ambiente de trabalho mais saudável, e a falta no trabalho, no caso dos adventistas sem a autorização do empregador constitui falta grave. Nada impede que o empregado, durante a sua empreitada no trabalho, venha aderir a uma nova religião e esta deverá ser comunicada ao empregador se de alguma forma a mesma interferir em sua jornada de trabalho normal, cabendo o empregador aceitar ou não essa mudança. O artigo 468 da CLT prevê: “Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.” Recentemente foi editada a súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho, onde: “Dispensa discriminatória, presunção, empregado portador de doença grave, estigma ou preconceito terá direito a reintegração no trabalho.” Súmulas como essas são específicas, criadas para atender a casos específicos, mas não podemos deixar de cogitar a possibilidade de aplicação das mesmas em casos análogos, como por exemplo, a aplicação dessa súmula às pessoas que de alguma forma sofrem preconceito e discriminação em decorrência da religião escolhida. Outro caso encontrado no site do Tribunal Superior do Trabalho faz referência a uma determinada empresa que na figura de sua empregadora,

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obrigava seus funcionários a participar de sessões de exorcismo e pregações com um pastor. Por inúmeras vezes os empregados foram repreendidos a se libertarem e se converterem a religião da empregadora. Além disso, a empregadora insinuava que sua empregada procurava por bruxaria e maldade, que deveria abandonar a igreja católica e se converter a igreja evangélica. A empregada revoltada entrou com uma ação e recebeu a título de indenização o valor de R$ 5 mil reais.15 Outra determinada empresa admitiu uma funcionária muçulmana, que tinha por hábito o uso do véu islâmico, essa mesma funcionária alegou que por diversas vezes foi tratada de forma discriminatória, debochada, sendo sempre referida como: “àquela do véu” ou “àquela do pano na cabeça”. Essa funcionária procurou pelo judiciário, mas não obteve o reconhecimento do dano moral, pois sua dispensa não ficou caracterizada em decorrência do uso do véu.16 Outro caso bastante conhecido é o caso de um cidadão muçulmano, ameaçado pelo Talibã, que se recusando a pagar propinas ao grupo, ofereceu R$5 mil dólares para ser traficado para outro país. Esse mesmo muçulmano foi traficado e trazido ao Brasil e convidado por uma empresa para realizar a degola de frangos. O curioso dessa história é que como ele, a degola só poderia ser feita por muçulmanos, já que o procedimento se denominava halal (selo requerido, exigido pelo povo islâmico), ou seja, como a carne era preparada para o consumo do povo islâmico, deveria passar por todo um ritual para a consequente exportação e consumo. A cada minuto eles eram obrigados a degolar 75 frangos e antes de cada degola eram obrigados a repetir a seguinte frase: “Em nome de Deus, Deus é maior”, desta forma, eles acreditavam que os frangos eram poupados da dor e preparados para o consumo.17 Outra situação encontrada foi a de um empregado que dizendo não saber da condição de seu empregador de judeu, desenhou uma suástica (símbolo nazista) em uma folha de papel e demitido por justa causa, em grau de recurso, ficou mantida a justa causa, devido ao vexame, discriminação, constrangimento e tristeza, causada ao empregador.18 15

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo: RR – 400-79.2010.5.09.004. Relator: Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. Sessão 11/09/2013. Disponível em: < http://www.tst.jus.br/> Acesso em: 20 abr 2015. 16 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo: RR – 37200-77.2006.5.02.0025. Relator: Ministro Aloysio Corrêa da Veiga. Sessão 12/09/2013. Disponível em: < http:// www.tst.jus.br/> Acesso em: 20 abr 2015. 17 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo: RO – 578-40.2010.5.09.0000. Relator: Ministro Pedro Paulo Manus. Sessão 24/05/2011. Disponível em: < http://www. tst.jus.br/> Acesso em: 20 abr 2015. 18 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo: RR – 510.739/98.4. Relatora: Ministra Eneida M. C. de Araújo. Sessão 12/09/2001. Disponível em: < http://www.tst. jus.br/> Acesso em: 20 abr 2015.

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Nos anos 60, no Brasil, um antigo jogador, Afonsinho do Botafogo, foi proibido de continuar jogando futebol em decorrência de sua barba grande. Ele preferiu insistir na situação e acabou tendo a carreira abreviada. Cabe esclarecer que se o problema da barba disser respeito à higiene, é válido que haja restrições, e isso pode até constar do contrato de trabalho, como no caso de um cozinheiro de um restaurante por exemplo. Fora dessa hipótese, ele pode se apresentar do jeito que quiser, e o empregador não pode negar admissão a um trabalhador por causa de um piercing, por exemplo, ou a uma mulher grávida, ou a uma aeromoça com idade mais avançada.19 Em entrevista especial dada pelo Ministro do TST, o Sr. Alexandre Agra Belmonte, no portal do Tribunal Superior do Trabalho, vários questionamentos são levantados a respeito do instituto da liberdade, dentre essas liberdades, a de crença, um dos posicionamentos do Ministro é de que seria interessante que existisse como no Código Português de 1976, uma regulamentação sobre o direito à informação para admissão no trabalho, o que não existe no nosso país, o que caberia ao empregado informar, o que o empregador não poderia exigir e o que ele não pode dizer por ser aspecto de vida íntima. O empregado poderia dizer desde logo qual é a sua religião, e manifestar o desejo de folgar no dia dedicado por ela ao descanso, e a empresa se ajustaria a isso. Nada impediria, por exemplo, que o judeu usasse o quipá no dia correspondente a sua fé.20 Na concepção do Ministro a solução destes conflitos estaria disposta no material jurídico disponível, usando principalmente o tão falado e discutido, Princípio da Proporcionalidade. Verificamos na hipótese qual direito deve prevalecer, e o ajustamos ao Princípio da Razoabilidade. São critérios juridicamente importantes para resolução dos conflitos, que acabam correspondendo a uma lógica, e não é necessariamente a minha ou a sua. Esse é um critério seguro porque parte de um ponto de vista neutro. A composição de todas essas ofensas à liberdade do trabalhador, que não são poucas, se dá através da indenização por danos morais. Se houver discriminação, fica a opção para o trabalhador, pedir a reintegração ao emprego ou indenização em dobro, isso sem prejuízo do dano moral.

Conclusão Concluímos que a liberdade de crença é um direito constitucional, garantido por nossa Constituição da República, onde cabe aos cidadãos realizarem a escolha de qual religião professar sem qualquer tipo de restrição ou preconceito. 19

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Disponível em: . Acesso em: 15 de abril de 2015. 20 BELMONTE, Alexandre Agra. A Liberdade de Expressão no Trabalho. Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2015.

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Conforme artigo 5º, inciso VIII, ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. A possibilidade de o indivíduo transmitir a sua mais íntima reflexão acabou por originar outras espécies de liberdades, como a religiosa, o que antigamente não era permitido, já que a pessoa humana era proibida de até mesmo exteriorizar o seu pensar e mais ainda, de divulgar a sua fé. Apesar da estranheza que pode nos causar, o assunto é mais recorrente do que imaginamos. Inúmeras situações de preconceito e discriminação são encontradas nos tribunais superiores, principalmente decorrentes no ambiente de trabalho. Encontramos situações em que empregadores disponibilizam esses tratamentos discriminatórios sob seus empregados, como também o inverso, onde empregados aproveitam a oportunidade e colocam seus empregadores em processo vexatório. Cabe esclarecer que nosso país é um país laico, ou seja, não adota religião oficial, muito pelo contrário, é um país onde qualquer religião é aceita e não deve sofrer qualquer tipo de discriminação ou obstáculo na sua difusão. Sendo vedada a União, aos Estados, ao DF e aos Municípios embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com seus representantes relações de dependência ou aliança. Diante tais problemas, encontramos parte da solução destes em ações envolvendo dano moral, assédio moral na Justiça do Trabalho. A aplicação do Princípio da Proporcionalidade se faz mais que presente, verificando-se no caso concreto qual direito deve prevalecer, ajustando ao Princípio da Razoabilidade. São critérios necessários e fundamentais na resolução de conflitos, como estes. Estamos certos, que uma relação de trabalho saudável, aberta entre empregado e empregador, sem preconceitos ou amarras tornariam situações de preconceito e discriminação cada vez mais raras.

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição Federal da República (1988), 2012. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.  Direito constitucional. 6.ed. Coimbra: Livraria Almeida, 1993. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12.ed. São Paulo: LTR, 2013. KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3. MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.409. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2000, p. 111. ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTR, 2012.

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O Servidor Público Pós-moderno: a Gestão por Competências na Receita Federal do Brasil Cleber Magalhães1 Resumo A emergência de um novo Estado, do tipo schumpeteriano de competição, leva à criação de um novo servidor público no Brasil. Assim, as mudanças ocorridas na Administração Tributária Federal desde a década de 1990 vêm sendo feitas com o intuito de adequar a Receita Federal do Brasil e seus servidores, em especial os Auditores-Fiscais, ao pós-fordismo. Nesse viés, na busca de uma “vantagem competitiva”, é introduzida a gestão por competências, uma nova “moda” na gestão de pessoas na iniciativa privada, e agora, também na administração pública. Palavras-chave: Servidor público; gestão por competências; Receita Federal do Brasil; pósfordismo. Substract The emergence of a new state, the Schumpeterian of competition type, leads to the creation of a new public worker in Brazil. Thus, the changes in the Brazilian Federal Tax Administration since the 1990s have been made in order to adapt the Federal Revenue of Brazil and your workers, especially the AFRFB, to post-Fordism. In this bias, the search for a “competitive advantage”, is introduced to management competenties, a new “fashion” in the management of people in the private sector, and now also in public administration. Keywords: Public worker; management skills; Federal Revenue of Brazil; post-fordism.

Novos Tempos – novo servidor público As mudanças, realizadas ou propostas, na legislação federal referentes à Administração Tributária Federal seus servidores desde a década de 1990 foram feitas com o intuito de adequar a Receita Federal do Brasil (RFB) e seus servidores, em especial os Auditores-Fiscais (AFRFB) ao pós-fordismo. No mesmo caminho, a estrutura interna da RFB e a própria cultura da instituição também foram adequadas à nova “missão” esperada da Receita (MAGALHÃES, 2011). A Administração Pública não tinha como ficar imune à chamada “onda neoliberal” que varreu o mundo a partir de 1980 e o Brasil a partir da década de 1990. Para a ideologia dominante era e é fundamental que essa importante parte da sociedade, em especial no Brasil, onde ainda é tão forte a presença o 1

Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Estado, também seja adaptada ao pós-fordismo, a fim de remover os obstáculos que ainda emperram a maximização dos lucros nesse momento da produção capitalista. O Estado desses novos tempos também precisava se adequar aos novos formatos do capitalismo. Houve, então, uma rearticulação dos espaços econômico e político na busca de uma nova forma de reprodução do capitalismo, agora também ampliada no caminho da financeirização. O Estado passa a ter como característica uma transição do welfare-state (Estado keynesiano de bem-estar social) para um Estado que se apresenta como pró-trabalho (workfare State), no qual se expressam com mais clareza os interesses do Capital. O Estado keynesiano de bem-estar social buscava, economicamente, a efetivação do pleno emprego na economia nacional, utilizando-se de mecanismos de controle que se atinham, basicamente, às suas fronteira. Ao mesmo tempo, ele atuava socialmente no sentido de sustentar um mercado de consumidores que apropriassem o desenvolvimento econômico fundado numa economia de viés fordista. Ou seja, o intenção era o estímulo ao crescimento de economia de consumo de massa, que sustentasse a ampliação da indústria e, num círculo virtuoso, pudesse partilhar com todos os cidadãos os benefícios do crescimento. Há que se ressaltar, ainda, que o Estado de bem-estar social tinha o nível internacional apenas como suporte à acumulação capitalista. A política macroeconômica era fundeada no Estado Nacional. Mesmo as economias historicamente “liberais” como os EUA e a Grã-Bretanha, renderam-se à primazia dos aparelhos estatais. Foi aceito que o Estado atuasse, no mínimo, como árbitro junto ao mercado e desse suporte à economia onde o capital privado não tivesse conduções de se sustentar (JESSOP, 1998). Nesses novos tempos do capitalismo, assistimos a entrada em cena de um novo tipo de regime de direção estatal: o Estado de Competição Schumpeteriano. Josef Schumpeter foi um importante economista austríaco do século passado, para quem o conhecimento e a inovação eram os reais motores da mudança e do desenvolvimento da economia. A difusão da inovação, com a criação de empresas para explorar, na prática, as novas mercadorias, seria o único motor capaz de gerar um excedente na economia e consequente geração de lucro. Com a inovação haveria, inicialmente, um monopólio que geraria altos lucros para o empreendedor pioneiro. Para a criação dessa nova estrutura para exploração da inovação são necessários vultosos investimentos (CRUZ, 1998). Cada revolução tecnológica produz uma grande substituição de tecnologias por outras. Há a modernização de equipamentos, processos e formas de operar até então vigentes. Ocorrem profundas transformações nos hábitos, nas organizações e nas competências existentes. Há uma explosão do mercado financeiro, com entrada em cena de novos atores, sacudindo o mundo estabelecido (PEREZ). Assim, é de fundamental importância o financiamento pelo sistema financeiro dessa fase de expansão da economia. Com o tempo, a inovação deixa de ser novidade e é absorvida pelo mercado, com muitos se enveredando pelo mesmo caminho de produção. A taxa de lucro tende a cair e começam as quebras

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e falências. É um ciclo que se acaba, na espera de uma nova grande inovação, que permita novo impulso na acumulação. A terra arrasada anseia por novidade. É o que Schumpeter chamou de “destruição criativa”. “A abertura de novos mercados [...] e o desenvolvimento organizacional [...] ilustram o mesmo processo de mutação industrial que incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição Criativa é o fato essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que têm que viver todas as empresas capitalistas” (SCHUMPETER, 2012, p. 112).

O Estado schumpeteriano de competição teria como meta priorizar estratégias para aumentar as “vantagens competitivas” do seu território tais como população, infraestrutura, instituições, agentes econômicos, etc., em relação aos outros países. O objetivo agora é garantir que o capital com base em suas fronteiras, mesmo que sua atuação se dê mais no exterior, tenha vantagens no mercado internacional. Essas vantagens seriam dadas pela promoção de condições econômicas e extra-econômicas que forneçam base para esse diferencial. Para isso, o Estado deve adaptar-se e atuar para adequar todos os agentes socioeconômicos para os novos tempos e os novos papéis necessários à manutenção ou incremento dos diferenciais em comparação com os outros estados (JESSOP, 2002) Essa emergente forma de estado busca a promoção da flexibilidade em todos os níveis, aliada a um espírito de inovação e à valorização da competitividade. Essa nova política pede uma atuação não apenas no campo macroeconômico, mas também em um amplo leque de fatores extraeconômicos. Há um deslocamento do paradigma fordista de produção em massa, em escalas para uma produção diversificada, flexível e, num nível mais profundo, ideológico, de difusão de um “espírito empresarial” na sociedade. É a valorização do empreendedorismo. Às vezes mais agressivamente, às vezes mais sub-repticiamente do que antes, todos os formatos institucionais, relações sociais e de trabalho, recursos e valores extra-econômicos estão sendo pressionados a se submeter à nova lógica do capital. O estado serve para conduzir o ritmo e o processo dessa rearticulação do econômico e do extraeconômico. As estratégias econômicas se tornam mais e mais envolvidas com implicações sociais e culturais no caminho da flexibilização e inovação. Sempre no sentido de ajudar a promover a acumulação (JESSOP,1998). Os autores neoschumpterianos consideram essa nova era como estabelecida com base no paradigma da tecnologia da informação e na superação da antiga indústria sustentada na economia em escala, no consumo de massa. Para autores como Freeman e Perez haveria um longo e harmonioso período de crescimento sustentado e, para tanto, seria necessária a adequação das instituições, pessoas e comportamentos a fim de permitir esse novo período de prosperidade (CARDOSO e DURAND).

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Há que se ressaltar, entretanto, que mesmo autores caracterizados como neoschumpeterianos, depois de alertarem para que modelos de estado baseados no Welfare State não seriam mais alternativas aceitáveis para o mundo do século XXI, reconheceram, com o tempo, que o novo estado estabelecido na inovação e no conhecimento “se ‘baseia’ em larga medida na procura de novas formas de acumulação do capital financeiro” (MURTEIRA, 2010, p. 17). No mesmo caminho, em consequência dessa nova visão de estado “de competição”, as políticas sociais estabelecidas pelo estado também devem ser adaptadas à nova ordem de subordinação à competitividade estrutural e flexibilização, em especial no mercado de trabalho. As políticas sociais tendem a ter um viés “pró-trabalho”. Os gastos sociais tendem a ser reduzidos quando não relacionados diretamente com o aumento da flexibilidade no trabalho e/ou no melhoria na competitividade do país frente a seus concorrentes internacionais. O conjunto dos direitos sociais surgidos do compromisso de classes fordistas também tende a ser reduzido ou liquidado. Economicamente, o aumento da importância do nível internacional, conjugado com a financeirização da economia em escala mundial nunca vista, possibilita a maior facilidade de uma mobilização internacional por parte do capital contra a queda tendencial da taxa de lucro. Além disso, permite a construção de alianças estratégicas e ajuda à reorganização de blocos de poder. O Estado keynesiano de bem-estar social é criticado com o incapaz de lidar com os problemas criados por ele mesmo, como, por exemplo, o “déficit da previdência”, e são exigidas reformas urgentes para corrigi-lo. Assim, aumenta o espaço para novas formas de governança, com parcerias público-privadas, auto-regulações, redes de informática em nível decisório, etc. O estado começa a perder a primazia como local onde são geradas as políticas econômicas, tecnológicas e sociais no interesse da acumulação de capital. Ao mesmo tempo aumentam as pressões decorrentes do choque entre o estabelecimento de política claramente favorável à acumulação do capital e a falta de legitimidade política e coesão social necessárias para essa mudança (JESSOP, 1998). Há necessidade, então, de buscar a legitimação desse novo estado, seja na forma de “consensos” estabelecidos supranacionalmente, por intermédio de organizações internacionais (OCDE, OMC, Fórum Econômico Internacional, etc.), seja na disseminação ideológica da necessidade de adequação do estado à nova ordem mundial. Ocorre uma tendência geral ao esvaziamento do Estado Nacional, inclusive com perda de soberania, com a elaboração de normas transferidas para organismos supranacionais e, posteriormente, vinculando os próprios e Estados a essas normas. No mesmo caminho, há a desestatização do sistema político, com o deslocamento, em vários níveis, da autoridade formal do governo para a governança. Há o transposição do poder e favorecimento das parcerias entre organizações governamentais, para-governamentais e nãogovernamentais, onde, muitas vezes, o Estado se torna apenas o primeiro entre

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dos pares. Além disso, esse novo modelo de governar “poderia também ser parte de uma luta política mais complexa, voltada para impedir a instauração de um controle democrático popular sobre as decisões cruciais” (JESSOP, 1998, p. 34). Por outro lado, a ampliação do espectro do atores nas decisões estatais com a governança, dá ao governo maior amplitude em sua influência e capacidade de reunir conhecimentos e recursos de outros parceiro, a fim de assegurar seus objetivos. Mesmo a formulação de políticas internas é fortemente influenciada pelo contexto internacional, incluindo um amplo leque de fatores transnacionais. Agentes e instituições estrangeiras são, agora, considerados importantes fatores na criação, implementação e desenvolvimento de políticas públicas, a ponto de meras classificações em agências internacionais serem capazes de mudar o rumo de políticas econômicas de toda uma nação. Essa tendência cresce cada vez mais com o maior envolvimento dos estados na busca por uma melhor competitividade internacional. Em suma, há a tentativa de gestores, servidores e forças econômicas em transformar o “Estado keynesiano de bem-estar social” em um “Estado schumpeteriano de competição”, para redimensionar e rearticular suas atividades, desenvolvendo novas formas de governo e governança e, assim, resolver os problemas que, na sua visão, o Estado de bem-estar não consegue mais resolver e também diminuir as falhas do mercado. Há que se ressaltar que não há nada de automático nessa transformação. Existe um esforço de mobilizar apoio para uma visão hegemônica para esse novo projeto de estado e, consequentemente, nova rodada de acumulação de capital. Obviamente, para cada tendência de mudança apresentada acima há uma contratendência que transforma seu significado e diminui seus efeitos na realidade. Assim, ao emergente Estado de competição schumpeteriana se opõem características e interesses ligados ao Estado keynesiano de bem estar social, nas diferentes esferas de atuação estatal (JESSOP, 2002). Todo esse cenário abriu a possibilidade para o aparecimento do novo auditor-fiscal, mais adequado aos novos tempos, não mais baseados no fordismo, mas no pós-fordismo. Um AFRFB pós-moderno, que abrisse mão de sua autoridade, de seu poder de polícia, e se contentasse me ser um executor das ações governamentais de mera arrecadação, realizadas à mercê dos interesses dos poderosos que estiverem exercendo o governo. A emergência desse novo Estado pró-trabalho, schumpeteriano de competição, obriga a criação de um novo servidor público. No caso específico da Receita Federal do Brasil, vemos a tentativa de transformar uma autoridade administrativa, com competências e atribuições estabelecidas pela Constituição Federal, leis ordinárias e legislação infralegal, o AuditorFiscal da Receita Federal do Brasil, em um trabalhador-servidor adaptado aos novos tempos: flexível, multitarefa, “autônomo”, com o trabalho metrificado, sujeito a metas, etc.

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A gestão por competências As publicações sobre o tema gestão por competências ganharam força na década de 1990, em especial com o surgimento do artigo The core competence of the corporation. Nesse artigo embrionário sobre a gestão por competências, os autores defendem a necessidade de se dar maior importância às competências principais existentes na organização. Para tal seria fundamental a valorização do ser humano, o maior capital da empresa e permitir uma maior interação entre os diversos setores, para que fossem quebradas as divisões em departamentos quando essas fossem impeditivas ao fluxo de desenvolvimento e criação de competências dentro da instituição. Assim, um novo gerente era necessário, diferente daquele que existia até então. O chefe do final do século XX em diante deveria ser capaz de perceber as competências mais importantes da organização e ajudar a desenvolvê-las no intuito de aumentar as vantagens comparativas em relação aos seus concorrentes. (PRAHALAD e HAMEL, 1990) A gestão por competências é um modelo de administração das empresas ou instituições que busca organizar a produção com base em métodos que visam extrair das pessoas as competências necessárias ao ótimo rendimento dessas organizações. Busca-se, então, identificar, mobilizar e desenvolver essas competências da melhor maneira possível. No Brasil o final da década de 1990 vê o crescimento do interesse em gestão por competências em pesquisadores e gestores. Na primeira década do século XXI diversos estudos foram realizados sob as mais diferentes visões. No meio empresarial, por sua vez, mais e mais companhias buscam modelos de gestão influenciados pelo tema. Tanto as privadas quanto aquelas com menor ou maior participação estatal. (BRANDÃO, 2012) Em 2006, a própria Administração Pública Federal edita o Decreto nº 5.707, em 23 de fevereiro, estabelecendo que as instituições pública federais deverão estabelecer planos de capacitação com base na avaliação de competências. No próprio decreto há a definição de gestão por competência: “gestão da capacitação orientada para o desenvolvimento do conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao desempenho das funções dos servidores, visando ao alcance dos objetivos da instituição.” O trinômio “conhecimentos, habilidades e atitudes”, o famoso (entre os estudiosos do tema) “CHA”, é o cerne da gestão por competências. Os “conhecimentos” (knowledge) são a bagagem de saberes que a pessoa foi obtendo ao longo de sua vida. As “habilidades” (know-how) caracterizamse pela dimensão de efetivar na prática a utilização dos conhecimentos. É a capacidade de fazer. “Atitudes” (attitudes), por sua vez, são revestidas de um arcabouço psicológico; é a vontade de fazer, o querer-fazer. As competências têm essas três dimensões, que são necessárias para a sua real efetivação na organização por parte dos indivíduos. Quando há lacunas em qualquer uma dessas dimensões, a competência e, consequentemente, a performance do funcionário/servidor se afasta do ótimo e a empresa perde competitividade, ou vantagem comparativa. (DURAND, 2012)

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A primeira diretriz da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal é “incentivar e apoiar o servidor público em suas iniciativas de capacitação voltadas para o desenvolvimento das competências institucionais e individuais.” Além disso, é estabelecido que um sistema de gestão por competência é instrumento dessa mesma Política (BRASIL, 2006). Paralelamente, várias organizações governamentais já começavam a se adequar a essa nova modalidade de gestão de pessoas, como, por exemplo: Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel); Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq); Banco do Brasil; Banco Central; Caixa Econômica Federal; Câmara dos Deputados; Casa Civil da Presidência da República; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte); Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); Fundação Luís Eduardo Magalhães/BA; Ministério da Justiça; Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae); Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro); Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; Tribunal de Contas da União (TCU), etc (PIRES, 2005). A gestão por competência virou uma febre no mercado, sendo considerada uma “boa prática”, modelo a ser seguido por aquelas instituições que querem se manter antenadas com o que há de mais moderno na teoria de administração de empresas. Livros, artigos, seminários, códigos de governança, disciplinas em faculdades, práticas administrativas...inúmeros são os exemplos de como essa nova visão da gestão de pessoas invade o imaginário da ideologia do bom administrador moderno (ou pós-moderno/pós-fordista). O primeiro momento necessário à gestão por competências é a criação ou a existência de uma estratégia organizacional, que defina os objetivos da instituição. Com base nessa estratégia, traça-se um mapa ou diagnóstico das competências existentes na organização e quais são aquelas necessárias para uma performance ideal. A diferença entre as competências existentes e as necessárias formam as lacunas (gaps) que devem ser atacadas pela organização. Assim, a Gestão por Competências é um sistema de gestão de pessoas desenvolvido para orientar profissionais para dar o melhor retorno à empresa, buscando eliminar as discrepâncias entre o que eles são capazes de fazer (competências atuais) e o que a organização espera que eles façam (competências desejadas). Finalmente, como uma última etapa da gestão com base em competências temos a retribuição. Nesse momento, a organização retribuiria aos seus funcionários/ servidores/parceiros mais destacados o esforço feito em prol da melhoria da competitividade dessas organizações no mercado. É possível reconhecer ou premiar as unidades, equipes ou pessoas que mais se destacassem para o alcance dos objetivos da empresa. Dessa forma, todos se sentiriam estimulados a buscar a diminuição das lacunas observadas entre as competências existentes e aquelas necessárias para a organização (BRANDÃO, 2012).

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Na Administração Publica em geral, e mais especificamente na Receita Federal do Brasil, a Gestão por Competências é a “ultima moda” no trato com os servidores. Como tantas outras ideias impostas à Administração Pública, essa proposta, como vimos, tem origem na esfera privada. A base da ideia naquele ambiente de trabalho é o desenvolvimento e inovação de praticas de gestão de modo a garantir a sobrevivência da empresa num mercado cada vez mais competitivo. A intenção é que essas modernas práticas de gestão confiram vantagem competitiva sobre os demais concorrentes, isto é, uma situação de superioridade, em termos de desempenho, de uma empresa em relação aos seus concorrentes. Para aqueles que cuidam a gestão de pessoas na RFB, a dinâmica das estratégias de gestão das empresas em seu esforço por se manterem no mercado que equivaleria ao esforço das instituições públicas por atenderem aos anseios da sociedade, cumprindo seu papel. Essa nova prática de gestão de pessoas na RFB se insere dentre tantas outras ações para enquadrar o servidor no novo papel que é exigido do trabalhador no moderno capitalismo. Nesse sentido, o auditor-fiscal precisa ser remodelado para se tornar flexível, multitarefa, autônomo, etc. Nesse mesmo contexto, segundo a apostila do curso “Gestão por Competências”, realizado em 2014 exclusivamente para servidores da Receita Federal, está exposto entendimento de que há “uma redução acentuada das diferenças entre gestão pública e privada, com a adoção, pela administração pública, de sistemas de gestão desenvolvidos e consagrados pela iniciativa privada” (ESAF, 2014). O discurso que se hegemoniza na Receita Federal do Brasil absorve a expressão “vantagem competitiva” que conferiria não só “à empresa, mas também à instituição pública, um status semelhante ao monopólio perante empresas ou instituições concorrentes”. Nessa fala não é percebido que objetivos da empresa, típicos da iniciativa privada, são transplantados para a instituição pública com muito pouca ou mesmo nenhuma preocupação em adaptar às reais necessidades dessa última. “A conquista e manutenção da tal vantagem competitiva são um desafio que se coloca às empresas desde o advento da era industrial” (ESAF, 2014). Não se critica a argumentação de por que à instituição pública seria interessante buscar um status de monopólio. No caso da Receita Federal, então, as palavras soam ainda mais fora de propósito, haja vista que, legalmente e constitucionalmente, só a RFB pode tratar das questões relativas a tributos federais. Por fim, quando reconhece que não há, no caso do setor público, sentido em falar de concorrência entre instituições, o texto da apostila afirma que “a pressão da concorrência é substituída pela pressão da sociedade por serviços de maior qualidade, por mais transparência, pela utilização eficiente e eficaz dos recursos públicos, enfim, pelo cumprimento da missão e alcance dos objetivos institucionais” (ESAF, 2014). Em nenhum momento, entretanto, é explicada

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como se pode criar essa correlação. Pelo contrário, podemos encontrar muitos elementos que tornam a pressão pela concorrência muito diversa do cumprimento da missão dos objetivos de uma instituição pública. Inicialmente, há de se ressaltar que o fim de qualquer órgão público é o bem comum, o benefício da sociedade como um todo. A pressão da concorrência entre as empresas no mercado exige que a produção seja realizada pelo menor custo, gerando o maior lucro, no menor espaço de tempo possível, com a maior atratividade possível para o consumidor. A instituição pública, por seu turno, não busca lucro. A meta é prestar um serviço de qualidade para o cidadão, contribuinte. O serviço prestado pelo Estado precisa ser de qualidade. A ânsia por celeridade advinda dos novos interesses do mercado, já absorvidos e naturalizados pela sociedade traz, muitas vezes, a queda na qualidade. A empresa privada pode (e muitas vezes já o fez) trocar a qualidade pela quantidade. Por exemplo, geladeiras que há alguns anos eram efetivamente bens de uso duráveis, que ficavam muitos anos sendo utilizadas nos lares, hoje são fabricadas sem nenhum capricho em relação à qualidade. Duram pouco, mas dão altos lucros aos acionistas, em tempo recorde. Essa troca não é possível à Administração Pública. A entrega de um serviço ruim pelo Estado não traz benefício a ninguém. O cidadão não ganha, o Estado perde recursos com o trabalho mal feito e a sociedade vê o dinheiro dos tributos pagos escorrerem pelo ralo. Ainda seguindo as considerações expostas na citada apostila, o conhecimento humano é fundamental a fim de que se tinjam os objetivos propostos para a instituição. “É ele que permite que o processo de geração de inovação se mantenha ao longo do tempo”. Lá está a informação de que isso seria um grande desafio, já que “as alterações no cenário econômico, político ou social podem tornar obsoletas as vantagens já existentes” (BRANDÃO, LEITE e CARBONE, 2011, p. 17). Volta aqui a confusão entre interesses privados e públicos. Como já vimos, segundo o “processo de geração de inovação”, conceito retirado de Schumpeter, o capitalismo só se desenvolveria através de ciclos de inovação, que romperiam com uma organização de produção preexistente, que já estaria dando sinais de estagnação. Schumpeter acreditava que um empreendedor seria o responsável por utilizar a inovação para revolucionar a economia. Entretanto, mesmo quando o estado é o agente empreendedor, e isso ocorre muitas vezes, a intenção não é obter lucro, mas sim permitir a melhora das condições econômicas para toda a população. (MAZZUCATO, 2014). A Receita Federal, por seu turno, não é um órgão que deva se preocupar, precipuamente, com a inovação. O espírito empreendedor não está atrelado ao corpo da instituição. Não pode estar. Seu caráter é eminentemente fiscal. Não há busca de mercado. Assim, toda essa proposta de imposição do gerenciamento por competências na Receita Federal do Brasil se sustenta em argumento teóricos descasados com a realidade. É a imposição de um modismo do mercado a um órgão público, por excelência.

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O Servidor Público Pós-moderno: a Gestão por Competências na Receita Federal do Brasil

Conclusão A gestão por competências, malgrado todas as boas intenções daqueles que a advogam, entra no serviço público federal, em especial na Receita Federal do Brasil, como uma nova “moda”, absorvida da iniciativa privada sem a necessária adequação à Administração Pública, em especial a um setor tão sensível quanto a Administração Tributária. No ímpeto de tentar adequar o Estado ao que dele espera a nova forma de capitalismo emergente a partir do final do século XX, alguns dos princípios básicos da Administração Pública não têm a reverência necessária. Como, por exemplo, pensar em “vantagens competitivas” para um órgão estatal de administração tributária? Como já foi dito, o Estado schumpeteriano busca aumentar as “vantagens competitivas” do seu território em relação aos outros países. Entretanto, nessa ânsia de adaptação do estado aos novos ventos do capitalismo, são feitas mudanças em sua estrutura sem a devida análise. Propositadamente ou não, inexiste tempo para a maturação de ideias. As novidades advindas da iniciativa privada são incorporadas só porque são “a última moda”. Não são feitos estudos prévios para verificar se as mudanças trarão, ou não, benefícios para o estado e os cidadãos. Mais uma vez vemos as transformações do estado não tendo como objetivo o bem-comum, como deveria ser. Parece que o Estado é encaminhado para os interesses de poucos.

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Cleber Magalhães

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Processo Administrativo: Leitura à Luz do Sistema Acusatório Elbert Heuseler1 Resumo O trabalho estabelece um resumo histórico da origem do processo administrativo no Brasil, buscando qual foi a sua finalidade ao longo do tempo e qual seria o modelo e a sua finalidade nos dias atuais, levando em consideração a perspectiva do sistema acusatório como instrumento de garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, analisando os seus fundamentos justificadores como instrumento de garantia da segurança jurídica do administrado, sob a égide do Estado Democrático de Direito brasileiro. Palavras-chave: Processo administrativo; sistema acusatório; garantias constitucionais; garantismo jurídico. Abstract The work establishes a historical summary of the origin of the administrative process in Brazil, seeking what was their purpose over time and what would be the model and its purpose in the days today, taking into account the perspective of the adversarial system as an instrument of the guarantee of due process, the adversarial and the wide defense, analyzing their justificadores foundations as an instrument to guarantee the legal certainty of the administered, under the aegis of the democratic State of law. Keywords: Administrative Process; adversarial system; constitutional guarantees; garantismo.

Processo administrativo: leitura à luz do sistema acusatório Inicialmente, cumpre ressaltar ser inegável que a ordem jurídica deve ser lida e apreendida à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de modo a realizar os valores nela consagrados. Assim é porque o Direito, em sua busca incessante de dirimir os conflitos existentes no meio social, vem de encontro com a premissa de preservação e conservação da constitucionalidade, a este fato, dá-se o nome de constitucionalização do Direito. 1

Advogado. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestre em Direito. Curso de Pós-Graduação no Exterior. Pós-Graduado em Estratégia e Relações Internacionais. Especialista em Brasil Contemporâneo pela ESG. Aprovado em 1º lugar no Concurso para Professor Substituto de Direito Administrativo da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Coordenador e Professor do IBMEC Business Scholl – MBA em Direito Empresarial. Professor de Direito nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da UNESA. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Militar da UNESA. Parecerista em Direito Administrativo e Militar. Autor de Livros e Artigos em Direito Público. Assessor Jurídico do Tribunal Marítimo e da Marinha do Brasil (RM1). Vice-Presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Público. www.ipdp-brasil.org

Processo Administrativo: Leitura à Luz do Sistema Acusatório

É conveniente lembrar também que no Brasil não há um Código de Processo Administrativo, diferente dos países, em especial europeus continentais, que possuem um Código de Processo Administrativo – até porque se adotou o sistema de duplicidade de jurisdição (sistema francês) – o que, sem sombra de dúvida, dificulta a sistematização ou o estabelecimento de regras claras a serem observadas nas diversas espécies de processo administrativo, seja ele comum, disciplinar, tributário, previdenciário, militar, etc. A Lei n° 9.784/1999 positivou vários princípios e estabeleceu razoável sistematização ao processo administrativo na Administração Pública Federal sendo aplicada no âmbito da Administração direta e indireta e também aos órgãos administrativos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União.

O processo administrativo Ao pretendermos estudar o tema acerca do processo administrativo, deparamos com uma primeira necessidade, que é estabelecer o conceito de processo administrativo, de modo que possamos ter uma noção inicial de como se situa o tema na doutrina, estabelecendo uma principiologia necessária ao nosso estudo. Processo e procedimento são termos que remontam ao direito romano. O termo processo advém do latim procedere, que significa seguir adiante, ou seja, é o exercício efetivo de uma atividade destinada a um determinado fim. Juridicamente é a obtenção da proteção jurídica, mediante a intervenção de órgãos do Estado, para a pacificação das relações jurídicas já estabelecidas pelo direito material.2 Por outro lado, o procedimento é a maneira e a forma com que são desenvolvidos os atos do processo, conforme se pode depreender do conceito firmado por MOREIRA NETO.3 O tema da caracterização do processo e de sua distinção dos institutos afins, como o procedimento, é objeto da Teoria Geral do Processo. Esta, a partir da noção do monopólio da jurisdição (pressuposto do Estado de Direito), durante um certo período, considerou interdependentes as noções de jurisdição e processo, pelo que não concebia jurisdição sem processo e vice-versa. Com isso, tinha-se como conclusão necessária à ideia de que fora do exercício da função jurisdicional, ou seja, do Poder Judiciário, não poderia haver processo, apenas procedimentos.4 2

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Segundo DINAMARCO, “o processo é indispensável à função jurisdicional exercida com vistas ao objetivo de eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta da lei. É, por definição, o instrumento através do qual a jurisdição opera (instrumento para a positivação do poder)” (DINAMARCO, Cândido Rangel e outros. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 279). 3 “Procedimento é um encadeamento de atos, em que o antecedente é condicionante do consequente, convergentes para um fim comum, guardando, embora, cada um deles, sua autonomia, conformando um processo no seu todo” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 114). 4 Processo é uma operação por meio da qual se obtém a composição da lide. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 11.

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A concepção publicista do processo, onde a ação é tida como direito independente do direito material, permitiu o deslocamento da preocupação científica com foco na jurisdição para a preocupação político-social centrada na função estatal. De outro lado, a noção de processo como relação jurídica, onde são exercidos poderes, ônus, deveres e faculdades, libertou-o da perspectiva estreita de simples sucessão ordenada de fatos. Essa nova postura teve acolhida no Direito Administrativo, pois este, já liberto da visão dicotômica Administração x Administrado, passou a atentar para a necessidade de aproximação entre sociedade e Estado. Também percebeu que é necessário controlar o processo de realização dos atos administrativos, para que estes respeitem efetivamente as garantias e direitos dos cidadãos. O processo é um mecanismo de garantia, por isso sua noção é essencialmente teleológica, vinculada ao fim de todas as funções estatais, que é o interesse público. Assim, em sentido amplo, abrange os instrumentos de que se utilizam os três Poderes do Estado Judiciário, Legislativo e Executivo para a consecução de seus fins, conforme ensina DI PIETRO.5 Cada qual, desempenhando funções diversas, utiliza processo próprio, cuja fonte criadora é a própria Constituição, sentido este que lhe confere a Teoria Geral do Processo e, por isso mesmo, é o que deve ser levado em conta pelas demais áreas da técnica jurídica. Pois, é importante que exista no meio jurídico rigor conceitual. Até porque muitas são as impropriedades do uso do termo “processo”, tanto pela legislação, como pela própria doutrina, um exemplo é seu uso referindo-se aos autos processuais. Visto que o processo está presente em todos os poderes do Estado, não está nele a nota distintiva entre as funções estatais, mas nas próprias peculiaridades de cada função. Desse modo, cabe ao Direito Administrativo o estudo das peculiaridades da processualidade administrativa, que se mostram na função administrativa, não no processo. A distinção da mesma com relação à função legislativa é pacífica, pois a esta cabe editar leis e àquela cabe sua execução. No entanto, com relação ao Judiciário e a Administração existem algumas dificuldades, pois diz-se que ambos cumprem a lei. Inclusive, diz-se que a Administração cumpre a lei de ofício e o Judiciário mediante o processo. Mas, se ambos atuam através deste, não está nele, como visto, a nota distintiva. Presentemente, considera-se que a distinção reside em dois pontos básicos, que caracterizam a função jurisdicional, quais sejam: o caráter substitutivo da mesma e seu escopo jurídico de atuação do direito, os quais não estão presentes na Administração.6 A relação processual estabelecida no exercício da jurisdição é de natureza triangular, pois nela atuam as partes e o juiz. Aquelas em condição de igualdade entre si, mas não com relação ao juiz, que é estranho aos interesses das partes. 5 6

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2004, p. 528. A jurisdição pode ser conceituada como “uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça” DINAMARCO, Cândido Rangel e outros. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 129.

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O juiz atua sempre com poder de sujeição sobre as partes, que é legitimado pelas garantias do devido processo legal, especialmente as do juiz natural, de independência e imparcialidade. Porém, o caráter público da jurisdição aponta a existência de um interesse público no seu exercício e esse é o escopo de atuação do direito, de conferir eficácia e obrigatoriedade ao ordenamento jurídico do Estado. Isso especificamente para que os conflitos sejam pacificados de modo justo, pois sem justiça não se sustenta a paz. Na Administração a pacificação de conflitos não é uma questão central, o são a prestação de serviços, a ordenação de atividades privadas mediante o poder de polícia, o fomento de atividades que realizem o interesse público e outras, mas não de forma à pacificação de conflitos. Por isso a Administração não é imparcial como o juiz; é gestora do interesse público e atua na defesa deste, embora obedeça ao princípio da igualdade ou isonomia. Desse modo, maior é a importância da adoção do processo no campo administrativo. Não se pode perder de vista que não se pode mais admitir no ordenamento jurídico vigente a posição da Administração contrária ao Direito, como bem ressalta CASSAGNE7: El sistema del derecho administrativo debe articularse dentro de un equilibrio permanente entré prerrogativas y garantías, entre autoridad, por un lado, y libertad y propiedad por el otro. Ese equilibrio no implica desconocer que en el proceso administrativo actual se advierta una tendencia al crecimiento de la arbitrariedad en detrimento de los derechos individuales, en formas más o menos encubiertas pero cuyas diversas formas traducen todas ellas un resabio de autoritarismo y de exceso de poder. El poner freno a estas tendencias nocivas para la salud del cuerpo social es una tarea en la que está empeñada la doctrina administrativista en casi todos los países que integran la civilización occidental.

Dessa noção segue-se a de que partes são aqueles que estão em estado de sujeição perante o juiz. Por isso, tem-se evitado usar no processo administrativo o termo “parte”. De forma específica utiliza-se termos como licitantes, candidatos e contribuintes e, de modo genérico, emprega-se as expressões sujeitos ou interessados. Como o primeiro vocábulo remete à noção de sujeito de direito subjetivo, preferiu-se o segundo, que, aliás, foi adotado pela lei federal de 1999. Diante de tais considerações, concluímos que no Direito Administrativo o conceito de processo tal qual é colocado pelos processualistas, não poderia ter aplicabilidade, uma vez que a administração não detém jurisdição. Todavia, não nos parece difícil aceitar que a expressão processo administrativo está amplamente aceita e difundida no meio acadêmico e jurisprudencial, de tal sorte que o próprio legislador adotou essa denominação ao tratar especificamente da matéria.8 Ademais, o próprio constituinte fez referência expressa ao processo 7 8

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CASSAGNE, Juan Carlos: Derecho Administrativo. Buenos Aires: Lexis Nexis, 1999, p. 29 A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, dispõe na sua ementa: “Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal”.

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administrativo em alguns dispositivos, por exemplo: art. 5º, incisos LV, LXXII, “b”, e 41, § 1º, inciso II, da CF, inclusive na doutrina estrangeira9. Feitos estes esclarecimentos iniciais, optamos por adotar a expressão processo administrativo, com todo respeito aos processualistas, de modo a desenvolvermos o tema em consonância com a nomenclatura adotada na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional. Isto posto, podemos conceituar o processo administrativo, em sentido amplo, como “uma série de operações jurídicas que preparam a edição do ato administrativo, permitindo que o Estado atinja seus fins através da manifestação da Administração, quer expressa espontaneamente, quer por iniciativa do administrado, funcionário público ou não”.10

O sistema acusatório aplicado ao processo administrativo A leitura do processo administrativo sob o enfoque do sistema acusatório será baseada na Teoria do Garantismo Jurídico elaborada por FERRAJOLI11 em sua obra Direito e Razão, na qual apresenta também a proposta de um modelo de Estado de Direito e propõe um resgate da legitimação do Estado, visando unir a normatividade à efetividade. A Teoria de FERRAJOLI visa o âmbito penal, entretanto, conforme bem salienta CADERMATORI, o garantismo foi “desenvolvido pela primeira vez no campo do direito penal, mas é geralmente considerado um paradigma aplicável à segurança de todos direitos fundamentais”12. 9

Las relaciones entre el derecho procesal y el derecho administrativo se manifiestan en tres campos diferentes: a) en el ejercicio de la actividad jurisdiccional de la Administración donde se aplican numerosas normas y principios del derecho procesal; •b) respecto del procedimiento administrativo, tal como ocurrió en su momento con la aplicación del recurso de revisión que preceptuaba el artículo 241 de la vieja ley 50; c) con el derecho procesal administrativo o “contencioso-administrativo” que es la parte del derecho procesal que regula la actuación de la Administración en el proceso judicial, es decir, ante órganos separados e independientes de aquélla, que resuelven controversias con fuerza de verdad legal. La conexión existente entre este derecho adjetivo y el derecho administrativo de fondo o sustantivo es tan grande que ha provocado que el estudio de su temática y de sus principales instituciones hayan sido realizados predominantemente por administrativistas, que en su gran mayoría han integrado también las distintas comisiones que, en el orden nacional, elaboraron proyectos de códigos en lo contencioso administrativo. Por lo común, la aplicación de las normas del derecho procesal al derecho administrativo ha de realizarse utilizando la técnica de la analogía, que presupone la adaptación previa de las mismas a los principios que gobiernan las instituciones del derecho administrativo. CASSAGNE, Juan Carlos: Derecho Administrativo. Buenos Aires: Lexis Nexis, 1999, p.194. 10 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1987, vol. II, p. 271. 11 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2. ed.revisada e ampliada. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 12 CADERMATORI, Sérgio. Estado Brasileiro – Uma abordagem garantista. 2. ed. Campinas: Millenium Editora, 2006. p. 92.

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De acordo com a Teoria Garantista, na produção, interpretação e aplicação das leis, os conteúdos materiais devem ser vinculados a princípios e valores constantes nas constituições dos estados democráticos a que pertencem. BOBBIO13 bem afirma que as normas do ordenamento jurídico não são autônomas e independentes, havendo normas superiores e inferiores. Sabendose que as normas inferiores dependem das superiores e que há normas supremas, que não dependem de norma superior, sobre as quais repousa a unidade do ordenamento jurídico, quais sejam, as normas fundamentais. Os ordenamentos jurídicos possuem normas fundamentais que dão unidade às outras normas, fazendo com que estas possam se agrupar de forma unitária, gerando assim um ordenamento jurídico. Com esse entendimento, FERRAJOLI embasa o garantismo penal no fato de que os direitos fundamentais, garantidos pela Constituição em um rol que não é taxativo, não podem ser atacados por normas hierarquicamente inferiores, nem por práticas contrárias às quais a Constituição define. O nobre jurista entende, ainda, que “o garantismo é considerado como uma filosofia política, que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade.”14. Há três acepções que caracterizam a Teoria Geral do Garantismo, são elas: a vinculação do poder público ao estado de direito; a dualidade entre a validade e a vigência; e as visões ético-política e jurídica. Ressalta-se que o garantismo penal opera como uma doutrina de perda de legitimação, principalmente da interna, do direito penal, que faz com que os juízes e os operadores do direito tenham que interpretar constantemente de forma crítica a legislação vigente. Dessa forma, depreende-se que o garantismo penal trata de um devido processo legal amplo à luz dos princípios fundamentais. Inegável é que para concretização de uma sociedade justa, necessária se faz a aplicação do garantismo não só em âmbito penal, como em todos os outros do direito, visto que plana por todos os ramos do direito e é enorme a gama de direitos fundamentais garantidos pela Constituição que não podem ser atacados por normas infraconstitucionais. FERRAJOLI entende que os elementos da Teoria Geral do Garantismo “não valem apenas para o direito penal, mas também para outros setores do direito”15. Cabe relembrar que são elementos da Teoria Geral do Garantismo, de acordo com o jurista italiano, a vinculação do poder público no Estado de Direito; a discrepância entre validade e vigor produzida pelos desníveis das normas; a diferença entre os pontos de vista externo ou ético-político, e interno 13

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BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 49. 14 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. revisada e ampliada. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.p.785. 15 FERRAJOLI . Op. Cit., p.788.

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ou jurídico e a diferença entre justiça e validade; a autonomia e a prevalência do Poder Legislativo (ponto de vista externo) em relação ao Poder Jurídico (ponto de vista interno), sendo possível, dessa maneira, estender a todos os ramos do Direito, e não apenas ao ramo penal, os modelos de justiça trazidos pela Teoria do Garantismo, possibilitando o respeito aos direitos fundamentais, com vistas a adequar o ordenamento jurídico infraconstitucional à Constituição vigente. ROSA E LINHARES16 entendem que a Teoria do Garantismo é fundamentada especialmente na dignidade da pessoa humana e em direitos fundamentais derivados desta, que devem ser garantidos sob pena de perda da legitimidade pelas Instituições. Desta forma, pode-se concluir que o Garantismo Jurídico, ao resgatar e valorizar a Constituição, busca alicerçar o modelo pretendido de sociedade, especialmente como um instrumento de limitação do poder. Nesse diapasão, o direito administrativo e o direito penal são ramos do direito público, independentes entre si, entretanto, relacionam-se em diversas situações, por exemplo, o Código Penal, em seus artigos de 312 a 359, prevê crimes contra a Administração Pública, que são aqueles que podem ser cometidos por órgãos e agentes públicos, como, por exemplo, o artigo 312, que trata do peculato e o artigo 333, que trata da corrupção ativa. Ademais, no inquérito policial, a Administração Pública é responsável por dar início à caracterização do crime fornecendo subsídios para a aplicação da sanção prevista na norma penal. Cabe ressaltar que, atualmente, uma das grandes discussões do direito penal trata da delimitação do tênue limiar com o direito administrativo sancionador. De acordo com MAGNO17, “trata-se de decisão da mais alta relevância em política criminal a determinação do caráter de um ilícito, se penal, administrativo ou ambos”, ressaltando ainda que a descriminalização de uma conduta, reduzindo-a a mero ilícito administrativo, apesar das sanções serem geralmente mais suaves nesse último caso, é, em regra, pior para o acusado, pois o Direito Administrativo possui menos garantias que o direito processual penal. Vale lembrar que no processo administrativo é permitido pelo artigo 64 parágrafo único, da Lei 9.784/99, que o condenado em primeira instância tenha sua situação piorada na instância superior em razão de recurso interposto exclusivamente por ele, ou seja, admite-se a reformatio in pejus. Mister se faz ressaltar que um crime praticado em função de cargo público possui tamanha gravidade que também será entendido como ilícito administrativo disciplinar, sendo apurado na esfera administrativa e penalizado, caso seja verificada a falta, de acordo com os artigos 116, 117 ou 132 da Lei 8.112/90. 16

ROSA. Alexandre Morais da; LINHARES, José Manoel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p.15-22. 17 MAGNO, Alexandre. Relações do Direito Penal. Disponível em: http://alexandremagno. com/site/?p=concurso&id=268. Acessado em 23/04/2013.

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É entendimento de HUNGRIA que não há diferenciação ontológica entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, podendo-se entender como única diferença a ser reconhecida entre esses a diferença de quantidade ou de grau, que se encontra “na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com a outra. O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal.”18. CRETELLA JR., corroborando com o supracitado jurista, afirma que o ilícito é único, dividido nas esferas penal, civil e administrativa “apenas para efeito de integração, neste ou naquele ramo, evidenciando-se a diferença quantitativa ou de grau, não a diferença qualitativa ou de substância”19. Compreende-se, portanto, que o ilícito administrativo está em patamar menos elevado que o ilícito penal, todavia, é inegável que tal posição não o torna menos relevante. Conforme bem afirma BRUNO, “todo ilícito é uma contradição à lei”20, por isso deve ser punida em qualquer de suas formas. Como para legitimar os atos jurídicos é imperiosa a necessidade de se tutelar valores constitucionais, não se pode deixar de incorporá-los nos atos advindos do processo administrativo disciplinar, como bem defende DA SILVA21. Ainda observando os ensinamentos de BRUNO22, depreende-se que, como todo ilícito ofende a lei através de uma lesão ou ameaça de lesão a um bem ou interesse jurídico por ela tutelado, percebe-se claramente que a diferença entre o ilícito penal e o ilícito administrativo disciplinar está intimamente relacionada à hierarquia de valores, cabendo ao legislador analisar quais os bens jurídicos devem ser elevados à tutela penal, recebendo status criminal, pois o que, em regra, determina se a natureza da sanção será penal ou civil é a importância social atribuída ao bem ou ao interesse ofendido. Relativamente aos bens jurídicos, GOMES cita ROCCO para afirmar que o bem jurídico “antes de ser jurídico, é um bem da vida humana individual e social, e o interesse, antes de ser jurídico, é um interesse humano, assim, o conceito de bem, antes de ser jurídico, é um conceito sociológico ou psicosociológico”23. 18

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HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. RDA 1/24, fascículo I, jan. 1945 apud RENATO VAROTO, 2010, p. 124. 19 CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do processo administrativo. São Paulo: Ed. RT, 1988. p. 118. 20 BRUNO, Aníbal. Direito Penal.Tomo I. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.294 21 SILVA, Marcelo Aguiar da. Intersecção entre Direito Administrativo disciplinar e Direito Penal. Uma visão garantista do ilícito administrativo disciplinar. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n.3119, 15 jan. 2012. Disponível em : http://jus.com.br/revista/texto/20853. Acessado em 24/04/2013. 22 BRUNO. Op. Cit., p.294. 23 ROCCO, Arturo. L`oggetto del reato e della tutela giuridica penale, p. 244, apud GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico do Direito Penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002 p.115.

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Conclui-se, portanto, a luz do entendimento de DEZAN24, que é perfeitamente possível aplicar os princípios e institutos do direito penal ao direito administrativo disciplinar, em especial a Teoria do Garantismo Jurídico de FERRAJOLI. Nesse passo, há de se considerar que a majoritária doutrina brasileira entende que os ilícitos penais são dotados de tipicidade, enquanto os ilícitos administrativos carecem de tal característica por serem os atos administrativos dotados de discricionariedade. Assim sendo, tem-se os ilícitos administrativos como atípicos. Dessa forma, para uma autoridade administrativa punir um indivíduo, basta haver em lei uma definição genérica, devendo a autoridade definir e justificar seu ato, ou seja, aquele que é acusado se defende dos comportamentos, pouco importando a qualificação jurídica ou legal desse comportamento e pouco importando a incidência sancionatória decorrente dessa qualificação. É necessário afirmar que a tipicidade deve ser aplicada de acordo com a segurança jurídica e, ainda, que se deve levar em consideração que a dinâmica interna do Direito Administrativo Sancionador é diferente do Direito Penal, mas tem origem comum no Direito Público Punitivo, como bem define OSÓRIO25. Assim, ainda de acordo com o doutrinador, é possível entender que, na seara administrativa, a tipicidade proibitiva é ampla, havendo sim legislação, entretanto, esta será genérica, cabendo ao administrador interpretar da forma que seja mais benéfica para a Administração, fazendo com que os conceitos jurídicos indeterminados sejam amplamente utilizados no Direito Administrativo Sancionador. Os conceitos jurídicos indeterminados são conceitos que não têm um sentido exato e objetivo para CARDOZO na publicação Discricionariedade Administrativa organizada por GARCIA26. Ressalte-se que apenas quando a zona conceitual (espaço de dúvidas quanto à aplicação ou não de um conceito) tiver grande amplitude é que o conceito jurídico poderá ser entendido como indeterminado. CELSO ANTÔNIO afirma que os conceitos jurídicos indeterminados podem constituir uma fonte de discricionariedade, não aceitando a tese de que o tema dos conceitos legais fluidos é estranho ao tema da discricionariedade. Ressalta, ainda, ser “excessivo considerar que as expressões legais que os designam, ao serem confrontadas com o caso concreto, ganham, em todo e qualquer caso, 24

DEZAN, Sandro Lúcio. O princípio da atipicidade do ilícito disciplinar. Efeitos jurídicos produzidos pelos princípios da culpabilidade e da imputação subjetiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 556, 14 jan. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/revista/ texto/6154>. Acesso em: 25/04/2013. 25 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2.ed. São Paulo: ed. RT, 2005. p. 281. 26 GARCIA, Emerson (coord), Discricionariedade Administrativa. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2005, p. 67

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densidade suficiente para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas sobre a aplicação ou não do conceito”27. Pode-se dizer que o nobre jurista defende tal posição devido à existência de situações onde mais de uma interpretação é possível. Assim, “a noção de discricionariedade não se adscreve apenas ao campo das opções administrativas efetuadas com base em critérios de conveniência e oportunidade, pois também envolve o tema da intelecção dos conceitos vagos”28. Retomando a atipicidade do ilícito administrativo disciplinar, a DI PIETRO faz parte da corrente majoritária que defende que no Direito Administrativo prevalece a atipicidade por serem poucas as infrações definidas em lei, citando como exemplo o abandono de cargo, ressaltando que a maior parte das infrações fica sujeita à discricionariedade da Administração, devendo a autoridade julgadora “enquadrar o ilícito como ‘falta grave’, ‘procedimento irregular’, ‘ineficiência no serviço’, ‘incontinência pública’, ou outras infrações previstas de modo indefinido na legislação estatutária”29. Sabendo a autoridade administrativa que deverá levar em consideração a gravidade do ilícito cometido e as consequências que este gerou para o serviço público; e que não poderá ser arbitrária ou abusar do poder que lhe é conferido, pois, caso ocorra arbitrariedade ou abuso de poder, o ato poderá ser apreciado pelo Poder Judiciário. Na contramão do entendimento majoritário, encontram-se sabiamente doutrinadores como CRETELLA JÚNIOR e MENDES. Sabendo-se que o primeiro doutrinador afirma que a discricionariedade não proporciona uniformidade das decisões, dificultando que se verifique o abuso de poder, principalmente, nas lesões graves e gravíssimas30. O Ministro Gilmar Mendes entende que o princípio da segurança jurídica exige que as normas restritivas sejam dotadas de clareza e precisão, com o objetivo de permitir que “o eventual atingido possa identificar a nova situação jurídica e as consequências que dela decorrem”33. Na mesma esteira, entendemos que é necessário que se conheça, além do comportamento considerado inadequado, “a tipificação jurídica da conduta praticada em face dos preceitos que a administração eventualmente deseja aplicar ao caso concreto, sob pena de falta de justa causa à instauração do processo punitivo”31. 27

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2. ed, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 22-23 28 BANDEIRA DE MELLO, Op. Cit. p. 27-28 29 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.515 30 CRETELLA JUNIOR, Op. Cit. P.118 31 MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e Seus Múltiplos Significados na Ordem Constitucional, Revista Jurídica Virtual, no 14, julho/2000, site da Presidência da República na Internet.

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Para estes doutrinadores há uma abertura legislativa tanto na definição da conduta ilícita, quanto na aplicação da penalidade. Entretanto, diante da ausência de determinação legal, não se pode inovar como pretendem os nobres juristas supracitados, pois, entendemos que a Administração Pública não pode criar figuras ilícitas e sanções administrativas, pois a atividade administrativa é infralegal, subordinada à legislativa. Deve-se, portanto, aproximar o Direito Administrativo do Direito Penal, para que se possa garantir aos indivíduos uma atuação justa. SILVA32 entende que, a despeito do princípio da atipicidade disciplinar, há a necessidade de avanço na análise da conduta que pode ser denominada de tipo disciplinar, pois algumas penas cominadas no Estatuto do Servidor chegam a ser mais severas que as penas de certas infrações penais de menor potencial ofensivo. Além disso, afirma que o Estado, durante o processo administrativo disciplinar, atua como vítima, parte e juiz, o que deixa o acusado em total desvantagem, ferindo tanto garantias de direito material, quanto processual, o que não ocorre nem mesmo com o indivíduo que é acusado de cometer um crime na esfera penal. Sabe-se que na esfera penal a tipicidade faz com que as penas sejam impostas com base no crime cometido. Ocorre que, na esfera administrativa, como não há uma tipicidade específica, ou seja, há uma atipicidade, o acusado é posto a mercê do entendimento da autoridade administrativa, tornandose difícil mensurar e caracterizar o abuso de autoridade e a arbitrariedade, devido à discricionariedade inerente aos atos do administrador público. O que é extremamente prejudicial, por exemplo, no caso dos militares em que a sanção pode variar de uma admoestação em particular, passando pela pena de prisão e culminando, até, com a exclusão das Forças Armadas a bem da disciplina. Assim sendo, é possível concluir que, ainda que se entenda pela atipicidade do ilícito disciplinar, deve à autoridade administrativa analisar cautelosamente os elementos objetivos, subjetivos e normativos do ilícito disciplinar, buscando evitar a aplicação de penas desproporcionais para condutas idênticas para que não se lesione o princípio da igualdade ou mesmo o princípio do devido processo legal, que são garantias constitucionais conforme analisamos anteriormente. Esclarecendo tal assunto, GOMES33 afirma que é necessário que se observe o valor de justiça tanto no momento de construção de normas, quanto ao realizar os atos, pois assim se evita a criação de condutas e normas arbitrárias e injustas, decorrentes de figuras ilícitas imprecisas, elásticas, que não permitissem compreensão prévia de qual a conduta que o legislador quis proibir. 32 33

SILVA, Op. Cit. Acessado em 08/05/2013. GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 133-135.

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Inegável é que uma situação ideal seria a descrição da conduta ilícita, bem como da sanção correspondente, na própria lei, de modo preciso e seguro permitindo aos administrados saberem quais os comportamentos que darão lugar à aplicação dessa ou daquela sanção administrativa. Dessa forma, seriam inadmissíveis as expressões imprecisas na criação de figuras ilícitas, sendo, entretanto, admissíveis os conceitos jurídicos indeterminados, já conceituados antertormente, e as normas em branco, que são normas que se completam com outros dispositivos normativos, desde que não deixem ao total arbítrio do administrador, com o manto de uma falsa discricionariedade, criar um tipo disciplinar em desrespeito à lei. Mister se faz ressaltar a necessidade de uma regulamentação mais precisa para que, quando uma infração for praticada em âmbito administrativo, garantam-se os direitos da Administração e dos administrados, dando aos últimos o direito de exercer sua ampla defesa. O Processo Administrativo Disciplinar, conforme bem conceitua CARVALHO FILHO, “é o instrumento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações praticadas por seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas”34. Este processo tem variadas bases normativas, incidindo o princípio da disciplina reguladora difusa, ou seja, o processo é regulamentado de acordo com os Estatutos das pessoas federativas que tiverem sofrido a infração. Assim sendo, a definição das regras, da forma de tramitação, da competência, dos prazos e das sanções a serem aplicadas estarão sempre disponíveis nos estatutos, ao contrário dos processos judiciais, que são disciplinados de acordo com a disciplina reguladora concentrada, ou seja, onde toda a normatização se encontra em apenas um diploma legal, verificando-se a existência de leis especiais apenas para aplicação nos ritos especiais35. Dessa forma, há irrefutável autonomia para a criação de normas para o processo administrativo disciplinar, devendo-se obrigatoriamente respeito à Constituição. Para MEIRELLES, o processo administrativo “é o meio de apuração e punição das faltas graves dos servidores públicos”36. Entretanto, com a devida vênia ao ilustre doutrinador, não cabe afirmar que o processo administrativo é aplicável somente em caso de faltas graves, visto que é necessária a apuração disciplinar para que se tenha exata noção da gravidade da infração cometida. Assim, corroborando com o entendimento de GASPARINI37, é possível afirmar que qualquer infração ou punição pressupõem a instauração de processo 34

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. rev., ampl. e atual. até a Lei nº 12.587, de 3-1-2012. São Paulo : Atlas, 2012. p. 975 35 CARVALHO FILHO,Op. Cit., p. 975. 36 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1993. p. 594 37 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo, Saraiva, 2012.p. 589.

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administrativo para que se garanta ao acusado a ampla defesa e o contraditório, de acordo com disposição constitucional do artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Cabe ressaltar que a sindicância é um processo administrativo, todavia, é entendimento majoritário que não há necessidade da garantia da ampla defesa e do contraditório por se tratar de um processo não litigioso, bem como o inquérito administrativo, visto que seu objetivo é apurar um fato para verificar se há real necessidade de se instaurar um processo administrativo disciplinar principal, que é um processo onde serão garantidos a ampla defesa e o contraditório e que tem como objetivo a apuração da infração e aplicação da sanção, caso seja necessária. Por este motivo e devido ao fato da administração sofrer a infração, imputá-la ao acusado e o julgar, é imperioso aplicar o sistema acusatório no Processo Administrativo Disciplinar, com o objetivo de respeitar ainda mais as garantias constitucionais do indivíduo acusado, que, obviamente, encontra-se em situação desfavorável. Conclui-se, portanto, que devido à carência de normas específicas, claras, o Processo Administrativo Disciplinar pode e deve ser conectado aos princípios e aos institutos do Direito Penal, principalmente, ao sistema acusatório, pois, com o advento da Constituição Cidadã, as garantias não devem mais ser restringidas à esfera penal, devendo alcançar todo o direito sancionador que limite os direitos dos cidadãos.

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Cooperação Internacional Luis Carlos de Araujo1 Resumo O tema que o autor aborda sobre cooperação internacional, inserido no novo Código de Processual Civil, é assunto de grande relevância para os operadores do direito, advogados, juízes, membros do Ministério Público e também em relação aos estudiosos do novo instrumento processual. Ganhou dimensão contemporânea a partir do momento que os povos se comunicam de forma estreita, uma verdadeira aldeia global. A cooperação internacional é essencial para uma efetiva entrega da prestação jurisdicional. Palavras-chave: Cooperação internacional; processo civil. Abstract The theme the author examines is about international cooperation, placed in the new Civil Procedure Code, is a very relevant issue for operators of law, lawyers, judges, prosecutors and also in relation to the students of the new procedural instrument. Won contemporaneous dimension at the time that people communicate very closely, a true global village. International cooperation is essential for effective delivery of judicial services. Keyword: International cooperation; civil procedure code.

Da cooperação internacional O tema já poderia ter sido disciplinado entre as diversas leis que alteraram o CPC de 1973, através, portanto, de lei específica, como tantas outras que foram objeto de sua reforma, tamanha a sua relevância para as relações jurídicas entre os cidadãos dos países do nosso mundo afora. A cooperação jurídica entre os Estados deve ser vista como um meio de preservação da soberania, que é o poder do Estado exercido em relação às pessoas e coisas dentro do seu respectivo território. Ao Estado soberano cabe cuidar para que não haja ingerências externas e, ainda, garantir o cumprimento e execução ou efetivação das normas impostos em nosso território. A prática de atos fora do nosso território exige a cooperação jurídica em um mundo globalizado, onde o deslocamento humano e criação de relações jurídicas são impressionantes quanto à sua intensidade, bem como de bens entre os países. 1

Procurador de Justiça Aposentado do Estado do Rio de Janeiro; Professor Titular de Processo Civil da Universidade Estácio de Sá desde 1994; Professor de Direito Processual Civil, Direito Empresarial e Técnicas de Sentença da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro de 1985/2005; Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estácio de Sá de 1995/1999; Diretor de Campus João Uchoa de 1999/2001; Coordenador da Disciplina de Processo Civil de 2001/2009 da Estácio; Coordenador Nacional das Disciplinas de Processo Civil e Direito Empresarial de 2009/2012. Pós-Graduação na Estácio em 2012.

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A cooperação jurídica internacional é imprescindível, não se admitindo mais que prevaleça mero compromisso moral. Essas relações entre os homens de diferentes países soberanos devem estar impregnadas do princípio da boa-fé, considerando, ainda, que o mundo, em sua dimensão, a cada dia se estreita mais ou torna muito próximo os países entre si. A forma de regular esse estreitamento entre os países se dá através assinatura de tratados, convenções e protocolos, onde ficam celebradas a reciprocidade e o auxílio mútuo. O novo Código deixa claro que a cooperação internacional será regida por tratado do qual a República Federativa do Brasil seja parte. Com certeza, já existem muitos tratados assinados em que é disciplinada a cooperação internacional e que estão em vigor. A ausência de tratado fica suprida pela via diplomática dos países interessados e com base na reciprocidade. A matéria está bem disciplinada no novo Código de Processo Civil e prevista no seu parágrafo único, do art. 25. Avulta, então, o espírito da solidariedade e reciprocidade internacional, uma tendência irreversível em respeito à soberania dos países, pena de não ser concretizado o ideal de justiça universal, considerando, ainda, a universalização, principalmente, dos direitos humanos, mas não só, espalhando-se para outras ramificações do direito com conotação que extravasa os limites territoriais de nosso país. A cooperação jurídica internacional que é prestada aos Estados estrangeiros ou a qualquer organismo internacional poderá ser implementada por simples procedimentos administrativos ou judiciais, sem qualquer burocracia, exatamente para alcançar rapidez nos seus trâmites. Os pedidos de cooperação internacional são feitos por vários meios, indicados no art. 27, do novo Código de Processo Civil: carta precatória, ação de homologação de sentença estrangeira e auxílio direto e nesse último caso se dá quando a cooperação internacional não resulta de cumprimento de decisão de autoridade estrangeira e quando pode ser totalmente submetida à autoridade judiciária brasileira. As cartas rogatórias ativas, quando o seu cumprimento for dirigido à autoridade estrangeira, e passivas, quando expedidas pela autoridade judiciária estrangeira para ser cumprida em nosso país, estão minuciosamente detalhadas no novo CPC. As cartas rogatórias expedidas pela autoridade estrangeira só podem ser recusadas se atentar contra a nossa ordem pública e a soberania nacional, ou, então, faltar autenticidade, como disciplina o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Destaca o festejado doutrinador Humberto Theodoro Júnior que o procedimento decorrente de intercâmbio internacional se desenvolve sob o signo da publicidade e do contraditório e que não pode haver surpresa para as partes nem pra terceiros que eventualmente tenham que prestar colaboração à solução da lide ou que tenham que suportar consequências dela. Destaca, ainda, que as cartas rogatórias explicam-se pelo princípio da territorialidade da jurisdição, segundo o qual cada Estado exerce a soberania dentro dos limites de seu território2. 2

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JÚNIOR, Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, Vol. I, Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento, 52.ed., São Paulo: Forense, p. 272.

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Do auxílio direto Esse auxílio possibilita o intercâmbio direto entre autoridades administrativas e judiciais de estados diversos, ou até mesmo entre juízes, sem caracterização ou rótulo de carta rogatória ou interferência do Superior Tribunal de Justiça. Importante destacar que a Resolução nº 09 do E. STJ em seu art. 7º, parágrafo único, estabelece que: “os pedidos de Cooperação Jurídica Internacional que tiverem por objeto atos que não ensejam delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências necessárias ao cumprimento do auxílio direto”. O autor Marcus Vinicius Rios Gonçalves destaca em sua obra de doutrina, que as rogatórias são utilizadas para atos de comunicação processual e relacionadas à instrução do processo. Não se prestam para cumprimento de atos de constrição judicial. Se esta for necessária, nada restará a fazer senão requerer a homologação da sentença brasileira no país em que a constrição deve ser feita, para só então postulá-la3. A referência que podemos considerar para o “auxílio direto” é o auxílio judicial mútuo, que está previsto na Convenção de Auxílio Judicial Mútuo da União Europeia, em especial em seu art. 3º, prevendo que o “auxílio mútuo também é concedido em processos instaurados pelas autoridades administrativas para fatos puníveis nos termos do direito do Estado-Membro requerente ou do Estado-Membro requerido, ou de ambos, como infrações a disposições regulamentares e, quando da decisão caiba recurso para um órgão jurisdicional competente, especialmente em matéria penal”. O novo CPC trata do auxílio direto e prevê que os pedidos são baseados em tratado ou em compromisso de reciprocidade e que tramitarão pelas autoridades centrais dos países envolvidos, previsto provisoriamente no art. 34. O seu art. 35 dispunha que: “A autoridade central brasileira comunicar-se-á diretamente com as suas congêneres, e, se necessário, com outros órgãos estrangeiros responsáveis pela tramitação e execução de pedidos de cooperação enviados e recebidos pelo Estado brasileiro, respeitadas disposições específicas constantes de tratado”. Foi vetado no entendimento de que determinados atos não poderiam ser praticados exclusivamente por meio de carta rogatória, o que afetaria a celeridade e efetividade da cooperação jurídica internacional que, nesses casos, poderia ser processada pela via do auxílio direto. O veto retira qualquer dúvida em conta que a cooperação internacional deve ser feita através de diversos meios, como foi sugerido pelo Ministério Público e pelo Superior Tribunal de Justiça. O art. 32 do novo CPC, ainda sobre auxílio direto, estabelece: “No caso de auxílio direto para a prática de atos que, segundo a lei brasileira, não necessitem de prestação jurisdicional, a autoridade central adotará as providências necessárias para o seu cumprimento”. Aqui, essa norma processual dependerá de resolução expedida pelo órgão regulador competente. 3

Gonçalves, Marcus Vinicius Rios, Novo Curso de Direito Processual Civil, Vol. I, 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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No Brasil, a nossa Constituição da República tem previsão de dois procedimentos de cooperação jurídica internacional que reclama, no nosso território, algum tipo de atuação judicial, que são a carta rogatória e a homologação de sentença estrangeira (art. 105, I, “i”). O auxílio direto diferencia-se dos demais mecanismos, porque nele não há exercício de juízo de delibação pelo Estado requerido. A inexistência de delibação se dá porque não há ato jurisdicional a ser deliberado. Aqui, o Estado abre mão do poder de dizer sobre determinado objeto de conhecimento para transferir às autoridades do outro Estado essa função ou exercício da tarefa. Não há pedido de execução de uma decisão sua, mas que se prolate ato jurisdicional referente a uma determinada questão de mérito decorrente de litígio em andamento no seu território, ou mesmo que se obtenha ato administrativo a colaborar com o exercício de sua cognição. Vê-se, então, que não há, aqui, o exercício de jurisdição pelos dois Estados, mas apenas pelas autoridades do Estado requerido, segundo entendimento do Ministério da Justiça. Vê-se, então, que o auxílio direto é um instrumento hábil por meio do qual a integralidade dos fatos é levada ao conhecimento de judiciário estrangeiro para que prolate decisão que determine ou não a prática de diligências requeridas. O pedido passivo de cooperação jurídica internacional, como previsto no art. 33 do novo CPC, não acarreta a expedição de exequatur pelo STJ, como estabelecido no parágrafo único, do art. 7º da Resolução nº 09/2005 daquela Corte Superior. Esse pedido será recusado se configurar manifesta ofensa à ordem jurídica. No entanto, por expressa previsão no § 2º, do art.26, do CPC, a regra do seu caput não impede, quando necessária, a aplicação pelo Estado brasileiro do princípio da reciprocidade. Para melhor entendimento do tema sobre auxílio direto, destaca-se que o seu objeto envolve atos processuais como as citações, intimações e notificações, bem como obtenção de provas, medidas cautelares e decisões de tutela antecipada. Também, por exemplo, as decisões de busca e apreensão e retorno de crianças ilicitamente subtraídas dos pais, em conformidade com o Decreto nº 3.413/2000. Os pedidos de auxílio direto passivo, que são sempre baseados em tratado ou em compromisso de reciprocidade, tramitarão perante o juízo federal do lugar em que deva ser executada a medida, que demande prestação de atividade jurisdicional, em conformidade com o art. 34 do CPC. O procedimento de auxílio direto pode envolver a atuação de juiz nacional, como nas citações, intimações e notificações, que são atos judiciais e denominados de auxílio direto judicial e o auxílio direto que envolve a atuação de órgão da Administração Pública, como, por exemplo, investigações conjuntas do Ministério Público ou de autoridades policiais, que pode ser denominado de auxílio direto administrativo. No auxílio direto a autoridade central brasileira se comunica com as suas congêneres de forma direta ou, em caso de necessidade, com outros órgãos estrangeiros responsáveis pela tramitação e execução dos pedidos, sejam enviados ou recebidos pelo nosso país, observando naturalmente as regras predispostas e específicas de tratados.

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Execução dos pedidos de cooperação jurídica internacional O art. 40, do CPC, estabelece as formas como os pedidos de cooperação jurídica internacional são executados: carta rogatória, ação de homologação de sentença estrangeira ou de ação de homologação de sentença estrangeira, de acordo com o art. 960 do CPC. A Convenção de Haia trata do procedimento das cartas rogatórias relativas à obtenção de prova no exterior, observado o ordenamento do Estado requerido. Essa convenção flexibiliza o meio de encaminhar a carta rogatória, eliminando a necessidade do envio para a autoridade central (arts. 27, alínea “a” e 28), e que é feita diretamente às autoridades judiciais por outros meios. O art. 28 da referida Convenção permite que dois ou mais Estados contratantes acordem sobre métodos de transmissão da carta rogatória, de forma distinta da prevista no art. 2º, ou seja, via autoridade central. Destaca-se, que se a carta rogatória for encaminhada para a autoridade central cabe a essa autoridade fazer o juízo de admissibilidade em relação à matéria e ao pedido e se entender que o objeto da carta rogatória extrapola o previsto na Convenção, deverá imediatamente comunicar à autoridade judicial requerente, especificando as consequentes objeções. A ação de homologação de sentença estrangeira continua a ser disciplinada pela Resolução nº 09/05 do STJ. O legislador atual retira qualquer dúvida sobre a natureza da homologação de sentença estrangeira, considerando-a verdadeira ação de conhecimento constitutiva. Todas as ações de homologação de sentença estrangeira são dirigidas para o STJ. Quando houver oferecimento de contestação pelo requerido ou impugnação do MP será o processo distribuído para um dos Ministros integrantes da Corte Especial do STJ, que designará relator, passando este a presidir o processo. Caberá ao Presidente do STJ presidir todos os atos do processo e, ao final, julgar o pedido na falta de impugnação. Quando a cooperação não decorrer de cumprimento de decisão de autoridade estrangeira e puder ser submetida à autoridade judiciária brasileira, o pedido seguirá o rito do auxílio direto como acima examinado. O art. 27, do novo CPC, arrola o objeto do pedido de cooperação jurídica internacional, ou seja, comunicação de atos processuais, produção de prova, medidas de urgência – arresto, busca e apreensão de bens, documentos, direitos e valores, aqui, um elenco não exaustivo como desenganadamente revela as expressões “tais como” constantes de seu texto –, perdimento de bens, direitos e valores, reconhecimento e execução de outras espécies de decisões estrangeiras, obtenção de outras espécies de decisões nacionais, inclusive em caráter definitivo, informação de direito estrangeiro e prestação de qualquer outra forma de cooperação jurídica internacional não proibida pela lei brasileira. Esta norma processual trouxe uma importante inovação legislativa de inspiração no sistema comunitário criado para cooperação entre Estados da

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União Europeia, de forma acentuada em relação à obtenção de provas em matéria cível ou de direito empresarial. A obtenção de prova não está atrelada à expedição de carta rogatória, com todo o seu formalismo. Um simples pedido feito em formulário e enviado pelo meio mais rápido é instrumento que elimina a burocracia. Desta forma, a obtenção de prova é rápida e a via do auxílio direto é imprescindível, sem contar que o instrumento desburocratizado atende os princípios da tempestividade ou duração razoável do processo e efetividade da prestação jurisdicional. Os demais objetos da cooperação jurídica internacional, enumerados no art. 27, do novo CPC, podem também ser alcançados pela via do auxílio direto, o que dá cumprimento ao princípio da duração razoável do processo (art. 5º, inciso LVXXVIII da CRFB) e consagra a solidariedade entre os Estados. Os procedimentos dos pedidos de cooperação jurídica internacional ativa são instaurados perante a autoridade central, que, posteriormente, encaminha para o Ministério das Relações Exteriores, a menos que o Brasil tenha assinado algum tratado ou convenção dispondo de forma diversa. Na ausência de lei específica a ser editada, as funções de autoridade central é exercida pelo Ministério da Justiça. À autoridade central compete fazer o exame dos requisitos formais de admissibilidade dos pedidos de cooperação jurídica internacional. Destaca-se o texto do art. 33, do novo CPC, no auxílio direto passivo, que estabelece a obrigação da autoridade central encaminhar o pedido à Advocacia-Geral da União, a quem cabe postular em juízo a medida solicitada pelos estrangeiros. A competência das autoridades brasileiras para dar início ao procedimento de auxílio direto será definida pela Lei do Estado requerido, a menos que haja previsão específica em tratado. A competência é do juiz federal do lugar onde deva ser executada a medida para apreciar pedidos de auxílio direto passivo, que exigem prestação jurisdicional (art. 34, do anteprojeto do novo CPC). Havendo parte interessada esta será citada para, no prazo de quinze dias, manifestar-se sobre o auxílio direto requerido. Essa citação não será feita se o pedido de auxílio direto exigir ação em que haja procedimento específico. No auxílio direto passivo, o reconhecimento e a execução de decisões estrangeiras serão cumpridos por meio de carta rogatória ou ação de homologação de sentença estrangeira. O procedimento de homologação de sentença estrangeira corre perante o Superior Tribunal de Justiça e, hoje, está disciplinado pela Resolução nº 09/05, do Superior Tribunal de Justiça. Quando a carta rogatória for expedida pela autoridade judiciária estrangeira para ser cumprida aqui no Brasil, justamente porque envolve questão relacionada à soberania, para que possa ser cumprida é mister a concessão de exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça, tal como dispõe o art. 105, I, i, da CF/88, segundo o procedimento do Regimento Interno deste órgão. Só depois de recebido o exequatur é que a carta rogatória terá condições de exequibilidade no território nacional, caso em que será remetida para a autoridade judiciária

Luis Carlos de Araujo

competente, segundo regra de distribuição de competência interna. Uma vez cumprida a carta, será devolvida ao juízo de origem, no prazo de 10 (dez) dias, independentemente de traslado, pagas as custas pela parte4. Observa-se, então, que o novo Código de Processo Civil, ao contrário do atual, em fase terminal, estabelece normas vincadas no necessário intercâmbio internacional, visando dar celeridade na cooperação entre os países do nosso planeta e, sobretudo, o uso do correio eletrônico atenderá a celeridade processual, ainda bastante comprometida quando se faz necessária a cooperação internacional na prestação da atividade jurisdicional do Estado. Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil temos certeza de que haverá mais desburocratização dos contatos entre os países, na busca incessante de entregar uma prestação jurisdicional justa, segura e dentro de um prazo duração razoável, sem violar, principalmente, o devido processo legal.

Referências bibliográficas BUENO, Cássio Scarpinella, Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, 7.ed. São Paulo. Saraiva, 2014. CÂMARA, Alexandre Freitas, Lições de Direito Processual Civil, Vol. I, 24.ed. São Paulo. Atlas, 2013. GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, Novo Curso de Direito Processual Civil, 6.ed. São Paulo. Saraiva, 2010. RODRIGUES, Marcelo Abella, Manual de Direito Processual Civil, 4.ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2008. THEODORO JUNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil, 52.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

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RODRIGUES, Marcelo Abella. Manual de Direito Processual Civil, 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.240-241.

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Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF Patrícia de Vasconcellos Knöller 1 Resumo Este trabalho tem por objetivo fazer algumas considerações ao instituto da desapropriação confiscatória, constitucionalmente prevista no art. 243 da Carta Magna. Em especial, fazendo uma breve análise dos efeitos da atribuição das responsabilidades objetiva e subjetiva, a ser conferida ao proprietário de terras, nas quais se verifique o cultivo ilegal de plantações psicotrópicas. Após algumas necessárias ponderações, acaba por se concluir pela melhor adequação em se atribuir a responsabilidade subjetiva ao proprietário. Palavras-chave: Desapropriação confiscatória; responsabilidade objetiva; responsabilidade subjetiva. Abstract This work brings make some considerations the institute of expropriation confiscatory, constitutionally provided for in art. 243 of the Magna Carta. Especially with a brief analysis of the effects of the allocation of objective and subjective responsibilities to be given to the landowner, in which is found the illegal cultivation of psychotropic crops. After some necessary considerations, after some necessary considerations, ends up concluding that better match in assigning subjective responsibility to the owner. Keywords: Expropriation confiscatory; objective responsibility; subjective responsibility.

Introdução Encontra-se na lista dos processos leading case com repercussão geral reconhecida e com mérito pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal a natureza de responsabilidade civil a ser conferida ao proprietário de terras em que se verifique cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, para os fins do artigo 243 da CF, permanecendo em aberto, portanto, a discussão sobre o tema. 1

Especialista em Direito Público. Professora de Direito Administrativo nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá. Professora da EMERJ. Advogada e Parecerista na área do Direito Administrativo. Membro Titular da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores.

Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF

A questão teve início no ano de 2011, no julgamento do processo que deu origem ao RE 635.336 RG/PE, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do TRF da 5º Região que, na ocasião, decidiu pela aplicação da responsabilidade objetiva do proprietário de terra onde estaria sendo cultivado o plantio de plantas psicotrópicas. O Parquet defende que deve ser atribuída a responsabilidade subjetiva ao proprietário de glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, o que implica no sobrestamento de todos os processos com a mesma controvérsia até o pronunciamento definitivo da Corte.

A repercussão geral enquanto requisito de admissibilidade do recurso extraordinário Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu o §3º ao art. 102 da CF, o instituto da repercussão geral passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, ocorrendo sua regulamentação infraconstitucional com a Lei nº 11.418/2006, que acrescentou os arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil. O artigo 102 da Constituição Federal prevê que compete ao STF julgar, mediante Recurso Extraordinário, causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo constitucional, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal e julgar válida lei ou ato do governo local contestado com base na Constituição ou lei federal. Com o acréscimo do § 3º ao art. 102, foi conferido novo processamento ao Recurso Extraordinário, limitando a apreciação dos recursos a causas de ampla repercussão, cuja análise sobre a existência ou não da repercussão geral, inclusive o reconhecimento de presunção legal de repercussão geral, é de competência exclusiva do STF. Conforme KOZIKOSKY2: “Nesse sentido, a Emenda Constitucional 45, que acrescentou o § 3º ao artigo 102 da Constituição Federal, trouxe importante inovação ao recurso extraordinário, através da filtragem constitucional com o propósito de barrar os recursos protelatórios, repetitivos, ou que não tenham a relevância jurídica para o julgamento das questões constitucionais pela via difusa, diminuindo assim, o excesso de trabalho a que são submetidos os ministros do STF, na tentativa de promover a qualidade judicante que se espera da cúpula do Poder Judiciário do Estado”.

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KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. Manual dos Recursos Cíveis: teoria geral e recursos em espécie. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 409.

Patrícia de Vasconcellos Knöller

Dessa forma, criou-se um filtro recursal, evitando que se sobrecarregue ainda mais a última instância do Poder Judiciário com a análise de questões que envolvam apenas interesses das partes envolvidas na lide concreta, de modo a que fique a cargo do Pretório Excelso o julgamento de causas de maior relevância, o que, por sua vez, será um limitador do número de demandas que chegam ao Judiciário, haja vista que já se conhecerá de antemão o posicionamento final da última instância recursal quando declarada determinada matéria como inconstitucional no julgamento de um Recurso Extraordinário, adotando-se o mesmo entendimento a todos os casos que guardarem semelhança com a aplicação do decisum ao caso concreto, uniformizando as questões constitucionais. A partir de então, o Supremo somente analisará os Recursos Extraordinários que versarem sobre as questões constitucionais mais relevantes do ponto de vista econômico, político, social e jurídico que transcendam os interesses subjetivos da causa ou (repercussão geral presumida) quando o recurso impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante no âmbito daquela Corte.

Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida para os fins do art. 243 da CF O leading case que deu origem ao Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida teve origem nos autos de um Inquérito Policial, de acordo com o qual uma equipe de policiais federais descobriu um plantio de maconha, com 6.180 pés, localizados na Fazenda Jaburu, município de Santa Maria da Boa Vista, estado de Pernambuco. As plantas foram erradicadas e incineradas, tendo sido preservada uma pequena amostra para exame pericial. O relatório técnico da Polícia Federal constatou que realmente se tratava de cultura psicotrópica3. Assim, a União propôs uma ação expropriatória contra os donos do imóvel rural, com base no artigo 243 da CF, in verbis: CRFB/88. Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) 3

Fonte: Notícias do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br). EC/CG

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Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF

O Recurso Extraordinário (RE) foi interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, nos autos da ação expropriatória proposta pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) contra os donos do imóvel rural. O MPF questiona a aplicação automática do teor do art. 243 da CF, pelo TRF da 5ª Região, sem que tenha havido qualquer discussão acerca da “responsabilidade objetiva” do proprietário da Fazenda Jaburu, considerando-se que na respeitável sentença, não obstante se ter verificado o plantio de cannabis sativa linneu (maconha) na área abarcada pela propriedade do réu, não se teria demonstrado que o proprietário teria contribuído para o cultivo ilegal, não havendo, ademais, qualquer prova de um descumprimento de um dever objetivo de cuidado de sua parte. O Procurador-Geral da República opina que a ratio do dispositivo constitucional “é punir o criminoso, não o terceiro de boa-fé”, argumentando ainda que a Constituição Federal visa punição de pessoas que se utilizam da terra com objetivos “que, além de discrepantes com sua função social, estão em sintonia com a criminalidade que mais prejuízos traz para a população mundial”. De forma que pede, então, pelo provimento do recurso pelo STF, “a fim de se reconhecer que a desapropriação ou o confisco de propriedade onde se realizou o cultivo de plantas psicotrópicas exige a demonstração de dolo ou culpa do proprietário”. A partir da controvérsia suscitada em matéria constitucional contida no RE 635.336, foi reconhecida a existência de Repercussão Geral pelo Plenário Virtual da Corte em 27/05/2011, em votação unânime4, com relatoria5 do então Presidente da Corte, Ministro Cezar Peluso (hoje aposentado). Desde então, aguarda julgamento pelo STF a natureza da responsabilidade, para fins de expropriação, do proprietário de terras com cultivo ilegal de plantas psicotrópicas.

O direito fundamental de propriedade e seus limitadores constitucionais O tema envolve a análise do direito fundamental de propriedade, consagrado no inciso XXII do art. 5º da CF, bem como o cumprimento do dever de atendimento à função social dessa mesma propriedade, conforme inciso XXIII do mesmo art. 5º. Corroborado ainda pela aplicação da supremacia do interesse público sobre o privado, princípio implícito, mas não menos relevante, de modo 4 5

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Não se manifestaram os Ministros Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa. Após reconhecida a existência de repercussão geral, nos processos em que o Presidente da Corte atuou como relator, far-se-á livre distribuição do feito para o julgamento de mérito, nos termos do art. 323, § 1º do RISTF. No caso, com distribuição ao Min. Gilmar Mendes em 16/09/2011.

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a promover a necessária adequação da propriedade privada ao atendimento do interesse público, do bem comum. De acordo com HARADA6: “A mola propulsora da desapropriação, como se vê, é sempre o interesse público como gênero de que são espécies a necessidade pública, a utilidade pública, o interesse social, o interesse social para fins de reforma agrária, o interesse social para o desenvolvimento da política urbana e o interesse social para erradicação de propriedade nociva”. (Grifo nosso)

Como forma de sanção do Estado sobre o particular que se utiliza de sua propriedade sem observância de uma função social, mas de forma egoística e ainda de forma mais gravosa, conferindo-lhe uma destinação verdadeiramente nociva à sociedade, prevê a Constituição Federal o instituto da desapropriação sancionatória do art. 243 que, pari passu a gravidade do prejuízo provocado, será aplicada através de severa modalidade supressiva de intervenção estatal na propriedade privada, sem que seja devido qualquer tipo de indenização ao proprietário. Consoante a doutrina trata-se da desapropriação confiscatória, que para GASPARINI7 “não é uma modalidade de desapropriação, mas uma penalidade ou confisco imposta ao proprietário”, que passará, assim, a atender a uma função social, destinando-se à reforma agrária e a programas de habitação popular.8 A Lei nº 8.257/1991 regulamentou o dispositivo constitucional e dispõe sobre a expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas e dá outras providências, trazendo o procedimento judicial aplicável a transferência do imóvel, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. Ainda com aplicação do Decreto nº 577/92, como ato regulamentador, 6

HARADA, Kiyoshi. Desapropriação – Doutrina e Prática. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 16. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 909. Anote-se que a doutrina de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO entende ser esta uma modalidade de desapropriação, “que se equipara ao confisco, por não assegurar ao expropriado o direito à indenização. Pela mesma razão, teria sido empregado o vocábulo expropriação, em vez de desapropriação. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 109. 8 Conforme a nova redação conferida ao caput do art. 243 da CF, pela EC nº 81/2014. Pela redação anterior a destinação expressa constitucionalmente referia-se ao assentamento de colonos para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. Permanecendo esta, entretanto, no art. 1º do Decreto federal nº 577/92, que dispõe sobre a expropriação das glebas onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, e dá outras providências, atribuindo a Polícia Federal a competência para “as diligências necessárias à localização de culturas ilegais de plantas psicotrópicas a fim de que seja promovida a imediata expropriação do imóvel em que forem localizadas e que será especialmente destinado ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos”. 7

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atribuindo competência ao INCRA e a Polícia Federal para execução das providências legais.9 Observe-se que o STF já assentou entendimento decidindo que a expropriação recairá sobre a totalidade da propriedade, ainda que o cultivo se dê em apenas parte dela.10 O procedimento administrativo aqui guarda uma peculiaridade, prescindindo do decreto de declaração de interesse social ou utilidade pública, que é o ato inaugural nas espécies de desapropriações comuns ou ordinárias. Logo, essa fase administrativa se constituirá pelo caráter preparatório da ação expropriatória através de atividades gerais e de polícia, para a formalização do inquérito policial, após o que ocorrerá comunicação da Polícia Federal ao procurador judicial da União, que é a legitimada ativa para a propositura da ação de expropriação. No prazo de dez dias após a ciência ao titular da Procuradoria ou Procuradoria-Seccional da União, responsável pelo processo judicial referente às ações expropriatórias ajuizadas com fundamento no art. 243 da CF e na Lei nº 8.257/91, haverá comunicação ao Procurador-Geral da Procuradoria Federal Especializada do INCRA para que se manifeste acerca do interesse da autarquia no aproveitamento do imóvel objeto da ação judicial, visando a sua utilização para assentamento com fins de reforma agrária.11 O procedimento judicial na desapropriação confiscatória obedece a um rito sumário, não havendo nem oferta de preço, nem juntada de exemplar do Diário Oficial. Ordenando a citação, o juiz já nomeia perito, com prazo de oito dias para a entrega do laudo. O prazo para contestação e indicação de assistentes técnicos é de dez dias, a contar da juntada do mandado, cabendo ao juiz designar a audiência de instrução e julgamento dentro de quinze dias a partir da contestação do réu.12 Concedida a imissão liminar na posse do imóvel ao expropriante, haverá audiência de justificação, quando ocorre o sagrado direito ao contraditório (art. 5º, LV, CF c/c art. 10 da Lei nº 8.257/91). Dando-se por encerrada a fase instrutória, a sentença será proferida em cinco dias, contra a qual cabe apelação.13 Somente após o trânsito em julgado ocorrerá a incorporação do imóvel expropriado ao acervo da União14. 9

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Detectado o cultivo ilegal, cabe à Polícia Federal proceder ao recolhimento de dados necessários a embasar o inquérito policial, após o que comunicará ao INCRA e ao representante judicial da União, para que se promova a ação judicial de expropriação (arts. 1º e 3º do Decreto nº 577/92). 10 STF, RE 543.974-MG, Rel. Min Eros Grau, em 26/03/2009. 11 Arts. 1º e 2º da Portaria Conjunta nº 56, de 04/11/2005 (DOU de 9/11/2005). 12 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2012. São Paulo: Atlas, 2013. p. 903. 13 Idem, ibidem. 14 Conforme parágrafo único, do art. 15, da Lei nº 8.257/91, que prevê: “Se a gleba expropriada nos termos desta lei, após o trânsito em julgado da sentença, não puder ter

Patrícia de Vasconcellos Knöller

Análise do tema O Ministério Público Federal, parte recorrente no recurso extraordinário que deu origem ao tema com repercussão geral reconhecida, discorda da interpretação (in casu) conferida ao preceito do artigo 243 da CF, com atribuição de responsabilidade objetiva ao réu-proprietário, trazendo “em si um grande risco para uma garantia fundamental, como é o caso do direito de propriedade”.15 Pontue-se que em seara jurídica, inevitavelmente, ocorre colisão de imperativos de segurança e de justiça, e a sanção aplicada na desapropriação confiscatória acaba por fulminar o direito fundamental de propriedade, o que necessariamente importa em se determinar a gleba a ser expropriada, sua titularidade e a responsabilização pela ilegalidade na sua utilização. Logicamente, para tanto, há de ser observada a imprescindibilidade do cumprimento do devido processo legal (art. 5º, LIV da CF), sob pena de nulidade, que conforme asseveram CINTRA, DINAMARCO E GRINOVER16: “Compreende-se, modernamente, na cláusula do devido processo legal, o direito ao procedimento adequado: não só deve o procedimento ser conduzido sob o pálio do contraditório, como também há de ser aderente à realidade social e consentâneo com a relação de direito material controvertida”.

Foge ao objetivo deste trabalho um aprofundamento em matéria civilista processual acerca de controvérsias doutrinárias entre os institutos da obrigação e da responsabilidade, de modo que se tecerão breves considerações para a compreensão do tema em estudo. CAVALIERI FILHO17 assenta duas premissas que servem de suporte doutrinário em seara de responsabilidade civil: “Primeira: não há responsabilidade, em qualquer modalidade, sem violação de dever jurídico preexistente, uma vez que responsabilidade pressupõe o descumprimento de uma obrigação. Segunda: para se identificar o responsável é necessário precisar o dever jurídico violado e quem o descumpriu”. em cento e vinte dias a destinação prevista no art. 1º, ficará incorporada ao patrimônio da União, reservada, até que sobrevenham as condições necessárias àquela utilização”. 15 STF, RE 635.366-SC. Rel. Min. Cezar Peluso, D.J. 27.04.2011. 16 CINTRA, Antonio Carlos Araujo. DINAMARCO, Cândido Rangel e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Malheiros. 25. ed. Rio de Janeiro: Malheiros, 2009. p. 88. 17 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. revista, aumentada e atualizada. 3ª tir. São Paulo: Malheiros, 2006. p.27.

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Ainda na lição do autor, a responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação de uma obrigação; enquanto a obrigação é sempre um dever jurídico originário. Trazendo-se o raciocínio para o tema do art. 243 da CF, o proprietário tem o dever jurídico originário – cuja lei é sua fonte obrigacional – de conferir à sua propriedade conformidade com a função social que a mesma deve realizar, o que evidentemente exclui sua utilização para qualquer fim prejudicial à ordem ou à saúde pública, como permitir ali o cultivo de plantas psicotrópicas não autorizadas. Ao passo que decorre, portanto, sua responsabilidade pela prática de atos ilícitos que causem prejuízo ao bem jurídico tutelado pela obrigação imposta, mediante ação ou omissão. In casu, considerando-se que a responsabilidade parte de uma obrigação imposta pela lei sem que haja entre o ofensor (proprietário) e a vítima (sociedade) qualquer relação anterior, não estando originada em qualquer contrato, trata-se, portanto, de responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana.18 Alinhado ao sempre brilhante magistério de CAVALIERI FILHO19, as concepções teóricas sobre o tema da responsabilidade civil em nosso ordenamento incluem a responsabilidade extracontratual subjetiva, “na qual o elemento culpa, provada ou presumida é indispensável para ensejar o dever de reparar o dano” e a responsabilidade extracontratual objetiva, ou responsabilidade pelo risco, na qual “todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa”.20 Ressalte-se que tanto na responsabilidade objetiva quanto na subjetiva implica na existência de uma conduta ilícita, dano e nexo causal. Em se tratando da responsabilidade objetiva, “só não será necessário o elemento culpa, razão pela qual se fala em responsabilidade independentemente de culpa. Esta pode ou não existir, mas será sempre irrelevante para a configuração do dever de indenizar”.21 Antes de ocorrer o sobrestamento das ações expropriatórias fundadas na mesma controvérsia acerca da natureza da responsabilidade a ser atribuída ao proprietário em cuja gleba se verifique o plantio de culturas ilegais, em função do reconhecimento da repercussão geral que aguarda pronunciamento definitivo22, 18

Idem, ibidem. p. 62. Idem, ibidem. p. 153e 155. 20 Não se considerará aqui a responsabilidade contratual, por impertinência ao objetivo deste trabalho. 21 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. Cit., p. 153. 22 Informativo nº 392 STJ: “a discussão acerca do tipo de responsabilidade civil a que está sujeito o proprietário do imóvel em que se encontra o cultivo ilegal de planta psicotrópica (se responsabilidade objetiva ou subjetiva) passa, necessariamente, pela interpretação de norma constitucional, a escapar seu exame da estreita via do REsp”. AgRg no REsp 1.074.122-BA, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 28/4/2009. Observar que a Corte não se posicionou quanto à natureza da responsabilidade em face do art. 243CF. 19

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verifica-se uma predominância de julgados no sentido da responsabilidade objetiva do proprietário de terras destinadas para o plantio de espécies psicotrópicas. Mesmo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça corroborava com a objetivação da responsabilidade do proprietário, conforme abaixo ementado: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TERRAS UTILIZADAS PARA O CULTIVO DE PLANTAS PSICOTRÓPICAS. EXPROPRIAÇÃO. LEI 8.257/91, ART. 1º. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 243. EXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA. IDENTIFICAÇÃO DO REAL PROPRIETÁRIO DAS GLEBAS CONSTRINGIDAS. POSSIBILIDADE DE DILIGÊNCIAS. ATENDIMENTO À FUNÇAO ATIVA DO JUIZ E À FINALIDALIDADE SOCIAL DA NORMA. 1. É objetiva a responsabilidade do proprietário de glebas usadas para o plantio de espécies psicotrópicas, sendo, em consequência, irrelevante a existência ou inexistência de culpa na utilização criminosa. 2. É de todo cabível e oportuna a realização de diligências que objetivem identificar o real proprietário de terras comprovadamente empregadas para o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. 3. Na espécie, ante a caracterizada indeterminação do proprietário das glebas, cumpre-se anular o acórdão e a sentença com a intenção da conferir efetividade ao art. 243 da Constituição Federal, bem assim, atender à finalidade social inscrita na Lei 8.257/91. 4. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 498.742/PE, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16.9.2003, DJ 24.11.2003 p. 222) (Grifo nosso)

Também é assente a jurisprudência no âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a exemplo do acórdão que se segue: PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO SANÇÃO. ART. 243 DA CRFB/88. CULTIVO ILEGAL DE PLANTAS PSICOTRÓPICAS. NATUREZA. LIMITES. NECESSIDADE DE PROVA ACERCA DA ÁREA EM QUE ASSENTADO CULTIVO E SUA EFETIVA PROPRIEDADE. 1 – A desapropriação sanção, ou confiscatória, encontra-se prevista no art. 243 da CRFB/88 e tem seu processo disciplinado pela Lei nº 8.257/91 e pelo Decreto nº 577, de 24/06/1992, sendo atribuída à Polícia Federal e ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA articulação administrativa com vistas à identificação das áreas que apresentam cultivo ilegal e as providências necessárias à execução da lei. 2 – Enquanto modalidade de intervenção do Estado no direito de propriedade, a desapropriação sanção independe de solução de eventual processo criminal, com vistas a apurar responsável por conduta típica prevista na lei criminal, bastando, para sua configuração, a existência

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Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF

de requisitos objetivamente verificados, quais sejam: a) a comprovação da existência de um cultivo ilegal e b) a comprovação da propriedade da área em que presente o cultivo ilegal. (RESP 200300172788, JOSÉ DELGADO, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:24/11/2003 PG:00222 RT VOL.:00823 PG:00174 ..DTPB:.; AC 199750010082950, Desembargador Federal GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA, TRF2 – SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R – Data::10/11/2010 – Página::463; AC 9802445568, Desembargador Federal CARLOS GUILHERME FRANCOVICH LUGONES, TRF2 – SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, DJU – Data::05/09/2008 – Página::685.) 3 – À luz da doutrina administrativista, existe o dever de vigilância por parte do proprietário, sendo a sua responsabilidade objetiva, cabendo a inversão do ônus probatório, de modo que incumbe ao proprietário demonstrar que, por razões fundadas, desconhecia o cultivo ilegal em sua propriedade, tendo este se processado à sua revelia. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 635336 RG/PE, reconheceu a existência de repercussão geral quanto ao tema da natureza da responsabilidade do proprietário de terras em que se verifique cultivo ilegal, para os fins do art. 243, da CRFB/88, permanecendo em aberto a discussão, na jurisprudência, sobre se apresenta natureza de responsabilidade subjetiva ou objetiva. 4 – A extensão da desapropriação se dará em toda a propriedade, não abarcando apenas a área em que cultivada a espécie ilegal. Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Supremo Tribunal Federal (RE 543974, EROS GRAU, STF, Plenário – 26/03/2009). 5 – No caso em apreço, tendo em vista que as provas acostadas aos autos não definiram com exatidão o local em que assentado o cultivo, bem como que não se logrou identificar, exatamente, os efetivos proprietários das áreas em questão, mister se torna a anulação da sentença, com o retorno dos autos à Primeira Instância, para que se dê prosseguimento à instrução probatória, a fim de que solucionadas tais indagações. 6 – Apelação provida. ((TRF-2 – AC 199951055000891Relator: Desembargador Federal ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES, Data de Julgamento: 01/07/2014, QUINTA TURMA ESPECIALIZADA) (Grifos nossos)

Para tal entendimento considerou-se, basicamente, dois argumentos: o fato de o legislador constituinte não ter se referido expressamente à aplicação da responsabilidade subjetiva à hipótese do art. 243 da CF e o dever atribuído ao proprietário de cumprir a função social de sua propriedade, mantendo-a produtiva, o que torna irrelevante a noção de culpa provada, se de forma contrária ocasiona descumprimento desse dever, evidenciado no cultivo de plantas psicotrópicas, fazendo presumir a negligência.23 23

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STJ, 1ª T., REsp 498.742/PE, Rel. Min. José Delgado, julg. em 16/09/2003, publ DJ de 24/11/2003. Outros acórdãos no mesmo sentido: TRF-2 – AC185.204/RJ, julg em 18/08/2008, publ DJ de 05/09/2008; TRF-2 – AC 199750010082950/RJ, julg. em 10/10/2010, publ DJ de 10/11/2010; TRF-5 – AC 1493920114058308, julg. em 08/08/2013, publ DJ de 13/08/2013.

Patrícia de Vasconcellos Knöller

Em que pese o entendimento majoritariamente adotado nos Tribunais Superiores, coadunamos com a corrente que defende a atribuição da responsabilidade subjetiva24 em face do art. 243 da CF, por questões de atender a uma melhor ponderação entre os princípios da legalidade e da razoabilidade no cumprimento da medida sancionatória imposta pelo Estado. Adotando-se a responsabilidade objetiva à hipótese sub examine, cumprese o objetivo constitucional de proteção à ordem, à saúde pública e ao bem estar da coletividade através da imposição forçada de atendimento a uma função social que será conferida à propriedade expropriada. Mas a desconsideração do elemento culpa do proprietário aqui fatalmente pode propiciar situações de absurda injustiça ao particular, o que certamente não pode ser o objetivo do legislador ou do Direito. Apenas considerar a subsunção do fato de se localizar o cultivo ilegal em propriedade privada à norma abstrata, ainda que os procedimentos administrativo e judicial deflagrados dessa subsunção sejam obrigatoriamente informados pelo devido processo legal, oportunizando ao réu-proprietário contestação da acusação que lhe é imputada em momento próprio, em vista da sumariedade do procedimento da desapropriação confiscatória, somada a gravidade da sanção25 a ser suportada, em muito limita seu contraditório e ampla defesa, porque o peso do “dever-ser” de uma interpretação mecânica, puramente literal para seu intérprete prejudica a argumentação do expropriado, que se vê cerceado pela limitação dos argumentos possíveis a sustentar sua defesa, já que as excludentes do nexo causal são pontuais, pré-determinadas no ordenamento jurídico. Atribuindo-se a responsabilização objetiva ao caso, o julgador verifica apenas a ocorrência da conduta ilícita prevista na norma, o dano e o nexo de causalidade, não se aferindo acerca da conduta do réu. Mas é justamente sobre o réu que pesa uma presunção de culpa, por força da responsabilidade objetiva. Nesse sentido, esclarece GONÇALVES26 que: 24

Nesse sentido: TRF-5 – AC 438914/PE, julg. em 29/01/2009, publ DJ 18/03/2009; TRF-5 – AC 006830400044072, julg.. em 18/03/2009. 25 Considere-se não só a perda da propriedade em cuja área se localizava o cultivo ilegal, sanção de natureza cível, bem como a instauração de eventual ação penal proposta pelo Parquet. E ainda a pena de perdimento de bens apreendidos em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes, que não se confunde com a desapropriação punitiva, com alienação desses bens e posterior reversão da quantia auferida para emprego no tratamento e recuperação de viciados e/ou no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão ao crime (arts. 60 a 64 da Lei nº 11.343/2006). 26 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2011. p.413.

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Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF

“O Código Civil atual trouxe uma grande novidade em matéria de responsabilidade civil, que terá repercussão no campo do ônus da prova. Sabe-se que a regra geral é a da responsabilidade subjetiva: incumbe ao autor o ônus da prova da culpa do réu. Haverá inversão quando a responsabilidade for objetiva, porque aí a culpa do réu é presumida”.

Se decorrente da objetivação de sua conduta já milita contra ele uma presunção de culpa, muito mais difícil se lhe torna a carga probatória que terá que exercer, com forte chance de procedência da ação; decorrendo, portanto, o dever de indenizar o dano causado, suportando drástica sanção, independentemente de ter ou não agido com culpa.27 O conteúdo probatório que ele poderia trazer nessa defesa, com mais chance de elidir a sua culpa já presumida, faz parte de um rol fechado, a saber: caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou de terceiro. São excludentes que permitem afastar o nexo causal e, portanto, passíveis de irresponsabilizar o proprietário, que se vê na difícil situação de enfrentar a mera subsunção de seu caso concreto à norma aplicável do art. 243 da CF. Se as excludentes da responsabilidade objetiva são as mesmas da responsabilidade subjetiva, por que, então, defende-se a atribuição da subjetividade à conduta do proprietário? Muito bem observa CAVALIERI FILHO que a noção de culpa sempre importará em violação de um dever jurídico de cuidado28. E dentre suas espécies ou modalidades, destacam-se a culpa presumida e culpa contra a legalidade, com efeitos diversos quanto à prova da culpa29, em que o fundamento da responsabilidade a ser atribuída ao réu-proprietário continua o mesmo – a culpa; residindo, porém, a diferença num aspecto meramente processual quanto à distribuição do ônus da prova. Na modalidade da “culpa provada cabe à vítima provar a culpa do causador do dano,” enquanto na culpa presumida haverá “um efeito prático próximo ao da teoria objetiva” que, com a “inversão do ônus probatório, atribui-se ao demandado o ônus de provar que não agiu com culpa”.30 Considerando que assiste ao proprietário o dever de vigilância sobre sua propriedade, presumindo-se que conhecia o cultivo, CARVALHO FILHO doutrina, com propriedade: 27

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Equivale ao art. 927, caput, e seu parágrafo único, do Código Civil de 2002, in verbis: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 28 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. Cit.,p. 61-62. 29 Idem, ibidem. p. 63-64. 30 Idem, ibidem. p. 64.

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“Para nós, a hipótese só vai comportar solução diversa no caso de o proprietário comprovar que o cultivo é processado por terceiros a sua revelia, mas aqui o ônus da prova desse fato se inverte e cabe ao proprietário. Neste caso, parece-nos não se consumar o pressuposto que inspirou essa forma de expropriação.31

De se destacar, ainda, que se trata de uma presunção relativa, presumindose culpado o causador do dano até prova em contrário e sendo-lhe atribuído o ônus dessa prova.32 No mesmo raciocínio, GONÇALVES33 aduz que: “Aquilo que é presumido não precisa ser comprovado. Quando a presunção é absoluta, não se admite prova em contrário; quando relativa, dispensa a produção de provas por quem faz a alegação, mas permite a prova contrária pela parte adversa. Somente no caso da presunção relativa é que se pode falar, propriamente, em inversão, porque aí haverá a possibilidade de o adversário fazer prova da inveracidade do fato alegado. Na absoluta, o que ocorre é a desnecessidade completa da produção da prova, e não propriamente inversão”.

Destaca-se, mais uma vez, o preciso magistério de CAVALIERI FILHO34, que faz crucial advertência: “Autores e profissionais do Direito referem-se constantemente à culpa presumida como se se tratasse de responsabilidade objetiva. Convém, então, enfatizar este ponto: a culpa presumida não se afastou do sistema da responsabilidade subjetiva, pelo quê admite discutir amplamente a culpa do causador do dano; cabe a este, todavia, elidir a presunção de culpa contra si e afastar o dever de indenizar”. (Grifo nosso)

Na responsabilidade subjetiva cabe ao autor o ônus da prova da culpa (lato sensu- dolo ou culpa) do réu, quando exigida, do dano e do nexo causal. Na objetiva cabe ao réu-proprietário provar que não atuou de forma negligente, omissiva, não fiscalizando sua propriedade, nem deixou de tomar providências contra o fato; ou que não agiu de forma comissiva, não produziu o dano, muito menos dolosamente efetuou o cultivo ilegal. E mesmo que se considere uma culpa in re ipsa caracterizada, de qualquer forma admitirá a transferência do ônus da prova a quem cumpria observância ao dever de cuidado, mas o fundamento da responsabilidade continua o mesmo – a culpa, elemento que só será perquirido na responsabilidade subjetiva. 31

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013. São Paulo: Atlas, 2014. p. 914. 32 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. Cit,. p. 64. 33 GONÇALVES, Marcus Vinicius. Rios. Op. Cit., p.415. 34 Idem, ibidem. p. 64.

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Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF

Consoante GONÇALVES35, “Para que haja obrigação de indenizar, não basta que o autor do fato danoso tenha procedido ilicitamente, violando um direito (subjetivo) de outrem ou infringindo uma norma jurídica tuteladora de interesses particulares. A obrigação de indenizar não existe, em regra, só porque o agente causador do dano procedeu objetivamente mal. É essencial que ele tenha agido com culpa: por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência, como expressamente se exige no art. 186 do Código Civil. Agir com culpa significa atuar o agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito. E o agente só pode ser pessoalmente censurado, ou reprovado na sua conduta, quando, em face das circunstâncias concretas da situação, caiba afirmar que ele podia e devia ter agido de outro modo”.

Assim, adotando-se a responsabilidade subjetiva à hipótese sub examine, pode-se também chegar ao mesmo resultado negativo para o réu expropriado, vendo-se privado de sua propriedade e bens relacionados mediante eventual sentença de procedência do pedido do autor-expropriante, mas inegavelmente foi-lhe oportunizada melhor condição paritária de manifestação de seu exercício de defesa, minimizando a possibilidade de eventual injustiça por prejuízo em sua defesa, com a inversão do ônus da prova a seu favor. No ano de 2008, em artigo publicado no Jornal Valor Econômico, VENOSA36 já alertava que: “De qualquer modo, alargar o campo da responsabilidade objetiva com uma norma aberta, sem um critério concreto, causa extrema instabilidade e pode ser colocada a serviços de espíritos insinceros, aventureiros ou toscos. Com isso há fundado receio de que os tribunais realcem o elemento dano, preterindo a constatação de culpa de forma geral, deixando uma das partes simplesmente sem defesa. A jurisprudência ainda é inicial nos primeiros anos de vigência do Código Civil de 2002. Ainda levaremos algum tempo para maior amadurecimento e estabilidade dos julgados”.

Outra questão posta ao tema, para reforço da subjetividade da conduta a ser atribuída ao proprietário sobre o qual recai a desapropriação confiscatória, é a que diz respeito à alegação do fato de o legislador não ter feito previsão expressa sobre a responsabilidade subjetiva no dispositivo constitucional. 35

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao código civil – parte especial do direito das obrigações. Vol. 11. São Paulo: Saraiva, 2003. p.490. 36 VENOSA, Sílvio de Salvo. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Publicado no jornal Valor Econômico em 29/12/08.

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Tradicionalmente a responsabilidade subjetiva sempre foi a regra no ordenamento pátrio. E a exceção, com atribuição da responsabilidade objetiva, sempre prevista de maneira expressa. Mais uma vez merece destaque, por sua clareza, a lição do mestre CAVALIERI FILHO37: “A responsabilidade subjetiva é a regra básica, que persiste independentemente de existir ou não norma legal a respeito. Todos respondem subjetivamente pelos danos causados a outrem, por um imperativo ético-jurídico universal de justiça. Destarte, não havendo previsão legal de responsabilidade objetiva, ou não estando esta configurada, será sempre aplicável a cláusula geral da responsabilidade subjetiva se configurada a culpa, nos termos do artigo 186 do Código Civil”. (Grifo nosso)

Logo, é a responsabilidade objetiva que se constitui em exceção expressamente prevista em lei, justamente porque se insere no dever de ressarcimento à vítima de ato ilícito, justificando-se em seu favor. Por isso, a responsabilidade objetiva só é imputável no âmbito da responsabilidade civil. Afastada, assim, uma análise restritiva da norma constitucional, desautorizada pela própria redação que usou o legislador constituinte. Não se afigura correto usar de raciocínio no sentido de uma vez que o legislador não tenha feito alusão literal e expressa da responsabilidade subjetiva ao proprietário, no caso de cultivo ilegal de plantação psicotrópica, então se deve atribuir automaticamente a objetivação dessa conduta. Isso seria até legislar de forma transversa, de longe comprometedor da segurança jurídica. Tem feito tradição no ordenamento que sempre que o legislador quer recepcionar alguma inovação, ele expressamente a encampa no texto legal38, e assim não o fez. De maneira que não coadunamos com a objetivação da conduta do réuproprietário também por estes argumentos.

Conclusão Coexistem no ordenamento pátrio duas concepções teóricas de responsabilidade civil: a responsabilidade subjetiva e a objetiva. Para fins deste trabalho, consideradas apenas na modalidade extracontratual. 37

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10. ed. rev. e ampl.– São Paulo: Atlas, 2012. p. 288. 38 A exemplo do Código Civil de 2002, que na atualização da lei civil, trouxe temas que já estavam consolidados pelo uso e costume, ao lado de temas que representaram grande avanço social, como priorizar a função social da propriedade privada (art. 1228, § 1º) e dos contratos (art. 421). A exemplo, também, da própria CF/88 em seu art. 37, § 6º, in fine, em que expressamente atribui como caso de responsabilidade objetiva.

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Considerações Acerca da Natureza da Responsabilidade do Proprietário na Desapropriação Confiscatória do art. 243 da CF

O ato ilícito implica num conjunto de pressupostos da responsabilidade e, em sede de responsabilidade subjetiva, a culpa integrará esses pressupostos. Na responsabilidade objetiva apenas a ocorrência da conduta ilícita basta para configurar a obrigação de indenizar pelo dano causado. Tanto na imposição da responsabilidade objetiva quanto na subjetiva implica na existência de uma conduta ilícita (gera dever de reparação), dano e nexo causal. Mas na subjetividade da conduta, é imprescindível incluir ainda a conduta culposa ou dolosa do agente para configurar a obrigação de indenizar. Ao passo que na responsabilidade objetiva, o elemento culpa (lato sensu) não será necessário. No âmbito dos Tribunais Superiores, verifica-se uma predominância de julgados no sentido da responsabilização objetiva do proprietário de terras destinadas ao plantio de espécies psicotrópicas não autorizadas, com base no fato de o legislador constituinte não ter feito menção expressa à incidência da responsabilidade subjetiva em face do art. 243 da CF; bem como o dever atribuído ao proprietário de cumprimento da função social de sua propriedade, mantendo-a produtiva, o que, de forma inversa, faz presumir sua negligência. Atualmente, reconhecida a repercussão geral, em via de Recurso Extraordinário interposto perante o STF, aguarda enfrentamento do mérito acerca da natureza a ser conferida ao proprietário em face da desapropriação confiscatória do art. 243 da CF, ainda sem prazo para julgamento. O sistema de consulta eletrônica informa que no momento existem 16 (dezesseis) processos com mesma temática sobrestados, aguardando decisão.39 Entendemos que deve ser conferida a natureza da responsabilidade subjetiva ao proprietário de gleba na qual se verifique cultivo ilegal de plantação psicotrópica, por questões de legalidade e razoabilidade; bem como paridade de armas ou condições, e do contraditório ao réu-expropriado. Tudo a contribuir, em última análise, com a melhor efetivação do processo e o acesso à justiça. De se destacar, ainda, que as hipóteses de atribuição de responsabilidade objetiva devem ser legalmente expressas, o que não ocorre no dispositivo constitucional do art. 243 da CF, o que se torna comprometedor da segurança jurídica.

Referências bibliográficas CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2012. São Paulo: Atlas, 2013. ______. Manual de direito administrativo. 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013. São Paulo: Atlas, 2014. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. revista, aumentada e atualizada. 3ª tir. São Paulo: Malheiros, 2006. 39

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Fonte: Notícias do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br). Assessoria de Gestão Estratégica.

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______.Programa de Responsabilidade Civil. 10. ed. rev. e ampl.– São Paulo: Atlas, 2012. p. 288. CINTRA, Antonio Carlos Araujo. DINAMARCO, Cândido Rangel e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Malheiros. 25. ed. Rio de Janeiro: Malheiros, 2009. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil – parte especial do direito das obrigações. Vol 11. São Paulo: Saraiva, 2003. HARADA, Kiyoshi. Desapropriação – Doutrina e Prática. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014. KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. Manual dos recursos cíveis: teoria geral e recursos em espécie. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2007. VENOSA, Sílvio de Salvo. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. In: Valor Econômico, ed. 29/12/2008.

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O Juiz Péricles: a Hermenêutica e o Constitucionalismo Democrático Alfredo Canellas Guilherme da Silva1 Resumo O artigo trata da democratização da hermenêutica e o faz pela crítica ao emprego do método na interpretação e pela ausência de legitimidade democrática dos membros do poder contramajoritário. O artigo defende a abertura da interpretação ao diálogo e às divergências, bem como a conduta ética democrática dos decisores. Deste modo, pretendese aproximar a prática hermenêutica à ética democrática mediante o desenvolvimento de um Decisor Péricles. Palavras-chave: Hermenêutica; diálogo; constitucionalismo; democracia. Abstract The article deals with the democratization of hermeneutics and makes the criticism of the use of the method in the interpretation and the lack of democratic legitimacy of the members of counter-majoritarian branch of government (The court). The article defends the opening of interpretation to dialogue and differences, as well as the democratic ethical conduct of decision makers. Thus, we intend to approach the hermeneutic practice to democratic ethics through the development of a Decision Maker Pericles. Keywords: Hermeneutics; dialogue; constitutionalism; democracy.

Introdução A hermenêutica nomeada “como interpretação, exposição, tradição ou simplesmente compreensão”2 movimenta questões sensíveis na política e no direito, na medida em que influi, determinantemente, no plano decisional da soberania estatal. Critica-se neste artigo o emprego universalizante do método científico na hermenêutica e, igualmente, censura-se a questão da interpretação fechada, principalmente no Poder Judiciário (contramajoritário) e elege-se como desafio a 1

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e-mail: [email protected]. Mestre em Direito – UGF/RJ. Bacharel Direito UVA/RJ e Filosofia UERJ. Professor de Direito Constitucional e Ciência Política – UNESA/RJ; Membro do Grupo de Pesquisas Novas Perspectivas na Jurisdição Constitucional – UNESA/RJ. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6. ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.349.

O Juiz Péricles: a Hermenêutica e o Constitucionalismo Democrático

ser enfrentado o desenvolvimento de uma aliança da hermenêutica ao oximoro3 “Constitucionalismo Democrático”. Para o alcance desse objetivo pressupõe-se que a interpretação estribada no mundo prático4 demanda uma conduta ético-democrática por parte dos decisores5 judiciais ou extrajudiciais, semelhante aquela adotada pelo estadista grego e democrata Péricles. Com efeito, no Constitucionalismo Democrático a coparticipação hermenêutica convive com a divergência interpretativa dos cidadãos falantes, situação que se mostra imprescindível para a compreensão de fatos6 7 ou de textos. Neste particular sentido a ampliação dos escopos da hermenêutica8 filosófica se ajustam à democratização da compreensão.9 3

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Segundo Bellamy o termo “Constitutional Democracy” pode ser interpretado como um oximoro ou tautologia”.BELLAMY, Richard. Constitutionalism and Democracy (2006). Richard Bellamy, Constitutionalism and Democracy, International Library of essaysin Law and Legal Theory – Second Serires, pp. 11-68, Dartmouth, 2006 . Disponível em: . Acesso em: 10.03.2015. 4 “O fundamento da democracia é a razão prática (...)” FRANÇA, Patrícia da Silva. Os Fundamentos da Democracia: Análise das Teorias Democráticas de Aristóteles, Kelsen e Bobbio. Disponível em:. Acesso em: 25/11/2014. 5 Para o Constitucionalismo Democrático não se excluem do conjunto de decisores os membros do Poder Judiciário, posição distinta da visão progressista dos defesores do Constitucionalismo Popular pelo qual a “Constitution should be taken away from courts and restored to the people”. POST, Robert C. and SIEGEL, Reva B., “Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash” (2007). Faculty Scholarship Series. Paper 169. Disponível em . Acesso em: 07.03.2015. 6 Para Theodor Ivainier não há fatos que prescindam de interpretação. THEODOR, Ivanier. L’Interpretation des faits en Droit. Paris, LGDJ, 1988. Apud: CUNHA, Paulo Ferreira. Filosofia do direito. Fundamentos, metodologia e teoria geral do direito. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2013, p.580. 7 Segundo Matthew Edward Harris “There are no facts, only interpretations” (Não há fatos, apenas interpretação) encontra-se nas anotações não publicadas de Nietzsche. Apud. COLLI and Montinari, 1967, VIII.1, 323, 7 [60]. Disponível em:. Acesso em: 12.02.2015. 8 “Antigamente [...] mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos [...] era abordada na teoria do conhecimento.” GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6 ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.449. 9 Considerando-se que a hermenêutica filosófica gadameriana se expõe como uma arte dialógica independentemente de parâmetros estabelecidos metodicamente, nem se vincula a regras aferíveis pela demonstração empírica, procura-se neste nível aliar o emprego da hermenêutica filosófica à ética democrática, contribuindo-se para a construção e aprofundamento do Estado Democrático de Direito em todos os órgãos e instituições estatais, inclusive e principalmente no Poder contramajoritário.

Alfredo Canellas Guilherme da Silva

Crise hermenêutica contemporânea Há uma crise na interpretação que pode ser analisada segundo duas perspectivas: a primeira citada por Post10 que trata da crítica ao emprego do método e a segunda, atestada por Streck ao abordar o fechamento hermenêutico do sujeito solipsista11, inclusive e sobretudo no Supremo Tribunal Federal, ainda entendido pela jurisprudência como o órgão que exerce o poder de intérprete último do sentido constitucional.12 A crise do método se atribui ao intérprete jurídico coevo que ao se lançar pela lógica de regramento formal não se apercebe que a filtragem da contextualização de um mundo de redes complexas o aprisiona a uma reprodução parcial da realidade, ou seja, a cientificação hermenêutica se impõe deleteriamente ao caminhar pelo abandono de ‘sentimentos’, pelo encurtamento da compreensão do mundo da vida, mormente, pela ocultação de informações históricas e da tradição. Nesse viés clássico e regrado a interpretação se concretiza pela combinação dos métodos gramatical, lógico, sistemático e teleológico, bem como se propõe a obtenção de um resultado derivado de fases interpretativas antecedida pelo conhecer e seguida pela aplicação.13 10

Juristas tradicionais procuram identificar métodos de interpretação constitucional que justificam as decisões do Tribunal para aqueles que de outra forma se opõem às mesmas. Entretanto, enquanto esta abordagem pode dar conforto para os acadêmicos, duvida-se se possuem muito efeito político. Graves controvérsias constitucionais, como todas as controvérsias políticas, não são resolvidas por algum truque mágico metodológico. O desacordo não desaparece simplesmente porque o Tribunal opta por enquadrar o seu argumento de uma forma ou de outra. “Traditional legal scholarship has sought to identify methods of constitutional interpretation that will justify the Court’s decisions to those who might otherwise be disposed to oppose them. But while this approach may give comfort to academics, we doubt that it has much political effect. Serious constitutional controversies, like all political controversies, are not to be solved by some magical methodological trick. Disagreement will not disappear merely because the Court has chosen to frame its argument in one form or another.” POST, Robert C. and SIEGEL, Reva B., “Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash” (2007). Faculty Scholarship Series. Paper 169. Disponível em . Acesso em: 07.03.2015. 11 A hermenêutica democrática aqui defendida nega ao sujeito solipsista o ordinário exercício da interpretação. Streck lembra que há algo que não é problematizado na doutrina constitucional brasileira e que lhe causa problemas profundos de legitimidade, exatamente, “o sujeito solipsista da modernidade”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª Ed., Porto Alegre: Saraiva, 2012, n. 109, p.548. 12 [...] o modelo político-jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. Rel.: Ministro Celso de Mello. STF – ADI 3345 / DF – Data. 25/08/2005. 13 MELLO, Cleyson de Moraes Mello. Hermenêutica e direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, p.136.

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O Juiz Péricles: a Hermenêutica e o Constitucionalismo Democrático

A esfera jurídica atual ainda segue enraizada no emprego privilegiado desse perfil presumivelmente objetivo, calcado numa perspectiva que se supõe compreensiva de toda a verdade, conforme adverte Fábio Szinwelski: (...) os juristas adeptos da chamada Hermenêutica objetiva ou normativa, de que foi baluarte o grande jusfilósofo italiano Emílio Betti. Esta Hermenêutica normativa, como indica o próprio nome, vem com o objetivo de fixar regras para o procedimento interpretativo do jurista. Dessa forma, o método elevase à condição de garantidor do acerto das conclusões que o interprete extrai do seu labor ao buscar o sentido da norma. Para ser mais explícito, confia-se no método como garantidor da verdade.14

Tal estado de coisas evita a ampla compreensão de casos jurídicos, empreende o erro jurisdicional15 e a injustiça, pois a cientificação da interpretação e a padronização de decisões massificam a jurisdição ao desconsiderar o ser de carne e osso individualizado encontrado na sociedade. Não há na hermenêutica repetição de contextos como em uma experiência. Por essas razões, a visão matematizante universalmente aplicada à interpretação sofre críticas contundentes da doutrina, in verbis: “o que há de peculiar no direito é justamente o fato de os acontecimentos serem únicos. Eles não se repetem [...]”.16 Nessa perspectiva, Lenio Streck, jurista que ocupa o posto de atalaia na defesa de nova visão no direito brasileiro afirma que a hermenêutica “é incompatível com métodos”.17 Todavia, não se pretende negar a validade, nem deixar de reconhecer a coparticipação do método18 na interpretação, mas elucidar a restrição de seu 14

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SZINWELSKI, Fábio João. Hermenêutica jurídica – duas visões: método e não método. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2673, 26 out. 2010. Disponível em: . Acesso em: 26.08.2014. 15 No caso do Poder Judiciário, a ordem constitucional brasileira dispõe, expressamente, sobre o erro jurisdicional na cláusula que trata sobre o princípio da falibilidade da jurisdição insculpida no Art. 5,” LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1988. 16 DIAS, Juliana Melo. HERDY, Rachel. Probabilismo jurídico: o fetiche pelos números no Direito, p. 35. In: VIEIRA, José Ribas. VALLE, Vanice Regina Lírio. MARQUES, Gabriel Lima (Organizadores). Democracia e suas instituições. V Forum de Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito. Rio de Janeiro : Imos, 2014. 17 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed., Porto Alegre: Saraiva, 2012, p.444. 18 “Método (lat. tardio methodus, do gr. methodos, de meta: por, através de; e hodos: caminho) 1. Conjunto de procedimentos racionais, baseados em regras que visam atingir um objetivo determinado. Por exemplo, na ciência, o estabelecimento e a demonstração de uma verdade científica.” Por método, entendo as regras certas e fáceis, graças às quais todos os que as observam exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis, ao conhecimento verdadeiro do que pretendem alcançar”(Descartes). 2. Método axiomático: o que emprega a formalização

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emprego pela hermenêutica democrática.19. Consigna-se que a questão do método deve ser considerada na mediania, segundo a qual há possibilidade, não exclusividade, de seu emprego, in expressis: Nada impede que os métodos das ciências modernas da natureza também possam ser aplicados ao universo social [...]. Assim, longe de mim negar o caráter imprescindível do trabalho metodológico dentro das assim chamadas ciências do espírito.20

Pode-se constatar que desigualmente ao defendido por Streck acerca da negativa do emprego do método na hermenêutica há inteligência pela sua possibilidade, mesmo imprescindibilidade. Justifica-se sua necessidade, pois “o que se tem não é uma diferença dos métodos, mas uma diferença dos objetivos do conhecimento”21, ou melhor, as ciências da natureza procuram a verdade pela demonstração, enquanto que as ciências sociais a verossimilhança pela compreensão, mas em nada se impede a produção de dados científicos para a compreensão plena de fenômenos jurídicos. Noutro plano, por conta do alcance promovido pela interpretação, devese ter em mente que a hermenêutica “se apresenta como um prolongamento de dons naturais “sobretudo, uma capacidade natural do ser humano”22. e utiliza os recursos da lógica formal para derivar a verdade que pretende estabelecer a partir de uma relação de termos primitivos (indefiníveis) e de um conjunto de axiomas que servem de ponto de partida para a demonstração. Exemplo clássico: a geometria de Euclides. [...] 3. Método hipotético-dedutivo: método científico através do qual se constrói uma teoria que formula hipóteses a partir das quais resultados obtidos podem ser deduzidos, e com base nas quais se podem fazer previsões que, por sua vez, podem ser confirmadas ou refutadas. [...]. Método indutivo: aqueles segundo o qual uma lei geral é estabelecida a partir da observação c repetição de regularidades em casos particulares. Embora o método indutivo não permita o estabelecimento da verdade da conclusão em caráter definitivo, fornece, no entanto, razões para a sua aceitação, que se tornam mais seguras quanto maior o número de observações realizadas. A indução é assim essencialmente probabilística. Este método se torna importante na ciência experimental, [...].7. Método experimental: aquele que tem por base a realização de experimentos para o estabelecimento de teorias científicas, procedendo através da observação. da formulação de hipóteses e da verificação ou confirmação das hipóteses a partir de experimentos. É valorizado sobretudo nas concepções empiristas. [...].” In: JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3 Ed. terceira edição revista e ampliada. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2001. 19 […] “note that Gadamer was never against method or science—only their totalizing tendencies” […]. BARTHOLD, Lauren Swayne. A Peer Reviewed Academic Resources. Disponível em: . Acesso em: 23/04/2014. 20 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Enio Paulo Guiachini. 12 ed. Petrópolis : Vozes, 2012, p. 15. 21 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Enio Paulo Guiachini. 12 ed. Petrópolis : Vozes, 2012, p. 15. 22 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6 ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.350.

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Por conseguinte, afasta-se qualquer possibilidade de reconhecimento da interpretação como ciência rigorosa23, segundo Casanova o intérprete move-se em uma posição de ambiguidade, in verbis: (...) nós nunca nos aproximamos do zero de um problema, mas sempre vamos ao encontro do problema a partir de uma posição na qual ele já se revelou para nós. A visão prévia define, por sua vez, a perspectiva estruturadora capaz de promover a possibilidade de um recorte particular do problema: um problema nunca se acha apenas dado com uma determinada configuração, mas também é incessantemente abordado a partir de possibilidades de tratamento. Por fim, a conceptualidade prévia designa os termos centrais que acompanham invariavelmente o problema. Essas estruturas prévias da interpretação se inscrevem radicalmente nos mais diversos questionamentos e lhes entregam ao mesmo tempo uma aparência de obviedade e consistência. (...) Tudo permanece assim em uma posição ambígua, na qual se conhece tudo positivamente e não se conhece efetivamente nada.24

Na segunda perspectiva da Crise Hermenêutica encontra-se o fechamento interpretativo do decisor. Diferentemente da questão do método o fechamento hermenêutico se consubstancia em um problema de conduta democrática. Desta feita, sugere-se que a falta de ética democrática induz o hermeneuta para o mandonismo decisional de onde se segue a multiplicidade de diferentes comandos-normativos, cada qual advindo de um espaço insular representativo de verdades particulares. Consequentemente, lesiona-se o princípio da segurança jurídica pelo acentuado relativismo, bem como o próprio princípio democrático pela falta de legitimidade decisional. Neste contexto estranho à legitimação, o Constitucionalismo Democrático impacta ao cominar a importância da abertura interpretativa à participação, sob pena de confirmar-se a previsão de Lenio Streck: o “perigo ronda a democracia”.25

Impactos do constitucionalismo democrático O primeiro e claro impacto do Constitucionalismo Democrático sobre a hermenêutica se mostra pela sua aptidão ao convívio com a divergência interpretativa e na abertura de canais para o desentendimento ser comunicado ao órgão de decisão.26 23

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Esta ideia de ‘ciência rigorosa’ vem do pensamento husserliano cujo projeto postulava encontrar na Filosofia. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 4. ed. Petrópolis, Vozes, 2009, p. 52. 24 CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 4 Ed. Petrópolis, Vozes, 2009, p. 49/50. 25 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed., Porto Alegre: Saraiva, 2012, p.35/44. 26 “Democratic constitutionalism views interpretive disagreement as a normal condition for the development of constitutional law. […] If courts interpret the Constitution in terms

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A naturalização do debate se impõe pela Hermenêutica Democrática aos dois eixos da crise: a) negação da interpretação clássica; e b) rompimento com o fechamento solipsista do intérprete. Isto porque compreende-se que pela divergência abre-se o acesso pleno à compreensão hermenêutica27, à solução de conflitos reais e ao exercício legítimopolicêntrico da interpretação, inclusive do poder contramajoritário. Por conta dessa alternativa, a hermenêutica democrática situa-se para além do nível filosófico28 na medida em que sobrepõe o traço ético à conduta do intérprete, pois enquanto a hermenêutica democrática se configura em uma ação humana de livre escolha por parte do decisor, a hermenêutica filosófica gadameriana29 que serve de base à democrática se planifica no que acontece “além do nosso querer e fazer”.30 O ethos democrático na hermenêutica se consubstancia pela metáfora do Decisor [ou Juiz] Péricles31 ou hermeneuta democrático favorável à abertura that diverge from the deeply held convictions of the American people, Americans will find ways to communicate their objections and resist judicial judgments.” POST, Robert C. and SIEGEL, Reva B., “Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash” (2007). Faculty Scholarship Series. Paper 169. Disponível em . Acesso em: 07.03.2015. 27 “As possibilidades da comprovação e do ensino racionais não esgotam todo o campo do conhecimento”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Enio Paulo Guiachini. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p.61. 28 A hermenêutica de base filosófica apresenta as seguintes características que importam à Hermenêutica Democrática: não se reduz à verdade científica; situa-se historicamente; perfilha-se na “ubiquidade da linguagem”; e apoia-se fundamentalmente na prática. “1) hermeneutic philosophy is fundamentally practical philosophy, 2) truth is not reducible to scientific method, 3) all knowing is historically situated, and 4) all understanding reflects the ubiquity of language.” BARTHOLD, Lauren Swayne. A Peer Reviewed Academic Resources. Disponível em:. Acesso em: 23/04/2014. 29 De toda forma, no domínio da interpretação, o ator jurídico que desconhecer a hermenêutica filosófica se mostra em posição deficiente, como se pode induzir a partir das palavras de Streck, in verbis: no campo da interpretação do direito, não houve ainda a invasão da filosofia pela linguagem [...] o jurista (ainda) opera com as conformações da hermenêutica clássica, vista como pura técnica (ou técnica pura) de interpretação [...] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª Ed., Porto Alegre: Saraiva, 2012, p.442. 30 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Enio Paulo Guiachini. 12 ed. Petrópolis : Vozes, 2012, p.14. 31 O “Decisor Péricles” (hermeneuta democrático) inspira-se na figura metafórica do Juiz Hércules (Ronald Dworkin). Entretanto, o “Decisor Péricles” foge da idealidade de Hércules ao ser um homem de carne e osso datado historicamente na crença democrática.

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interpretativa à rede participativa, passagem pela qual o constitucionalismo democrático alcança a interpretação, transformando-a em uma conduta favorável à aceitação de outras visões de mundo. Assim, fala-se em ampliação do diálogo para a comunidade interna e externa ao decisor, conforme no dizer de Gadamer, in verbis: Fundamenta-a dizendo que a compreensão e o entendimento [...] em última formalização representa uma comunidade de diálogo. Nada pode ser excluído dessa comunidade de diálogo, nenhuma experiência de mundo. [...] nem as instituições de poder e administração política, que mantém a constituição da sociedade, encontram-se fora desse médium universal[...].32

Inclui-se na malha dialógica33 todas as instituições de poder, tanto em suas relações orgânicas quanto externas, bem como com o corpo eleitoral e a sociedade, mediante inúmeros mecanismos, e.g., plebiscito, referendo, audiência pública, consulta pública, instrumentos de participação34, backlash35, canais de informações de grupos de interesse, grupos acadêmicos, amici curiae, etc. Nesse passo, apreende-se por princípio que as decisões individuais ou monocráticas se mostram estranhas à Hermenêutica Democrática, porquanto se manifestam insuficientemente conversadas, circunscritas ao solipsismo interpretativo facilitador da perpetuação de prejuízos culturais, sociais e discriminações. 32

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6 ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.46. 33 Constitutional Dialogue v 2.0. Contentious Government Responses to the Supreme Court of Canada: Constitutional “dialogue” used to be the fashion in Canadian legal circles. From the late 1990s to mid-to-late 2000s, legal scholars engaged in contentious debates on the topic and the Supreme Court of Canada itself invoked the metaphor in a series of judgments to describe, and theorize, the relationship between the Court and legislatures in constitutional adjudication. […]. PENNEY, Jonathon. Constitutional Dialogue v2.0. Contentious Government Responses to the Supreme Court of Canada, Int’l J. Const. L. Blog, Aug. 13, 2014, Disponível em: : . Acesso em: 13.8.2014. 34 O Decreto n. 8.243 de 2014 oferece no Brasil exemplos de participação na esfera do Poder Executivo da União. Art. 6º São instâncias e mecanismos de participação social, sem prejuízo da criação e do reconhecimento de outras formas de diálogo entre administração pública federal e sociedade civil: I – conselho de políticas públicas; II – comissão de políticas públicas; III – conferência nacional; IV – ouvidoria pública federal; V – mesa de diálogo; VI – fórum interconselhos; VII – audiência pública; VIII – consulta pública; e IX – ambiente virtual de participação social. BRASIL, Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014. Institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e dá outras providências. Diário Oficial da União de 26.5.2014. 35 Trata-se de reação difusa e intensa do povo aqui no que se propõe como uma tentativa de influenciar na interpretação constitucional, demonstrar a necessidade de alteração legislativa ou da conduta de agentes públicos.

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Diante de quadro (não participativo) onde prevaleçam decisões individuais, emergem com mais facilidade situações hermenêuticas anticonstitucionais sobre as quais impacta o Constitucionalismo Democrático. Compreende-se uma distinção entre uma decisão “anticonstitucional” de outra “inconstitucional”. A anticonstitucionalidade decorre de um vício de interpretação da própria norma constitucional; diferentemente, a inconstitucionalidade advém de uma interpretação de norma infraconstitucional contrária à norma paradigma.36 Para o Constitucionalismo Democrático não se considera a questão hermenêutica um epifenômeno da democracia, mas elevada ao mesmo nível da prática democrática perseguida, e.g., por ocasião da elaboração normativa. Na América Latina, e.g., no Equador, o Constitucionalismo Democrático legitima a interpretação realizada pela Suprema Corte a partir do processo de escolha indireta de seus juízes.37 Acerca da prática hermenêutica, Heidegger propõe a recuperação de sua importância. Assim, indaga-se tratar-se a interpretação de saber prático ou teórico? Nesta questão, percebe-se a hermenêutica como um saber prático, consentâneo aos entes que se alteram, não podendo ser entendida apenas como saber teórico porque este se volta para a permanência, imobilidade e para a verdade ou para “aquilo que é sempre”.38 Aceita como saber prático, nova indagação se formula para precisá-la dentre as duas espécies práticas: os saberes da Phronesis ou aqueles da Techne. Para elucidar-se os conceitos segue-se o magistério de Michael Calvin que apresenta três traços diferenciadores entre a Phronesis e a Techne: (a) Phronesis apresenta um aspecto do saber que está faltando na techne. O marceneiro experiente domina completamente as regras de um ofício, e ele ou ela pode, portanto, ter uma melhor visão do que tem para ser criado. [...] Consiste de familiaridade habitualidade com as aplicações de uma tecnologia – marceneiros não “decidem” em circunstâncias exigentes; de fato, praticamente todas as suas “decisões” são determinados pelas possibilidades 36

Prefere-se distinguir o “Anticonstitucional” do “Inconstitucional”. A Anticonstitucionalidade decorre de uma interpretação da própria Constituição que lhe contraria; a inconstitucionalidade advém de uma interpretação de norma infraconstitucional contrária à Constituição. Necessitando-se de maior detalhamento, a extrainconstitucionalidade decorre do cotejo de interpretação da própria constituição que lhe contraria, com a interpretação de norma infraconstitucional contrária à constituição. 37 Os motivos para a legitimidade se fundam na eleição de juízes segundo fórmulas democráticas indiretas com a participação do Poder Legislativo, do Executivo e do Escritório de Transparência e Controle Social. “The grounds for legitimacy lie in the election of judges by indirect democratic formulas with the participation of the legislature, the executive, and the Office of Transparency and Social Control.” DALMAU, Rubén Martíne., Democratic Constitutionalism and Constitutional Innovation in Ecuador. The 2008 Constitution. Translated by Victoria J. Furio. LATIN AMERICAN PERSPECTIVES, Issue XXX, Vol. XX No. XXX, Month 201X, 1–17. 38 CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 60-70.

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de sua techne. Em contrapartida, os phronimos são “sempre já na situação de ter de agir” em circunstâncias exigentes. As pessoas tem a imagem do que deveria ser, suas concepções “de certo e errado, [...], a coragem, a dignidade, a lealdade etc.” são sempre pressuposta nas decisões que eles são chamados a fazer [...]. (b) Techne apresenta um aspecto diferente da imutabilidade do que é encontrado em phronesis. Como todas as tecnologias orienta-se para a produção de um produto em particular, a relação entre os meios e as extremidades é constante. Portanto, não há necessidade de “voltar para a escola” reaprender ou re-avaliar uma técnica cada vez que é usado para criar um produto. [...] Ele só precisa ser aprendido pela primeira vez para estar disponível como uma opção para a construção de um outro gabinete. Em contraste, o objeto dos phronimos é um processo, em vez de um produto. [...] a vida cotidiana não pode consistir de uma constante, a bondade imutável. É, antes, sempre em processo, sempre se movendo em direção ao bem, seus telos não são alcançados. [...]. (c) Techne apresenta um aspecto epistêmico, enquanto phronesis apresenta um aspecto ôntico. O ofício da marcenaria é algo que um marceneiro sabe, não é algo que define o seu Ser. (...). Em contrapartida, phronesis não é apenas algo que os phronimos sabem, mas também, e principalmente o que ele ou ela é. Nós não podemos colocá-lo em uma sala de aula e ensinar-lhe a receita para a coragem; tudo o que podemos fazer é colocá-lo em uma situação em que se você tiver coragem, você vai exibi-lo, torná-lo manifesto. (...).39

Pelo descrito, deve-se acatar que a interpretação versa sobre um tipo de ente que para sua compreensão exige o saber da Phronesis e não apenas da Techne, pois na apreensão hermenêutica o próprio interpretar faz parte do Ser do decisor, seja um administrador, juiz, legislador, etc. A Techne melhor revela aquele tipo de conhecimento que independe do operador no sentido de que a produção não esta amarrada ao seu modo de Ser, mas sim à mera perseguição de regras de produção. 39

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“(a) Phronesis presents an aspect of wisdom that is missing in techne. The experienced cabinetmaker has thoroughly mastered the rules of a craft, and he or she can therefore have a better vision of what is to be created. […] it consists of habituated familiarity with the applications of a technology — cabinet-makers do not “decide” in exigent circumstances; in fact, virtually all of their “decisions” are determined by the possibilities of their techne. By contrast, the phronimos is “always already in the situation of having to act” in exigent circumstances. The image people have of what they ought to be, their conceptions “of right and wrong, […], courage, dignity, loyalty etc.” are always presupposed in decisions they are called upon to make […]. (b) Techne presents a different aspect of immutability than is found in phronesis. Because any technology is oriented toward the production of a particular product, the relationship between means and ends is constant. So there is no need to “go back to school” to relearn or re-evaluate a technique each time it is used to create a product. […] it only needs to be learned the first time to be available as an option in the building of another cabinet. By contrast, the object of the phronimos is a process rather than a product. […] thus, everyday life cannot consist of a constant, immutable goodness. It is rather always in process, always moving toward the good, its never quiteachieved telos. […]. McGEE, Michael Calvin. Phronesis in the Habermas vs. Gadamer Debate. The University of Iowa. Disponível em: . Acesso em: 29/04/2014.

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Ademais, o saber hermeneuta-phronimos “não sabe nem julga como alguém isolado e não afetado, mas sim como alguém unido por um vínculo específico com o outro”, ou seja, não há ampliação hermenêutica sem o outro. Ainda, deve-se perceber a hermenêutica em um espaço dual, simultaneamente na perspectiva teórica e prática (uma oscilação entre um significado teórico e o significado prático),40 esta última como “faculdade prática de compreender” mediante “uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer os demais”.41 Portanto, a chave dialética que leva à compreensão chama-se phronesis: (...) a phronesis é a sabedoria prática. Um esforço de reflexão, uma ciência que não se limita ao conhecimento, dado que pretende melhorar a ação do homem. Tem como objetivo descrever claramente os fenômenos da ação humana, principalmente pelo exame dialético das opiniões dos homens sobre esses fenômenos e não apenas descobrir os princípios imutáveis da ação humana e as causas. Isto é, considera que, a partir da opinião (doxa) é possível atingir o conhecimento (episteme).42

Resumidamente, para a consecução da interpretação democrática, direito fundamental à democratização da interpretação, o intérprete deve ser dotado de formação prática e ter sua opinião examinada pelo(s) outro(s) em um ambiente de liberdade onde os hermeneutas jurídicos não se vejam como mecânicos operadores do direito, mas atores jurídicos que particularizam suas interpretações em comunidade em função do Ser de cada um. No espaço prático43 e phronético44, sem desestimo do conhecimento teórico, a compreensão democrática não se constrói pela opinião de um único, mas da multiplicidade, num exame coletivo que depreca a história, a assimilação da formação por cada participante e da tradição45, enraizados no modo de agir ético-democrático. 40

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6 ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.350. 41 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6 ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.349. 42 Léxico Universidade de Lisboa. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Disponível em: . Acesso em: 30.8.2014. 43 Há resistência em aplicar estes conceitos “sobretudo porque encontra-se marcada desde Aristóteles como “menos exatas”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Guiachini. 6 ed. Petrópolis : Vozes, 2011, p.352. 44 “Não é por acaso que Gadamer relaciona a compreensão com a phronesis aristotélica, já que esta implica sempre um saber da situação em que o agente se encontra, que apreende, na ocasionalidade constitutiva do agir, isto é, no seu horizonte de sentido, a possibilidade mais adequada. Não se trata, portanto, que a ação seja guiada por um recurso teóricoreflexivo, e sim a partir do próprio cerne do mundo da práxis”.WU, Robert. Os abismos sob a ponte: os limites da controvérsia entre Gadamer e Habermas. In: FELDHAUS, Charles e DUTRA, Delamar José Volpato (orgs.). Habermas e interlocuções. (Coleção Filosofia e Ciências Humanas). São Paulo : DWW Editorial, 2012, p. 231 45 “(...) a experiência hermenêutica tem a ver com a tradição (...)”. GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Enio Paulo Guiachini. 12 ed. Petrópolis : Vozes, 2012, p.467.

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Considerações finais Há capital diferença entre as ciências naturais que descobrem leis da natureza e as ciências do espírito na qual se insere a hermenêutica democrática. A estandardização metódica das ciências da natureza aplicada na hermenêutica filtra a realidade, desfoca a vida e, consequentemente, obsta a decisão democrática. A hermenêutica no Constitucionalismo Democrático se estabelece pela controvérsia e se realiza pelo diálogo intersubjetivo, ao invés da univocidade dogmática. A interpretação nesses moldes se realiza em um espaço onde predomina a participação humana e prática. Porém, não se negam as regularidades científicas e estruturas legais positivadas, mas aclara-se sua impossibilidade de alcançar toda a amplitude da compreensão humana. Desta forma, propende a hermenêutica democrática ao rompimento do ofício universalizante do método científico e a abertura interpretativa à participação onde o sujeito solipsista cede o “lugar à intersubjetividade”46. Neste intento, clama-se pela presença imprescindível da ética associada à democracia na prática hermenêutica, cuja realização invoca o engajamento do decisor democrático Péricles, comprometido com a participação do outro no lugar da primazia do singular e do decisionismo monocrático.

Referências bibliográficas BARTHOLD, Lauren Swayne. A Peer Reviewed Academic Resources. Disponível em:. Acesso em: 23/04/2014. BELLAMY, Richard. Constitutionalism and Democracy (2006). Richard Bellamy, Constitutionalism and Democracy, International Library of essaysin Law and Legal Theory – Second Series, pp. 11-68, Dartmouth, 2006 . Disponível em: . Acesso em: 10.03.2015. BRASIL, Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014. Institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e dá outras providências. Diário Oficial da União de 26.5.2014. BRASIL, STF, Ministro Celso de Mello. STF – ADI 3345 / DF – Data. 25/08/2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1988. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. DALMAU, Rubén Martíne., Democratic Constitutionalism and Constitutional Innovation in Ecuador. The 2008 Constitution. Translated by Victoria J. Furio. LATIN AMERICAN PERSPECTIVES, Issue XXX, Vol. XX No. XXX, Month 201X. DIAS, Juliana Melo. HERDY, Rachel. Probabilismo jurídico: o fetiche pelos números no Direito, p. 35. In: VIEIRA, José Ribas. VALLE, Vanice Regina Lírio. MARQUES, Gabriel Lima (Organizadores). Democracia e suas instituições. V Forum de Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Imos, 2014. 46

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Alfredo Canellas Guilherme da Silva

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As Políticas Públicas Sociais no Contexto da Globalização: o Caminho para uma Cidadania Deliberativa Cintia Maria Scheid1 Resumo O trabalho busca analisar de que forma a globalização impacta as políticas públicas sociais, desde a perspectiva do enfraquecimento do Estado nacional e da cidadania no mundo globalizado, notadamente nos países periféricos, e de que maneira é possível estabelecer, a partir dessa situação, a legitimação das políticas públicas sociais pela participação cidadã. A globalização, apesar de se manifestar sob diversos aspectos, tem seu cerne no conteúdo econômico, impactando o desenvolvimento dos países de forma heterogênea, na medida em que cria e acentua disparidades entre os países periféricos e os países centrais, pois sua influência é exógena, não considerando as necessidades e peculiaridades de cada país. Disso decorre a crise do Estado nacional, que termina não participando das decisões que lhe dizem respeito e lhe afetam diretamente. Com efeito, em face do mote eminentemente econômico da globalização, quem passa a decidir sobre questões cruciais para o desenvolvimento dos países, notadamente os países periféricos, são as chamadas empresas globais. Esse cenário impõe ao Estado nacional desregulamentar e flexibilizar suas estruturas, sob pena de ser alijado dessa nova ordem mundial, o que acaba minando a democracia e deslegitimando suas instituições. Observar essa situação desde a perspectiva das políticas públicas sociais implica analisar os efeitos desse fenômeno global no exercício da cidadania, especialmente a participativa com poder de deliberação. Com efeito, o que se verifica, atualmente, é um déficit de cidadania, de forma que para reverter o grave quadro de exclusão social com o qual nos deparamos, é imprescindível compreender de que forma é possível criar condições para o exercício de uma cidadania ativa, propulsora das mudanças que se fazem necessárias para o estabelecimento de políticas públicas sociais includentes. Nesse contexto é que surge a participação social organizada como forma de insurreição da cidadania ativa, em que a prática cidadã passa a ser o vetor de uma nova ordem social como contraponto à ordem global que se impõe. Palavras-chave: globalização; cidadania deliberativa; políticas públicas sociais.

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Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul/UNISC; Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e em Direito Notarial e Registral pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; MBA pela Escuela Superior de Administración y Dirección de Empresas – ESADE Barcelona, Espanha. Titular do 1º Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais e 5º Tabelionato de Notas de Maringá, Paraná.

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Resumen El trabajo busca analizar de qué forma la globalización impacta a las políticas públicas sociales, desde la perspectiva de la debilitación del Estado nacional y de la ciudadanía en el mundo globalizado, notadamente en los países periféricos, y de qué manera es posible establecer, a partir de esa situación, la legitimación de las políticas públicas sociales tras la participación ciudadana. La globalización, aunque se manifieste por distintos aspectos, tiene su cierne en el contenido económico, impactando el desarrollo de los países de forma heterogénea, en la medida en que cría y acentúa disparidades entre los países periféricos y los países centrales, pues su ingerencia viene desde afuera, sin considerar las necesidades y peculiaridades de cada país. De ello deviene la crisis del Estado nacional, que no participa de las decisiones que les dicen respecto y le afectan directamente. En efecto, delante del origen eminentemente económico de la globalización, quien pasa a decidir sobre cuestiones cruciales para el desarrollo de los países, notadamente los países periféricos, son las denominadas empresas globales. Delante de tal escenario, cumple al Estado-nación la desregulación y la flexibilización de sus estructuras para que no sea alijado de la nueva orden mundial, socavando la democracia y deslegitimando sus instituciones. Observar esa situación desde la perspectiva de las políticas públicas sociales implica analizar los efectos de tal fenómeno global en el ejercicio de la ciudadanía, especialmente la participativa con poder de deliberación. En efecto, lo que se verifica, actualmente, es un déficit de ciudadanía, de manera que para reverter el grave cuadro de exclusión social con lo cual nos deparamos, es fundamental comprender de qué forma é posible crear condiciones para el ejercicio de una ciudadanía activa, propulsora de los cambios que se hacen necesarios para el establecimiento de políticas públicas sociales inclusivas. Em ese contexto es que surge la participación social organizada como forma de insurrección de la ciudadanía activa, en que la práctica ciudadana viene a ser el vector de una nueva orden social como contrapunto a la orden global que se impone actualmente. Palabras clave: globalización; ciudadanía deliberativa; políticas públicas sociales.

Introdução

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Nas últimas décadas, o mundo tem vivenciado um processo de globalização de importante envergadura para todos os tipos de sociedade. De fato, é um fenômeno que se apresenta, a priori, como arrebatador e inexorável, desafiando governos, culturas e países no que respeita às suas identidades e particularidades, seja pela força com a qual avança, seja pela amplitude com que ocorre. Nesse sentido, conceituar a globalização não é tarefa simples, quanto menos fácil. É uma questão polissêmica, que ainda não encontrou um consenso acerca de seu preciso sentido, mas que pode ser definida, lato sensu, como o conjunto de processos de naturezas diversas que afetam diferentes setores sociais, numa dinâmica de interdependência essencialmente econômica entre nações, alterando a compreensão de tempo e espaço através da intensidade com que se dão os fluxos de capital, informação, bens e pessoas num mundo considerado, por isso, cada vez mais sem fronteiras.

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Essa dinâmica global, contudo, tem abrangência heterogênea, na medida em que sua fórmula única de atuar não leva em consideração as peculiaridades de cada país. Dessa forma, seu impacto é determinado, por um lado, pela intensidade com que o processo de globalização ocorre numa dada nação e, de outro, pela capacidade de reação dessa nação frente aos imperativos globais. Essa dialética acaba refletindo, de forma inequívoca, a posição que cada nação possui na hierarquia mundial e, consequentemente, os impactos mais ou menos negativos da globalização. Nesse contexto, àqueles países que não ocupam o protagonismo nessa hierarquia resta a adoção do modus operandi imposto pelo sistema global, do que decorre um inevitável enfraquecimento do Estado nacional, que se vê obrigado a desregular e flexibilizar suas estruturas de modo a permitir o fluxo de capital e informação determinado pela lógica globalista. Por conseguinte, as instituições estatais se deslegitimam, passando a sofrer uma crise de identidade que compromete a democracia, e, por conseguinte, o exercício da cidadania. Com efeito, o vínculo que ligava umbilicalmente o Estado à nação começa a se romper, pois o processo de globalização debilita visivelmente a autonomia decisória dos Estados nacionais, vulnerabilizando-os de tal forma que já não têm mais como defender os respectivos direitos sociais, deixando de ser o lugar básico da cidadania. No que diz respeito aos países periféricos, os impactos negativos decorrentes desse processo são agravados pelas medidas de ajustamento estrutural, que acabam se manifestando justamente na desestruturação das políticas públicas sociais. É, portanto, no resgate e na construção do exercício de uma cidadania participativa que é possível fazer frente às mazelas sociais que são recrudescidas com a globalização, notadamente no que diz respeito à elaboração e implementação das políticas públicas sociais. Tendo em vista que as causas que alimentam a globalização são difusas, a compreensão deste processo muitas vezes é dificultada por uma sensação de que a globalização é invisível, o que permite que ela opere de forma insidiosa. Para que se possa combater essa sensação de impotência, é imprescindível entender o contexto em que esses fenômenos vêm ocorrendo, mediante a análise deste novo padrão mundial. É nessa direção que o presente trabalho tem como objetivo visualizar a possibilidade de resgatar e criar uma cidadania participativa capaz de deliberar sobre os temas que lhe dizem respeito, o que é pressuposto fundamental para enfrentar e reverter, em certa medida, os danos ocasionados e acentuados com o advento do processo de globalização, notadamente na questão das políticas públicas sociais. Assim, será analisada, num primeiro momento, a posição do Estado nacional em tempos de globalização. Em seguida, será abordado, ainda que perfunctoriamente, alguns aspectos do exercício da cidadania no mundo

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globalizado, para, ao final, tratar do o impacto da globalização nas políticas públicas sociais desses países, bem como a possibilidade, a partir desta situação, de fomentar a cidadania para reverter, pelo menos em parte, o cenário de exclusão social que se fortalece dia a dia.

O Estado nacional e a globalização Para compreender a situação do Estado nacional no contexto da globalização, há que se ter presente que esta não é uma decorrência natural de um progresso tecnológico e econômico incontrolável. Na medida em que seu mote é econômico, ela é produto de uma política deliberada, cujas metas sempre foram conhecidas e calculadas. A trajetória da globalização, tal como a conhecemos atualmente, iniciou, segundo Martin & Schumann, após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa ocidental, para fazer frente às consequências daí advindas, celebrou com os Estados Unidos o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), no qual ficou estabelecido, pela primeira vez, um regime comum e internacional de comércio.2 Assim, Cada acordo, cada lei, foi aprovado por governos e seus parlamentos, cujas deliberações removeram as barreiras alfandegárias, permitindo o livre trânsito de capital e mercadorias, por cima das fronteiras nacionais. Da liberação do comércio de divisas, dentro do mercado europeu, até a expansão contínua de acordos como o GATT, sobre tarifas e comércio internacional, os políticos dos países industrializados do Ocidente sistematicamente criaram condições com as quais já não sabem lidar.3

Nesse contexto é que o neoliberalismo se mostra como a sua outra face, na medida em que somente é possível a transnacionalização econômica se o mercado puder agir por ele mesmo, o que significa abstenção do Estado, pois não pode haver barreiras à livre circulação. Para isso, impõem-se medidas de desregulamentação, de liberalização e de privatização – e aí pouco importa o setor – o que é incentivado pelas agências multilaterais (FMI, BM, OMC), quando não imposto aos países em desenvolvimento como condição para não serem expurgados da almejada aldeia global: é a “disciplina dos Estados através do mercado”4. O que interessa, portanto, é que o mercado possa atuar por ele mesmo (ou por aqueles poucos que o manejam) sem que o Estado nacional interfira. Disso decorre sua submissão às “normas” globais, com a consequente corrosão de suas instituições e o comprometimento da sua legitimidade perante os seus cidadãos. Por isso, 2

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MARTIN, Hans-Peter e SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização: o assalto a democracia e ao bem-estar social. São Paulo: Globo, 1999. p. 152. 3 Idem, p. 17. 4 Idem, p. 102.

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Se os governos, em todas as questões cruciais do futuro, nada mais conseguem senão apontar os imperativos da economia transnacional, toda a política torna-se uma farsa, uma demonstração de impotência, e o Estado democrático perde sua legitimação como tal. A globalização converte-se em cilada para a democracia.5

Nessa direção, Boaventura de Sousa Santos, citado por Pedro Hespanha, salienta que a credibilidade da confiança garantida pelo Estado nacional se encontra minada, não somente porque os riscos e os perigos se globalizaram e se tornaram incontroláveis por parte do Estado nacional, mas também porque se tornaram evidentes as limitações estruturais dos mecanismos legais até então usados por ele para controlar esses riscos e perigos globais.6 Consequentemente, aqueles que negociam no mercado financeiro global é que acabam decidindo sobre o destino de nações inteiras. Com efeito, os “julgamentos” das agências internacionais sobre os riscos dos países, podem custar muito a essas nações, desprovidas de qualquer ingerência nesse processo e cuja política se reduz à mera expectadora dos acontecimentos daí decorrentes. Nesse sentido, a sujeição às diretrizes do mercado financeiro global torna-se um assalto à democracia, além de colocar em risco as conquistas sociais do século XX, na medida em que caberia ao Estado nacional a proteção dos direitos básicos dos indivíduos mediante a promoção de políticas públicas sociais.7 De fato, Os impactos da globalização reorientam o Estado e os interesses das elites dominantes, conferindo-lhes perspectivas não territoriais e extranacionais. O Estado reformula seu papel em função de variáveis econômicas exógenas, como expansão do comércio mundial, políticas macroeconômicas e maior mobilidade do capital.8

Nessa dinâmica global, os cidadãos perdem a proteção de seus direitos no plano nacional sem adquirir proteção adequada no plano internacional, já que não existe, ainda, uma estrutura institucional internacional capaz de garantir a efetiva concretização dos direitos humanos.9 5

MARTIN, Hans-Peter e SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização: o assalto a democracia e ao bem-estar social. São Paulo: Globo, 1999. p. 20. 6 HESPANHA, Pedro. Mal-estar e risco social num mundo globalizado: Novos problemas e novos desafios para a teoria social. In A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.) São Paulo: Cortez, 2002. p. 168. 7 MARTIN & SCHUMANN. Op. cit. p. 69. 8 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro – São Paulo: Record, 2001. p. 246 9 Idem, p. 237.

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Como advertem Martin & Schumann, a decadência da capacidade de controle do Estado nacional sobre o mercado global permite que o pêndulo se incline cada vez mais para o lado de quem detém o capital.10 É o primado da economia sobre a política. A consequência mais flagrante desse contexto global em que poucos determinam a vida de muitos, é justamente a concentração de riqueza cada vez maior nas mãos desses poucos – cada vez menos em quantidade – em detrimento da subsistência daqueles muitos – cada vez mais em quantidade, principalmente nos países periféricos. Com efeito, Os impactos negativos da globalização econômica em países da periferia são muito amplos e manifestam-se de forma muito visível. Agravados, muitas vezes, pelas políticas de ajustamento estrutural, eles manifestam-se, quase sempre, na desestruturação de sistemas pobres mas fiáveis de segurança básica, na alteração radical das oportunidades conhecidas de investimento e de emprego e na demissão da função regulatória do Estado na vida econômica, daquilo que ela tinha (quando tinha) de positivo, ou seja, a proteção contra os desmandos do capitalismo selvagem.11

Por conseguinte, o esvaziamento das estruturas formais de poder político, em proveito de estruturas extremamente concentradas de poder econômico, é inevitável, comprometendo a democracia, que passa a figurar somente no plano da formalidade. Gera-se um círculo vicioso de impotência política e institucional, perpetuando e acentuando o hiato entre a extrema pobreza e a extrema riqueza.12 Essa disparidade social é responsável, nas palavras de Pedro Hespanha, “não só por uma particular vulnerabilidade aos processos de globalização, como ainda por um desigual e contraditório impacto desses processos nos diferentes sectores da sociedade”. Nesses termos, como realça o autor, os segmentos menos dotados da sociedade possuem menos capacidade de resistência ou de negociação diante dos efeitos da globalização, e, por isso, sofrem os impactos mais destrutivos desse processo.13 Assim, o que se tem evidenciado é que as desigualdades na distribuição da riqueza estão se agravando, pois, em que pese a intensificação do capital e do trabalho provocada pela transnacionalização da economia e da 10

MARTIN & SCHUMANN. Op. cit. p. 314. HESPANHA, Pedro. Mal-estar e risco social num mundo globalizado: Novos problemas e novos desafios para a teoria social. In A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.) São Paulo: Cortez, 2002. p. 181. 12 DOWBOR, Ladislau. A reprodução social. Volume III – Descentralização e Participação: As novas tendências. São Paulo, fevereiro de 2001. Disponível em http://dowbor.org/5espaco. asp. p. 06. 13 HESPANHA. Op. cit. p. 182. 11

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extensão dos mercados, as chances de melhorar as condições para uma vida minimamente digna se mostram cada vez menos acessíveis para a maioria da população.14 A globalização, portanto, consolida a desigualdade, e evidencia seu caráter contraditório, ao, simultaneamente, potencializar a riqueza (ainda que para muito poucos), por um lado, e excluir amplos setores sociais e territoriais, de outro lado. Com efeito, esse sistema econômico globalizado faz com que se rompa “a histórica aliança entre sociedade de mercado, o Estado-Providência e a democracia que fundou o projecto de modernidade do estado nacional”15. Disso decorre um processo de erosão da soberania, que repercute na cidadania, na medida em que os cidadãos são excluídos das decisões que ultrapassam o nível nacional. É nessa direção que a globalização transferiu para o nível global uma série de processos de transformação social e econômica, sem que haja um governo mundial, o que desemboca num vazio de governabilidade, onde ninguém enfrenta realmente as contradições globais, gerando uma incapacidade de resposta às necessidades cotidianas. Conforme refere Dowbor, “O Estadonação tornou-se pequeno demais para as grandes coisas, e grande demais para as pequenas”.16

Alguns aspectos da cidadania no mundo globalizado O processo de globalização da economia, acompanhado das transformações na comunicação, no tempo e na distância, afetaram, de um modo geral, as formas de se produzir, consumir, gerir, informar e pensar. No entanto, há que se ter presente que se é no âmbito local ou regional que essas atividades ocorrem concretamente, ou seja, no dia a dia das pessoas que vivem num determinado país, é no âmbito global que as atividades estratégicas dominantes, em todos esses planos, estão organizadas. Essas estratégias são definidas por concentrados e poderosos grupos econômicos, formados por empresas transnacionais cujo objetivo único é, obviamente, o lucro, facilmente obtido pela imposição de um modelo capitalista desenfreado, o que, conforme já referido, enfraquece o poder de decisão e a ingerência dos Estados nacionais sobre suas próprias questões internas. Disso surgem efeitos que afetam diretamente o exercício da 14

HESPANHA, Pedro. Mal-estar e risco social num mundo globalizado: Novos problemas e novos desafios para a teoria social. In A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.) São Paulo: Cortez, 2002. p. 161. 15 Idem, p. 162. 16 DOWBOR, Ladislau. A reprodução social. Volume III – Descentralização e Participação: As novas tendências. São Paulo, fevereiro de 2001. Disponível em http://dowbor.org/5espaco. asp, pp. 08, 06.

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cidadania, pois a coincidência entre sociedade e Estado vai se desvanecendo e transcendendo à medida que as formas de atividade social e econômica, de trabalho e de vida, deixam de ter lugar dentro do quadro do Estado nacional17. A lógica mercadológica global tem como carro-chefe o capitalismo, cujo combustível é o consumo. Na medida em que os Estados nacionais estão sendo conduzidos por esse paradigma, é fácil concluir que ocorre uma nada salutar transposição entre o público (Estado) e o privado (empresas privadas e o respectivo mercado), em que fica difícil detectar onde começa um e onde termina o outro. Há, assim, uma corrupção dos sistemas, em face da influência sem filtro que a economia de mercado exerce sobre a forma de atuar do Estado nacional. Para que essa dinâmica funcione, é fundamental a presença de um ingrediente que atua como um verdadeiro fermento: o consumo. No mundo atual, o consumo influencia perniciosamente a vida em sociedade e deturpa a noção sobre o papel social dos indivíduos, gerando a degradação dos alicerces da cidadania18. A alienação proveniente deste novo “elemento” do Estado provoca o individualismo exacerbado e a consequente perda da consciência crítica e da noção do coletivo. O consumidor produto desse contexto aceita e se submete aos imperativos da nova ordem global, alimentando-se de parcialidades e satisfazendo-se com respostas setoriais, resignando-se no seio de sua alienação consumista19. Não contesta e não se opõe até porque não sabe exatamente o que deve ser combatido, pois não tem ideia de como isso poderá afetá-lo negativamente enquanto indivíduo único e descontextualizado no qual se tornou. É a privatização da cidadania pela dominação do mercado e do consumo. Nesse diapasão, A referência à cidadania não desaparece, mas reduz-se a participação nas eleições, numa sociedade de massa totalmente aberta à propaganda e amplamente entregue às solicitações mercantis e às modas. Como consequência desses impasses, um dos dilemas da política contemporânea é a aversão à esfera pública, ocasionando assim sua degradação. A liberdade passa a parecer possível unicamente na esfera privada, o que leva à progressiva privatização da cidadania. Desaparece a divisão estrita entre Estado, sociedade civil e espaço privado, indeferenciandose o espaço social. O espaço público, essencial à democracia, converte-se em publicitário e midiático. E as corporações apropriam-se dele, transformando-o em espaço 17

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HESPANHA, Pedro. Mal-estar e risco social num mundo globalizado: Novos problemas e novos desafios para a teoria social. In A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.) São Paulo: Cortez, 2002. p. 164. 18 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1998. 19 Idem, ibidem.

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publicitário; os cidadãos que frequentam esses espaços não o fazem mais enquanto cidadãos, mas como consumidores de informação, comunicação e entretenimento.20

O que há, portanto, é uma corrosão da construção do indivíduo cidadão, onde o consumo exerce um papel determinante sustentado por uma ideologia de mercado que não conhece limites. Conforme alerta Boaventura, a globalização da ideologia consumista oculta o fato de que o único consumo que essa ideologia torna possível é o consumo de si própria21. É nessa direção que se pode sustentar que o mercado (sobretudo o globalizado) certamente não é a via adequada para a criação de formas de geração de solidariedade e igualdade, fatores determinantes para o exercício de uma cidadania participativa. Impõe-se, para tanto, a diferenciação entre mercado e Estado, pois são sistemas funcionalmente independentes, embora cognitivamente abertos, que não podem influenciar-se diretamente sob pena de corromper-se e, assim, comprometer o equilíbrio da sociedade como um todo22. De fato, o que se constata é que a vida dos cidadãos está sendo determinada por pessoas (empresas transnacionais) que jamais tiverem outorgado para si qualquer tipo de mandato por aqueles que são afetados por suas “políticas”, e que o Estado passou a ser um mero gerenciador dos efeitos daí decorrentes. Essa realidade advém do recuo das políticas públicas e a admissão de esgotamento dos Estados nacionais em sua missão de mediar, pelo exercício da política, as crescentes tensões sociais, frutos dos efeitos negativos do capitalismo global, levou as grandes corporações – por seu lado – a descobrirem um novo espaço que está a render altos dividendos de imagem pública e social: o desejo dos governos de empurrar para o âmbito privado as responsabilidades e os destinos da desigualdade. No entanto, há uma evidente ambiguidade nas delimitações entre o interesse privado e a ação pública no ativismo social das corporações. Cidadania, para além das decisões particularistas, implica na existência de um espaço público comum, onde as ações se orientam para a construção do bem público e conduzem à ampliação da consciência e às práticas do direito do cidadão.23 (grifamos) 20

DUPAS, Gilberto. O poder dos atores e a nova lógica global. Ensaio preparado para a Conferência Brasil e União Europeia Ampliada em setembro de 2004 (Rio de Janeiro). Disponível em www.scielo.br/pdf/cp/v35n124/a0335124.pdf 21 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997.pp. 312,313. 22 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, Vol.1, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro S.A, 1983. 23 DUPAS. Op. cit. p. 20.

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Dessa forma, a sociedade civil, através do exercício autêntico da cidadania, disputa com o Estado e com o mercado a preservação de um espaço autônomo e democrático de organização, em que a participação política transcende o mero ato de votar. O exercício da cidadania, então, depende da reativação da esfera pública, onde os indivíduos possam agir coletivamente e se empenhar em deliberações comuns sobre todos os assuntos que afetam a sociedade, “pois aumentar a eficácia do Estado significa principalmente redefinir as relações com a sociedade civil mediante a criação e articulação de canais de negociação entre a sociedade e o Estado”, na medida em que é isso que permitirá a institucionalização da participação da cidadania nas decisões governamentais.24 Só assim parece possível superar o déficit de cidadania que os países periféricos estão sofrendo, bem como criar as condições propícias para o exercício de uma cidadania participativa, em compasso com a realidade política e econômica. Para o cidadão periférico “a nova versão de cidadania é traduzida pela ideia de uma consciência cidadã no trato com a coisa pública, tanto para a escolha dos dirigentes, como no trabalho social a ser cumprido”.25

A participação cidadã nas políticas públicas sociais em tempos de globalização A globalização econômica pretende um pensamento único e uma postura homogênea, porquanto, ao não considerar as diferenças e peculiaridades de cada país, tenta unificar comportamentos e ideologias, notadamente através do incentivo ao consumo desenfreado. Aliado a isso, impõe aos Estados nacionais, independente da posição que ocupem na hierarquia global, o desenvolvimento de medidas desreguladoras e flexibilizadoras, privilegiando-se, destarte, exigências exógenas em detrimento das necessidades internas de cada país. Por isso é que, paradoxalmente, os Estados nacionais constitucionalizam direitos sociais ao mesmo tempo em que atuam para a não efetivação desses direitos, principalmente quando se rendem à lógica ilógica do mercado internacional, o que provoca [...] a vulnerabilidade em que se encontram os países diante desse novo cenário, pois num ambiente em que escasseia a transparência, a equidade e a eficiência, e onde as decisões dos investidores oscilam rapidamente ao sabor de 24

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VIEIRA, Liszt. Cidadania e controle social. In: O público não estatal na reforma do Estado. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Organizadores). p. 228,229 e 221, 248,249 25 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Belo Horizonte: Movimento Editorial/FDUFMG (Nova Fase), 1995.p. 105.

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motivações de curto prazo, o capital torna-se altamente volátil e os governos incapazes de impedir a sua retirada, ocasionando crises paradigmáticas da dificuldade da gestão econômica num mundo globalizado, em que os países, via de regra, não estão preparados para aguentar os choques provenientes do mercado global [...]26

A pretensa hegemonia da globalização existe naquilo que ela representa de risco social para as nações, pois, desde o ponto de vista dos benefícios – econômicos, especialmente – a desigualdade é que reina. Como refere Boaventura, “o modelo de desenvolvimento capitalista assume uma hegemonia global no momento em que se torna evidente que os benefícios que pode gerar continuarão confiados a uma pequena minoria da população mundial, enquanto os seus custos se distribuirão por uma maioria sempre crescente”.27 A perspectiva de relaxamento de controle pelos Estados-nação para propiciar a livre circulação de capital, sob o pretexto de uma unidade mercadológica global, parte da premissa neoliberal de que o próprio mercado acomode os problemas, notadamente os de distribuição de riqueza, já que “... a economia é séria e moderna; o social, perdulário e arcaico”28. Com isso, muitos países procedem cortes nas suas políticas sociais na ilusão de tornar seus mercados mais competitivos, sob o pretexto de buscar o crescimento econômico. Ocorre, no entanto, que crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento. Conforme Milton Santos, o crescimento deve basearse nos dados sociais, já que o importante é do “que” e “como” se realiza a distribuição de riqueza29. Nesse raciocínio de que o próprio mercado dará conta de estabelecer as soluções através de seu livre funcionamento, os cidadãos não são reconhecidos como voz ativa na tomada dessas decisões. Com efeito, se pode afirmar que a participação social e consciente não se mostra conveniente, já que os direitos sociais e a as respectivas políticas públicas veiculadoras de sua efetivação são questões secundárias nesse contexto globalizado. Dessa forma, os cidadãos interessados nessas políticas ficam alheios à seleção e à elaboração de políticas públicas que lhe dizem respeito, o que compromete a democracia e, por conseguinte, ocasiona um déficit de cidadania. 26

HESPANHA, Pedro. Mal-estar e risco social num mundo globalizado: Novos problemas e novos desafios para a teoria social. In A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.) São Paulo: Cortez, 2002 p.165. 27 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. p. 229. 28 RIBEIRO, Renato J. A sociedade contra o social. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 21. apud VIOLA, Sólon Eduardo Annes. Movimentos sociais e direitos. Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/solonviola/movimento.html 29 SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982. p. 50

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Portanto, um dos efeitos diretos da globalização na efetivação dos direitos sociais é justamente a redução de despesas públicas para as questões sociais e, consequentemente, um retrocesso no desenvolvimento de políticas públicas includentes. Por conseguinte, a cidadania na sua expressão mais substancial encontra-se fragilizada, porquanto a possibilidade de efetivação dos direitos sociais passa, inexoravelmente, pela inclusão da sociedade na elaboração de políticas públicas. Assim, [...] as duas mais importantes promessas da modernidade ainda a cumprir são, por um lado, a resolução dos problemas da distribuição (ou seja, das desigualdades que deixam largos estratos da população aquém da possibilidade de uma vida decente ou sequer de sobrevivência); por outro lado, a democratização política do sistema político democrático.30

O ponto de partida da prática democrática passa a ser, então, a própria sociedade, vista como origem do poder, pois não há cidadania sem participação nas decisões políticas da polis e sem solidariedade entre seus membros31, pois a elaboração de políticas públicas com base na participação social representa uma importante evolução da democracia representativa para uma democracia participativa, em que o poder local se mostra como o supedâneo para o início da transposição da exclusão social. Na medida em que a população é organizável, os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade para a sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento.32 Contudo, o poder local, em face da dimensão e da complexidade que esse processo legitimador da cidadania está a demandar, necessita instrumentar-se e articular-se, e é justamente na estrutura do Estado que encontrará os instrumentos para o seu exercício e para a realização de seus anseios, e é na articulação com a esfera global, mais especificamente com as organizações civis transnacionais, que encontrará o respaldo necessário para sua amplificação no mundo globalizado. Assim, embora o Estado nacional se mostre em declínio, ele não está superado. Ao contrário, a sua estrutura é fundamental para a garantia da cidadania ativa33, pois a atuação da sociedade, notadamente no que diz respeito à sua participação, bem como os princípios norteadores das políticas públicas, estão postos nas cláusulas estabelecidas pela Constituição, enquanto produto da atuação estatal. É nessa direção que a Constituição deve ser vista 30

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. p. 98 31 VIEIRA, Liszt. Cidadania e controle social. In: O público não estatal na reforma do Estado. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Organizadores). p. 78. 32 DOWBOR, Ladislau. Da globalização ao poder local: a nova hierarquia dos espaços. 1995. Disponível em http://dowbor.org/5espaco.asp. Acessado em 28/06/2007. p. 4 33 VIEIRA. Op. cit. p. 47

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(...) como elemento estruturador da ordem jurídica em todas as esferas de poder e articulação, o que implica uma abordagem compatível com a esfera nacional. Neste aspecto, deve-se verificar a compatibilidade das decisões públicas tomadas em nível local com os pressupostos inseridos na Carta Constitucional.34

É, pois, possível identificar nessa dinâmica global-local alguns efeitos emancipatórios, que se constroem desde uma maior consciência da sociedade no que diz respeito à necessidade de se articular para fazer frente aos efeitos perniciosos da globalização, notadamente o enfraquecimento do Estado nacional. Por isso, A análise do poder local, como estratégia organizacional do espaço sociopolítico assume destaque, principalmente em função do contexto de crise do espaço político nacional e de globalização dos mercados e das relações de poder. O que pode parecer contraditório, ou seja, o fortalecimento do poder local justamente no contexto da globalização, constitui, isso sim, uma estratégia de cidadania de manutenção do controle social sobre as decisões públicas e de alternativa para a concretização dos princípios constitucionais neste novo paradigma.35 (grifo nosso)

É na sociedade organizada, portanto, que reside a oportunidade de ampliação dos espaços de uma democracia efetiva, capaz de exigir a concretização dos direitos sociais, erigindo, assim, uma nova modalidade de exercício de cidadania: a deliberativa pela efetiva participação nos processos decisórios. De fato, nos países periféricos como o Brasil, em que a maioria da população não tem acesso a uma renda capaz de fazer frente às necessidades básicas para uma vida minimamente digna, resta evidenciado que a democracia representativa não só não atende às suas demandas mais prementes, como não raro transformam essa “cidadania” em mercadoria. Nesse contexto, é justamente na situação de desigualdade absoluta geradora de tensões que é possível encontrar as condições para a cidadania emergir com o propósito de mobilização organizada capaz de influenciar a tomada de decisões, especialmente as de caráter social, objeto de políticas públicas. O diálogo constante entre Estado e sociedade civil, considerada não só agora, mas também autora no processo de formulação e execução das políticas públicas sociais, é fator determinante para a legitimação da atuação estatal. 34

HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvich. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. pp. 253,254. 35 Idem, p. 259.

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Considerações finais O cenário de exclusão e desigualdade imperante nos países periféricos não foi inventado pela globalização, mas esta pode e deve ser responsabilizada pelo recrudescimento e amplificação das assimetrias econômicas e sociais. De fato, a globalização impôs ao mundo e, especialmente aos países de menor envergadura econômica, a adoção de certas medidas que acabaram resultando na erosão da soberania e no comprometimento da democracia, na medida em que decisões antes atinentes ao âmbito do Estado nacional passaram a ser tomadas em nível transnacional e basicamente por atores que não têm qualquer comprometimento com o bem estar deste Estado: as empresas globais. A receita formulada por esses atores têm um único e exclusivo propósito: o lucro a qualquer custo. Para tanto, foi imposto, como constantemente referido neste trabalho, um modus operandi global de desregulamentação e abertura dos mercados nacionais, o que, nos países periféricos, ocorre às custas das políticas de proteção social que são vistas como um entrave à nova ordem global de maximização dos lucros. Nesse contexto, a cidadania entendida como o direito a ter direitos, na acepção de Hannah Arendt, é afetada diretamente, restando reduzida à sua “modalidade” representativa. Como os Estados nacionais estão submetidos às exigências externas que, por certo, em quase nada coincidem com as necessidades dos países periféricos, ocorre um esvaziamento do exercício da cidadania: aqueles que são eleitos não representam, nem de longe, os interesses e as demandas de seus cidadãos. Há um verdadeiro descompasso entre o Estado nacional e a cidadania exercida no seu interior. A possibilidade que se apresenta é a do surgimento de uma cidadania participativa organizada provocada justamente pelas tensões geradas no seio da alarmante desigualdade social. Para que o Estado nacional seja um espaço para o homem, a população deve ser chamada a desempenhar um papel fundamental na reorganização da sociedade e da economia 36, mediante uma participação legítima, e não meramente formal. Nesse sentido, a participação social no estabelecimento e desenvolvimento de políticas públicas sociais deve ser vinculante, de maneira que o que for decidido pela sociedade tenha cunho deliberativo, e não meramente consultivo. O que se necessita, portanto, não é a incorporação de novos direitos, e sim uma cidadania capaz de participar efetivamente no processo de desenvolvimento nacional. Na medida em que a cidadania extrapola a concepção do individual, é no exercício da participação organizada civil que se encontram as condições de empoderamento para fazer frente aos desmandos da globalização e, assim, construir o caminho à efetivação dos direitos sociais na conquista da dignidade emancipatória.

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SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982 p. 60

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Referências bibliográficas BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Belo Horizonte: Movimento Editorial/FDUFMG (Nova Fase), 1995. DOWBOR, Ladislau. Da globalização ao poder local: a nova hierarquia dos espaços. 1995. Disponível em http://dowbor.org/5espaco.asp. DUPAS, Gilberto. O poder dos atores e a nova lógica global. Ensaio preparado para a Conferência Brasil e União Europeia Ampliada em setembro de 2004 (Rio de Janeiro). Disponível em www.scielo.br/pdf/cp/v35n124/a0335124.pdf HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvich. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. HESPANHA, Pedro. Mal-estar e risco social num mundo globalizado: Novos problemas e novos desafios para a teoria social. In A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.) São Paulo: Cortez, 2002. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, Vol.1, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro S.A, 1983. MARTIN, Hans-Peter e SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização: o assalto a democracia e ao bem-estar social. São Paulo: Globo, 1999. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1998. ____________. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Organizadores). Fundação Getulio Vargas Editora. ___________. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro – São Paulo: Record, 2001. DOWBOR, Ladislau. A reprodução social. Volume III – Descentralização e Participação: As novas tendências. São Paulo, fevereiro de 2001. Disponível em http://dowbor.org/5espaco.asp. VIOLA, Sólon Eduardo Annes. Movimentos sociais e direitos. Disponível em http://www. dhnet.org.br/direitos/militantes/solonviola/movimento.html

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Aplicação da Teoria Objetiva nos Casos de Acidente de Trabalho Danielle Riegermann Ramos Damião1 Rodrigo Caporusso2 Resumo O novo Código Civil trouxe significativa novidade sobre o tema responsabilidade civil. Em verdade, após uma longa história de adesão quase total a responsabilização subjetiva, encontra-se agora previsão expressa no novo texto civil a responsabilidade objetiva do causador do dano. É claro que a tradição de apego à teoria subjetiva não foi rompida. Entretanto, em situações especiais, ou seja, nas chamadas atividades com risco inerente, há uma troca de critério, passando o legislador a adotar a teoria objetiva, muito provavelmente em razão do grande número de acidentes nesses setores, pautado na teoria secular do risco criado, em atenção à dificuldade de prova por parte da vítima. O desafio de nosso trabalho é aferir a aplicabilidade do artigo do novo Código Civil, na hipótese de acidente de trabalho, ante os ditames contidos no artigo 7º, XXVIII, da Carta Maior, que claramente segue a regra da responsabilidade subjetiva. No direito brasileiro, a Constituição Federal criou a possibilidade de duplicidade de indenização em caso de acidente de trabalho. De uma forma objetiva, responde o INSS pela indenização tarifada devida ao empregado, seja qual for a causa do acidente. Aqui a responsabilização é integral, vale dizer, adotou o nosso sistema a teoria do risco integral, sendo certo que mesmo que o evento tenha sido causado exclusivamente pelo empregado, remanesce o direito à indenização. Por outro lado, o empregado acidentado pode ser beneficiado por uma segunda indenização caso reste provado que o empregador agiu com culpa ou dolo, responsabilização subjetiva. Para a elaboração deste trabalho foi utilizado como metodologia de pesquisa o método dialético. Palavras-chave: Acidente de trabalho; relação de emprego; responsabilidade objetiva. Abstract The new Civil Code brought significant new liability on the topic. In fact, after a long history of adherence will almost total accountability subjective, is now expressly provided in the new text civil strict liability of the tortfeasor. Of course, the tradition of attachment to the subjective theory was not broken. However, in special situations, ie, the so-called activities with inherent risk, there is an exchange of discretion, passing 1

Doutoranda em Função Social do Direito - FADISP (2015). Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003). Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002). Autora de jurídicas. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN) e da Faculdade São Luís. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (Graduação e Pós-Graduação). Assessora Jurídica da FUNEP - Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial, Civil e do Trabalho. 2 Graduado em Direito pela Faculdade São Luís – Jaboticabal. Advogado.

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the legislature to adopt the objective theory, most likely due to the large number of accidents in these sectors, based on secular theory of the risk created in attention to the difficulty of proof on the part of the victim. The challenge of our work is to assess the applicability of Article of the new Civil Code, in the event of an accident at work, against the dictates contained in Article 7, XXVIII, Greater Charter, which clearly follows the rule of subjective responsibility. Under Brazilian law, the Constitution created the possibility of double compensation in case of accidents at work. In an objective way, answers the INSS billed for compensation due to the employee, whatever the cause of the accident. Here accountability is integral, that is, our system has adopted the theory of integral risk, given that even if the event was caused solely by the employee remains entitled to compensation. Moreover, the injured employee may be benefited by a second compensation case remains proved that the employer acted with malice or negligence, accountability subjective.For the preparationof this paperwas usedas a research methodologythe dialectical method. Keywords: Accident at work; employment relationship; strict liability.

Introdução Os índices de acidentes de trabalho, são bastante preocupantes dentro da atual conjuntura em que vivemos. Este é definido como evento danoso que resulta no exercício do trabalho, provocando no empegado, direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença que determine morte, perda total ou parcial, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho, nesse sentido, aproveita-se para ressaltar que a concepção da responsabilidade civil do empregador decorrente de acidentes de trabalho encontra-se em constante evolução. Os princípios protetivos conferidos aos trabalhadores na Constituição Federal de 1988 são mais abrangentes do que aqueles enumerados no artigo 7º do mesmo diploma. A demanda de ações judicias contra a classe patronal e o acesso cada vez mais facilitado à justiça demonstra conscientização dos trabalhadores acerca de seus direitos. De forma que as arbitrariedades tão comumente cometidas no passado são hoje vistas com repulsa pela sociedade. Tais fatores contribuíram para a crescente tendência da aplicação da responsabilidade objetiva em casos em que o risco enfrentado pelo trabalhador é inerente ao serviço desempenhado. Isto porque apenas a teoria da culpa não é mais completamente eficaz para regular as atuais relações jurídicas, como veremos no decorrer do estudo. Em outras palavras, cabe a classe patronal não só explorar sua atividade econômica mas, também, garantir a segurança de seus trabalhadores provendo de forma adequada os meios necessários para a valorização do trabalho humano, fundamento da ordem econômica nacional. Desta forma, a estrutura do estudo se dará em duas partes, a saber: o primeiro tópico tratará do acidente de trabalho e de sua caracterização. Por fim,

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serão analisadas as principais questões sobre a responsabilidade civil, a teoria da responsabilidade objetiva do empregador nos casos de acidente de trabalho, as hipóteses de exclusão da referida responsabilidade, bem como o direito à indenização pela ocorrência do acidente de trabalho, em razão do constante anseio social da busca pela justiça, bem como as mais variadas medidas de prevenção e do meio ambiente do trabalho almejado para a sociedade. Para a elaboração deste trabalho foi utilizado como metodologia de pesquisa o método dialético.

Acidente do trabalho Evolução da legislação acidentária A primeira lei a tratar do tema acidente do trabalho foi concebida na Alemanha em 1884 por Bismarck. Constituía-se de normas de segurança do trabalho e continha as seguintes proteções: assistência médica, assistência farmacêutica, auxílio-funeral e pagamento pecuniário no valor de 100% do salário, enquanto o trabalhador permanecesse incapacitado para o trabalho. No início, o seguro era realizado entre o empregado e o empregador. Em seguida, o Tesouro alemão passou a garantir o pagamento, estruturando-se, assim, o conhecido sistema tríplice de custeio.3

Em 1897 surgiu na Inglaterra um plano que protegia somente os dependentes no caso de invalidez do trabalho. Esse seguro era pago num lapso de 36 meses. Na França, em 1989, foi instituída lei sobre o auxílio-acidente. Protegia trabalhadores em atividades consideradas perigosas, tais como a construção civil e a mineração. “O seguro compunha-se dos seguintes benefícios: auxílio-funeral, assistência médica e financeira. Tutelava, além dos acidentados, os dependentes”.4 Em outros países, paulatinamente, foi-se estruturando a proteção aos segurados: Itália, Espanha, Portugal, Estados Unidos. Citem-se ainda as convenções internacionais, como: Convenção nº 12, que trata da agricultura, e a nº 17, que trata do pagamento de indenização na forma de renda. Em 1942 surgiu o Plano Beveridge, criando o sistema de Seguridade Social, pelo qual todo cidadão tem direito à proteção social, mesmo o despossuído de condição financeira para contribuir. Implantando inicialmente na Inglaterra, em 1946, foi incorporado à Carta de Direitos do Homem, em 1948, como direito humano. 3 4

CORTEZ, Julpiano Chaves. Direito do trabalho aplicado. 2. ed. São Paulo: LTR, 2004, p.42. TSUTIYA, Augusto Massayuki. Curso de direito da seguridade social. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 358.

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A partir de então as organizações sociais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mantêm-se mobilizadas para que o sistema seja implantado em todos os países.

Evolução da legislação no Brasil A origem da proteção do trabalhador em face dos riscos da perda da capacidade laborativa e consequentemente de sua subsistência coincide com o nascimento do Direito do Trabalho. Explica Russomano que, “fazendo-se uma síntese histórica do desenvolvimento do Direito do Trabalho, não raramente se observa que os primeiros ensaios da legislação social foram feitos no domínio dos acidentes e das moléstias profissionais”.5 No tocante à proteção do trabalhador frente aos acidentes ocorridos em função do trabalho, observa-se evolução semelhante no Brasil. O primeiro diploma a tratar da matéria foi o Código Comercial (1850), que previa a garantia de pagamento de três meses de salários ao preposto que sofresse acidente em serviço (art. 78). A Lei nº 3.721, de 31.10.906, primeira lei geral sobre acidentes do trabalho, baseou-se na teoria da responsabilidade objetiva do empregador, pois [...]previa a responsabilidade do empregador pelos acidentes de trabalho decorrentes de dolo ou culpa e, ainda, de casos fortuitos; não haveria tarifação da indenização, nem a obrigatoriedade de que o empregador fizesse seguro de acidente de trabalho para seus empregados. As regras e parâmetros para a definição do valor eram as do Código Civil antigo. Antes disso, as Ordenações Filipinas e o próprio Código Civil definiram a responsabilidade civil subjetiva, havendo necessidade de que a vítima provasse a culpa do empregador (culpa aquiliana).7

Já a Constituição de 1934 foi a primeira a aludir a proteção ao acidente de trabalho (art. 121, § 1º, “h”)8, como prestação previdenciária, mantida em legislação à parte, e o seguro de natureza privada, a cargo da empresa. 5

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RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis da Previdência Social. 2. ed. São Paulo, p. 217 Apud CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 8. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 445. 6 BRASIL. Portaria nº. 3.721, de 31 de outubro de 1990. Baixa instruções para o processamento de chamada de mão-de-obra estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de out. 1990. 7 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. op. cit., p. 446. 8 BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Sala das Sessões do Congresso Nacional Constituinte. Rio de Janeiro: 16 de jul. 1934, art. 121, § 1º, “h”.

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O Decreto nº 24.637, de 10.7.349, dispôs sobre o direito à pensão para os herdeiros do acidentado. E o Decreto-Lei nº 7.036, de 10.11.44,10 ampliou a proteção do trabalhador urbano quanto a acidentes de trabalho para abarcar as concausas, o período in itinere e intervalo do trabalho. Somente a partir da edição dessa norma, o seguro obrigatório é devido cumulativamente com as prestações previdenciárias, passa-se a adotar o sistema de indenização chamado de tarifado, pois fixa o valor do benefício acidentário em parâmetros que levam em conta a remuneração do indivíduo, em substituição à concepção de indenização em parcela única, em que existia uma tabela, na qual “cada parte do corpo tinha um valor”.11 A Carta Política de 1946 faz referência expressa a obrigação do empregador manter o Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT (art. 157, XVII)12, separado do da previdência social. Enquanto a Constituição outorgada em 196713 não trouxe inovações em relação ao texto anterior. Já a Lei nº 5.316/6714 alterou significativamente a disciplina legal da proteção acidentária. Passou a adotar a teoria do risco social, integrando a partir de então o seguro de acidentes de trabalho na Previdência, englobando as doenças profissionais e do trabalho, e excluindo a exploração deste ramo por seguradoras privadas, tornando o SAT monopólio do Estado; além disso, retirou a carência para a aposentadoria e pensão acidentárias. A norma foi recepcionada pela Emenda nº 1/69,15 que manteve a integração do SAT à Previdência custeio tripartite. A Lei nº 6.195, de 19.12.7416, estendeu o SAT aos trabalhadores rurais, estando estes, a partir de então, amparados pelos benefícios acidentários. Antes, a aplicação das normas sobre proteção acidentária 9

BRASIL. Decreto nº. 24.637, de 10 de julho de 1934. Estabelece sob novos moldes as obrigações resultantes dos acidentes do trabalho e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de jul. 1934. 10 BRASIL. Decreto-Lei nº. 7.036, de 10 de novembro de 1944. Reforma da Lei de Acidentes do Trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de nov. 1944. 11 OLIVEIRA, José de. Acidentes do trabalho: teoria, pratica, jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 3 Apud CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. op. cit., p. 446. 12 BRASIL. Constituição (1946). Constituição da República dos Estados Unidos doBrasil. Sala das Sessões do Congresso Nacional Constituinte. Rio de Janeiro: 18 de set. 1946, art. 157, XVII. 13 BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. BrasíliaDF: Diário Oficial da União, 24 jan. 1967. 14 BRASIL. Lei nº. 5.316, de 19 de outubro de 1967. Integra o seguro de acidentes do trabalho na previdência social, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de set. 1967. 15 BRASIL. Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969.Diário Oficial da União, Brasília, 17 de out. 1969. 16 BRASIL. Lei nº. 6.195, de 19 de dezembro de 1974. Atribui ao FUNRURAL a concessão de prestações por acidente do trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, 19 de dez. 1974.

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somente seria feita por analogia. A Lei nº 6.367, de 19.10.7917, alterou a composição do tríplice custeio do SAT pela União, pelos trabalhadores e pelas empresas, estabelecendo um acréscimo de contribuição a cargo destas últimas (art. 15). A Constituição de 1988 insere o acidente de trabalho como risco social, logo passível de proteção previdenciária (art. 21, I)18. “O SAT volta a ser encargo somente do empregador (art. 7º, XXVIII)19, independentemente da indenização devida por dolo ou culpa. Adota-se, cumulativamente, a teoria do risco empresarial, com a do risco social”.20 As Leis nº 8.21221 e 8.213/9122, em seus textos originais, tratam do acidente do trabalho com benefícios diferenciados, regulamentando o custeio pelo empregador (art. 22, II, da Lei de Custeio), mantida a exclusividade de oferecimento do SAT pela previdência estatal. A Lei nº 9.032, de 28 de abril de 1995,23 dispôs que o benefício de prestação continuada de cunho acidentário seria equiparado ao benefício previdenciário, calculando-se a renda mensal com base no salário de beneficiário, não mais pelo salário de contribuição da data do acidente, que, na maioria das vezes, era mais vantajoso. Revogou, assim, o artigo 123 da Lei nº 8.213/9124, que possibilitava a conversão da aposentadoria por tempo de serviço ou por idade em aposentadoria por invalidez acidentária, sempre que o aposentado apresentasse doença profissional ou do trabalho relacionada com as condições que exercia anteriormente a aposentadoria. A Lei nº 9.129/9525 alteraria a forma de cálculo do auxílio-acidente, que passava a ser em percentual único, em vez dos três patamares de até então. 17

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BRASIL. Lei nº. 6.367, de 19 de outubro de 1976. Dispõe sobre o seguro de acidentes do trabalho a cargo do INPS, e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, 21 de out. 1976, art. 15. 18 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. BrasíliaDF: Diário Oficial da União, 5 out. 1988, art. 21, I. 19 BRASIL. op. cit., nota [18], art. 7º, XXVIII. 20 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. I, João Batista. Manual de direito previdenciário. 8. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 448. 21 BRASIL. Lei nº. 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 de jul. 1991. 22 BRASIL. Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefício da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 de jul. 1991. 23 BRASIL. Lei nº. 9.032, de 28 de abril de 1995. Dispõe sobre o valor do salário mínimo, altera dispositivos das Leis nº 8.212 e nº 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 29 de abr. 1995. 24 BRASIL. op. cit., nota [22], art. 123. 25 BRASIL. Lei nº. 9.129, de 20 de novembro de 1995. Autoriza o parcelamento do recolhimento de contribuições previdenciárias devidas pelos empregadores em geral, na forma que específica, e determina outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, 21 de nov. 1995.

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Atualmente, a Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.9826, exclui o acidente do trabalho dos eventos protegidos exclusivamente pelo regime geral de previdência, estabelecendo que, nos termos da lei, poderá ser permitida a cobertura do risco concorrentemente pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e pela previdência privada, já estando em tramitação no Congresso Nacional projeto do ex-Ministro Reinbold Stephanes, que sustenta a exclusão do acidente do trabalho no campo da previdência social, adotando-se sistemas de seguro mediante contribuições somente de empregados e empresas.27

Conceito de acidente de trabalho O conceito de acidente de trabalho passou a ser definido pela Lei nº 6.367 de 19.10.197628. O artigo 2º do referido diploma legal assim define o acidente de trabalho: “Art. 2º. Acidente de trabalho é aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.29 Por sua vez, a Lei nº 8.213, de 24.07.199130, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social, trouxe um conceito mais amplo e atual do instituto, abrangendo segurados que até então não se enquadravam na definição anterior. In verbis: Art. 19. Acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou redução, permanente ou temporária da capacidade para o trabalho.31

Dessa forma, o acidente de trabalho é “o evento danoso verificado no exercício do labor, ou in itinere, resultando lesão que agride a integridade física ou psíquica do trabalhador, impossibilitando-se para o trabalho de forma temporária ou permanente”.32 26

BRASIL. Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998. Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, 15 de dez. 1998. 27 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. op. cit., p. 448. 28 BRASIL. Lei nº. 6.367, de 19 de outubro de 1976. Dispõe sobre o seguro de acidentes do trabalho a cargo do INPS e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 19 de out. 1976. 29 BRASIL. op. cit., nota [28], art. 2º. 30 Ibidem. 31 BRASIL. op. cit., nota [22], art. 19. 32 SILVA, Michael Hideo Atakiama. A responsabilidade civil da empresa por acidentes de trabalho. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo: n. 131, jul/set, 2008, p. 136.

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Aplicação da Teoria Objetiva nos Casos de Acidente de Trabalho

Sendo assim, mesmo em se tratando de causa concorrente para resultado, esta pode estabelecer o nexo entre o dano e resultado, sendo necessário apenas verificar-se se o trabalho desempenhado contribuiu para o acidente ou doença ocupacional.

Doenças ocupacionais: doenças do trabalho e doença profissional Não só os acidentes típicos são considerados acidentes de trabalho. As doenças adquiridas pelos empregados em decorrência do trabalho também são equiparadas aos acidentes de trabalho. Essas doenças ocupacionais desencadeiam-se pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade ou pelas condições especiais em que esse trabalho é realizado e com ele se relaciona diretamente. Suas causas são o meio ambiente do trabalho inadequado, sendo assim, essas doenças decorrem dos danos ao meio ambiente do trabalho. Elas vêm aumentando a cada dia em decorrência das mudanças no mundo do trabalho, que se agravam com a precarização do trabalho humano, fenômeno existente em quase todo o mundo e intensificado nas economias emergentes, como é o caso do Brasil. A doença profissional ou tecnopatia é “a doença típica, peculiar a determinada profissão, causando certas patologias. Nestes casos, o nexo causal entre a doença e a atividade é presumido (júris et jure), não necessitando maiores comprovações”.33 A mera comprovação do desempenho da atividade e a existência da doença profissional são suficientes para caracterizar o acidente de trabalho. “São comuns aos profissionais de certa atividade, como, por exemplo, a pneumoconiose, entre os mineiros”.34 O artigo 20, § 1º da Lei 8.213/91, por sua vez, exclui expressamente as seguintes doenças do conceito do trabalho: Art. 20. [...] § 1º Não são consideradas como doença do trabalho: a) a doença degenerativa; b) a inerente a grupo etário; c) a que não produza incapacidade laborativa; d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.35

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SILVA, Michael Hideo Atakiama. A responsabilidade civil da empresa por acidentes de trabalho. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo: n. 131, jul/set, 2008, p. 136. 34 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. op. cit., p. 448. 35 Ibid, art. 20, §1º.

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Contudo, apesar de a legislação em vigor apresentar conceitos diferenciados para esses institutos, não há distinção ao tratamento da matéria quanto ao recebimento de benefícios, quando o segurado for acometido por uma das moléstias elencadas.36

Nexo causal Para a caracterização do acidente de trabalho é necessário que a enfermidade, além de incapacidade, se relacione com o exercício do trabalho. A esta relação entre o dano experimentado pela vítima e a atividade laborativa dá-se o nome de nexo causal O nexo causal é, portanto, “o vínculo fático que liga o efeito (incapacidade para o trabalho ou morte) à causa (acidente de trabalho ou doença ocupacional). Decorre de uma análise técnica, a ser realizada, obrigatoriamente, por médico perito ou junta médica formada por peritos nessa matéria”.37 Incumbe a perícia médica do INSS a investigação do nexo de causalidade entre a lesão, perturbação ou morte e o acidente ou doença, bem como tipificar o evento como sendo em decorrência do trabalho. Aqui se observa uma das constantes críticas dos benefícios da Previdência Social no Brasil: a caracterização do acidente de trabalho ou da doença ocupacional nem sempre é tarefa fácil, e, pior, ao contrário do que preconiza a melhor doutrina, os profissionais encarregados de fazer o laudo médico de nexo de causalidade oneram o vitimado com a comprovação da correlação entre infortúnio e efeito causado à saúde do segurado.38

Todavia, primordial se faz destacar que o problema não existe só na previdência brasileira.

Concausalidade A concausalidade do acidente do trabalho pode ser observada no inciso I do artigo 21 da Lei nº 8213/9139, quando a lei equipara ao acidente do trabalho “o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuição diretamente para a morte do segurado, para a redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação”.40 36

TSUTIYA, Augusto Massayuki. op. cit., p. 364. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de.; LAZZARI, João Batista. op. cit., p. 451. 38 Ibidem. 39 BRASIL. op. cit., nota [22], art. 21, I. 40 Ibidem. 37

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A exceção prevista no inciso I do artigo 21 da Lei nº 8213/9141 é conhecida, portanto, como concausalidade. Tendo o fato ocorrido como uma condição fundamental para o acidente do trabalho, estará configurado o infortúnio. É o que ocorre quando o fato superveniente a um evento vem a resultar, por exemplo, na morte do empregado. Seria a hipótese de um empregado quebrar um braço no local de trabalho e posteriormente vir a perdê-lo por gangrena. Como se observa, o segundo fato contribui para a ocorrência do fato e o segundo não descaracteriza o acidente do trabalho, pois se o operário não tivesse quebrado o braço na empresa, não teria necessidade de amputar esse mesmo braço posteriormente. Esclarece Octávio Bueno Magano que a concausa pode ser preexistente, superveniente ou simultânea. Se o trabalhador sofre ferimento leve e não obstante vem a morrer porque era diabético, tem-se que a concausa é preexistente. Se o trabalhador recebe ferimento leve e vem a morrer em virtude do tétano, trata-se de concausa superveniente. Se o trabalhador, acometido de mal súbito, cai do andaime, morrendo em consequência, configura-se a concausa simultânea.42

Pode-se, por exemplo, considerar como concausa o portador de esquizofrenia que teve moléstia desencadeada em decorrência de assalto (Ac. da 8ª C. do 2º TAC SP Ac. 387.936-00/2, Rel. Juiz RenzoLeonardi, j. 23-12-93, DJ SP, 21-10-9, p. 107).

Caracterização do acidente de trabalho Segundo Sergio Pinto Martins, o acidente deverá ser caracterizado: a) Administrativamente, por meio do setor de benefícios do INSS, que estabelecerá o nexo entre o trabalho exercido e o acidente. b) Tecnicamente, por intermédio da Perícia Médica do INSS, que estabelecerá o nexo da causa e efeito entre: c) o acidente e a lesão; d) a doença e o trabalho; e) a causa mortis e o acidente; f ) judicialmente, por perícia médica determinada pelo juiz.43

Além desses elementos, para a caracterização do acidente é preciso: 41

Ibidem. MAGANO, Octavio Bueno. Primeiras lições de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.p. 417. 43 MARTINS, Sergio Pinto. Direito da seguridade social. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 420-421. 42

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1. causa: o acidente é proveniente de uma causa, não é provocado; 2. nocividade: o acidente deve provocar lesão corporal ou perturbação funcional; 3. incapacidade: o acidente deve impedir o segurado de trabalhar; 4. nexo etiológico: deve haver relação direta ou indireta entre a lesão e o trabalho realizado pela vítima.44

A perícia médica do INSS considerará caracterizada a natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação Internacional de Doenças – CID, em conformidade com o que dispuser o regulamento (art. 21-A da Lei nº 821345). A perícia médica do INSS deixará de aplicar o disposto acima quando demonstrada a inexistência do nexo epidemiológico, de cuja decisão caberá recurso com efeito suspensivo, da empresa ou do segurado, ao Conselho de Recursos da Previdência Social.46 Ainda ao INSS caberá anotar na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado o acidente do trabalho e os seus benefícios (art. 30, CLT).

Teoria objetiva e a reparação civil nos casos de acidente de trabalho Responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro O escopo da responsabilidade civil funda-se na premissa de que todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo, conforme preceitua o artigo 186 do Código Civil.47 Assim, estabelece-se elementos essenciais da responsabilidade civil, quais sejam, ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade, e dano à vítima. Todavia o Código Civil excepcionou a regra acima (responsabilidade subjetiva), admitindo que a culpa é insuficiente para regular todos os casos de responsabilidade. Trata-se do disposto no artigo 927 do Código Civil,48o qual estabelece a responsabilidade independentemente de culpa nos casos em que a “atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar risco para os direitos de outrem”.49 44

Ibid, p. 421. BRASIL. op. cit., nota [22], art. 21-A. 46 MARTINS, Sergio Pinto. op. cit., p. 421. 47 BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Dispõe sobre Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de jan. 2002, art. 186. 48 Ibid, art. 927. 49 STOCO, RUI. Tratado de responsabilidade civil. 6. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 130. Apud SILVA, Michael Hideo Atakiama. op. cit., nota [32], p. 137. 45

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O direito à indenização pela ocorrência do acidente de trabalho por sua vez, funda-se no constante anseio social da busca pela justiça, ou seja, tendo o agente causado um dano, deve repará-lo para que se restabeleça o status quo ante. Isto quer dizer que, na medida do possível, repõe-se a vítima à situação anterior à lesão, de forma in natura ou pecuniária. Dessa forma, o empregador, ao desenvolver sua atividade empresarial, assume os riscos sociais pelo negócio escolhido, sendo a garantia da integridade física e mental de seus empregados uma cláusula implícita no contrato de trabalho, entendimento este disseminado pela jurisprudência. Neste mesmo sentido a Constituição Federal bem explicita tal argumento ao definir o princípio da dignidade humana (art. 1º, III), os valores sociais do trabalho e livre iniciativa (art. 1º, IV), da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), da proteção do empregado contra a dispensa injusta ou arbitrária (art. 7º, I), da valorização do trabalho humano (art. 170), a redução de riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII) e da função social da propriedade (art. 170, III).50

Por muito tempo a doutrina e jurisprudência militaram pela aplicação da responsabilidade subjetiva, para apuração da responsabilização pelo acidente de trabalho. Todavia, a diversificação nas relações de trabalho demonstrou que ônus imposto ao empregado, o qual não tem todas as condições necessárias para a adequação produção da prova, em razão da subordinação inerente que existe, dificultando a concessão da indenização pretendida, ainda que presentes o dano e o nexo de causalidade. A responsabilidade da empresa em decorrência do acidente de trabalho dependerá do tipo de atividade desenvolvida, estabelecendo-se assim a responsabilidade subjetiva ou objetiva, cujas implicações e diferenças são substanciais, posto a necessidade ou não da prova de culpa do empregador. Ainda aqui também cabe mencionar que a responsabilidade pode derivar de contrato (responsabilidade contratual), disposta nos artigos 395 e seguintes do Código Civil, ou do ilícito (ilícito extracontratual), também chamada aquiliana, regulamentada pelos artigos 186 a 188, 327 e 944 seguintes do diploma citado.

Responsabilidade subjetiva e objetiva A responsabilidade subjetiva, ou teoria da culpa, prevista no artigo 186 do Código Civil, pressupõe o dolo ou culpa como elemento fundamental da responsabilidade civil pelo dano imputado, sendo a regra geral (mas não única) para os casos de acidentes de trabalho, insculpida no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal.51 50

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SILVA, Michael Hideo Atakiama. op. cit., nota [32], p. 137-138. SILVA, Michael Hideo Atakiama. op. cit., nota [32], p. 138.

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Nesse sentido, leciona Carlos Roberto Gonçalves: diz-se, pois, ser subjetiva a responsabilidade quando se esteia na ideia de culpa. A prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Dentro desta concepção, a responsabilidade do causador do dono somente se configura se agiu com dolo ou culpa.52

Com o advento da Constituição de 1988 passou a ser desnecessária a caracterização da culpa grave para surgir o dever de indenizar, bastando a culpa simples, nas modalidades de imprudência, negligência ou imperícia, conforme o Código Civil. Nesse sentido, o empregado deve fazer prova de que o empregador agiu ou deixou de agir da forma esperada para garantir a sua segurança ou descumpriu norma legal/regulamentar, evidenciar o dano sofrido e, por fim, o nexo de causalidade. A ação ou omissão praticada pelo empregador deve se relacionar diretamente com o infortúnio ocorrido com o empregado, cabendo a este a comprovação dos fatos alegados. Frisa-se que na modalidade de responsabilidade subjetiva é incabível a inversão do ônus da prova, por nítida incompatibilidade dos institutos posto decorrer a presunção da culpa, inerente à responsabilidade objetiva.53 Apesar de não ser um consenso entre os doutrinadores, verifica-se que a jurisprudência tem adotado a teoria do risco para impor, em certos casos, a responsabilidade objetiva do empregador pelo acidente de trabalho, posto que “a culpa é insuficiente para regular todos os casos de responsabilidade”.54 De acordo com Caio Mário da Silva Pereira a doutrina, ao invés de exigir que a responsabilidade civil seja resultante dos elementos tradicionais (culpa, dano, vínculo de causalidade entre uma e outro) assenta na equação binária cujos pólos são o dano e a autoria do evento danoso. Sem cogitar da imputabilidade ou de investigar a antijuridicidade do fato danoso, o que importa para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o evento e se dele emanou prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor do fato causador do dano é o responsável.55

É de se destacar o papel significativo de Saleilles e Josserand, ainda no século XIX, que, pautados pela chamada teoria do risco, contribuíram para o fortalecimento da responsabilidade objetiva ou da responsabilidade sem culpa. 52

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 21. SILVA, Michael Hideo Atakiama. op. cit., nota [32], p. 139. 54 GONÇALVES, Carlos Roberto. op. cit., nota [52], p. 21. 55 SALIM NETTO, Adib Pereira. A teoria do risco criado e a responsabilidade objetiva do empregador em acidentes de trabalho.Revista de Direito do Trabalho, São Paulo: n. 120, out/ dez, 2005, p. 15. 53

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A teoria do risco como respaldo para o desenvolvimento da responsabilidade objetiva Destacam os doutrinadores que foram a Revolução Industrial, a explosão demográfica e o pregresso científico os fatores que ensejaram uma nova concepção de responsabilidade civil. O mecanismo que desenvolveu a indústria gerou também um grande número de acidentes de trabalho. O progresso científico por sua vez colocou diversos veículos nas ruas, advindo daí muitos acidentes. Assim, a explosão demográfica é decorrência da Revolução Industrial. Em razão do crescimento da indústria e com a mecanização da produção, grande foi o número de acidentes de trabalho, sendo que o operário não tinha nenhum amparo. Mesmo após o acidente, a situação do trabalhador era de desamparo, porque não havia meios para provar a culpa do empregador. Foi quando os juristas perceberam que a teoria subjetiva não mais atendia à demanda surgida com a transformação social, principalmente ante o pesado ônus da prova que recaía sobre os trabalhadores. Assim, em final do século XIX, destacam-se os trabalhos dos juristas Raymond Saleilles e Louis Joserand, que, buscando um fundamento para a responsabilidade objetiva, desenvolveram a teoria do risco.56 Segundo Maria Helena Diniz, “a responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, existente desde o Direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubiemolumentum, ibi ônus; ubicommoda, ibiincommoda)”.57 A ideia é de que o fundamento desta responsabilidade está na atividade exercida pelo agente, pelo perigo que pode causar dano à vida, à saúde ou a outros bens, criando risco de dano para terceiros. São da mesma autora os exemplos das atividades destinadas a produção de energia elétrica ou de exploração de minas; à instalação de fios elétricos, telefônicos e telegráficos; ao transporte aéreo, marítimo e terrestre, à construção e edificação de grande porte. Segundo Savatier, a responsabilidade, fundada no risco, consiste, portanto, na obrigação de indenizar o dano produzido por atividade exercida no interesse do agente e sob seu controle, sem que haja nenhuma indagação sobre o comportamento do lesante, fixando-se no elemento objetivo, isto e, na relação de causalidade entre o dano e a conduta do causador.58

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SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., nota [55], p. 16. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 7. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 56. 58 SAVATIER, Traité de La responsabilitécivile. Paris, V. 1, p. 274. Apud SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., p. 17. 57

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A teoria do risco teve diversas vertentes, destacando-se a do risco-proveito, a do risco profissional, a do risco excepcional, a do risco integral e a do risco criado. Pela teoria do risco-proveito, responsável é aquele que tira proveito, onde está o ganho, aí reside o encargo. Pela teoria do risco profissional o dever de indenizar está presente quando o fato prejudicial é uma decorrência da atividade ou da profissão do lesado. Já pela teoria do risco excepcional, a responsabilidade está presente, quando o dano decorre de situação anormal; escapando da craveira comum da atividade da vítima. Pela teoria do risco integral, admitida no âmbito do Direito Administrativo, a responsabilidade decorre da própria atividade, sendo uma forma de repartir por todos os membros da coletividade os danos atribuídos ao Estado, ainda que o dano seja decorrente da atividade da vítima. Por derradeiro, conforme destaca Caio Mario, tem-se a teoria do risco criado, sendo a que melhor se adapta às condições de vida social, fixado-se na ideia de que se alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade, responde pelos eventos danosos que essa atividade gera para os indivíduos, independentemente de determinar se em Ada caso, isoladamente, o dano é devido à imprudência, a um erro de conduta.59 Jean Carbonnier cita as razões da receptividade da teoria do risco: além do desenvolvimento da máquina e da correspectiva multiplicidade de acidentes e dos acidentes anônimos cuja causa não se pode atribuir a nenhuma ação humana, acresce a circunstância de que, para quem vive de seu trabalho o acidente corporal significa a miséria. É, então, preciso organizar a reparação.60

Carlos Henrique Bezerra Leite, comentando a responsabilidade objetiva do empregador em razão do fato da gravidez, explica: “ademais, é sabido que o risco da atividade empresarial corre por conta do empregador (CLT, art. 2º) máxime se atentarmos para o princípio constitucional determinante de que a propriedade atenderá a sua função social (CF/88, art. 5º, XXIII)”.61 Caio Mário da Silva Pereira sintetizou: aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas e evitá-lo.[...] A teoria do risco criado importa em ampliação do conceito do risco proveito. Aumenta os encargos do agente, 59

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 287-288. Apud. SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., p. 17. 60 CARBONNIER, Jean. Droit Civil. V. 4. LesObligations, p. 298. Apud SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., p. 17. 61 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direito e Processo do Trabalho na perspectiva dos direitos humanos. Rio de janeiro: Renovar, 2003, p. 231. Apud SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., p. 17-18.

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é, porém, mais equitativa para a vítima, que não tem de provar que o dano resultou de uma vantagem ou de um benefício obtido pelo causador do dano.62

Em nosso ordenamento jurídico a responsabilidade objetiva está presente em legislação especial, podendo ser citados o Decretodo Poder Legislativo nº 2.681/1912, que dispõe sobre as estradas de ferro; a Lei nº 7565/86, Código Brasileiro de Aeronáutica; o Decreto-Lei nº 227/67, Código de Mineração; Lei nº 8078/90, Código de Defesa do Consumidor; e Lei nº 9503/97, Código de Trânsito Brasileiro.63 Há também hipóteses de responsabilização objetiva em nível constitucional, como a responsabilidade extracontratual da Administração Pública, prevista no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal,64 e a responsabilidade em acidentes nucleares, prevista em seu artigo 21, XXIII, “c”.65

Excludentes da responsabilidade objetiva do empregador Inicialmente, convém advertir que o estudo das excludentes da responsabilidade do empregador somente tem cabimento para quem adota a tese da responsabilidade objetiva, porquanto, a se comungar da teoria da responsabilidade subjetiva, calcada na culpa do empregador, cabe ao empregado provar cabalmente que aquele incorreu em uma das modalidades de culpa, mediante uma das formas de cometimento analisadas anteriormente.  A culpa exclusiva da vítima, também denominado fato da vítima, é um dos elementos hábeis a isentar a responsabilidade do agente, visto romper o elo entre o ato praticado e o prejuízo sofrido pela vítima. No caso, trata-se de hipótese em que a conduta da vítima é causa única para a ocorrência do infortúnio, decorrente de seus próprios atos de forma independente das cautelas do empregador. Ainda, inexiste qualquer relação “com o descumprimento de normas legais, contratuais, convencionais, regulamentares, técnicas ou do dever geral de cautela por parte do empregador”.66 A isenção de responsabilidade fundada em caso fortuito ou força maior possui fundamento legal no artigo 1058 do Código Civil67 e no artigo 501 da Consolidação das Leis do Trabalho.68 62

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 24. Apud SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., p. 18. 63 SALIM NETTO, Adib Pereira. op. cit., p. 18. 64 BRASIL. op. cit., art. 37, § 6º. 65 Ibid, art. 21, XXIII, c. 66 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Indenização por acidente de trabalho ou doença ocupacional. 3. ed. São Paulo: LTR, 2007, p. 147. Apud SILVA, Michael Hideo Atakiama. op. cit., nota [100], p. 142. 67 BRASIL. op. cit., nota [50], art. 1058. 68 BRASIL. op. cit., nota [14], art. 501.

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Trata-se de hipótese imprevisível ou inevitável, cujos efeitos fogem do controle do empregador. Sua caracterização deve pautar-se pelos princípios da razoabilidade e com vistas ao atual estágio de desenvolvimento tecnológico. Nesse contexto, a conduta, a conduta esperada é justamente a adoção de medidas preventivas para fim de evitar aquele evento imprevisível, mas que, contudo, suas consequências são previsíveis e, logo, passíveis de cautelas. O fato de terceiro, entendido como aquele que não o causador do dano ou a vítima, ocorre quando a provocação do dano causado não possui relação direta com a conduta do agente, a qual figurou como mero instrumento. Na hipótese o evento danoso não se inclui no risco assumido pelo empresário/ empregador, sendo alheio à sua atividade principal e sem qualquer pertinência como o exercício do trabalho.

Conclusão A concepção da responsabilidade civil empresarial decorrente de acidentes de trabalho encontra-se em constante evolução. Os princípios protetivos conferidos aos trabalhadores na Constituição Federal são mais abrangentes do que aqueles enumerados no artigo 7º da Constituição Federal. A demanda de ações judiciais contra empresas e o acesso, cada vez mais facilitado à justiça demonstra uma crescente conscientização dos trabalhadores acerca de seus direitos. As arbitrariedades tão comumente cometidas no passado são hoje vistas com repulsa pela sociedade. Tais fatores contribuem para a crescente tendência da aplicação da responsabilidade objetiva em casos em que o risco enfrentado pelo trabalhador é inerente ao serviço desempenhado. Isso porque apenas a teoria da culpa não é mais completamente eficaz para regular as atuais relações jurídicas. A reparação do dano sofrido não é mais encarada apenas de forma individualista, estritamente sob o ponto de vista da vítima. A responsabilização da empresa possui agora uma íntima relação com o equilíbrio social, que se traduz na função social da propriedade privada, consagrada no artigo 170, III, da Carta Magna. Em outras palavras, cabe às empresas não apenas explorar sua atividade econômica, mas também garantir a segurança de seus trabalhadores, provendo de forma adequada os meios necessários para a valorização do trabalho humano, fundamento da ordem econômica nacional. Por certo, todavia, que a empresa não deve suportar um ônus além do exigível, motivo pelo qual as excludentes de responsabilidade devem ser observadas, mesmo em se tratando da responsabilidade objetiva. As divergências observadas acerca da aplicabilidade da responsabilidade objetiva, estatuída no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, baseiam-se principalmente em uma fundamentação restritiva acerca do artigo 7º, XXVIII,

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da Constituição Federal. Todavia, percebe-se que não há contrariedade à Carta Magna, uma vez que os direitos enumerados no referido artigo 7º, não é um rol taxativo, posto, inclusive, a possibilidade de existência de novos direitos que visem a melhoria das condições dos trabalhadores, conforme disposição do caput. Nesse sentido, o legislador ordinário está autorizado a ampliar os direitos da classe trabalhadora, bem como fixar normas de caráter protetivo. Não poderá fazê-lo, no entanto, na perspectiva de reduzir as conquistas sociais. Dessa forma, a responsabilidade subjetiva e objetiva podem ser aplicadas aos casos em concreto, todavia com campos de incidência diferentes, a serem determinados pelas peculiaridades das situações analisadas. Assim, conclui-se que demonstrada a aplicabilidade da responsabilidade objetiva, pautada pela teoria do risco criado, no bojo das relações de emprego, em hipóteses de acidente de trabalho quando presente o risco inerente, não há obstáculos jurídicos à imediata aplicação do preceito contido no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil. A própria legislação trabalhista, ao regular questões como periculosidade, insalubridade e risco portuário, já fornece critérios para efetividade.

Referências bibliográficas

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Poder Geral de Natureza Administrativo-cautelar pelo Delegado de Polícia e sua Função Inerente ao Sistema Acusatório Garantista Ruchester Marreiros Barbosa1 Resumo O objetivo deste trabalho é demonstrar que o ordenamento Constitucional e infraconstitucional ao adotar o sistema acusatório como sistema processual penal norteador da persecutio criminis no Estado Democrático de Direito, atribui ao Estado-investição, presentado na figura do Delegado de Polícia, no âmbito do procedimento investigatório um feixe de poderes-deveres meios decisórios e de natureza cautelar para consecução dos fins da investigação criminal, qual seja a apuração de infrações penais e os indícios de sua autoria. Iremos demonstrar que nossa Constituição da República adotou um sistema de reserva absoluta e relativa da jurisdição, ou seja, na investigação criminal haverá medidas de natureza investigatória que deverão ser decidias exclusivamente pelo Estado-juiz (reserva absoluta), e outras medidas decididas pelo Estado-investigador (reserva relativa), com controle posterior ao Estado-juiz. Este controle posterior em algumas vezes será de ofício e em outras ocasiões somente quando provocado. Palavras-chave: Investigação criminal; reserva absoluta e relativa da jurisdição; medidas cautelares. Abstract The objective of this work is to demonstrate that the Constitutional order and federal laws by adopting the accusatory system and criminal procedural system guiding the criminis persecutio the democratic rule of law, gives the State investigator presented with a delegate of Police, under the investigative procedure a beam powers and duties of decision-making means and precautionary nature to achieve the purposes of criminal 1

Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Processo Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Processual Penal da Graduação e Pós-Graduação da UNESA/RJ, professor de Penal e Processo Penal da Pós-Graduação da Universidade Cândido Mendes, professor conteundista do site www.atualidadesdodireito.com.br dos professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Professor concursado da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos jurídicos e científicos. Membro Titular da Association Internationale de Droit Pénal, Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro da Law Enforcement Law Enforcement Against Prohibition. Palestrante e Conferencista. email: [email protected]. Janeiro de 2015.

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investigation, namely the investigation of criminal offenses and the evidence of his own. We will demonstrate that our Constitution adopted an absolute reserve system and on the jurisdiction. Thus, research on criminal will investigative nature of measures to be decidias exclusively by the state judge (absolute reserve), and other measures adopted by the State investigator (relative reserve), with subsequent control the State judge. This latter control sometimes be craft and at other times only when provoked. Keywords: Criminal investigation; absolute and relative reserve of jurisdiction; precautionary measures.

Introdução Não há duvidas que após a Constituição da República de 1988 instituiuse formalmente à nação brasileira um Estado de Direito Social e Democrático. De fronte a esta malha normativa magna, diversos dispositivos do Código de Processo Penal não foram recepcionados pela nova ordem constitucional. Inúmeros poderes-deveres das autoridades (policiais e jurisdicionais) restaram flagrantemente contrários ao texto da Carta Cidadã. Saltaram aos olhos, por exemplo, a não recepção constitucional dos artigos 26 e 531, ambos do CPP, antes mesmo de sofrer alteração pela Lei 11.719/08, não se admitindo mais que nas contravenções penais a ação penal tenha início por portaria expedida pelo delegado ou magistrado (procedimento denominado de judicialiforme), diante da reafirmação do princípio ne procedat judex ex officio, bem como do sistema acusatório extraído do disposto no art. 129, I, da CRFB/88, cabendo ao Ministério Público promover privativamente a ação penal pública e ao ofendido, a ação penal privada, inclusive a subsidiária da pública, conforme, art. 5º, LXI da CRFB. Neste mesmo sentido, também restou evidenciado que o art. 241 do CPP, segundo ao qual seria legítima a busca e apreensão domiciliar realizada pela autoridade policial pessoalmente, dispensando o mandado, por afronta direta ao texto sufragado no art. 5°, XI da CRFB, não tendo sido portanto, neste aspecto, recepcionado pelo dispositivo em comento. No entanto, sobre o mesmo artigo (art. 241 do CPP) restaram dúvidas a despeito da busca e apreensão realizada pelo magistrado pessoalmente, ou seja, numa primeira análise, se o dispositivo estaria em rota de colisão com o sistema acusatório, e numa segunda perspectiva, se a este deveria ter expedido o mandado, (como documento delimitador do ato), ainda que para si mesmo, como garantia ao destinatário da sujeição do ato estatal. Sobre esses dois prismas levantados, a doutrina não é pacífica, e portanto, com relação a esta parte do art. 241, do CPP, ainda pairam controvérsias, diante da necessidade de uma interpretação mais ampla de toda a Carta Constitucional, de forma sistêmica e teleológica para uma resposta a contento. Há razões de ordem legislativa, política e filosófica para pairarem dúvidas na parte do magistrado como alhures citado, do disposto no art. 241 do CPP, pelas quais não nos aprofundaremos neste trabalho.

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O que estamos querendo trazer à baila com o exemplo do art. 241, do CPP, na parte que diz respeito a autoridade judiciária, são questões de ordem sistêmica que não ficaram claras em seu alcance entre o texto constitucional e as normas processuais penais, e que pelas mesmas razões conjunturais, pelas quais se abriu margem às controvérsias sobre a atuação da atividade do poder judiciário pelo magistrado, no âmbito da investigação criminal, há também que se debater o verdadeiro alcance das normas processuais penais que digam respeito a própria investigação criminal e o feixe de poderes do Delegado de Polícia, diante da precária, míope e ausência total de regras delineadoras da ação do Estado-investigação. Em outras palavras, quando o texto constitucional é claro e direto e o texto infraconstitucional está frontalmente oposto restam poucas, senão nenhuma dúvida quanto a sua interpretação e efetivação. No entanto, quando há necessidade de se identificar o alcance e limites do poder emanado do texto infraconstitucional diante do poder que o Constituinte quis emanar, mister uma análise cuidadosa e com parcimônia, para se entender o alcance da norma para atingir os escopos de um Estado de Direito Social e Democrático, e para isso, devemos empregar a melhor hermenêutica2 que harmonize as normas infraconstitucionais processuais penais e a Constituição, parafraseando J. J. Gomes Canotilho3, buscando a “máxima eficiência” de uma ordem constitucional que deve corrigir os textos das normas infraconstitucionais de aspirações nitidamente fascistas, pois, segundo Paulo Bonavides4: “a lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia de poder livre e da autoridade legítima exercitada em proveito da pessoa humana.”

Diante desse quadro, nos vemos diante de diversas normas de natureza processual que regulamentam a investigação criminal, além do código de processo penal, criando situações de interpretações absurdas como se fossem cheques em branco assinado pelo legislador para que o Delegado de Polícia degrade, avilte, corrompa e escravize a vítima e o investigado, violando seus direitos fundamentais. Ainda neste diapasão, a vítima fica em segundo plano, enquanto o Estadoinvestigação, sem analisar a proteção dos direitos dela, envereda pela busca irracional de um culpado, com inversão total dos postulados constitucionais da presunção de inocência. 2

Hermenêutica é de origem grega, em razão do deus Hermes (Mercúrio) como mensageiro de Zeus (Júpiter), segundo ao qual caberia àquele a entrega da mensagem, cuja interpretação era realizada pelo seu destinatário. 3 Apud, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, Idem, p. 175 4 Bonavides, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p. 344.

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Por outro lado, em não garantindo a eficiência de uma investigação rápida e dinâmica, deixa-se ao léu um outro direito fundamental à vítima de ter resposta eficiente de uma investigação, sem lhe dar mecanismos de controle do procedimento investigatório, bem como não resguarda à Autoridade de Garantias (Delegado de Polícia) mecanismos de acesso à efetividade investigativa, entendendo-se esta, como uma resposta segura e em menor tempo possível de forma racional e garantista, conforme se depreende do art. 5º, LXXVIII da CR, consagrando-se uma duração razoável da investigação criminal com garantia do imputado e da vítima. A título de ilustração, no atual sistema processual penal codificado a escassez de uma legislação, que além de anêmica ainda é míope, na qual ainda encontramos na doutrina, que parece desconhecer os desafios de uma investigação criminal, sustentáculo punitivista, de nítido caráter antecipatório de pena, legitimando de maneira esdrúxula, que o delegado de polícia não possa, ao ser deparar com a condução coercitiva de uma pessoa, lhe garantir materialmente direitos fundamentais, face a mentalidade positivista e ultrapassada do século XIX. A título de exemplo, a ausência de regulamentação da análise das excludentes de ilicitude, com a consequente liberdade provisória, conforme preceitua o art. 310, parágrafo único do CPP e, com isso, garantir ao conduzido materialmente o princípio da presunção de inocência, mediante a efetiva garantia de gozar da liberdade provisória (postulado regra de um estado democrático de direito), enquanto não estiverem presentes os requisitos processuais de uma prisão cautelar. As normas de cunho processual penal, à luz do neoconstitucionalismo5 conferem ao delegado a possibilidade de conceder diversas medidas cautelares ou acautelatórias de mesma hierarquia materialmente constitucional, no entanto, a análise míope da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CRFB) e da garantia de uma duração razoável da investigação criminal, que se extrai do art. 5º, LXXVIII da CRFB, nas quais podem ser interpretadas como efetividade de proteção às garantias fundamentais, como segurança à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88), traduzida em uma duração razoável da resposta Estatal ao crime. Diante deste conflito aparente entre o Estado/Persecução e os Direitos Humanos Fundamentais está uma linha que divide a atuação da Autoridade de Garantias, que é o delegado de polícia, verdadeira autoridade de garantias autoexecutáveis, e do Estado-juiz, autoridade jurisdicional de garantias, nas quais implica em identificar aquilo que está no âmbito de incidência da reserva absoluta da jurisdição, afeto somente ao Estado-juiz, e o que está sob a égide da reserva relativa da jurisdição, e portanto, no feixe dos poderes do Estado-investigação, dispostos pelo constituinte. Por esta razão, mister a elaboração de presente trabalho com o escopo de tecer algumas considerações a despeito do poder-dever do Delegado de Polícia e 5

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LENZA, Pedro, Direito Constitucional esquematizado, 16. ed. rev. atual. ampl. Ed. Saraiva: São Paulo, p. 62, “Busca-se dentro dessa nova realidade, (a partir do século XXI) não mais apenas atrelar o constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas, acima de tudo, buscar eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente retórico e passando, a ser mais efetivo, especialmente diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais.”

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seu poder-dever de requisição, como escopo de garantir o interesse do Estado na persecutio criminis ao mesmo tempo que se presta como a primeira Autoridade do Estado-investigação6 sem deixar seu munus de garantidor dos direitos fundamentais7, dos que são sujeitos na investigação, o investigado e a vítima, em questões decisivas para dar efetividade à esta, em situações que erroneamente alguns juristas consideram no âmbito da reserva absoluta da jurisdição, porém, estão no âmbito do poder administrativo-garantidor do procedimento penal de investigação criminal, sendo hoje o Delegado de Polícia, necessariamente considerada Autoridade de Garantias8 que preside o Procedimento de Investigação Criminal9 ou Procedimento Instrutório10 de Investigação Criminal ou Instrução Preliminar11, responsável por estabelecer o viés garantidor como órgão político12 presidente da investigação. 6

O termo utilizado pelo STF é Estado-polícia, na ocasião que julgou o HC/RS 112400, rel. Min. Gilmar Mendes, 22.5.2012, no informativo 667, segundo ao qual “(....) Asseverouse não ser razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-polícia e do Estadojuiz movimentassem-se no sentido de atribuir relevância típica a furto tentado de pequena monta quando as circunstâncias do delito dessem conta de sua singeleza e miudez.” Por nós, preferimos o termo Estado-investigação por questão de ordem democrática, por entendermos que um Estado-policial remonta à uma política policialesca, típica de estados de exceção, que não se coadunam com um Estado de Direito Social e Democrático. Não obstante ser contemporânea a política de governos que vêm investindo no enfrentamento bélico da criminalidade, principalmente com o encampamento das políticas das “UPP”, que consistem em ocupação policial, tendo sido noticiados pela mídia, constantes informações de verdadeira “lei marcial” impostas pelas polícias de ocupação, determinando a seus moradores a proibição de determinadas atividades e a própria circulação das pessoas após às 22h. Não confundamos políticas de ocupação, com as atribuições inerentes à função da investigação penal, como investimento institucional de garantias constitucionais que devem ser dadas à Autoridades de Garantias (delegados de polícia), como autonomia funcional, irredutibilidade de subsídios equiparados às carreiras jurídicas, inamovibilidade, dentre outras que deveriam ser resguardas por uma Lei Orgânica Nacional, com criação, inclusive de um Conselho Nacional de “Polícia”. 7 SANNINI NETO, Francisco. A importância do inquérito policial para um Estado Democrático de Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2176, 16 jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2012. 8 BARBOSA, Ruchester Marreiros, Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Síntese, v.13, nº 74, jun./jul. 2012, p. 26 a 28. Sugeri no referido artigo científico a alteração do nome Delegado de Polícia para Autoridade de Garantias, por não mais subsistiram as razões do termo empregado hoje, apesar de ser ainda empregada não só pelo projeto do novo código de processo penal, como também pelo art. art. 144, § 4º, da CRFB/88. 9 Termo “investigação criminal” é utilizado pelo art. 5º, XII da CRFB/88 10 Instrutório por força de que a Autoridade que preside a investigação possui “poderes instrutórios”, termo utilizado pela Constituição ao dispor do poder da CPI, art. 58, §3º da CRFB. 11 Termo utilizado por Aury Lopes Jr. na obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 103 12 Nas lições de Hely Lopes Meirelles, “agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência”. “Por funções quase-judiciais exercem os Delegados de Polícia a instauração, de ofício, da fase pré-processual penal, presidência dos atos e colheita dos elementos de produção de

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A reserva da jurisdição e a autoridade de garantias A reserva da jurisdição é um princípio que rege o jus persequendi do Estado ao definir a proteção de determinados Direitos Fundamentais, como:13 “(....) a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica(CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra (....)”.

A constituição enumera diversos bens jurídicos sob tutela do Estado e que se chocam com o interesse dele mesmo (Estado) no desenvolvimento da persecução criminal. Trata-se, evidentemente da engrenagem de evidente freio ao poder descomunal que ele possui (Leviatã de Thomas Hobbes14) perante o indivíduo, fazendo surgir uma série de garantias limitadoras ao poder punitivo do Estado. Na lição de Gilberto Thums, ao citar em sua obra a existência de um sistema que contenha a “fúria do Leviatã15”, “o Estado deve assegurar ao

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prova de crime flagrante, decisão privativa e independente acerca do “corpus delicti” e consequente expedição “do mandado de prisão por crime flagrante(impropriamente substituido pela Nota de Culpa); o indiciamento criminal, também definido como uma quase-denúncia, entre tantas outras atribuições)”. Disponível em Acesso em 23/09/2012. Outrossim, o Estado de São Paulo deu passo importante neste sentido com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 19, de 2011, que alterou a redação dos parágrafos 2º a 5º do artigo 140 da Constituição paulista e passa a considerar o delegado de polícia essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica. Caminhando para esta evolução Está na Câmara Federal a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 549/06 que acrescenta o artigo 251 às Disposições Gerais da Constituição Federal. De acordo com o artigo 251, “os delegados de polícia organizados em carreira, no qual o ingresso depende de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, admitido o provimento derivado na forma da lei, são remunerados de acordo com o disposto no artigo 39, § 4º e o subsídio da classe inicial não será inferior ao limite fixado para o membro do Ministério Público que tenha atribuição para participar das diligências na fase investigatória criminal, vedado o exercício de qualquer outra função pública, exceto uma de magistério”. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2007-dez-04/ delegados_mesmas_garantias_juizes>, acesso em 23/09/2012. 13 MS 23.452-RJ, Tribunal Pleno, DJ 12/05/2000, Min. Celso de Mello. 14 Thomas Hobbes (1588-1679) foi um teórico político, filósofo e matemático inglês. Sua obra mais evidente é “Leviatã”, cuja ideia central era a defesa do absolutismo e a elaboração da tese do contrato social. Hobbes viveu na mesma época que outro teórico político, John Locke, que era defensor dos princípios do liberalismo, ao passo que Hobbes pregava um governo centralizador. disponível: , acesso em 18/09/2012. 15 THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais, Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p. 250.

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indivíduo o direito de só ser punido segundo os limites e pressupostos legalmente estabelecidos”16, na qual acrescentamos que os limites têm caráter preventivo e é de natureza conservativa das garantias fundamentais, em direção à atuação da vontade concreta da lei penal, seja para a imputação criminal (recebimento de denúncia) ou absolvição. Neste diapasão, fica definido que também no procedimento de investigação criminal sob a presidência da Autoridade de Garantias, que os elementos colhidos nesta fase, por se tratar de um poder estatal persecutório, com possibilidade de reflexos diretos na absolvição do investigado, como deixa bem claro o art. 155 do CPP, cuja restrição alcança somente a condenação, mas não a absolvição, questão esta reforçada pelo art. 396-A e 397, ambos do CPP, ao prever a absolvição sumária baseada, a toda evidência, que o acusado ao exercer o direito de resposta prévia o irá realizar sob a prova pré-constituída, calcada no que foi produzido na investigação criminal, na qual se baseou a acusação, e portanto, nos elementos produzidos naquela, o que reforça a tese de que esta fase deve ser dirigida de forma a Autoridade que a preside, oportunizar também, o imputado e exercer verdadeira defesa. Não obstante a demonstração de que é necessária uma teoria garantista que assegure ao indivíduo a salvaguarda ao poder punitivo, inclusive na fase investigatória, não há dúvidas que devamos ter, noutro giro um sistema processual penal, nele incluindo-se evidentemente a investigação criminal, instrumentos que garantam a eficácia do ius persequendi17, como Direito do Estado, não sendo à toa a lição de René Ariel Dotti18, in verbis: “(....) é justamente através do Processo que o Direito Penal atua e se impõe. E, nos momentos de crise de segurança, a sociedade necessita se proteger com um sistema Processual Penal que reforce os instrumentos jurídicos de perseguição ao delito e ao delinquente. A eficácia, portanto, não estará na severidade da Lei Penal, mas, porém, na certeza de sua aplicação.”

Assim, temos com certa frequência um conflito entre Direitos individuais e coletivos, que por sua vez, nenhum dos quais apresenta-se de forma absoluta, restando a necessidade de uma ponderação de interesses, bens valores e normas19, 16

ROXIN, Claus. apud Gilberto Thums. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 3 17 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro-São Paulo: Forense, 1965, v. 4, p. 17. “(....) a violação da ordem jurídica através do ilícito penal faz nascer para o Estado o jus puniendi e, concomitantemente, o jus persequendi, uma vez que aquele é de coação indireta e só através do processo pode ser exercido. Mas a dilação temporal, que isto obrigam as vias processuais, dá a certos atos da persecutio criminis a natureza de verdadeira atividade cautelar. É o que ocorre [...] com a investigação policial e com medidas procedimentais de busca e apreensão quando anteriores à constituição da instância.”, 18 DOTTI, René Ariel. Revisão dos caminhos da defesa social: considerações sobre o Anteprojeto Saulo Ramos e seu substitutivo. Brasília: Ministério da Justiça e Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 1998, v. 1, n. 2, p. 395. 19 Ronald Dworkin, taking rights seriously, 1997; Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997 etc, apud, Barroso, Luís Roberto, O Direito Constitucional e a

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que a própria constituição definiu como fiel dessa balança o Poder Judiciário como responsável por este equilíbrio de interesses em aparente conflito. Neste sentido Luís Roberto Barroso nos ensina que “a ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão20 jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas.” Neste sentido, se diante de uma solução não contida na subsunção pura e simples da norma ao caso concreto, como é o caso do disposto no art. 5º, LXI da CR, que rege o tema da legitimação do autor da decretação da prisão, seja em flagrante, por mandamento judicial, transgressão militar ou por crime propriamente militar, assim, não estando em flagrante delito, por exemplo, não poderia a lei criar uma hipótese de prisão preventiva pelo delegado de polícia, por subsunção pura e simples entre o texto infra e o constitucional. No entanto, em se tratando de liberdade provisória, por exemplo, o texto constitucional em seu art. 5º, LXVI da CRFB dispõe que ninguém será preso ou mantido nela quando couber liberdade provisória. Neste tema, por exemplo, acaso o texto infraconstitucional for omisso ou obscuro, não se permitindo uma simples subsunção dela ao caso concreto, é o momento em que dever-se-á decidir juridicamente através da aludida ponderação de interesses como técnica de decisão, e neste caso entendemos que se aplica a teoria do decisionismo, que para Schmitt a norma tem sua origem na decisão. Esta é fundamento daquela, o que contraria a teoria de Kelsen, em que a norma fundamental é o pressuposto último do ordenamento jurídico, e portanto, da decisão. Carl Schmitt, ao discorrer sobre sua tese do decisionismo fundamenta que a nação existe antes da norma e portanto o surgimento da constituição advém da expressão da vontade soberana dele, portanto seu pressuposto de existência. Assim sendo, ao darmos a máxima eficiência ao princípio de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, em razão de sua eficácia plena e de aplicabilidade imediata, a vontade da nação é a prisão como exceção e última ratio, e que portanto, a “decisão” pela liberdade deve vir em primeiro lugar, ou seja, o delegado de polícia como Autoridade de Garantias deve dar plena eficácia e normatividade axiomática das garantias fundamentais, como é o caso da possibilidade do delegado de polícia conceder liberdade provisória vinculada por dispensa de fiança diante de indiciado pobre.21

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Efetividade de Suas Normas - Limites e possibilidades da Constituição Brasileira, 7ª. ed, Rio de Janeiro/São Paulo, Renovar: 2003, p. 298 20 Decisão aqui, apesar de não ser a originária de Luís Roberto Barroso, porquanto atentase ele à Teoria Pura de Hans Kelsen, entendemos que podemos nos referir à Teoria Decisionista de Carl Schmitt, onde assevera que a essência da Constituição não está contida em uma lei ou em uma norma. No fundo de toda normação reside uma decisão política do titular do poder constituinte, isto é, do Povo na Democracia e do Monarca na monarquia autêntica. SCHMITT, Carl. A revolução legal mundial superlegalidade e política. Lua Nova: revista de cultura política, n.42, p. 99-117, 1997. 21 BARBOSA, Ruchester Marreiros, disponível em ; acesso em 18/09/2012; , acesso em 18/09/2012. Esta tese foi encampada no I Congresso Jurídico de Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro ocorrido nos dias 17 e 18 de novembro de 2014, na qual deu origem ao enunciado 6, que assim dispõe: “O Delegado de Polícia poderá, mediante decisão fundamentada, dispensar a fiança do preso, para não recolhimento ao cárcere do indiciado pobre”. disponível em:, acesso em: 05/05/2015. Este enunciado passou a nortear o papel do Delegado como garantidor de direitos humanos fundamentais, e aquela prática que era realizada de forma isolada por nós, desde a entrada em vigência da lei 12.403/11, após o verbete, passou a ser uma orientação em nível institucional, desde então, começou a ser uma prática com maiores adeptos. 22 O Ministro Roberto Barroso acompanhou o Ministro Luiz Fux (relator) para conceder a ordem, porém, com fundamentação diversa. Aduziu que não houvera, na espécie, controle abstrato de constitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade da parte final do art. 141 da LC estadual 197/2000 fora feita “incidenter tantum” e desconstituíra, de forma específica, determinadas “promoções virtuais”. Assinalou que o acórdão atacado não alcançara promoções pretéritas ou futuras, mas apenas aquelas havidas à época do Processo de Controle Administrativo - PCA, por não terem as respectivas promotorias de justiça sido ofertadas aos demais membros do Ministério Público estadual. Dessa forma, o controle teria se realizado no caso concreto. Defendeu que quem tem a incumbência de aplicar a norma a uma situação concreta não poderia ser compelido a deixar de aplicar a Constituição e aplicar a norma que com ela considerasse incompatível. Concluiu ser razoável que os membros do Ministério Público, ao serem promovidos, pudessem permanecer nas promotorias que já ocupassem, sem que fossem obrigados a deixá-las apenas porque teriam sido pré-elevadas de entrância. Do contrário, além de acarretar gastos públicos com remoção e trânsito, a medida prejudicaria a continuidade da linha de atuação ministerial local e a manutenção das unidades familiares dos promotores.

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Isto significa dizer, em outras palavras, que é plenamente pacífico o convívio de medidas cautelares sob a gestão da Autoridade de Garantias e o monopólio da jurisdição, ou seja, coexistem no ordenamento constitucional mecanismos aptos a ensejar um procedimento investigatório criminal com autonomia e efetividade garantista, nas quais seriam as decisões fora da reserva absoluta da jurisdição, como trataremos a diante. Por oportuno, é possível, portanto a manutenção e reconhecimento do poder geral de cautela garantista do delegado de polícia como salvaguarda dos direitos fundamentais vistos também sob a ótica de que o procedimento de investigação criminal visa a verificação da verdade com efeito de se proteger o investigado de imputações infundadas, açodadas ou levianas, pelas vítimas dos crimes, bem como por agentes de segurança que ao tomarem contato com o fato criminoso, inclusive, com mais frequência do que se possa imaginar, se envolvendo como mais um protagonista no conflito, como é o caso do desacato ou auto de resistência. Por isso mesmo, que a investigação penal é sigilosa, posto que se presta a proteger direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88). Não há como se negar esta realidade contemporânea da investigação criminal e o papel do delegado, agindo como um filtro no procedimento de modo que à Autoridade de Garantias sejam resguardados poderes requisitórios (verdadeiras medidas cautelares de busca e apreensão) que permitam atribuir dinamismo às investigações e sua manutenção como Autoridades imparciais23. Ressaltamos que neste aspecto, equiparados à atividade dos magistrados nas quais se presumem imparciais, mas que ao não serem, e muitas vezes não o são, prevê a legislação as denominadas exceções de impedimento e suspeição, e nem por isso se diz que um magistrado não é imparcial, posto que esses casos são exceções à regra geral, plenamente factíveis por se tratar de cargo ocupado por um ser humano e não uma máquina. Não é diferente da figura da Autoridade de Garantias que age em seu poder-dever finalístico de Estado, função indelegável, como o da jurisdição, figura, inclusive desinteressada como parte em futura ação penal (tanto o juiz quanto o delegado), o que lhe resguarda plenos poderes e condições jurídicas e filosóficas de se garantir a paridade de armas na investigação penal, entre seu papel e a do Ministério Público, conquanto este possui vistas a acusação e o investigado, porquanto possui vistas a sua defesa. 23

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A Suprema Corte dos Estados Unidos, num caso em que a investigação foi conduzida pelo Ministério Público no “leading case” Berger v. United States, 295 US 78, 88 (1935) exigiu uma atuação imparcial enfatizando que que seu interesse no caso penal ‘não se limitar a ganhar o caso, mas lograr que se faça justiça’, (.....) ‘que deve cuidar tanto que o culpado não escape como também que um inocente não sofra.’ Exemplo citado por GUZMÁN, Nicolás, La verdad en el proceso penal - Una contribuición a la epistemología jurídica. Ed. del Puerto: Buenos Aires, 2011, p. 269, apud, Bandes, Susan, Loyalty to Ones´s Convictions: The Prosecutor and Tunnel Vision, en “Howard Law Journal, vol. 49, Nº 2, 2006.

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Corrobora com nosso entendimento a doutrina pátria, Luis Gustavo Grandinetti24: “Não pode o Ministério Público submeter o indiciado a qualquer tipo de constrangimento, como a intimação para prestar depoimento, porque a isso se opõe o princípio da isonomia, uma vez que este será o seu provável exadverso em eventual ação penal, o que também já foi comentado quando do capítulo da isonomia.”

No mesmo sentido a doutrina alienígena, Nicolás Guzmán25 e Gustavo Bruzzone:26 “(....) la ‘neutralidad’ sí es posible, al menos para el juez, y allí radica fundamentalmente su imparcialidad, pues la neutralidad hace referencia a una situación funcional durante el conocimiento de ese ‘algo’ y, a diferencia del fiscal27, el juiz permanecerá, en ese aspectyo, siempre ajeno.” (grifo nosso)

A possibilidade da Autoridade de Garantias decidir sobre os atos de investigação de natureza cautelar (repetimos: questões fora do âmbito da reserva da jurisdição) em nada colide com o monopólio da jurisdição ou o próprio controle jurisdicional posterior, como já ocorre nas prisões em flagrante sem arbitramento de fiança ou com a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, posto que cabe ao poder Judiciário o monopólio do iuris dictio como salvaguarda de alguns bens jurídicos, diante da lesão ou ameaça de lesão à esses. No âmbito doutrinário, segundo o escólio de José Joaquim Gomes Canotilho28: 24

CASTANHO DE CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, Processo Penal e (em face da) Constituição - Princípios Constitucionais do Processo Penal. 3. ed, Rio de Janeiro, Lumen Juris: 2004, p. 207 25 GUZMÁN, Nicolás, La verdad en el proceso penal - Una contribuición a la epistemología jurídica. Ed. del Puerto: Buenos Aires, 2011, p. 266-267. 26 apud GUZMÁN, Nicolás, ob. cit. p. 267, BRUZZONE, Gustavo, Proyectos de reforma al Código Procesal Penal de la Nación en salvaguarda de la garantia del juez imparcial, en “Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal”, t. 9-B, Ed. Ad-Hoc, Buenos Aires. 27 La fiscalía ou El fiscal é a denominação que se dá na Argentina ao promotor investigador, que faz o papel do delegado de polícia na investigação criminal, sendo também o mesmo órgão da acusação, o que acarreta para o autor um problema na imparcialidade, pois neste aspecto, por ter contato com a prova, não poderia ser neutro para avaliar a justiça de sua promoção para pretensão acusatória ou absolutória, destacando que somente o juiz neste aspecto consegue ser neutro, e neste condão residiria sua imparcialidade. Esta comparação feita pelo autor nos permite afirmar que o delegado de polícia como presidente da investigação é o único que possui condições de manter a neutralidade na busca da verdade “eticamente construída”, parafraseando o professor André Nicolitt, por não ter pretensões acusatórias. 28 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 584

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“compete ao juiz não só a última e decisiva palavra mas também a primeira palavra referente à definição do direito aplicável a certas relações jurídicas. (....) significa, em termos gerais, o direito de qualquer indivíduo a uma garantia de justiça, igual, efectiva e assegurada através de ‘processo justo’ para a defesa das suas posições jurídico-subjectivas. Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra actos do Estado) como em casos de litígios particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídicos-privados).”(grifo nosso)

Em outras palavras, a reserva absoluta da jurisdição não significa que o Estado-investigação não possa praticar atos de natureza decisória29, pelo contrário, a constituição e as normas infraconstitucionais prevêem medidas acautelatórias e requisições pela Autoridade de Garantias, v.g. art. 23, VII,30 31§4º31 e art. 33, III32, todos da Lei 12.527/11, art. 17-B da Lei 12.683/1233, art. 2º,§2º da lei 12.830/1334 e art. 15 da lei 12.850/1335, mas que a toda evidência não estão no âmbito de incidência da reserva absoluta da jurisdição. Neste caso, os atos são praticados sem prejuízo do controle judiciário, conforme dispõe o art. 5º, XXXV da CRFB, mas com fundamento igualmente constitucional, conforme art. 5º. XXXIII da CR/88. 29

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BARBOSA, Ruchester Marreiros. Sobre a natureza decisória de determinados atos praticados pelo Delegado de Polícia citamos trabalho científico publicado in Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Síntese, v.13, nº 74, jun./jul. 2012, p. 10 a 17. 30 Art. 23, VII - São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações. 31 Art. 31, § 4º - A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância. 32 Art. 33. A pessoa física ou entidade privada que detiver informações em virtude de vínculo de qualquer natureza com o poder público e deixar de observar o disposto nesta Lei estará sujeita às seguintes sanções: (....) III - rescisão do vínculo com o poder público; (....) 33 Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito.” 34 Art. 2º,§2º.  Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos. 35 Art. 15.  O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito.

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Na jurisprudência o Plenário no MS 23.452/ RJ, apesar de sobre o tema, somente 5 (cinco) ministros aprofundarem a discussão sobre a reserva da jurisdição salientaram, tomando como referência o voto do Min. Celso de Melo que: “(....) o postulado de reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem haja eventualmente atribuído o exercício de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.(....)”

Apesar de termos como exemplo um julgado no âmbito de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a natureza inquisitorial é a mesma do inquérito policial, haja vista que a lei 1.579/52 em seu art. 6º, anuncia “O processo e a instrução dos inquéritos obedecerão ao que prescreve esta Lei, no que lhes for aplicável, às normas do processo penal.” Ademais preceitua Uadi Lammêgo Bullos36 que “na fase das investigações parlamentares, não podemos perder de vista o sentido da unilateralidade dos trabalhos das CPI´s, visto que não são conduzidos à luz do contraditório, a exemplo do que ocorre com os litígios forenses.” Esta posição doutrinária nada mais é que o reflexo do entendimento da própria Suprema Corte, que se pronunciou no Pedido de Reconsideração no MS 23.576/DF, Rel. Min. Celso de Mello, em 14/12/99, dispondo que “Inexiste qualquer dúvida, também, de que a natureza do inquérito parlamentar - tanto quanto se verifica no próprio inquérito policial - revela-se incompatível com a prática do contraditório.” Através desta análise acima podemos conclui que o postulado da reserva absoluta da jurisdição tem como objetivo delimitar os poderes do Estadoinvestigação, como uma análise negativa, ou seja, aquelas decisões que não podem ser realizadas pelo Delegado de Polícia, ou seja, que são atribuídos com exclusividade aos membros do Poder judiciário em respeito ao princípio constitucional da reserva de jurisdição, destacando-se, por exemplo, a busca e apreensão domiciliar, interceptações telefônica, telemáticas e ambientais e decretação de prisão preventiva. Ao contrário do que ocorre na denominada reserva relativa da jurisdição, na qual Canotilho37 já nos ensina que o juiz não tem o monopólio da primeira palavra, mas sim da última, ou seja, outro órgão do Estado realiza a decisão sob a possibilidade do controle posterior, é o que ele denomina de monopólio da última palavra. 36 37

Comissão Parlamentar de Inquérito, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 257. CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito ob. cit. p.584.

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O poder geral de cautela administrativo da autoridade de garantias como um dos princípios do sistema acusatório Após, analisarmos a reserva da jurisdição foi possível perceber que apesar de existirem diversos valores constitucionalmente assegurados aos indivíduos como direitos fundamentais, alguns atos praticados pelo Estado dependem de prévia autorização pelo Poder Judiciário, no entanto, existem outros que não estão abrangidos no âmbito da reserva absoluta da jurisdição, mas sim pela relativa. Foi o próprio constituinte originário quem elegeu esta diferença, no entanto, em muitas vezes essa distinção, entre as classes de reservas da jurisdição não é tão fácil de se verificar, restando em muitos casos uma linha demasiadamente tênue que as separa, cabendo a nós doutrinadores e a jurisprudência orientar neste divisor de águas. Assim sendo, nos resta deixar claro e evidenciado que ao Delegado de Polícia, como Autoridade de Garantias, ao decidir pela instauração de uma investigação criminal e consequentemente os atos de investigação legalmente adequados ao caso proposto já como reflexo da busca de coletar elementos ao procedimentos que demonstrem ao judiciário, imputado, vítima e MP o alcance da intervenção penal, que deve ser mínima, ao mesmo tempo que deve tornar o procedimento de investigação criminal um instrumento de “realização da proteção dos direitos fundamentais”38. Para desempenhar essa tarefa o delegado não pode abrir mão da tentativa de reconstruir os fatos com o fim de aplicar o direito da melhor forma possível. Assim, embora a busca desenfreada pela punição e verdade não integre mais a realidade processual penal, ela é o elemento central de uma investigação eficiente. Ao solucionar cautelarmente os limites da imputação penal, por meio da investigação, a função do Estado-investigação, comprometido com o critério da imparcialidade (sob o enfoque da neutralidade como esposado na nota de rodapé 27) apresenta a peculiaridade de se fundar na atividade cognitiva (ainda que sumária), na busca do conhecimento.39 38 39

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THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 250 Esta assertiva foi inspirada na afirmação de Mauro Augusto Boccardo, em seu texto, A decidibilidade da verdade processual à luz do garantismo, in Revista Jurídica da Universidade de Franca, ano 9, nº. 17, segundo semestre, Franca, Ed. Unifran, 2007, p. 113. Apesar do autor deixar claro em sua obra que a atividade cognitiva é exclusividade do poder judiciário, por decidir direitos, não deve prosperar tal afirmação haja vista que a própria Constituição da República admite no processo administrativo o contraditório e a ampla defesa como postulados a serem observados antes do Poder Executivo proferir ato de verdadeira decisão de conflito no âmbito administrativo, o que torna sua afirmação inválida dada a premissa equivocada de que no ordenamento pátrio haja somente decisão de direitos no âmbito do processo penal. O conceito de devido processo legal tem amplitude tal que açambarca também os procedimentos de natureza administrativa. Não é exclusividade dos processos jurisdicionais.

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Sobre a atividade cognitiva da Autoridade de Garantias dos elementos de prova jungidos à investigação criminal, em recentíssimo entendimento, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp em sede de Habeas Corpus 165.145 entendeu plenamente admissível que o Delegado de Polícia não realizasse degravação de determinada conversação, ainda requisitada pelo magistrado, por entender a autoridade policial, que a parte da degravação requisitada não guardava pertinência com os fatos investigados, exercendo verdadeiro freio ao juízo de instrução, e mantendo sua função no sistema acusatório. Neste sentido: HABEAS CORPUS – INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA – AUSÊNCIA DE TRANSCRIÇÃO NOS AUTOS – PRESCINDIBILIDADE – NULIDADE NÃO OBSERVADA – TEOR DISPONIBILIZADO ÀS PARTES – AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO – ORDEM DENEGADA – I- Hipótese em que o magistrado determinou a degravação de interceptação telefônica realizada, tendo a autoridade policial informado que os áudios não possuíam relação com o fato investigado, sendo desnecessária a transcrição. II- Constatando-se que o CD-ROM foi juntado aos autos, ficando à disposição das partes para consulta, mostra-se prescindível a transcrição integral do conteúdo interceptado. Precedentes. III- Nos termos dos arts. 563 e 566, do Código de Processo Penal, só será reconhecida a nulidade que resulte em prejuízo para a acusação ou para a defesa, ou que influa na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa. IV- Ordem denegada. (STJ – HC 165.145 – (2010/0044331-9) – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe 28.05.2012 – p. 1229)

Em face da cautelaridade40 do procedimento de investigação criminal diante de direitos que o Estado possui em exercer o jus persequendi, na ceara de atos que não estão sob a reserva absoluta da jurisdição, reside o poder geral de cautela da Autoridade de Garantias em conjunto com um sistema acusatória que adote como marco teórico o garantismo penal, na qual podemos construir obrigatoriamente a premissa de vedação do controle jurisdicional do inquérito policial, como uma das “regra do jogo”.41Isto significa dizer, ao nosso ver e 40

RAMOS, João Gualberto Garcez. na obra A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 260, assevera que “O inquérito policial é uma medida complexa, pois é formada por diversas outras medidas, todas direcionadas à sua meta optata: servir de base e apoio à atividades que se desenvolverão em juízo. Não parece, outrossim, que haveria inconveniência em designar o inquérito policial como um procedimento administrativo cautelar.” 41 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tradução de Jorge Guerreiro. 2ª ed., Tomo I, Santa Fe de Bogotá: Temis, 2000, p. 88, ao lecionar em sua obra sobre quando explica o “Estilo Acusatorio” no item 9.3 “Reglas del juego. Aquí está todo, mientras que en el proceso inquisitorio cuenta el resultado obtenido de qualquier modo. Hay un formalismo acusatorio; cuando menos espacio ocupa el órgano que juzga, tanto más pesan los ritos;” Em tradução livre: Regra do Jogo. Aqui é tudo, enquanto no processo inquisitivo vale alcançar o resultado a qualquer modo, no processo acusatório quanto menos discricionariedade possuir o órgão que julga, mais relevância passa a ter o rito.

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corroborado pelo escólio de Geraldo Prado42, que o controle do inquérito policial pelo magistrado constitui afronta ao sistema acusatório. Na doutrina, Cleopas Isaías43, em ousada e brilhante afirmação sobre o projeto de lei 156/09 que trata do novo código de processo penal, aduz no mesmo sentido da tese por nós sustentada: “Provavelmente algumas vozes irão brandir em defesa da insustentabilidade teórica de uma tal tese, em nome do princípio da jurisdicionalidade, inerente às medidas cautelares, segundo o qual todas essas medidas deverão ser aplicadas apenas pelo juiz, como se houvesse uma reserva de jurisdição nesta matéria. Não obstante, tal como Ulisses, deve-se resistir à sedução desses cantos e seguir em frente, rumo à tentativa de garantir maior eficácia aos direitos fundamentais do imputado, mesmo que a teoria tenha que se render a isso e se adaptar, de tal forma que possa exercer seu natural destino. A liberdade precisa, definitivamente, ser a razão fundante de um sistema jurídico-penal que se pretende constitucionalmente legitimado, sendo incongruente, portanto, que uma norma pro libertate seja taxada de arbitrária.”

Neste mesmo sentido, apesar de não ser matéria pacífica na doutrina, o Supremo Tribunal Federal44 e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região45: “(....)Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. A QUEBRA DO SIGILO CONSTITUI PODER INERENTE À COMPETÊNCIA INVESTIGATÓRIA DAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO. - O sigilo bancário, o sigilo fiscal e o sigilo telefônico (sigilo este que incide sobre os dados/registros telefônicos e que não se identifica com a inviolabilidade 42

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PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A conformidade Constitucional da Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 203 a 205. 43 SANTOS, Cleopas Isaías. A Prisão em Flagrante no Projeto de Reforma Total do Código de Processo Penal (Substitutivo do PLS 156/2009) e sua Ressonância nos Direitos Fundamentais do Imputado - Artigo científico publicado no Juris Síntese Nº 88 - Mar/Abr De 2011) 44 STF, Rel. Min. Celso de Mello, MS nº 23.851-8/DF, Pleno, Ementário nº 2074-2, DJ de 2074-2, DJ de 21/06/2002. 45 HC 93.02.18736-5. Impetrante: Miguel Reale e outro. Relator: Desembargador Federal Chalu Barbosa. 07/03/1994.

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das comunicações telefônicas) - ainda que representem projeções específicas do direito à intimidade, fundado no art. 5º, X, da Carta Política - não se revelam oponíveis, em nosso sistema jurídico, às Comissões Parlamentares de Inquérito, eis que o ato que lhes decreta a quebra traduz natural derivação dos poderes de investigação que foram conferidos, pela própria Constituição da República, aos órgãos de investigação parlamentar. As Comissões Parlamentares de Inquérito, no entanto, para decretarem, legitimamente, por autoridade própria, a quebra do sigilo bancário, do sigilo fiscal e/ou do sigilo telefônico, relativamente a pessoas por elas investigadas, devem demonstrar, a partir de meros indícios, a existência concreta de causa provável que legitime a medida excepcional (ruptura da esfera de intimidade de quem se acha sob investigação), justificando a necessidade de sua efetivação no procedimento de ampla investigação dos fatos determinados que deram causa à instauração do inquérito parlamentar, sem prejuízo de ulterior controle jurisdicional dos atos em referência (CF, art. 5º, XXXV). (....)”

Ora, se é inconstitucional a atuação do magistrado atuando como verdadeiro juiz instrutor, ao argumento de que se busca a verdade real e neste sentido seria ilegítima a atuação do magistrado, principalmente de ofício em atos nitidamente investigativos, nos parece plenamente inserido no sistema acusatório que a figura do Estado-investigador possa decidir sobre medidas acautelatórias que não esteja sob a reserva absoluta da jurisdição como princípio norteador do procedimento de investigação criminal, não impedindo o controle posterior do judiciário, por serem princípios coexistentes, ou seja, o poder geral de cautela administrativo de garantias e a reserva relativa da jurisdição no sistema acusatório.

Dados cadastrais e registros de qualquer natureza sobre a gestão das concessionárias de serviços públicos e demais órgãos públicos. Previsão no sistema jurídico Constitucional e infraconstitucional do poder geral administrativo cautelar e sua autoexecutoriedade Da mesma forma que ocorre no Direito Administrativo, a ausência de uma codificação a respeito do procedimento de investigação criminal é o principal problema sobre os limites e alcance dos poderes do Estado-investigação. O código de processo penal tem uma regulamentação instrumental de mecanismos atrofiados com uma visão de seu alcance totalmente deficiente. Praticamente os principais mecanismos de que o Estado-investigação poder-se-ia valer para instrumentalizar o procedimento investigativo encontrase em leis extravagantes de forma assistemática e esquizofrênica, diante de institutos de caráter investigativo, como a deleção premiada, por exemplo, que se repetem no código penal (no art. 159, §4º do CP), introduzido pela lei 8.072/90; o próprio art. 8º, parágrafo único da Lei 8.072/90, a lei de proteção a testemunhas (arts. 13 e 14, da Lei nº 9.807/99); lei de drogas (art. 41 da Lei nº

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11.343/06); lei do crime organizado (art. 4º da Lei 12.850/13); lei de lavagem de dinheiro (art. 1º, §5º da Lei 9.613/98, com redação determinada pela lei 12.683; artigo 16, parágrafo único da Lei 8.137/1990; art. 14 da Lei 9.605/98, além da lei regulamenta o procedimento investigativo da comissão parlamentar de inquérito, bem como as regras sobre investigação editados pelo Conselho Nacional do Ministério Público e Regimentos internos dos Tribunais Estaduais e Regionais. Por esta razão, que buscamos os fundamentos do poder de requisição do Delegado de Polícia na Lei Maior da República, diante do princípio da unidade constitucional, postulado segundo ao qual não há conflito entre as normas constitucionais, e por sua vez a adequação dos poderes de investigação ao sistema acusatório dentro de um Direito Processual Penal de caráter garantista. A partir dessa base teórica, inclusive exposta nos títulos acima, podemos concluir que os dados de identificação são informações que, pela sua natureza, merecem o devido respeito e reserva quanto à sua divulgação. Entretanto, essa reserva não se observa em face do Estado-investigação na apuração de ilícitos penais, bem como por expressa vedação ao anonimato nas relações intersubjetivas, conforme art. 5º, IV da CF/88. Os registro de dados sobre as pessoas são bancos de dados relativos a consumidores, sob gestão de entidades de caráter público, cujo sigilo não pode ser oposto diante da requisição da autoridade policial, diante do artigo 43, §4º, do CDC, sobre aos quais “Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.”, regra esta corroborada pelo parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 9.507/97, que define em seu, supracitado artigo, o caráter público dos bancos de dados, que por se tratar de serviço público e, assim, de banco de dados de caráter público, prevalece a regra do interesse público, não havendo que se cogitar quebra de qualquer tipo de reserva da intimidade ou reserva absoluta da jurisdição, inclusive a identificação pessoal. A propósito, assim o magistério de Luiz Flávio Gomes46 distingue “registros telefônicos” de “comunicações telefônicas em si”: “Desde logo é preciso distinguir: uma coisa é a “comunicação telefônica” em si, outra bem diferente são os registros pertinentes às comunicações telefônicas, registros esses que são documentados e armazenados pela companhia telefônica, tais como: data da chamada telefônica, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada, etc. Podese dizer que esses registros configuram os ‘dados’ escritos correspondentes às comunicações telefônicas. Não são ‘dados’ no sentido utilizado pela ciência da informática (‘informação em forma codificada’), senão referências, registros de uma comunicação telefônica, que atestam sua existência, duração, destino, etc. (....)” 46

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GOMES, Luiz Flávio. A CPI e a quebra do sigilo telefônico. Consulex: revista jurídica, v. 1, n. 5. Brasília/DF, maio 1997, p. 40.

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Acerca desse tema já se manifestou a 5ª Turma do STJ, por maioria de votos, o Rel. Min. Jorge Mussi, em 04/11/2012, p. no DJe em 06/04/2011, em sede de Habeas Corpus originário do Rio de Janeiro: “Desse modo, a inclusão do paciente nas investigações em virtude da obtenção de seus dados cadastrais pelo fato de ter conversado com um dos corréus cujo sigilo das comunicações telefônicas estava quebrado deu-se de maneira lícita (fls. 252/255), a partir de pedidos do Parquet para que lhe fossem fornecidas cópias de contas reversas, o que foi deferido pelos magistrados responsáveis pelo feito. Em arremate, frise-se que o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal assegura o sigilo das comunicações telefônicas, nas quais, por óbvio, não se inserem os dados cadastrais do titular de linha de telefone celular. Em hipótese semelhante, na qual se discutiu a abrangência das informações protegidas pelo sigilo fiscal e bancário, esta colenda Quinta Turma entendeu que dados como endereço, número de telefone e qualificação dos investigados nela não se inserem. (...)Não há que se falar, portanto, em nulidade das informações cadastrais do paciente obtidas a partir da identificação de conversas que manteve com corréu cujo sigilo das comunicações telefônicas estava afastado, e que culminaram com a interceptação de seu telefone e com a sua inclusão nas investigações e na ação penal em questão.” (HC 131.836/RJ)

Ademais, por retórica de caráter histórico, desde 1995 o Supremo Tribunal Federal vêm consolidando esse entendimento preconizado pelo STJ no sentido de que “A proteção a que se refere o art. 5º, XII, da Constituição, é da comunicação ‘de dados’ e não dos ‘dados em si mesmos’, ainda quando armazenados em computador.”47 O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entende plenamente legítimo o poder geral de cautela do delegado de polícia, consubstanciado no seu poder de requisição: Apuração de negligência médica. Requisição de prontuário. Recusa no fornecimento. Violação de segredo profissional. Inocorrência. Necessidade do documento para análise do procedimento médico antes, durante e depois da cirurgia fatal. Ato legítimo do delegado de polícia. Dispensabilidade de ordem judicial. Constrangimento ilegal inexistente. A resolução do Conselho Federal de Medicina, invocada para justificar a recusa da paciente no cumprimento da requisição policial, encerra inconcebível absurdo (....) em se tratando de investigação destinada à apuração de crime, cuja ação penal é pública incondicionada, compete à autoridade reunir todas as provas para averiguar, ao final, qual é a necessária ou não ao convencimento do julgador. (....) No caso, não se está exigindo que a paciente revele segredo que a vítima de um possível homicídio tenha revelado ao médico que a operou, mas sim o fornecimento do prontuário para se saber qual a rotina médica adotada antes, durante e depois da cirurgia fatal, com o fim de se obter as informações necessárias à elucidação da causa do óbito, sua autoria e se o médico responsável negligenciou na observância de regra técnica de profissão. (TJRJ – HC 4055/03 – 3ª C.Crim. – Rel. Des. Valmir de Oliveira Silva – DOERJ 18.02.2004) 47

cf. voto no MS 21.729, Pleno, 5.10.95, red. Néri da Silveira - RTJ 179/225, 270

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Outrossim, o art. 7º da Lei 9.296/96, que regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal, informa que a Autoridade Policial tem o poder necessário para requisitar serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público, uma vez que, se o ordenamento jurídico confere tal prerrogativa à autoridade policial, com muito mais razão, confere-a, também, em tais casos, por pretenderem tão-somente informações acerca de dados cadastrais. Corroborando com o entendimento e diante de tão esclarecedor e ao mesmo tempo recentíssimo voto proferido pelo Desembargador Federal Relator José Paulo Baltazar Junior, pedimos vênia para transcrevê-lo na íntegra a despeito dos registros nas contas telefônicas e o poder geral administrativo de cautela e sua autoexecutoriedade, em razão da dispensa de controle prévio do judiciário:

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PROCESSO PENAL – HABEAS CORPUS – ESTAÇÃO RÁDIOBASE – NÚMEROS UTILIZADOS EM DETERMINADA LOCALIDADE – GARANTIA CONSTITUCIONAL (ART. 5º, XII) – INAPLICABILIDADE – PROVA EMPRESTADA – 1- O inc. XII do artigo 5º da CF garante o sigilo das comunicações dos dados, mas não dos dados em si. Interpretação no sentido de que o sigilo se estende aos dados dados, ou seja, informações, contidas em qualquer suporte, físico ou eletrônico, inviabilizaria a produção de prova em qualquer processo judicial ou administrativo, pois o dispositivo autoriza a flexibilização apenas em relação às comunicações telefônicas, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, em razão de sua instantaneidade e efemeridade. 2- Bem por isso, outras informações, como os dados cadastrais dos usuários, relações de chamadas e números que utilizaram determinada estação rádio base, não estão sujeitos à disciplina da Lei 9.296/96, que regulamenta a parte final do inc. XII do art. 5º. 3- Com muito mais razão não há falar em sigilo - Com necessidade de prévia autorização judicial - Nas hipóteses em que a informação obtida diretamente pela autoridade policial junto às companhias telefônicas restringiu-se aos números de telefones que foram utilizados em uma determinada localidade, não havendo sequer indicação do proprietário da linha, tampouco do teor das conversas efetivadas. 4- A Constituição somente submete à controle jurisdicional prévio, a chamada reserva de jurisdição, medidas de três ordens, a saber: a interceptação telefônica em sentido estrito (CF, art. 5º, XII); O ingresso em domicílio sem autorização do proprietário e fora dos casos de flagrante delito, desastre ou socorro (CF, art. 5º, XI e CPP, art. 241) e a prisão fora dos casos de flagrante delito, prisão militar ou crime militar (CF, art. 5º, LXI). Há, ainda, casos em que a legislação impõe autorização judicial prévia, como se dá, por exemplo, com a infiltração policial (Lei nº 9.034/95, art. V; Lei nº 11.343/06, art. 53, I). 5- Os demais atos administrativos, incluindo aqueles praticados pela autoridade policial, estão sujeitos apenas a controle jurisdicional a posteriori, ainda que impliquem restrição de direito fundamental. Afirmar que toda restrição a direito

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fundamental depende de prévia autorização judicial implicaria a paralisação da atuação policial e administrativa, e o banimento do poder de polícia do Estado. 6- Se toda e qualquer restrição da intimidade e da vida privada requeresse autorização judicial, seria necessário, sob pena de paralisação da atuação administrativa, que um juiz atuasse, exemplificativamente: a) em todas as patrulhas policiais, para autorizar eventuais buscas pessoais; B) em todos os postos aduaneiros, incluindo portos, aeroportos e alfândegas terrestres, para autorizar a abertura da bagagem dos viajantes; C) em todos os estabelecimentos prisionais, para examinar a legalidade de eventual revista em celas ou em visitantes. 7- Os direitos fundamentais não são absolutos de modo que a medida tomada pela autoridade policial que implique sua restrição é permitida, desde que seja proporcional, ou seja, necessária, adequada e proporcional em sentido estrito. 8No caso dos autos, a medida era necessária, pois não havia outro modo de obter informação acerca dos possíveis autores do roubo da carga apreendida. 9- A medida era também adequada, pois serviu aos fins de identificar um grande número de ligações de telefones oriundos de Ribeirão Preto-SP, o que se confirmou como algo atípico no perfil dos usuários da região e levou à identificação de possíveis responsáveis pela autoria do fato. Ainda no requisito da adequação, destaco que a medida não representou uma devassa ou restrição desarrazoada da vida privada e da intimidade de terceiros. Isso porque o pedido limitou-se à obtenção dos números utilizados, partindo daí, após a análise dos dados, o pedido de interceptação, devidamente justificado, em relação a alguns terminais. Como se vê, do fornecimento dos números não resultou prejuízo algum para os demais usuários do serviço. Somente se poderia falar em violação indevida da vida privada se fosse revelada publicamente a localização de algum terceiro, de modo a expor algum fato desabonador, como o fato de estar naquele local e data um cônjuge infiel, um empregado em falta ao serviço ou um aluno gazeteiro. Não há notícia, porém, de qualquer utilização indevida das relações de números obtidas inicialmente as quais, não custa frisar, sequer identificavam os titulares das linhas. 10- Por fim, quanto à proporcionalidade em sentido estrito, verifico que se investigavam crimes graves, de tráfico de drogas e roubo majorado, este cometido com emprego de armas, por uma pluralidade de agentes, em um depósito aduaneiro, por agentes que, dissimuladamente, se fizeram passar por policiais federais, tendo por objeto carga descaminhada apreendida anteriormente, de alto valor. Como se vê, trata-se de delitos graves, pelo menos um deles cometido com ousadia e sofisticação, tendo por objeto bens sob a guarda da administração pública e colocando em risco a integridade corporal e a vida de servidores públicos e de particulares, demonstrando à saciedade que não se tratou de uma restrição desproporcionada. 11Não há ilegalidade na prova emprestada - Interceptação telefônica quando precedida de autorização judicial, sendo anexada aos autos cópia integral de seu conteúdo, possibilitando o pleno exercício dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa. (TRF 4ª R. – HC 000202954.2012.404.0000/RS – 7ª T. – Rel. Juiz Fed. José Paulo Baltazar Junior – DJe 31.05.2012 – p. 563)

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Considerações finais Assim, ao contrário do que preconiza alguns doutrinadores não há ausência no sistema jurídico processual penal de disciplina sobre as regras da investigação, o que há é uma colcha de retalhos que precisa ser desvendada pela doutrina, na qual demonstramos e identificamos um princípio autônomo da investigação criminal que é o poder geral administrativo cautelar de garantias, que tem com característica a autoexecutoriedade, diante de desnecessidade de controle prévio do judiciário, e que possui conteúdo decisório, razão pela qual deve ser fundamentado. Outrossim, consubstancia-se em ordem através de requisição, cuja natureza jurídica é de uma busca e apreensão imprópria, por se tratar de informações efêmeras que se materializam através de documento. No código de processo penal o fornecimento de tais à Autoridade Policial (Autoridade de Garantias) de requisitar todas as informações necessárias para a determinação da materialidade e indícios de autoria do fato delituoso, se extrai do disposto do artigo 6º, III, CPP em consonância com o art. 2º,§2º da Lei 12.830/13. Nos parece que o tormentoso emaranhado de balaio de gato das normas sobre investigação criminal vêm aos pouco se sedimentando também em outros Estados da Federação neste sentido específico do art. 6º do CPP em casos como os crimes contra a honra pela internet “envio de mensagens injuriosas e de conteúdo difamatório”, o Tribunal de Minas48 se posicionou favorável à obtenção direta pela autoridade policial, ou seja, sem anterior autorização judicial de “dados cadastrais em poder do provedor de acesso à Internet, que permitam a identificação de autor de crimes digitais”, o que não feriria “o direito à privacidade e o sigilo das comunicações, uma vez que dizem respeito à qualificação de pessoas, e não ao teor da mensagem enviada”, sendo, ademais, tal requisição policial, argumentou o voto-condutor, “inserida nas atribuições do Delegado de Polícia, por força do art. 6º do CPP”. No mesmo sentido o Tribunal de São Paulo49. Ora, o poder geral administrativo cautelar do Delegado como natureza conservativa da prova na investigação criminal, não é novidade para o nosso sistema processual penal, sendo legitimado, inclusive a condução coercitiva de ofendido e testemunha, na forma do parágrafo único do art. 201 e art. 218, ambos CPP, que na lição de Tourinho50: 48

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TJMG, MS (Criminal) nº 1.0000.04.414635-5/000, 3ª C.Crim., Comarca de Caratinga, Rel. Des. Paulo Cézar Dias., DJ 29.05.2005. Disponível em: . Acesso em: 21 de setembro. 2012. 49 TJSP, 3ª C.Crim., Voto-condutor do MS 293.304-3/2, Rel. Des. Gonçalves Nogueira. São Paulo, 23 de novembro de 1999, p. 7. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2006. 50 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 30ª ed. Vol. 3, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 328 e 329.

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“(....) quanto a determinar-lhe a condução coercitiva, parece-nos não haver dúvida. Se pode fazê-lo quanto ao ofendido, por que razão não o poderá se se tratar de testemunha faltosa? Certo que o art. 218 fala, também, apenas Juiz. Mas ali o legislador minus dixit quam voluit. Observe-se que o inquérito representa a primeira fase da persecutio criminis, destinada a preparar a ação penal, e, como aliás, ensina Tornaghi, é, por sua própria natureza, inquisitório, escrito e sigiloso (Processo penal v. 1, p. 350). Na verdade é inquisitio sine coertione nulla est, donde se conclui que a Autoridade Policial tem essa potestas coercendi para compelir as testemunhas a comparecer perante ela, para depor, podendo, inclusivbe, processá-las pelo crime de desobediência. Evidente que esse poder de coerção não implica o de multar, que é exclusivo do Juiz como poder de disciplina que tem sobre os sujeitos processuais.”

Destarte, não sendo os dados cadastrais e registros telefônicos ou de quaisquer órgãos públicos protegidos pelo inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal ou pela Lei nº 9.472/97, não há em nosso ordenamento jurídico previsão no sentido de que o acesso a esses dados passem por prévia autorização judicial, prevalecendo o poder geral administrativo cautelar, permitindo a requisição direta de tais informações pela Autoridade Policial. A autoexecutoriedade da requisição policial tanto não está sob a égide da reserva absoluta da jurisdição, que o legislador na elaboração do novel diploma sobre lavagem de dinheiro lei 12.683 de 9 de julho de 2012, que alterou a lei 9.613/98, determina que os dados cadastrais mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito, nas quais pertençam ao investigado, segundo aos quais informam qualificação pessoal, filiação e endereço, deverão ser informados à Autoridade Policial independentemente de autorização judicial, no art. 17-B da referida lei.  “Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito.”  Sem olvidarmos que o dispositivo tem natureza processual por se tratar de verdadeira busca e apreensão, pode e deve ser aplicada a qualquer investigação por aplicação analógica por força do art. 3º do CPP c/c o art. 17-A do novel diploma de lavagem de dinheiro. “Art. 17-A.  Aplicam-se, subsidiariamente, as disposições do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), no que não forem incompatíveis com esta Lei.” 

Assim, percebe-se uma clara confusão nas respostas utilizadas pelas instituições, ao se negarem a fornecer os dados cadastrais de seus clientes, por ausência de embasamento legal, ao contrário, o sistema jurídico pátrio relativiza

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Poder Geral de Natureza Administrativo-cautelar pelo Delegado de Polícia e sua Função Inerente ao Sistema Acusatório Garantista

seu compartilhamento, o que faz com que o poder de polícia e o fim principal de segurança coletiva se sobressaiam, diante da norma contida no disposto do art, 5º, IV e XXXIII, ambos da CR/88, não justificando qualquer negativa nesse fornecimento. Como regra geral, a recusa o fornecimento das informações contidos nos documentos acima delineados, constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 330, Código Penal, ou, em se tratando de investigação envolvendo criminalidade organizada o crime previsto no art. 21 da lei 12.850/13, que não deixa dúvidas sob o poder requisitório do Delegado de Polícia, que pedimos vênia para destacar, in verbis: “Art. 21. Recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no curso de investigação ou do processo: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem, de forma indevida, se apossa, propala, divulga ou faz uso dos dados cadastrais de que trata esta Lei.” (grifo nosso)

Ademais, por não haver prazo expresso para o cumprimento do art. 6, III do CPP e demais diplomas que fundamentam o poder requisitório, torna implícito a este poder do Estado, por uma questão de razoabilidade, em estabelecer um prazo, na qual por alusão a caso semelhante ao que ocorre no inquérito civil público, que possui a mesma natureza jurídica do inquérito policial, entendemos plenamente cabível que a informação seja fornecida no prazo de 15 dias à luz do art. 8º da Lei 7347/85, aplicável por analogia conforme art. 3º do CPP.

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A Defesa dos Direitos da Personalidade em Face da Preservação do Direito à Intimidade na Sociedade Contemporânea Horácio Monteschio1

Introdução A preservação do homem como valor, essência, fim em si mesmo, representa uma conquista obtida a duras penas em face das violações experimentadas durante os séculos. Acontecimentos indeléveis, presentes na nossa história, ofertam razões mais do que suficientes para a preservação dos direitos do homem em sua ampla extensão. A inquisição impôs rituais e penas desumanas para a obtenção de confissões dos acusados; as excessivas exigências feitas aos vassalos para a manutenção da monarquia, colocando a vida humana em níveis insuportáveis; as desumanas jornadas de trabalho, impostas, inclusive as crianças, presentes no liberalismo, causando, ainda, desigualdades nas relações sociais e jurídicas e, por derradeiro, a lamentável ocorrência do holocausto e seus efeitos funestos, só para citar alguns dos mais relevantes do ponto de vista histórico. Estes eventos históricos acabaram por impor, dada a sua expressiva importância no âmbito social, uma crescente e constante defesa dos direitos fundamentais do homem, por conseguinte, passam-se as conquistas, lenta, mas, gradual e constante, dos direitos da personalidade. Mas, ao direito assiste ainda novos e constantes desafios e conquistas, na busca da melhor e mais proveitosa tutela dos direitos fundamentais, destacadamente com a evolução tecnológica que a um primeiro olhar era excludente inacessível, transformando-se hoje em uma realidade na vida. A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, na vanguarda dos direitos da personalidade, trouxe importantes avanços nesta trincheira da defesa destes direitos, ao passo que Código Civil de 2002, não esteve tão atento a despeito das lições presentes tanto na doutrina, quanto na legislação e na jurisprudência há muito tempo editadas na Europa. 1

Mestre em Ciências Jurídicas pelo Unicesumar Maringá. Especialista em Direito Público e Direito Processual Civil pelo IBEJ; Direito Tributário pela UFSC; Direito Administrativo pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar; Direito contemporâneo pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Integrante da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Estado do Paraná. Membro do IPRADE – Instituto Paranaense de Direito Eleitoral. Professor das Faculdades OPET em Curitiba, advogado militante.

A Defesa dos Direitos da Personalidade em Face da Preservação do Direito à Intimidade na Sociedade Contemporânea

Destarte, à proteção a intimidade, destacadamente nas relações envolvendo as redes sociais, o direito da personalidade, merece e deve receber toda a atenção da jurisprudência pátria, na medida em que a Constituição Federal de 1988 alçou este direito a posição de autonomia dada a sua importância fática e jurídica e sua constante evolução cibernética. Apesar da timidez constante do art. 21 do Código Civil de 2002, o direito à intimidade desperta interesses de todos os sentidos. A título de delimitação o presente texto fixa seu fio condutor nas relações presentes na exposição da intimidade, consentida ou não pelos usuários nas redes sociais e na internet, a esfera da reparação civil pecuniária ou inibitória. Portanto, em um primeiro momento classifica e pondera sobre a importância dos direitos da personalidade, vinculados a tutela da intimidade, os quais estão presentes na legislação e doutrina estrangeira. Posteriormente, destaca aspectos presentes na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, relacionados à intimidade, bem como na pesquisa de aspectos doutrinários, legislativos, na citação de casos concretos. Por derradeiro, nas conclusões, postulando concessão de proteção da tutela jurisdicional apta a reparar o dano material, bem como moral, além de impor ao causador do dano ônus financeiro expressivo capaz de impedi-lo de causar, o mesmo expediente ardiloso, em outra ocasião.

Dos direitos da personalidade, a intimidade na legislação e doutrinas estrangeiras Os direitos da personalidade passam a ter destaque, com as ideias formuladas por São Tomás de Aquino, importância inédita ao estabelecer que o homem é concebido como imagem e semelhança de Deus. Por esta razão deve ser garantido os direitos necessários à sua vida digna e sem ataques de qualquer espécie. Na doutrina de Diogo Costa Gonçalves, há uma referência sobre a criação cristã. O Homem, na visão do mundo, era o único ser querido por Deus em si mesmo. A individualidade, portanto, não era um problema, uma dificuldade. E não era não só por se haver quebrado a visão monista clássica de realidade, mas sobretudo porque a individualidade aparece como uma máxima perfeição na própria ordem do ser.2

A expressão cunhada pelo Cristianismo, consubstanciada de que o homem é a imagem e semelhança de Deus, presente no Gênesis 1, 26-273, desperta interesse ainda maior quanto ao tema relacionado ao direito de personalidade. 2

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GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e direitos de personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008, p. 28. 3 BÍBLIA SAGRADA. Trad. do Padre Antonio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Barsa, 1965, p. 2.

Horácio Monteschio

A influência da Igreja Católica no Império Romano é inconteste, impondo, ainda que de forma reflexa consequências iniciais, assim descritas por Capelo de Sousa. De fato, a moral cristã, não obstante ter exercido influência em Roma, não chegou a provocar grandes reformas na estrutura estatal, provocando mudanças apenas em zonas periféricas do direito, como por exemplo, na atenuação da escravatura, na condenação dos jogos de gladiadores (325 d.C.), na repressão da prostituição (343d.C.), na limitação da usura, na supressão do suplício da cruz e na abolição do cárcere privado.4

Desta forma, inicia-se uma linha de pensamentos e ações voltadas a garantir a preservação de bens, essenciais e indispensáveis aos homens. Como garantia do direito à vida que é o primeiro dos direitos a receber atenção por parte dos pensadores, tornando mais do que evidente o antropocentrismo da época, ponderados por Paulo Otero com sendo a “pessoa humana surge dotada de um valor próprio que decorre da razão e da liberdade da sua vontade, gozando, em consequência, de uma dignidade que surge como qualidade de valor natural, inalienável e incondicionado.”5 A Idade Média, apesar de receber estas novas ideias de proteção aos bens essenciais a sobrevivência do homem, é marcada pelo absolutismo, período no qual é marcado pelo pouco avanço na defesa dos direitos da personalidade. Por sua vez é com o iluminismo, destacadamente com seus filósofos e pensamentos Revolucionários, que o homem e seus direitos inerentes passam a receber a atenção necessária a sua concretização. Aliado ao aspecto político no qual a classe burguesa passa a adquirir importância financeira e, consequentemente, reduziu a influência da nobreza e da Igreja, presente na doutrina de Leonardo Estevam de Assis Zanini. Ademais, os iluministas fizeram prevalecer a noção por meio da qual o ser humano isolado era não somente parte do coletivo, mas dispunha de um singular plano interior, que deveria ser desenvolvido. Com isso, em correspondência com essa noção, colocava-se para o ordenamento jurídico a tarefa de reconhecer as peculiaridades individuais de cada ser humano protegê-las e desenvolvê-las.6

A Revolução Francesa e posteriormente a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776 e a Constituição de 1787, representam essa revolução copérnica, colocando o homem dentro de um contexto legal de proteção. 4

SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 57. 5 OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 136. 6 ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direitos da personalidade. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 39.

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A Defesa dos Direitos da Personalidade em Face da Preservação do Direito à Intimidade na Sociedade Contemporânea

As expressivas limitações que foram importas ao Estado, consubstanciadas na sua separação em três funções, bem como assegurando a primazia constitucional, presente no artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, segundo o qual “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.” Limitando o poder do Estado e assegurando os primeiros direitos fundamentais aos cidadãos. Cabe salientar que para Eduardo Cambi, com fundamento nas lições de Montesquieu, este “dispositivo depreende-se dois elementos essenciais, que estão no núcleo do conceito das constituições modernas: a separação de poderes (ou a limitação jurídica do poder estatal) e os direitos fundamentais.”7 Nas incipientes lições e noções do Constitucionalismo, consagradas nas limitações do poder do detentor do poder, trouxeram consigo a garantia da preservação dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. No campo doutrinário houve severo avanço na delimitação do direito a intimidade, bem como a sua presença nos códigos civil de vários países. Nos Estados Unidos destacado no trabalho formulado por Warren e Brandeis consagrado no Right of privacy ou right to be alone, na defesa da vida privada das pessoas. Na Inglaterra não se encontra qualquer respaldo as teses assumidas pelos americanos, destacadamente no right of privacy ou do right to be alone. Cabe ressaltar que estes direitos não ficaram ao desamparo, sendo protegidos da intromissão alheia e ilegal. Cabe citar o caso jornal sensacionalista Londrino, explorador da vida privada “News of the World”, que foi fechado após quase 170 anos de circulação, isto mesmo! Depois de 170 anos de atividade. O fim das atividades editoriais se deu em face da conclusão das investigações policiais na qual 4 mil pessoas foram vítimas de detetives a serviço do jornal.O citado jornal sempre se gabou das revelações bombásticas sobre a vida de políticos e celebridades. No direito francês Droit a la vie Privée ou Droit a l’intimité, no paradigmático caso citado por Elimar Szaniawski, envolvendo a publicação das memórias atriz Marlene Dietrich no ano de 1965 “o direito de publicá-las, mesmo sem a intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se conta a vida, deve, não obstante, obedecer a determinadas normas.”8 Protegendo a esfera íntima da atriz francesa. Na Itália Diritto alla reservatezza e diritto alla segretezza ou al rispetto della vita privata, inspirado no Recht na eigenen geheimnissphäre alemão. O Pioneiro doutrinador Italiano Adriano de Cupis, em sua obra clássica sobre os direitos da personalidade, datada do ano de 1961, ou seja, muito antes da internet, destaca o direito ao segredo, citando como exemplo as cartas epistolares e os seus respectivos segredos contidos. 7

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CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 23 8 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 339.

Horácio Monteschio

O direito ao segredo constituir um aspecto particular do direito ao resguardo. Certas manifestações da pessoa destina-se a conservar-se completamente inacessíveis ao conhecimento dos outros, quer dizer, secretas; não é lícito o divulgar tais manifestações, mas também o tomar delas conhecimento, e o revelá-las, não importa a quantas pessoas.9

Em Portugal, o direito à proteção da intimidade da vida privada ou direito à zona de intimidade da esfera privada, está presente na Constituição Federal de 1976, em seu artigo 33, “A todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.” Seguindo os passos da Constituição Portuguesa, e também influenciada pelas demais leis existentes sobre a matéria, Na Espanha adota-se o Derecho a la intimidad e Decrecho a La vida privada, bem como em sua Constituição de 1978 o direito à intimidade, inclusive quanto a sua utilização na informática. Assim, em seu artigo 18.4 estabelece que: “La ley limitará el uso de la informática para garantizar el honor y la intimidad personal y familiar de los ciudadanos y el pleno ejercicio de sus derechos”.10 Por fim, é de singular a importância destacar que os direitos da personalidade assumem, na defesa intransigente do direito a uma esfera interna, indevassável, protegida contra ataques de qualquer natureza, inclusive contra as modernidades constantes nas novas tecnologias da internet e das redes sociais, como se verá a seguir.

O direito à intimidade na Constituição Federal de 1988 e no código civil de 2002 No direito pátrio, os direitos da personalidade receberam atenção especial no texto constitucional, destacadamente entre os direitos e garantias fundamentais, consagrados explicitamente no art. 5º. Cabe destacar que os direitos da personalidade conceituados por Paulo Lôbo, como sendo “Os direitos da personalidade são os direitos não patrimoniais inerentes à pessoa, compreendidos no núcleo essencial de sua dignidade. Os direitos da personalidade concretizam a dignidade da pessoa humana, no âmbito civil.”11 Tanto os direitos da personalidade quanto os direitos fundamentais compõem o megaprincípio da dignidade da pessoa humana, erigido como fundamento da República Federativa do Brasil no artigo 1º, inciso III, destacado na doutrina de Ricardo Maurício Freire Soares, nos seguintes termos. 9

CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961, p.147. 10 Tradução livre. A lei limita o uso da tecnologia da informação para garantir a honra e a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos e o pleno exercício dos seus direitos. 11 LÔBO, Paulo. Direito civil. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2013, p.127.

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Uma vez situado no ápice do sistema jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana exprime as estimativas e finalidade a serem alcançadas pelo Estado e pelo conjunto da sociedade civil, irradiando-se para a totalidade do sistema normativo pátrio, não podendo ser pensado apenas do ponto de vista individual, enquanto posição subjetivas dos cidadãos a serem preservadas diante dos agentes públicos ou particulares, mas também vislumbrado numa perspectiva objetiva, como norma que encerram valores e fins superiores da ordem jurídica, impondo a ingerência ou a abstenção dos órgãos estatais e mesmo agentes privados.12

Por sua vez, essa dignidade não pode ser limitada ou mesmo compartimentada de forma estanque, assim descrita por Gustavo Tepedino como sendo “A realização plena da dignidade humana, como quer o projeto constitucional em vigor, não se conforma com a setorização da tutela jurídica ou com a tipificação da situação previamente estipuladas, nas quais pudesse incidir o ordenamento.”13 Sobreleva enfatizar o fato de que os direitos fundamentais, ao primeiro enfoque, possuíam somente características de verticalidade, restringindo-se ao Estado frente ao indivíduo, posteriormente passado a ser entendido como possuidora de aplicação horizontal, assistindo sua aplicação entre os individuais dentro deste cenário de preservação de direitos entre os particulares. Desta feita, dentro da evolução histórica, doutrinária e legal/princípiologica, os direitos da personalidade, os direitos fundamentais têm por escopo nuclear e preponderante a salvaguarda dos direitos essenciais ao ser humano de forma idistintamente. Há que se destacar que o direito à intimidade, presente no art. 5º, inciso X, dada a sua redação inequívoca, consagra a autonomia de sua proteção da intimidade em face aos possíveis ataques, consoante acima individualizado e feita a distinção entre privacidade e vida privada, assegurando a sua proteção frente ao Estado, quando do particular, por constituir-se a esfera mais restrita, mais pessoal, indevassável por sua essência garantidora de parcela de ações, objetivos e espaços e informações pessoais, as quais dizem respeito exclusivo ao seu possuidor ou a quem ele queira revelar. Urge salientar o fato de que há doutrinadores que defendem a tese de que os direitos fundamentais não se confundem com os direitos da personalidade, assistindo a um a tutela particular e outros frente ao Estado, mas que não são excludentes ou mesmo refratárias, ao passo que será descrito em linhas abaixo, que os dois compõem o mega sistema da dignidade da pessoa humana, destacando a posição defendida por Lydia Neves Bastos Telles Nunes. 12

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SOARES, Ricardo Maurício Freire. A releitura da teoria jusfundamental no sistema constitucional brasileiro: em busca de novos direitos. In: Direitos fundamentais em construção: estudos em homenagem ao ministros Carlos Ayres Brito. BERTOLDI, Márcia Rodrigues; OLIVEIRA, Kátia Cristiane Santos de. (org.) Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 28. 13 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2001, p. 23.

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Alguns direitos pecuniários, que portanto, não constituem direitos da personalidade, como direito de propriedade, consideram-se como essenciais para o homem. Ao contrário, se a maioria dos direitos da personalidade por razão de seu íntimo vinculo com o titular, são direitos do homem, alguns não têm um caráter primordial: ‘o direito da própria imagem”, que nos permite opor-nos à reprodução de nossa fotografia, não é um direito do homem. Encarecem a necessidade de compreender que o âmbito próprio dos direitos do homem é constituído essencialmente por relações de Direito Público, único que possibilita a proteção dos direitos essenciais do indivíduo contra a arbitrariedade do Estado. Quando se examinar os direitos da personalidade, estamos, sem dúvida, em geral, frente aos mesmo direitos, mas sob o ângulo privado; isto é, das relações entre os particulares; trata-se de defender esses direitos, já não contra a usurpação pela autoridade, mas contra os ataques pessoais.14

Entre os direitos fundamentais que são direitos da personalidade estará à defesa dos direitos à intimidade. Cabe destacar que os conceitos de vida privada e a intimidade, por vezes entendidos como sinônimos. Todavia, possuem distinção e autonomia constitucional e doutrinária, não razão para serem confundidas, assim diferenciadas por Raphael de Barros Monteiro Filho. Eis por que é assegurado à pessoa natural opor-se a que uma área de sua vida – a que não está voltada para a atividade pública – seja ilicitamente investigada, invadida e, mais ainda, tornada pública. Esse direito aplica-se não só aos relacionamentos estado-cidadão, mas também na relação entre particulares. Distantes do conhecimento público, concernentes à vida privada do indivíduo, exemplificativamente, os acontecimentos e atividades voltados ao social, ao lazer e ao esporte; a sua situação financeira; o seu patrimônio, a sua remuneração profissional, a sua relação com o fisco; os seus elementos constantes do bando de dados.15

Por sua vez o Código Civil de 2002, em seu art. 21 destaca a proteção “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.” Restando um tanto quanto tímido na sua elaboração legislativa, em termos comparativos com o a texto constitucional, ao passo que outros direitos da personalidade poderiam ter sido consagrados, ou mesmo, simplesmente, corroborar o contido na Constituição Federal, consoante a doutrina de Gilberto Haddad Jabur. 14

NUNES, Lydia Neves Bastos Telles. A pessoa natural e a relativização dos direitos da personalidade. In: O direito e o futuro da pessoa: estudos em homenagem ao professor Antonio Junqueira de Azevedo. BEÇAK, Rubens; VELASCO, Ignácio Maria Poveda (orgs.) São Paulo: Atlas, 2011, p. 57. 15 MONTEIRO FILHO, Raphael de Barros. Comentários ao novo código civil: das pessoas: (Arts. 1º a 78), volume I. Teixeira, Sálvio de Figueiredo (coord). Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 260.

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Justamente essa a impressão do art. 21 do Projeto, que tem fisionomia de princípio e não comando ordinário de lei. Da maneira como posta, sua redação é supérflua, porque contida no próprio comando constitucional fincado no art. 5º, X. A única e salutar novidade introduzida, e de grandíssima valia – reconheça-se, é a taxativa autorização ao Judiciário, quando provocado pelo interessado, para “impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”, vertida à proteção da “vida privada e da pessoa física(...)”.16

Não cabe reclamar, sobre a omissão legislativa infraconstitucional, mas sim destacar os comandos ali contidos. O que deve ser louvado é a presença do parágrafo único do artigo 21, que por si só já representa um avanço, limitando a prática e impondo ao Poder Judiciário o dever de fazer cessar a prática violadora da intimidade. Por fim, não restam dúvidas sobre a importância e a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, destacadamente, aqueles inerentes aos direitos da personalidade, assiste razão da possibilidade de destacar a redação do art 5º, § 1º da Constituição Federal, para o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”, ou seja, sua aplicação traz em seu bojo além da imediata aplicação e da máxima efetividade do texto constitucional, a garantia de aplicação tanto horizontal quanto vertical.

Direito à intimidade e sua tutela na defesa dos direitos da personalidade O direito à intimidade é conceito de difícil confecção em razão da variação que pode receber, tendo como parâmetro questões de ordem social e cultural. Assim conceituado por Edson Ferreira da Silva como sendo aquele que retira do conhecimento das outras pessoas “O direito à intimidade deve compreender o poder jurídico de subtrair do conhecimento alheio e de impedir qualquer forma de divulgação de aspectos da nossa vida privada, que segundo um senso comum, detectável em cada época e lugar interessa manter sob reserva.”17 Ocorre que com o aumento da renda, com a explosão do consumo, com a nova formatação das casas e da forma de convívio, cada qual desfrutando da sua individualidade com seu terminal de computador, com o seu smartphone, tablet, endereço eletrônico, site pessoal, perfil no facebook e tantos outros, como consequência da liberação dos costumes verificada no Brasil a partir da década de 60, mesmo com o exacerbado moralismo católico conservador dos anos de regime militar, a revolução sexual com a adoção de métodos 16

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JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflitos entre direitos da personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 305. 17 SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade: de acordo com a doutrina, o direito comparado, a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002. São Paulo: Juarez de Freitas, 2003, p. 51.

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contraceptivos, a aprovação a lei do divórcio em 1977, popularização da família monoparental, padrões sociais, da moda e individuais pautados pela televisão, tem os seus reflexos em uma permissividade cada vez maior em detrimento da intimidade. A vida privada dos indivíduos é a principal forma de desenvolvimento da maior parte das relações e dos valores considerados essenciais aos seres humanos. O elemento central das vidas privadas moderna e contemporânea é a intimidade, um valor que se opõe à padronização social, propondo a construção de relações afetivas e pessoais com certo grupo de pessoas e com determinados espaços e animais, além de revolucionar a interação do indivíduo com seu corpo e com sua mente.18

Ademais disto, cabe ressaltar o fato de que o direito a intimidade é matéria de atualidade singular, pelo fato de que em alguns casos divulgados, por adolescentes que tiveram suas intimidades expostas nas redes sociais e que chegaram ao ato último de desespero de cometer o suicídio a ter que enfrentar a vida em sociedade em razão da sua exposição nas redes sociais. “Uma adolescente de 16 anos cometeu suicídio na tarde da última quinta-feira, em Veranópolis, na Serra, horas após descobrir que o ex-namorado havia espalhado fotos dela seminua nas redes sociais.”19 Cabe citar que a intimidade compõe a esfera mais restrita, de mais difícil acesso, que impõe maiores obstáculos a sua divulgação a outras pessoas que não a do seu titular, ou a quem lhe possa compartilhar. Desta forma, a sua proteção impõe-se cada vez mais necessária, assim descrita por Paulo José da Costa Junior. Contrapõe-se à esfera individual a esfera particular ou privada. Aqui, não se trata mais do cidadão no mundo, relacionado com os semelhantes, como na esfera individual. Trata-se, pelo contrário, do cidadão na intimidade ou no recato em seu isolamento moral, convivendo com a própria individualidade. O interesse aqui tutelado é diverso do segredo e, ainda, da reputação. Esta diz respeito a um atributo (respeitabilidade), que se insere na vida de relação (esfera individual). A intimidade concerne ao aspecto da individualidade. Corresponde tão somente àquela aspiração do indivíduo de conservar a sua tranquilidade de espírito, aquela sua paz interior (la vie privée doit être murée), que uma publicidade ou uma intromissão alheira viriam a perturbar.20

18

ROBI FILHO, Ilton Norberto. Direito, intimidade e vida privada: paradoxos jurídicos e sociais na sociedade posmoralista e hipermoderna. Curitiba: Juruá, 2010, p. 123. 19 http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2013/11/adolescente-de-16-anos-de-veranopolisse-suicida-apos-ter-fotos-intimas-divulgadas-na-internet-4338577.html, acesso em 2 de maio de 2015. 20 COSTA JUNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 33.

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A intimidade, reitere-se, está presente na Constituição Federal assegurada a sua proteção de forma expressa no artigo 5º inciso X. Por sua vez, dada a complexidade da vida em sociedade as “esferas” da intimidade são expostas pelas mais variadas razões e fundamentos, passando a uma exposição nas redes sociais e na internet, bem como a necessidade de proteção cibernética da intimidade. Marcelo Cardoso Pereira, relata a sua inquietação quanto a vulnerabilidade dos usuários da internet, quanto a preservação da sua intimidade, nos seguintes termos. Podemos afirmar que a privacidade dos internautas está em uma situação periclitante. Com efeitos, é possível que, por trás de uma página na web dedicada ao e-commerce, possa estar um hacker mal intencionado que aproveitando da inocência da maioria dos usuários da Rede, “invade” seus computadores em busca de informações (números de cartões de crédito, de contas bancárias etc) ou simplesmente para divertir-se.21

Aqui é que reside o cerne da questão controvertida, de um lado está a necessidade de proteção a intimidade e de outro a conscientização de que a exposição da intimidade pode causar prejuízos indeléveis a vida pessoal e social do exposto. Cabe salientar o fato de que as informações compartilhadas nas redes sociais poderiam estar restritas a o grupo de relacionamento pessoal. Ocorre que isso, invariavelmente, não acontece, pois as evidências demonstram que assuntos envolvendo relacionamentos escolares, orientação sexual, fotografias dos locais visitados, com outras pessoas, seu ídolos pessoais, preferências de compras, e-mail pessoal e profissional, local de trabalho, opção religiosa, preferência política, hobbies, compras feitas, viagens realizadas, local onde mora e frequenta, passa a compor o acervo digital, por conseguinte, utilizada para fins lícitos ou não, aspectos que são corroborados por Sônia Aguiar do Amaral Vieira. De alguma maneira, nosso viver diário passa pelo controle virtual, seja quando acessamos o computador para obtenção do extrato bancário, quando enviamos nossa declaração de imposto de renda via Internet ou por um disquete ou quando adquirimos produtos por meio de cartão de crédito, submetido à pesquisa, através de nossos dados pessoais que são conferidos.22

O que dizer de situações de casais que vêm a ter o relacionamento encerrado e quem um deles, inconformado ou desgostoso com a forma com se deu o desfecho do enlace, coloca à disposição de todos os usuários da internet vídeos, fotos contendo momentos de extrema intimidade dos enamorados, bem como a rapidez com que dados, fotos e imagens são divulgados mundo 21

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PEREIRA, Marcelo Cardoso. Direito à intimidade na internet. Curitiba: Juruá, 2005, p. 239. 22 VIEIRA, Sônia Aguiar do Amaral. Inviolabilidade da vida privada e da intimidade pelos meios eletrônicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 74.

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a fora. Citando-se o caso paradigma nacional retratado por André Brandão Nery Costa. Uma apresentadora de televisão de Maringá perdeu seu emprego de colunista social após terem sido divulgadas por seu ex-namorado fotos em que aparecia nua. A comprovar a dinamicidade e a rapidez em que dados pessoais são propagados essas fotos chegaram a ser publicadas em 7 milhões de sites pornôs pelo mundo.23

Bem como, os inúmeros casos de divórcio registrado em razão do comportamento de um dos cônjuges nas redes sociais, destacadamente as provas contidas nas postagens vem a corroborar a situação de insuportabilidade na continuidade da relação, produzida pelo ex-consorte, demonstrando a infidelidade recorrente. Aspectos relacionados à seleção de emprego são cada vez mais discutidos, por todas as espécies de empresas, as quais invariavelmente realizam pesquisas na internet para estabelecer um “real” conhecimento sobre o candidato, não se restringindo a aspectos constantes do curriculum vitae ou mesmo nos aspectos extraídos da entrevista com o candidato. Os casos de Bullying, em que são vítimas pessoas que nem sequer sabem que os seus discriminadores são conhecidos, que obtiveram informações sobre o perfil pessoal na internet, em postagens feitas por outras pessoas, quiçá, sem o interesse de causar tal prejuízo pessoal. De outro lado temos o direito à informação, presente no texto constitucional no mesmo art. 5º inciso IX no qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, consagrando a liberdade de imprensa em constante colisão com o direito a preservação da intimidade, em constante estado de latência ou em concreto conflito, cada qual buscando a defesa do seu direito de informar de um lado e ou de garantir a preservação da intimidade de outro. Vale ressaltar a vida reclusa do escritor paranaense Dalton Trevisan, vencedor de vários prêmios nacionais e internacionais, entre os quais o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL), por Novelas Nada Exemplares (1959), o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), e o Prêmio Ministério da Cultura e o Camões em 2012. Para Dalton Trevisan, a esfera mais íntima, alheia a notícias, fotografias entre outras, avesso a entrevistas, vivendo a sua intimidade a sua forma particular de vida, a qual deve ser devidamente respeitada em face as possíveis intromissões. Há que se entender, como instrumento de defesa dos direitos à intimidade, violador à possibilidade de um “direito ao esquecimento” retirando das redes sociais, através de tutela judicial específica vídeos e imagens violadores da intimidade das pessoas, tendo em vista a perenidade de acesso. Neste sentido, 23

COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento na internet: a Scarlet letter digital. In: Direito e mídia. SCHEREIBER, Anderson (coord.) São Paulo: Atlas, 2013, p.186.

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Têmis Liberger salienta que se trata de “uma questão muito importante, uma vez que hoje a capacidade dos computadores de armazenar informações é muito grande, fazendo com que os dados sejam mantidos por um prazo praticamente indeterminado.”24 Casos concretos neste sentido estão presentes no repertório jurisprudencial pátrio e estrangeiro a demonstrar que a ampla e irrestrita defesa da intimidade pessoal é matéria da extraordinária importância e por isso deve ser prestada de maneira célere. Assim foi que em 1931 no célebre feito Melin versus Reid, a apelante de nome Gabrielle Darley havia tido uma vida agitada – prostituíra durante alguns anos – sendo absolvida em 1918 de uma acusação de assassínio. A partir de então, casara-se com Bernard Melvin levando uma digna e honrada vida, exemplar em todos os sentidos, merecendo o bom conceito dos amigos do casa. Em 1925 o produtor de cinema Reid fez um filme baseado na vida passada daquela mulher e no processo criminal que a envolveu e no qual utilizando o nome real de Gabrielle Darley. O Tribunal de apelação da Califórnia, sem referi-lo especificamente, reconheceu um “direito ao esquecimento” que desassombradamente é um dos importantes aspectos da vida privada.25

Desta feita, conclui-se que no caso concreto específico prevaleceu à época a defesa da intimidade e da vida privada da retratada descrita pelo preclaro professor da Universidade Federal do Estado do Paraná. É recorrente a presença, no noticiário jornalísticos de matérias, as quais consagram relatos de imagens, vídeos extraídos de computadores, smartphones, em sua maioria obtidos através de crimes contra o patrimônio, os quais são disponibilizados especialmente nos sites youtube, LinkedIn, Twitter, Whatsapp ou facebook expondo a intimidade mais reclusa dos usuários dos aparelhos obtidos ilicitamente. Como consequência pessoal há uma severa perda da liberdade individual, descritas por Stefano Rodotà na medida em que o “conjunto de ações e palavras armazenadas que acompanham o indivíduo onde quer que ele vá.”26 Passando ao domínio geral das pessoas. A intimidade que estava presente no diário e agenda pessoal, acessível ao seu proprietário ou àquele com o qual compartilhava e sua leitura estava circunscrita a o seu dono ou a grupo restritíssimo. O que dizer das cartas “trocadas” entre os seus respectivos remetentes e destinatários compondo, grupo reservado de informações e, por conseguinte, quase que indevassável. 24

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LIMBERGER, Têmis. O direito à intimidade na era da informática: a necessidade de proteção dos dados pessoais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 199. 25 DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade e informação: possibilidade de limites. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 90. 26 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar , 2008, p. 121.

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Destarte, como garantia da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade, é imprescindível que este direito à intimidade receba atualmente uma atenção mais acurada pelo Poder Judiciário, no caminho que venha a ser trilhado de forma célere e com consequências pedagógicas ao seu causador, impondo, além das reprimendas penais severas, no mesmo sentido pedagógico, impor sanção pecuniária, tanto na órbita inibitória quanto de reparação, aptas a causar efeito pedagógico e disciplinar. Não se pretende, com este posicionamento restringir outros direitos constitucionalmente garantidos, como já citado da liberdade de expressão, bem como da preservação de fatos históricos, sociais e políticos, mas única e tão somente garantir, a proteção rápida e consistente da imposição de aspectos da intimidade dos envolvidos, indesejados na sua exposição. Cabe salientar, ainda que de forma bastante rápida a razão nuclear que ensejou com a tutela penal a Lei 12.737 de 2012, a chamada lei “Carolina Dieckmann”, que, entre outras coisas, torna crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obtenção de dados particulares. A referida lei só chegou a sua vigência em razão da notoriedade da pessoa envolvida a qual teve suas fotos, que estavam em seu comutador pessoal, divulgadas na internet. De volta a esfera Cível que é o objeto deste trabalho, a perda do controle, da liberdade, da identidade pessoal e por finalmente a intimidade, possuem altíssima carga na genética social e individual da pessoa, que tem estes bens pessoais violados e colocados as escâncaras, classificados por Danilo Doneda. Os dados pessoais passam a ser intermediários entre a pessoa e a sociedade, prepostos nem sempre autorizados e capazes, e é justamente isto que produz com efeitos da perda de controle da pessoa sobre o que se sabe em relação a si mesmo – o que, em última análise, represente uma diminuição na sua própria liberdade.27

Mutatis Mutandis, a fixação de parâmetros específicos à disciplinar a defesa daquele que teve suas imagens pessoais expostas, sem a sua aquiescência expressa ou tacitamente é deveras instrumento de relevante interesse pessoais e sociais, na medida em que, reitere-se a facilidade de ilimitada exposição, destacadamente nas redes sociais, tornando-se cada vez mais acessível e célere a sua difusão.

Conclusões Em razão dos fatos aqui narrados, postula-se que seja assumida posição de tutela cível e rápida para a retirada da “postagem” nas redes social, nos caso de imagens, vídeos, ou mesmo de sons nas redes sociais, que não venham a ridicularizar alguém, acrescido de que esta postagem é ou foi feita sem a concordância daquele que foi exposto e que não possui qualquer carga de 27

DONEDA. Danilo. Da privacidade à proteção de danos pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 181.

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informação útil, ou mesmo informativa, caracterizando-se como de cunho mesquinho, egoístico e com o propósito especifico de causar dor, prejuízos morais e sociais, ou quais, são de difícil ou improvável reparação física e moral. Urge salientar o fato de que o Poder judiciário brasileiro tem ofertado, a título de reparação de dano material e moral, valores de pequena ou insignificante mora se comparados com a extensão e a gravidade do dano causado pela prática de exposição da intimidade. O que é mais grave é o fato de que em muitos casos o autor do ato ignóbil, abjeto não é encontrado ou mesmo identificado. Questões dos mais variados matizes passam a ser potencializadas, nos níveis jamais vistos antes das redes sociais, razão pela qual, se mantidas as condenações nos padrões financeiros vistos nos dias atuais, seguramente estar-se-á legitimando, pela via do poder Judiciário, a violação dos direitos da personalidade, destacadamente, os referente a intimidade, por via de consequência lógica, menosprezando a dignidade da pessoa humana e incentivando o transgressor, pois de antemão já tem conhecimento que a condenação pecuniária é de pequena monta a ser imposta pelos órgãos julgadores.

Referências bibliográficas BÍBLIA SAGRADA. Trad. do Padre Antonio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Barsa, 1965. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento na internet: a Scarlet letter digital. In: Direito e mídia. SCHEREIBER, Anderson (coord.) São Paulo: Atlas, 2013. COSTA JUNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961. DONEDA. Danilo. Da privacidade à proteção de danos pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade e informação: possibilidade de limites. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e direitos de personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008. JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflitos entre direitos da personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. LIMBERGER, Têmis. O direito à intimidade na era da informática: a necessidade de proteção dos dados pessoais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. LÔBO, Paulo. Direito civil. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2013. MONTEIRO FILHO, Raphael de Barros. Comentários ao novo código civil: das pessoas: (Arts. 1º a 78), volume I. Teixeira, Sálvio de Figueiredo (coord). Rio de Janeiro: Forense, 2012. NUNES, Lydia Neves Bastos Telles. A pessoa natural e a relativização dos direitos da personalidade. In: O direito e o futuro da pessoa: estudos em homenagem ao professor Antonio Junqueira de Azevedo. BEÇAK, Rubens; VELASCO, Ignácio Maria Poveda (orgs.) São Paulo: Atlas, 2011. OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. Coimbra: Coimbra, 2009.

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A Tutela Executiva no CPC/73 e na Lei 13.105/2015: os Devedores Particulares Condenados ao Pagamento Quantia Certa, Fazer e não Fazer e Entregar Coisa Certa Adriano Moura da Fonseca Pinto1 Isabela de Souza Galdino da Costa2 Resumo O presente trabalho tem por objetivo analisar o tratamento legal aos devedores particulares de sentenças condenatórias no âmbito do Processo Civil atual e nas regras do novo Código de Processo Civil de 2015. Palavras-chave: Execução;. devedor; tratamento; isonomia; Lei 13.105/2015. Abstract This study intends to analyze the legal treatment of private debtors of convictions under the current Civil Procedure and the rules of the new Civil Procedure Code 2015. Keywords: Execution; debtors; treatment; equality; Law 13.105/2015.

Introdução Em primeiro plano é importante ressaltar que parte do tema do presente trabalho foi inicialmente abordado em artigo jurídico publicado em 2014,3 ainda em meio à expectativa da chegada do NCPC, o que veio a ocorrer com a Lei 13.105 de 17 de março de 2015, embora a expectativa tenha se tornado mais efetiva desde dezembro de 2014. Na publicação em 2014, abordamos características do tratamento dispensado aos devedores em 1

Doutorando em Direito pela Universidad de Burgos - Espanha. Advogado. Professor Universitário. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estácio de Sá- Campus Freguesia. Integrante da Coordenação Geral do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro-RJ. 2 Advogada e Pós-Graduanda em Direito Constitucional pela UCAM. 3 PINTO, A. M. F. ; MELLO, C. M. . O tratamento do devedor em juízo após as alterações das leis 11.232/2005 e 12.382/2006. In: Adriano Moura da Fonseca Pinto; Cleyson de Moraes; Ubirajara da Fonseca Neto; Caroline da Cruz Vieira, Isabela de Souza Galdino da Costa; Luana Nascente da Silva. (Org.). OS NOVOS CAMINHOS DO DIREITO. 1ed.Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2014, v. 1, p. 69-76.

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juízo, com ênfase aos devedores particulares de cumprimento de sentenças condenatórias de pagar quantia certa e situações jurídicas que entendemos por incoerentes em face da dualidade de tratamento no âmbito do direito material e processual civil. Tal situação, além de refletir, como abordado no referido artigo, tratamento não isonômico à situações jurídicas materiais similares, também influencia diretamente na missão maior que se pode ter e esperar do Poder Judiciário, qual seja, o alcance da efetividade processual e material do direito das partes envolvidas em processos judiciais, respeitados os direitos e garantias fundamentais do processo previstos na CRFB de 1988. Como já afirmado anteriormente, existe grande dificuldade prática do sistema jurídico em alcançar à finalidade primária de responder tempestivamente ao jurisdicionado e seu reclame, seja por uma resposta positiva (satisfatória) à pretensão desejada, seja pela sua negação. O importante é que seja tempestiva e atenda à parâmetros mínimos de segurança jurídica, ainda que passível de impugnação ordinária ou extraordinária por meio recursal. Não importa se estamos diante de um processo em fase de conhecimento, execução ou mesmo em processos autônomos de execução. O que se espera é que haja tratamento eficiente à tutela e prestação jurisdicional pretendida e no caso da tutela executiva, tal expectativa se faz muito mais presente e sentida nas decisões judiciais em prol do cumprimento dos provimentos jurisdicionais que contenham comando condenatório de pagar quantia certa, fazer e não fazer ou entregar coisa certa. Quando o Direito não consegue proteger as pessoas e suas relações jurídicas no campo material e processual da mesma medida, surge um descompasso fático e na maioria das vezes de cunho quase sempre reativo e mais penoso. A sociedade contemporânea realiza em minutos ou mesmo em minuto único atos e negócios jurídicos obrigacionais no mundo físico e virtual, mas não consegue no campo da Justiça, incluindo o Poder Judiciário, obter uma resposta sempre tão ágil quanto imaginava. O mesmo ser que contrata, que se vincula juridicamente com outrem não necessariamente imagina como será penoso ver ou reaver seus direitos em juízo. As justificativas legais e teóricas a respeito das necessárias garantias, direitos e etapas até o momento em que o jurisdicionado já credor faz jus não conseguem, salvo melhor juízo, superar as mazelas dos efeitos temporais da mesma demora. Seja por situações inerentes à administração judiciária, à aparente complexidade do que de fato e de direito deveria se entender de forma mais singela, ao duplo grau de jurisdição por exemplo, o acesso efetivo ao direito material violado é muito demorado, quando mesmo impossível de ser alcançado em situações fáticas relacionadas à fraudes que se cometeram em meio a tanto tempo de passagem.

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A tutela executiva: os devedores particulares de pagar quantia certa, fazer e não fazer e entrega de coisa certa no CPC/73 e no NCPC No âmbito de nosso atual CPC/73, os credores de sentenças condenatórias de pagar quantia certa, fazer e não fazer e entregar coisa certa têm no artigo 475-I um verdadeiro portal de admissibilidade, de reconhecimento do direito alegado e, logo em seguida, eleição dos ritos a serem utilizados para a busca de seus direitos. Caso a obrigação a ser cumprida seja pecuniária, segue-se pelos artigos 475-J e seguintes do CPC/73 até a expropriação patrimonial, caso seja necessário. Se for hipótese de obrigação de fazer e não fazer, segue-se pelo art. 461 do CPC/73 e, no caso do art. 461-A do CPC/73, se for situação de entrega de coisa certa. Pela códice atual, existem três ritos distintos que foram lentamente arquitetados desde os anos de 19904 para cada vez mais apurar os direitos de credores ao mesmo tempo em que aumentaram e muito os poderes do Juiz na busca pela obtenção da tutela específica, tudo em prol do alcance material dos direitos previstos no Código Civil de 2002 com suas posteriores alterações. A tutela de conhecimento, no caso de conteúdo preponderantemente condenatório, somente alcança a sua finalidade completa, com a efetiva satisfação dos direitos reconhecidos à pessoa legitimada pela sentença definitiva, sem prejuízo das hipóteses em que a tutela tenha sido antecipada por decisão interlocutória, ou execução provisória, conforme o caso. 4

Em verdade, tornaram-se frequentes medidas cujo objetivo seja tornar o serviço jurisdicional mais ágil e seguro, alcançando, assim, sua maior efetividade, denominação que se tem utilizado. Assim, na chamada “Reforma” datada de 1994, podemos apontar dispositivos como os arts. 331, 272 e 273, introduzindo mecanismos por meio do quais se pretendeu melhor atender aos interesses do jurisdicionado. Estas, como muitas outras, originaram-se, importante frisar, de pensamento datado do século passado, meado do qual, aproximadamente, o individualismo egoísta dos burgueses, que imperava nos séculos XVIII e XIX, tratou de ser superado (ao menos, em política legislativa). Ainda que de forma demorada e, por vezes, tímida, buscou-se direcionar o pensamento à coletividade, o que se comprova por princípios como da eticidade, boa-fé objetiva e socialidade, presentes, como se sabe, no atual Código Civil e Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Sabese, assim, que um grito de alerta foi dado pelos juristas-pensadores (especialmente Mauro Cappelletti) engajados no momento que se intitulou Projeto Florença, com repúdio ao positivismo jurídico, a partir do que surgiu o conhecido fenômeno do acesso à justiça, dando ensejo a reformas diversas, como a adoção da gratuidade de justiça (aqui, no Brasil, pela Lei 1.060/50), da jurisdição coletiva (também, aqui, por meio das Leis 7.347/85 e 8.078/90, especialmente) e de meios alternativos de solução de litígio, como a arbitragem (aprimorada, no direito interno, pela Lei 9.307/96). Seguiram-se, mais notadamente, as alterações de 1994 (Leis 8..950 a 8.953), 1995 (Leis 9.079, 9.139 e 9.245), 1998 (Leis 9.668 e 9.756), 2001 (Leis 10.352 e 10.358), 2002 (Lei 10.444) e, mais recentemente, as Leis 11.187 e 11.232 (ambas de 2005) e 11.276, 11.277 e 11.280 (estas, já de 2006).

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A maior fraqueza da execução é a sua inutilidade diante da frustração em localizar bens executáveis do devedor dissimulado e neste particular, o legislador vem desde os anos 19905 procurando inovar no sentido de proporcionar mais e melhores ferramentas ao credor e ao juiz para busca da satisfação material das obrigações de fazer e não fazer e também entrega de coisa. Os arts. 461 e 461A do CPC/73 foram turbinados para o melhor funcionamento possível. Do tímido começo das diversas intimações e pequenas multas periódicas( apelidadas de diárias sempre ou quase) às medidas coercitivas mais fortes como lacre, busca e apreensão, sequestro de bens e outras medidas, o legislador esteve sempre afiado ao desafio de fazer valer os papéis do judiciário e agora traz no NCPC os arts. 536 a 538, em fina sintonia com os já saudosos arts. 461 e 46-A do CPC/73. Para além da fina sintonia, o NCPC também auxiliou na delimitação das possibildades de atuação do juiz (de ofício ou a requerimento) para obtenção do resultado prático equivalente ou mesmo da tutela específica, lembrando que tais possibildades também estão disponíveis para a execução provisória, inclusive em sede de cumprimento de tutela provisória, nos termos dos arts. 294 a 311 do NCPC. No cumprimento da sentença que reconheça a exibilidade de obrigação de fazer ou não fazer ou entrega de coisa certa, o juiz pode atuar de ofício determinando as medidas necessárias para a satisfação do exequente, seja para a efetivação da tutela específica seja para a obtenção do resultado prático equivalente. Para isso o juiz poderá determinar, dentre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas ou coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, bem como a requisição de força policial. 5

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Em verdade, tornaram-se frequentes medidas cujo objetivo seja tornar o serviço jurisdicional mais ágil e seguro, alcançando, assim, sua maior efetividade, denominação que se tem utilizado. Assim, na chamada “Reforma” datada de 1994, podemos apontar dispositivos como os arts. 331, 272 e 273, introduzindo mecanismos por meio do quais se pretendeu melhor atender aos interesses do jurisdicionado. Estas, como muitas outras, originaram-se, importante frisar, de pensamento datado do século passado, meado do qual, aproximadamente, o individualismo egoísta dos burgueses, que imperava nos séculos XVIII e XIX, tratou de ser superado (ao menos, em política legislativa). Ainda que de forma demorada e, por vezes, tímida, buscou-se direcionar o pensamento à coletividade, o que se comprova por princípios como da eticidade, boa-fé objetiva e socialidade, presentes, como se sabe, no atual Código Civil e Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Sabese, assim, que um grito de alerta foi dado pelos juristas-pensadores (especialmente Mauro Cappelletti) engajados no momento que se intitulou Projeto Florença, com repúdio ao positivismo jurídico, a partir do que surgiu o conhecido fenômeno do acesso à justiça, dando ensejo a reformas diversas, como a adoção da gratuidade de justiça (aqui, no Brasil, pela Lei 1.060/50), da jurisdição coletiva (também, aqui, por meio das Leis 7.347/85 e 8.078/90, especialmente) e de meios alternativos de solução de litígio, como a arbitragem (aprimorada, no direito interno, pela Lei 9.307/96). Seguiram-se, mais notadamente, as alterações de 1994 (Leis 8..950 a 8.953), 1995 (Leis 9.079, 9.139 e 9.245), 1998 (Leis 9.668 e 9.756), 2001 (Leis 10.352 e 10.358), 2002 (Lei 10.444) e, mais recentemente, as Leis 11.187 e 11.232 (ambas de 2005) e 11.276, 11.277 e 11.280 (estas, já de 2006).

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A respeito da possibilidade de multa, independentemente de requerimento da parte pode ser imposta na fase de conhecimento, antecipação de tutela, na sentença ou na própria execução, tenha a obrigação de fazer ou não fazer a natureza obrigacional ou não, devendo ser suficiente e compatível com a obrigação, com o dever ou a omissão e deverá correr em prazo razoável para o cumprimento do preceito. Também de ofício ou a requerimento, o juiz poderá modificar o valor, ou a periodicidade da multa vincenda, ou excluí-la, sem eficácia retroativa, desde que tenha perdido a sua finalidade, seja porque o obrigado demonstrou o cumprimento parcial superveniente da obrigação, seja porque demonstrou justa causa para o descumprimento. No caso em que se verificar que a multa tenha se tornado excessiva, o juiz deverá reduzi-la a valor razoável. A multa pertence ao exequente que poderá executá-la em definitivo com o trânsito em julgado da sentença que lhe foi favorável, ou executá-la provisoriamente quando for o caso, correndo por conta e risco do exequente. A multa será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento da decisão até o momento do seu requerimento e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado. É o disposto no art. 537 do NCPC e seus respectivos parágrafos. Relativamente à busca e apreensão, o mandado deverá ser cumprido por dois oficiais de justiça e, havendo necessidade de arrombamento, e constando do mandado a ordem de arrombar, os oficiais de justiça farão o arrombamento de cômodos e móveis em que presume estarem os bens, com auxilio de chaveiros, quando for o caso, e lavrarão autos circunstanciados em duplicata, que serão também assinados por duas testemunhas, presentes à diligencia que apresentarão as respectivas identificações e qualificações, devendo uma via ser entregue ao escrivão ou ao chefe da secretaria e outra à autoridade policial a quem couber a apuração dos eventuais delitos de desobediência ou resistência. É o disposto no art. 536, § 2o do NCPC. Como já apontado anteriormente, aqui a defesa do executado poderá ser feita, nos próprios autos, por impugnação, em regra sem efeito suspensivo que poderá ser atribuído se for apresentada garantia suficiente, no prazo de 15 (quinze) dias contados da intimação para o cumprimento da sentença, restringindo-se a matéria de defesa a fatos posteriores à decisão exequenda, inclusive a competência do juízo da execução, salvo hipótese de nulidade ou falta de citação, se o processo de conhecimento lhe tiver corrido à revelia ou se a obrigação reconhecida no título judicial tiver se baseado em lei ou ato normativo considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo STF como incompatíveis com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. A decisão do STF deve ser proferida antes do trânsito em julgado da sentença exequenda, se proferida após o transito em julgado, deverá ser desconstituída mediante ação rescisória, correndo o prazo para o seu ajuizamento do transito em julgado da decisão do STF. Poderá, ainda, o juiz modular no tempo a aplicação no caso concreto dos efeitos da decisão do STF, em atenção à segurança jurídica.

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Da decisão que rejeitar a Impugnação, caberá agravo de instrumento. Se, todavia, extinguir o processo de execução o recurso será o de apelação. No caso específico das obrigações de entrega de coisa, o executado deve efetivar a entrega da coisa móvel ou imóvel, cumprindo o comando da decisão ou da sentença. Se não cumprir a obrigação, o juiz determinará a expedição de mandado de busca e apreensão da coisa móvel ou mandado de imissão na posse, se coisa imóvel. A eventual existência de benfeitorias necessárias ou úteis e o direito de retenção deverão ser alegados e exercido na fase de conhecimento na contestação que deverá quanto às benfeitorias discriminá-las e justificadamente apontar os respectivos valores. O exequente poderá efetuar apenas o depósito dos valores relativos às benfeitorias necessárias, se a sentença reconhecer que o executado agiu de máfé. No caso de boa-fé, deverá indenizar tanto as benfeitorias necessárias quanto as úteis. O pagamento em dinheiro da indenização por benfeitorias pode ser substituído pelo uso da coisa pelo executado, no prazo assinado pelo juiz. Modus in rebus, aplicam-se ao cumprimento da sentença de entrega de coisas as medidas necessárias à efetivação da execução e as regras relativas à defesa do executado. É o previsto no art. 538 do NCPC. Todos os casos acima dizem respeito à situações jurídicas onde o direito onde o direito material foi ou está na iminência de ser violado e necessita da mais direta atuação possível do Poder Judiciário. Como já tratado anteriormente, a lei , o contrato e ato ilícito são as fontes principais das Obrigações6 e com base neste referencial, entendemos e advogamos a ideia de que o conceito e posição jurídica dos credores e devedores derivam de nosso direito privado e, por tal razão, deve-se dar ao mesmo um tratamento isonômico em juízo. Neste particular o NCPC muito nos animou com a possibilidade do devedor de pronunciamento judicial (sentença condenatória) poder oferecer sua defesa de Impugnação independentemente da garantia do juízo, rompendo assim com a redação induzida e a nosso ver, mal interpretada, do art. 475-J, § 1º do CPC/73,7 no sentido de apenas permitir a Impugnação após a penhora prévia de patrimônio do devedor. A regra é diametralmente oposta ao previsto no art. 736 do CPC/738. Este é um exemplo claro que demonstra o sentido e papel mais unificador que o NCPC pretende dar ao tema. 6

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 29.ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 970. Art. 475-J do CPC/73. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação. § 1o Do auto de penhora e de avaliação será de imediato intimado o executado, na pessoa de seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por mandado ou pelo correio, podendo oferecer impugnação, querendo, no prazo de quinze dias. (Redação dada pela Lei 11.232, de 2005). Disponível em . Acesso em: 20 set. 2014. 8 Art. 736 do CPC/73. O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). . Acesso em: 20 set. 2014. 7

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É também importante renovar que não pretendemos aqui advogar a ideia de que os devedores de sentenças condenatórias não possam (ou até mesmo devam) ter encargos e outras consequências pecuniárias específicas. Apenas sustentamos que as causalidades devem ser legais, típicas e legítimas, considerando exclusivamente ocorrências processuais, na hipóteses de se realizar distinções. Como já afirmamos antes, não permitir ou receber a Impugnação por falta de penhora ou outra garantia do juízo e discriminar sem fato legal, típico e legítimo. Se a tipificação legal de credor e devedor vem do 9Código Civil, não havendo distinção material, não há lastro ou nexo de causalidade para diferenciação processual nos termos acima. Imaginemos um devedor que tenha sido condenado por sentença e está sendo executado para o pagamento de R$20.000,00 (vinte mil reais). Caso ele queira exercer algum tipo de defesa via Impugnação deverá ter o Juízo garantido antes, nos termos de como se interpreta (em regra) o art. 475-J, §§ 1º e 2º do CPC/73. Por outro lado, se a mesma pessoa natural ou jurídica de direito privado contrai uma obrigação por título executivo extrajudicial e não havendo pagamento voluntário advém processo de execução. O devedor citado pode apresentar Embargos (art. 736 do CPC/73) sem a necessária garantia do Juízo pela penhora, sem prejuízo da possibilidade da mesma a partir do 4º dia após a citação válida. Essa mesma pessoa natural ou jurídica merece ser trata de forma distinta nas duas situações? Imaginem se o credor for o mesmo para os dois casos simulados acima? O que fundamenta tratá-los de forma diferenciada, além da topografia gramatical do CPC/73? No mais, não haveria lei posterior regulando o mesmo direito da anterior, valorizando ainda mais a razoável duração do processo com sede constitucional10? Tais dúvidas, suscitadas em nosso artigo anterior, agora foram respondidas pela letra do NCPC, nos termos do art. 525,11, quando restou abolida a 9

MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. O Novo Processo Civil Brasileiro. Exposição Sistemática do Procedimento. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, p.296. 10 Art. 5º, LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) Disponível em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. 11 Art. 525 do NCPC.   Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação. § 1o Na impugnação, o executado poderá alegar: I - falta ou nulidade da citação se, na fase de conhecimento, o processo correu à revelia; II - ilegitimidade de parte; III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação; IV - penhora incorreta ou avaliação errônea; V - excesso de execução ou cumulação indevida de execuções; VI - incompetência absoluta ou relativa do juízo da execução; VII - qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que supervenientes à sentença. § 2o A alegação de impedimento ou suspeição observará o disposto nos arts. 146 e 148.

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prévia garantia do juízo para oferecimento da Impugnação para o regular desenvolvimento do contraditório e ampla defesa agora na fase executiva, como já se sustenta a doutrina12 respeito do tema.

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§ 3o Aplica-se à impugnação o disposto no art. 229. § 4o Quando o executado alegar que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à resultante da sentença, cumprir-lhe-á declarar de imediato o valor que entende correto, apresentando demonstrativo discriminado e atualizado de seu cálculo. § 5o Na hipótese do § 4o, não apontado o valor correto ou não apresentado o demonstrativo, a impugnação será liminarmente rejeitada, se o excesso de execução for o seu único fundamento, ou, se houver outro, a impugnação será processada, mas o juiz não examinará a alegação de excesso de execução. § 6o A apresentação de impugnação não impede a prática dos atos executivos, inclusive os de expropriação, podendo o juiz, a requerimento do executado e desde que garantido o juízo com penhora, caução ou depósito suficientes, atribuir-lhe efeito suspensivo, se seus fundamentos forem relevantes e se o prosseguimento da execução for manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação. § 7o A concessão de efeito suspensivo a que se refere o § 6o não impedirá a efetivação dos atos de substituição, de reforço ou de redução da penhora e de avaliação dos bens  § 8o Quando o efeito suspensivo atribuído à impugnação disser respeito apenas a parte do objeto da execução, esta prosseguirá quanto à parte restante. § 9o A concessão de efeito suspensivo à impugnação deduzida por um dos executados não suspenderá a execução contra os que não impugnaram, quando o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao impugnante. § 10. Ainda que atribuído efeito suspensivo à impugnação, é lícito ao exequente requerer o prosseguimento da execução, oferecendo e prestando, nos próprios autos, caução suficiente e idônea a ser arbitrada pelo juiz. § 11. As questões relativas a fato superveniente ao término do prazo para apresentação da impugnação, assim como aquelas relativas à validade e à adequação da penhora, da avaliação e dos atos executivos subsequentes, podem ser arguidas por simples petição, tendo o executado, em qualquer dos casos, o prazo de 15 (quinze) dias para formular esta arguição, contado da comprovada ciência do fato ou da intimação do ato. § 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1o deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. § 13.  No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica. § 14.  A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. § 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. 12 No que diz respeito à garantia do juízo para apresentação da impugnação, a Lei no 13.105/205 foi categórica. A interpretação do art. 475-J, §1o do CPC/73 conduz à conclusão de que a penhora é requisito de procedibilidade para oferecimento da impugnação, considerando que o devedor será, em regra, intimado após a efetivação da penhora. Essa interpretação ensejou polêmica, pois há certa incoerência entre os

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O parcelamento previsto no art. 745-A e os “devedores” do CPC/73 e no art. 916 do NCPC Sem prejuízo da boa alteração acima comentada, o teor do art. 745-A do CPC13, que prevê a possibilidade do devedor realizar a satisfação do credor de forma diferente do pagamento a vista, mediante análise do magistrado e contraditório do credor foi mantido pelo legislador do NCPC em seu art. 916, de modo que, salvo uma melhora da posição doutrinaria e jurisprudencial, a aplicação de tal possibilidade aos devedores de sentenças parece continuar proibido14. procedimentos de defesa do devedor no cumprimento de sentença, que exige a prévia penhora, e de títulos extrajudiciais, que dispensa a penhora nos termos do art. 736 do CPC/73. A finalidade da reforma foi dar maior satisfatividade ao cumprimento de sentença, considerando o tempo dispendido na fase de conhecimento, razão pela qual a melhor interpretação seria no sentido de somente admitir a impugnação mediante a realização prévia da penhora. No entanto, a regra do art. 525 da Lei no 13.105/2015 tratou especificamente da matéria dispondo que o devedor poderá impugnar independentemente de penhora ou nova intimação. Desta forma, o NCPC optou por dar maior coerência interna ordenamento processual ao manter o mesmo tratamento ao devedor dispensando a exigência de penhora, independente do procedimento execu- tivo que sua defesa seja apresentada. (Curso do Novo Processo Civil. coordenação geral: Luis Carlos de Araujo e Cleyson de Moraes Mello. – Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 662-663 13 Art. 745-A. No prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente e comprovando o depósito de 30% (trinta por cento) do valor em execução, inclusive custas e honorários de advogado, poderá o executado requerer seja admitido a pagar o restante em até 6 (seis) parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e juros de 1% (um por cento) ao mês. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Sendo a proposta deferida pelo juiz, o exequente levantará a quantia depositada e serão suspensos os atos executivos; caso indeferida, seguir-se-ão os atos executivos, mantido o depósito. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o O não pagamento de qualquer das prestações implicará, de pleno direito, o vencimento das subsequentes e o prosseguimento do processo, com o imediato início dos atos executivos, imposta ao executado multa de 10% (dez por cento) sobre o valor das prestações não pagas e vedada a oposição de embargos. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869. htm. Acesso em: 20 set. 2014. 14 A Lei 11.382/06 inovou ao permitir o parcelamento do débito do devedor na execução de títulos extrajudiciais. Segundo inteligência do art. 745-A do CPC, o de- vedor, no prazo para apresentação dos embargos, poderá, mediante a comprovação do pagamento de 30% do valor da dívida, requerer o parcelamento do débito restante em até 6 vezes, com juros e correção monetária. Percebe-se que o legislador da reforma processual privilegiou os meios de incentivar o devedor a adimplir a obrigação com a redução de honorários e a possibilidade de parcelamento da dívida, o que não existia na sistemática anterior. A interpretação da mencionada regra sugere que se trata de um direito do devedor que uma vez exercido dentro dos requisitos legais independe de anuência ou aceitação por parte do credor. O dispositivo legal diz “poderá” o executado for- mular requerimento do parcelamento e sendo deferida a proposta pelo juiz, caberá ao exequente o levantamento do valor depositado conforme art. 745-A§ 1o do CPC. Neste contexto, pode-se concluir que se o executado formular proposta de parcelamento dentro dos parâmetros estabelecidos no art. 745-A o juiz poderá deferir o parcelamento sem a anuência do credor. Caso o devedor ofereça proposta de par- celamento que não encontre respaldo legal, por exemplo, o parcelamento da dívida em 12 parcelas, o juiz deverá abrir prazo para que o devedor se manifeste acerca da concordância ou não

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A Tutela Executiva no CPC/73 e na Lei 13.105/2015: os Devedores Particulares Condenados ao Pagamento Quantia Certa, Fazer e não Fazer e Entregar Coisa Certa

Tal tipicidade é merecedora de atenção tanto por inovar a forma de extinção das obrigações, mediante a autorização legal de um parcelamento (entrada de 30% e o saldo em até 06 parcelas mensais e consecutivas) não contratado no título executivo extrajudicial. Como garantir hoje que a contratação de obrigação para pagamento a vista não será convertida pelo magistrado para um pagamento nos termos do art. 745-A do CPC/73? E mais, se voltarmos à ideia original de que credor e devedor são conceitos e institutos de direito material, tal dispositivo pode ser aplicado nos casos de cumprimento de sentença pelo art. 475-J e seguintes do CPC/73? O NCPC acabou por manter uma forma diferenciada de realizar a satisfação do credor, ainda que tal forma não tenha sido pactuada pelas partes quanto de suas tratativas contratuais, como já afirmado anteriormente e poderíamos chamar de parcelamento forçado, como se uma norma de direito material fosse e, sendo assim, , não haveria razão para não aplicação no âmbito das sentenças condenatórias.

Algumas considerações finais para análise Na hipótese da prévia garantia do Juízo para Impugnação, como na hipótese de possível parcelamento, entendemos que as justificativas para tratamento de forma estanque e diferenciada não se sustentam nas normas jurídicas previstas no Código Civil quando do tratamento do direito das obrigações e contratos. Em nossa visão, mesmo reconhecendo que cada um dos “devedores” traçou caminhos distintos no âmbito de suas relações jurídicas materiais e processuais, mesmo olhando pelo prisma dos acréscimos do custo do processo e seu comportamento como parte.

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com a proposta levada a efeito pelo devedor. A interpretação da regra acima nos parece mais adequada e de acordo com proposta do legislador da reforma da execução que visou aplicar a ponderação entre o princípio da efetividade da execução, em favor do exequente, e o princípio da menor onerosidade possível, em favor do executado. O CNPC tratou do tema de forma pormenorizada evitando dúvidas acerca da sua aplicabilidade. Segundo caput do art. 916, o devedor poderá formular reque- rimento do respectivo parcelamento em até 6 (seis) vezes, comprovando o depósito de 30% do valor em execução, acrescido de custas e de honorários advocatícios. Realizado o requerimento, o exequente será intimado para se manifestar, em 5 (cinco) dias acerca do preenchimento dos pressupostos mencionados acima. Considerando a demora no processamento dos atos processuais em algumas serventias, a lei dispõe que enquanto o requerimento não for apreciado deverá o executado providenciar o depósito das parcelas vincendas, sendo facultado ao credor o levantamento da quan- tia já depositada. A possibilidade de manifestação prévia do credor constitui inovação importante do NCPC. O somente apreciará o requerimento após o pleno contraditório sobre a proposta de parcelamento levado a efeito pelo devedor. Caso a proposta seja deferida, o exequente levantará a quantia depositada e os atos executivos serão suspensos (art. 916,§3o). Na hipótese de indeferimento, a execução prosseguirá, convertendo-se o de- pósito efetuado em penhora (art. 916,§4o). Caso haja o inadimplemento de quaisquer parcelas acarretará o vencimento das parcelas subsequentes e o consequente prosseguimento da execução além da mul- ta de 10% sobre o saldo devedor. Não houve alterações substanciais nesse aspecto.( Curso do Novo Processo Civil. coordenação geral: Luis Carlos de Araujo e Cleyson de Moraes Mello. – Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 2015, p. 669-670).

Adriano Moura da Fonseca Pinto e Isabela de Souza Galdino da Costa

No caso específico da impossibilidade da Impugnação sem garantia prévia do Juízo, a restrição também afetava o direito fundamental de acesso à Justiça15 e o tema tem sido objeto de julgamento pelos tribunais e vejamos abaixo uma decisão favorável no âmbito do TJSP, de modo que o NCPC veio em bom tempo regulamentar matéria de modo isonômico, reforçando as ideias iniciais de nosso trabalho. “CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - IMPUGNAÇÃO PENHORA - DESNECESIDADE Reconhecido que a interposição de impugnação ao cumprimento de sentença prescinde de prévia garantia do juízo, em face da semelhança do instiuto com os embargos à execução - Desnecesidade de garantia do juízo, nclusive, em face da não suspensão do procesamento da execução. Agravo provido.”(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 24ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento 0206360-84.201.8.26.00)16

Sem prejuízo de decisões favoráveis, o fato é que o tema traz ainda grande instabilidade na operação diária e merece melhor análise e posicionamento por parte dos tribunais, principalmente em face no NCPC. O legislador processual se inflou de temas que, salvo melhor juízo, estão mais afetos ao direito privado material e não poderiam estar associados à restrições de cunho não jurídico que estão muito mais fundamentadas na intenção do que qualquer outro marco do direito. Por várias oportunidades deixamos de conduzir acordos de assistidos da Defensoria Pública, ou mesmo na advocacia privada pela intransigência do credor em não aceitar o pagamento de seu crédito parcelado. Isso hoje já está minimizado pelas possibilidades do art. 745-A do CP/73. E se vale para ao devedor X, que seja bom e aplicável ao também ao devedor “Y”, aquele que é tao credor quanto o os demais. No entanto vejamos o julgado abaixo que entendeu por bem negar o direito ao parcelamento ao devedor do qual grifamos alguns argumentos: Fase do cumprimento da sentença de indenização por dano moral. Requerimento para parcelamento por aplicação subsidiária. Artigos 475-J, 745-A e 745-R do Código de Processo Civil. O parcelamento diz respeito à execução por título extrajudicial, quando o devedor reconhece o débito. O parcelamento pretendido pelo devedor, tendo por objeto o pagamento da quantia certa proveniente da condenação judicial por dano moral, é incompatível com a exigência do pagamento integral sob pena de multa de 10%. Numa situação se estimula o reconhecimento do pedido pelo devedor beneficiado com o parcelamento do valor devido, no outro, reconhecido o direito judicialmente após a discussão processual, obriga-se o pagamento integral sob pena de multa. As justificativas jurídicas são 15

Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Disponível em: Acesso em: 20 set. 2014. 16 Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2014.

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A Tutela Executiva no CPC/73 e na Lei 13.105/2015: os Devedores Particulares Condenados ao Pagamento Quantia Certa, Fazer e não Fazer e Entregar Coisa Certa

distintas, mesmo que haja dissenso na doutrina e na jurisprudência. A aplicação subsidiária dá-se “no que couber”, demonstrando-se incompatíveis parcelar o pagamento e exigir sua integralidade sob pena de multa. O que deve ser integral, sob pena de multa, não se parcela, salvo anuência do credor. (Poder Judiciário de Estado do Rio Grande do Sul. Comarca de Garibaldi. Nº 70046956769. 20ª Câmara Cível - Santa Catrarina)

Com todo o respeito aos entendimentos contrários, em nossa opinião, trata-se de não aplicação com base comportamento subjetivo ou objetivo da parte devedora em momentos processuais distintos. A má-fé das partes pode e deve ser combatida, mas uma vez acenada a possibilidade de satisfação do credor pelo parcelamento, não deveria ser desperdiçada por questões ligadas à moral mais do que ao direito. Lamentamos que aqui o NCPC não logrou êxito em ampliar sua aplicação e resta a doutrina e aos juízes e tribunais avaliar qual a melhor interpretação e extensão que se pretende dar ao instituto.

Referências bibliográficas ARAUJO, Luis Carlos de. MELLO, Cleyson de Moraes. Curso do Novo Processo Civil. Coordenação Geral. – Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015. MELLO, Cleyson de Moraes, MELLO, Márcia Ignácio de Moraes. Código de Processo Civil Anotado e Interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2013 MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. O Novo Processo Civil Brasileiro. Exposição Sistemática do Procedimento. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=5612711&cdForo=0&vlCaptcha= NYNVN Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tri bunal+de+Justi%E7a&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_ processo_mask=70046956769&num_processo=70046956769&codEmenta=4529248&t emIntTeor=true

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Sustentabilidade e Licitação: uma Perspectiva Conceitual Esdras Rabelo dos Santos1 Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello2 Resumo O trabalho investiga a Lei nº 12.349/2010 buscando compreender a repercussão na doutrina jurídica acerca do conceito da licitação. Realizou-se a revisão bibliográfica como método de pesquisa. Conclui-se que há dissenso acerca da alteração do conceito, posto que os autores consideram o busca pelo desenvolvimento nacional sustentável como princípio, como finalidade da contratação ou como elemento incito ao instituto (cláusula geral). Propugnou-se, em função dos fundamentos constitucionais aduzidos, que a busca pelo desenvolvimento nacional sustentável é imanente ao novo conceito de licitação. Palavras-chave: licitação; sustentabilidade; desenvolvimento nacional sustentável. Abstract The research investigates the Law nº 12.349/2010 aiming to understand the impact on legal doctrine about the bidding concept. We decided to work the literature review as a research method. We conclude that there is disagreement about the concept of change, since the authors consider the pursuit of sustainable national development as a principle, the purpose of employment or as an element urge the institute (general clause). Is advocated on the basis of the alleged constitutional foundations, the pursuit of national sustainable development is immanent to the new concept of bidding. Keywords: Bidding; sustainability; national sustainable development.

Introdução A sustentabilidade é tema relevantíssimo. Como discurso, vem sendo apropriada por diversas ciências, ideologias e interesses econômicos, sociais, ambientais, políticos. Enquanto prática social, é um desafio para cidadãos e governos. O Brasil adotou a busca pelo papel proeminente na construação de consensos acerca de programas e metas que visem a sustentabilidade no cenário internacional, conforme se verifica na Agenda 21 (BRASIL, MMA, 2011). Uma demonstração do comprometimento do país com a sustentabilidade foi a inclusão do dever de promover o “desenvolvimento nacional sustentável” em procedimentos de licitação, em função da promulgação da Lei nº 12.349/2010, somando-se aos objetivos clássicos da garantia da isonomia e da busca da ‘proposta mais vantajosa’, ou ‘vantajosidade’, nas palavras de Marçal Justen Filho. 1

Advogado. Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Licitações e Contratos Administrativos – EAD - Polo Botafogo, Rio de Janeiro-RJ - Orientador: Prof. Ms. Rafael Altafin Galli. 2 Mestre em Direito Processual Civil - UNESA

Sustentabilidade e Licitação: uma Perspectiva Conceitual

Admitiu-se como premissa de pesquisa que alteração legislativa não se fez acompanhar de uma teoria jurídica capaz de delimitar o conceito de “desenvolvimento nacional sustentável”, para fins de aplicação da Lei de Licitações e Contratos, o que foi parcialmente confirmado no decorrer desse estudo. De fato, acessamos apenas uma obra especializada sobre o tema. Diversos manuais consultados não aprofundam o conceito ou refletem uma teoria precisa, de modo que pesquisamos em dissertações e teses. Desse modo, pudemos apontar, sinteticamente, os principais conceitos envolvidos na expressão “desenvolvimento nacional sustentável”, de modo a contribuir com a elaboração de uma teoria jurídica acerca dos novos contornos do conceito de licitação. Denote-se a relevância do tema, a medida em que profissionais de direito e os gestores públicos necessitam de estudos especializados capazes de subsidiar suas orientações ou decisões. O problema de pesquisa condutor da nossa investigação foi: A inclusão da expressão “desenvolvimento nacional sustentável” nos objetivos da licitação é sucedânea a alterar o conceito clássico de licitação? Como hipótese preliminar de trabalho, vislumbra-se a dificuldade de estabelecer um conceito acerca do “desenvolvimento nacional sustentável” a se aplicar à Lei de Licitações em Contratos, face a multiplicidade de interesses e ideologias que circundam o tema e ausência de literatura jurídica especializada. Realizou-se a revisão bibliográfica, visando sintetizar categorias compreensivas essenciais à síntese, à organização, à contextualização do objeto em estudo. No sentido de tornar esta pesquisa exequível no prazo proposto no cronograma, utilizamos estudiosos consagrados em cada tema-problema, visando obter conclusões com a densidade teórica que o problema proposto ensejou e enseja.

O problema terminológico do “desenvolvimento nacional sustentável”

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A expressão remete-se a vários conceitos: desenvolvimento, desenvolvimento sustentável, sustentabilidade, desenvolvimento nacional e, sub-repticiamente, a outros tantos correlatos. Não é possível, no escopo deste artigo, aprofundar o debate acerca de cada categoria, contudo, procuraremos apontar as imbricações envolvidas, visando compreender as transformações ocorridas na definição legal de licitação. O conceito de desenvolvimento vinculado ao crescimento econômico, mensurado pelo Produto Interno Bruto (PIB), é ultrapassado. Emprega-se, hodiernamente, a categoria desenvolvimento sustentável, sendo compreendida sob o prisma da tridimensionalidade, já que se busca o equilíbrio entre as esferas econômicas, sociais e ambientais como condição sine qua non ao futuro da humanidade, face aos sucessivos problemas ambientais (VEIGA apud MARGARETE MEZZOMO KEINERT, 2011). A tríade também é defendida por outros autores, como Franz Josef Brüseke, sendo que este adota três dimensões: a) cálculo econômico, b) biofísica, c) sociopolítica (ZAMBRA, 2006).

Esdras Rabelo dos Santos e Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello

Esse novo conceito busca articular direito ao desenvolvimento (perspectiva tradicional) aos direitos ambientais e sociais, estes sintetizados na concepção de sustentabilidade. A noção de sustentabilidade deriva do Direito Ambiental e do Direito Internacional3 e apresenta, segundo Ignacy Sachs, cinco dimensões: Social – busca garantir soluções boas à sociedade, privilegiando a dimensão do ser, promovendo o desenvolvimento humano em sua multidimensionalidade;  Econômica – objetiva ampliar a eficiência econômica, ultrapassando a perspectiva meramente empresarial;  Ecológica – pretende proteger o meio ambiente, por meio de medidas de prevenção e recuperação, tanto pelo arcabouço jurídico (regras protetivas) quanto tecnológico (redução de danos);  Espacial – intenciona organizar a disposição e configuração dos espaços urbanos e rurais com vistas ao equilíbrio econômico, ambiental e social;  Cultural – aspira privilegiar processos de transformações culturais, respeitando especificidades de cada ecossistema, de cada cultura e cada local (SANCHES apud ZAMBRA, 2007). 

Sua efetividade depende da cooperação nacional para cumprimentos das convenções e acordos internacionais. No Brasil, o direito ao meio ambiente equilibrado tem envergadura constitucional, de caráter fundamental, conforme dispõe o Art. 5º, LXXII, § 2º, combinado com Art. 225, CRFB/1988 em que pese o dever do Estado de proteger o meio ambiente e combater a poluição (Art. 23, VI, CRFB/1988). Ademais, inúmeras são as leis que regem o Direito Ambiental pátrio4. No aspecto social, além das historicamente existentes (Direito Previdenciário, 3

Trata da construção histórica, em que pese diversos documentos e acordos, em especial: Esse novo conceito-paradigma, o desenvolvimento sustentável, foi cunhado na segunda metade do século XX, em função de problemas ambientais experimentados em escala global, tendo sido discutidos e elaborados diversos documentos: Relatório de Founex (1971), a Declaração de Estocolmo (1972), a Declaração de Cocoyoc (1974), Relatório Dag-Hammarskjöld (1975), Relatório Brundtland (1983), Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC, 1992), Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), Agenda 21 (1992), Protocolo de Kyoto (1997, 2005) (SOUSA, 2007). 4 Destacam-se a lei nº 5.197/1967 (Dispõe sobre a proteção à fauna e dá outras providências), lei nº 6.983/1981 (Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências), lei nº 9.605/1998 (Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providência), a lei nº 9.985/2000 (Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências), a lei 11.959/2009 (Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a lei nº 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências), a lei nº 12.187/2009 (Institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC e dá outras providências), lei nº 12.305/2010, Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências, lei nº 12.651 (Código Florestal).

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Sustentabilidade e Licitação: uma Perspectiva Conceitual

Trabalhista, Proteção ao Patrimônio Cultural5), destacam-se nas últimas décadas a promulgação de diversas leis de cunho social6. Dito isto, é necessário compreender o conceito de ‘desenvolvimento nacional’ no seu aspecto jurídico-econômico. Ele é objetivo da nação brasileira, nos termos do Art. 3º, II, CRFB/1988, devendo ser buscado pela cooperação dos entes federativos (Parágrafo único, Art. 23, CRFB/1988), em que pese a necessidade de se reduzir as desigualdades regionais (Art. 3º, III, Art. 43, Art. 48, IV, CRFB/1988). Especificamente, o Estado Nacional pode intervir na economia (Art. 174, CRFB/1988), fomentar o turismo (Art. 180, CRFB/1988), estruturar o sistema financeiro (Art. 192, CRFB/1988), garantir o acesso à educação (Arts, 6º, 205, 212, CRFB/1988), empreender ações relativas à cultura (Art. 214 e § 3º do 216-A, CRFB/1988) e promover a ciência, a tecnologia e a pesquisa (Art. 218, CRFB/1988), incentivar ao mercado interno (Art. 219, CRFB/1988). Conceitualmente, o desenvolvimento nacional envolve o crescimento econômico, a promoção da justiça social, redução das desigualdades e da pobreza, de modo integrado. Os principais fatores de desenvolvimento são a acumulação do capital, a evolução tecnológica e a existência de um mercado consumidor. Ele pode ser espontâneo ou programado. Neste caso, o Estado Nação envida esforços políticos, sociais e econômicos com vistas a objetivos determinados. Vale reforçar, ainda, que o efetivo desenvolvimento implica em transformação socioeconômica, modifica as estruturas produtivas e de distribuição de riqueza. Assim leciona Neide Teresinha Malard: “no texto constitucional, o desenvolvimento nacional apresenta-se inteiramente indissociável de outros três objetivos republicanos: construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos. Somente o desenvolvimento nacional, entendido como processo dinâmico de transformação econômica e social, permitirá alcançar todos aqueles objetivos” (MALARD, 2006, p. 316).

Em outra perspectiva, menos dogmática, o desenvolvimento se volta ao ser humano, em toda a sua complexidade. Esse entendimento tem fundamento jurídico no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais (Art. 1º, III, Arts. 5º a 17, CRFB/1988). Trata-se da compreensão do 5

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Conjunto de leis relativas ao patrimônio histórico encontra-se disponível em http://www. mp.ma.gov.br/arquivos/COCOM/arquivos/centros_de_apoio/cao_meio_ambiente/ manuais/Noticia5575A4733.pdf. 6 as seguintes leis: nº 8.069/1990 (Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências), nº 10.098/2000 (Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências), nº 10.741/2003 (Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências), nº 12.288/2010 (Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003).

Esdras Rabelo dos Santos e Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello

desenvolvimento como liberdade, teorizada pelo economista indiano Amartya Sen, sintetizada por Mônica Teresa Costa Sousa como: “processo que envolve ações combinadas de agentes públicos e privados, voltadas para a capacitação do indivíduo e ampliação de suas liberdades, que devem ser asseguradas e garantidas em grau máximo” (SOUSA, 2007, p. 82). Essa autora aborda o direito ao desenvolvimento como liberdade7 a partir de cinco componentes, a saber: Desenvolvimento e privação das capacidades – a acumulação de riqueza não é um fim em si mesmo. O ser humano busca a liberdade em sua infinidade de interesses e concretizações. Portanto, o desenvolvimento deve reduzir as privações que restringem as oportunidades e escolhas dos indivíduos, destituindo-se as opressões que sofrem: pobreza, repressão estatal, ausência de serviços públicos essenciais, de participação política ou social. “À medida que mais pessoas adquirem condições de satisfazer suas necessidades essenciais e promover seu bem-estar através do acesso às oportunidades externas, o que só é possível por meio da liberdade de escolha entre o que está disponível e o que se quer fazer, maior o grau de desenvolvimento” (SOUSA, 2007, p. 87);  Desenvolvimento como liberdade de acesso aos mercados – ter acesso à renda e aos mercados nacional e internacional, poder comerciar e trabalhar sem restrições impostas pelo mercado. Deve-se, portanto, expandir as facilidades econômicas para que os indivíduos participem ativa e equitativamente dos mercados, rompendo-se as barreiras protecionistas existentes, gerando oportunidades econômicas substantivas (idem, ibidem).  Desenvolvimento e participação democrática – a participação democrática é elemento essencial ao desenvolvimento a medida que promove a liberdade dos indivíduos de atuar na elaboração, fiscalização e controle de políticas públicas, ou seja, se lhes atribui o poder de intervir nas decisões. O grau de participação democrática afeta os investimentos em escala internacional (evitam-se sistemas autoritários), reduz drasticamente as probabilidades de fomes coletivas. “O papel instrumental dessas garantias de transparência como parte do processo de desenvolvimento é justamente na inibição de fatores comprometedores do desenvolvimento como a corrupção, a permissão e continuidade de transações ilícitas e a irresponsabilidade financeira” (idem, p. 95); 

 Desenvolvimento e ética comportamental – refere-se à crença e à obediência ao conjunto de regras sociais e de mercado, o combate à corrupção e às ações ilegais ou ilegítimas. Deve-se prestigiar políticas públicas que ampliem a cidadania, as capacidades e liberdades em detrimento daquelas assistencialistas ou definidas com fins personalísticos; 7

A autora defende, ao longo da sua tese, que o direito ao desenvolvimento: 1) integra o rol de direitos humanos, conforme ampla legislação internacional; 2) destina-se aos indivíduos, a humanidade (coletividade) e aos Estados; 3) é um dever imperfeito, é um dever de virtude, ou seja, é exigível, mesmo que não expresso em normas ou não haja sanções atribuídas ao seu descumprimento; 4) é compatível com o liberalismo econômico, mais precisamente o Pós-Liberalismo, de modo que os Estados, no cenário nacional ou internacional, podem e devem intervir para sua garantia, com as restrições inerentes à perspectiva liberal.

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Sustentabilidade e Licitação: uma Perspectiva Conceitual

 Desenvolvimento humano: avaliação essencial do conceito de desenvolvimento – o ser humano deve ser considerado agente propulsor e destinatário final do desenvolvimento. Devem ser encorajadas as ações e estratégias que coloquem os indivíduos no centro das políticas desenvolvimentistas, bem como os indicadores devem expressar a importância das liberdades, capacidades, oportunidades, etc., na formulação e monitoramento das mesmas. Um exemplo é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), utilizado no Programa de Desenvolvimento das Nações Unidades – PNUD (SOUSA, 2007).

Sendo assim, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável incluído no Art. 3º da lei nº 8.666/1993 pela lei nº 12.349/2010 possui forte fundamentação constitucional, devendo-se considerá-la vinculada à promoção do meio ambiente equilibrado e a garantia da dignidade da pessoa humana, em toda a complexidade do tema.

Um novo conceito de licitação? Reconheça-se, dede logo, o caráter instrumental da licitação. Ela não é e nunca foi um fim em si mesma (MARÇAL JUSTEN, 2012). Classicamente, atribuiu-se ao certame a finalidade de satisfação das necessidades imediatas da Administração Pública. Atualmente, têm-se reconhecido a função social, regulatória deste instituto. Com efeito, “a necessidade da Administração se confundia, antes, com a utilidade do bem, ou seja, o resultado oriundo do seu uso. Agora a aquisição do bem não visa estritamente atender à necessidade suprível pela utilidade que se produz, mas também as necessidades de outra ordem, relacionadas com aspectos macroeconômicos e expressamente mencionadas em lei” (FURTADO, 2013, p. 33).

Em outras palavras, a licitação pode ser utilizada como atividade de fomento8 econômico, com fundamento nos Arts. 174, 218 e 219 da Carta Magna. Há de se reconhecer, em função da instrumentalidade da licitação, que o procedimento não é capaz, por si próprio9, promover o desenvolvimento nacional sustentável, tal como expresso na nova redação do Art. 3º da lei nº 8.666/1993, estabelecida pela lei nº 12.349/2010. 8

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Carlos Pinto Coelho Motta afirma: “O instituto da licitação passa por uma necessária mudança conceitual. Hoje, não mais diríamos que o processo licitatório visa unicamente a selecionar o contrato mais vantajoso para o suprimento do setor público. (...) É um conceito que incorpora a variável ‘fomento’, decisiva para o tempo econômico atual” (MOTTA, 2011, p. 104). 9 Contudo, Daniel Ferreira (2012) argumenta que, excepcionalmente, pode ter essa função, como ficou evidenciado no Programa Um Computador por Aluno (PROUCA), que visava a contratação de computadores a baixo custo.

Esdras Rabelo dos Santos e Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello

É uníssona a compreensão de que é a execução do objeto do contrato que tem o potencial de promovê-lo, pelos seguintes motivos: i) são as forças produtivas exercidas no curso do adimplemento contratual que movem a economia; ii) são os resultados do contrato que promovem a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. Apesar da fundamentação constitucional apontada no item anterior, a lei nº 12.349/2010 recebeu críticas de parte da doutrina, por não existir fundamentação expressa no inciso XXI do Art. 37, CRFB/1988 e porque o art. 171 da Carta Magna fora revogado pela EC nº 6/1995. Contudo, não compactuam com essa interpretação Carlos Pinto Coelho Motta, Daniel Ferreira, Marçal Justen Filho. Por todos, aduzimos as lições de Marçal Justen Filho: “A promoção do desenvolvimento nacional sustentável deve ser interpretada no contexto do princípio da proporcionalidade. (...) A pluralidade de finalidades buscadas pela licitação impõe uma composição harmônica, inclusive no tocante às diversas facetas da vantajosidade... [Assim], caberá escolher a solução apta a produzir o resultado mais satisfatório possível tomando em vistas os diversos valores em conflito” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 67).

Reforce-se que, na qualidade de direito fundamental (Art. 5º, XXIX), o direito ao desenvolvimento econômico exige do Poder Público ações para sua concretização. Com efeito, Daniel Ferreira afirma: “o fomento estatal a comportamentos propiciadores do desenvolvimento nacional não configura bondade alguma dos governantes, menos ainda caridade dos legisladores” (FERREIRA, 2012, p. 62). Ademais, há diversas leis que estabelecem a função mediata da licitação, ou seja, a intervenção econômica, o desenvolvimento local, a função socioambiental. De fato, a lei complementar nº 123/2006 estabeleceu o favorecimento às microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas. A lei nº 12.305/2010 que Instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos estabeleceu, no inciso XI do Art.7º, a prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para: a) produtos reciclados e recicláveis;  b) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis. A Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, instituída pela lei nº 12.187/2009, define a economia de energia, água e outros recursos naturais como critério preferência de seleção de proposta em licitações e concorrências públicas, cujo detalhamento carece de regulamentação. Portanto, considerada pelos autores como norma de eficácia contida. A promoção da igualdade racial nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas, ainda pendente de regulamentação, é uma das ações previstas no Estatuto da Igualdade Racial (Art. 39, lei nº 12.288/2010).

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Sustentabilidade e Licitação: uma Perspectiva Conceitual

A economia local é estimulada por meio da reserva de até 30% (trinta por cento) dos recursos destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), conforme Art. 14 da lei nº 11.947/2009. Carlos Pinto Coelho Motta ainda aponta alguns dispositivos da lei nº 8.666/1993 que se relacionam à finalidade mediata da licitação: facultatividade das licitações internacionais; intervenção no domínio econômico por meio de licitação dispensada (art. 24, VI);  contratação de entidades públicas nacionais (art. 24, VIII);  possibilidade de dispensar licitação visando o desenvolvimento técnicocientífico e recuperação (art. 24, XIII);  critérios locais para definição do objeto (art. 12, IV);  exigência de Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas como requisito de habilitação10.  

O desenvolvimento nacional sustentável é princípio reitor do Regime Diferenciado de Contrações (RDC) estabelecido pela lei nº 12.462/2011, dispondo da seguinte forma: Art. 4º Nas licitações e contratos de que trata esta lei serão observadas as seguintes diretrizes: III - busca da maior vantagem para a administração pública, considerando custos e benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica, social ou ambiental, inclusive os relativos à manutenção, ao desfazimento de bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros fatores de igual relevância; § 1º  As contratações realizadas com base no RDC devem respeitar, especialmente, as normas relativas à: I - disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras contratadas; II - mitigação por condicionantes e compensação ambiental, que serão definidas no procedimento de licenciamento ambiental; III - utilização de produtos, equipamentos e serviços que, comprovadamente, reduzam o consumo de energia e recursos naturais; IV - avaliação de impactos de vizinhança, na forma da legislação urbanística; V - proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial, inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas obras contratadas; e VI - acessibilidade para o uso por pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. 10

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Vale anotar que tramitam no Supremo Tribunal Federal duas ações diretas de inconstitucionalidade, a saber: 4716/2012 e 4742/2012. Deixamos de adentrar a discussão em função das limitações próprias de um artigo científico, sendo que sugerimos a leitura da obra de Daniel Ferreira, que traz alguns apontamentos acerca do tema.

Esdras Rabelo dos Santos e Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello

Em função da sua abrangência restrita, essas cláusulas só se aplicam às hipóteses dos casos definidos no Art. 1º do referido diploma legal, já modificado pelas leis nº 12.688/2012, nº 12.722/2012 e nº 12.745/2012. Destaque-se, por oportuno, a tramitação da Medida Provisória nº 630/2013 no Congresso Nacional. Ela ampliou o rol das hipóteses, abrangendo as obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo. O texto final11 desta Medida Provisória amplia o uso do RDC para quaisquer hipóteses, de todos os entes federativos, de modo a afastar a incidência da Lei de Licitações e Contratos, salvo quando a Lei nº 12.462/2012 exigir, expressamente, a incidência da lei nº 8.666/1993. Vale denotar, ainda, a abrangência territorial da incidência da lei nº 12.349/2010. Para José Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti: “A função qualificadora ‘nacional’ na expressão desenvolvimento sustentável’ está em compatibilizá-la com as políticas públicas constitucionais, que, enquanto se refiram ao desenvolvimento econômico nacional, por evidente que não arredam o exercício das competências estaduais, distritais e municipais do dever de promover o desenvolvimento do país, com o fim de elevar a qualidade de vida de sua população, onde quer que se encontre no território nacional” (TORRES JÚNIOR e DOTTI, 2012, p. 371).

Contudo, alguns autores divergem acerca do poder regulamentar dos dispositivos de eficácia contida. A questão é saber se, em função do pacto federativo, deve-se ter uma regulamentação geral para todo o Brasil ou se cada ente federado ou cada poder tem competência para disciplinar a matéria. Daniel Ferreira, afirma: “a determinação legislativa contida no do § 8º do Art. 3º da LGL urge ser entendida como dirigida, por igual, aos demais entes políticos, e nas mesmas condições, por igual, aos demais entes políticos, porque Estados e Municípios não se obrigam ao cumprimento de atos normativos da União de caráter regulamentar” (FERREIRA, 2012, p. 106). 11

Disponível no portal do Congresso Nacional < http://www.senado.gov.br/atividade/ materia/getPDF.asp?t=147085&tp=1>. Acessos em 12 abr 2014. A compilação das alterações implica na seguinte redação final: Art. 1º Fica instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) aplicável a licitações e contratos administrativos no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. § 1o O RDC tem por objetivos: I - ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes; II - promover a troca de experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios para o setor público;III - incentivar a inovação tecnológica; e IV - assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública. § 2o A opção pelo RDC deverá constar de forma expressa do instrumento convocatório e resultará no afastamento das normas contidas na  lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, exceto nos casos expressamente previstos nesta lei. § 3º A contratação prevista neste artigo poderá contemplar ainda os serviços de manutenção e/ou operação do objeto executado por prazo não superior a 5 (cinco) anos, contado da data da entrega da obra.”

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Maria Sylvia Zanella di Pietro, referindo-se ao Decreto 7.746/2012, afirma: “É curioso que esse decreto tenha estabelecido normas apenas para a administração pública federal. O dispositivo regulamentado (Art. 3º da lei nº 8.666/93) tem natureza de norma geral, sendo, por essa razão, aplicável em âmbito nacional. Em consequência, o decreto regulamentar tem o mesmo alcance” (DI PIETRO, 2013, pp. 391 e 392). Joel de Menezes Niebuhr defende a mesma linha: “nos termos do § 8º do Art. 3º da lei nº 8.666/93, os estados, municípios, poderes Judiciário e Legislativo não gozam de competência para estabelecerem a margem de preferência” (NIEBUHR, 2011, p. 302), mas tem a competência de aplicá-la ou não, conforme os preceitos legais e regulamentares. José Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti compreendem de forma similar: “enquanto tais regras e condição não forem positivas pelo Poder Executivo federal, não se terá como aplicar a definição, o que, por extensão, inviabilizará a aplicação das margens de preferências. O que, ademais, obsta que qualquer outro Poder ou esfera da federação se antecipe na definição” (PEREIRA JÚNIOR e DOTTI, 2012, p. 389). Além de expressa previsão legal, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal tem entendimento12 de que as unidades federativas não podem impor limites a concorrência em âmbito nacional. Assim, entendemos que caberá a União proceder à regulamentação da lei em âmbito nacional, respeitando o pacto federativo, a reserva de lei e as limitações próprias do poder regulamentar. Relevante saber se o rol de hipóteses estabelecido no art. 3º da lei nº 8.666/1993 é exemplificativo ou exaustivo. Marçal Justen Filho entende que a busca pelo desenvolvimento nacional sustentável não se limite às hipóteses estritamente legais, que redundaria em “tornar irrelevante a proposta de proteção ao meio ambiente” e conclui “reputa-se que a realização do desenvolvimento nacional sustentável não se restringe às providências previstas no elenco dos §§ 5º a 12 do Art. 3º” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 66). Daniel Ferreira, Jessé Torres Pereira Júnior, Marinês Restelatto Dotti, Maria Sylvia Zanella di Pietro possuem entendimento similar. Os referidos autores também compartilham o entendimento de que normas infralegais podem estabelecer critérios de sustentabilidade. Esse é o entendimento consolidado pela Advocacia Geral da União, consoante o Guia Prático de Licitações Sustentáveis (BRASIL, AGU, 2013). O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão também possui a mesma compreensão, conforme se verifica no Guia de Compras Públicas Sustentáveis para Administração Federal (BRASIL, MPOG, 2010). 12

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“A  CB exclui quaisquer exigências de qualificação técnica e econômica que não sejam indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. A  discriminação, no julgamento da concorrência, que exceda essa limitação é inadmissível. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional o § 4º do art. 111 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte” (ADI 3.070, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-11-2007, Plenário, DJ de 19-12-2007).

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Em termos teóricos, verifica-se que a promoção do desenvolvimento nacional sustentável insere-se na lei de Licitações e Contratos como verdadeira cláusula geral, de modo a ter aplicação imediata por toda a Administração Pública. Não é outro o entendimento de Jessé Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti,: “A lei nº 12.349/10 faz uso múltiplo da vetusta técnica de vincular a aplicação de determinando regime jurídico a cláusulas gerais, que são aquelas que exprimem valores universais a serem reconhecidos e atendidos quando da aplicação da lei por elas abalizadas. As diretrizes estabelecidas em cláusulas gerais fixam o compromisso de aplicar-se a lei em harmonia com esses valores, que lhes dão significado ontológico permanente” (PEREIRA JÚNIOR e DOTTI, 2012, p. 370)

Portanto, verifica-se substancial alteração no conceito de licitações, ao incorporar ao instituto o fomento do desenvolvimento nacional sustentável. Os autores apontam a constitucionalização das licitações públicas, tendo em vista os deveres do Poder Público em relação ao desenvolvimento nacional e a promoção do bem-estar socioambiental.

Considerações finais O desenvolvimento nacional sustentável possui fundamentação constitucional em diversos dispositivos. Agrega valores e princípios do Direito Econômico, do Direito Ambiental e de Direito Internacional. Verificou-se a forte interdependência dos conceitos de desenvolvimento nacional e desenvolvimento sustentável, de modo que esses termos traduzem uma distinção didática e não necessariamente uma distinção de fato ou de direito. A inclusão do dever de promoção do desenvolvimento nacional sustentável implicou na alteração conceitual da licitação, incorporando-o como cláusula geral, inspiradora de todo o instituto. O corolário desta modificação é a necessidade de compreensão da licitação para além da satisfação direta e imediata das necessidades administrativas, mas sobretudo, daquelas mediatas e indiretas, tendo em vistas os objetivos da República (Art. 3º, CRFB/1988). Isso implica ao gestor a necessidade de leitura sistemática e teleológica do instituto, em que pese diversas normas legais e infralegais aplicáveis às contratações públicas. Com efeito, o favorecimento às microempresas e empresas de pequeno porte, o controle de resíduos sólidos, o consumo responsável de recursos naturais, o estímulo à economia e à agricultura locais. Ficou assente que essa finalidade se aplica a todos os poderes da República e todos os entes da Federação, abrange a aplicação imediata de diversos dispositivos, salvo as normas de eficácia contida, expressamente definidas na lei. Apontou-se, ainda, a necessidade de se acompanhar a tramitação, no Congresso Nacional, da Medida Provisória 630/2013, tendo em vista que poderá ampliar a abrangência de incidência do Regime Diferenciado de Contratações.

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Constatou-se que o poder executivo federal já possui entendimento firme de aplicabilidade de diversas normas infralegais, conforme Guia de Compras Públicas Sustentáveis para Administração Federal, além da Advocacia Geral da União ter documento similar, o Guia Prático de Licitações Sustentáveis. Por fim, é forçoso reconhecer que, em função das limitações inerentes a um artigo científico, a revisão bibliográfica poderia ter aprofundado diversas questões apontadas e abordado outras, como as hipóteses específicas de preferência. É preciso apontar, ainda, a necessidade de estudos posteriores acerca das normas que precisam de regulamentação, conforme apontamentos deste trabalho. No âmbito econômico, é preciso averiguar a efetividade da política pública de preferência a indústria nacional, para analisar se persistem os fundamentos que as motivaram.

Referências bibliográficas

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Esdras Rabelo dos Santos e Marcia Ignácio da Rosa de Moraes Mello

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A (de) ontologia dos Princípios em Robert Alexy1 Bruno Maia2 Resumo O texto enfoca o porquê de não se compreenderem os princípios como mandados de otimização em uma perspectiva que vai ao encontro da Teoria do Discurso, afastando assim, a introjeção de argumentos morais, éticos e pragmatistas no discurso jurídico de aplicação do Direito. Palavras-chave: Princípios; discurso jurídico; aplicação. Abstract The text focuses on why not to understand the principles as optimization warrants in a perspective that meets the Discourse Theory, removing thus the internalization of moral arguments, ethical and pragmatists in the legal discourse of application of the law. Keywords: Principles; legal discourse; aplication.

Introdução O presente texto tem a finalidade de investigar a deontologia dos princípios jurídicos de acordo com a postura adotada por Robert Alexy. Para tanto, tomarse-á como ponto de partida a explicitação dos argumentos de princípio e a distinção entre princípios e regras levada a cabo pelo autor. A partir disso, investigar-se-á criticamente a referida distinção normativa, sob a perspectiva do autor em tela, contribui para uma compreensão adequada da práxis jurídica, isto é, do Direito assumido como sistema normativo. Em seguida, serão apresentadas as conclusões pertinentes ao tema, bem como as referências bibliográficas.

Uma explicitação acerca do argumento dos princípios Ao discorrer sobre o argumento dos princípios, Alexy, citando Hart, afirma que o direito positivo, compreendido como um sistema de regras apresenta uma textura aberta. Tal textura aberta é devedora do caráter vago da linguagem, afeita 1

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Este texto foi exigido como requisito parcial para aprovação na disciplina Teoria da Argumentação Jurídica ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre Travessoni Gomes, no Mestrado Acadêmico em Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos em 2011. O texto está corrigido de acordo com as novas normas da ortografia da língua portuguesa. Bacharel em Direito Pela UNIPAC Barbacena. Especialista em Direito Civil pela PUC Minas. Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC Juiz de Fora. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino.

A (de) ontologia dos Princípios em Robert Alexy

ao direito, tendo em vista que podem haver contradições entre as normas, ou ainda, a falta de uma norma sob a qual uma decisão judicial possa se apoiar. Pode ocorrer também, que, em razão desse caráter vago e impreciso da linguagem do direito, o juiz decida contrariamente ao que dispõe uma norma jurídica em casos especiais (ALEXY, 2009, p. 83-84). Considerando-se que somente o direito positivo se considera direito, o juiz deve decidir dentro desse campo de abertura, isto é, em todos aqueles casos que se revelam duvidosos, levando em consideração quando de sua decisão, critérios extrajurídicos. Assim, o direito positivo autoriza o juiz a criar um direito novo da mesma forma que o faz o legislador, baseando-se em critérios metajurídicos (ALEXY, 2009, p. 84). Em contraposição aos argumentos anteriores, típicos de uma compreensão do direito positivo como um sistema de regras, o argumento dos princípios afirma que o juiz vincula-se legalmente no âmbito dessa textura aberta do direito positivo, ou seja, do direito estabelecido e eficaz. Estabelece-se, dessa feita, uma vinculação entre o direito e a moral (ALEXY, 2009, p. 84). O que embasa o argumento dos princípios é a sua distinção em relação às regras (ALEXY, 2009, p. 85). Os princípios são considerados normas que ordenam a realização de algo na maior medida possível, tendo em vista as possibilidades fáticas e jurídicas que norteiam o caso concreto. Os princípios são, nesse sentido, mandados de otimização que podem ser satisfeitos em graus variados, por isso, a medida de satisfação dos princípios não depende somente das possibilidades fáticas, mas, de igual maneira, das possibilidades jurídicas. Tais possibilidades jurídicas são determinadas a partir da colisão entre regras e princípios (ALEXY, 2008, p. 90). Isso implica afirmar que os princípios carecem de ponderação, sendo essa a forma que caracteriza a sua aplicação (ALEXY, 2009, p. 85). As regras, por sua vez, são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra é válida, deve-se fazer aquilo que por ela é exigido, nem mais, nem menos. As regras contém determinações daquilo que é considerado fática e juridicamente possível. Isso implica afirmar que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau, tendo em vista que toda norma é uma regra ou um princípio (ALEXY, 2008, p. 91). As regras prescrevem, portanto, uma consequência jurídica definitiva, isto é, permitem ou proíbem que se faça algo de forma definitiva, e nesse sentido, podem ser designadas como mandamentos definitivos, já que são aplicadas por meio da subsunção (ALEXY, 2009, p. 85).

Uma crítica à compreensão dos princípios como mandados de otimização

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Em que pese à referida distinção normativa procedida pelo autor, entre regras e princípios, insta ressaltar que se os princípios são considerados como mandados de otimização que se realizam na maior medida possível, e em graus

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variados, Alexy resta preso ainda, à uma compreensão positivista do Direito. Explicar-se-á o porquê. Embora não seja positivista, Alexy parte do pressuposto de Kelsen de que existe uma norma fundamental, que se faz necessária para a explicação atinente à passagem do plano do ser para o do dever ser, o que implica uma incompreensão da tensão estabelecida entre ideal e real (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 55). Alexy, pretendendo superar a perspectiva funcional do direito, lançada por Kelsen, parte de uma postura pretensamente normativa, ainda que esteja atrelada à uma fundamentação moral. Nesse sentido, a norma fundamental não poderia ser neutra, pois isso implicaria défcits concernentes à legitimidade. Isso porque para Alexy, o juridicamente válido abarcaria para além do socialmente eficaz, o justo (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 56). Na noção de norma fundamental, Alexy introduz um elemento gradativo atinente à justiça das normas da ordem jurídica. A norma fundamental alexiana teria a finalidade de: a) transformar o ser em dever-ser, isto é, o socialmente eficaz em juridicamente válido; b) determinar os critérios por meio dos quais se possa definir o que é o Direito; c) criar uma ideia de unidade sistemática, tendo em vista que todas as normas da ordem jurídica teriam como pressuposto de validade a norma fundamental. Essa norma fundamental seria um pressuposto necessário, não sendo uma norma posta, mas pressuposta (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 56). Alexy compreende que normas morais, por exemplo, podem servir como fundamento dessa norma fundamental sem retirar dela, o seu caráter fundante da ordem jurídica. É nesse sentido que Alexy vai compreender o Direito como um caso especial da Moral (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 56). Isso porque a norma fundamental “nada mais seria que uma densificação de certa noção de critérios de atribuição de legitimidade. Seria um acoplamento entre o mundo do ser e o Direito” (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 56). A norma fundamental alexiana refere-se a uma legitimidade moral, tanto no que concerne aos seus elementos, quanto no que toca a uma dimensão axiológica em termos da aplicação do Direito (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 57). O sistema jurídico, para Alexy, é composto de regras e princípios, incluindo-se também os procedimentos, pois as normas jurídicas não são autoaplicáveis. O procedimento, a partir de uma razão prática, permitiria o alcance da racionalidade do Direito, pois, tendo em vista a razão prática, não se podem renunciar na ordem jurídica, aos princípios e aos valores (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 57). A partir dos argumentos de Dworkin é que Alexy procede à distinção entre regras e princípios explicitada anteriormente. Ao criticar Dworkin, Alexy afirma que não se pode pretender uma única resposta correta para cada caso concreto. Isso porque essa única resposta só poderia ser alcançada se fossem cumpridas altas exigências que permitissem um consenso, tais como tempo, informações, clareza linguística e conceitual, capacidade e disposição para mudança de pontos de vista na argumentação, e

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ausência de preconceitos ilimitados. Assim, nenhum procedimento seria capaz de com segurança intersubjetiva, chegar a essa única resposta correta para o caso, tendo em vista que em razão das condições reais é que as exigências elencadas anteriormente podem ser cumpridas de maneira aproximada, transmitindose, também, por aproximação dessa resposta ideal para o caso, uma resposta aproximada à qual se pode alcançar (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 72). Nesse sentido, Alexy procede a uma leitura superficial da doutrina de Dworkin, tendo em vista que, quando esse autor afirma haver uma dimensão de peso entre os princípios, que o princípio norteador do caso concreto deve ser descoberto pelo aplicador, ou ainda, que a aplicação das regras se opera à base do tudo ou nada, fá-lo a partir de uma perspectiva deontológica, ainda que abra margem para interpretações terminológicas equivocadas como a de Alexy, visto que esse autor interpreta o termo balanceamento de Dworkin a partir de um viés axiológico, que toma em conta, a ponderação (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 58). Ora, é por meio de uma interpretação reconstrutiva, que apresenta a idealidade subjacente na práxis comunicativa, e que se orienta ao entendimento, que se pode garantir uma adequada interpretação normativa do Direito compreendido como um sistema ideal e coerente de princípios. Quando Alexy opõe idealidade e realidade, não é capaz de compreender o caráter reconstrutivo dessa por meio da comunicação, e daquela, a partir de pressupostos pragmáticos universais, que se constroem e se reconstroem comunicativamente (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 72-73). Após o giro hermenêutico pragmático, essa tensão entre ideal e real não é levada a efeito em termos aproximativos, mas reconstrutivos. Isso porque o consenso não é compreendido como o aceite de todos aqueles indivíduos afetados, mas como um resultado que se constrói tendo em vista o respeito às liberdades comunicativas, implicando uma aceitabilidade racional, quando se procede a um juízo de correção normativa, respeitando-se, por conseguinte, os pressupostos pragmático-universais (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 73). Ao não compreender o giro hermenêutico, Alexy pretende superar pretensamente um sistema de regras propondo que os princípios teriam uma estrutura e um caráter argumentativo diversos das regras, afirmando que os princípios seriam mandados de otimização realizáveis no melhor grau possível das possibilidades fáticas e jurídicas, enquanto as regras seriam determinações que não se realizariam em graus distintos (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 73). É nesse sentido que Alexy prende-se a uma compreensão típica do positivismo com ressalta Lúcio Antônio Chamon Junior: A questão é que o autor acaba, bem ao gosto de uma compreensão materializante, pretendendo estabelecer uma relação de prioridade entre os princípios aos moldes de uma ordem concreta de valores a estabelecer uma hierarquia entre os mesmos, já que os compreende como problemas correspondentes (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 74).

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Alexy compreende o balanceamento dos princípios a partir de três sub princípios que visam à otimização, quais sejam: o princípio da adequação, o princípio da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito (CAHMON JUNIOR, 2007, p. 74). O princípio da adequação é interpretado a partir de uma lógica instrumental tendo em vista que a adoção de um meio não se opera sem que haja um fim a ser alcançado, em razão do qual o para o qual referido meio teria sido escolhido. Nesse sentido, o meio adotado deve alcançar uma finalidade determinada (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 74). O princípio da necessidade estabelece que, em face das circunstâncias fáticas, se duas estratégias servem como meio para a satisfação de P1, isto, é, são igualmente adequadas, deve-se optar por aquela estratégia menos gravosa em relação a outrem. Bastaria, nesse caso, a aplicação ótima de P1 e P2 (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 74). Entretanto, se uma terceira finalidade é afetada negativamente pela estratégia que interferiria de modo menos gravoso em P2, faz-se necessário o balanceamento por meio do princípio da proporcionalidade no que concerne às possibilidades jurídicas do caso concreto. O princípio da proporcionalidade é o que estabeleceria uma relação de prioridade entre os princípios, tendo em vista que quanto maior o grau de não satisfação de um princípio, mais importante seria a satisfação de outro (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 74). Se dois princípios estão em colisão, procede-se, no caso concreto, a uma escolha dentre eles, haja vista a coincidência estrutural entre esses e os valores (CHAMON JUNIOR, 2006, p.59). Visando ao esclarecimento de que princípios e valores não se confundem, Lúcio Antônio Chamon Junior afirma que: Todavia, o que diferencia um princípio de um valor é que aquele teria um caráter de dever ser, enquanto este se envolve com o que diz respeito ao que é melhor. Em suma, o princípio teria uma roupagem deontológica frente à roupagem axiológica dos valores. O autor, em vez de entender que a teoria dos princípios como ‘normas deontologicamente compreendidas é a correta (Dworkin) para uma análise dentro do ordenamento jurídico, conclui ser preferível (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 59).

Assim, Alexy permite o desenvolvimento de uma argumentação materializante e eticizante, na medida em que faz coincidir esse problema com aquele atinente à hierarquização de valores. Ao não compreender o giro hermenêutico-pragmático, Alexy não assume uma perspectiva procedimental do Direito que vai de encontro à concepção de um ethos compartilhado de valores, e que garanta as iguais condições construtivas do consenso (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 74).

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Alexy funde em sua compreensão, os discursos de justificação e aplicação do direito, e não compreende a proposta simultânea de cisão e de complementaridade entre ambos, desenvolvida por Günther. Isso porque de acordo com Alexy, o discurso jurídico seria um caso especial da argumentação moral, razão pela qual, entende Alexy, que todo discurso de aplicação necessariamente incluiria um discurso de justificação do direito. Dessa forma, Alexy não compreende que a cisão complementar entre os discursos de justificação e aplicação do direito implica uma diferença relevante em relação à postura argumentativa a ser assumida em um e em outro (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 75). Para se demonstrar o fundamento das críticas aqui tecidas, traz-se à baila o conceito de Direito formulado por Alexy nos seguintes termos: O direito é um sistema normativo que (1) formula uma pretensão à correção, (2) consiste na totalidade das normas que integram uma constituição socialmente eficaz em termos globais e que não são extremamente injustas, bem como na totalidade das normas estabelecidas em conformidade com essa constituição e que apresentam um mínimo de eficácia social ou de possibilidade de eficácia e não são extremamente injustas, e (3) ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos, nos quais se apoia e/ou deve se apoiar o procedimento de aplicação do direito para satisfazer a pretensão à correção (ALEXY, 2009, p. 151).

A compreensão de Alexy, no sentido de ser o Direito um caso especial da argumentação moral, é devedora da oposição procedida pelo autor entre ideal e real, bem como da assunção de um princípio da proporcionalidade (CHAMON JINIOR, 2007, p. 75). Para Alexy, as repostas obtidas nos procedimentos argumentativos seriam apenas relativamente corretas, haja vista a pretensão à correção normativa referida em sua norma fundamental (CHAMON JUNIOR, 2006, p. 60). Quando Alexy compreende os princípios como mandados de otimização tendo em vista um ethos compartilhado de valores, apresenta uma perspectiva utilitarista em relação ao Direito, na medida em que assume os princípios como meios para o alcance de determinados fins definidos aprioristicamente. A solução do autor em tela desconsidera o sentido reconstrutivo da práxis jurídica, e não permite que o Direito se desdobre e se atualize, no sentido de se buscarem iguais liberdades fundamentais entre os concidadãos num mundo da vida que se apresenta sob uma perspectiva pluralista (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 75). Alexy, a partir de um reducionismo sociológico, estabelece uma ordem de valores, bem como suas relações de prioridade e hierarquia, interpretando o Direito a partir de uma subsunção, isto é, em termos de regra/exceção como no positivismo, não permitindo, por conseguinte, a adequada reconstrução do Direito, tendo em vista o seu projeto, que se desenvolve no contexto da modernidade (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 75).

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Conclusão Embora Alexy proceda a uma distinção entre regras e princípios, seus argumentos não se coadunam com o projeto do Direito na modernidade. Isso porque, embora não seja positivista, parte de pressupostos outrora trazidos à baila por Hans Kelsen, como a norma fundamental pressuposta, que justificaria assim a validade de toda ordem jurídica globalmente eficaz. Quando Alexy define os princípios como mandados de otimização, a ele não se faz claro que não há que se falar em uma oposição entre ideal e real, visto que após o giro hermenêutico-pragmático a razão prática foi substituída pelos pressupostos da pragmática universal, isto é, a racionalidade do Direito se opera comunicativamente, e não por aproximação. A assunção de um princípio da proporcionalidade e por consectário, dos seus três sub princípios, quais sejam: o da adequabilidade, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito guardam estreita relação com a razão prática, que funcionaliza o Direito e o reduz a uma perspectiva meramente sociológica e revela um viés utilitarista que liga meios a fins. Ao compreender os princípios como mandados de otimização, Alexy confunde princípios com valores, o que não procede, pois os primeiros assentamse em premissas deontológicas, por tanto jurídicas, e os valores assumem um viés axiológico que se relaciona àquilo que é melhor, ou preferível. Tal equívoco de Alexy decore de sua superficial compreensão acerca da doutrina dworkiana, pois a dimensão de peso dos princípios à qual alude Dworkin não assume em sua obra, o sentido de ponderação, e sim de balanceamento. Logo, a aplicação de um princípio ao caso concreto não se opera pelo viés da axiologia, mas sim sob a perspectiva deontológica do dever ser. Ao compreender o Direito como um caso especial da argumentação moral, Alexy adota uma postura materializante e eticizante no sentido de definir aprioristicamente quais são os princípios (ou valores) integrantes da ordem jurídica. Isso se deve ao fato do autor em tela não ter compreendido a cisão discursiva estabelecida entre a justificação e a aplicação do direito, que também é simultânea, e, nesse sentido, complementar. Não há que se falar apenas em uma pretensão à correção normativa, pois não existem repostas parcialmente corretas para o caso concreto, mas sim uma única resposta para cada caso, tendo em vista que após o giro hermenêutico, não se opõem na práxis jurídica o ideal e o real. Isso porque sob o pano de fundo da modernidade, o Direito está a cobrar o reconhecimento de iguais liberdades fundamentais de todos os concidadãos, a partir do consenso, que implica uma aceitabilidade racional no que concerne ao desenvolvimento dos procedimentos argumentativos, independentes, mas complementares de justificação e de aplicação do direito. É a partir dessa postura interpretativa que se diferencia e se complementa nos dois discursos jurídicos (de justificação e aplicação, respectivamente) que se pode compreender o Direito como um sistema normativo ideal e coerente

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de princípios, que resgata, pois, a sua legitimidade, na medida em que referido sistema se constrói e reconstrói racionalmente, porque é permeado pelo pluralismo.

Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. ____. Conceito e validade do direito. trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal: contribuições da dogmática penal 100 anos depois. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. ____. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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A Legitimidade da Lei 12.318/2010 que versa sobre a Alienação Parental Fernando Chaim Guedes Farage1 Resumo O presente trabalho tem por objetivo, discorrer a respeito da Lei 12.318/2010 que trata da alienação parental, abordando seu conceito, hipóteses de cabimento e respectivas cominações legais, procedendo uma análise crítica-discursiva de seu conteúdo, a fim de encontrar as bases de sua legitimidade na Modernidade. Palavras-chave: Alienação; hipótese; crítica; direito; modernidade. Abstract This paper aims, discuss about the Law 12.318/2010 dealing with parental alienation, addressing its concept, hypothesis pertinence and their legal sanctions, carrying a critical discursive analysis of their content in order to find the bases of its legitimacy in Modernity. Keywords: Alienation; hypothesis; criticism; right; modernity.

Introdução A Lei 12.318/2010 nasceu com o objetivo de identificar e punir os envolvidos em casos de alienação parental, isto é, casos onde, o genitor ou genitora de uma criança (denominado alienante), inseridos via de regra, num contexto de separação, busca induzir o menor a ter sentimentos negativos com relação a outro genitor movido por um sentimento de vingança, distorcendo a realidade dos fatos e prejudicando a convivência do genitor ou genitora com o menor e vice-versa. O presente trabalho, se dedicará a esclarecer brevemente o conceito de alienação parental, as tipificações legais, além de realizar uma abordagem crítica-discursiva a respeito da temática, a fim de encontrar sua legitimidade na Modernidade.

O conceito de alienação parental A Alienação parental, foi concebida originalmente pelo médico e professor de psiquiatria infantil da Universidade de Columbia, Richard Gardner no ano de 1

Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC de Juiz de Fora-MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora - MG. Advogado.

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19852, e ocorre, via de regra, quando um casal separado ou em vias de separação, disputando pela guarda dos filhos manipulam os mesmos de maneira a destruir os vínculos afetivos com relação ao outro genitor ou genitora, denegrindo através da criação na mente da criança de conceitos pejorativos e temerosos, com relação ao ex-cônjuge. Tal prática por parte do alienante, isto é, aquele que aliena o menor a nutrir sentimentos de repulsa ao outro genitor, ocorre por meio de uma série de atos concatenados, que começam com a falta de comunicação sobre eventos importantes do dia a dia do menor, tomada de decisões por conta própria, manifestação perante a criança contra o outro genitor de forma contínua, interferência em horários de visita de modo que o genitor fique ausente de datas importantes, forçar a criança a escolher entre um dos genitores, criar fatos para denegrir a imagem do outro genitor perante o menor entre outros. Neste sentido, Maria Berenice Dias coloca: Muitas vezes, quando da ruptura da vida conjugal, se um dos cônjuges não consegue elaborar adequadamente o luto da separação, o sentimento de rejeição, ou a raiva pela traição, surge um desejo de vingança que desencadeia um processo de destruição, de desmoralização, de descrédito do ex-parceiro.[...] Nesse jogo de manipulações, todas as armas são utilizadas, inclusive a assertiva de ter havido abuso sexual. O filho é convencido da existência de determinados fatos e levado a repetir o que lhe é afirmado como tendo realmente acontecido. Nem sempre consegue discernir que está sendo manipulado e acaba acreditando naquilo que lhe foi dito de forma insistente e repetida. [...]O filho é utilizado como instrumento da agressividade - induzido a odiar o outro genitor. Trata-se de verdadeira campanha desmoralização. A criança é levada a afastar-se de quem ama e de quem também a ama. [...] Com o tempo, nem o alienador distingue mais a diferença entre verdade e mentira. A sua verdade passa a ser a verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência, implantandose, assim, as falsas memórias.3

Como consequência, tem-se diversos malefícios a curto, médio e longo prazo para o menor que passa a nutrir sentimentos de ansiedade, raiva e ódio do genitor sem que este de fato, tenha dado margem para tal. Os menores que sofrem com tal experiência, segundo pesquisa, são mais propensos ainda ao consumo de drogas, a cometerem suicídio, desenvolverem depressão, entre outros4. Em outras palavras, Maria Berenice Dias, afirma que: 2

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TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito .Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2004, p.161. 3 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7. ed. rev.,atual e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2010, p.452. 4 Disponível em : Acesso em: 22 Mar. 2015.

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É preciso ter presente que esta também é uma forma de abuso que põe em risco a saúde emocional e compromete o sadio desenvolvimento de uma criança que enfrenta uma crise de lealdade, e gera sentimento de culpa quando, na fase adulta, constata que foi cúmplice de uma grande injustiça.5

Desta forma, se percebe as consequências que um ato provocado por um genitor causa, surte efeitos por toda uma vida, e influência não só o menor mas, todo o ambiente ao qual este está inserido, sem mencionar o genitor alienado que também sofre com a conduta do genitor alienante. Desta forma algo teria de ser feito pelo Direito para proteger aqueles prejudicados nesta relação, é o que veremos no próximo tópico.

A legislação existente sobre o tema no Brasil Antes de uma lei específica tratar o tema, este veio sendo regulado por meio das normas já existentes, notadamente, aquelas previstas nos artigos 226 e seguintes da Constituição Federal, que reforçam, a igualdade entre homem e mulher em direitos e deveres com relação aos filhos e reconhecem novos conceitos de família. Neste sentido: A Constituição Federal de 1988 reconhece novas formas de entidade familiar, além daquela tradicional, formada à sombra do casamento. A união estável entre homem e mulher, antes marginalizada na figura do concubinato, passou a ser respeitada como ente familiar digno de proteção do Estado (artigo226,§3º). O mesmo se deu com a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental (art.226, §4º). São todas espécies de ‘família natural’, a que se acrescem, ainda, as modalidades de ‘família substituta’ previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, por guarda, tutela ou adoção (Lei n°8.069/90, art.28). A par disso, deu-se a revalorização da família e dos seus componentes humanos, em atenção ao princípio basilar de respeito à dignidade da pessoa. Daí a consagração da igualdade de tratamento entre homem e mulher, assim como a igualação de direitos entre os filhos, não importa sua origem (CF/88, arts.226, §5° e 227, §6º).6

Contudo, diante de cada vez mais casos e situações do gênero, necessário se fez normatizar o tema de forma mais abrangente. Assim, a primeira lei específica a tratar do assunto, foi a Lei 12.318/2010, que define a alienação parental como a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente, promovida ou induzida por um dos seus genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. 5 6

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Opus cit., p.453. OLIVEIRA, Euclides de. Parentalidade: os operadores do direito frente às questões de parentalidade. In: Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre. Síntese. v.5. n.20. out/nov. 2003. p.153.

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A referida lei traz ainda em seus incisos, que são exemplificativos7, as formas de ocorrência da alienação parental (no seu artigo 2º, parágrafo único) dentre elas: desqualificar a conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; dificultar ou atrapalhar o exercício do poder familiar; dificultar o acesso da criança com o genitor; alegar falsas denúncias contra este, a fim de dificultar seu convívio com a criança; omitir por vontade própria informações pessoais relevantes sobre a criança, inclusive informações escolares, médicas e alterações de endereço; mudar de domicilio para locais distantes, sem justificativa, visando dificultar a convivência com o genitor, com familiares destes ou com os avós. Nesta tônica, uma vez que existam indícios da prática de alienação parental, a referida lei, prevê que deverá ser instaurado procedimento, de forma autônoma ou incidental, com tramitação prioritária, tendo o juiz liberdade de tomar as medidas necessárias para preservar a integridade psicológica da criança (conforme prevê o artigo 5º). Estipulada realização de perícia psicológica ou biopsicossocial, seu laudo será apresentado em 90 dias (artigo 5º,§3º). Constatado a prática de alienação parental ou conduta que dificuldade a convivência, independente da responsabilização civil ou criminal do alienador, poderá o juiz: declarar a ocorrência da alienação parental e advertir o alienador; ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; estipular multa ao alienador; determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; determinar fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; declarar a suspensão da autoridade parental, tudo de acordo como o artigo 6º do texto de lei supracitado. Conforme se percebe, o objetivo da lei é garantir maior proteção ao menor, evitando a separação deste de seu genitor, evitando também, males que possam vir prejudicá-lo em seu desenvolvimento como pessoa ao longo da vida em razão da alienação parental, o que vem a corroborar com os preceitos do artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, qual seja a garantia da proteção ao menor que é outro importante diploma legal de proteção a criança e ao adolescente. Colocadas estas questões, perguntamos: de onde nasce a legitimidade de tal lei? E como proceder a um julgamento adequado de tais questões? É o que passaremos a tratar no próximo tópico.

A legitimidade da Lei 12.318/2010 na modernidade e a teoria procedimental do direito Com início da era Moderna, isto é, o fim do mundo sacrotradicional do medievo, a Sociedade se viu diante de complicados processos de secularização, de diferenciação funcional dos sistemas, especialização dos juízos de racionalidade

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7

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Opus cit., p.453.

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e assunção que a construção do mundo se dá mediada linguisticamente.8 Como consequência de tais processos, se fez necessário a assunção de uma pragmáticauniversal como uma dimensão normativa da comunicação, dotada de mecanismos capazes de exigir as condições indispensáveis para o entendimento racional, e, inclusive, para dar sentido a como uma ação estratégica pode se valer de uma ação comunicativa. Esta assunção, fica justificada de maneira diretamente vinculada aos pressupostos do mundo social moderno, e do seu corresponde sentido de solidariedade social. Isto porque, o mundo moderno não pode construir a Sociedade, tendo como base um ethos funcionando como imperador ou superior dos demais, como ocorrera no passado, sob pena de suplantar as minorias em última instância. Assim, se tornou exigência na Modernidade, reconhecer a todos iguais liberdades. Esse princípio normativo, que podemos assumir modernamente como princípio da dignidade da pessoa, traduz, portanto, o deparo de uma Sociedade que não é mais capaz de neutralizar as diferenças a partir de um ethos materializado, mas apenas a partir da comunicação. Nesta ótica, igualdade e liberdade, são princípios normativos da própria Modernidade9, e seu desdobramento na compatibilização das diversas vontades, se dá no rumo do justo ou no do possível. Por “possível”, se traduz àquilo que é capaz de eficaz e funcionalmente, garantir esta compatibilização, ou seja, o Direito. Justo, por sua vez, à tomada em igual medida de consideração do interesse de todos os afetados por uma determinada decisão a compatibilizar suas ações. É assim que podemos afirmar, que temos juridicamente um direito a iguais liberdades na maior medida possível, o que equivale dizer que temos um direito a iguais liberdades na maior medida funcionalmente possível.10 Compreendendo e assumindo estes pressupostos, Habermas propõe em sua teoria procedimental do Direito uma forma adequada de se compreender a gênese do Direito do Moderno desde sua criação até sua aplicação, concebendo tal entendimento da seguinte maneira: [...] D: Válidas son aquellas normas (y solo aquelas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su assentimiento como participantes en discursos racionales.[...]11 La teoría discursiva del 8

CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. 3.ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p.35. 9 Neste sentido, faz necessário transcrevemos as seguintes palavras: [...] Quando digo que igualdade e liberdade são princípios da Modernidade, o são em um sentido específico, qual seja, no sentido moderno de sua cointerpretação recíproca a ser elucidada sob o princípio da dignidade a eles representa - o reconhecimento do igual valor dos diferentes, e compatíveis, exercícios e interpretações éticos do que venha a ser liberdade.[...]. CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Opus cit., p.36-37. 10 Ibid., p.36-37. 11 HABERMAS, Jürgen. Faticidad e validez: sobre el derecho y el Estado democratico del derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 4.ed. Madrid,Trotta, 2005, p.172.

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derecho entiende, por una parte, el Estado democrático de derecho como la institucionalizacíon que discurre a través de derecho legítimo (y que, por tanto, garantiza la autonomía privada) de procedimientos y pressupuestos comunicativos para una formación discursiva de opiníon y la voluntad, la cual hace posible a su vez (el ejercicio de la autonomia política y) uma produción legítima de normas. La teoria comunicativa de la sociedad, es decir, la teoría de la sociedad, articulada en conceptos de comunicacíon, entiende, por otro lado, el sistema político articulado en términos de Estado de derecho como un sistema más entre vários sistemas de acíon. Éste puede “actuar como garante” en lo conciernente a resolver los problemas de integracíon de la sociedad global mediante una interacíon entre la formacíon institucionalizada de la opiníon y la de la voluntad y las comunicaciones públicas informales, porque esa integracíon, a través del espacio de la opinión basado en la sociedad civil, queda inserta en los contextos de un mundo de la vida que le resulta favorable (es decir, de un mundo de la vida caracterizado por una cultura política habituada a la liberdad y por los correspondientes patrones de socializacíon). Finalmente, una determinada concepcíon del dereceho establece una relacíon entre la consideracíon normativa y la consideracíon empírica. Ségun esta concepcíon, la comunicacion jurídica puede entenderse com um médio a través del cual las estructuras de comunicacíon realizadas en la accíon comunicativa se transfieren del nível de las interacciones simples al nível abstracto de las relaciones organizadas. La película tejida de comunicaciones jurídicas puede envolver a toda la sociedad, por compleja que ésta sea. El paradigma procedimental del derecho es, por lo demás, resultado de una disputa de paradigmas, y está todo él bajo la premisa de que el modelo liberal del derecho y el modelo ligado al Estado social interpretan la evolucíon jurídica en termos excessivamente concretistas y ocultan la conexíon que se da entre autonomía privada y autonomía pública, la cual necesita ser interpretada caso por caso. Bajo esta premisa las mencionadas tendências a la crisis aparecen a una luz distinta; y de distinta valoracíon síguense recomendaciones prácticas distintas. [...]12

A partir de Habermas entendemos então, que o ordenamento jurídico se legitima, através de um processo de comunicação concebido em um processo democrático, que por sua vez, legitimariam a construção normativa, através de do discurso de justificação e por conseguinte, quando de sua aplicação, no chamado discurso de aplicação normativa. É o que nos explica Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira: [...] Nesse sentido, as análises empreendidas pela Teoria Discursiva do Direito são fundamentais para o nosso estudo, pois reconhecem que a problemática acerca da interpretação jurídica é, no fundo, uma questão em torno de uma disputa de paradigmas de Direito, de pré-compreensões a respeito de como se deve interpretar e aplicar o Direito. [...]Por isso, a atividade de interpretação jurídica não se dá como acreditam certas

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12

Ibid., p.523-524.

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correntes positivistas, porque a linguagem através da qual a norma se expressa é ambígua ou obscura ou porque aquele que editou a norma assim o quis. Toda comunicação implica interpretação, não no sentido de que seja preciso desvendar um pretenso verdadeiro significado, ou seja, aquele significado que o emissor quis ou intentou expressar, mas no sentido de que interpretar implica atribuir sentido, compreender o que se comunica, sob o pano de fundo de tradições e mundos de vida compartilháveis. [...]O que queremos é romper tanto com o Positivismo que desconsidera a questão jurídica da justiça, quanto com um Realismo que advoga a impossibilidade de certeza, ainda que procedimental, do Direito. [...]Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático [...]Já os discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto, nos termos do Princípio da Adequabilidade13,sempre pressupondo um ‘pano de fundo de visões paradigmáticas seletivas [...]14

Podemos compreender, portanto, que a garantia de participação popular nos processos de criação da norma (discurso de justificação), com base do princípio democrático, permitem por si só, ampla discussão a respeito dos direitos e fundamentais, visto que abre precedentes para se opinar e garantir a construção normativa de acordo com os resultados do processo de comunicação, o que legitima a democracia e o próprio Direito, e o que permitirá quando do julgamento de um caso concreto a aplicação tão somente de argumentos jurídicos, para construção de uma solução para o caso, visto que democraticamente se convencionou como Direito daquela forma estabelecida. É a partir deste entendimento, que devemos compreender a legitimidade da Lei 12.318/2010 que trata da alienação parental, considerando, que ambos os genitores são livres e iguais em direitos e deveres em todos os atos da vida em sociedade (aqui em específico, no que concerne ao menor) posto que desde advento da era moderna assim se forjou. Logo, não se pode permitir que um dos genitores envolvidos em prática de alienação parental deliberadamente prejudique a relação do outro genitor, para com menor, por meio de alegações infundadas e práticas que não condizem com a realidade, visando obter algum tipo de vantagem ou controle sobre a vida do menor, o que linhas acima vimos, trazem grandes problemas a curto, médio e longo prazo na vida deste. Assim, necessário se faz por meio do Direito, impedir que tal situação possa se configurar. 13

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. p.143-146. Neste trecho o autor faz a referência a obra de: GUNTHER, Klaus. The sense of appropriateness- application discourses in morality in Law. Tradução: John Farrel. New York, State of New York, 1993, p. 243 et seq. 14 Ibid., p.146.

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A Legitimidade da Lei 12.318/2010 que Versa Sobre a Alienação Parental

Nesta toada, cabe ao magistrado quando da apreciação de tal caso, levar em consideração os pressupostos da Modernidade, bem como, da teoria procedimental do Direito que compreende e assume tais pressupostos de forma adequada para encontrar a solução adequada a um determinado caso. Neste sentido, podemos afirmar que: [...] Assim, um juízo singular deve fundar-se no conjunto de todas as razões pertinentes que sejam relevantes em um dado ponto, com as vistas à uma interpretação completa da situação. Ao juiz, então, cabe desenvolver um senso de adequabilidade: que várias interpretações sejam possíveis ou que várias normas sejam válidas, da perspectiva dos discursos jurídicos de justificação, isso não quer dizer que todas elas sejam adequadas no caso concreto [...] A solução correta advém, pois, do desenvolvimento de um senso de adequabilidade normativa, de uma interpretação racional e argumentativamente fundada em cada situação, tendo em vista uma reconstrução paradigmática apropriada do Direito vigente. [...] Portanto, a reconstrução adequada da situação de aplicação, condicionada e garantida pelo Direito Processual, é que possibilita, juridicamente, a determinação, de qual, dentre as normas válidas, é a que deve ser aplicada. [...]15

Conclusão Por todo o até aqui exposto, a conclusão a que podemos chegar, é que o caminho traçado, sem dúvida, foi na proteção ao desenvolvimento saudável do menor, manifestado pela convivência com seus genitores da forma mais salutar possível. Contudo, diante da pluralidade e da complexidade de nossa sociedade, à Modernidade nos cobra uma postura singular diante das questões que nos apresenta o mundo da vida. Neste cenário, a perspectiva teórica de Jürgen Habermas se mostra aberta a atender tais necessidades de maneira diferenciada, pois permite, a partir da pluralidade e complexidade de nosso tempo, extrair a racionalidade e coerência que ao Direito são tão preciosos, seja na elaboração da norma, seja de sua aplicação, posto que fundamentado na democracia, o que torna possível a comunicação com todos os setores da sociedade. E, no que aqui nos interessa, permitindo analisar de forma adequada, casos em que possam ter ocorrido alienação parental, fazendo uma correta interpretação normativa na busca da solução para o mesmo. Tal norma assim entendida, veio, portanto, permitir uma maior regulação a respeito do tema, o que revela o próprio aperfeiçoamento de nosso ordenamento, buscando um novo capítulo de sua história. É neste sentido que concordamos com as palavras de Lúcio Antônio Chamon Júnior: [...] O próprio passado do Direito, como vimos, permite-nos vislumbrar que a sua história é repleta de equívocos e mal-entendidos do seu sentido. 15

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CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Opus cit., p.148-149.

Fernando Chaim Guedes Farage

Mas o Direito tem a capacidade de aprender com os tropeços do passado, ao mesmo tempo em que se auto-purifica. Afirmar, à melhor luz, que o Direito é uma prática social que permite sua auto-purificação, a partir dos erros do passado, implica dizer que o próprio Direito, relendo a sim mesmo, pode vislumbrar determinadas decisões – legislativas e administrativas e aqui em específico, jurisdicionais – como equívocos porque incoerentes com esse projeto do Direito. Esse novo capítulo que se fará ‘escrito’ pode superar a falta de coerência no tratamento de determinadas questões jurídicas porque capaz de ser adequadamente focado ao que está a exigir o constitucionalismo moderno. [...] 16

Desta forma, entendemos que a legitimidade da Lei 12.318/2010, resta patente nos moldes linhas acima apresentados, e que, uma vez considerados a luz da teoria procedimental do Direito, tem o condão de produzir um ciclo virtuoso capaz de gerar uma proteção adequada ao menor, como também aos genitores, protegendo-os em casos de alienação parental. Naturalmente, como um processo contínuo de auto-purificação, o esforço deve ser no sentido de se aperfeiçoar cada vez mais os conhecimentos a respeito da temática, posto que, o tema engloba conhecimentos de outras áreas, como a psicologia. Seguindo por este caminho se poderá normatizar cada vez mais aprimorar os esforços de proteção, ao menor e aos próprios genitores, que tanto necessitam de tal chancela. Que saiamos vitoriosos em tal esforço, que sem dúvida, fortalecerá ainda mais o Estado Democrático.

Referências bibliográficas CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009. CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. 3.ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7. ed. rev.,atual e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2010. O que é SAP? Disponível em : Acesso em: 22 Mar. 2015. OLIVEIRA, Euclides de. Parentalidade: os operadores do direito frente às questões de parentalidade. In: Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre. Síntese. v.5. n.20. out/ nov. 2003. HABERMAS, Jürgen. Faticidad e validez: sobre el derecho y el Estado democratico del derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 4.ed.Madrid,Trotta, 2005. TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2004. 16

CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009, p.255-256.

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O Reconhecimento do Outro Através de si Mesmo: a Busca de uma Justiça Equitativa sob a Concepção de Martin Heidegger Armenia Cristina Dias Leonardi1 Resumo O artigo pretende analisar a relação entre a construção da identidade do ser humano e a alteridade sob a concepção de Martin Heidegger. Através da construção de sua identidade, o ser humano alcançará a alteridade, o reconhecimento dos outros seres humanos como seus semelhantes. O reconhecimento interno e individual do ser humano, dasein, segundo Heidegger, e da alteridade, serão objetos do presente estudo como instrumentos para alcançar uma sociedade igualitária e justa. A essência do ser humano e a formação da sua identidade serão analisadas com base nas experiências vividas e da necessidade do amor na construção ou reconstrução do indivíduo. Um ser humano inserido em um meio divergente das regras sociais e jurídicas estabelecidas somente terá sua identidade adaptada à sociedade se a alteridade partir dos próprios integrantes desta sociedade. Será analisada a importância do amor como sentimento e mandamento imprescindível para a construção ou reconstrução da identidade humana. Palavras-chave: Identidade; alteridade; reconhecimento. Abstract This article aims the relation between the identity of the human being alterity under Martin Heidegger’s conception. It´s through the identity construction, that the human being will reach the alterity, and recognize the others as similar to himself. The human being´s inner and individual recognition, dasein, according to Heidegger, and alterity, will be as a matter of study as the instruments to reach na equity and a right society. The human being essence and his identity construction will be analyzed based on experienced situations which needs love to development the indivisible entity. If a human being is inserted into different social and judicial rules from those which he is accustomed to live with, his identity will be adapted to this society if it stars the alterity. The importance of love will be analyzed as the indispensable command for development the human identity. Keywords: Identity; alterity; recognition.

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Professora do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

O Reconhecimento do Outro Através de si Mesmo: a Busca de uma Justiça Equitativa sob a Concepção de Martin Heidegger

Introdução O presente estudo será realizado com base na análise da teoria de Martin Heidegger como forma de atingir uma sociedade justa, equilibrada e igualitária através da busca do ser humano por uma identidade, considerando seu entendimento de que o homem não é apenas um ser racional, mas é essência assinalada pelo tempo e deve encontrar-se com “seu eu” – “ser em si” – para melhor compreender “o outro” como seu semelhante, atingindo a alteridade. O objetivo do trabalho é olhar o outro e entender suas atitudes e receios sem julgamento prévio. O ser humano somente consegue entender as atitudes de seu semelhante a partir do seu autoconhecimento. Martin Heidegger estuda a essência do ser humano tecendo as significações e definições da estrutura fundamental do indivíduo e esta essência é construída através de suas experiências intramundanas, sendo que o mundo é formado mediante a interação de todos os indivíduos nele existentes. Assim, as experiências formadoras do “ser” dependem do “outro” e do “mundo”, da interação com seu semelhante. A sociedade atual não vive com equidade, então, para o equilíbrio social, esta equivalência deve ser atingida. Para que isso aconteça, é essencial que o indivíduo conheça a si mesmo para, consequentemente, reconhecer sua posição na sociedade e assim possibilitar a verdadeira igualdade de direitos e deveres em relação ao seu semelhante. A busca por uma sociedade justa e equitativa está intrinsicamente vinculada às atitudes da sociedade e aos aplicadores das medidas necessárias ao aprimoramento social. O objetivo do trabalho é estabelecer uma relação entre a importância do “ser em si mesmo” de Martin Heidegger e os Direitos Humanos para, com isso, atingir a igualdade em seu sentido amplo. Não há possibilidade de estabelecer igualdade e justiça sem a consideração e o respeito do ser humano pelo “outro” e esse respeito não será atingido se não houver amor por si mesmo e por seu semelhante e não há como respeitar o outro sem conhecer a si próprio. Para uma sociedade igualitária e justa devem ser consideradas, principalmente, as condições das famílias e das crianças e adolescentes gerados por elas. Neste caso, será analisada uma relação entre a dogmática, baseada na teoria de Heidegger, mas também a empiria referente à situação de violência, principal causa de desequilíbrio enfrentado por nossa sociedade.

A essência do ser Atualmente percebe-se uma ideia equivocada de aplicação da justiça. Visualiza-se uma ilusão, principalmente, em relação à preservação dos Direitos Humanos, uma vez que não são universalmente respeitados.

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A justiça deve ser entendida como uma verdade a ser encontrada na essência da sociedade em favor do próprio ser humano identificado em si mesmo. Esta identificação permite o respeito e o exercício dos direitos fundamentais do ser humano, dos Direitos Humanos, visto que é através do reconhecimento da essência de si mesmo que é possível o entendimento do “outro” também como sujeito de direitos e deveres. A construção interior do ser humano produz uma reação intimista em relação ao “outro”. Esta posição de interioridade existencialista pode proporcionar ao ser humano uma visão defensiva em relação ao seu semelhante, caso não haja uma transposição de lugares, ou seja, a verificação de que as ações e reações do “outro” também podem ser ações e reações de si mesmo situadas no “tempo” de cada trajetória de vida. Para compreender a essência humana, Martin Heidegger desenvolve a teoria do dasein baseada no questionamento desta essência. O homem percebe o que foi, quem é e o que poderá ser. Heidegger situa o homem no tempo e no mundo e através desta relação – ser / tempo / mundo – acontece a percepção de sua existência – o ser-aí – dasein. O dasein é o questionamento da essência humana de acordo com sua trajetória no tempo (HEIDEGGER, 1988, p.5657): A essência do reside em sua existência. Por isto, as características que podem ser explicitadas junto a esse ente, nunca são propriedades presentes, mas sempre modos de ser que lhe são possíveis e apenas isto.2 A teoria de Heidegger não questiona a existência humana e sim o “ser” e a “verdade”, a essência do homem e o que significa para si mesmo e para o mundo. Para alcançar uma justiça equitativa através da verdade, a teoria de Martin Heidegger defende a ideia de que o homem é um ser em busca de si mesmo. Sua trajetória de vida e o conhecimento adquirido por meio desta experiência são responsáveis por sua construção interior e ao reconhecimento do outro como seu semelhante.

Ser – ente: ser e tempo O “ente”, para Heidegger, é a origem imutável do ser. É o íntimo, passível de conhecimento e disponibilidade e será sempre da mesma forma, sem a possibilidade de mudança por experiências exteriores. O ente, segundo Heidegger, é tudo o que pode fazer parte da vida e das ocupações do homem situadas no tempo. O “ser” é o homem e suas experiências. A partir do “ente” imutável, cria-se o “ser” modificável durante a vivência. As experiências adquiridas durante a vida são responsáveis pela construção do ser, seu modus vivendi determina e justifica suas ações e reações. A partir do estudo destas experiências de vida, torna-se possível a compreensão do ser. 2

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. P. 56-57.

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O dasein é a compreensão do ser através do tempo e do mundo. A ocupação cotidiana, o ente com que o homem se ocupa, leva a compreensão ou não de seu ser. A identidade do ser humano é a sua própria história. É o “ser-aí”, que não fixa o homem em uma figura específica, mas fixa a essência humana à dinâmica do ser no seu tempo e na sua história. A essência humana, “dasein (ser-aí)”, “ente”, “ser”, somente pode ser questionada a partir do “tempo”: “horizonte possível de toda compreensão do ser em geral”3. Os fatos do mundo possuem relevante importância para a construção do ser devendo considerar a interpretação da facticidade e a análise existencial para compreensão do ser humano. Para justificar o presente, o passado deve ser considerado. Por esta premissa, Heidegger entende o “tempo” como elemento fundamental para formação do “ser”, pois somente com o tempo, o ser humano adquirirá suas experiências e, consequentemente, sua formação. Estabelece um diálogo com a tradição para assinalar o presente: “O passado possui aqui uma atuação constante sobre o presente, uma vez que determina o modo como o presente pode se constituir.”4 O “ente” é o núcleo do “ser”, este constituído através do “tempo”, elemento indispensável à formação da experiência mundana que molda este ser. Desta forma, justifica-se o “dasein (ser-aí)”: o homem é ser dinâmico, movimentase no “tempo presente” justificado por suas vivências no “tempo passado”. Os entes integrantes do mundo descobrem-se a partir de sua “abertura no mundo” (Danilo Marcondes 2000, p.157-158). O homem, segundo Heidegger, não se resume a um ser racional, pois sua existência é marcada pelo tempo. Admite a racionalidade humana, porém é fundamental o encontro do homem com seu ser – o homem somente encontra o “si mesmo” através do tempo de sua existência no mundo.

A relação entre a compreensão do “Ser em Si” e o “Outro”: identidade e alteridade A compreensão da essência do seu próprio ser é fundamental para que o ser humano aceite o “outro” como seu semelhante e também seja aceito pelo grupo social. O conhecimento de si mesmo é a construção da identidade e a aceitação do “outro”, respeitando as diferenças existentes, constituindo a alteridade. Ao entender que o ser é construído por meio de sua trajetória no tempo, partindo do seu núcleo (ente) e sua história (trajetória no tempo), a concepção e aceitação do “outro” torna-se possível. Segundo Heidegger: “os “outros” não significa todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os 3

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. P. 1. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. p. 80

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outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se está.”5 Através da compreensão de seu semelhante, de suas ações e reações produzidas por sua trajetória de vida, o prejulgamento será evitado. As ações do ser humano devem ser julgadas sob a análise de sua motivação e do mundo dos fatos (facticidade) em que está inserido. A trajetória de vida do ser humano está intimamente ligada ao meio em que vive e deve ser considerado para análise e compreensão deste ser. A partir da análise do ser e do ambiente em que transcorre sua história, é possível a busca da “verdade”, pois, para Heidegger (1988, p. 164), o “ser no mundo” está diretamente relacionado com seu “ser em si mesmo”.6 O “mundo” representa, para Heidegger (1988, p. 98), as condições geográficas, históricas, sociais e econômicas em que cada pessoa está inserida.”7 O conhecer a si mesmo está diretamente relacionado com sua inserção no mundo que ocupa. Sendo esta inserção no mundo elemento fundamental para a compreensão de si, não é possível dissociar o indivíduo do grupo social, o que torna fundamental a compreensão do outro ser humano como seu semelhante (Heidegger, p. 288).8 Neste sentido, a verdade encontra seu vínculo com o ser, nasce dos fatos e modos de cada indivíduo e do papel que exerce na sociedade. A “verdade” somente será possível com base na localização do “ser-no-mundo” e através da “verdade” será possível uma justiça igualitária e efetiva (Heidegger, 1988, p. 94): [...] O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente “intramundano” (...)9 O homem é lançado na realidade factual do mundo sem que participe disso, sem a possibilidade de escolhas e as escolhas possíveis são produtos deste mundo, de sua história e da sociedade existente. O ser humano é produto da sua história e esta história depende do “mundo” e de suas atitudes perante a sociedade que constroi este “mundo”. Cada ação e reação do ser no mundo deve contribuir para o respeito aos direitos humanos fundamentais.

A teoria de Martin Heidegger e os direitos humanos A teoria de Martin Heidegger sobre o conhecimento e construção de si mesmo através de suas experiências no mundo e a compreensão do “outro” como seu semelhante, permite a conclusão de que o homem é produto do mundo em que está inserido. Como consequência, constata-se a substancial existência dos 5

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. p.169/170 ____. Ser e Tempo.p.164 7 ibidem. p. 98 8 Ibidem. p. 288 9 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. p.94 6

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Direitos Humanos, isto é, o respeito a si mesmo e a seu semelhante para que os direitos fundamentais sejam apreciados. O homem conhece o seu “eu” e as suas necessidades vitais e, a partir deste conhecimento, percebe o “outro” como seu semelhante e possuidor das mesmas necessidades. A partir desta constatação, verifica-se a primordialidade de proteção ao direito de todos em favor de seus próprios direitos (Heidegger, 1988, p.169/170).10 Martin Heidegger (1988, p. 169) demonstra sua preocupação com os direitos do homem quando expõe a necessidade de compreensão do “ser em si mesmo” e sua localização no mundo. Ao definir o dasein e a compreensão do ser, desenvolve um conceito de pré-compreensão, que é a base da percepção do ser lançado no mundo: Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão à mão para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu.11 Esta estruturação da teoria de Heidegger projeta os Direitos Humanos cuja base são os direitos naturais do homem; são os direitos imprescindíveis à vida, como os direitos civis, políticos, sociais e culturais. No Brasil, o contexto histórico dos Direitos Humanos passa por altos e baixos em nossas Constituições até a Constituição de 1988, que consagra os direitos fundamentais, sociais e políticos do povo brasileiro, além dos demais instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil. Garante a proteção a estes direitos através da imposição de regras à sociedade brasileira, que não está amadurecida para olhar para seu semelhante como para si mesma. Em nosso país a violação dos direitos humanos está enraizada historicamente à vitimização dos mais vulneráveis. Verifica-se três vertentes de ultraje histórico aos Direitos Humanos no Brasil e que permanecem até hoje: pobreza, racismo e gênero.12 Ainda que a sociedade brasileira possua a garantia de proteção aos Direitos Humanos através de inúmeros instrumentos legais, a própria sociedade exclui os vulneráveis. Assim, constata-se a importância da teoria de Heidegger da introjeção do “ser em si mesmo” em relação ao “ser-no-mundo” para a efetivação dos Direitos Humanos: “a demonstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos se faz pelo fio condutor do ser-no-mundo cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo e com o ente intramundano”.13 Partindo desta introjeção para o reconhecimento de seu próprio ser, o indivíduo estará preparado para compreender sem pré-compreender seu semelhante. Na verdade, o ser humano quando lançado ao “mundo” e, 10

Idem.p. 169/170 Ibidem.p.169 12 idem 13 HEIDEGGER. Ser e Tempo. p. 108 11

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evidentemente, à sociedade, passa a ser um fragmento desta e deve construir sua história pensando no bem estar de todos.14 O laço entre estas questões e a violação constante aos direitos humanos é a não percepção da igualdade entre os indivíduos integrantes do grupo social e o que justifica a existência deste tratamento desigual é o desconhecimento de si mesmo, impossibilitando o reconhecimento do outro como seu semelhante.

Identidade e alteridade através do amor A teoria de Heidegger sobre o “ser” e o estudo ontológico são imprescindíveis para a abordar a questão do amor para a construção de uma sociedade igualitária. Segundo Heidegger, “a análise ontológica dos fundamentos da “vida” não pode ser acrescentada posteriormente como uma infraestrutura. É ela que carrega e condiciona a análise da realidade, bem como toda explicação do conjunto de resistências e de suas pressuposições fenomenais.”15 Ao teorizar sobre o conhecimento da essência do ser humano por si mesmo, sua localização no tempo e no mundo e sua vinculação com o “outro” como seu semelhante, que compartilha as mesmas necessidades, direitos e deveres, Heidegger situa o homem como responsável pela construção do mundo em que vive, pois faz parte dele. Como responsável pela edificação de seu meio, o homem deve primar por um equilíbrio social em nome de uma sociedade sadia para assegurar sua própria sobrevivência e, para que isso se realize, deve primeiramente fundar sua identidade para atingir a alteridade. O ser humano é, sem dúvida, um produto do meio em que vive e, como consequência deste meio, construirá sua identidade através de suas experiências, portanto, a formação do ser durante a infância é primordial para se tornar um ser humano com potencial para contribuir para uma sociedade equilibrada. Ao considerar as condições do meio em que um ser humano se forma, é passível de compreensão suas ações e reações. Ressalta-se que “compreensão” não significa “permissividade”, sendo certo que compreender uma atitude de desrespeito de direitos não autoriza a impunidade, mas possibilita o combate à causa e permite uma punição justa, igualitária e efetiva. Instrumentalizando a garantia dos direitos do homem e destacando a importância do desenvolvimento do ser humano durante a infância e adolescência, a Constituição Federal estabelece os direitos básicos à sobrevivência digna das crianças e adolescentes, em seu artigo 227. 14

CARBOBARI, Paulo Cesar. Direitos Humanos no Brasil: uma leitura da situação em perspectiva. Coletanea Ceris, p. 21. 15 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.p. 277.

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Porém, um elemento essencial não está explícito, até mesmo por se tratar de sentimento humano e não um dever: o amor. Segundo Paul Ricoeur: “Falar de amor é fácil ou difícil demais. Como não cair na exaltação ou nas platitudes emocionais? Uma maneira de abrir caminho entre esses dois extremos é tomar como guia um pensamento que medite a dialética entre amor e justiça.”16 Considerando as disposições de Heidegger sobre o “ser”, suas experiências no mundo e sua relação com o outro, como tratar uma criança inserida em um meio violento para não propagar através de si mesma a violência que conhece e concorrer para um desequilíbrio social? Não é possível uma criança, ser humano em desenvolvimento nascida em um meio em que a violência está estabelecida como ordem, ser integrada à sociedade, com seus conceitos morais e direitos humanos consagrados constitucionalmente, se não conhece o amor a si mesmo e ao seu semelhante. Segundo Hilda Bentes e Carlos Frederico Silveira: “A valorização do afeto e a intermediação dos componentes que dizem respeito ao cuidado propiciam, ao revés, um olhar mais sensível e equitativo no lidar com as incontáveis situações conflitivas que são colocadas à apreciação do Poder Judiciário.”17 A ausência de amor e afeto no trato com o seu semelhante estabelece uma natureza utilitarista às regras legislativas impostas para garantir os direitos fundamentais e as instituições que amparam crianças e adolescentes em situação de risco devem exercer neste sentido a alteridade por ser elemento fundamental ao equilíbrio social.

A importância da identidade e alteridade para uma sociedade equilibrada Para a construção de um ser humano sadio, toda a atenção e direitos básicos devem ser garantidos à criança, porém, quando o ser humano cresce em um ambiente que não facilita a construção saudável de seu “ser” e gera um indivíduo sem identidade, consequentemente não existirá a alteridade. A alteridade é responsável por uma sociedade equilibrada e igualitária e para isso é imprescindível o reconhecimento de si mesmo, identidade, para reconhecer o “outro” como seu semelhante, alteridade, impondo igualdade social e jurídica. Independente da classe social, quando uma criança sofre desde a ausência de atenção dos pais até maus tratos físicos e psicológicos, o amor e o afeto inexistem, contribuindo para um possível comportamento violento e um desequilíbrio social. É uma situação de evidente ausência de alteridade por parte de indivíduos que formam outros indivíduos e que contribui para uma deformação da identidade dos seres humanos em construção. 16 17

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RICOUER, Paul. Amor e justiça.p. 3. Silveira, Carlos Frederico Gurgel da Silveira; BENTES, Hilda Helena Sores. A arte de ensinar a estudar o Direito: mediar, sensibilizar, humanizar.p.39.

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Neste caso, há necessidade de desconstrução deste “ser”, visto que durante a infância, o ser humano começa a desenvolver sua identidade, ou seja, conhece a “si mesmo” e constroi seu ser a partir de sua trajetória no mundo, devendo ser revistas as “tradições ontológicas” caso seja necessário desvendar este ser, segundo Heidegger (1988, p. 51): Deve-se efetuar essa destruição seguindo-se o fio condutor da questão do ser até se chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações do ser que, desde então, tornaram-se decisivas.18 Para inserção deste “ser” no contexto social, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem direitos e regras que devem ser seguidos por instituições de amparo à criança e ao adolescente. Neste ponto é que reside a desconstrução do “ser” por meio de sua historicidade e “tradições ontológicas” como bem elucida Heidegger no trecho acima citado. O rompimento do ser com suas “experiências originárias” (Heidegger, 1988, p.51)19 não ocorrerá somente através de práticas utilitaristas previstas na legislação, mas deverá conter também o afeto e o amor citados por Paul Ricoeur20, Silveira e Bentes21. Entende-se por práticas utilitaristas as ações voltadas para o bem estar dos seres envolvidos, mediante a avaliação destas ações conforme os princípios morais da sociedade a que se dirige (BRYCH, 2013): Por princípio da utilidade, entendemos o princípio segundo o qual toda a ação, qualquer que seja, deve ser aprovada ou rejeitada em função da sua tendência de aumentar ou reduzir o bem-estar das partes afetadas pela ação (...).22 Nossa legislação impõe a realização de ações que resguardam os indivíduos, respaldando os mais vulneráveis, como os idosos, crianças e adolescentes, com o objetivo de alcançar um resultado positivo em relação ao desenvolvimento humano e social. No entanto, as ações existentes em nossa sociedade possuem cunho imediatista, ou seja, apesar de a legislação prever, por exemplo, que toda criança tem direito à educação, mas a educação oferecida engloba somente o disposto nos currículos escolares, não será uma ação suficiente para a formação de um ser humano completo e pronto para atuar positivamente para a edificação do grupo social. 18

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. p. 51. op cit. p. 51. 20 RICOEUR, Paul. Amor e Justiça. 21 SILVEIRA, Carlos Frederico; BENTES, Hilda. A arte de ensinar a estudar direito: mediar, humanizar, sensibilizar. 22 BRYCH, Fábio. Ética utilitarista de Jeremy Benthan. Âmbito Jurídico, Rio Grande, VIII, n.23, nov. 2005. Disponível em: http://www.ambito- urídico.com.br/site/ index.php?n_link=revista_artigos_leituras£artigo_id=155. Acesso em: 1 mar. 2013. http://jus.com.br/artigos/26914/caso-concreto-de-direito-do-consumidor-a-luz-doutilitarismo/2#ixzz3OQt6Rl3n 19

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Ao tratar indivíduos em situação de vulnerabilidade para resguardar os Direitos Humanos é necessário que as medidas protetivas sejam realizadas por pessoas capazes de entender as diferenças existentes e sensíveis às adversidades do “outro”, alteridade. Destacando Amartya Sen: Assim como a argumentação ética utilitarista insiste que, para se decidir o que deve ser feito, é preciso levar em conta as utilidades das pessoas envolvidas (...)23 A alteridade é a visão do “outro” pela ótica de “si mesmo”, portanto, não é possível colocar-se no lugar do outro e compreender suas dificuldades sem amor e afeto. O amor, como sentimento, não pode ser imposto às pessoas, mas espera-se que os indivíduos que se dispõem ou tenham sido designados a cuidar de seres em situação de vulnerabilidade realizem este trabalho em nome deste sentimento a partir da relação entre os conceitos de “sentimento e mandamento”24. Paul Ricoeur considera que o amor como sentimento não pode ser imposto ao ser, mas como mandamento ético e moral do amor ao próximo, remetendo à moral Kantiana, deve ser exercido: É em virtude do parentesco entre o mandamento “ama-me!” e o canto de louvor que o mandamento de amor se revela irredutível, em seu teor ético, ao imperativo moral, legitimamente igualado por Kant à obrigação, ao dever, por referência à recalcitrância das inclinações humanas.25 A reconstrução do “ser” depende, segundo Heidegger, da “destruição do acervo das experiências ontológicas”26, porém, isto depende do “outro” e da sua visão acerca de seu semelhante, ou seja, alteridade, criada após o reconhecimento de si mesmo, de sua identidade. Partindo desta consideração, não há como erguer um novo “ser”, retirado de um meio violento, sem o principal elemento caracterizador da alteridade: o amor.

Um estudo de caso: a importância do amor como elemento constituinte do ser Uma determinada instituição de acolhimento de crianças em situação de risco e violência, visitada por um grupo de alunos e professoras do Curso de Direito de uma universidade do Rio de Janeiro, serve como exemplo da lacuna existente no sistema atual amparado unicamente por práticas utilitaristas. A intenção do grupo é levar para as crianças presentes de Natal, artigos de limpeza, higiene e alimentação necessários à sua sobrevivência digna, mas vislumbra-se uma necessidade maior que essa. 23

SEN, Amartya. A ideia de justiça.p.397 RICOUER, Paul. Amor e justiça.p.1-11 25 idem.p.11 26 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.p.51 24

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A instituição visitada está localizada em um bairro pobre, em São de Meriti, Rio de Janeiro, e abriga meninas de 0 a 11 anos e meninos de 0 a 6 anos de idade envolvidos em situação de violência de modo geral. São crianças vítimas e observadoras da violência existente no ambiente em que viveram. O imóvel que alberga as crianças é grande, simples e, aparentemente, limpo. As crianças, através da grade de uma janela, imediatamente abordam os alunos e professoras da universidade ávidas por contar suas histórias recentes: o que fizeram, onde estudam, o que acontece na escola. Percebe-se de imediato a necessidade premente de atenção e afeto superando a necessidade de bens materiais. O grupo, antes de um contato mais próximo com as crianças, é advertido pela administradora da instituição de que não deveria dar atenção, conversar ou demonstrar carinho às crianças, pois “elas não estão acostumadas e sentirão falta quando todos forem embora”. É flagrante o despreparo da administradora da instituição em relação às necessidades psicológicas das crianças. As crianças sentirão falta de atenção, afeto e amor justamente por não ter. Em apenas alguns minutos, foram presenciadas três brigas, com agressões físicas e verbais entre as crianças, porém, apesar de alertados, os funcionários da instituição limitaram-se a observar. Verifica-se, observando a relação das crianças com os brinquedos, que não possuem concentração e que existe uma fusão entre o mundo infantil e a realidade. As crianças não apresentam concentração para brincar e ouvir música, pois, ao mesmo tempo que desejam brincar, sentem a necessidade de contar suas vivências dentro da instituição, que não estão plenamente dissociadas da realidade em que foram geradas. A educação prestada pela instituição resume-se a “ir à escola”. Nesta instituição, evidentemente, as crianças estão livres da violência a que estavam submetidas, se alimentam, têm roupas, brinquedos, escola, camas confortáveis, porém, a equipe responsável por garantir estes direitos humanos fundamentais, garantidos constitucionalmente, não dá atenção e afeto para as crianças. A preocupação com o “outro” inerente a alteridade e indispensável à formação do ser humano e de sua identidade é elemento essencial para a formação de uma sociedade equilibrada e esta preocupação não se realiza se os direitos humanos não forem compreendidos e efetivados através do afeto. A educação determinada pela Constituição Federal limitada aos currículos escolares não basta para recriar seres humanos passíveis de integração aos princípios morais, éticos e culturais de uma sociedade. Ausente a estrutura emocional, não será possível a “destruição do acervo da própria ontologia”27 (Heidegger, 1988) e a edificação de nova identidade positivamente contribuinte para uma sociedade melhor. 27

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 1988

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O Reconhecimento do Outro Através de si Mesmo: a Busca de uma Justiça Equitativa sob a Concepção de Martin Heidegger

No presente caso, constata-se a instrumentalização dos direitos humanos mediante o cumprimento das regras estabelecidas pela legislação, mas é incontestável a primordialidade da execução destas ações com o mínimo de amor e afeto como mandamento moral para a construção de uma sociedade equilibrada, que depende do resguardo da integridade física e emocional dos seres humanos.

Conclusão A análise da teoria da essência do “ser” desenvolvida por Martin Heidegger possui uma estreita relação com o ideal de uma sociedade equilibrada, justa e igualitária. Ao correlacionar o “ser-ente” com o mundo, “ser-no-mundo”, e fundar o desenvolvimento e conhecimento de sua essência com as experiências intramundanas, Heidegger estrutura a identidade do ser humano e demonstra que através dela desdobra-se a alteridade. Mediante a alteridade e as ações e reações do ser humano no mundo cria-se a identidade do ser, que também é elemento substancial à alteridade e, consequentemente, componente de uma sociedade saudável, cumpridora dos direitos humanos fundamentais, constituindo um ciclo de vivência humana. Para atingir o ideal de sociedade almejado, com os direitos humanos garantidos, por meio da construção do “ser em si mesmo”, de Heidegger, e da compreensão do “outro” por cada indivíduo integrante do grupo social, deve ocorrer a integração entre estes dois elementos: identidade e alteridade. Entretanto, para que efetivamente a sociedade justa e igualitária se concretize, a alteridade deve estar aliada ao amor a ao afeto. As regras estabelecidas pela legislação que garantem os direitos humanos, fundamentais a uma existência digna, porém, somente práticas utilitaristas não bastam. As ações que resguardam a formação do ser humano ou a desconstrução de seu “ser” para uma integração à sociedade devem ser compostas por condutas que salvaguardem tanto a integridade física quanto a integridade emocional, por isso, a importância do amor e do afeto por parte dos indivíduos que lidam com seres humanos, principalmente aqueles em situação de risco. Conclui-se, com base em Heidegger, que é por meio dos ensinamentos dos princípios morais, éticos e culturais de uma sociedade que o ser humano constroi ou reconstroi sua identidade, logo, é indispensável que os indivíduos integrantes desta sociedade e responsáveis pela integração deste “ser” exerçam conduta não somente conforme o que a legislação estabelece, mas também com a dose de amor inerente à alteridade e necessário à composição positiva do ser. Apenas com a edificação de um ser com princípios morais e éticos é possível uma sociedade equilibrada, justa, igualitária e, consequentemente, respeitadora dos direitos humanos, direitos de todos.

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Referências bibliográficas BARUFFI, Helder. Direitos fundamentais sociais: Estudos em homenagem aos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e aos 20 anos da Constituição Federal. Dourados, MS: UFGD, 2009. BRYCH, Fábio. Ética utilitarista de Jeremy Benthan. Âmbito Jurídico, Rio Grande, VIII, n.23, nov. 2005. Disponível em: http://www.ambito-jurídico.com.br/site/index.php?n_ link=revista_artigos_leituras£artigo_id=155. CARBONARI, Paulo Cesar. Coletânea CERIS. Ano 2, n. 2. Rio de Janeiro: CERIS/Mauad, 2007. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Petropolis, RJ: Vozes, 2013. HEIDEGGER, Martin.  Ser e tempo.  Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1988. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré- socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. RICOEUR, Paul. Amor e Justiça. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SILVEIRA, Carlos Frederico Gurgel Calvet da; BENTES, Hilda Helena Soares. A arte de a ensinar a estudar o Direito: mediar, sensibilizar, humanizar. Rio de Janeiro: Letra Capital; Petrópolis, RJ: Universidade Católica de Petrópolis; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade Eron Dino Leite Pereira1 Resumo Este artigo tem como objetivo geral demonstrar a problemática em torno dos direitos da personalidade, no tocante a seu reconhecimento como direitos fundamentais. Os Direitos da Personalidade podem ser reconhecidos como Direitos Fundamentais, já que se trata da dignidade humana? Se possível, admite-se a existência de Direitos Fundamentais fora do núcleo constitucional? Os direitos da personalidade, instituto relativamente novo, introduzido pelo código civil de 2002, é acompanhado de intenso debate doutrinário e jurisprudencial, abarcando desde própria existência, passando por sua natureza e a forma adequada de sua proteção. A pesquisa utilizada foi a teórica, com levantamento dos dados por meio da documentação indireta em fontes secundárias, abrangendo livros, textos, monografias e artigos a respeito do tema. Os Direitos da Personalidade através do novo Código Civil trouxe mudanças significativas na esfera jurídica, deixando claro para todos e principalmente para os doutrinadores e aplicadores do direito que a liberdade do indivíduo nos dias de hoje é relativa a princípios maiores de ordem pública mesmo que inseridos no contexto do direito privado. Palavras-chave: Constituição; direitos e personalidade. Abstract General objective of this research was to demonstrate the problems surrounding the rights of personality, in terms of its recognition as fundamental rights. The Personality Rights may be recognized as fundamental rights, since it is human dignity? If possible, admits the existence of Fundamental Rights Outside the core constitutional? Personality rights, relatively new institute, introduced by the Civil Code of 2002 is accompanied by intense doctrinal and jurisprudential debate, spanning from existence, experiencing nature and the proper form of protection. The survey used was theoretical, with survey data through indirect documentation on secondary sources, including books, texts, monographs and articles on the subject. The Personality Rights through the new Civil Code has brought significant changes in the legal sphere, making it clear to everyone and especially for scholars and enforcers of law that the freedom of the individual these days is related to higher principles of public policy even if inserted in context of private law. Keywords: Constitution; law and personality.

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Advogado inscrito na OABMG; Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho; PósGraduado em Direito Previdenciário; Formação em Docência de Ensino Superior; MBA Executivo em Petróleo e Gás; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais.

Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Introdução Este trabalho tem como objetivo geral demonstrar a problemática em torno dos direitos da personalidade, no tocante a seu reconhecimento como direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são caracterizados como individuais, porque pertencem exclusivamente a pessoa, e o Estado como titular de direitos, com o dever de proteger o cidadão, deve velar pelo seu cumprimento. A evolução do reconhecimento e da consequente proteção jurídica do Direito da Personalidade do homem é fruto do desenvolvimento da própria sociedade, na medida em que o amparo jurisdicional voltado a esse fundamental Direito apresenta-se distinto em cada fase da história. Segundo Canotilho (2002, p. 1378)2 direitos fundamentais são: “(...) direitos do particular perante o Estado, essencialmente direito de autonomia e direitos de defesa”. O Direito Civil brasileiro abandonando a visão meramente patrimonialista de seus institutos volta os olhos para o caráter existencial do ser Humano e a necessidade de sua proteção. Assim sendo os Direitos da Personalidade podem ser reconhecidos como Direitos Fundamentais, já que se trata da dignidade humana? Se possível, admite-se a existência de Direitos Fundamentais fora do núcleo constitucional? Cláudio Luiz Bueno de Godoy (2001, p.25)3 afirma que “esses direitos que irradiam e se apoiam na personalidade, servindo de, justamente, a sua proteção, bem assim à tutela de suas emanações primeiras, como a vida, a honra, a privacidade, a imagem da pessoa, entre outras, é que se dá o nome de direitos da personalidade.” A escolha desse tema teve a relevância de abordar os direitos da personalidade, instituto relativamente novo, introduzido pelo código civil de 2002, é acompanhado de intenso debate doutrinário e jurisprudencial, abarcando desde própria existência, passando por sua natureza e a forma adequada de sua proteção.

Referencial teórico Histórico O direito da personalidade está embasado na dignidade da pessoa humana, acarretando na dupla acepção do termo personalidade como componente de uma relação jurídica. Borges (2007, p.25)4 assim define os direitos da personalidade: 2

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Editora Livraria Almedina, 2002. 3 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. 4 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 25.

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Dentre os primeiros direitos da personalidade reconhecidos como direitos fundamentais, estão o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à integridade física. Foram reconhecidos a partir da oposição entre indivíduos e Estado, visando proteger a pessoa contra as intervenções arbitrárias deste. Com o aumento populacional das cidades, com o crescimento dos veículos de comunicação de massa, com o aumento do desequilíbrio nas relações econômicas e com o avanço tecnológico, outros direitos da personalidade emergiram, desta vez não apenas para proteger o indivíduo contra o Estado, mas para protegê-lo também contra a intervenção lesiva de outros particulares.

“A doutrina tradicional aponta os romanos como os criadores da teoria jurídica da personalidade, sendo que a expressão personalidade era atribuída ao indivíduo dotado de três status, quais sejam, status libertatis, status civitatis, e o status familiae.” (Bittar, 2001, p.19). Elimar Szaniawski (2005, p.28)5 complementa a assertiva supra ao dispor que “o ato jurídico praticado por dependentes do pater famílias, só seria eficaz se trouxesse benefícios para este. Se, ao contrário, trouxesse prejuízos, era considerado ineficaz.”. Os direitos da personalidade eram tutelados em Roma através do instrumento processual denominado actio injuriarum, que consistia num interdito criado no século II a.C. para defesa do sujeito contra a ofensa à honra, à liberdade, etc., vindo a substituir a vingança privada naquela sociedade (Godoy, 2001, p.17). De acordo com Stancioli (2010, p.43)6: O ethos medieval rejeitava as manifestações individuais que não obedecessem ao padrão teológico. Somente no final da Idade Média, essa perspectiva sofreria uma ruptura, com o giro antropocêntrico – uma leitura da pessoa humana, que radicalizará até mesmo a materialidade do corpo, e negará sua transcendência com o divino.

O Estado só veio a reconhecer a proteção da pessoa humana com o advento do liberalismo no século XVII na Inglaterra, bem como do iluminismo na França no mesmo século. Com a morte, haveria uma despessoalização de corpo e alma, na medida em que perdiam a sua individualidade. Para definir a pessoa na Idade Média, tornavam-se necessários alma e corpo (STANCIOLI, 2010, p.43)7. Elimar Szaniawski (2005, p.41) assevera que: 5

SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua tutela. Ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 6 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício dos direitos de personalidade: Ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 7 STANCIOLI, Brunello. Renuncia..., cit., p. 43.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Os principais valores consistem na liberdade, na igualdade de todos os homens, na propriedade privada, no mercantilismo, na tolerância e liberdades filosóficas e religiosas, valores esses que se fizeram presentes no momento em que o homem era visto como o centro da ordem social.

O direito da personalidade está embasado no princípio mãe da dignidade da pessoa humana consagrada no art. 1º, inciso III da Constituição Federal, sendo que os outros princípios fundamentais que norteiam a personalidade visando sua proteção encontram-se, preponderantemente, no título II – Direitos e garantias fundamentais (vida, propriedade, intimidade, etc.) –, e titulo VIII – educação, cultura, saúde, previdência, meio ambiente, etc. Segundo Maria Helena Diniz (2006, p. 120)8: Após a 2ª Guerra Mundial, por consequência do nazismo e do fascismo, onde aniquilavam o ser humano, atentando diretamente contra a dignidade da pessoa humana, foi que os direitos da personalidade passou a ter maior relevância para o mundo jurídico, referidos direitos passaram a receber tutela na Assembleia Geral da ONU de 1948, na Convenção Europeia de 1950 e no Pacto Internacional das Nações Unidas.

A dignidade da pessoa humana passou a ter base Constitucional com o artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988, tendo um valor supremo na ordem jurídica e estando totalmente integrada aos direitos e garantias fundamentais do homem, que são tradicionalmente apresentados como direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais. A partir de então, o Estado passou a proteger e respeitar a dignidade da pessoa humana, sendo que no texto constitucional, encontramos uma tutela bastante abrangente no inciso XLI do artigo 5º onde prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. A Constituição de 05 de outubro de 1988, que veio restabelecer a democracia e consagrar, em técnica mais moderna, uma série de direitos e garantias não previstos anteriormente. Os direitos da personalidade são, por definição, aqueles oponíveis aos demais indivíduos da sociedade, não se relacionando diretamente com o Estado. A Constituição apresenta uma etapa fundamental no processo de redemocratização do país, através de sua narrativa analítica, pluralista, pragmática, utópica, e emancipatória (neutralizada por diversionismo terminológico).  O direito da personalidade garante o exercício da liberdade e da autofinalidade, que se realizam relacional e dialogicamente, no encontro com os demais indivíduos pessoais, incluindo-se aqui, Deus. (STANCIOLI, 2010, p.41)9 8

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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - Responsabilidade Civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v8. 9 STANCIOLI, Brunello. Renuncia..., cit., p. 41.

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Aspectos constitucionais As garantias constitucionais em acepção estrita buscam proteger de forma direta ou indireta os direitos fundamentais da personalidade, subjetivos através de remédios jurisdicionais hábeis a combater a violação de direitos fundamentais. (BONAVIDES, 2004)10. Segundo Hesse, (2009, p.87): Os direitos fundamentais influem em todo o Direito, inclusive o Direito Administrativo e o Direito Processual, não só quando tem por objeto as relações jurídicas dos cidadãos com os poderes públicos mas também quando regulam as relações jurídicas entre os particulares.

Os aspectos constitucionais são extremamente limitados, razão pela qual há necessidade de redefinição dos conceitos dados às garantias fundamentais, acrescendo-se ao mesmo a definição de garantias institucionais. (BONAVIDES, 2004). A constitucionalização do direito civil e o reconhecimento da fundamentalidade da tutela da dignidade da pessoa humana, mudou a situação, e com ela  o conceito de personalidade, que de acordo com Mello (2006, p.144).11 Não são apenas  os bens externos à subjetividade humana, necessários em maior ou medida para assegurar o êxito de determinadas finalidades do homem unificado pela ideologia burguesa, que são objeto de normatização jurídica. Os elementos intrínsecos à pessoa como tal, em toda a sua complexidade natural e histórica, racional e emocional, irrompem como fundamentais para garantir a felicidade humana, e essa fundamentalidade não pôde mais ser ignorada pelo sistema jurídico. A honra, a reputação, a imagem, o nome e os atributos humanos que determinam a positividade ou negatividade das relações da pessoa com outros indivíduos e a comunidade em geral; a afetividade, a sexualidade, a integridade física e psíquica, todos os fatores fisiológicos, psicológicos e emocionais que são decisivos para o bemestar humano compõem, da mesma forma, um conjunto de elementos que, dada a sua fundamentalidade para a felicidade do homem, exigem a atenção incisiva do direito. E embora ainda inexplorada pela doutrina – conquanto sempre reconhecida pelo Direito moderno, também a religiosidade é atributo fundamental da natureza do homem. Pois todos esses elementos intrínsecos à “humanidade essencial” da pessoa, que concernem a sua personalidade, ou seja, à dimensão existencial da subjetividade humana, compreendem hoje os direitos de personalidade. 10 11

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004 MELLO, Cláudio Ari. Contribuição para uma teoria híbrida dos direitos de personalidade. in.: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo código civil e a constituição. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Os direitos da personalidade fazem parte da história da humanidade, dos novos direitos e certamente irá fortalecer-se ainda mais no meio jurídico contemporâneo, pois a sociedade está buscando no contexto social a proteção dos seus direitos individuais e fundamentais. Piovesan (2006, p.46)12 assevera que: Ao analisarmos a carta dos direitos fundamentais expostos pela Constituição, percebemos uma sintonia com a Declaração Universal de 1948, bem como com os principais pactos sobre os Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário. Intensifica-se a interação e conjugação do Direito internacional e do Direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica, fundadas na primazia dos direitos humanos.

O artigo 1º do Código Civil dispõe: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.” O artigo 2º do Código Civil dispõe: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” O artigo 5º, §1º da Constituição Federal determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, cabendo aos poderes públicos (Judiciário, Legislativo e Executivo) promover o desenvolvimento desses direitos. O artigo 6º do Código Civil dispõe: “A existência da pessoa natural termina com a morte (...)” Gonçalves (2005, p. 115)13 ressalta que: Existe a possibilidade de reabilitar-se a memória do morto, pois não é completo o aniquilamento do “de cujus” pela morte. Sua vontade sobrevive através do testamento devendo ser dado ao cadáver o devido respeito sob pena de sofrer sanções penais. Militares e servidores públicos podem ser promovidos “post mortem” e aquinhoados com medalhas e condecorações.

O artigo 11 do Código Civil, assim dispõe “com exceção dos casos previstos em Lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” “A Lei prevê que referidos direitos são intransmissíveis e irrenunciáveis, porém, suas peculiaridades vão mais além, são extrapatrimoniais, inalienáveis, indisponíveis, imprescritíveis e impenhoráveis.” (RODRIGUES, 2003, p.60)14. Para Venosa (2005, p.258)15: 12

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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. 13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v1. 14 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil – Parte Geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v1. 15 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. Parte Geral. v.1, 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

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Os direitos da personalidade são intransmissíveis, haja vista não poder ser transferido de uma pessoa à outra; irrenunciáveis por não poder abandonar, desistir dele voluntariamente; são extrapatrimoniais, ou seja, não tem valor econômico; inalienáveis pelo fato de não possuir caráter comercial, não pode a pessoa dele desfazer-se; indisponíveis, não pode por vontade própria não o querer, nascem e extinguem-se conosco; são imprescritíveis por não se extinguir com o uso ou com o passar do tempo; e, impenhoráveis, pois não podem ser dados em garantia.

Para a proteção e efetivação dos direitos fundamentais, o magistrado só deve possuir um único limite: a Constituição. Nem a lei e nem sua falta pode impedir que os juízes façam cumprir os mandamentos constitucionais, sobretudo as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais. Afinal, não são os direitos fundamentais que circulam no âmbito da lei, mas a lei que se move no âmbito dos direitos fundamentais. A Constituição representa a referibilidade e a concretude de um ordenamento jurídico harmônico e coeso (SARLET, 1998)16.

Características dos direitos fundamentais A priori, os Direitos Fundamentais possuem eficácia e aplicabilidade imediata, situação que pode ser mitigada conforme os critérios de razoabilidade e proporcionalidade previstos na lei ou a serem arbitrados em determinado caso concreto (BONAVIDES, 2004). Assevera Gonçalves (2005, p. 70)17, que: Personalidade e pessoa natural tem uma relação íntima, pois todos ao nascerem com vida tornam-se pessoas e adquirem personalidade, que é característica fundamental do ser humano. A personalidade jurídica é, portanto, definida como aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil. É pressuposto para inserção e atuação da pessoa a ordem jurídica, e que se estende a todos os homens.

Para Venosa (2005, p. 259 e 260)18, Os direitos da personalidade são resultado do acordo de vontade, o vínculo de unidade entre as pessoas que buscam uma mesma finalidade, desde que lícita, constituindo-se de acordo com o que prevê a Lei, pois esta irá estipular quais requisitos a serem cumpridos, a depender da espécie da pessoa jurídica a ser instituída, ou seja, se a manifestação de vontade deve ser concretizada mediante documento particular ou por meio de documento público, se há necessidade ou não da prévia autorização do Estado, regulamentando também a inscrição no Registro Público como condição de existência legal da pessoa jurídica. 16

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livrariado Advogado Editora, 2007. 17 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v1. 18 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. Parte Geral. v.1, 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Segundo Bullus, (2001)19 as características dos direitos fundamentais são: “historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, concorrência, efetividade, interdependência e complementaridade.” a) A historicidade dos direitos fundamentais diz respeito ao seu nascimento, modificação e desaparecimento no tempo, mercê dos acontecimentos históricos; b) A inalienabilidade dos direitos fundamentais é caracterizada pela impossibilidade de negociação dos mesmos, tendo em vista não possuírem conteúdo patrimonial; c) Os direitos Fundamentais são imprescritíveis os direitos fundamentais, na medida em que podem ser exercidos ou reclamados a qualquer tempo, não havendo lapso temporal que limite sua exigibilidade; d) A irrenunciabilidade afirma que mesmo não sendo tais prerrogativas exercidas, o cidadão não pode renunciar às mesmas; e) Os invioláveis comentam que os Direitos Fundamentais não podem ser desrespeitados por qualquer autoridade ou lei infraconstitucional, sob pena de ilícito civil, penal ou administrativo; f ) A universalidade é caracterizada pela disposição dos direitos fundamentais a todo ser humano, com plena observância ao Princípio da Isonomia; g) Os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, configurando-se o que se chama de “cedência recíproca”. São exercidos ao mesmo tempo, ainda que em um caso concreto um se contraponha ao outro; h) A efetividade é assegurada pelos meios coercitivos dos quais dispõe o Estado para garantir a possibilidade de exercício das prerrogativas constitucionais ora aventadas; i) A interdependência diz respeito à relação harmônica que deve existir entre normas constitucionais e infraconstitucionais com os direitos fundamentais, devendo as primeiras zelar pelo alcance dos objetivos previstos nos segundos; j) Por último, a complementaridade, refere-se à interpretação conjunta dos direitos fundamentais, objetivando sua realização de forma absoluta. Pereira (2006)20 demonstra que há duas teorias em torno das posições jurídicas para uma justificação das restrições que são: A chamada teoria interna dos limites dos direitos fundamentais, defensora de que os direitos fundamentais cuja restrição não é expressamente autorizada pela Constituição não podem ser objeto de autênticas limitações legislativas, mas apenas de delimitações, as quais devem cingir-se a desvelar o conteúdo normativo constitucionalmente previsto.

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BULUS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001 PEREIRA. Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

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A interpretação consiste em identificar o conteúdo do direito, e em precisar os limites externos que decorem da necessidade de conciliá-lo com outros direitos e bens constitucionalmente protegidos.

Dimensões dos direitos fundamentais Os direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais etc) devem ser analisados em todas as dimensões. Cada uma dessas dimensões é capaz de fornecer uma nova forma de conceber um dado direito, conforme será especificado nos tópicos abaixo.

Direitos humanos de primeira geração Após a revolução francesa, o conceito jurídico de vida passou a agregar a característica de autodeterminação humana, de liberdade. A partir daí, a vida somente é integral quando se tem liberdade. Surgiu, então, a necessidade de se especificar aquilo que é de domínio público e o que é de domínio privado, regulando-se o quantum que o Estado pode interferir na particularidade humana, na liberdade do cidadão. Surgem daí os direitos fundamentais de primeira geração.21 Os direitos fundamentais de primeira geração advieram do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de cunho individualista, visando a proteção do homem perante o Estado, estando neles abrangidos os chamados direitos de personalidade do cidadão (SARLET, 2006)22. Bittar, (2003, p.06)23 assevera que os direitos fundamentais de primeira geração segundo a Escola do Direito Natural, seriam: 21

A doutrina costuma utilizar-se das expressões “geração” e “dimensão” para caracterizar cada uma das acepções jurídicas da “vida”. Trata-se de expressões já consolidadas, motivo pelo qual as utilizamos no presente trabalho, sem, entretanto, deixar de enfatizar a existência de alguma polêmica quanto à utilização das mesmas, como aponta Aryon Sayão Romita, que prefere adotar as expressões “famílias”, “naipes” ou “grupos” de direitos fundamentais, sob a argumentação de que “Usual é o emprego do vocábulo gerações para designar as famílias (naipes ou grupos) de direitos fundamentais. Não se trata, porém, de gerações, estas se sucedem com o passar do tempo, umas tomam o lugar das outras. Não é o que ocorre, porém, com os direitos fundamentais. A revelação dos direitos de determinado naipe não faz desaparecer os anteriores. Os diferentes grupos de direitos fundamentais existem simultaneamente, concomitantemente, sendo impensável a supressão dos direitos de primeira e segunda “gerações” pelo fato de se revelar uma terceira “geração”. E acrescenta o Sayão Romita que não se justifica a denominação “dimensões”, vez que a mesma só adquire legitimidade quando alusiva a certo e determinado direito, mas se revela imprópria para designar os grupos de direitos fundamentais. Cf. Arion Sayão Romita, op. cit. p. 89-90 22 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. 23 BITTAR, Carlos Alberto. apud BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 24

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Aqueles direitos inerentes a cada ser humano, existindo em seu âmago antes e independentemente ao direito positivo. Eles constituem o mínimo existencial do homem, sem os quais o mesmo não se realiza. Tem tanto um caráter relativo ao âmbito corpóreo (direito à vida, à integridade física), quanto psíquico e moral (direito à imagem, privacidade, à honra) do ser humano.

O conceito de dignidade da pessoa humana e direitos de personalidade são totalmente compreensível quando analisamos o quanto a dignidade do homem pode ser maculada mediante o desrespeito ao direito de sua personalidade.

Direitos humanos de segunda dimensão Com a Revolução Industrial no início do século XX, surgiu a visão de necessidade de manutenção da subsistência do Homem, agregando-se ao conceito jurídico de vida a “vida com qualidade”, a vida com dignidade, a necessidade de intervenção do Estado nas relações jurídicas no sentido de tentar igualar os polos diversos dessas relações, municiando o hipossuficiente de condições para se manter socialmente vivo.

Direitos humanos de terceira geração Com as dificuldades e conquistas decorrentes da diuturna luta social pelo reconhecimento e pela eficácia dos direitos civis e políticos, de primeira geração, e dos direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de segunda geração, outros valores, até então não tratados como prioridade na sociedade ocidental, foram colocados na pauta de discussão em período posterior ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945 referidos valores, para serem efetivados, exigiam soluções inovadoras que só o reconhecimento de direitos de estirpe diversa dos já positivados poderia satisfazer. Estes novos direitos passaram, assim, a serem alcunhados de direitos de terceira geração. “Tais direitos, também conhecidos como direitos da solidariedade ou fraternidade, caracterizam-se, assim, pela sua titularidade coletiva ou difusa, tendo coincidido o período de seu reconhecimento ou positivação com o processo de internacionalização dos direitos humanos”. (TAVARES, 2006).24 Os direitos de terceira geração caracterizam-se pelo distintivo de demandarem a participação intensa dos cidadãos, sem a qual não tem eficácia, requerendo a existência de uma consciência coletiva na atuação individual de cada membro da sociedade, em aliança com Estado.

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TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

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Direitos humanos de quarta e quinta geração Segundo Sarlet (2006, p. 52)25: Há doutrinadores, ainda, que reconhecem a existência de uma quarta geração ou dimensão de direitos humanos, que se identificariam com o direito contra a manipulação genética, direito de morrer com dignidade e direito à mudança de sexo, todos pensados para o solucionamento de conflitos jurídicos inéditos, novos, frutos da sociedade contemporânea. Há, ainda, doutrinadores, como o constitucionalista Paulo Bonavides, que entendem que a quarta geração de direitos identificar-se-ia com a universalização de direitos fundamentais já existentes, como os direitos à democracia direta, à informação e ao pluralismo, a exemplo.

Os direitos humanos da quinta geração, como os de quarta, também não são pacificamente reconhecidos pela doutrina, como o são os das três primeiras. No entanto, os direitos que por essa geração são reconhecidos, quais sejam, a honra, a imagem, enfim, os “direitos virtuais” que ressaltam o princípio da dignidade da pessoa humana, decorrem de uma era deveras nova e contemporânea, advinda com o exacerbado desenvolvimento da Internet nos anos 90. (SARLET, 2006, p. 53)26.

A questão à luz da lei civil – pessoa e dignidade Os direitos de personalidade e o sujeito de direito no tradicional sistema jurídico As pessoas jurídicas também são providas  de  personalidade, sejam elas entidades  de  direito  público ou privado, conforme estabelece o artigo 52 do Código Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas,  no  que couber, a proteção dos  direitos  da  personalidade”. Essa possibilidade  surge vez que é o próprio direito que confere a personalidade jurídica. Pontes de Miranda (2000, p. 210)27 se manifesta nos seguintes termos: “[...] a personalidade jurídica é atribuída pelo direito; é o sistema jurídico que  determina quais são  os  entes se têm por pessoas. Nem sempre todos os homens foram pessoas, no sentido jurídico: os escravos não eram pessoas; e sistemas jurídicos houve que não reputavam pessoas as mulheres. Foi a evolução social que impôs o princípio da personalidade de todos os entes humanos”. 25

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. 26 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 27 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000. Tomo I.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Segundo Cortiano Junior (1998, p. 34)28, “a responsabilidade civil visa a reparação do dano, em regra pelo ressarcimento pecuniário. Ou seja, sua base é patrimonial, em que o fundamento não é propriamente a agressão, mas o prejuízo por ela causado”. A proteção jurídica da  personalidade  na esfera privada estava limitada à reação do ordenamento contra a lesão, através da responsabilidade civil. No  histórico do reconhecimento dos  direitos  da  personalidade, para o fato que, inicialmente, sua proteção estava limitada à esfera do Direito Público. Foi através  de  constituições e  declarações  de  direitos  do final do século XIX que  os  chamados  direitos  do homem começaram a ser tutelados, em resposta ao poder absoluto do Estado. Apenas mais recentemente houve o efetivo reconhecimento e proteção dos direitos individuais entre os particulares. “A ordem jurídica claramente reconhece a existência  de  uma série de faculdades conferidas ao homem, em razão  de  sua qualidade  de  indivíduo e de pessoa” (PEREIRA, 2001, p. 152-153)29. Mas a consagração dos direitos da personalidade como direitos subjetivos privados e absolutos não impediu o surgimento de grande discussão acerca de sua tipificação, com concepções manifestamente opostas. Nesse ponto, dividiam-se as correntes em pluralista (ou tipificadora), que reconhecia a existência de um grande número de direitos da personalidade, e monista, que defendia a existência de um único e geral direito da personalidade (TEPEDINO, 1999, p. 42)30. Os direitos adquiridos podem ser examinados em relação ao Estado, e ingressam no campo das liberdades públicas, dependendo necessariamente de positivação. Enquanto os direitos inatos, por serem inerentes ao homem, consideram-se acima do direito positivo, devendo o Estado reconhecê-los e protegê-los, através das normas positivas (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 147)31. “A Declaração afirma que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade (art. 1.º) e garante a todos eles os mesmos direitos, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, nascimento ou qualquer outra condição (art. 2.º, I)” A boa doutrina ressalta algumas características próprias desses direitos, sendo: Universalidade: todo e qualquer ser humano é sujeito ativo desses direitos, independente de credo, raça, sexo, cor, nacionalidade, convicções; 28

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CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Org.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. 1. ed., 2. tir. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 31-56. 29 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense Editora, 2001. 30 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar – 2001. 31 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.  Novo curso de direito civil: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1.

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Inviolabilidade: esses direitos não podem ser descumpridos por nenhuma pessoa ou autoridade; Indisponibilidade: esses direitos não podem ser renunciados. Não cabe ao particular dispor dos direitos conforme a própria vontade, devem ser sempre seguidos; Imprescritibilidade: eles não sofrem alterações com o decurso do tempo, pois têm caráter eterno; Complementaridade: os direitos humanos devem ser interpretados em conjunto, não havendo hierarquia entre eles.

O Prof. Sorondo afirma que: “Os Direitos Humanos  julgam  a ordem vigente, são um formador de opinião pública nos mais diversos confins do planeta, e põem a descoberto os condicionamentos econômicos, sociais e políticos que impedem sua completa realização”.

Direitos da personalidade antes do código civil de 2002 No Brasil, embora o Código Civil de 1916 já contemplasse a personalidade de forma plena, ao dispor, em seu artigo 2º: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”,  os  direitos  da  personalidade  somente foram consolidados com o advento da Constituição de 1988, que inseriu a dignidade da pessoa humana como valor essencial em que se baseia nosso país. Conforme palavras de Tepedino (2001, p.47)32: A posição da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da República (Constituição Federal, art. 1º., II e III), juntamente com as garantias de igualdade material (art. 3º., III) e formal (art. 5º), “condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte” e marcam a presença, em nosso ordenamento, de uma cláusula geral da personalidade.

A Constituição Federal  de  1988 também faz referência expressa à proteção da intimidade e declara invioláveis a vida privada, a honra e a imagem, assegurando a reparação do dano moral (artigo 5º, X/CF). Carlos Alberto Bittar apud Beltrão (2005, p.24) assevera que “[...] os direitos da personalidade constituem direitos inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo, dotando-o de proteção própria contra o arbítrio do poder público ou contra incursões de particulares”. Ainda há de se mencionar que o princípio constitucional da igualdade perante a lei deve ser encarado como definição do conceito geral da personalidade, como atributo natural da pessoa humana, sem distinção de sexo, condição ou origem (PEREIRA, 2001, p. 153)33. 32 33

TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar – 2001. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense Editora, 2001.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Desde 1988 firmados no topo do nosso ordenamento jurídico, os direitos da personalidade constam hoje também no novo Código Civil brasileiro, lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, como uma novidade no diploma, posto que o Código revogado não tratava da matéria. Carlos Alberto Bittar34 assevera que “[...] os direitos da personalidade constituem direitos inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancionálos em um ou outro plano do direito positivo, dotando-o de proteção própria contra o arbítrio do poder público ou contra incursões de particulares”

Direitos da personalidade com o código civil de 2002 Uma inovação significativa no Código Civil de 2002 foi a inclusão de um capítulo reservado aos  direitos  da  personalidade. Trata-se  de  um reflexo da  nova realidade  da sociedade  brasileira, que busca a preservação do indivíduo, em detrimento do caráter estritamente patrimonialista que marcou a codificação  de  1916. Ademais, significou o ajuste da legislação civil com a índole Constituição Federal  de  1988, marcada pelo princípio  norteador da dignidade humana. No novo Código Civil, o legislador inclui os direitos da personalidade no Capítulo II do Título I, no âmbito das pessoas naturais. Posteriormente, no artigo 52, concede às pessoas jurídicas, “no que couber”, a proteção dos direitos da personalidade. Cabe ao intérprete, portanto, a delimitação do que “cabe” à pessoa jurídica. Para esta missão a consciência da diversidade das duas posições subjetivas é essencial. Ao disciplinar a matéria  no  Código Civil, do artigo 11 ao artigo 21, o legislador não enumerou taxativamente os direitos da personalidade. De forma que, estabelecendo a proteção da matéria através de enunciados gerais, englobou todos os direitos da personalidade, e não apenas o direito à integridade física, o direito ao nome e a proteção à imagem (ELESBÃO, 2002, p. 16)35. A previsão ampla e genérica confere total proteção aos direitos da personalidade, vez que permite alcançar todas as hipóteses que se apresentarem, e não apenas as previstas em lei. O artigo 11 do Código Civil, ao tratar dos  direitos  da  personalidade, estabelece proteção a esses  direitos,  definindo-os  como intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária, exceto nos casos previstos em lei. O artigo 12 do Código Civil trata da tutela geral dos direitos da personalidade, protegendo  os  indivíduos  de  qualquer ameaça ou lesão à sua integridade física ou moral. Por tratar-se de regra genérica, reconhece proteção 34

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BITTAR, Carlos Alberto. apud BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 24 35 ELESBÃO, Elsita Collor. Os direitos  da  personalidade no novo Código Civil brasileiro. In: Pessoa, gênero e família. Adriana Mendes Oliveira de Castro et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 09-34.

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a direitos de personalidade que não estão expressos nos demais artigos, mas que poderão se concretizar. A proteção pode ser requerida para evitar que a ameaça seja consumada ou para que diminua os efeitos da ofensa praticada, sem prejuízo da reparação de danos morais e patrimoniais. A proteção à integridade  física está prevista  no  artigo 13 do Código Civil, que proíbe a disposição do próprio corpo, quando esta importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. A única exceção admitida está contida no parágrafo único do referido artigo, que permite a disposição, por pessoa capaz, de tecidos, órgãos e partes do corpo para fins de transplante ou tratamento, na forma da Lei 9.434/97 (FIÚZA, 2003, p. 26-27)36. Tratando  de  direito  ainda referente à integridade  física, o artigo 14 do Código Civil dispõe sobre  os  atos  de  disposição do corpo. Esse dispositivo admite a disposição gratuita do corpo,  no  todo ou em parte, para  depois da morte, desde que seja com intuito científico ou altruístico. O parágrafo único do artigo 14 do Código Civil prevê que o ato de disposição pode ser revogado a qualquer tempo pelo doador. O artigo 15 do Código Civil dispõe sobre a exigência de autorização espontânea e consciente do paciente, ou de seu representante, se incapaz, para se submeter à cirurgia ou a tratamento médico, assim, a inviolabilidade do corpo humano. O direito ao nome está consagrado no artigo 16 do Código Civil, que o assegura, determinando que neles estão compreendidos o prenome e sobrenome da pessoa. O nome integra a personalidade, individualizando e identificando o indivíduo (ELESBÃO, 2002, p. 26). Por tratar-se o nome de atributo da personalidade, é assegurada a proteção ao seu uso, e sua defesa contra abusos de terceiros (artigos 17 e 18 do Código Civil). Esses podem consistir em publicação ou representação que exponha o  nome ao  desprezo público, por atingir sua reputação, ou na utilização em propaganda comercial sem autorização de seu titular. A previsão da tutela ao pseudônimo está no artigo 19 do Código Civil. Da mesma forma em que é concedida proteção ao  nome, o pseudônimo utilizado por artistas e escritores também é amparado pela ordem jurídica, em razão  de  identificá-los  em seu meio “mesmo que não tenham alcançado a notoriedade” (FIÚZA, 2003, p. 31). O artigo 20 do Código Civil contempla os direitos intelectuais e proteção à imagem. Esse dispositivo protege a imagem e os acontecimentos pessoais da exposição indevida, assegurando a individualidade da pessoa. No entanto, há certas limitações ao  direito  à imagem, com dispensa  de  anuência para sua divulgação, quando se tratar de pessoa notória ouno exercício de cargo público, e em todos os casos em que houver interesse público que prevaleça sobre o direito individual. O direito e a proteção à intimidade estão assegurados pelo artigo 21 do Código Civil, que, ao dispor que a vida privada da pessoa é inviolável, protege a pessoa da indiscrição alheia e de interferências externas em sua vida particular. 36

FIÚZA, Ricardo (Coord). Novo Código Civil comentado. 1. ed., 8. tir. São Paulo: Saraiva, 2003.

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Pessoa e Dignidade - Direito da Personalidade

Conclusão Concluiu-se através dessa pesquisa que os direitos de personalidade do sujeito de direito justamente a partir daqueles entes que, pelas concepções clássicas do sistema normativo, muitas vezes não reconhecidos são sujeitos de direito, o que procura demonstrar que tais situações existem, e que necessitam ser debatidas à luz de uma repersonalização do sujeito de direito. É imprescindível analisar que o ser humano não cabe em idealizações pequenas, e que muitas vezes estas limitações deixam de reconhecer direitos e bens de uma pessoa humana que existe no mundo dos fatos, mas que não é reconhecida por meros conceitualismos clássicos. Um processo de reificação que, conforme exposto, chega até mesmo a agregar um valor para o ser humano e seus direitos. O ser humano e as suas relações estabelecidas na atual sociedade não mais são compreendidos por conceitos retos. Situações como as trazidas em tela, como os direitos de personalidade do feto, do morto, os transplantes e a comercialização de órgãos nos forçam a repensar que os direitos que perfazem o ente homem devem ser analisados fora das concepções de coisa e, conforme visto, até mesmo de mercadoria. Os direitos de personalidade não pertencem a nenhum outro âmbito de observação que não o próprio ser humano. Os Direitos da Personalidade através do novo Código Civil trouxe mudanças significativas na esfera jurídica, deixando claro para todos e principalmente para os doutrinadores e aplicadores do direito que a liberdade do indivíduo nos dias de hoje é relativa a princípios maiores de ordem pública mesmo que inseridos no contexto do direito privado. A identificação dos direitos da personalidade com os direitos subjetivos e, portanto, com uma técnica de tutela característica dos direitos patrimoniais, continua presente no espírito da nova legislação.

Referências bibliográficas BITTAR, Carlos Alberto. apud BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 24 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 25. BULUS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5. ed. Editora Livraria Almedina, 2002. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Org.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. 1. ed., 2. tir. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 31-56. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - Responsabilidade Civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v8.

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O Positivismo Legal de Hans Kelsen versus a Hermenêutica de Martin Heidegger: o Desvelamento do Direito Através do Dasein Alexandre Ribeiro da Silva1 Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira2 Resumo Este artigo pretende abordar, de forma breve, as visões de Hans Kelsen e de Martin Heidegger sobre o fenômeno do Direito. Sendo assim, visa-se a observar o positivismo kelseniano e a hermenêutica heideggeriana como instrumentos para a desconstrução da metafísica ocidental. Palavras-chave: Kelsen; Heidegger; metafísica ocidental; hermenêutica. Abstract This article intends to comment very briefly the views of Hans Kelsen and Martin Heidegger about the law phenomenon. In this manner, the present study aims to observe the positivism of Kelsen and the hermeneutics of Heidegger as tools for deconstruction of occidental metaphysics. Keywords: Kelsen. Heidegger. Occidental Metaphysics. Hermeneutics. 1

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Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC, Campus de Juiz de Fora e também mestrando no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-Graduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). É advogado e professor de literatura e português. Possui Pós-Graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2009) e graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010). Jornalista e advogada. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2013). Atualmente é mestranda no programa “Hermenêutica e Direitos Fundamentais”, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e Efetivação dos Direitos Humanos nos Contextos Social e Político Contemporâneos”, na Universidade Presidente Antônio Carlos. É também mestranda no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa PósGraduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Desenvolve pesquisas nas áreas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Direito Constitucional e Teoria da Comunicação (Agenda-Setting Theory).

O Positivismo Legal de Hans Kelsen versus a Hermenêutica de Martin Heidegger: o Desvelamento do Direito Através do Dasein

Introdução Hans Kelsen é um grande representante do positivismo e criador da Teoria Pura do Direito. Propõe-se, através de sua teoria, estudar o Direito isoladamente e sem a influência de elementos que supostamente não pertencem àquele. Imprime, destarte, um caráter científico ao direito através de um raciocínio lógico-dedutivo. Por sua vez, Martin Heidegger considera que o Direito não mais pode ser compreendido de forma apartada aos demais ramos da vida e nem o seu fundamento de validade é encontrado nele mesmo. É necessário vislumbrar, desse modo, o Dasein – o ser-no-mundo – com sentido na temporalidade, a fim de captar a genuína essência do Direito. Na obra Ser e Tempo, Heidegger é favorável à desconstrução da metafísica ocidental de modo a superar a filosofia transcendental kantiana, que não privilegiaria o ser. Por conseguinte, a hermenêutica heideggeriana almeja elucidar o fenômeno da interpretação através da compreensão, superando a instrumentalização inerente à metafísica ocidental. Na consecução deste breve estudo, é mister debater a visão da ciência do Direito através do positivismo de Kelsen e da hermenêutica de Heidegger, de modo a perceber a transmutação da metafísica tradicional através da percepção do ser-aí.

A visão Kelseniana do direito Hans Kelsen almejou transmitir exatidão e objetividade à ciência jurídica ao cunhar a Teoria Pura do Direito, tornando-a uma ode ao Direito positivo. Assim, Kelsen propôs garantir um conhecimento voltado tão somente ao direito, libertando-o de todos os elementos que não lhe são peculiares. Neste sentido, Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto3.

Cumpre ressaltar que Fábio Ulhoa Coelho4 afirma que a grande motivação para a teoria kelseniana supracitada é definir condições para a edificação de um conhecimento verdadeira e consistentemente científico do Direito. Ou seja, Kelsen está preocupado basicamente com o conhecimento do Direito e os meios, cautelas e métodos a serem utilizados para assegurar-lhe o estatuto científico. Suas lições são dirigidas especificamente aos doutrinadores, aos professores da matéria jurídica. 3

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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1 4 COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 4ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1.

Alexandre Ribeiro da Silva e Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira

Nesse sentido, de acordo com Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho,5 a Teoria Pura do Direito “pretende ser uma teoria do direito positivo em geral, e não de uma ordem jurídica em particular, eis, exatamente, por que ‘fornece uma teoria da interpretação’”. E, ainda, o direito não seria definido tão somente como sistema de normas, mas de normas jurídicas, apartando-se, portanto, outras ordens sociais, tais como a moral6. Aduz Kelsen7 que “ao definir o Direito como norma, na medida em que ele constitui o objeto de uma específica ciência jurídica, delimitamo-lo em face da natureza e, ao mesmo tempo, delimitamos a ciência jurídica em face da ciência natural”. Assim, o conhecimento jurídico para ser científico deveria ser neutro, ou seja, não emitir nenhum juízo de valor em relação à opção adotada pelo órgão competente para a construção da norma jurídica.8 O Direito, segundo Kelsen,9 seria uma “ordem” e um sistema de normas – cuja natureza é de dever-ser – cuja unidade é constituída pelo mesmo fundamento de validade, qual seja, a norma fundamental, da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. As normas de uma ordem jurídica seriam, outrossim, responsáveis por regular a conduta humana – ação ou omissão – desde que se trate de ordens sociais inerentes a povos civilizados.10 O Direito seria, ainda, uma ordem coativa, havendo uma reação contra condutas humanas indesejáveis e consideradas socialmente prejudiciais.11 Desse modo, o fundamento kelseniano de validade de uma norma apenas poderia ser a validade de uma outra norma, que seria figurativamente designada como superior. 12 A norma contida em uma premissa maior seria o fundamento de validade da norma designada na conclusão. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém apenas a premissa maior, que é uma proposição de dever-ser, é conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição de dever-ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão13. 5

COELHO, Nuno M. M. S.; ARANTES, Bruno Camilloto. O Fundamento do Direito na Teoria Pura do Direito. In: COELHO, Nuno M. M. S.; MELLO, Cleyson de Moraes (org). O Fundamento do Direito: estudos em homenagem ao professor Sebastião Trogo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 176. 6 COELHO. O Fundamento..., cit., p. 177. 7 KELSEN. Teoria..., cit., p. 42. 8 COELHO. Para..., cit., p. 2. 9 KELSEN. Teoria..., cit., p. 21. 10 KELSEN. Teoria..., cit., p. 22. 11 KELSEN. Teoria..., cit., p. 23. 12 KELSEN. Teoria..., cit., p. 135. 13 KELSEN. Teoria..., cit., p. 136.

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O Positivismo Legal de Hans Kelsen versus a Hermenêutica de Martin Heidegger: o Desvelamento do Direito Através do Dasein

Seria uma norma superior o fundamento de validade de outra norma tida como inferior. Nesse sentido, configurar-se-ia necessário haver uma norma mais elevada, uma vez que a investigação do fundamento de validade poderia perder-se no infinito. Cumpre salientar que, conforme Kelsen, “como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada”14. Daí a necessidade de uma norma fundamental, que seria pressuposta como mais elevada. E, ainda, “esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica”15. Por conseguinte, a norma fundamental de uma ordem jurídica não seria uma norma material que seja pressuposta como mais elevada, uma vez que as normas de uma ordem juridica deveriam ser postas, ou seja, positivas Destarte, a norma fundamental seria a instauração do fato fundamental da criação jurídica e o início do processo de criação do Direito positivo16. Ela própria [a norma fundamental] não é uma norma posta, posta pelo costume ou pelo ato de um órgão jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta, na medida em que a instância constituinte é considerada como a mais elevada autoridade e por isso não pode ser havida como recebendo o poder constituinte através de uma outra norma, posta por uma autoridade superior17.

Sendo assim, de acordo com Fábio Ulhoa Coelho18, a “Teoria Pura reputa válida qualquer ordem jurídica positiva e, em decorrência dessa concepção, afirma-se como positivismo”. Nesse diapasão, o fundamento de validade de uma norma pertencente a determinada ordem jurídica seria justamente sua produção conforme a norma fundamental, cuja descoberta não é livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente, no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um ato constituinte e dos atos postos de acordo com a Constituição por ele criada como seu sentido objetivo, quer dizer: como normas jurídicas objetivamente válidas. Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constituição inteiramente determinada, quer dizer, somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta Constituição concretamente determinada, é que podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objetivo, quer dizer, como normas jurídicas objetivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas19. 14

KELSEN. Teoria..., cit., p. 136. KELSEN. Teoria..., cit., p. 137. 16 KELSEN. Teoria..., cit., p. 139. 17 KELSEN. Teoria..., cit., p. 139. 18 COELHO. Para..., cit., p. 16. 19 KELSEN. Teoria..., cit., p. 141. 15

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Por conseguinte, Hans Kelsen estabelece uma estrutura escalonada da ordem jurídica na qual a Constituição aparece em seu ápice. A ordem jurídica, logo, não seria um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano e de caráter horizontal. Ao contrário, haveria uma verticalização das normas, ou seja, uma construção escalonada de distintos níveis de normas jurídicas na qual a norma fundamental seria o alicerce de validade constitutivo de unidade entre tais criações20.

A Visão Heideggeriana e a sua aplicação no direito Martin Heidegger, por sua vez, possui uma visão diversa à de Hans Kelsen. A filosofia hermenêutica heideggeriana serve de vetor para a discussão acerca da mudança de paradigma no universo jurídico e visa a construir um novo marco teórico atrelado aos fundamentos do Direito21. O entendimento de Heidegger é de que a interpretação de um texto jurídico não ocorre por meio de um processo orientado por regras, mas possui sua origem no Dasein (ser-aí)22. O conceito de Dasein é um constructo heideggeriano onde os elementos de totalidade (cuidado, cura, Sorge), revelação, significância, mundo, etc. vão receber destaque no processo de interpretação constitucional e compreensão do direito. Ora, é a partir da analítica existencial que a problemática fundamentação jurídica ganha significância, enquanto Auslegung (“como” hermenêutico), que é o locus de emergência da expressividade da linguagem do direito. É um lugar mais originário de desvelamento do direito. Daí que o direito é um acontecer23.

Neste sentido, Cleyson de Moraes Mello24 leciona que, para Heidegger, a norma jurídica não mais pode ser considerada um objeto de análise do intérprete e sim como um “como” hermenêutico lastreado pelos teoremas da diferença ontológica da circularidade hermenêutica. Ou seja, o ser deve estar conectado à essência do Direito. Dessa forma, resta claro que o conceito do direito não pode estar relacionado à ideia do que é, ou seja, um objeto (norma) do qual o intérprete (sujeito) pode ter uma noção reificada da coisa (a verdade no sentido de conformidade com o “dado”), mas senão um pensamento jurídico mais profundo e constitutivo do próprio ser-aí (estar-aí) do homem. Melhor dizendo: o conceito do direito deve ser buscado primordialmente a partir de 20

KELSEN. Teoria..., cit., p. 155. MELLO, Cleyson de Moraes. O fundamento do Direito em Heidegger. In: COELHO, Nuno M. M. S.; MELLO, Cleyson de Moraes (org). O fundamento do Direito: estudos em homenagem ao professor Sebastião Trogo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 164. 22 MELLO. O fundamento..., cit., p. 172. 23 MELLO. Direito..., cit., p. 27. 24 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011, p. 27. 21

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um novo modo de exercitar e compreender o próprio pensamento jurídico. O direito não pode ser pensado como “objeto”, mas sim a reflexão do direito deve possibilitar um pensamento que tome a sério o direito, convertendo-o na reflexão sobre a sua própria essência e sobre o modo em que ele tem de conceber-se e revelar-se. 25

Sendo assim, no entendimento heideggeriano, ser e fundamento estão entrelaçados: o ser é em seu imo o fundamento26. A compreensão é, portanto, ontologicamente fundamental e anterior à existência: o ser deve ser compreendido a partir do homem historicamente situado27. Por sua vez, o fundamento é sem fundo e abissal28. Conforme aduz Cleyson de Moraes Mello29, Heidegger defende a necessidade de desconstrução da metafísica ocidental e propõe a superação da filosofia transcendental de Kant, caminhando em direção a uma ontologia fundamental. Visa, portanto, ao estabelecimento de uma analítica existencial a fim de elucidar a estrutura prévia de sentido. Heidegger acredita, logo, que o ser do ser-aí, ou seja, o Dasein, possui sentido na temporalidade e a historicidade indica a constituição ontológica do “acontecer”30. O filósofo procura desconstruir a metafísica ocidental ao rever os conceitos da ontologia31. O entendimento do Direito a partir do ser-no-mundo torna-o um “poderser”, que seria uma abertura de possibilidades na compreensão de Heidegger do ser-aí. Esse poder-ser desvelado da ordem jurídica é a concepção do “ser-aí” como “estar aberto”, de modo a alcançar uma realidade e uma determinação próprias. Desse modo, é primordial analisar o sentido das coisas em referência algo e não tão somente avaliar as coisas em si32. Tal fato decorre de que a hermenêutica, em sua essência, é uma filosofia transcendental que pode ser aplicada no âmbito jurídico, não se tratando, por conseguinte, de método33. O Direito é intersubjetivo, já que a verdade do enunciado jurídico não detém a estrutura de concordância entre conhecimento e objeto ou uma adequação entre entes (sujeito-objeto)34. A verdade do conhecimento vigente na história da metafísica é a afirmação de verdades eternas, o que não condiz com 25

MELLO. Direito..., cit., p. 34. MELLO, Cleyson de Moraes. Hermenêutica e direito: a hermenêutica de Heidegger na (re) fundamentação do pensamento jurídico. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2006, p. 108. 27 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 118. 28 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 130. 29 MELLO. Direito..., cit., p. 24. 30 MELLO. Direito..., cit., p. 24. 31 MELLO. Direito..., cit., p. 25. 32 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à Filosofia do Direito, à Metodologia da Ciência do Direito e Hermenêutica contemporâneas. Um atuar dinâmico da Magistratura na perspectiva civil-constitucional: a (re)produção do Direito. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2008, p. 107. 33 MELLO. Introdução..., cit., p. 110. 34 MELLO. Direito..., cit., p. 62-63. 26

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o a Dasein heideggeriano, pois o ser-verdadeiro, que seria a verdade, deve ser compreendido no sentido de “ser-descobridor”35. Sendo assim, a hermenêutica de Heidegger, considerando o Dasein como ser-no-mundo, ao congregar o ser-em como condição precedente de todo o conhecimento, opõe-se ao conceito objetivista desse e suprime o esquema sujeitoobjeto no fenômeno da compreensão e, por conseguinte, o sujeito cognoscente não mais conhece o objeto em sua pura objetividade/instrumentalidade36. Consequentemente, o Direito não mais poderia ser entendido como uma ordem normativa isolada, cujo fundamento de validade seja encontrado em si mesmo e sim a partir de um pressuposto constitucional de caráter existencialista37. Nesse sentido, o conceito de Direito deve ser buscado através de um novo modo de compreender o pensamento jurídico. Dessa forma, resta claro que o conceito do direito não pode estar relacionado à ideia do que é, ou seja, um objeto (norma) do qual o intérprete (sujeito) pode ter uma noção reificada da coisa (a verdade no sentido de conformidade com o “dado”), mas senão um pensamento jurídico mais profundo e constitutivo do próprio ser-aí (estar-aí) do homem. Melhor dizendo: o conceito do direito deve ser buscado primordialmente a partir de um novo modo de exercitar e compreender o próprio pensamento jurídico. O direito não pode ser pensado como “objeto”, mas sim a reflexão do direito deve possibilitar um pensamento que tome a sério o direito, convertendo-o na reflexão sobre a sua própria essência e sobre o modo em que ele tem de conceber-se e revelar-se38.

O caso concreto deve ser, nesse sentido, ontologicamente analisado a partir da hermenêutica conectada ao ser-no-mundo, que é realizada através de uma précompreensão jurídica na qual o intérprete está inserido numa tradição histórica. O julgador, desse modo, apenas atingirá o significado dos entes partindo de um horizonte histórico, ou seja, de uma situação hermenêutica39. Portanto, Heidegger considera ser necessária a ontologia fundamental, que se coloca diante da questão sobre o sentido do ser em geral40. Cleyson de Moraes Mello ensina que: É dessa forma que a hermenêutica heideggeriana, pela qual o Dasein como ser-no-mundo, ao incorporar o ser-em como condição prévia de todo o conhecimento opõe-se ao conceito objetivista do conhecimento, suprimindo assim o esquema sujeito-objeto (o sujeito cognoscente conhece o objeto na sua pura objetividade) no fenômeno da compreensão41. 35

MELLO. Direito..., cit., p. 82. MELLO. Introdução..., cit., p. 110. 37 MELLO. Direito..., cit., p. 93. 38 MELLO. Direito..., cit., p. 34. 39 MELLO. Direito..., cit., p. 101. 40 MELLO. Introdução..., cit., p. 104. 41 MELLO. Introdução..., cit., p. 110. 36

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O magistrado, assim, está inserido em um círculo hermenêutico e o pensamento jurídico se encontra em harmonia com um sistema aberto, já que a fundamentação do Direito é abissal e sua determinação relaciona-se à abertura de possibilidades42. Por conseguinte, o operador do Direito que não se inserir na situação hermenêutica do Dasein não verá suficientemente e supervalorizará o direito positivo legalista. Possuir tais horizontes, portanto, não significa que o julgador estará imerso no subjetivismo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao direito positivo, ao texto da lei, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar as mutações sociais, os novos valores, vê e dialoga com as dimensões culturais, sociais e históricas de seu tempo. Caso contrário, o intérprete estará sujeito a mal-entendidos43.

Destarte, o Direito não é, ele é sendo, uma vez que sua compreensão é uma condição de possibilidades e sua realização é um eterno processo de construção hermenêutica44. A hermenêutica com viés da ontologia fundamental, desse modo, almeja interrogar o ser por meio da historicidade e da temporalidade do ser-aí, sendo contrária à tradição transcentalista e subjetivista da metafísica ocidental45.

O positivismo Kelseniano e a Hermenêutica Heideggeriana Conforme anteriormente exposto, Hans Kelsen concebe o Direito como uma ordem normativa cujo fundamento de validade repousa na norma fundamental pressuposta. Por conseguinte, uma norma jurídica não é válida devido a um determinado conteúdo e sim por ter sido criada de forma determinada pela norma fundamental supracitada. Segundo Cleyson de Moraes Mello, Daí que a fundamentação de validade de uma norma positiva que prescreve uma conduta é realizada por intermédio de um processo silogístico. Nesse silogismo a premissa maior é a norma objetivamente válida que deve-se obedecer face ao sentido subjetivo dos atos de comando de determinada pessoa; a premissa menor é o fato de que se deve comportar de acordo com o comando dado; e a conclusão, a afirmação de validade da norma46.

42

MELLO. Introdução..., cit., p. 110-111. MELLO. Introdução..., cit., p. 111. 44 MELLO. Direito..., cit., p. 38. 45 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 120. 46 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 128. 43

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O fundamento de validade de uma norma relaciona-se à afirmação de que esta norma foi produzida de acordo com a norma fundamental e, portanto, a norma fundamental de Kelsen é um pressuposto lógico-transcendental47. De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, A validade da norma jurídica, em Kelsen, depende, inicialmente, de sua relação com a norma fundamental. Ou, por outra, é função da manifestação de vontade de uma autoridade competente. Como as normas jurídicas, pela descrição realizada em proposições, integram um sistema essencialmente dinâmico, o seu conteúdo é irrelevante para a definição da validade48.

Outrossim, segundo Hans Kelsen49, a norma funcionaria como esquema de interpretação, ou seja, a norma receberia significação jurídica por meio de outra norma. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma50.

Para o pensamento kelseniano, a norma é um dever-ser, enquanto que o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. 51 Heidegger, por sua vez, considera que o Direito não é, pois ele é sendo. O fenômeno jurídico está, outrossim, lastreado no devir, ou seja, aquilo que está por vir52. É necessário situarmos num ponto de vista que permita ver o direito como um devir (o direito em movimento). Ver o direito a partir de sua historicidade não significa apoderar-se de conceitos abstratos e totalitários da ordem jurídica, mas significa ver o direito a partir de um fundamento originário e que nunca se resolve no comando da regra juridica. Ao contrário, podemos dizer que o direito desvela-se no que é, mas como movimento, como um proceder de, como um projetar-se. De toda sorte, temos de perguntar-nos se é possível, e como se define, um pensamento jurídico que vá mais além do direito positivo, isto é, se é possível uma autêntica compreensão do direito53. 47

MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 127-128. COELHO. Para..., cit., p. 29. 49 KELSEN. Teoria..., cit., p. 3. 50 KELSEN. Teoria..., cit., p. 3. 51 KELSEN. Teoria..., cit., p. 4. 52 MELLO. Direito..., cit., p. 32. 53 MELLO. Direito..., cit., p. 33. 48

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Fábio Ulhoa Coelho54, a particularidade da hermenêutica de Kelsen revelase na afirmação da pluralidade de significações cientificamente concernentes a cada norma jurídica. Rejeita-se, com firmeza, a possibilidade de a ciência encontrar o sentido único da interpretanda. (...) Todas as significações reunidas na moldura relativa à norma têm rigorosamente igual valor para a ciência jurídica. Quando o órgão aplicador do direito opta por atribuir à norma interpretanda uma das significações emolduradas não realiza ato de conhecimento, mas manifesta sua vontade55.

A dogmática jurídica, não obstante, tende a reproduzir, através do positivismo jurídico, uma forma objetificadora que parte de uma racionalidade entificadora quando almeja a validação de um discurso jurídico56. Contudo, a Filosofia hodiernamente orienta a esfera jurídica em relação aos limites e fundamentos do Direito. Não é mais cabível, igualmente, um pensamento orientado na relação sujeito-objeto. Trata-se do “compromisso com o outro, não focado apenas na norma, mas sim no homem e sua relação de vivência com o mundo, histórico-temporalmente situado”57. Ou seja, o Direito não mais pode ser pensando como um “objeto”, devendo haver uma reflexão acerca de sua própria essência e sobre o modo no qual ele se concebe e se revela58. Por sua vez, a hermenêutica de Heidegger aduz que a interpretação jurídica tem origem no Dasein. Na filosofia heideggeriana o sentido do ser conecta-se à questão do ser-no-mundo. Ou seja, o homem é o próprio Dasein e, antes de qualquer teorização, possui um caráter ontológico59. Portanto, ao pensamento do direito formal deve-se opor o pensamento hermenêutico heideggeriano. Construir um direito alinhado a uma hermenêutica é dar um salto para além do direito formal, na direção de uma alteridade radical e profunda. Assim, o pensamento hermenêutico é o único que realmente vê o direito como um projetar-se. É o único que pode satisfazer a exigência da alteridade, do respeito ao outro60.

O direito, logo, não pode ser considerado como algo que é, já que é um deixar-ver, ou seja, é desvelado e se realiza com o Dasein. Ao contrário, “o direito inautêntico é construído como algo absolutamente certo e seguro e não a partir de sua essência ou questão do ser”61. 54

COELHO. Para..., cit., p. 59. COELHO. Para..., cit., p. 59. 56 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 129. 57 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 125. 58 MELLO. Direito..., p. 34. 59 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 137. 60 MELLO. Direito..., cit., p. 37. 61 MELLO. Direito..., cit., p. 37. 55

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Neste sentido, a ciência jurídica não deve se atrelar ao pensamento científiconatural, tal como foi proposto por Kelsen. Ao contrário, deve “encaminhar-se em direção a um pensar filosófico, um pensar dissociado da história da metafísica ocidental que é a história do esquecimento do ser”62. Não se pode olvidar, assim, que pensar era equivalente a instrumentalizar/entificar/objetificar algo e que a lógica formal consagrada na teoria kelseniana limita a axiologia. Por conseguinte, diferentemente da hermenêutica heideggeriana, a pretensão de construir um sistema científico ou filosófico dotado de neutralidade é o sonho positivista63. Melhor dizendo: a disposição essencial do direito não subsiste mais na análise da regra (“nela mesma”), mas somente na descoberta do “como hermenêutico” do direito. Poder-se-ia pensar que o direito é descritivo, mas nunca se pode dizer o direito senão quando este efetivamente se realiza através da experiência jurídica. Em verdade, o direito precisa ser em todo o caso compreendido como “algo para...” quando o realizamos. O seu caráter essencial é desvelado justamente em meio a sua compreensão e aplicação. Busca-se, portanto, o que essencialmente o direito é. Pensado a partir do “como” hermenêutico, o direito não se encontra presente naquilo que ele é (enunciados e modelos normativos), mas a sua essência é aquilo que é, sendo64.

Heidegger superou a relação sujeito-objeto através da Aletheia, do desvelamento, que é o coração da fenomenologia heideggeriana. Ou seja, “a manifestação do ser dentro da diferença ontológica é o ponto nodal da fenomenologia de Heidegger”65. O Dasein, outrossim, possibilitou que Heidegger ultrapassasse a ontologia da coisa, ensinando-nos a pensar a partir do próprio ser, com a consequente suplantação do subjetivismo e do objetivismo inerentes à metafísica ocidental66. Destarte, por meio da analítica existencial, será possível determinar a esfera originária na ciência jurídica a partir da “essência do homem”. Heidegger proporcionou, outrossim, a “humanização do Direito”67.

Conclusão A obra de Hans Kelsen foi de suma importância para o entendimento do Direito como uma ciência. Através de sua Teoria Pura do Direito, o jusfilósofo propôs o que denominou de princípio da pureza, no qual a norma deveria ser a premissa do método e do objeto da ciência jurídica. Por sua vez, a Teoria da Norma Fundamental kelseniana aduz ser a norma fundamental o próprio fundamento da ordem jurídica e, assim, qualquer norma somente seria considerada legítima caso estivesse em conformidade com aquela. Não se pode olvidar, ainda, que 62

MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 140. MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 142. 64 MELLO. Direito..., cit., p. 37-38. 65 MELLO. Direito..., cit., p. 48. 66 MELLO. Direito..., cit., p. 34. 67 MELLO. Hermenêutica..., cit., p. 169. 63

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Hans Kelsen foi um forte entusiasta da neutralidade científica, defendendo a separação entre o Direito e os demais ramos de conhecimento humano. Ou seja, na perspectiva kelseniana, ao Direito não caberia fazer julgamentos morais ou avaliações políticas. Por conseguinte, a ciência jurídica, para Kelsen, é encarada como a própria norma jurídica. Ao contrário, a hermenêutica heideggeriana relaciona-se à compreensão do ser-no-mundo ou Dasein e visa a descobrir o Direito em sua verdade. Outrossim, Heidegger almeja desvelar a essência da ciência jurídica, que não poderia ser coisificada. Visa-se, ainda, à desconstrução da metafísica ocidental com o objetivo de incutir uma analítica existencial que acarretaria a explicação da estrutura prévia do sentido. Assim, por meio da analítica existencial, Heidegger relaciona o Direito ao Dasein, ou seja, o ser deve estar conectado à essência e não se encontrar instrumentalizado. Destarte, a ciência jurídica “é sendo” e está baseada no devir, com o Direito em movimento. E, ainda, não deve o Direito ser visto por meio de um processo lógico-dedutivo e sim através da ontologia. Heidegger compreende, portanto, que o Direito deve ser desvelado, não se limitando a um Direito formal, mas baseando-se no Dasein, no ser-no-mundo. Hodiernamente o Direito ainda enclausura-se na ilusão da segurança jurídica por meio de um sistema fechado que seria à prova de quaisquer mudanças no seio social. O positivismo enaltece tal entendimento, já que nele a fundamentação jurídica relaciona-se às conclusões alcançadas por meio do silogismo, tal como sugere Kelsen. Nesse sentido, a busca pela segurança jurídica nos mais diversos ramos do Direito obscurece a genuína essência do mesmo, desconsiderando o Dasein tão propagado por Heidegger em prol de uma força normativa kelsensiana. A mudança de paradigma heideggeriana, transmutando a metafísica ocidental mediante o método fenomenológico hermenêutico, acarretou a ontologia fundamental. Salienta-se que a metafísica ocidental, por meio da redução transcendental, permite que através da subjetividade se construa a objetividade de todos os objetos. E, desse modo, Heidegger, contrário à redução transcendental da metafísica ocidental, vislumbrou a finitude do ser-aí, não mais coisificando o próprio ser, mas entendendo-o por meio da Alethéia, desvelando-o. Sendo assim, um sistema jurídico axiologicamente neutro e que desconsidera a temporalidade e a historicidade, como propõe Kelsen, não é cabível. A subserviência às normas não desvela o Direito autêntico e nem mesmo a sua essência. Há, desse modo, uma ciência jurídica enferma e alienada, com uma visão extremamente objetivista e que não considera a faticidade do ser-aí. Destarte, sem a aplicação e a perpetuação da hermenêutica heideggeriana no Direito pátrio, poder-se-á vislumbrar a falência da própria ciência jurídica, que acabaria por se transformar em um mero amálgama de regras.

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Referências bibliográficas COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 4ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001. COELHO, Nuno M. M. S.; ARANTES, Bruno Camilloto. O Fundamento do Direito na Teoria Pura do Direito. In: COELHO, Nuno M. M. S.; MELLO, Cleyson de Moraes (org). O Fundamento do Direito: estudos em homenagem ao professor Sebastião Trogo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 164-175. DALBERIO, Osvaldo; DALBERIO, Maria Célia Borges. Metodologia Científica: desafios e caminhos. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2011. FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas técnicas para o trabalho científico: explicitação das normas da ABNT. 17ª ed. Porto Alegre: Dáctilo Plus, 2013. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. ______. Hermenêutica e direito: a hermenêutica de Heidegger na (re) fundamentação do pensamento jurídico. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2006. ______. Introdução à Filosofia do Direito, à Metodologia da Ciência do Direito e Hermenêutica contemporâneas. Um atuar dinâmico da Magistratura na perspectiva civil-constitucional: a (re) produção do Direito. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2008. ______. O fundamento do Direito em Heidegger. In: COELHO, Nuno M. M. S.; MELLO, Cleyson de Moraes (org). O fundamento do Direito: estudos em homenagem ao professor Sebastião Trogo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008: p. 164-175. STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. Disponível em: . Acesso em: 1º. nov. 2013.

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O Ecletismo Constitucional e os Limites Morais do Mercado – o Confronto entre a Dignidade da Pessoa Humana e a Ideologia do Capital José Flávio Barroso Madaleno1 Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar o confronto decorrente entre as ideologias coexistentes em nosso sistema constitucional brasileiro, o qual incita, concomitantemente, a presença de aspirações socialistas e capitalistas, aparentemente contraditórias, compondo o cenário de uma Constituição Eclética. A partir desse aparente conflito ideológico, agravado pelas pressões do mercado na busca de interesses solipsistas e de cunho privado, encontra-se a necessidade de concretização dos direitos sociais que, somente após a sua respectiva efetivação, viabilizam o cumprimento da máxima do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento axiológico norteador do ordenamento jurídico pátrio. Nesse diapasão, aparece a concepção de mínimo existencial, reconhecido com status de direito fundamental, trazendo à baila a necessidade de se estabelecer limites morais ao mercado para que não se resuma a dignidade da pessoa humana a princípio utópico, esvaziado de conteúdo. Palavras-chave: Princípio da dignidade da pessoa humana; mínimo existencial; direitos sociais; ecletismo constitucional; capitalismo. Abstract This article aims to examine the confrontation arising between coexisting ideologies in our Brazilian constitutional system, which encourages the same time the presence of socialist aspirations and capitalists, seemingly contradictory, composing the scene of Eclectic Constitution. From this apparent ideological conflict, exacerbated by market pressures in search solipsistic interests and private nature, is the need for realization of social rights, only after their execution, enable compliance with the maximum of the principle of dignity the human person, guiding axiological foundation of the Brazilian legal system.In this vein, appears the concept of existential minimum, recognized as a fundamental right status, bringing up the need to establish moral limits to the market so as not to summarize the dignity of the human person utopian principle, without substance. Keywords: Principle of human dignity; existential minimum social rights; constitutional eclecticism; capitalism. 1

Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Direito pela Faculdade Doctum de Manhuaçu e advogado.

O Ecletismo Constitucional e os Limites Morais do Mercado – o Confronto entre a Dignidade da Pessoa Humana e a Ideologia do Capital

Introdução O presente ensaio tem por objetivo analisar o enfrentamento da manutenção da dignidade humana frente ao capitalismo. Para tal se faz necessário passar pela definição e estudo da natureza de pessoa, trazendo a debate os diversos entendimentos que esse complexo tema traz. A análise demonstrará que se trata de um conceito muito dinâmico, e este não nasceu técnico, jurídico, ele foi construído ao longo da história2. Assim também o é a dignidade da pessoa humana. De extrema relevância para o assunto em debate, será necessário buscar o seu conceito nas diferentes ideologias. Perceberá que seu nascedouro se deu em um momento histórico em que a humanidade se sentiu ameaçada em virtude das barbáries que o homem cometia contra o próprio homem3. A questão se faz de suma importância, uma vez que ao construir ao longo de anos esse benefício protetor para nossa vivência social e até mesmo pela sobrevivência humana, perceberá que hoje muitos operadores jurídicos não evoluíram ao longo dos tempos e mantém o resquício de invocar salutar princípio, sem a importância que se deve ao mesmo, desvalorizando-o. E, hoje, com o avanço nas relações comerciais, com o capitalismo assumindo força no cenário mundial, o que se percebe é que se está a utilizá-lo, em alguns momentos, com um instrumento de comercialização e, em outros, com retaliação ao próprio capitalismo, o que seria bom para colocá-lo sempre em evidência, mas por outro lado, ruinoso para utilizá-lo para todo e qualquer aspecto da vida cotidiana, banalizando-o.

A formação do conceito de pessoa – a natureza do homem O que é a pessoa? Esta é sem dúvida um dos questionamentos em que em sua simplicidade traz uma das mais complexas e instigantes perseguições de respostas ainda em formação desde os primórdios. Embora não se estará a discutir dogmas religiosos, certamente, não poderá passar por um debate nessa seara sem trazer à baila a temática, uma vez que o conceito jurídico não nasceu técnico, mas o passa a ser em determinado momento histórico, uma vez que foi criado ao longo do tempo com raízes filosóficas, éticas e teológicas, seu berço, que muito contribuiu para os pensamentos de hoje4. 2

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STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna o que quiser. 2010, p. 27. 3 COSTA, Judith Martins. Pessoa, personalidade e dignidade (ensaio de uma qualificação). 2003, p. 148. 4 MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. Conceito Analógico de Pessoa Aplicado à Personalidade Jurídica. Revista da Faculdade de Direito {da UFMG}, Belo Horizonte, a. IV, out., 1954, p. 55.

José Flávio Barroso Madaleno

Não se pode olvidar que as diferentes visões da natureza humana leva a diferentes conclusões sobre como se deve agir. Assim, para o cristianismo,em que o homem é fruto da criação divina, então deve-se submeter as leis de Deus e fazer Sua vontade, eis que esta define o que o homem deve ser, e se assim o fizer será ajudado5. De uma forma antitética, Marx, que nega a existência de Deus, defendia que “as religiões, em geral, são um protesto contra a vida insatisfatória que é dada aos homens. Porém a religião é uma ideologia impotente para orientar, na prática, a luta pela transformação do mundo, a luta pela superação das instituições baseadas na propriedade privada. Por isso, as religiões funcionam como o ópio do povo, pregando o conformismo e a resignação.”6, o que se percebe claramente que para este pensador o homem é um produto da sociedade humana em que vive. Seguindo esse entendimento marxista, se a vida em sociedade não é satisfatória, então ela deverá ser transformada para objetivar melhora na condição da existência. O que não se pode negar, é o ponto comum de ambos, em que parte de suas concepções sobre o universo tem suas crenças sobre a natureza da História. Aqui deve-se mencionar uma importante observação:essas correntes acreditam que a direção será diferente no tempo e também há um entendimento divergente quanto a natureza da força evolutiva. Extrai-se que crenças conflitantes sobre o propósito e a natureza humana estão frequentemente encaradas em diversas formas de vida, em sistemas políticos e econômicos, e na teoria da prática educacional. A prescrição das soluções depende do diagnóstico das causas básicas. O cristianismo e o marxismo dão respostas completamente diferentes para os males da vida humana. O cristão acredita que somente o poder de Deus pode salvar o homem do pecado. A sociedade não será verdadeiramente redimida até que os indivíduos não aceite o perdão divino. De forma antitética o marxismo preconiza que não pode haver uma mudança real no indivíduo, enquanto não houver uma mudança radical na sociedade. Não se está a proporcionar juízo de valores, excluir ou incluir qualquer pensamento, ao contrário, estar-se a demonstrar a extrema importância que todos os ramos deram na construção ao conceito do tema perseguido, embora contraditórios na maioria de suas visões. Um ponto importante a mencionar que há muitas outras visões a respeito dapessoa. É notório, por exemplo, as teorias dos antigos gregos, especialmente dos grandes filósofos Platão e Aristóteles, a influenciar os pensamentos contemporâneos. Assim também a teoria evolutiva de Darwin e as especulações da psicanálise de Freud vêm mudando constantemente a 5

STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.47. 6 KONDER, Leandro. Marx Vida e Obra. São Paulo: Paz e Terra, 1.999, p. 30.

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concepção que o homem tem de si. Não se pode dispensar que a filosofia moderna, a psicologia e a sociologia continuam a fornecer outras teorias a respeito da natureza humana7. É relevante, nesse momento do estudo, fazer uma separação entre teorias e ideologias. Um conjunto de crenças sobre a natureza do homem, compartilhado por um grupo de pessoas e que molde a sua forma de vida, é tradicionalmente chamado de ideologia. Nesse sentido o cristianismo e o marxismo são, sem margem de dúvidas, concepções ideológicas. Entende-se nesse estudo, com o supramencionado, que uma ideologia é mais que uma teoria. Mas, no que concerne a importância, não se pode se haver diferenciação, ou qualquer forma de comparação, uma vez que no caso em tela, a ideologia se baseia numa teoria da natureza humana, que de alguma maneira aponta para um certo tipo de ação. Dessa feita, uma necessariamente depende da outra, não podendo fazer diferenciação valorativa. Não se está aqui enveredar por caminhos somente filosóficos, ao contrário, não se tem como buscar uma conceituação em um tema tão complexo sem se valer da interdisciplinaridade. As ciências empíricas tem muito a contribuir nessas questões, uma vez que a natureza humana é um tópico que rompe os limites entre as ciências físicas e sociais, e até mesmo em última instância, entre as ciências e humanidade. Nesse sentido é que Edgar de Godoi da Matta Machado alerta a instabilidade do tema, onde até os dias atuais está empenhado nessa busca incessante da origem e uma completa e exata definição, adentrando não somente em áreas filosóficas da ontologia e metafísica8. Uma questão de suma importância que não pode deixar de ser suscitada no trabalho em questão é sobre a transcendência humana, que para muitos é o ponto que eleva o homem a condição de ser superior9. Surge na Idade Média a ideia de que a relevância do homem era a sua alma, visto que ao corpo não era dado importância. O foco, nessa época, era a salvação da alma. A dignidade era o fato de o ser humano possuir a essência divina e ter essa capacidade de ligação com Deus. Seguindo esses ideais Kant busca se enveredar pelos caminhos da metafísica e afirma a existência de um Deus, fato importante na busca da conceituação almejada. Mas de suma relevância ressaltar que para esse pensador, não haveria milagre, e sim a afirmação do Ser Superior nas leis da natureza10. 7

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MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. Conceito Analógico de Pessoa Aplicado à Personalidade Jurídica. Revista da Faculdade de Direito {da UFMG}, Belo Horizonte, a. IV, out., 1954, p. 57. 8 MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. Conceito Analógico de Pessoa Aplicado à Personalidade Jurídica. Revista da Faculdade de Direito {da UFMG}, Belo Horizonte, a. IV, out., 1954, p. 55. 9 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 41. 10 ROVICHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna da revolução científica a Hegel. Tradução Marcos Bagno e Silvana Cobucci Leite. Edições Loyola. São Paulo, 1999, p. 545.

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Kant, após inúmeras críticas pelo acima exposto, responde as críticas sofrida com a obra Crítica da razão prática, mas limitou a uma resposta dirigida somente contra a sua Fundamentação da metafísica dos costumes11. Para o pensador, e depois para vários seguidores, elevava o homem a condição de ser superior às demais vidas existentes no planeta. Existe porém, em contraposição ao dualismo mencionado, o materialismo. O homem é feito só de matéria, ou a sua consciência é necessariamente não material em sua natureza? São questões que, ao longo da sua existência, contribuíram para diminuir a divergência acerca do tema, mesmo nas diferentes teses. Aliás, é de grande valia ressaltar que uma ideologia não se contrapõe a outra em sua totalidade, inclusive nesse aspecto se pode exemplificar invocando Marx que era materialista na sua abordagem geral da História e da sociedade, mas, provavelmente, não o era na questão da relação entre a mente e o corpo. Outro ponto central do estudo e que não pode ser afastado na busca sobre a conceituação da natureza humana é a o tópico da natureza dos valores morais. O cristianismo diz que os valores morais são em última instância dados por Deus; Marx os atribuem às diversas pressões sociais. Essas discordâncias são fundamentais na busca da construção de um conceito acertado. É de fácil entendimento que o conceito de pessoa é uma busca constante de todas as ciências. Um tema aparentemente simples, na verdade está a intrigar os estudiosos mais dedicados, pela sua complexidade. Para abreviar e operacionalizar o Direito, influenciado no que determinou a criação das pandectas12, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1º trouxe a definição de que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”13. Importante salientar que tal teoria veio trazido no Código Civil de 1916, influenciada pelas ideias de Savigny14. Começa então a filosofia a pensar o homem com natureza universal e não mais cada um em seu papel e como era visto pelos romanos, que por serem politeístas consideravam cada ser humano em separado, de forma individual.A natureza universal veio trazida pela religião e foi direcionada ao Direito com a analogia de que todo homem é imagem e semelhança de Deus então há para todos uma liberdade e uma igualdade, esse pensamento teve sua transposição jurídica15. 11

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução, introdução e notas de Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. XI. 12 Compilações das decisões dos antigos jurisconsultos, as quais Justiniano converteu e lei. Posteriormente, mais tarde, esses leis foram incorporadas no ocidente (Alemanha, França e Itália) com uma roupagem de pessoa como universal. 13 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Crítica ao Personalismo Ético da Constituição da República e do Código Civil. Em Favor de uma Ética Biocêntrica. São Paulo: Quartier Latim do Brasil, 2008, p.20. 14 COSTA, Judith Martins. Pessoa, personalidade e dignidade (ensaio de uma qualificação). 2003, p. 65. 15 Idem, p. 58

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Introduz-se o conceito de capacidade da pessoa, que se dá assim que ocorre o nascimento. Condiciona-se, agora,a pessoa pela sua capacidade. Savigny, que já garantiu o direito do nascituro, atribuindo àquele que nascesse com vida o direito de herança, influenciou o direito brasileiro16. É importante trazer ao debate essa questão, pois se está a querer separar o que há muito se confunde, e esta, é trazidaaté os dias atuais em muitas doutrinas como sinônimos, igualando pessoa humana, personalidade e dignidade da pessoa humana. Desse ponto verifica-se até mesmo uma aplicação equivocada pelo judiciário desses conceitos. Muitas vezes se aplica um pelo outro. Vale lembrar que os direitos da personalidade, hodiernamente, não se encontra expresso somente no Código Civil. Tal, com tamanha relevância e pertinência, foi elevado à categoria constitucional. Afasta-se, assim, o critério de diferenciação formal17. Não se quer com isso, conforme é a lição de Judith Martins Costa citando Gustavo Tepedino aceitar a tese da “constitucionalização do Direito Civil”18. Há uma estreita ligação do tema em debate, uma vez que o mesmo foi reconhecido como tema constitucional, tamanha importância. O que se percebe na doutrina civilista atual é uma ligação direta e dependente dos direitos da personalidade com os direitos subjetivos, assim podemos citar por exemplo o conceito de Maria Helena Diniz, que assim expõe:“o direito da personalidade é o direito da pessoa de defender o que lhe é próprio, como a vida, a identidade, a liberdade, a imagem, a privacidade, a honra etc.” ou ainda, “é o direito subjetivo, de exigir um comportamento negativo de todos, protegendo um bem próprio, valendo-se de ação judicial”19 Levando-se em consideração o conceito acima citado, importante ressaltar que entendimento acertado é aquele que não basta esse ligação do direito da personalidade com a subjetividade para levar a promoção e a proteção da pessoa humana, nesse sentido Maria Celina Bodin de Morais traz a ampliação necessária em seu conceito: É facilmente contestável que a personalidade humana não se realiza através de um esquema fixo de situação jurídica subjetiva – o direito subjetivo -, mas sim por meio de uma complexidade de situações subjetivas, que podem se apresentar ora como poder jurídico, ora como direito potestativo ou como autoridade parental, interesse legítimo, faculdade, estado – enfim, qualquer acontecimento ou circunstância (rectius, situação) juridicamente relevante.20 16

Idem, p. 68. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, p. 68. 18 Judith Martins Costa apud Gustavo Tepedino. Personalidade, pessoa e dignidade, p. 6. 19 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, pp. 121-122. 20 MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos da personalidade. pp. 4-5. 17

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Factível o entendimento que está inserindo algo com uma amplitude maior que tão somente levar para seu conceito o direito subjetivo para defini-lo. Esgotada a discussão passaremos ao ponto sobre o entendimento de pessoa humana. Importante mencionar que ao tratar desse conceito não se pode trazer em linha tênue com o conceito de indivíduo21. O conceito de pessoa humana leva em consideração a dignidade, a alteridade, a personalidade, mas é relevante separá-los. Há um inter-relação entre eles, mas não se confundem. Para Judith Martins-Costa o conceito de pessoa humana deve ser visto como valor-fonte22. Com entendimento nesse sentido Brunello Stancioli, ao mencionar que “ser pessoa significa ser um fluxo de valores em eterna mudança”, sendo também para o doutrinador um “feixe de valores”23. A pessoa humana tem sua jurisdicialização formada na autonomia, alteridade e dignidade. Assim, passa-se a uma melhor explanação: a autonomia é a liberdade de que cada indivíduo tem de fazer suas próprias escolhas e tais devem ser reconhecidas pelos outros, trazendo uma ideia de igualdade; a alteridade está no fato de que essas escolhas, ao serem reconhecidas, face aos outros e, por fim, a dignidade que traz a noção de vida boa24. Ao estudar a pessoa humana deve-se levar em consideração a capacidade de renúncia. Podendo escolher para si, subjetivamente, o que melhor lhe aprouver para se ter uma vida vivida nos moldes de ser bem aproveitada, levando-se em consideração a personalidade de cada pessoa. A pessoa é definida a partir de certos valores que foram formados ao longo da história e não são inatos e nem naturais. Por isso, honra, integridade física são valores que com o tempo se associaram ao conceito de pessoa humana. Todos os seres humanos são dotados de valores que os constitui e cada um tem os seus próprios, que o singulariza. Mas conforme demonstrado, pessoa não se confunde com personalidade. Aquela é tutelada muito além do direito da personalidade, mas esta faz parte do seu conceito. Isso posto, nota-se que não se tem um conceito definitivo de pessoa humana, até porque, tal vai evoluindo de acordo com a História da humanidade, haja visto não ser um conceito estático. Deve-se levar sempre em conta na sua construção valores relativos à dignidade, personalidade, universalidade na qual se insere, autonomia.

21

STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.17. 22 COSTA, Judith Martins. Pessoa, personalidade e dignidade (ensaio de uma qualificação), 2003, p. 158. 23 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, pp. 123-125. 24 Idem, p. 124.

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Pessoa humana e os direitos fundamentais Visto os elementos que constituem o conceito de pessoa humana, passase a correlaciona-los com os direitos fundamentais, uma vez que no âmbito constitucional, foi elevado a essa categoria. Reforça-se que a pretensão é fazer um elo forte entre esses dois ramos do Direito, quais sejam: Civil e Constitucional, e, não uma subsunção de um sobre o outro. Não há uma sobreposição de um sobre o outro. A percepção dessa relação para formação do conceito de pessoa foi imprescindível para os avanços no pensamento, visto que o que se tinha não era mais comportado pela sociedade. Ao se estudar os direitos Fundamentas, não se pode fazê-lo, sem uma conceituação, uma vez se tratar de um tema de enorme complexidade. Nesse sentido George Marmelstein: (...) os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico.25

É notório que os elementos que formam o conceito de pessoa estudados no capítulo anterior se encontram na definição de direitos fundamentais. Ao se estudar o conceito de pessoa humana, deve necessariamente mencionar a sua dignidade, em autonomia, que para tal necessita da limitação dos poderes do Estado. Antes tem-se por importante ressaltar que direitos fundamentais não se confundem com direitos da personalidade26. Este um dos componentes do conceito de pessoa, aquele uma proteção dada como valoração dapessoa humana, impotente contra o poderoso Estado. Segundo menciona George Marmelstein em seu livro Evolução Histórica dos Direitos Fundamentais, a Magna Carta de João Sem-Terra, de 1215, é, para muitos, um documento precursor dos direitos fundamentais, uma vez que já trazia expressamente várias cláusulas de liberdade, que hoje são tidos como direitos fundamentais. O mencionado autor traz para exemplificação o princípio da legalidade e da irretroatividade das leis. Os direitos fundamentais surgiram em uma contraposição ferrenha às limitações dos poderes do Estado, concedendo ao indivíduo o uso e o gozo em grau máximo de sua liberdade e de sua autonomia. Assim, pode-se dizer que eles surgem como um manto protetor da pessoa e contra as intervenções estatais na vida privada e contra o abuso de poder. 25 26

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MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas 2009, p. 20 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.6.

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Em uma relação aos atuais direitos fundamentais, estão as obras de Maquiavel27 e Hobbes28 que afirmam veemente o Estado Absolutista, entregando poderes sem limitações ao governante. Essas ideologia acompanharam os governantes em seus modelos políticos ocidentais até o século XVIII. O estudo apresentado parece contraditório. Se se estar a estudar direitos fundamentais, qual é a relação existente entre estes e o absolutismo pregados por Hobbes e Maquieavel? Foi justamente devido aos abusos do Estado, de os governantes o utilizarem acima das leis é que se percebe a necessidade de limitar o Poder do Estado Soberano. Inclusive na lição de George Marmelstein, o reconhecimento dos direitos fundamentais está no surgimento do Estado Democrático de Direito29. Precursor da separação dos poderes, Locke afirmava que as leis não deveriam se ditadas, e sim convencionadas entre as comunidades que se formavam e o governante. E nesse sentido Montesquieu defendia ser temerário a concentração de poderes em um mesmo órgão, pois daí poderia surgir a tirania. A separação de poderes – fundamento do Estado Democrático de Direito – é uma técnica que caminha paralelamente com os direitos fundamentais. De fato, nota-se na Lei Mater que o sistema de freio e contrapesos é essencial para assegurar a limitação do poder e, consequentemente, garantir a efetividade dos direitos fundamentais. Esse avanço se deu no início do século XVIII e hoje está presente em todas as constituições modernas que reservam um capítulo para preconizar o direito da pessoa, direito este que faz parte de um dos pilares, como valores, para construção do conceito de pessoa. Cumpre ressaltar que grande equívoco ocorre quando se pensa ser esse um conceito de direito estático. Ao contrário, os direitos fundamentais são construídos através da história e do avanço social e cultural da humanidade. Basta-se notar que já foi direito fundamental no Brasil pólvora para mosquetes, para proteção da própria vida, o que seria impensado nos dias atuais a liberação sequer do uso de arma sem a tutela autorizativa do Estado. Os direitos fundamentais vem se consolidando e acompanhando a evolução da pessoa humana e sua sociedade, pois como ensina George Marmelstein, a razão para isso é “a crença de que a dignidade da pessoa 27

Para Nicolau Maquiavel, em sua obra denominada O Príncipe, o governante deveria fazer o possível para se manter no poder, e seus atos eram chancelados pela lei ou pela força, caso a primeira não fosse possível. 28 Hobbes entendia que o homem tinha um instinto perverso e que seria capaz de entrar em guerra com seu semelhante para adquirir o poder. Em sua obra mais famosa, O Leviatã, remetendo ao conto bíblico em que este seria um monstro marinho que somente Deus seria capaz de derrotá-lo, faz apologia ao Estado, pois para ele, se não existisse uma autoridade controladora capaz de conduzir a sociedade, não haveria paz interna. E assim o soberano deveria possuir um poder absoluto, sem qualquer limitação jurídica ou política, capaz de manter a paz e ordem interna. 29 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas 2009, p. 36.

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humana é um valor que deve legitimar, fundamentar e orientar todo e qualquer exercício do poder.”30 No Brasil, tal ato se dá com a Constituição Federal de 1988, que rompe com o passado assombroso da ditatura militar e instaura o processo certificado de democracia. Mesmo que haja um distância entre o texto constitucional e a realidade socioeconômica do Brasil, é perceptível os avanços em matérias de direitos fundamentais. E diferentemente das Constituições anteriores, a de 1988, já instaura o capítulo sobre os direitos fundamentais em seus artigos iniciais, embora não se pode olvidar que tais se encontram salpicados por diversos outros, simbolizando seu prestígio. Conforme já salientado, com o fortalecimento dos debatidos direitos em razão da ideia de que a dignidade da pessoa humana é o valor que deve fundamentar e orientar o exercício de poder, é que o legislador constituinte assegurou a impossibilidade de sua abolição. Conforme consta do artigo 60, § 4º, inciso IV, sendo defeso qualquer proposta tendente a aboli-los, caso haja, é vedado qualquer deliberação no Congresso. Não se pode avançar no presente estudo sem antes fazer uma distinção da força jurídica dos direitos fundamentais. A análise estrutural dos direitos fundamentais surge com grande importância, uma vez que dele deriva a defesa da dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, um dos seus valores. Nesse sentido, na lição do jurista alemão Robert Alexy, que ressalta a importância dessa distinção: Essa distinção é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais. Sem ela não pode haver nem uma teoria adequada sobre as restrições a direitos fundamentais, nem uma doutrina satisfatória sobre colisões, nem uma teoria suficiente sobre papel dos direitos fundamentais no sistema jurídico. Essa distinção constitui um elemento fundamental não somente da dogmática dos direitos de liberdade e de igualdade, mas também dos direitos a proteção, organização e procedimento e a prestação em sentido estrito.31

A importância desse debate reside no fato que ora os direitos fundamentais são classificados como regras, ora como princípios. Mas importante frisar que tanto regras como princípios fazem parte do sistema jurídico, ambos como espécies de normas jurídicas. Tal entendimento surge com Alexy que impõe aos direitos fundamentais a característica do dever-ser, uma vez que disciplinam condutas e constituem base para decisões judiciais.32 30

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas 2009, p. 65. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 85. 32 ALEXY, Robert defende essa tese ao afirmar que “Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões 31

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Seguindo esse caminho Dworkin aproxima o direito da moral e segue fazendo a distinção entre regras e princípios. Nesse sentido Adrian Sgarbi menciona: (...) a primeira delas é que as regras são normas aplicáveis na forma “ou tudo ou nada”, pois elas são aplicáveis apenas quando surgem as condições que elas próprias fixam. Já os princípios são normas que não firmam uma consequência jurídica precisa diante de uma circunstância igualmente precisa; eles expressam considerações de justiça, equidade ou outras dimensões da moralidade, ou seja, os princípios não estabelecem uma solução unívoca para as controvérsias em que são aplicáveis, de tal modo que diferem das regras em sua operacionalidade lógica.33

Torna-se perceptível que para Dworkin, as regras seriam aplicadas completamente no caso concreto ou, então, não seriam aplicadas. Já de uma maneira contrária, os princípios, por apresentarem direções a serem seguidas, sem apontarem soluções, demonstram diversas formas de aplicação. Essa disposição foi evoluída por Alexy que trouxe a diferenciação de regras e princípios, conceituando-os: O pondo decisivo na distinção entre regas e princípios é que princípio são normas que ordenam algo que seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não dependem somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve ser fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contém, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.34

As ponderações de Ronald Dworkin e Robert Alexy são de suma relevância para a separação do que seja regras e princípios, vislumbrando uma distinção entre as categorias normativas. Dessa forma, partindo dessa distinção, pode-se definir pela possibilidade de impor restrições a esses direitos e também quais os critérios a serem utilizados em caso de conflito. deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição”. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 87. 33 SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 151. 34 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 90.

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Ponto relevante são os princípios que norteiam a exegese constitucional. Desses, dois devem ser ressaltados, pois se inseremnesse debate, quais sejam: princípio da unidade da Constituição e o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. O princípio da unidade da Constituição explana que a interpretação da Carta Magna deve ser como um todo harmônica, afastando as antinomias existentes. Dessa forma, caso haja colisão, a solução deve pugnar por uma interpretação otimizada e harmônica. Já o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais exigem que na aplicação das normas, o intérprete deve optar pela aplicação que gera uma maior eficácia no caso concreto. Resulta-se do estudo que as normas constitucionais têm eficácia jurídica e são imperativas, podendo seu cumprimento ser exigido de forma coativa. As normas de direitos fundamentais são dotadas de força vinculante e seus efeitos podem ser exigidos no Poder Judiciário. O que se estar a demonstrar é a importância dos direitos fundamentais que nasceram para impedir que o abuso absolutista do Estado e, também, comportamentos que atentem contra a dignidade humana, e por consequência, contra a pessoa humana. Por isso representam valores que devem contaminar todo o sistema normativo, influenciando a interpretação jurídica dos diversos ramos do direito. Não se está com isso a afirmar que os direitos fundamentais são absolutos, como se demonstrou, sua interpretação deve ser como um todo harmônica e ponderada, levando ao equilíbrio e a um resultado otimizado, e seu intuito é proteger a pessoa humana.

Dignidade da pessoa humana frente ao capitalismo Após um estudo sobre a pessoa humana e as qualidade inerentes a ela, onde se encontra a autonomia como liberdade de agir segundo sua própria determinação, cuja importância foi elevada à categoria de direitos fundamentais, passa-se ao debate sobre suas qualidades e valores frente ao capitalismo. Os direitos fundamentais, como já discorrido, são prerrogativas fundadas na dignidade da pessoa humana, com o objetivo de assegurar a essa pessoa liberdade, igualdade, cidadania, entre outros. Dessa feita, percebeu-se que a dignidade da pessoa humana é as qualidades essenciais caracterizadoras da existência valorizada do ser humano e a ela, paralelamente, a existência digna, que é aquela que permite garantir condições de vida saudável, atuação com vontade livre, participação ativa nos destinos da própria existência digna pelo seu esforço. Fala-se em valor porque é a condição de qualidade máxima do ser humano, em que nenhum ato poderia ferir esse bem precioso inerente a pessoa. Mas será que todos os seres humanos somos tratados com dignidade? Certamente, o que se percebe para um olhar crítico, podendo ser até um olhar breve, é que, por uma diferenciação social, há uma afronta a essa aptidão.

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O mais sério de toda a explanação é quando o ser humano usa de sua própria autonomia para ferir sua dignidade, como acontece nos realitys shows. Nesses casos as pessoas se submetem a condições degradantes, expõem suas intimidades para obtenção de fama e dinheiro com a sua própria aceitação e sem qualquer fator externo que a coloque nessa situação. Deve-se nesse momento lembrar que os direitos da pessoa humana, denominados personalíssimos são intransferíveis, inegociáveis, uma vez que não são de conteúdo econômico-patrimonial. A ordem constitucional os confere a todos e deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis. A dignidade da pessoa humana está assegurada na Constituição Federal e, como não poderia ser diferente, também foi elevado à categoria de direito fundamental, sendo o princípio de grau mais elevado da pessoa humana. Nesse sentido é que o legislador constituinte originário amparou a vida digna, protegendo as pessoas contra situações humilhantes, degradantes, discriminatórias, de tortura, ... Quando essa dignidade é violada, quebra-se também um dos pilares que assenta o ordenamento jurídico do país. Nesse sentido não se pode dispor de tal direito, que atinge também a coletividade. O que se percebe no mercado atual é que o poder compra tudo. E isso não foi uma escolha da população, uma vez que tal é imposto, ainda que de uma maneira muito sutil, o qual quase não se percebe e passa-se a achar aquela comercialização como normal, quando na verdade, para os mais prudentes, é objeto impossível, que viola os valores humanos, mas todos assistem e aplaudem essas barbáries que o dinheiro é capaz de comprar. O que se está a perceber que a compra e venda não se está apenas nos bens materiais e ultrapassa valores que deveriam ser intocáveis. Não se pode olvidar que a possibilidade de o dinheiro comprar influência, e não somente bens materiais, uma casa em um local mais seguro, possibilidade de se estar na frente em um momento de tumulto, como por exemplo, comprar lugares nas filas, a dignidade fica para trás e passa-se a dar importância ao que não é mais moral. O instinto primitivo exacerba e todo o Direito construído ao longo de décadas são mitigados. O dinheiro passa a fazer diferença, não apenas para quem quer e pode pagar por benesses e estar à frente do seu próximo de uma maneira não natural, mas para aquele que não o pode e pretende obter vantagem com o capitalismo.35 Dessa maneira, Michael Sandel revela em seu livro que: Embora o preço não seja divulgado, funcionários de certas universidades de primeira linha nos Estados Unidos disseram ao Wall Street Journal que aceitam alunos não propriamente brilhantes cujos pais sejam ricos e suscetíveis de fazer doações financeiras substanciais.36 35

SANDEL J., Michael. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Tradução: Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 08. 36 SANDEL J., Michael. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Tradução: Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 10.

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O Ecletismo Constitucional e os Limites Morais do Mercado – o Confronto entre a Dignidade da Pessoa Humana e a Ideologia do Capital

Revela-se assim um lado em que a influência e o poder compram a vaga daquele que tem o que a universidade pode oferecer e de outro lado quem pode aproveitar, e por consequência, o exclui. Mas segue Sandel revelando o lado de quem não pode pagar, mas se beneficia com esse mercado de bens não materiais: Servir de cobaia humana em testes de laboratórios farmacêuticos para novas medicações: US$ 7.500. A remuneração pode ser maior ou menor; depende da agressividade do procedimento usado para testar o efeito da nova droga, assim como do desconforto envolvido.37

O que se percebe claramente é uma utilização indevida daquele que é um valor e forma o conceito de pessoa humana: a autonomia. Por questões de convicção religiosa, filosófica, social, posiciona-se, que o Estado não deveria adentrar, justamente por que esse valor é tem que ser maior que o poder estatal. Há aqui que se invocar a autodeterminação, que é o livre desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido, caminha Judith Martins-Costa: Não se trata da dignidade, muito menos pode o princípio da dignidade da pessoa humana legitimar o Estado a determinar as convicções religiosas de cada qual, ou o conteúdo ou a forma das práticas religiosas. Se as práticas religiosas são atentatórias à segurança alheia, trata-se do dever de segurança ou da ordem pública, não do princípio da dignidade humana.38

O princípio da dignidade humana vai designar o ser da pessoa, e não a sua autonomia, liberdade. É um valor superior a isso e por tal, não poderia ser invocado em caso de greve de fome, não aceitação de transfusão de sangue, etc... O que se quer dizer que não é isso que o presente trabalho se presta, estar a mencionar algo muito superior a isso. Estar na tentativa de se coibir que os valores de dignidade sejam subsumidos pelo poder e assim, possam ser comprados. A pessoa humana deve ser preservada de todas as intempéries criadas pelo próprio homem. Nas palavras de Pico Della Mirandola: “Li nos escritos árabes (...) que nada via de mais admirável que o homem (...)”39. Nesse sentido deve-se fazer valer os direitos fundamentais conquistados com muito esforço e contra as barbáries praticadas com a humanidade. A dignidade da pessoa humana como princípio fundamental máximo do homem deve suportar, como fez frente ao nazismo, ao fascismo, o capitalismo e o poder. 37

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SANDEL J., Michael. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Tradução: Clóvis Marques. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 10. 38 COSTA, Judith Martins. Pessoa, personalidade e dignidade (ensaio de uma qualificação), 2003, p. 158. 39 STANCIOLI, Brunello apud PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni.

José Flávio Barroso Madaleno

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O Direito e a Moralidade Política em Ronald Dworkin Júlia Mara Rodrigues Pimentel1 Resumo Considerado um dos mais influentes jusfilósofos da contemporaneidade, Ronald Dworkin retomou o discurso Moral para o seio da prática jurídica, obtemperandose, radicalmente, ao positivismo jurídico, mormente de ao Hart, o norte-americano desenvolveu sua teoria evidenciando que o Direito faz parte de um construtivismo interpretativo. Dworkin rejeita, firmemente, o posicionamento de Hart acerca do poder discricionário do julgador. Para o autor, a norma deve ser enxergada sob a sua melhor luz, e o Direito deve ser norteado por um ideal político de integridade. Assim, salientando a ideia de coerência do ordenamento jurídico, o estadunidense apresenta o entendimento de que nos julgamentos postos a apreciação do magistrado, este deve ser coerente e buscar, sempre, dar a melhor resposta possível às demandas de sua comunidade política. Na teoria de Dworkin moral, justiça e política estão intrinsecamente conectadas. Palavras-chave: Direito; moralidade política; princípios. Abstract Considered one of the most influential contemporary philosopher of Law, Ronald Dworkin resumed Moral speech to the bosom of legal practice, opposing radically the legal positivism, especially of the Hart, the American developed his theory showing that the Law is part an interpretative constructivism. Dworkin firmly rejects Hart’s position in respect of the discretionary power of the judge. For the author, the standard must be viewed under its best light, and the law must be guided by a political ideal of integrity. Thus, emphasizing the idea of consistency of the legal system, the American has the understanding that in judgments the magistrate, this should be consistent and seek, always give the best possible response to the demands of their political community. In Dworkin’s theory, moral, political and justice are inextricably connected. Keywords: Law; political morality; principles.

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Mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Ciências Penais pelas Faculdades Integradas de Caratinga; Especialista em Direito Público e em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhaguera-Uniderp. Advogada e Conselheira da “OAB Mulher” da 54ª Subseção da OAB. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Doctum de Manhuaçu e Professora da Rede Doctum de Ensino.

O Direito e a Moralidade Política em Ronald Dworkin

Introdução Ronald Dworkin2 trouxe inúmeras contribuições para o Direito, já na década de mil novecentos e setenta3 demonstrava a insuficiência do positivismo jurídico e sustentava que, mesmo para os chamados casos difíceis do direito, havia uma resposta correta a ser dada pelo ordenamento jurídico. Os esforços de Dworkin sempre direcionaram a uma fundamentação interpretativa de uma teoria da moralidade política. Ao contrário da linha procedimentalista de Robert Alexy, o teórico assume uma perspectiva jurídica interpretativista substantiva, que busca entender o direito como uma prática interpretativa, como uma atitude interpretativa, comprometida com princípios e convicções morais da comunidade, que transcendem os textos da lei e da jurisprudência, e que devido a isso devem ser tratados como uma exigência de integridade e coerência4. Entretanto o que mais chama atenção no pensamento dworkiano, indubitavelmente, é a sua proposta de superação do positivismo jurídico5 através do abandono daquela visão do direito como interpretação semântica de documentos jurídicos e a sua substituição por uma visão do direito como integridade em relação a princípios de moralidade política tão caros a sociedade. Isso vai permitir a Dworkin sustentar, contra toda a tradição positivista do 2

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Ronald Myles Dworkin (Worcester, Massachusetts, 11 de dezembro de 1931 - Londres, 14 de fevereiro de 2013) foi aluno e sucessor de cátedra de Herbert L. A. Hart na Universidade de Oxford. Crítico, sobretudo das ideais de Hart, Dworkin é tão admirado quanto criticado. “Conforme diz o próprio Dworkin, a proposta que assume é a de ‘defender uma teoria melhor’, em termos explicativos, do que as construções precedentes vêm oferecendo como resposta à situação da atividade dos juízes quando a ação judicial não pode ser submetida a uma regra de direito clara (‘casos difíceis’). Sua tese é a que, ‘mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode assim ter direito de ganhar a causa’, pois também nos ‘casos difíceis’ o juiz tem o dever de descobrir quais são os direitos das partes sem inventar novos direitos aos quais aplica retroativamente. Dessa forma, desaprova qualquer corrente que questione a possibilidade de se alcançar uma solução correta para cada caso” (SGARBI, 2006, pp. 147-148). 3 Entre vários artigos, ensaios e livros, suas principais publicações são a coletânea de artigos e ensaios reunidos em Taking rights seriously (1977) e em A matter of principle (1985), e especialmente o livro que consolida todo o seu pensamento a respeito do direito como integridade, que é o Law’s Empire, publicado em 1986. Na década de mil novecentos e noventa, Dworkim dedicou suas pesquisas mais para o campo da fundamentação política de princípios, especialmente os princípios da igualdade no Sovereign virtue e o da liberdade no Freedom’s Law. 4 SIMIONI, 2014, p. 324. 5 Para López Calera as duas teses mais antipositivistas de Dworkin seriam: “1) a recuperação dos direitos humanos individuais, no sentido de que tais direitos são preexistentes e mais importantes que aqueles reconhecidos pela legislação. O ataque a concepção do Direito como “modelo de regras” (Hart) e a sugestão de um “modelo de direitos” no qual se leva os direitos a sério e se dá mais importância aos direitos que às leis; 2) a recuperação da ideia de princípios universais e objetivos de moralidade política” (1997, p.112, tradução livre).

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direito, não apenas a possibilidade, mas sobretudo, a existência de um direito a decisões jurídicas corretas para casos concretos, e as exigências que a teoria dworkiana apresenta para a atividade jurisdicional não são somente condições como respostas corretas no Direito, mas, principalmente condições essenciais para a equidade, para a justiça. Quando se trata da questão sobre a possibilidade ou não de uma única resposta correta no Direito, Dworkin vai objetar que apenas a “armadilha” do positivismo jurídico é possível justificar aquela discricionariedade da decisão jurídica dentro da moldura do ordenamento jurídico, porquanto ao se assumir o direito como integridade, no qual não somente os textos jurídicos, mas, igualmente, os princípios e convicções de moralidade política passam a ser fundamentais para a solução adequada dos casos práticos, é possível sim encontrar a resposta correta do direito. O presente artigo, a partir de uma pesquisa teórico-dogmática abordará a temática, para tanto fará uma análise da crítica que Dworkin faz ao positivismo jurídico, a importância da moral no Direito e de uma interpretação construtivista, bem como traçar a diferenciação entre princípios, regras e políticas públicas.

Dworkin e a crítica ao positivismo jurídico A partir do século XX, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, que agrega os valores da liberdade e da igualdade não mais sob seu aspecto formal, mas agora sob o aspecto material, as ideias do positivismo já não mais satisfaziam o Direito, a separação do Direito e da ética não correspondiam aquilo que a humanidade necessitava6. O retorno ao jusnaturalismo7 já não era almejado por aqueles que operavam o direito. 6

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Ronald Dworkin, ao discorrer acerca dessa fase, demonstra que o próprio nazismo, que causou um dos maiores horrores à humanidade, estava baseado no direito numa visão positivista, e, portanto, estava amparado pela legalidade à época. Nesse sentido, o mesmo autor explica a questão da legitimidade do direito nazista sob o vértice do positivismo: “Costuma-se dizer que os nazistas tinham um direito, ainda que tal direito fosse muito mal. Havia uma crença difundida de que esse fato relativo a nossa prática linguística apoiava o positivismo, com seu axioma de que a existência do direito é independente do valor de tal direito, de preferência a qualquer teoria do “direito natural” [...] as teorias semânticas como o positivismo limitam nossa linguagem ao nos negar a oportunidade de usarmos a palavra “direito” desse modo flexível dependendo do contexto ou do sentido” (DWORKIN, 1999, p. 127). “O termo jusnaturalismo identifica uma das principais correntes filosóficas que tem acompanhado o Direito ao longo dos séculos, fundada na existência de um direito natural. Sua ideia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito positivo. Esse direito natural tem validade em si, legitimado por uma ética superior, e estabelece limites à própria norma estatal. Tal crença contrapõe-se a outra corrente filosófica de influência marcante, o positivismo jurídico” (BARROSO, 2001, p. 13).

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E a crítica ao positivismo jurídico constitui uma das motivações básicas no pensamento dworkiano. Já a outra motivação, constitui-se na “perspectiva da interpretação do direito sob um ponto de vista prático, de um ponto de vista de quem interpreta o direito, de um ponto de vista, portanto, hermenêutico no sentido de hermenêutica filosófica de Gadamer”8. Evidente que Dworkin não utiliza a mesma conceitualidade da hermenêutica filosófica, como círculo hermenêutico, os efeitos da história, a précompreensão9. Contudo, pode-se observar nos argumentos de Dworkin uma série de referências a essa perspectiva hermenêutica, tanto na fundamentação substancial de convicções de moralidade política importantes na comunidade10, quanto na fundamentação da atitude interpretativa do direito como um diálogo histórico entre o intérprete e os textos jurídicos. Além da própria metodologia da decisão jurídica, que é apresentada por Dworkin mais como uma prática intuitiva e histórica de descobrimento dos direitos autênticos11, do que propriamente uma metodologia analítica ou procedimental de justificação argumentativa da decisão. A crítica a Hart12, expoente positivista dos anos 60, foi uma constante em sua bibliografia, tanto que em sua obra Levando os Direitos a Sério13 sua crítica é tão dura a ponto de Dworkin dizer textualmente “Quero lançar um ataque geral contra o positivismo e usarei a versão de H. L. A. Hart como alvo, quando um alvo específico se fizer necessário”14. 8

SIMIONI, 2014, p. 325. SIMIONI, 2014, p. 325. 10 “A leitura moral propõe que todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos esses dispositivos abstratos considerando que eles fazem referências a princípios morais de decência e justiça. [...] A leitura moral, assim, insere a moralidade política no próprio âmago do direito constitucional” (DWORKIN, 2006, p. 2). 11 “Repito, pois, que a leitura moral não é revolucionária na prática. Em seu trabalho cotidiano, advogados e juízes instintivamente partem do princípio de que a Constituição expressa exigências morais abstratas que só podem ser aplicadas aos casos concretos através de juízos morais específicos.” (DWORKIN, 2006, p. 5) 12 Dworkin considerava Hart o modelo mais refinado que a escola do positivismo já produziu (SGARBI, 2006, p. 150). 13 Na referida obra, no primeiro capítulo, o autor traça um panorama da teoria do direito norte-americana. Já no segundo capítulo, foca a obra de Hart e reproduz o Modelo de Regras – I, no qual Dworkin expõe a teoria dos princípios como principal argumento contra a as teorias positivistas. No terceiro capítulo, Modelo de Regras II, o autor prossegue com suas críticas ao positivismo jurídico. É no quarto capítulo que há a exposição da “teoria do direito de Dworkin”, propriamente, dita. O autor realiza a separação entre princípios e políticas e fundamenta suas razões a partir da explicação sobre o que são os “hard cases” – os casos difíceis do direito. Também é nesse capítulo, que surge a figura do Juiz Hércules, como instrumento argumentativo de defesa da tese da única resposta correta. Nos capítulos seguintes 5, 6, 7 e 8 Dworkin defende e realiza as aplicações teóricas de sua argumentação. No nono capítulo, o autor traz como discussão central a questão da igualdade. E, nos capítulos finais (10,11,12 e 13), Ronald Dworkin aborda de questões relativas a liberdade, argúi se o individualismo é inimigo da igualdade e retoma o tema da resposta correta. 14 DWORKIN, 2002, p. 35. 9

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O positivismo jurídico, para Dworkin, é uma teoria que institucionaliza o Direito exclusivamente na forma de textos. Todo o Direito fica reduzido a uma questão semântica. E, nessa perspectiva, não é possível justificar adequadamente uma resposta correta do Direito, porque em termos de lógica linguística, sempre existirão diferentes possibilidades de combinação lógica entre os sentidos dos textos legais.15 Hart reformulou a proposição de Austin16 acerca da autoridade jurídica ser um fato meramente físico, meramente empírico, de ordem e obediência habituais.17 Hart afirmou que os verdadeiros fundamentos do direito não estão em costumes empíricos entre alguém que ordena e outros que obedecem, mas sim na aceitação, pela comunidade, de regra fundamental de que ele chamou de regra de regra de reconhecimento18. Uma regra que atribui a um indivíduo ou a grupos a autoridade de criar as leis. O fundamento do Direito se desloca, destarte, dos costumes históricos empíricos, para as convenções sociais que formalizam a aceitação da comunidade em submeter a um sistema de regras que outorga, aqueles indivíduos ou grupos, o poder de criar o Direito válido. Todavia, percebe-se que a questão do “hábito” empírico que justifica o Direito em Austin19 permaneceu no problema da “aceitação” que justifica o Direito em Hart20 21. Uma vez que tanto o hábito de se submeter a ordens, quanto a aceitação dessas ordens através de convenções de reconhecimento do Direito, pode advir de motivos de temor, submissão violenta, engano e outros diversos motivos moralmente reprováveis. 15

SIMIONI, 2014, p. 326. John Austin (data de nascimento e morte) foi grande teórico da linguagem jurídica que exerceu grande influência sobre o positivismo jurídico da Inglaterra e dos Estados Unidos. Para Austin, uma proposição jurídica seria verdadeira na exata medida em que transmita corretamente o comando realizado politicamente por alguma autoridade soberana na sociedade, a autoridade soberana, por sua vez, era definida por Austin como pessoa ou grupo de pessoas cujas ordens são obedecidas pelas demais pessoas por costume, por hábito. O fundamento do direito exterior à linguagem jurídica estava, portanto, na ordem de alguém. E assim, o direito passou a ser entendido como um conjunto histórico de decisões tomadas pelos soberanos, quer dizer, tomadas por aqueles que detêm o poder político de uma sociedade (SIMIONI, 2014, p. 326). 17 HART, 2007, pp. 59-61. 18 HART, 2007, pp. 111-112. 19 DWORKIN, 2002, p. 29. 20 DWORKIN, 2002, p. 32. 21 Para Dworkin “[...] a versão do positivismo oferecida por Hart é mais complexa do que a de Austin e o seu teste para verificar a validade das regras de direito é mais sofisticado. Em um aspecto, porém, os dois modelos são muito similares. Hart, como Austin, reconhece que as regras jurídicas possuem limites imprecisos (ele se refere a elas como tendo uma ‘textura aberta’) e, ainda como Austin, explica os caos problemáticos afirmando que os juízes têm e exercitam seu poder discricionário para decidir esses caos por meio de uma nova legislação” (2002, p. 35). 16

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A hermenêutica de Dworkin: a teoria da integridade e as decisões políticas Para Dworkin, o problema do positivismo é que ele reduz o Direito à lei ou a textos que representam convenções políticas e mais: reduz o conteúdo desses textos a uma questão empírica de falsidade ou verdade. A pesquisa positivista então fica restringida à questão dos diversos significados possíveis de um documento jurídico, de um lado, e a subsunção deste significado com os fatos empíricos. Ela não deixa questionar a influência que as convicções morais do intérprete exerce sobre a sua prática de interpretação. Todavia o Direito não é apenas uma questão de fato, nem tão-só uma questão de interpretação semântica de documentos jurídicos. O Direito é também uma questão de convicção moral, uma questão de princípio. E as divergências a respeito dos próprios fundamentos do direito e divergências sobre convicções morais importantes22. Deste modo, indo de encontro à tradição positivista de Kelsen, Austin, Hart, do Direito baseado na análise linguística, para Dworkin direito é interpretação, daí o autor decide não continuar uma Teoria Pura do Direito, mas fundar uma Teoria Política do Direito. Se, no positivismo, não é possível uma única decisão correta, na teoria de Dworkin a decisão jurídica correta não só é possível, mas também exigida por uma questão de coerência e integridade. É o que Dworkin aduz em O Império do Direito23, O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade. Elaboramos nossa terceira concepção de direito, nossa terceira perspectiva sobre quais são os direitos e deveres que decorrem de decisões políticas anteriores, ao reafirmamos essa orientação como uma tese sobre os fundamentos do direito. Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça de equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade24. 22

SIMIONI, 2012, p. 207. Segundo Adrian Sgarbi, “Dworkin com a publicação de O Império do Direito não demonstrou preocupação em analisar o quanto sua teoria mudou. Essa a sua afirmação ‘Não me preocupei em descobrir até que ponto este livro altera ou substitui posições que tenha defendido em livros anteriores’ (1986, p. XII) (LE, p VIII). Todavia, parece ser possível identificar ao menos três fases teóricas de nosso autor: Primeira fase: Crítica ao pensamento hartiano e ao utilitarismo como teoria política (décadas de 60 e 70); Segunda fase: Transição. Estudos sobre literatura e interpretação (final da década de 70 e início da de 80); Terceira fase: Madura. Construção do livro Império do Direito e a preocupação intensa com a questão política do liberalismo e igualdade. (2006, pp. 150-151). 24 DWORKIN, 1999, pp. 271-272 23

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Assim, para Dworkin, a escolha da interpretação adequada é uma escolha política no sentido da coerência e integridade com o projeto político de uma comunidade baseada em princípios, baseada em convicções de moralidade comuns. O direito, portanto, não pode mais ser entendido tão-somente como linguagem, visto que o Direito pode ser entendido muito mais corretamente como uma prática interpretativa. Pois, se as convicções de moralidade política são realmente importantes para a justificação coerente e íntegra das decisões judiciais, do direito então exige seja concebido como uma prática interpretativa, uma hermenêutica política. É certo que a teoria dworkiana acerca de uma única resposta correta no Direito apresenta-se bastante impopular25. “Isso porque já se tornou quase senso comum dos juristas e da população em geral que o direito não é matemático e que, por isso, sempre pode existir a possibilidade de respostas diferentes para casos iguais”26. Como dito alhures, para Dworkin, a possibilidade de mais de uma resposta correta para um caso concreto só encontra lugar no positivismo, já que este trabalha com análises linguísticas, e, assim, é possível obter várias interpretações sobre um mesmo texto. Todavia sua teoria que não despreza as convicções intuitivas de moralidade política da comunidade, tal ideal de decisão jurídica correta pode ser alcançado27. No entanto tal empreendimento não é algo tão fácil de ser alcançado, não constitui um silogismo simples. Dworkin não vai dar um método pronto e acabado da decisão jurídica: A resposta certa tem muito de intuição, ela tem muito daquela intituitividade hermenêutica que parte de fortes convicções pessoais prévias a respeito de princípios morais importantes para compreender e decidir o direito adequadamente. Os quais Dworkin vai apresentar na forma de uma teoria política, quer dizer, na forma de uma hermenêutica política: uma concepção hermenêutica de interpretação jurídica como empreendimento político adequado e justificado em sólidos e convincentes princípios de moralidade política da comunidade.28 25

“Os advogados anglo-americanos de maneira dizem em geral, têm sido céticos quanto à possibilidade de uma ‘resposta correta’ em um caso genuinamente controverso” (DWORKIN, 2001, p. XI). 26 SIMIONI, 2014, p. 330. 27 Dworkin escapa do caráter decisionista (para alguns existente em Hart) exatamente ao reconhecer a normatividade dos princípios, cujo caráter geral e abstrato seria afastado pela densificação promovida pelo intérprete: A perspectiva decisionista a que chega o positivismo em face da reconhecida indeterminação das regras é rechaçada assim pelo caráter normativo dos princípios jurídicos que, embora muito gerais e abstratos, exigem do intérprete densificação, com especial atenção à história institucional e à sistematicidade do conjunto de princípios reciprocamente vinculados do Direito. (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 60) 28 SIMIONI, 2014, p. 331.

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Para a defesa de haver uma resposta certa para os casos jurídicos Dworkin se utiliza da metáfora da um juiz ideal, o Juiz Hércules. Mas afinal quem seria Hércules? Para Dworkin, Hércules é um personagem fictício com o qual o autor, retoricamente, denomina um juiz - filósofo de capacidade, paciência, sabedoria e inteligência sobre-humanas, cuja tarefa é a de desenvolver, nos casos concretos, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem para solucioná-lo29: Eu suponho que Hércules seja um juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o dever geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou tribunais superiores cujo fundamento racional (racionale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo.30

Assim, torna-se claro que o ponto de partida de Dworkin é o caso concreto. O autor assume uma perspectiva prática do juiz que está diante de um caso prático e que necessita decidi-lo acertadamente. Devido a isso que para Dworkin, a questão cardeal do direito está na decisão jurídica, na adjudication. Dessa forma, sua teoria rompe com aquela cisão entre questões de verdade e questões de correção normativa. O escopo é saber “o modo como os juízes decidem casos”31, saber como os magistrados julgam os casos concretos independentemente de como eles pensam. E propor uma teoria que melhor se ajusta a essa prática e que melhor a justifica como um exercício de interpretação, a partir da qual o próprio direito passa a ser concebido um “conceito interpretativo”32. Dworkin vai utilizar a metáfora do juiz Hércules porque ele vê a interpretação do ponto vista do intérprete. Devido a isso, na teoria dworkiana pode-se dizer que “não é muito adequado falar em decisão jurídica como um modelo teórico no sentido metodológico, mas sim de decisão jurídica como uma atitude política do julgador concreto”33, uma atitude do indivíduo que a experiencia a prática da interpretação jurídica e que decide politicamente essa interpretação. Desse modo, a teoria dworkiana permite que o autor transite livremente sobre vários problemas do pós-positivismo34. Tudo para demonstrar como é plausível e imperiosa, por uma questão de princípio, concretizar o ideal da resposta certa do Direito para os casos concretos. 29

DWORKIN, 2002, p. 165. DWORKIN, 2002, p. 165. 31 DWORKIN, 1999, p. 3. 32 DWORKIN, 1999, p. 488. 33 SIMIONI, 2014, p. 332. 34 Aqui vale menção as palavras de Albert B. Calsamiglia acerca do jusfilósofo: “Dworkin abriu o caminho para inaugurar sua tarefa construtiva. Sugere operar com um modelo ideal de uma sociedade democrática.  Construção do modelo não tem como objetivo reproduzir a realidade, mas para formular perguntas a partir do modelo para alcançar melhor compreendê-lo. A ponte entre a ciência de Legislação e Jurisprudência começa a construir”. (1992, p. 164, tradução livre) 30

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Princípios, regras e políticas públicas Contudo, antes de findar o presente estudo, importante distinguir regras, princípios e políticas públicas na concepção de Dworkin, visto que, na prática das decisões judiciais, especialmente nos casos difíceis, os magistrados recorrem a regras que não fazem parte do direito positivado. Ou seja, nos casos onde a solução não é facilmente encontrada no direito positivo, as decisões judiciais, por vezes, recorrem a padrões normativos exteriores ao direito positivo, tais como os princípios morais e objetivos políticos35. Em Levando os Direitos a Sério, Dworkin faz uma distinção entre regras e princípios36: A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis quanto à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.37

Mais à frente, prossegue o Dworkin na referida distinção, acentuando a importância dos princípios: Um princípio como “nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos” não pretende [nem mesmo] estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em certa direção, mas [ainda assim] necessita de uma decisão particular. Se um homem recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa como resultado direto de um ato ilícito que tenha praticado para obtê-la, esta não é uma razão que o direito levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la. Pode haver outros princípios ou outras políticas que argumentam em outra direção – por exemplo, uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que limite a punição ao que foi estipulado pelo Poder Legislativo. Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um 35

DWORKIN, 2002, pp. 6-7. Canotilho, tratando de princípios e de regras, descreve que com relação ao cabimento dos princípios, é conflitual, de maneira que eles convivem sem que um exclua o outro, no tocante as regras, seu cabimento é antinômico, elas se excluem não admitindo brecha para qualquer outra solução (2003, p. 1161). 37 DWORKIN, 2002, p. 39. 36

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princípio de nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que inclina numa ou noutra posição.38

Em resumo, para Dworkin, as regras são as normas do direito positivo, isto é, as normas jurídicas escritas que impõem direitos e obrigações, ou seja, aquelas que obrigam, proíbem facultam algo. A sua aplicação é uma questão de tudo ou nada. Ou a regra é válida ou não é. Ou se viola ou não uma regra. Já os princípios são todos os demais padrões de moralidade transcendentes ao direito positivo, ou seja, são aqueles padrões morais e políticos que as decisões judiciais recorrem para resolver os casos que não são assaz solucionados pelas regras do direito positivado. Assim, os princípios são os demais padrões normativos que não constituem regras, que não estão no direito positivado39. Os princípios se diferem das regras em muitos aspectos. Primeiro, os princípios não estabelecem as condições prévias de sua aplicação, tal como fazem as regras. E por isso os princípios não são questões de tudo ou nada40. O seu cumprimento não é uma questão de correção, conquanto de adequação, de coerência. Os princípios não são inválidos ou válidos, todavia questões de peso, de importância, questões de fundamento, de justificação adequada – prevalecem ou não prevalecem41: Para Dworkin, os princípios enunciam razões que conduzem a interpretação e argumentação jurídica para uma certa direção . Não são questões de certo e errado, validade ou invalidade. São convicções que justificam o encaminhamento da solução para uma direção e não outra. Os princípios são questões de peso na justificação de uma decisão jurídica, que se revelam na forma de razões que inclinam a decisão para uma ou outra decisão. Princípios não são regras contrafáticas, são pontos de vista para uma interpretação adequada dessas regras. Os princípios conferem uma posição especial que justifica a interpretação adequada do direito.42 38

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DWORKIN, 2002, pp. 41-42. Nesse caso,  Dworkin está a analisar o caso  Riggs vs. Palmer, o qual cuidava de uma ação em que o demandante-neto que era beneficiário do testamento de seu avô. O caso não seria difícil se não fosse a situação de o demandanteneto ter sido o assassino do avô com o único objetivo herdar. Quanto à pretensão deduzida em juízo, a Corte de Apelação do Estado de Nova Iorque, apreciando os fatos, e conquanto a lacuna legislativo-testamentária, decretou que o demandante-neto - Elmer Palmer - estava afastado do direito de herdar atendendo ao princípio de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. 39 DWORKIN, 2002, p. 36. 40 Nesse mesmo sentido Robert Alexy. O autor abaliza que os princípios, ao contrário das regras, em vez de emitirem comandos definitivos, na base do “tudo ou nada”, estabelecem diversas obrigações (dever de respeito, proteção e promoção) que são cumpridas em diferentes graus. Portanto, não são absolutos, uma vez que o seu grau de aplicabilidade dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas que se oferecem concretamente (2011, pp. 90-95). 41 DWORKIN, 2002, pp. 46-48. 42 SIMIONI, 2014, p. 335.

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Conclui-se daí que para Dworkin os princípios43 são convicções que vão além das regras jurídicas. E devido a isso, os princípios terão importância na aplicação das regras, tanto as “abertas”, quanto as consideradas “fechadas”, visto que eles constituem os fundamentos para a justificação adequada de qualquer decisão judicial. Na concepção dworkiana, os princípios abrangem tanto os princípios morais quanto os objetivos políticos do governo. Na prática jurídica das decisões judiciais, sobretudo nas decisões dos hard cases, o uso de argumentos baseados em princípios morais e o uso de argumentos baseados na conformidade da decisão com os objetivos das políticas públicas do governo são bastante recorrentes44. Vale ressaltar a explicação de Dworkin acerca do assunto: Denomino “política” aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade [...] Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.45

O autor, ao lado dos argumentos baseados nos objetivos das políticas públicas, ressalta também o uso de princípios morais, tais como as exigências de justiça e equidade. Esses princípios vão desempenhar um papel essencial para a concepção de direito como integridade, uma vez que os princípios morais constituem os fundamentos que permitem uma decisão adequada e justificada em favor de uma solução jurídica. Para Dworkin a identificação dos princípios segue um critério diferente das regras. Não é uma questão metodológica de teste de pedigree de princípios, como era o teste de validade de uma norma a partir da regra de reconhecimento de Hart. Destarte, os princípios não são somente normas no sentido positivista de regras que ordenam, proíbem ou facultam alguma coisa. Os princípios são justificações, a fundamento para as instituições e leis da comunidade. Constituem os padrões de moralidade política que justificam nossas práticas.

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“Os princípios, contudo, não estão acima, mais além ou mais a priori do direito positivo. Mas nem estão abaixo, como se fossem apenas suplementos argumentativos utilizados pela decisão quando não há uma solução fácil para o caso. Não há nenhuma relação hierárquica entre princípios e regras. Os princípios estão em outro nível, outra dimensão, que é dimensão hermenêutica, a dimensão prática da interpretação. Os princípios estão nas convicções que guiam a interpretação das regras na direção do melhor direito possível para o caso” (SIMIONI, 2014, p. 337). 44 DWORKIN, 2002, p. 36. 45 DWORKIN, 2002, p. 36.

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Considerações finais É a perspectiva interpretativista – não dogmática – que coloca o pensamento dworkiano dentro daquilo que se convencionou chamar de pós-positivismo. E, é possível sistematizar seus motivos em: uma crítica à concepção do positivismo jurídico; uma crítica ao procedimentalismo discursivo e a convicção da possibilidade empírica e do direito a respostas corretas para os casos práticos. Dworkin assinala que o positivismo jurídico tradicional simplifica o direito descrevendo-o como um conjunto de regras que são válidas ou inválidas com respeito a um critério de pertencimento ou pedigree formal. Para o autor, Hart ignora a importância dos princípios como fontes do Direito. Para Dworkin, se o Direito não é somente uma questão empírica, então as soluções jurídicas não são apenas questões de prova de verdade ou de argumentação racional. Bem mais que isso, se o Direito é uma questão de justificação adequada e de coerência com convicções morais importantes então a prática do Direito só pode ser uma prática interpretativa. Sendo o direito uma atitude interpretativa, faz surgir todas as convicções de moral pessoal do magistrado e que demanda o confronto dessas convicções pessoais com convicções superiores, que são os princípios de moralidade política da comunidade. Mais superiores em termos hermenêuticos, isto é, superiores em termos de peso na interpretação do direito e não em termos de hierarquia num ordenamento jurídico positivo. O sentido do Direito torna-se então uma questão de princípios, uma questão de interpretação coerente de princípios, e não mais uma mera questão de subsunção e aplicação de regras. O autor substitui, portanto, a concepção positivista do Direito por uma concepção hermenêutica, que quer ver o direito como atitude interpretativa, baseada não somente nos documentos jurídicos, mas igualmente em convicções morais relevantes e coerentes tanto com a história jurídica de outrora, quanto com o projeto político vindouro da comunidade.

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Discurso Jurídico como Forma de Discurso Prático-moral William Albuquerque Filho1 Resumo O presente artigo pretende a partir do texto “Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática” do filósofo Jürger Habermas e os pressupostos da teoria discursiva do direito e da Democracia verificar as principais diferenças entre os possíveis usos da razão prática, posteriormente será tematizado o entendimento inicial do autor quanto à complementaridade entre direito e moral, entendimento este que como se verá, posteriormente se modificou com o desenvolvimento do princípio “D”(princípio do discurso). Habermas parece buscar um sentido pouco suspeito da razão. Palavras-chave: Razão prática; moral; democracia. Abstract This article aims from the text “On the pragmatic, ethical and moral Employments of Practical Reason” the philosopher Habermas Jürger and assumptions of discourse theory of law and democracy verify the main differences between the possible uses of practical reason, later will be themed initial understanding of the author as the complementarity between law and morality, this understanding that as you will see later changed with the development of the “D” (the beginning of the speech). Habermas seems to get a little suspicious sense of reason. Keywords: Practical reason; moral; democracy.

Introdução A posição de Habermas referente à reflexão ética e moral distingue três possíveis usos da Razão Prática. O filósofo se apropria do conceito de Kant onde a razão prática é a razão humana. A capacidade de pensar e raciocinar enquanto se está voltado para o agir. Já a capacidade de pensar e raciocinar voltada apenas para a atividade intelectual é denominada por Kant de razão teórica2. Para Habermas, assim como para Kant, quando a razão prática é norteada pelo viés moral o agir do sujeito tem vontade e razão coincidentes. Assim como na tradição Kantiana, o festejado filósofo alemão acredita que é através da razão que se atinge o ponto de vista moral. A lei moral, portanto, só é definida pela razão ao contrário do que se observa no uso ético ou pragmático3. 1

Mestrando em Direito, Hermenêuntica e Direitos Fundamentais, Unipac/JF. Orientador: Prof. Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior 2 GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. p.1 3 Idem: p.3

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Kant analisava a razão prática a partir do sujeito individual, já em Habermas a própria natureza da razão prática é coletiva, social, comunitária; o princípio fundamental da moral é a universalidade, as normas morais devem poder ser aceitas por todos os envolvidos, sem qualquer forma de coação4. Os problemas que se levantam e se levantaram ao indivíduo, tanto modernamente quanto na era clássica, dependem e dependeram de orientação para se vencer tarefas de maneira prática. A pergunta, “Que devo fazer?”, se apresenta nas mais variadas situações. Esse “dever”, segundo Habermas, não encontra seu sentido específico enquanto não concretizado, só assim, haverá a possibilidade de análise do problema em si e dos aspectos sob os quais o mesmo tem de ser solucionado. Habermas demonstra ser necessário diferenciar, em cada situação, o uso da razão prática, que poderá ser perseguida sob os aspectos referentes ao uso pragmático, ao uso ético ou ao uso moral, tendo em vista o que se espera: os fins, o bom ou o justo respectivamente. Portanto, se perceberá desempenhos diferentes da razão prática nestas diferentes situações. A constelação entre razão e vontade altera-se em cada tipo de uso da razão prática. A formação da vontade individual encontra limites na realidade da vontade alheia no uso moral. Os problemas fundamentais da formação da vontade racional (coletiva-objetiva) se colocam em diferentes horizontes investigativos em relação ao horizonte da vontade racional da primeira pessoa (individual-subjetiva): “Finally, once moral theory breaks out of the investigative horizon of the firstperson singular, it encounters the reality of an alien will, which generates problems of a different order 5”. [Finalmente, uma teoria da moral rompe com o horizonte da investigação da primeira pessoa do singular, encontra a realidade da vontade alheia, gerando problemas de diferentes ordens]. (tradução livre) “As sucessivas correções que fez em sua teoria evidencia ainda melhor o que permaneceu inalterado. Habermas tenta dar um sentido pouco suspeito ao conceito de razão, tão denegrido há várias décadas sob a influência de Nietzsche e de Heidegger, de teorias sistêmicas do ceticismo, do relativismo ou mais recentemente do naturalismo. Para tanto, focaliza na especificidade antropológica da “comunicação”: da incontornável coordenação de nossas ações por meio da linguagem que nos obriga a mobilizar razões para nos entendermos e agir em comum.6” 4

Ibidem: p.4 HABERMAS, Jürgen. On the Pragmatic, the Ethical, and the Moral Employments of Practical Reason. in: Habermas, Jürgen. Justification and application: remarks on discourse ethics IJürgen Habermas; translated by Ciaran Cronin p.2 6 ROCHLITZ, Rainer. Razão e Racionalidade em Habermas. In: Habermas: o uso público da razão/coordenado por Rainer Rachlitz [tradução Léa Novaes]. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005 5

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Os diferentes usos da razão prática em Habermas Uso pragmático Sob o ponto de vista pragmático o que se leva em conta é o sucesso da ação, aqui é levantada a perspectiva do agente que tem suas preferências e objetivos como seu ponto de partida. A avaliação é orientada para os fins e para avaliações intencionais entre os meios disponíveis para facilitar as decisões racionais, o termo final do discurso pragmático é uma recomendação relativa a uma “tecnologia adequada” ou um “programa” de realização da ação. No agir orientado para fins, o que impulsiona e determina a ação é o resultado que o sujeito pretende obter, neste uso específico da razão prática, não se questiona a respeito de conteúdos éticos ou morais do agir. Percebe-se claramente a carga egocêntrica da ação. Aqui as atitudes visam obter determinadas coisas sem refletir a respeito de seu sentido, seu alcance ou consequências para com os outros. O sistema social em que vivemos, qual seja, o sistema capitalista, demonstra claramente situações negativas que muitas vezes são consequências deste tipo uso da razão prática, tendo em vista que se busca basicamente o lucro sem se levar em consideração os encargos duríssimos que os indivíduos envolvidos são muita vezes forçados a suportar.

Uso ético Diferentemente do uso pragmático, o uso ético da razão prática não busca apenas empreendimentos finalísticos, aqui, busca-se o que é “bom” tanto para o indivíduo quanto para a coletividade, contudo, de forma ainda limitada e não desprendida de sua carga egocêntrica. Habermas, no texto em estudo, analisa o uso ético da razão prática sob o ponto de vista individual. Quando o indivíduo se pergunta “como deve agir” para ser coerente com o seu projeto de vida. É dada a seguinte situação como exemplo: quando uma pessoa deve escolher entre uma profissão ou outra. Para se solucionar este problema prático, o indivíduo necessitará saber que vida gostaria de ter, significando neste contexto, que tipo de pessoa se é e que tipo de pessoa se gostaria de ser. O uso ético da razão prática diz respeito ao bem viver, é a razão buscando o que é bom, esta postura segundo o filósofo se baseia em “valores” implicando não só no autoconhecimento como também certos “ideais”, certos “valores”. Quando alguém decide o seu ideal de vida, o faz, tendo em vista certos valores ideais ou modelos pré-existentes. Ainda aqui se vislumbra uma postura egocêntrica, tendo em vista que a vida que é boa para uma pessoa específica tem inter-relação com as formas de vida que são comuns a certa coletividade, desta forma, o uso ético da razão, faz apelo a valores, mas não os questiona, herda-os do mundo social. A teoria ética correspondente ao segundo uso da razão prática aparece com clareza na ética de Aristóteles, onde o comportamento prático do cidadão

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orienta-se pelo ideal de vida boa, este ideal se define pelo grupo social do indivíduo. “trata-se de um ideal coletivo ancorado na tradição”7. Não há aqui uma ruptura completa com a perspectiva egocêntrica, na medida em que, outras pessoas, outras histórias e estruturas de interesses só têm importância enquanto sejam compatíveis com minha identidade, minha história de vida e meus interesses no âmbito de uma forma de vida intersubjetivamente compartilhada. Portanto, as ações práticas realizadas sob o viés ético se desenvolvem em um contexto de tradições que compartilho com outras pessoas. Minha própria identidade é formada por identidades coletivas e minha história de vida está contida em formas históricas de vida. As questões éticas apontam em direção diferente às questões morais, naquelas a regulação dos conflitos interpessoais é resultante da oposição de interesses, não se podendo vislumbrar a partir deste ponto de vista as questões morais, tendo em vista que outras pessoas são consideradas apenas como meios ou condições limitantes à realização do plano individual de ação. Para que questões éticas caracterizadas por conflitos interpessoais possam ser solucionadas sob o viés moral é necessário uma radical mudança de perspectiva e atitude.

Uso moral O uso prático-moral requer uma mudança radical de perspectiva e atitude em relação ao uso pragmático e ético. Aqui devemos começar a examinar nossas máximas quanto à sua compatibilidade com as máximas dos outros. O que norteia o agir no uso moral da razão prática é a justiça. Aqui a razão prática “rompe com as tradições e com as certezas ingênuas do mundo social nativo e se pergunta onde está a ação justa ou o que deve ser feito para que a ação justa prevaleça. Há com esta ruptura a libertação do caráter local e histórico tornando-se particularmente abstratas”8. Habermas toma posição em favor de uma moral formalista seguindo a teoria de Kant, entende que “o juízo moral ou o ato moral não se define por seu conteúdo material e sim pela forma que assuma o ato, do ponto de vista dos sujeitos que o concebem9”. Guazzelli, a este respeito explica que uma ação ou um juízo com o mesmo conteúdo, pode em um caso ser Imoral e em outro Moral, dependendo da forma que assume: posso ajudar os pobres para obter status e vantagens sociais. Afirma a autora que neste caso, embora o conteúdo, a matéria do meu ato seja positiva, o ato em si é imoral10. 7

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GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. p.3 8 GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. p.3 9 Idem. p. 4 10 Ibidem

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“Nesse terceiro uso da razão prática, a vontade não tem nenhum outro princípio que a determina a não ser a própria razão que é, no ser humano, o princípio do universal e do necessário. Por este motivo e somente nesse caso, a vontade é livre, pois, se guia apenas pela própria razão. Não se guia nem pelo princípio do útil, nem pelo princípio do bom. Não é o objeto que determina a ação e sim o próprio eu em seu princípio mais elevado que é a razão prática11”. Observa-se, sob o viés moral, uma ruptura com o caráter egocêntrico da regra de ouro (Não faça a teu próximo o que detestarias que te fosse feito).12 O imperativo categórico especifica tratar-se de máxima apenas se todos podem querer que a máxima deva ser respeitada por todos em situações comparáveis. Neste contexto apenas uma máxima que pode ser generalizada a partir da perspectiva de todos os afetados como uma “norma” é que pode comandar assentimento geral e portanto é digna de reconhecimento ou moralmente obrigatória. “... A intuição da alteridade verdadeira na própria raiz da pluralidade das pessoas volta a aparecer por detrás da Regra de Ouro, e é desse modo, diz Ricoeur, que a segunda formulação secundária do imperativo categórico recupera sua inteira originalidade. Mas isto não é fazer violência ao texto kantiano? A resposta de Ricoeur consiste em mostrar que os próprios textos da Fundação para a Metafísica dos Costumes ratificam a originalidade que ele reivindica para a ideia de pessoa como fim em si”13. A questão “Que devo fazer?” muda mais uma vez o seu sentido assim que minhas ações afetem os interesses dos outros e levem a conflitos que devem ser regulados de modo imparcial, ou seja, regulado sob o ponto de vista moral. Busca-se neste sofisticado uso da razão prática o entendimento mútuo, o respeito às diversidades procurando a verdade e o justo através do processo de diálogo onde os participantes libertos de entendimentos com carga egocêntricas excessivas assim como livres de violência e coações buscam entendimetos que possam se demonstrar legítimos e justos. Percebe-se aque tal modelo se apresenta plenamente compatível com as sociedadedes conteporânes heterogêneas, dessacralizadas e sem um centro ético único. “As normas que comandam o agir comunicativo e o discurso em vista do entendimento mútuo (que é uma forma, entre outras, do agir comunicativo) são, no fundo, bem simples. Elas fazem parte de nosso dia-a-dia, toda a vez que nos comunicamos com os outros em vista do entendimento: a 11

GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. p.4 12 MAGALHÃES, Theresa Calvet de. Os dois caminhos da liberdade em Kant. Ricoeur Leitor de Kant. Publicado primeiramente, em Belo Horizonte, na Revista da Faculdade de Direito, V. 10, n.20, PP. 129-154. 13 Idem

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universalidade – contra todas as discriminações, bairrismos, racismos e divisões – o respeito pelo outro, a sinceridade, a veracidade e o respeito pela verdade que excluem qualquer manobra procurando distorcer o processo de diálogo e de busca do verdadeiro e do justo e finalmente, a renúncia a todas as formas de violência e de coação14”. O uso prático moral necessita de um distanciamento das inquestionáveis verdades de uma vida ética concreta e estabelecida, assim como dos contextos de vida em que a identidade está indissoluvelmente entrelaçada. Apenas as normas que expressam interesses comuns de todos os afetados podem ganhar assentimento justificado, e como norma discursivamente justificada trazer a expressão simultânea do que é o interesse de todos e a vontade geral absorvida em si mesmo sem opressão. A vontade determinada pela razão prático-moral demonstra-se interna à razão argumentativa, aqui, a vontade autônoma é completamente interna à razão. “The higher-level intersubjectivity characterized by an intermeshing of the perspective of each with the perspectives of all is constituted only under the communicative presuppositions of a universal discourse in which all those possibly affected could take part and could adopt a hypothetical, argumentative stance toward the validity claims of norms and modes of action that have become problematic. This impartial standpoint overcomes the subjectivity of the individual participant’s perspective without becoming disconnected from the performative attitude of the participants”15. [A intersubjetividade de nível superior caracterizada pelo entrosamento da perspectiva de cada um com as perspectivas de todos só se constitui sob os pressupostos do discurso comunicativo universal onde todos aqueles possivelmente afetados poderão participar e adotar uma postura argumentativa hipotética para as recomendações de validade de normas e modos de ação que se tornarem problemáticos. Isso supera a subjetividade do ponto de vista da perspectiva de um único participante sem se desconectar da atitude performativa dos participantes]. (tradução livre) O trecho supra destaca que a intersubjetividade de nível superior caracterizase por um entrosamento da perspectiva de cada um com as perspectivas de todos, esta intersubjetividade se constitui apenas sob os pressupostos do discurso comunicativo universal segundo o filósofo, onde todos os possíveis afetados possam participar e adotar postura argumentativa nas pretensões de validade de normas, assim como nos modos de ação que se tornem problemáticos. Este 14

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GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. p.3 15 Idem: p.12

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ponto de vista imparcial supera a subjetividade do ponto de vista de apenas um participante sem se desconectar de sua atitude performativa. O significado imperativo dos comandos morais por si só podem ser entendidos como um “dever”, que não é dependente nem de “metas subjetivas” ou de “preferências” ou sobre o que é “bom” para mim. O julgamento moral de “ações” e “máximas” serve para esclarecer expectativas legítimas de comportamentos em resposta a conflitos interpessoais. Neste caso o indivíduo age de acordo com a autodeterminação das leis, aqui a “autonomia” liga-se ao sentido de que o indivíduo esta aberto às determinações de visões morais. Só uma vontade guiada por uma visão moral e, portanto “completamente racional”, pode ser considerada autônoma segundo Habermas.

Institucionalização do uso moral “São necessárias leis e instituições para por em prática nossas convicções morais, por exemplo no caso da fome do outro lado do mundo. O direito é a condição de uma solidariedade que ultrapassa o contexto da proximidade, o que também é válido em escala das sociedades modernas.16” O direito não pode ser considerado um sistema fechado em si, ao contrário deve possibilitar a abertura para o uso moral. Dentre os princípios do direito moderno há grande parte de princípios morais que possuem dupla estrutura: ao mesmo tempo em que são morais foram incorporados ao sistema jurídico pela positivação. Para Habermas, a racionalidade jurídica depreende-se do próprio ato de se seguir os procedimentos jurídicos que em grande parte são o entrelaçamento entre Moral e Direito, assim o Direito é constituído por normas onde as questões morais estão incorporadas, a racionalidade jurídica se dá através de um procedimento aberto à moralidade que se põe como esfera deontológica. (racionalidade procedimental prático-moral). O modo de validade do Direito não aponta somente para a expectativa política de submissão à decisão e coerção, mas também pela expectativa moral do reconhecimento racionalmente motivado de uma pretensão de validade normativa que se dá com a argumentação. Segundo Habermas, no processo de legislação pode emergir uma moralidade que emigrou para o direito positivo. Ao se fundamentar as normas, somente podem pretender validade, as normas capazes de obter assentimento de todos os indivíduos envolvidos como coparticipantes de um discurso prático. Percebe-se que a ética será válida, quando puder ser consensualmente justificada, sem coação. Este consenso racionalmente alcançado é que garantirá a pretensão de validade do Direito. 16

ROCHLITZ, Rainer. Razão e racionalidade em Habermas. In: Habermas: o uso público da razão/coordenado por Rainer Rachlitz [tradução Léa Novaes]. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

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As normas jurídicas devem simultaneamente ser consideradas como leis de obrigatoriedade e leis de liberdade, elas devem ser cumpridas não somente porque obrigam, mas também porque são legítimas, ou seja, o Estado de Direito precisa garantir a legalidade dos comportamentos, tanto por suas sanções como pelo respeito espontâneo às leis.

Evolução do pensamento de Habermas Depreende-se em Chamon17 o desenvolvimento do pensamento de Habermas, no que diz respeito especificamente à justificação do direito moderno. O início da respectiva teorização ocorreu com a obra (i) Theorie des Kommunikativen Handelns (1981) onde o “direito como meio” seria “demoralizado” tendo em vista sua validade estar desconectado do mundo da vida, bastando para sua legitimidade tão somente a referência a um procedimento de criação de normas; após alguns anos em (ii) Tanner Lectures (1986-1988), que pode ser considerada uma fase intermediária, Habermas passa “a não mais admitir qualquer justificação do Direito que faça exclusivamente referência a uma “racionalidade formal” própria do direito da modernidade... afirma o autor que a racionalidade ou sua validade, enfim, sua legitimidade somente poderse-ia compreender fazendo uma referência à Moral”.18 Finalmente (iii) em 1992 é publicada a obra Faktizität und Geltun que tratou de enfrentar grande reformulação na teorização do autor, tendo em vista que o mesmo avança rumo ao abandono de uma justificação moral do direito. Aqui rompe de vez não só com a tese sustentada na Theorie des Kommunikativen Handelns, mas também com a tese de sua Tanner Lectures, pois enquanto anteriormente buscava a justificação do Direito com base em um princípio moral, agora “o autor atentou para o fato de que o Direito não se refere somente a conflitos interpessoais capazes de serem moralmente referidos por também dotar de efetivo vinculante determinados programas ou finalidades coletivas”19. Depreende-se ainda em Chamon que Habermas neste momento percebe que reduzir a legitimidade do Direito a um “princípio moral” traria consequências contraditórias visto que argumentos não-morais, quais sejam, argumentos éticos e pragmáticos também são percebidos com seu potencial determinante quando de discussão e decisão legislativas. “Assim, na medida em que ocorre uma distinção funcional ao mesmo tempo em que se dá uma complementaridade entre o sistema do Direito e o sistema da Moral, Habermas se socorre na ideia de um princípio do discurso capaz de expressar as exigências pós-convencionais de 17

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CHAMON JR. Lúcio Antônio. Do caso especial da argumentação moral ao princípio do discurso. In: O fundamento do direito. Freitas e Bastos, RJ, 2008. P. 289 18 Idem 19 CHAMON JR. Lúcio Antônio. Do caso especial da argumentação moral ao princípio do discurso. In: O fundamento do direito. Freitas e Bastos, RJ, 2008. P. 291

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fundamentação normativa, e isso tanto no que se refere ao direito, quanto também à Moral. E este princípio, condensador das exigências normativas latentes, porém resgatáveis, de uma pragmática formal, agora não pretende ser confundido ou reduzido a tão-somente exigências morais; antes, trata-se de um princípio simultaneamente neutro em face do Direito e da Moral” 20. A racionalidade do Direito na Modernidade está atrelada à abertura comunicativa de conteúdos criticáveis, referidos e construídos socialmente com a participação de qualquer cidadão. Veja-se passagem onde Habermas enuncia o que é cobrado pelo princípio do discurso, “D”: Válidas son aquellas normas (y solo aquellas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su asentimiento como participantes em discursos racionales.”21. [Válidas são aquelas normas (e só aquelas normas) em que todos que possam se ver afetados por elas possam prestar assentimento como participantes em discursos racionais]. À medida que o princípio do discurso se coloca como um princípio neutro frente às normas morais e jurídicas compreende o autor que o princípio do discurso se especializa em outros dois princípios: “princípio moral” e “princípio democrático” enquanto se refiram respectivamente à moral ou ao direito. Chamon ensina que seja da perspectiva moral ou democrática o que se pretende é inserir um elemento normativo de imparcialidade nos juízos que haverão que ser providos racional e discursivamente. O próprio princípio democrático tem a finalidade de fixar um procedimento de criação e produção legítimas e racionais das normas jurídicas. Percebe-se no desenvolvimento da teoria de Habermas que não pretende mais explicar a validade do Direito apenas com uma racionalidade formal ou meras correções dos procedimentos institucionalizados de produção normativa, o que se vislumbra é que do entrelaçamento entre a forma jurídica moderna e sua dimensão institucional e o princípio do discurso, neutro em face do Direito e da Moral onde se pode perceber o próprio princípio democrático com a finalidade de fixar procedimento de criação e produção legítimas e racionais de normas jurídicas.

Conclusão Para uma existência legítima e racional o Direito deve existir em uma democracia onde as liberdades subjetivas (autonomia privada) e as liberdades comunicativas (autonomia pública) são respeitadas, assim é que se pode pretender um projeto de construção legítimo do Direito na modernidade. Com isso, há que serem simultaneamente reconhecidas as liberdades subjetivas onde se garante a busca de projetos particulares e individuais de 20 21

Idem HABERMAS, Jürgen. Derecho y moral. In: Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho em términos de teoria del discurso. p.176

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Discurso Jurídico como Forma de Discurso Prático-moral

vida (auto-realização ética) assim como as liberdades comunicativas capazes de garantir um espaço discursivo aberto à participação de todos e às mais variadas formas de argumentos discursivamente criticáveis. As leis, as decisões políticas e judiciais, portanto, dependem de aprovação pública da sociedade onde, as decisões racionais são aquelas onde se depreende as condições e pressupostos essenciais do discurso, em que se vêem argumentos sérios e relevantes submetidos ao processo de validade democrático de aceitação das normas. “Para sermos morais, devemos construir estruturas sociais morais, formas coletivas de viver em sociedade cujo princípio seja a universalidade, isto é, a garantia do respeito dos direitos de todos os seres humanos” 22.

Referências bibliográficas CHAMON JR. Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica, Contitucionalismo e Democracia em uma reconstrução das fontes do direito moderno. Lumen Juris. Rio de Janeiro 2009. CHAMON JR. Lúcio Antônio. Do caso especial da argumentação moral ao princípio do discurso. In: O fundamento do direito. Freitas e Bastos, RJ, 2008 GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. Disponível em: http://lightingnow.com.br/cursos/paulo_oliveira/A%20 ESPECIFICIDADE%20DO%20FATO%20MORAL%20EM%20HABERMAS.pdf; acesso em 10/06/14 HABERMAS, Jürgen. On the Pragmatic, the Ethical, and the Moral Employments of Practical Reason. in: Habermas, Jürgen. Justification and application: remarks on discourse ethics IJürgen Habermas; translated by Ciaran Cronin HABERMAS, Jürgen. Derecho y moral. In: Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho em términos de teoria del discurso. MARCANTONIO, Jonathan Hernandes. Justiça, Moral E Linguagem Em Rawls E Habermas: Configurações Da Filosofia Do Direito Comtemporâneo, São Paulo: Saraiva 2014 MAGALHÃES, Theresa Calvet de. Os dois caminhos da liberdade em Kant. Ricoeur Leitor de Kant. Publicado primeiramente, em Belo Horizonte, na Revista da Faculdade de Direito, V. 10, n.20, PP. 129-154 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2007 ROCHLITZ, Rainer. Razão e Racionalidade em Habermas. In: Habermas: o uso público da razão/coordenado por Rainer Rachlitz [tradução Léa Novaes]. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

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GUAZZELLI, Iara. A especificidade do fato moral em Habermas: o uso moral da razão prática. p.7

A Evolução do Círculo Hermenêutico em Schleiermacher, Heidegger e Gadamer Larissa Toledo Costa1 Resumo O objetivo deste trabalho é estabelecer uma conexão entre os conceitos de círculo hermenêutico propostos por Schleiermacher, Heidegger e Gadamer em suas respectivas obras e períodos históricos. Para isso, inicia-se uma breve abordagem sobre a hermenêutica, demonstrando acepções deste vocábulo, tendo como base, principalmente, sua origem etimológica. Passa-se, ato contínuo, para a análise da hermenêutica do início do século XIX, período denominado Romantismo, cujo autor de destaque é Schleiermacher. Posteriormente, segue-se para a análise de traços fundamentais da obra filosófica de Heidegger, ícone da ontologia fundamental, ressaltando sua visão do círculo hermenêutico. Após, conclui-se com a abordagem da circularidade proposta por Gadamer, cotejando-a com a dos autores anteriormente citados. Palavras-chave: Hermenêutica; ontologia; círculo hermenêutico. Abstract The objective of this research is to establish a connection between the concepts of hermeneutical circle proposed by Schleiermacher, Heidegger and Gadamer in their respective works and historical periods. At the beginning, there is a brief approach to hermeneutics, showing meanings of the word, based mainly its etymological origin. Immediately, is taken up the analysis of the hermeneutics of the early nineteenth century, the period known as Romanticism, whose author prominent is Schleiermacher. Subsequently, it follows for the analysis of fundamental features of the philosophical Heidegger´s work, icon of fundamental ontology, emphasizing his view of the hermeneutical circle. After it follows the approach proposed by Gadamer hermeneutical circle, comparing it with the previously mentioned authors. Keywords: Hermeneutics; ontology; hermeneutical circle.

Introdução Considerando a necessidade de explicar o significado do vocábulo hermenêutica, faz-se imperioso retomar a mitologia grega, segundo a qual Hermes, filho de Zeus e da ninfa Maia, seria o mensageiro dos deuses, pois trazia a mensagem destes aos mortais.2 Pode-se imaginar, pois, que Hermes 1

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Mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC); Pós-graduada em Direito Econômico e Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). HERMENÊUTICA JURÍDICA. Dicionário de Teoria e Filosofia do Direito. Alexandre Travessoni (Coord.). São Paulo:LTr, 2011. p.204.

A Evolução do Círculo Hermenêutico em Schleiermacher, Heidegger e Gadamer

precisava interpretar a vontade divina para então repassá-las. Essa tradição mitológica associa a hermenêutica à ideia de traduzir um sentido estranho em algo compreensível.3 Analisando etimologicamente, a palavra hermenêutica tem suas raízes no verbo grego hermeneuein – interpretar – e no substantivo hermeneia – interpretação. Conforme os ensinamentos de Richard Palmer, o verbo interpretar evoca três acepções primordiais: dizer, traduzir e explicar. Assim, demonstra-se a complexidade do processo interpretativo. O dizer pode ser identificado com a figura anunciadora do deus Hermes; também se relaciona com o modo como se exprime, por exemplo, em voz alta. Já o explicar remete ao aspecto discursivo da compreensão, daquilo que é explicado. Por fim, o traduzir seria trazer à tona algo que é estranho; “pressupõe a existência de dois mundos, o do autor e o do leitor, os quais devem se tornar compreensíveis.”4 O objetivo deste trabalho é abordar a hermenêutica do século XIX, conhecido como Romantismo – cujos principais autores são Schleiermacher e Dilthey – bem como identificar sua influência sobre o desenvolvimento da hermenêutica ontológica de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer.

A hermenêutica do séc. XIX – romantismo – e o círculo hermenêutico em Schleiermacher Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher5, apesar de não ter direcionado seus estudos para o Direito propriamente dito, mas para a Teologia e Filosofia, é considerado o precursor da Hermenêutica Moderna, embasando a hermenêutica jurídico-filosófica. Este filósofo procurou sistematizar a hermenêutica de forma geral, propondo o estabelecimento de princípios universais ao invés de regras específicas para cada segmento científico como o direito, a filosofia, as artes, a psicologia etc.6 A hermenêutica proposta por Schleiermacher abrange a interpretação gramatical e a psicológica, esta última, sem dúvida, a maior contribuição do autor para a formação das teorias do século XIX.7 Conforme Gadamer, a interpretação psicológica “é, em última análise, um comportamento divinatório, um transferirse para a constituição completa do escritor, um conceber o ‘decurso interno’ da feitura da obra, uma reformulação do ato criador”.8 3

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GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. p.49. 4 ALVES, Marcos Alexandre. Da hermenêutica filosófica à hermenêutica da educação. Acta Scientiarum. Education, Maringá, v.33, n.1, p. 17-28, 2011. 5 Nasceu em Breslau (a época parte da Alemanha, atual Polônia) em 1768 e morreu em Berlim em 1834. Foi teólogo, filólogo e filósofo. 6 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2008. p. 96. 7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. 3.ed. p.291 8 GADAMER. Verdade..., cit., p.292.

Larissa Toledo Costa

O cerne das observações feitas por Schleiermacher se refere ao fato de que os produtos das artes ou literatura chegam até os indivíduos de forma destacada do contexto em que foram elaborados. Isso gera uma perda, no entender deste filósofo, muito grande de sentido. Por isso, então, ele propõe a reconstrução do “mundo” a que pertence a obra9; todo seu entorno; todas as suas condições de existência. Como resultado destas reflexões, Schleiermacher introduz o postulado de que importa “compreender um autor melhor do que ele próprio teria se compreendido”.10 Neste período histórico, a arte da compreensão e interpretação (posteriormente denominada Hermenêutica) havia se desenvolvido em dois diversos sentidos: o teológico e o filológico. Do ponto de vista teológico, já se entendia que a Sagrada Escritura não podia ser compreendida individualmente em cada uma de suas passagens, de forma estanque. Isso porque seu sentido só seria totalmente compreendido a partir do todo da Bíblia. E assim foi desenvolvido, pelos precursores do período reformista da Bíblia (Lutero e seus seguidores), um princípio geral de interpretação conforme o qual os aspectos individuais de um texto devem ser compreendidos a partir de um contexto, em conjunto. Essa é a ideia rudimentar de um círculo hermenêutico. Para o nosso estudo, cumpre salientar que Schleiermacher, em seus aprofundamentos, reintroduziu o círculo hermenêutico nos debates hermenêuticos.11 Recorramos, então, aos seus próprios ensinamentos, a fim de extrair um exemplo da afirmativa invocada acima. O princípio hermenêutico, exposto e desenvolvido em várias direções pelo Sr. Ast, que assim como o todo seguramente é compreendido a partir do particular, também o particular apenas pode ser compreendido a partir do todo, é de tal alcance para esta arte, e tão indiscutível que já as primeiras operações não podem ser estabelecidas sem o seu emprego, visto que uma grande quantidade de regras hermenêuticas repousa mais ou menos sobre ele.12

O mesmo teólogo aduz, poucas páginas após que, à época, estavam no cume da exigência no que se refere à compreensão do particular a partir do todo, não sendo aceitável, pois, “uma retrospectiva sobre o já alcançado”.13 9

GADAMER. Verdade..., cit., p.265. GADAMER. Verdade..., cit., p.299. 11 BACELAR. Jeferson Antônio Fernandes. Interpretação jurídica contemporânea e círculo hermenêutico: percurso histórico-filosófico. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI/UFBA, 2008, Salvador. Anais eletrônicos...Salvador: UFBA, 2008. Disponível em:< http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/ salvador/jeferson_antonio_fernandes_bacelar.pdf. Acesso em: 24 nov. 2013>. 12 SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenêutica - arte e técnica de interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2010. p. 47. 13 SCHLEIERMACHER. Hermenêutica..., cit., p.54. 10

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Nas lições de Palmer, encontramos uma explicação mais clara do que seria o círculo hermenêutico: “(...) um conceito individual tira o seu significado de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo o horizonte constroi-se com os próprios elementos aos quais dá sentido”.14 Se cada um – o todo e a parte – dá sentido ao outro, a compreensão advinda deste esforço é circular. Daí surge a expressão círculo hermenêutico. A seguir, far-se-á uma breve explicação sobre a hermenêutica filosófica de Heidegger e Gadamer, estabelecendo-se o percurso evolutivo do chamado “círculo hermenêutico.”

Traços fundamentais da hermenêutica proposta por Heidegger: a questão do círculo hermenêutico Os estudos de Martin Heidegger15 foram imprescindíveis para o delineamento da hermenêutica contemporânea. O objetivo do presente texto, porém, não é abordar a obra completa e aprofundada deste filósofo, mas ressaltar alguns detalhes mais importantes e consoantes à questão do círculo hermenêutico. Heidegger foi aluno de Husserl, tendo seguido o método filosófico da abordagem fenomenológica. Nesse sentido, como a própria denominação indica, essa vertente analisa os fenômenos - como as coisas aparecem16 - a partir da experiência do ser humano em relação a eles. Seria o mesmo que dizer, por exemplo, que a fenomenologia se importa com o “como é ser humano” e não com o “que é ser humano”.17 A fenomenologia, para este autor, deriva das raízes gregas phainestai (ou phainomenon) e logos. Conforme demonstra Heidegger, phainomenon significa aquilo que se mostra, o manifesto, o revelado; logos seria aquilo que é transmitido na fala, tendo como sentido mais fundo o deixar que algo apareça. Dessa forma, essa consideração semântica – phainestai e logos – no sentido da fenomenologia refere-se a permitir “que as coisas se manifestem como o que são, sem que projectemos nelas as nossas próprias categorias. Significa uma inversão da orientação a que estamos acostumados; não somos nós que indicamos as coisas; são as coisas que se nos revelam.”18 Recorrendo aos ensinamentos de Cleyson Mello, pode-se resumir a contribuição de Heidegger à hermenêutica contemporânea: 14

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 94. Nasceu em Messkirk, Baden, na Alemanha, em 1889. Foi um dos maiores filósofos alemães, e no âmbito da filosofia existencialista é considerado representante da fenomenologia. Morreu em 1976. 16 O LIVRO DA FILOSOFIA. Tradução de Douglas Kim. São Paulo: Globo, 2011.p.253. 17 O LIVRO...cit.,p.253. 18 PALMER. Hermenêutica...cit., p. 133. 15

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Com Martin Heidegger (1889-1976), a questão do ser é desvelada, destacando a efetividade da existência (historicidade do “espírito vivente” e validade temporal da lógica no sentido de não ser possível identificarmos o sujeito do conhecimento como sujeito puro, ou seja, dissociado de sua historicidade. “Trata-se de uma hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade da pré-sença como condição ôntica de possibilidade da história fatual.” (Heidegger, 2002).19

O filósofo alemão realiza, pois, uma ruptura com a hermenêutica clássica – dos métodos de interpretação – cujo foco é o objeto e propõe uma hermenêutica filosófica, na qual é preciso buscar a essência do ser, mirando-se no sujeito. Pode-se dizer que, até Heidegger, a filosofia ocidental era marcada pela metafísica, sendo superada a partir do momento em que se distingue o ser do ente (diferença ontológica). Por isso, o cerne da filosofia heideggeriana é a ontologia, pois analisa questões relacionadas ao ser ou à existência. Recorrendo a uma das obras publicadas pelo autor – Ser e Tempo – têm-se as seguintes digressões: Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que questiona – em seu ser. [...] Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pré-sença.20

Heidegger ensina, no tocante à pré-sença, que o questionamento é uma procura e esta extrai do procurado sua decisão prévia; isso quer dizer que o questionamento precisa de uma orientação prévia do procurado. “Para isso, o sentido do ser já nos deve estar, de alguma maneira, disponível”.21 Já se aludiu: nós nos movemos sempre numa compreensão do ser. [...] Essa compreensão do ser vaga e mediana é um fato. [...] Essa compreensão vaga e mediana pode também estar impregnada de teorias tradicionais e opiniões sobre o ser, de modo que tais teorias constituam, secretamente, fontes da compreensão dominante.22 19

HERMENÊUTICA JURÍDICA. Dicionário de Teoria e Filosofia do Direito. Alexandre Travessoni (Coord.). São Paulo:LTr, 2011. p.206. 20 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 33. 21 HEIDEGGER. Ser...cit., p. 31 22 HEIDEGGER. Ser...cit., p. 31 e 32.

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Nas palavras de Cleyson Mello, “a pré-sença (ser-aí, Dasein) ‘é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele se relaciona e comporta.´”23 A partir da compreensão do ser é que se dá o acesso ao ser; esta compreensão é dada a partir da compreensão que o Dasein possui de si mesmo. De fato, assim acontece a circularidade hermenêutica: recíproca relação entre ser e ente. A pré-sença (ser –aí) é constituída pela compreensão e pela explicação. O sentido faz parte da própria estrutura prévia da compreensão, uma vez que ele é dado pela própria explicação.24 Toda interpretação se move na estrutura prévia já caracterizada. Porém, neste círculo esconde-se a possibilidade de descobrir o conhecimento mais originário, que vai se abrir por meio do desvelamento do ser (clareira, Aletheia). Para isso, é necessário que a interpretação não esteja contaminada, em sua elaboração prévia, por conceitos ingênuos e “chutes”.25 Considerando estas breves reflexões, é certo dizer que a circularidade hermenêutica substitui a linearidade encontrada na metafísica tradicional, cuja referência é a relação sujeito-objeto.26 Nota-se outro ponto interessante na obra de Heidegger: em Ser e Tempo ele não apenas retoma o círculo hermenêutico como lei fundamental da compreensão hermenêutica, como também o coloca como estrutura basal de toda a possibilidade de intelecção humana. Assim, enquanto a hermenêutica do século XIX identificava no círculo uma estrutura da compreensão histórica e literária (relação formal entre parte e todo do texto), Heidegger aponta que o círculo compõe toda a dinâmica existencial do existir no mundo, sendo o homem, finito e inteligente, sempre marcado por uma relação de sentido. Nesse ponto, afirma-se que Heidegger redimensiona a questão do círculo hermenêutico, anteriormente reestudada por Schleiermacher no período Romântico (séc. XIX). Porém, será Hans-Georg Gadamer, discípulo de Heidegger, que vai aprofundar no sentido mais intrínseco desta temática.

Gadamer e o círculo hermenêutico Constitui um marco no desenvolvimento da teoria hermenêutica moderna,27 a publicação de Verdade e Método: elementos de uma hermenêutica filosófica, por Hans-Georg Gadamer.28 Segundo Richard Palmer, este autor “apresenta-nos não só uma revisão crítica da estética moderna e da teoria da 23

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MELLO, Cleyson de Moraes. Hermenêutica e direito: a hermenêutica de Heidegger na (re) fundamentação do pensamento jurídico. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2006. p. 29 24 MELLO. Hermenêutica...cit., p. 30 25 HEIDEGGER. Ser...cit., p. 210. 26 MELLO, Hermenêutica...cit., p. 30 27 PALMER. Hermenêutica...cit., p. 167. 28 Nasceu em Masburg (Alemanha), em 1900, e faleceu aos 102 anos, deixando um legado marcante e relevante para a Filosofia geral, bem como para a Filosofia do Direito, especialmente para a hermenêutica.

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compreensão histórica, numa perspectiva heideggeriana, como também uma nova hermenêutica filosófica baseada na ontologia da linguagem.”29 Analisando os escritos de Gadamer, nota-se facilmente que ele traz à tona aspectos interpretativos, de modo mais acessível, do pensamento heideggeriano. Isso significa dizer que este filósofo, discípulo de Heidegger, trata de forma mais clara ao leitor, os contributos de seu mestre. No que tange à compreensão, alicerce do presente estudo, Gadamer vem dizer que esta “somente alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais ela inicia não são arbitrárias”30, pois não se pode trabalhar um texto a partir da própria subjetividade do intérprete. Para Gamader, inspirado nas lições de Martin Heidegger, a compreensão se desenvolve dentro de uma estrutura circular a partir da temporalidade da présença – este é o chamado círculo hermenêutico. Isso quer dizer que o intérprete inicia sua busca com conceitos prévios – pré-compreensão – que podem se modificar conforme o processo interpretativo avança. Suas compreensões prévias podem ou não se confirmar ao final da interpretação. Quem faz este exercício deve estar ciente que suas opiniões prévias – preconceitos – podem não ser adequadas.31 Para o mesmo autor, o compreender é uma acontecer, um salto; projeto lançado em direção ao ser. Aqui, registra-se uma de suas célebres frases: “quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar”.32 Quando o intérprete inicia, por exemplo, uma leitura, ele possui uma prévia compreensão em relação ao seu objeto de estudo (pré-compreensão); a partir daí se estabelece um projeto de compreensão para o todo, neste caso, todo o texto. Pode-se comparar tal circularidade, ao que acontece quando assistimos a um filme. No início, possuímos certa ideia incutida em nós ao primeiro contato com o nome do filme. Depois, à medida que a história se desenrola, nossa compreensão vai mudando e adaptando o entendimento de acordo com o conhecimento das partes do filme. Isso também acontece na literatura, nas artes, na música, no direito etc. Lênio Luiz Streck, importante ícone da Hermenêutica Jurídica no Brasil diz que: Em Gadamer, o primado da linguagem é o sustentáculo de seu projeto hermenêutico. Esse lugar cimeiro assumido pela linguagem é o sinal para o desencadeamento do giro linguísitco. Em sua principal obra, fala-nos de um acontecer da verdade no qual já sempre estamos embarcados pela tradição. Esse acontecer da verdade ocorre fenomenologicamente. Sua 29

Ibid.,p.167. GADAMER. Verdade..., cit., p.403. 31 ELÓI, André Luís Vieira. A construção de decisões judiciais sob a ótica da hermenêutica filosófica. 32 GADAMER. Verdade..., cit., p.402. 30

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hermenêutica é filosófica, e não metódica. Hermenêutica será, assim, o ex-surgir da compreensão, a qual dependerá da faticidade e historicidade do intérprete.33

Enfim, encerrando, neste estudo, a verificação dos contributos de Gadamer, conclui-se que o filósofo cuida de analisar a circularidade hermenêutica contrapondo o pensamento de Schleiermacher a uma nova visão à proposta de Heidegger; nega o subjetivismo contido em Schleiermacher, mas não a participação subjetiva do intérprete, pois esta é condição de possibilidade para qualquer interpretação.

Conclusão Retomando as referências abordadas no decorrer de todo o texto – origem do verbete Hermenêutica; reintrodução do círculo hermenêutico por meio de Schleirmacher; redimensionamento do círculo em Heidegger e aprofundamento do mesmo teorema por Gadamer – vê-se claramente a noção evolutiva do círculo hermenêutico durante toda a transformação da ciência hermenêutica. Por meio desta breve análise, demonstrou-se que, apesar de Heidegger ser bastante conhecido pelas asserções referentes ao círculo hermenêutico, a ideia já existia, mesmo que sem denominação específica, desde a época da interpretação reformista da Bíblia. A noção de compreender as partes para compreender o todo (e vice-versa) foi reintroduzida na hermenêutica proposta por Schleiermacher. Tampouco ficou restrito à obra de Heidegger, o círculo hermenêutico. Gadamer, filósofo alemão, discípulo de Heidegger, cuidou de aprofundar este instituto, materializando sua aplicação de diversas maneiras, inclusive no campo do Direito. Incontestável é que, estes estudiosos deixaram um imenso legado para a hermenêutica filosófica, delineando-a com atributos os quais são tão invocados por diversas áreas científicas.

Referências bibliográficas ALVES, Marcos Alexandre. Da hermenêutica filosófica à hermenêutica da educação. Acta Scientiarum. Education, Maringá, v.33, n.1, p. 17-28, 2011. BACELAR, Jeferson Antônio Fernandes. Interpretação jurídica contemporânea e círculo hermenêutico: percurso histórico-filosófico. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI/UFBA, 2008, Salvador. Anais eletrônicos... Salvador: UFBA, 2008. Disponível em:< http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/ jeferson_antonio_fernandes_bacelar.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2013. ELÓI, André Luís Vieira. A construção de decisões judiciais sob a ótica da hermenêutica filosófica. Disponível em: . Acesso em 26 mai 2013. 33

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STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 208.

Larissa Toledo Costa

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. 3.ed. 731 p. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. 335 p. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. 325 p. HERMENÊUTICA JURÍDICA. Dicionário de Teoria e Filosofia do Direito. Alexandre Travessoni (Coord.). São Paulo:LTr, 2011. 422 p. MELLO, Cleyson de Moraes. Hermenêutica e direito: a hermenêutica de Heidegger na (re) fundamentação do pensamento jurídico. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2006. 204 p. MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2008. 236 p. O LIVRO DA FILOSOFIA. Tradução de Douglas Kim. São Paulo: Globo, 2011.p.253. HERMENÊUTICA JURÍDICA. Dicionário de Teoria e Filosofia do Direito. Alexandre Travessoni (Coord.). São Paulo:LTr, 2011. 352 p. PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2011. 284 p. SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenêutica – arte e técnica de interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2010. 102 p. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 328p.

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Critérios Objetivos para Solução de Eventual Colisão entre Direitos do Empregador e Direitos do Trabalhador Sergio Leonardo Molisani Monteiro1 Resumo O presente trabalho tem por objetivo analisar o surgimento e evolução da tutela dos direitos da personalidade no direito do trabalho para, posteriormente, verificar os casos de preponderância de tais direitos frente aos poderes advindos da livre iniciativa, visto também como direito fundamental. Palavras-chave: Direito da personalidade; livre iniciativa; choque; critérios. Abstract This study aims to analyze the appearance and evolution of the protection of personality rights in labor law to subsequently verify the cases of preponderance of such rights against the coming of free enterprise powers, also seen as a fundamental right. Keyword: Personality rights; free enterprise powers; collision; solution methods.

Introdução O presente trabalho tem por objetivo analisar o surgimento e evolução da tutela dos direitos da personalidade no direito do trabalho, para em seguida identificar critérios objetivos para possível solução de eventual colisão entre direitos do empregador e direitos do trabalhador. Busca-se, por meio do estudo transdisciplinar, as bases dos paradigmas dos direitos da personalidade para somente depois relacionar o tema com o direito do trabalho, ramo do direito para o qual os direitos da personalidade não foram pensados originalmente, mas que, em sua evolução e, principalmente, em razão do constitucionalismo moderno que superou/rompeu as barreiras entre direito público e privado, se imiscuíram em todos os ramos, encaixando-se perfeitamente ao direito laboral. O estudo será realizado pela analise histórica dos direito da personalidade para em seguida averiguar sua aplicabilidade e efetividade no caso de eventual choque de direitos fundamentais. Para tanto, utilizar-se-á o método dialético, sendo que o marco teórico será o constitucionalismo moderno envolto pelos direitos fundamentais. 1

Advogado Especialista e Mestrando. Professor de Direito no IPTAN – São João Del Rei.

Critérios Objetivos para Solução de Eventual Colisão entre Direitos do Empregador e Direitos do Trabalhador

Cumpre, portanto, inicialmente, traçar os preceitos básicos do surgimento da tutela dos direitos da personalidade.

Constitucionalismo moderno – superação da dicotomia público-privado Importante destacar, juntamente com o desenvolvimento internacional da tutela da pessoa humana, o nascimento da era do constitucionalismo moderno em que as Constituições, a se iniciar pela Constituição de Weimar, passaram a tratar não somente de temas relativos à esfera pública, passando também a imiscuir-se na tutela da vida privada em seus aspectos mais essenciais, dentre eles a tutela da personalidade. Assim, de acordo com Lacerda: “A partir desta constatação, aliado ao fato de que a Constituição se colocou no vértice normativo inclusive para o Direito Privado, já que incorporou temáticas afetas a esta seara, iniciou-se o processo de “ofuscamento de fronteiras” entre o público e o privado, imposta pela summa divisio da modernidade”2

Ainda, sobre o desenvolvimento dos direitos da personalidade ao longo da evolução do Constitucionalismo Moderno, cumpre trazer a baila importante lição de Cantali: “O constitucionalismo moderno caracteriza-se pela limitação do poder estatal, afirmação dos direitos individuais, ainda que sua tutela fosse garantida em perspectiva meramente formal, bem como pela autonomia e liberdade irrestrita dos cidadãos para os atos da vida civil. Nessa perspectiva, havia uma forte separação entre o Direito Público, cuja carta política regulava todas as situações que emergissem das relações entre os particulares. O constitucionalismo social que se instaurou no pós-guerra demarca o crescente processo de intervenção do Estado nas relações sociais, o que se tornou necessário diante das atrocidades cometidas contra o ser humano. Diante desse novo delineamento de Estado interventor e promocional, vê-se a ampliação do elenco dos direitos fundamentais e sua garantia de forma substancial. Essa maior intervenção estatal nas relações entre os particulares abranda a dicotomia entre o público e o privado, caracterizando o fenômeno que se costumou denominar publicização do direito privado.”3

Como bem nos informa Maria Celina Bodin de Morais Tepedino, o deslocamento normativo, no qual a Constituição passou a ser vista como centro do ordenamento, passando a regulamentar institutos de direito privado, alterou 2 3

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Idem, p. 45 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51

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radicalmente o sistema jurídico onde a esfera pública e a particular passaram a se comunicar, deixando a segmentação de lado para fazer prevalecer a ideia de unidade do ordenamento jurídico, calcado no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais.4 Isso porque, nas ilustres palavras de Carlyle Popp e Ana Cecília Parodi5: “O governo jurídico das relações sociais à luz da constitucionalização passa a permitir, ligada a outras circunstancias históricas, que a norma constitucional comece a contemplar não somente regras de regulamentação e controle do Estado, mas também regras originalmente de Direito Privado, gerando aquilo que inicialmente foi chamado de constitucionalização dos princípios fundamentais do Direito Privado.”

E continuam: “Esta mudança propicia o reconhecimento da existência de um direito civil constitucionalizado. Direito este mais preocupado com uma visão solidária e protetora da dignidade humana, do que propriamente com os interesses individuais...”

Assim, como afirma Fachin: “na contemporaneidade não é possível se fazer uma análise mais ampla dos direitos da personalidade desvinculada de um exame da proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.” 6 Nesse sentido, passou-se a ter maior relevância a denomina função social, “segundo a qual todo instituto legal ou doutrinário possui um objetivo/conteúdo ajustado à finalidade constitucional.” 7 Essa mudança de perspectiva obriga ao operador do direito o poder-dever de “aplicar diretamente os princípios e os valores constitucionais não só as relações entre os indivíduos e o Estado, mas também nas relações interprivadas.”8 Tal relevante mudança no sistema jurídico constitucional mundial permitiu a aplicação horizontal dos institutos constitucionais, até então pensados somente para a aplicação em âmbito vertical (relação Estado-Particular) 4

TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Morais. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, a. 17, v. 65, p. 24, jul/set 1993 5 POPP, Carlyle. PARODI, Ana Cecília. Dignidade Humana, Direitos da Personalidade e Patrimônio Imaterial.IN GUNTER, Luiz Eduardo. Tutela dos direitos da personalidade na atividade empresarial. Curitiba: Juruá, 2009, p. 207 6 FACHIN, Luiz Edson. Direitos da Personalidade no Código Civil Brasileiro: elementos para uma análise de índole constitucional de transmissibilidade 7 POPP, Carlyle. PARODI, Ana Cecília. Dignidade Humana, Direitos da Personalidade e Patrimônio Imaterial.IN GUNTER, Luiz Eduardo. Tutela dos direitos da personalidade na atividade empresarial. Curitiba: Juruá, 2009, p. 209 8 LACERDA, Dennis Otte, Direitos da personalidade na contemporaneidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2010, p. 48

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Aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais – direitos da personalidade Inicialmente importante lembrar que os direitos fundamentais surgiram da luta burguesa pela liberdade individual, ou seja, foram pensados inicialmente como uma forma de proteção dos indivíduos frente aos poderes e abusos estatais. No âmbito do confronto liberdade individual versus autoridade, a área de tensão foi circunscrita às relações entre indivíduos e ente estatal, como se não fosse preciso defender os indivíduos de si mesmos, como se não houvesse os mais fortes e os mais fracos. Sobre o momento histórico importante mencionar que: “(...) O Código Civil se erige então na verdadeira carta constitucional da sociedade autossuficiente, sancionando os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual como eixos da regulamentação das relações jurídicas entre particulares. Carece de sentido estender a essas relações a eficácia dos direitos individuais se elas (as relações) se estabelecem, inicialmente, entre iguais, porque entre iguais as relações não podem ser senão livres. Por definição a liberdade se apresenta então (ideologicamente) como um precipitado da igualdade (formal ou jurídica).”9

Entretanto, após o advento do estado social, o Estado passou a ter a obrigação de intervir na sociedade na busca da liberdade material, ou da igualdade. A partir deste momento passou-se a possibilitar por meio do Welfare State a efetiva propagação de direitos sociais, culturais e econômicos, classificados como fundamentais de segunda dimensão. São valiosas as ponderações de Paulo Bonavides nesse sentido: “Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos de liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa 9

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No original: “El Código Civil se erige entonces en la verdadera carta constitucional de esa sociedad autosuficiente, sancionando los princípios de la autonomia de la voluntad y la libertad contractual como ejes de la regulación de las relaciones jurídicas inter privatos. Carece de sentido extender a este tipo de relaciones la eficacia de los derechos individuales si éstas se establecen, por principio, entre iguales, porque entre iguales las relaciones non pueden ser sino libres. Por definición. La libertad se presenta entonces (ideológicamente) como un precipitado de la igualdad (formal o jurídica).” (UBILLOS, Juan María Bilbao. “¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales?” In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 302

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e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade de valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude. Descobriase assim um novo conteúdo dos direitos fundamentais: as garantias institucionais.”10

Após os massacres da segunda guerra mundial o direito simplesmente positivista já não se mostrando suficiente para regulamentar as necessidades concretas do homem em sociedade obrigou uma revisão do direito para incorporara as noções do jus naturalismo com o desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana. Tem-se início o pós-positivismo que, em síntese, se presta a normatizar os princípios e efetivar a teoria dos direitos fundamentais, concedendo eficácia direta e imediata às normas constitucionais. A evolução acerca da aplicabilidade das normas foi tamanha que se passa a aplicá-las até mesmo horizontalmente, ou seja, nas relações entre particulares. Necessário se mostra destacar as ideias de Luís Roberto Barroso: “A ideia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares.”11

Tal fato se justifica ainda pela dupla proteção do Estado aos direitos fundamentais, de um lado, a proteção negativa que impede que o próprio Estado viole os direitos particulares, mas de outro lado, destaca-se a vertente positiva que obriga a promoção da proteção daqueles direitos de toda e qualquer violação, inclusive a dos particulares. A obrigação de proteção positiva do Estado tem sua razão de ser principalmente porque se constatou, historicamente, que o ente estatal já não mais se mostra como único centro de poder capaz de abuso e violação dos direitos dos particulares. Nesse sentido são as lições de Juan María Bilbao Ubillos: 10

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 565 11 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil”. In: Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, ano XXV, v. 65, n. 4, p. 22-28, 2007

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“É um fato facilmente constatável a progressiva multiplicação de centros de poder privados e a enorme magnitude que alguns deles vêm adquirindo. Representam na atualidade uma ameaça nada desprezível para as liberdades individuais. O poder já não está concentrado no aparato estatal, está disperso, disseminado na sociedade...”12

Desta constatação surge a necessidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, vertente denominada de eficácia horizontal, eficácia privada ou eficácia em relação a terceiros, tão indispensável para proteger os indivíduos de seus semelhantes, uma vez que atores privados também cometem atos contrários à dignidade da pessoa humana, abusam do direito, discriminam, oprimem os mais fracos e se beneficiam de centros de poder, que não são mais exclusividade do Estado. No âmbito do direito do trabalho é de fácil constatação a necessidade de tutela dos direitos fundamentais ou da personalidade haja vista que a empresa, na qualidade de detentora do poder empregatício, não raras às vezes, viola os valores intrínsecos à dignidade humana. Sobre os poderes do empregador relembre-se que não são poucos na medida em que o mesmo pode ser subdividido em poder de direção, poder de fiscalização, poder de organização, poder de controle e poder disciplinar. Tais poderes derivam, como cediço, da autonomia privada e da livre iniciativa, ambos também considerados como direitos fundamentais em nosso ordenamento. Entretanto, como veremos tais direitos, assim como todos os demais, não são absolutos, devendo ser sopesados com todos os demais, para que não possam ser utilizados de forma abusiva como justificativa para uma violação aos direitos dos trabalhadores. Relembre-se que antes de serem trabalhadores, aqueles sujeitos são cidadãos, donde é impossível separarmos os direitos.

Direitos da personalidade Seguindo a corrente mundial a Constituição brasileira de 1988 elencou expressamente em seu artigo 1º, inciso III o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do estado brasileiro. 12

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No original: Es un hecho fácilmente constatable la progresiva multiplicación de centros de poder privados y la enorme magnitud que han adquirido algunos de ellos. Representan en la actualidad una amenaza nada desdeñable para las liber tades individuales. El poder ya no está concentrado en el aparato estatal, está disperso, diseminado en la sociedad.” (UBILLOS, Juan María Bilbao. “¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales?” In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 301-340

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“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;”

Tratado então como princípio fundamental conclui-se que ela deve servir como sustentação, alicerce, base de todo o sistema, mas, principalmente como ponto de partida para toda aplicação e/ou interpretação do direito constitucional ou mesmo infraconstitucional. E nas palavras de Fachin: “Essa perspectiva principiológica da dignidade humana serve de substrato normativo e axiológico de todos os demais direitos não patrimoniais, como os direitos da personalidade.”13 Assim, o desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana e sua incorporação aos sistemas jurídicos modernos se mostrou como sustentáculo dos Direitos Fundamentais ou dos Direitos da Personalidade. Isso porque a história dos Direitos da Personalidade se confunde com a dos Direitos Fundamentais, na medida em que a aplicação daqueles teve sua origem no reconhecimento destes. Pelo exposto e pautado no pensamento de Bittar acerca da relação entre direitos da personalidade e direitos fundamentais: “Alguns desses direitos quando enfocados sob o aspecto do relacionamento com o Estado e reconhecidos pelo ordenamento jurídico positivo, recebem o nome de liberdades públicas. São, pois, os mesmos direitos, mas examinados em planos distintos.”14

Percebe-se, pois, que os direitos da personalidade são, portanto, os desdobramentos dos direitos fundamentais aplicados em âmbito privado. Exatamente sobre o tema destaque-se: “...deve-se entender que, quando nos referimos aos direitos humanos, estamos na seara dos direitos individuais protegidos em relação ao arbítrio do Estado. De outro giro, ao tratar dos direitos da personalidade, sem dúvida, se está diante dos mesmos direitos, mas sob o ângulo das relações entre particulares.”15

Os direitos da personalidade podem então ser conceituados de forma sintética como sendo aqueles direitos que concedem um poder às pessoas para proteger os seus mais importantes atributos e qualidades essenciais em âmbito extrapatrimonial, porém infraconstitucional. Nesse sentido são as palavras do ilustre Min. Alexandre Belmonte: 13

FACHIN, Luiz Edson. Direitos da personalidade....p. 9 BITTAR, Carlos Alberto. Curso de Direito Civil, vol I, Forense Universitária, Rio de Janeiro, p. 201 15 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade...p 35 14

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“Direitos da personalidade são os direitos subjetivos destinados a garantir a integridade física, intelectual e moral do indivíduo, em prol de uma existência livre, igualitária, valorizada, justa e solidária na ordem política, econômica e social, e tendo por fundamento a dignidade da pessoa humana.”16

Pelo exposto e pautado no pensamento de Bittar: “Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico, exatamente para a defesa dos valores inatos ao homem, como a vida, a rigidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.”

Constata-se, pois, que os direitos da personalidade são espécies do gênero direitos fundamentais. Assim, toda e qualquer infração aos atributos essenciais da pessoa, mesmo que em relações privadas, acarretará na infração aos direitos da personalidade devendo, pois, permitir a tutela do Estado. Após breve conceituação, necessário se mostra trazer também de forma sucinta a classificação dos direitos da personalidade. De forma ampla é possível distinguir os direitos da personalidade em três âmbitos de proteção: o primeiro visa à proteção da integridade física do indivíduo, o segundo busca a tutela do ser em aspecto psicológico e o terceiro e último foca o âmbito moral. Entretanto há quem os classifiquem de forma mais específica, dentre eles Adriano de Cupis17 que os distinguem em a) direito à vida e à integridade física; b) direito sobre as partes destacadas do corpo e direito sobre o cadáver; c) direito à liberdade; d) direito ao resguardo, subdividindo-se na tutela da honra, do resguardo e do segredo; e) direito à identidade pessoal, incluindo-se aqui a tutela do nome, do título e do sinal pessoal; f ) direito moral de autor. Já Limongi França18 os distinguem nas seguintes categorias: a) direitos à integridade física, incluindo-se aqui o direito à vida e aos alimentos, direito sobre o corpo... b) direitos à integridade intelectual, incluindo-se aqui a tutela da liberdade do pensamento, de autoria... c) direitos à integridade moral, incluindo-se aqui a tutela da liberdade civil, política e religiosa, da honra, do segredo, da imagem, ..

Por todas as classificações pode-se constatar que tais direitos se referem à proteção do ser individualmente, mas também na proteção do indivíduo como ente social. 16

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BELMONTE, Alexandre Agra. Danos morais no direito do trabalho – Identificação e composição dos danos morais trabalhistas – 3ªed. rev. ampl. cf. EC 45/2004. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 75 17 DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Livraria Morais Editora, Lisboa, 1961, p. 38 e ss 18 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Instituições de direito civil, 3. ed. Editora Saraiva, 1994, p. 1037/1038

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Superada a classificação, passa-se a descrição de suas características, para tanto, utiliza-se dos dizeres do Min. Alexandre Belmonte19: “Os direitos da personalidade são interiores, absolutos, extrapatrimoniais, necessários e vitalícios, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis e ilimitados. Incidindo sobre atributos ou valores localizados no interior do ser humano (...) exercitáveis erga omnes (...) com o objetivo de resguardar a dignidade e a integridade da pessoa humana.”

Após a breve elucidação do conceito, classificação e caracterização dos direitos da personalidade necessário se mostra a analise dos casos de choque entre estes direitos e os poderes empregatícios advindos do direito fundamental da livre iniciativa.

Livre iniciativa e poder empregatício versus direitos da personalidade – choque entre direitos fundamentais Ao mesmo tempo em que aos trabalhadores são garantidos os direitos da personalidade, aos empregadores, vistos como centros de poderes, serão garantidos os poderes empregatícios decorrentes diretamente do direito fundamental à livre iniciativa. Nesse sentido, relembre-se a redação do art. 1º, inciso IV e o art. 170 ambos da CF/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;” “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:”

Pela simples analise dos artigos transcritos podemos perceber a coexistência da tutela dos valores fundamentais do trabalhador e da tutela da livre iniciativa. Como cediço, é da natureza da relação trabalhista a subordinação do empregado frente ao poder diretivo do empregador. Exatamente em razão dos poderes do empregador frente ao empregado, é característica basilar da relação trabalhista a desigualdade entre o detentor do trabalho e o trabalhador. É neste aspecto que os direitos da personalidade lhe podem ser oponíveis ao empregador, visto como centro de poder. 19

BELMONTE, Alexandre Agra. Danos morais no direito do trabalho – Identificação e composição dos danos morais trabalhistas – 3. ed. rev. ampl. cf. EC 45/2004. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 80 e ss

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Os poderes do empregador se prestam, pois, a garantir o pleno exercício da atividade econômica protegendo a produtividade, o patrimônio da empresa, dentre outros.., entretanto, invariavelmente, tais poderes acarretam por limitar ou violar alguns dos direitos dos trabalhadores, dentre eles, os direitos relacionados à sua personalidade. Ocorre que, analisando a jurisprudência pátria constata-se a inexistência de critérios objetivos para o julgamento dos casos em que a discussão envolve o choque entre os direitos da personalidade dos trabalhadores e os poderes empregatícios advindos do direito fundamental da livre iniciativa. É nesse sentido que se busca elencar alguns critérios que utilizados caso a caso poderão apontar uma saída mais segura.

Critérios para licitude da conduta do empregador Primeiramente se mostra importante verificar se no caso concreto existe alguma norma autônoma ou heterônoma que autorize o procedimento. Nesse sentido são as palavras de Luciano Dorea Martinez Carreiro: “A solução nestes casos é alcançada mediante a avaliação do direito fundamental que, concretamente, merece maior proteção. Esta maior proteção é oferecida àquele direito que, dentro de uma escala comparativa de valores, ao menos num instante específico, se revelou, por força de norma autônoma ou heterônoma permissiva e por conta da real necessidade, preponderante.”

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Não basta, entretanto, a existência de alguma norma que possibilite a intervenção, é necessário, também, que tal medida se mostre adequada, ou seja, se mostre absolutamente necessária como meio para o fim que se pretenda. E cumpre lembrar que adequada é aquele medida que esteja em conformidade com o objetivo e que se mostre limitada a prática de atos indispensáveis ao alcance dos fins a que se destina. Além disso, é necessário sempre realizar, no caso concreto, uma ponderação, na medida em que, a estes casos, os critérios de antinomia não se prestam. Assim, a ponderação se mostra como única saída uma vez que, por se tratar de choque entre direitos fundamentais, tais direitos não podem ser afastados, mas sim, sopesados. E tal ponderação pode ser alcançada por meio de critérios como o da proporcionalidade e da razoabilidade. A proporcionalidade se mostra como critério comparativo para que se possa verificar, de acordo com as circunstancias concretas, qual direito deve prevalecer. Após o exame da proporcionalidade é necessário, por meio da razoabilidade, ajustarmos o direito ao caso concreto utilizando-se da equidade. Tais critérios, ainda que não apontem uma solução fixa e predeterminada, servem como formas objetivas e neutras para a solução, no caso concreto, dos conflitos entre direitos fundamentais.

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Conclusão Com o desgaste do modelo liberal em razão dos abusos burgueses relativamente a ampla liberdade e ocorreu uma valoração da pessoa humana e de sua dignidade em contraponto ao patrimônio. Deu-se início ao Estado Social. Esta mudança se intensificou no pós-guerra em razão das atrocidades cometidas e cujos Estados e ordenamentos não se mostravam suficientemente amparados para enfrentar o problema. A possível saída se deu pela concepção da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana, reconhecida internacionalmente, passou a ser incorporada aos ordenamentos internos como princípio fundamental e, como tal, norteador de todo o sistema. Com a evolução constitucional do sistema deu-se início à queda das antigas barreiras entre o público e o privado, ou seja, todo o sistema passou a ser analisado e repensado de acordo com a constituição, não mais fazendo sentido separar de um lado a tutela da pessoa frente ao estado e de outro a tutela da pessoa frente aos seus semelhantes. Com isso desenvolveu-se a proteção dos direitos extrapatrimoniais das pessoas não somente em relação ao Estado (âmbito vertical), mas principalmente em relação aos próprios particulares (horizontal). Ainda, importante lembrar que entendidas como centros de poder, as empresas e seus empregadores, pelos poderes que possuem, podem, eventualmente, serem infratores dos direitos da personalidade. A tutela dos direitos da personalidade se mostra necessária em toda e qualquer situação, haja vista tratar-se dos direitos sem os quais uma pessoa não pode existir. Ocorre que, além da tutela dos direitos da personalidade, o ordenamento garante também ao empregador como direito fundamental o direito a livre iniciativa e seus consectários legais, dentre eles os poderes de fiscalização, de direção, etc. Soma-se a isto o fato de que da própria natureza da relação trabalhista decorre a subordinação. É desse quadro que se constata verdadeiro choque entre os direitos da personalidade dos trabalhadores e os poderes empregatícios advindos da livre iniciativa. Tal choque não pode ser decidido de forma ampla, geral e abstrata, pelo contrário, deve sempre ser decidida levando-se em conta as peculiaridades do caso concreto. Isso porque, os critérios de antinomia não se mostram aptos à solução de choque entre direitos fundamentais, os quais não podem ser afastados, mas sim sopesados. Exatamente neste sentido destacam-se as lições do ilustre Ministro Alexandre Agra Belmonte em entrevista divulgada no site do TST:

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“O poder empregatício decorre da livre iniciativa, que é um direito fundamental, previsto na Constituição. Por outro lado, o direito fundamental do trabalhador de ter a sua liberdade também está previsto na Constituição. Então, não podemos negar a vigência da Constituição para dizer que o direito que vale é do empregador, ou o do empregado. O problema é fazer esses ajustes na situação concreta, quando estamos diante de um caso de possível abuso.” “O que dispomos é do material jurídico próprio para resolver conflitos: usamos os princípios da proporcionalidade, verificamos na hipótese qual direito deve prevalecer, e o ajustamos ao princípio da razoabilidade” “São critérios juridicamente importantes para resolução dos conflitos, que acabam correspondendo a uma lógica, que não é necessariamente a minha ou a sua. Isso é um critério seguro porque parte de um ponto de vista neutro.”

Conclui-se, pois, que critérios objetivos se mostram absolutamente necessários para que a solução de casos em que se chocam os direitos da personalidade e os poderes empregatícios se de forma mais neutra possível. Para tanto, aponta-se como possível fórmula a ponderação que, no caso concreto, será compreendida por critérios como o da normatividade, da adequação, da proporcionalidade e da razoabilidade, aplicados de forma conjunta. Tal proposta, ainda que não apontem uma solução matemática, se mostra apta a uma resposta segura e objetiva ao ordenamento e à justiça.

Referências bibliográficas

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A Evolução Jurídica da Proteção do Cônjuge e do Companheiro no Direito Sucessório Roberto Ferreira Dantas1 Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar a ordem de vocação hereditária no direito vigente e suas implicações nos direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro. No direito brasileiro, após várias alterações legislativas no Código de 1916 teve sua posição preservada no 3º lugar, herdando independente de regime de bens do casamento. O Código Civil de 2002 inovou os direitos sucessórios do cônjuge, elevando-o à categoria de herdeiro necessário. Posição considerada privilegiada pelos doutrinadores, pois além de ser o terceiro na ordem de vocação hereditária e concorrer com os herdeiros de primeira e segunda classe, os descendentes e os ascendentes do de cujus, tem garantida a sua legítima na herança conforme os artigos 1.845 e 1846. Quanto à sucessão do companheiro, o Código a regulamenta de forma bem sucinta, gerando dúvidas e questionamentos quanto à sua posição comparada a do cônjuge sobrevivente. O tratamento diferenciado dispensado à sucessão do cônjuge e do companheiro ocasiona graves prejuízos aos mesmos, pois ora beneficia o companheiro, ora o cônjuge criando situações intoleráveis. Palavras-chave: Direito sucessório; cônjuge; companheiro. Abstract This article aims to analyze the order of heredity in the existing law and its implications for succession rights of spouse and partner. Under Brazilian law, after several legislative changes in the Code of 1916 had preserved its position in 3rd place, regardless of inheriting property regime of marriage. The Civil Code of 2002 has innovated the succession rights of spouses, elevating it to the status of heir needed. Privileged position considered by scholars, as well as being the third in order of heredity and compete with the heirs of first and second class, descendants and ascendants of the deceased, has guaranteed their legitimate inheritance in accordance with articles 1845 and 1846 how to succeed fellow, the Code regulates very succinctly, generating doubts and questions as to its position compared will the surviving spouse. The differential treatment of the succession of spouse and partner causes serious damage to them because sometimes enjoys the companion, now the spouse creating intolerable situations. Keywords: Succession law; spouse; companion.

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Bacharel em Direito pela UNESA, Pós-graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNESA.

A Evolução Jurídica da Proteção do Cônjuge e do Companheiro no Direito Sucessório

Introdução O Direito das Sucessões enraizado no ramo do Direito Civil, é ramificação do direito privado que tem por objetivo regular todas as relações jurídicas das pessoas, seja de umas para com as outras, seja das pessoas em relação às coisas, abrangendo, outrossim, as relações obrigacionais e familiares. Segundo Fábio Ulhoa Coelho “o direito civil é vocacionado ao estudo das normas jurídicas pertinentes às relações privadas entre pessoas. Sob influência do racionalismo ocidental, alguns povos procuraram concentrar, em grandes diplomas jurídicos denominados, código civil, pretensamente todas as regras disciplinares dos conflitos de interesse privado.”2 O direito das sucessões é ramo do direito civil que dita às regras que serão aplicadas em caso de falecimento no que atina à transferência dos bens deixados pelo de cujus, também chamado autor da herança. Como bem leciona Jorge Shiguemitsu Fujita “direito das sucessões é o conjunto de regras jurídicas que regem a substituição de uma pessoa na titularidade de uma relação jurídica que lhe advém de outra pessoa, em virtude da morte desta, havendo a transferência da herança ou do legado, ao herdeiro ou ao legatário, seja por força da lei, seja em virtude de testamento ou de disposição de última vontade.”3 Para Carlos Roberto Gonçalves o “referido ramo do direito disciplina a transmissão do patrimônio, ou seja, do ativo e do passivo do de cujus ou autor da herança para seus sucessores.”4 Tais regras têm por finalidade, em outras palavras, estipular as diretrizes que estabelecerão quem serão os herdeiros do morto, sejam legítimos, testamentários ou legatários, e o quinhão ou o bem que será deferido a tais herdeiros. Importante mencionar, desde logo, que há em nossa legislação duas espécies de sucessão: a legítima e testamentária. Em poucas palavras, a primeira prevê as regras aplicáveis caso o autor da herança não tenha deixado testamento. Aplica-se, neste caso a disciplina que exsurge da incidência do Código Civil. Jorge Shiguemitsu Fujita conceitua sucessão legítima como “aquela que resulta da lei, quando a pessoa falecer sem deixar testamento, ou quando a pessoa falecida deixa bens que não estiverem compreendidos no testamento, ou quando houver casos, de nulidade, de anulabilidade, de caducidade, revogação ou rompimento de testamento.”5 A sucessão testamentária, de seu turno caracterizase pela derradeira manifestação volitiva, antecipando-se e sobrepondo-se esta à Lei, de tal sorte que existindo testamento será inicialmente observada a vontade 2

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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 20 3 In Curso de Direito Civil. Direito das Sucessões. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 6 4 Direito Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. VII, p. 2 5 op cit., p. 09

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do testador (autor da herança) para que se necessário for, incida a ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil. No que atina aos testamentos Arnoldo Wald aduz que “o testamento era definido pelo Código Civil brasileiro de 1916 como o, ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a Lei, dispõe no todo ou em parte, de seu patrimônio para depois de sua morte.”6 A inspiração do legislador de 1916 foi o artigo 895 do Código Civil Francês, a despeito de considerar inconveniente que a Lei apresente a definição de determinado instituto jurídico de particulares. Além disso, também são considerados particulares os bens que sobrevierem ao casamento e que forem adquiridos a título gratuito e de forma isolada por cada cônjuge, como por meio de doação ou herança. No mais, também mantém a condição de bens particulares aqueles que forem adquiridos em sub-rogação aos particulares e, substituindo-o, adquirida outro, este último, embora adquirido na constância do casamento e de forma onerosa, manterá a qualidade de particular. Em síntese, integram a comunhão os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento, na exata medida em que os que sobrevierem ao casamento a título gratuito pertencerão exclusivamente ao cônjuge que os recebeu, assim como os que cada cônjuge possuía antes de casar, sem prejuízo daqueles que substituírem os que eventualmente forem alienados. Atribui-se a tais bens, repisando, a denominação de particulares. No que toca à alienação de bens, é importante mencionar que será necessária, com a ressalva do artigo1.648 do Código Civil, a assinatura de ambos os cônjuges visando à validade do ato, porquanto é inválida a alienação de imóveis feita apenas por um dos nubentes sem a autorização do outro. É a denominada outorga conjugal. De todas modificações ocorridas, a que talvez gerou maior perplexidade é o que dispõe os artigos 1.829 e 1.790, o primeiro alterando profundamente a ordem de vocação hereditária, e o segundo regulando a sucessão do companheiro. Outro aspecto acerca do assunto envolve as leis especiais nº 8971/94 e nº 9678/96. Ambas preenchiam as lacunas do Código Civil de 1.916. Contudo, com a entrada em vigor do novo Código Civil, surge a problemática de sua receptividade, o que torna incerta a aplicabilidade da regra do art. 2º,§ 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual, A Lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que se trata lei anterior. Assim resta claro que o novo Código Civil surge com a finalidade de revogar o antigo Código, tendo em vista que já não mais acompanhava a modernização das relações sociais, principalmente no que tange ao Direito Sucessório do cônjuge e do companheiro. É possível afirmar que o Código Civil de 2.002 veio substituir a antiga ordem, de forma completa e satisfatória, de modo que trouxe grandes avanços em matéria sucessória, comparando ao que preceituava o Código velho. 6

Direito Civil. Direito das Sucessões. 14. ed.São Paulo: Saraiva, 2009. p. 129

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Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal de 1988 passou a tutelar as relações duradoras entre homens e mulheres que não constituíssem casamento, denominando-as de união estável. A Carta Magna equiparou, a união estável a entidade familiar, o que suscitou diversas dúvidas com relação à extensão das proteções do casamento ao novo instituto. Gustavo Tepedino escreve a respeito do advento da nova ordem constitucional: “A Constituição Federal, centro reunificador do direito privado, disperso na esteira da proliferação da legislação especial, cada vez mais numerosa, e da perda de centralidade do Código Civil, parece consagrar, em definitivo, uma nova tábua de valores. O pano de fundo dos polêmicos dispositivos em matéria de família pode ser identificado na alteração do papel atribuído às entidades familiares e, sobretudo, na transformação do conceito de unidade familiar que sempre esteve à base do sistema. Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade de seus filhos.”7

A Constituição Federal deixa de observar a família apenas como vínculo formal, passando a olhar o aspecto funcional de cada um, bem como a dignidade de cada ente pertencente à família. Tal concepção derivou da proteção Constitucional à dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III do Texto Magno, o que orienta todas as alterações das relações pessoais, bem como as garantias legais aos companheiros. É o Estado protegendo, o que antes não detinha amparo legal. A grande crítica a comparação da união estável à entidade familiar teve como pilar a ideia de que, com tal iniciativa, o Estado estaria desprestigiando o instituto do matrimônio. Com a Constituição Federal de 1988, a análise do direito sucessório tanto do cônjuge quanto do companheiro passou a orientar-se pelos princípios de liberdade, igualdade, e principalmente da dignidade da pessoa humana. O Texto Constitucional agregou a família um caráter de patrimonialidade, o que gerou efeitos reflexos ao que é pertinente ao direito sucessório. Com efeito, o constituinte concedeu maior efetividade às relações de direito de família, bem como valorizou equitativamente as diversas modalidades de entidade familiar. A promulgação da Constituição Federal iniciou o fenômeno chamado de constitucionalização do direito civil8. Verifica com isso que os princípios 7 8

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TEPENDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. p. 01. IN TEPENDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para constitucionalização do Direito Civil. p. 07.

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constitucionais são grandes colaboradores para a evolução do direito sucessório, tanto para o cônjuge quanto para o companheiro, pois, ao constitucionalizar o Direito Civil, afastou-se a concepção individualista, tradicional e conservadora do Código de 1916. Portanto qualquer norma jurídica do direito das sucessões deve estar em plena consonância com as normas constitucionais. A Constituição Federal enuncia os seguintes princípios como basilares na proteção das entidades familiares no âmbito sucessório: a) O princípio e fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III); b) O princípio da tutela especial à família independentemente da espécie (art. 226, caput); c) O princípio e o fundamento do pluralismo e da democracia no âmbito dos organismos familiares, bem como da escolha da espécie da família (art. 1º, inciso V); d) O princípio e o objetivo da beneficência em favor dos partícipes do organismo familiar (art. 3º, inciso IV). Assim, conclui-se que o constituinte buscou, por meio de inserção na matéria constitucional, preencher o vácuo legislativo atinente à questão da união estável, garantindo-lhe desta forma a aplicação dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, equiparando-a à entidade familiar.

A sucessão do cônjuge no código civil No que diz respeito à sucessão do cônjuge, a primeira alteração significativa foi a inclusão do mesmo nas duas primeiras classes sucessórias, concorrendo com descendentes e ascendentes, nos termos do art. 1.829 do Código Civil de 2002. A interpretação do dispositivo legal do caput do art. 1829, inciso I é a seguinte: herdarão em concorrência com o cônjuge sobrevivente, a totalidade da herança do de cujus, exceto nas seguintes hipóteses: a) se o falecido era casado sob o regime da comunhão universal; b) se casado o de cujus sob o regime da separação obrigatória de bens; c) se casado sob o regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. Ou seja, herda o cônjuge casado no regime de separação total dos bens, com participação final nos aquestos, e aquele que não havendo bens particulares seja casado pelo regime de comunhão parcial de bens. O fato da nova regra de participação excepcionalizar a herança do cônjuge na hipótese de casamento pelo regime de comunhão universal de bens, tem como fundamento primordial a sua participação na meação, que lhe garante, em etapa anterior a sucessão, a metade dos bens do de cujus. Já com relação ao regime de separação obrigatória dos bens, o que pretendeu o legislador foi a simples exclusão do cônjuge da herança, para que não se beneficie do patrimônio do falecido. Ademais, se o cônjuge era casado pelo regime da comunhão parcial dos bens, encontramos a seguinte situação: concorrerá pela herança com os descendentes, ou melhor, concorrerá a totalidade da herança, na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares. Ocorre a sucessão legítima de todo o patrimônio deixado como herança pelo falecido, composto pelos ativos, passivos, bens particulares e bens da meação. Outra inovação encontra-se no art. 1832 do Código Civil, que preceitua: Em concorrência com os descendentes (art. 1829,

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inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer. O cônjuge herdará uma quarta parte, sendo os três restantes divididas por cabeça entre os descendentes. Isto só ocorrerá se o cônjuge for ascendente de todos os herdeiros com quem concorrer. Havendo herdeiros não descendentes seus (ainda que em concorrência com outros descendentes), sua cota será igual à deles. O Código Civil de 2002 mantém o direito real de habitação, conforme dispõe o art. 1831. Contudo, a nova redação do Código Civil retirou a expressão “enquanto viver e permanecer viúvo,” utilizada anteriormente pela lei nº 9278/96. De plano, vislumbra-se que a alteração mais importante é a inclusão do cônjuge no rol dos herdeiros necessários, só podendo ele ser afastado na hipótese da deserdação, e não mais pelo testamento, como era na antiga legislação.

A sucessão do companheiro no código civil A sucessão do companheiro também foi alvo de significativas mudanças com a entrada em vigor da nova lei civil. Por exemplo, o reconhecimento dos direitos sucessórios do companheiro. Porém, cumpre referir que a matéria não foi tratada no âmbito da ordem da vocação hereditária, mas dentro das disposições gerais da sucessão, o que distancia a sucessão do companheiro da do cônjuge. Em que pese o exposto, afirma-se que a inclusão dos direitos sucessórios do companheiro dentro do corpo do Código Civil, trazendo para a regra geral disposições que eram encontradas em legislações esparsas, foi uma grande inovação. É o que dispõe o art. 1790 da referida lei. Tal é a discrepância de tratamento, que afirma-se que houve um equívoco do legislador, que confundiu a sucessão com o instituto da meação, ao afirmar em lei que: “a sucessão se limita a vigência da união estável.” Assim, conclui-se que somente os bens adquiridos na constância da união são os que compõem a sucessão do companheiro. Ainda, a lei limitou a sucessão àqueles bens adquiridos onerosamente, o que exclui os bens recebidos por doação ou por herança do companheiro falecido. A crítica pertinente a disposição legal, como a feita por Silvio de Salvo Venosa, encontra-se na hipótese do falecido não deixar nenhum outro herdeiro, fazendo com que seu companheiro só herde aquilo que adquiriram durante a união estável. Por consequência, os demais bens serão considerados vacantes9, passarão a integrar o patrimônio da Fazenda Pública. Arnaldo Rizzardo comentando o tema, enfatiza que: é incompreensível a diferença referente ao casamento, onde cônjuge receberá o total da herança se não houver parente descendente ou ascendente (art. 1838). Na União Estável, têm prioridade os parentes em ordem inferior, significando a distinção frente ao casamento, a toda evidência mais prestigiado.10 9

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IN. VENOSA, Silvio de Salvo. Op. Cit. p. 68-69. RIZZARDO, Arnaldo. Op. Cit. p. 200.

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O que só corrobora a tese de que o Código Civil Brasileiro favorece o casamento em detrimento da União Estável. Ressalte-se, por exemplo que a nova lei não concedeu ao companheiro o direito a quarta parte da herança, como é deferido ao cônjuge. Outro aspecto relevante é a possibilidade de os companheiros regularem suas relações patrimoniais em contrato escrito, é o que dispõe o art. 1725 do Código Civil de 2002. Contudo, restando silente os companheiros no que diz respeito as relações patrimoniais, Silvio Venosa afirma que aplica-se, no que couber, o regime legal, que é o regime da comunhão parcial de bens. No artigo 1790, inc. I, do Código Civil de 2002 encontramos a concorrência do companheiro com os filhos comuns, que ocorre da mesma forma como a do cônjuge supérstite. A concorrência do companheiro com os descendentes do autor da herança é regulada pelo art. 1790, inc. II, da Lei civil, nos dizeres de Arnaldo Rizzardo, tal regulação gera um tratamento discriminatório para com o companheiro, uma vez que ao companheiro caberá somente a metade do que couber a cada um dos descendentes do autor da herança11. Por sua vez, o inciso III do referido artigo reduz significativamente o direito hereditário dos companheiros, eis que o mesmo é preterido inclusive pelos colaterais, na medida que somente não havendo herdeiro algum, é que o companheiro herdará a totalidade da herança. O que significa um retrocesso no que diz respeito aos direitos adquiridos pelos companheiros. Apesar de grande evolução quanto ao direito sucessório dos cônjuges, não há como negar a existência de retrocesso no art. 1790 do Código Civil Brasileiro, na medida em que não há posicionamento consolidado sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do referido artigo, pois gera conflito aos princípios constitucionais da vedação ao retrocesso, da isonomia e o da dignidade da pessoa humana. Portanto, a Jornada de Direito Civil Coordenada pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar posiciona-se pela inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil/2002 afirmando que o artigo 1790 “desprotegeu a família fundada no campo do Direito Sucessório, violando o disposto no art. 226, caput da Constituição Federal, notadamente diante do disposto no art. 2º, III, da lei nº 8971/94”. O Código Civil, assim como nas leis especiais, também exige, para configuração da união estável, requisitos os quais se encontram prescritos no art. 1723 da lei. Não há menção ao Direito Real de Habitação concedido no corpo da lei nº 9278/96 no Código Civil/02. O art. 1850 trata da hipótese em que os parentes colaterais podem ser excluídos da herança, por analogia utiliza-se este dispositivo para concluir que se o artigo trata somente da exclusão dos colaterais, subentende-se que o companheiro, por meio de testamento, não pode ser excluído da sucessão.

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RIZZARDO, Arnaldo. Op. Cit. p. 200.

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Da revogação A primeira grande questão com relação a entrada em vigor do novo Código Civil, diz respeito à concessão do direito real de habitação ao companheiro, previsto nas leis nº 8971/94 e nº 9278/96. Com relação as duas leis especiais, consideradas entre si, o entendimento majoritário é de que não há que se falar em ab-rogação e muito menos em derrogação da lei nº 8971/94 pela lei nº 9278/96. As duas leis podem coexistir perfeitamente, pois estabelecem o mesmo direito, só que com enfoques diferentes: uma trata do direito ao usufruto legal ou a propriedade plena dos bens do de cujus ao companheiro sobrevivente, outra concede o direito real de habitação, só que relativamente ao imóvel destinado a residência da família.12” Esses dois institutos são diversos e compatíveis entre si. A lei nº 8971/94 não regulou somente a meação, mas também a adjudicação e o direito ao usufruto, enquanto que a lei nº 9278/96 regulou o direito real de habitação. Para José Luiz Gavião de Almeida, “o art. 11 da lei nº 9278/96 revogou as demais disposições de direito sucessório, em que não há contrariedade entre o texto legal das duas leis, pressupõe-se que houve derrogação.”13 O Código Civil de 2002 não menciona tal direito ao companheiro e muito menos declara expressamente sua revogação. Entretanto, a doutrina majoritária entende que o Código Civil/02 revogou tacitamente o direito real de habitação do companheiro, em virtude de ter silenciado.” José Luiz Gavião de Almeida também entende que houve revogação afirmando: “O novo código civil não revogou expressamente as leis que garantem o direito sucessório do companheiro, mas regulou a transmissão da herança de forma menos favorável aos conviventes. Deve-se-á entender que, no caso, direito sucessório amplo foi substituído por novas regras, as quais trataram da matéria de forma ampla, pelo que não há como não reconhecer revogados os direitos previstos nas leis nº 8971/94 e 9278/96.”14

Guilherme Calmon Nogueira da Gama propõe uma solução: “Considerando que o novo Código não revogou expressamente o teor da lei nº 8971/94, bem como inexiste incompatibilidade nessa matéria – exatamente porque o companheiro não será herdeiro do falecido, considerando a falta de bens adquiridos a título oneroso durante a união fundada no companheirismo – é perfeitamente possível invocar o usufruto legal sobre um quarto ou metade do patrimônio deixado pelo de cujus, atendendo aos valores, princípios e normas constitucionais aplicáveis diretamente ao tema em questão.”15 12

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NEVARES, Ana Luíza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. p. 152-153. 13 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Direito das Sucessões Sucessão em Geral. Sucessão Legítima. p.68. 14 ALMEIDA, José Luiz Galvão de. Op. Cit. p. 68-69. 15 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Companherismo: uma espécie de família. p. 45.

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Para que os companheiros sejam beneficiados com o direito real de habitação, muitos autores defendem a manutenção do artigo 7º, parágrafo único da lei nº 9.278/96, afastando assim o tratamento discriminatório previsto no art. 1831 do Código Civil de 2002. Este é a orientação do Conselho Federal de Justiça, posicionando pela não revogação expressa pelo Código Civil de 2002, no tocante a lei nº 9.278/96, devendo permanecer aplicável o direito real de habitação do companheiro, art. 7º da referida lei. De fato, não se pode simplesmente excluir do mundo jurídico conteúdo das leis nº 8971/94 e 9278/96, em matéria sucessória, inclusive já tendo julgados que confirmam a permanência dos direitos sucessórios dos companheiros adquiridos pelas referidas leis.

Considerações finais Verifica-se a importante evolução dos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente e do companheiro sobrevivo, mesmo tendo sido lenta e tímida. Após várias alterações legislativas, no Código de 1916 teve a sua posição preservada no 3º lugar, herdando independente do regime de bens do casamento. O Código Civil de 2002 melhorou a posição do cônjuge em relação à legislação anterior, passando ao status de herdeiro necessário. Posição considerada privilegiada pelos doutrinadores, pois além de ser o terceiro na ordem da vocação hereditária e concorrer com os herdeiros de primeira e segunda classe, os descendentes e os ascendentes do de cujus, tem garantida a sua legítima na herança (artigos 1.845 e 1.846). Alteração substancial favorável ao cônjuge, aliás reclamada há muito tempo, pela doutrina e jurisprudência. Na legislação anterior, o cônjuge herdava independentemente do regime de bens, porém, não era herdeiro necessário, o que acarretava perdas e lesões graves ao mesmo, pois o autor da herança podia simplesmente dispor de todos os seus bens por testamento, excluindo o cônjuge da herança. Com a evolução do direito brasileiro, diante da melhoria da posição ocupada pelo cônjuge supérstite na ordem de vocação hereditária, da inquietação e do anseio da sociedade para proteção da companheira ou do companheiro, surgiu a necessidade de leis que amparassem tais direitos. A união estável entre homem e mulher, reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226,§ 3º, assim como o casamento e a família monoparental, teve garantida a proteção estatal, porém precisava de regulamentação, que veio com as leis nº 8.971/94 e 9.278/96 e, posteriormente passou a ser regulada pelo Código Civil de 2002. No entanto, a sucessão do companheiro, segundo corrente doutrinária majoritária, não atendia aos anseios da sociedade, que clamava por uma regulamentação que atendesse tais direitos de forma justa, pois o coloca em condição de inferioridade em relação a condição ocupada pelo cônjuge. O entendimento majoritário é pela manutenção das regras em que o Código Civil de 2002 foi omisso, como por exemplo, o direito real de habitação do companheiro e a revogação daqueles direitos recepcionados pelo novo código Civil, para preservar a igualdade entre cônjuges e companheiros.

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As inovações foram muitas, algumas consideradas positivas, outras consideradas discriminatórias e retrógradas, quanto aos direitos sucessórios caberá ao aplicador do direito estabelecer qual forma é melhor aplicável, principalmente quanto aos direitos dos companheiros, que apesar de não ser assunto novo para o legislador brasileiro, deixou a lei a desejar. Importante é sempre aplicar a norma civil com base na Constituição Federal, norma que tem por basilares os princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade e proteção da família.

Referências bibliográficas ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado. Vol. XVIII. São Paulo. Ed. Atlas. 2003. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Parte Geral. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Curso de Direito Civil. 2. Ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Companheirismo: uma espécie de família. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 6. NEVARES, Ana Luíza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. SILVA, Joyce Keli do Nascimento. Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3299, 13 jul. 2012. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/22210. Acesso em 12 set.2014. TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 07. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito das Sucessões. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2004. WALD, Arnoldo. Direito Civil – Direito das Sucessões. 14 ed. Reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Princípios Constitucionais Norteadores do Acesso à Justiça no Brasil Cristiane Binoto Vidal Rodrigues1 Resumo No Brasil, como em muitos países, o acesso à justiça parece ser preocupação constante da sociedade que busca de forma contínua o ingresso aos tribunais. Na verdade, a plena capacidade civil e o exercício de direitos sociais e individuais assegurados na Constituição da República encontram obstáculos na desigualdade sócio-econômica, a qual, dia após dia, se distancia da igualdade jurídico-formal prevista constitucionalmente. Nesse contexto, este trabalho aborda uma análise dos princípios constitucionais norteadores do acesso à justiça no Brasil, com ênfase nos do acesso à justiça, do devido processo legal e da isonomia. A compreensão dos princípios é necessária para entender o porquê da sua importância e a adequação da hermenêutica constitucional, com o fito de interagir com eles na consagração dos direitos e garantias fundamentais. Os direitos fundamentais foram inseridos na ordem constitucional com caráter normativo, constituindo-se principalmente de valores. Palavras-chave: Acesso à justiça; princípios constitucionais; garantias fundamentais. Abstract In Brazil, as in many countries, access to justice seems to be a constant concern of society that seeks to continuously entry to the courts. In fact, the full civil capacity and the exercise of social and individual rights guaranteed in the Constitution are obstacles in socio-economic inequality, which, day after day, is far from the legal and formal equality provided for constitutionally. In this context, this paper deals with an analysis of the guiding constitutional principles of access to justice in Brazil, with emphasis on access to justice, due process and equality. Understanding the principles is required to understand why its importance and the adequacy of constitutional hermeneutics, with a view to interact with them in the consecration of fundamental rights and guarantees. Fundamental rights have been inserted in the constitutional order of a legislative character, becoming especially values. Keywords: Access to justice; constitucionais; garantias fundamental principles.

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Mestranda em Direito no curso de Hermenêutica e Direitos Fundamentais da Universidade Antonio Carlos - UNIPAC, possui especialização em Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá, graduação em direito pela Universidade Estácio de Sá e graduação em Administração pela Universidade Cândido Mendes (1996). Atualmente é Coordenadora do curso de Direito da UNESA, campus Freguesia, Professora Auxiliar I da Universidade Estácio de Sá além de advogada.

Princípios Constitucionais Norteadores do Acesso à Justiça no Brasil

Introdução Com o Pós-positivismo jurídico, foi dado destaque aos princípios, quanto a sua força normativa, cada vez mais firmando-se o entendimento de que este é dotado de comandos normativos – gênero – constituídos por princípios e regras – espécies. Todavia se faz necessário observar nos ensinamentos de Heidegger e Gadamer que nos remeteram a um universo hermenêutico onde o mundo se refere a experiência, ao mundo da pré-compreensão, em que já somos e nos compreendemos como seres a partir da estrutura prévia de sentido. A compreensão está ligada ao contexto vital do existente humano onde o ato de compreender é uma realidade existencial. A interpretação não é uma questão de método. É, sim, uma questão relativa à existência do intérprete. A nova hermenêutica transforma a interpretação que deixa de ser vista sob a perspectiva normativo-metodológica e passa então a ser concebida como algo inerente à totalidade da experiência humana, vinculado à sua condição de possibilidade finita, sendo uma tarefa criadora, circular, que ocorre no âmbito da linguagem. Deixando para trás a perspectiva de que o processo interpretativo possibilita que se alcance a “interpretação correta”, “o sentido exato da norma”, “o verdadeiro significado da palavra”, etc., a hermenêutica contemporânea, assentada principalmente nos trabalhos de Martin Heidegger (‘Ser e Tempo’) e de Hans-Georg Gadamer (“Verdade e Método’), direciona-se para a compreensão como totalidade e a linguagem como meio de acesso ao mundo e às coisas. Neste sentido, Lenio Luiz Streck já observou que: “(...) Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e de Gadamer. Com efeito, Heidegger, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, trabalha com a ideia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista prévia e antecipação nascendo desta estrutura a situação hermenêutica. Já Gadamer, seguidor de Heidegger, ao dizer que ser que pode ser compreendido é linguagem, retoma a ideia de Heidegger da linguagem como casa do ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí que, para Gadamer, ter um mundo é ter uma linguagem. As palavras são especulativas, e toda interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracterizaria o dogma. A hermenêutica, desse modo, é universal, pertence ao ser da filosofia, pois, como assinala Palmer, a concepção especulativa do ser que está na base da hermenêutica é tão englobante como a razão e a linguagem.2”  2

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, págs. 165-6

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Os princípios jurídicos devem ser vistos à luz dos pensamentos interpretativos da hermenêutica jurídico-filosófica. Os pensamentos hermenêuticos não vêem os princípios como elemento de solução de lacunas no ordenamento jurídico, como cindível a regra, mas como co-originário a lei. Com a Declaração dos Direitos do Homem vieram à luz os princípios básicos que, obedecidos e viabilizados pelos Estados nacionais, fornecem condições para a consecução do acesso à Justiça. Ensina José Augusto Galdino da Costa que o estudo dos princípios, à luz do sistema jurídico, tem por finalidade proteger o direito processual civil contra a ocupação de elementos ideológicos, os abusos políticos e os decorrentes da arbitrariedade. Para Galdino, os princípios fundamentais são garantias constitucionais para o exercício da cidadania e da democracia que, sem instrumentos eficientes, não passarão de um discurso inútil3. O princípio, à luz do ensinamento de Paulo Bonavides, deriva da linguagem da geometria, a qual designa as verdades primeiras, portanto, o que vem primeiro. Os princípios são “verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade.”4 Em um determinado direito positivo, os princípios têm servido de critério de inspiração às leis ou normas concretas e às leis obtidas mediante um processo de generalização e decantação destas leis. Traço marcante para melhor caracterização de princípio, a normatividade aparece precursoramente no conceito do jurista italiano Crisafulli: Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.5

Diversos são os autores que propuseram definições para os princípios. Para Josef Esser, princípios “são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado”6. Seguindo o mesmo caminho, Karl Larenz define os princípios como normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento.7 3

COSTA, José Augusto Galdino. Princípios Gerais no Processo Civil. Rio e Janeiro: PROCAM, 1997. 4 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p.229. 5 BONAVIDES. Op.cit. p. 230 6 ESSER, Josef apud AVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004. 7 AVILA. Op.cit. p.27.

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Arruda Alvim considera que os “princípios fundamentais, precisamente porque dizem respeito à orientação particular de um dado ordenamento jurídico, emergem necessariamente de um ordenamento jurídico positivo”. Observa, ainda, que os princípios fundamentais admitem princípios antagônicos, “precisamente porque densamente ideológicos”.8 Segundo a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, atuando como seu alicerce e cuja irradiação se dá sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a exata compreensão e inteligência, por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo. Assim, a violação a um princípio significa frontal ofensa não apenas a uma norma qualquer e sim, a todo o sistema jurídico positivo.9 No entendimento de Leonardo Greco, os mais importantes princípios processuais encontram-se sem sombra de dúvida consagrados na Constituição da República. No Estado Democrático de Direito, a eficácia dos direitos constitucional e legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva.10 Corroborando esta afirmação, destaca-se o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, também conhecido como princípio do direito de ação ou do acesso à justiça. Segundo o art.5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Essa garantia de acesso aos tribunais consiste, segundo Rogério Tucci, em um direito público subjetivo, consagrado e decorrente do monopólio do Estado em administrar a justiça. Isso quer dizer que todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória, relativamente a um direito individual ou coletivo, todos têm direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. É importante que essa tutela seja adequada, que atenda aos anseios do jurisdicionado.11 Diante da concepção acima, José Antonio Tome Garcia afirma que o permissivo de livre acesso aos juízos e tribunais deve ser encarado com o direito de peticionar aos órgãos do Poder Judiciário, consubstanciando-se no meio adequado e impostergável de obter o amparo jurisdicional. Cândido Rangel Dinamarco, ao traçar íntima relação entre a instrumentalidade processual e acesso à justiça, observa que não se pode falar em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade sem que se fale dele como algo posto à disposição das pessoas com vistas a fazê-las mais felizes (ou menos 8

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ARRUDA, Alvim apud COSTA, José Augusto Galdino. Princípios Gerais no Processo Civil. Rio e Janeiro: PROCAM, 1997. 9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 545-546 10 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, a. 7, n. 14, abr./1999.p.3. 11 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7ªed. rev. e atual. com as leis 10352/01 e 10358/01. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 100.

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felizes), mediante a eliminação de conflitos que as envolvem, com decisões justas.12 Mais adiante, conclui sobre a ideia de acesso à justiça, como síntese generosa do pensamento instrumentalista e dos grandes princípios e garantias constitucionais do processo: Todos eles coordenam-se no sentido de tornar o sistema processual acessível, bem administrado, justo e afinal dotado da maior produtividade possível.13 Para garantir este acesso de forma efetiva, o legislador constituinte preocupou-se não só com a assistência judiciária aos que comprovarem insuficiência de recursos, mas também a estendeu à assistência jurídica préprocessual, sendo dever do Estado a organização das carreiras dos defensores públicos. Nesse sentido, Ada Pelegrini Grinover leciona que: Além de caracterizar a garantia de acesso à justiça, a organização das defensorias públicas atende ao imperativo da paridade de armas entre os litigantes, correspondendo ao princípio da igualdade, em sua dimensão dinâmica. (...) Pode-se dizer, pois, sem exagerar, que a nova Constituição representa o que de mais moderno existe na tendência universal rumo à diminuição da distância entre o povo e a justiça.14

Não há que se confundir, no entanto, o direito a tutela jurisdicional com o direito à petição assegurado no art. 5º, inciso XXXIV, alínea a, da Constituição. Com efeito, para Nelson Nery, este último é um direito político que pode ser exercido por qualquer pessoa, sem forma rígida de procedimento para fazer-se valer, caracterizando-se pela informalidade, bastando identificação e conteúdo do que se pretende do órgão público. Diferencia-se do direito à tutela jurisdicional, pois naquele não é preciso que o peticionário tenha sofrido gravame pessoal ou lesão em seu direito.15 Também Rogério Lauria Tucci conceitua o direito de petição como a faculdade outorgada ao cidadão, de iniciativa de uma ou de um grupo de pessoas, de apresentar reclamação aos órgãos públicos em defesa de seus direitos. 16 Consoante José Augusto Galdino, o princípio do direito de petição constitui-se de uma garantia dada ao indivíduo de invocar a tutela dos Poderes Públicos sobre uma questão ou situação de natureza pública ou privada, contra ilegalidade, abuso de poder ou defesa de direitos individuais ou coletivos. Já o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional é uma garantia do indivíduo de invocar a tutela jurisdicional sempre que esteja diante de uma 12

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 304 13 ibidem. p. 320 14 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria Geral do Processo. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.84. 15 NERY. Op.cit. p.102 16 TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988 e processo: regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 11.

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ameaça de direito, garantindo a independência da apreciação pelo poder judiciário de todas as questões que lhe forem submetidas.17 A garantia constitucional estabelecida no art. 5º, inciso LIV, que dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, traz à lume o princípio constitucional do devido processo legal. Realmente, para Nelson Nery Junior, o princípio do devido processo legal funciona como base sobre a qual todos os outros se sustentam. Bastaria, portanto, que a norma constitucional houvesse adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa.18 A garantia constitucional do devido processo legal, no entendimento de Rogério Tucci, deve ser uma realidade em todo o desenrolar do processo judicial, de sorte que ninguém seja privado de seus direito, a não ser que no procedimento em que este se materializa se verifiquem todas as formalidades e exigências em lei previstas.19 A processualística moderna entende o princípio do Devido Processo Legal como um direito do autor e do réu, e não apenas como comumente é visto, como um direito do réu, um equívoco que se deu quando o Estado, em virtude de receios próprios da época do liberalismo do final do século XIX, construiu um processo destinado unicamente a garantir a segurança e a liberdade do réu diante da possibilidade do arbítrio do juiz. Em virtude da busca incessante por uma ordem jurídica justa, a clássica ideia de Chiovenda de que “o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir” ainda é a pedra de toque do direito e o será, por muito tempo. Nelson Nery Junior divide o estudo do princípio do devido processo legal em três sentidos, quais sejam o genérico, o material e o processual. Genericamente caracteriza-se pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, tem direito à tutela àqueles bens da vida em seu sentido mais amplo e genérico. É nesse sentido que a locução vem expressamente adotada na Constituição Federal em seu art. 5º, inciso LIV, inspirada nas Emendas 5ª e 14ª à Constituição dos Estados Unidos.20 No que tange ao sentido material, Nelson Nery Junior entende que o devido processo legal se manifesta em todos os campos do direito; assim no direito administrativo, por exemplo, o princípio da legalidade nada mais é do que a manifestação da cláusula substantive due process. Para os administrativistas, tratase da garantia da legalidade e dos administrados. Enquanto no direito privado prevalece o princípio da autonomia da vontade com a liberdade de contratar, podendo os indivíduos fazer tudo o que a lei não veda, o administrador público só pode atuar onde a lei autoriza.21 17

COSTA. Op.cit.. p. 25. NERY. Op. cit. p.31. 19 TUCCI. Op. cit. p. 17. 20 NERY. Op. cit. p.36. 21 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito Administrativo. 11.ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2004. p.14. 18

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Parece ser, portanto, o meio pelo qual se controla o arbítrio do Legislativo e a discricionariedade dos atos do Poder Público, ou seja, é o instrumento do exame da razoabilidade e da racionalidade das normas jurídicas e dos atos da administração. André L. Borges Netto discorre acerca do princípio do devido processo legal em sentido material: A Constituição indica a existência de competência a ser exercida pelo Judiciário, no sentido de poder afastar a aplicabilidade das Leis com conteúdo arbitrário e desarrazoado, como forma de limitar a conduta do legislador. Lei que não atinge um fim legítimo é inválida, como tal devendo ser declarada, por força da garantia constitucional em exame. (...) Fato é que o entendimento atual do devido processo legal substantivo permite o controle de atos normativos disciplinadores de liberdades individuais até mesmo “não econômicas”. Este princípio, em sua concepção substantiva, é fonte inesgotável de criatividade hermenêutica, transformando-se numa mistura entre os princípios da “legalidade” e “razoabilidade” para o controle dos atos editados pelo Executivo e Legislativo22.

Em sentindo processual, a expressão alcança para Nelson Nery Junior, o significado mais restrito dentre os três sentidos, já que se entende como as garantias de direitos à citação e ao conhecimento do teor da citação, a um rápido e público julgamento, ao arrolamento de testemunhas, ao procedimento contraditório, dentre outros. Esse é o sentido que a doutrina brasileira tem aplicado ao longo dos anos, diferente, pois, da doutrina estrangeira que já vislumbra a diferença fazendo análises distintivas sobre as cláusulas due process of law e procedural due process23. No entendimento de Ada Pelegrini Grinover, tal princípio é um conjunto de garantias constitucionais que asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição, salvaguardando o próprio processo, conforme se verifica: Compreende-se, modernamente, na cláusula do devido processo legal, o direito do procedimento adequado: não só deve o procedimento ser conduzido sob o pálio do contraditório, como também há de ser aderente à realidade social e consentâneo com a relação de direito material controvertida.24 22

A RAZOABILIDADE CONSTITUCIONAL (o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos), publicado na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto Nº 12 - MAIO/2000, http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/revista/Rev_12/ razoab_const.htm. Acesso em: 03 mai. 2005, 11:15:23. 23 NERY. Op.cit. p 41. 24 CINTRA ; GRINOVER; DINAMARCO.Op.cit. p.84.

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Existe, portanto, um amplo leque de garantias específicas que se desdobram do princípio do devido processo legal, podendo-se destacar a garantia do juiz natural, o contraditório e a ampla defesa, a igualdade processual, a publicidade, a inviolabilidade de domicílio, dentre outras. Constata-se, assim, que a amplitude do art.5º da Constituição Federal deriva do princípio do devido processo legal. Consoante leciona Rogério Lauria Tucci, o devido processo legal se consubstancia em uma garantia conferida pela Constituição, visando à realização dos direitos nela denominados fundamentais. De tal modo deve ser observado em todo o desenrolar do processo judicial, ou não, de forma que ninguém seja privado de seus direitos, a não ser que no procedimento em que este se materializa se verifiquem todas as formalidades e exigências em lei previstas.25 José Augusto Galdino da Costa, em sua obra Princípios Gerais no Processo Civil, ensina que “consiste na garantia da utilização do instrumento adequado e útil, previamente estabelecido na lei, para o acertamento, realização e, conservação e defesa dos direitos do indivíduo”.26 Parece então que, do devido processo legal, em qualquer de seus sentidos, são extraídos os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, dentre outros. Considerando-se que os mesmos têm status constitucional, e diante de tal situação todos os atos infraconstitucionais devem com eles guardar relação de compatibilidade, sob pena de irremissível inconstitucionalidade, reconhecida no controle difuso ou concentrado. Outro princípio constitucional informador do acesso à justiça e consectário do devido processo legal é o denominado princípio da isonomia processual, determinante do tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo. Decorre do enunciado do art. 5º, inciso I da Constituição Federal, ao expressar que: Art. 5 - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residente no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

De tal modo deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. No que tange ao processo civil, tal princípio traduz que os litigantes devem receber do juiz tratamento idêntico.27 Nesse sentido, Ada Pelegrini Grinover ensina que a igualdade perante a lei é premissa para a afirmação de igualdade perante o juiz. De tal modo, o princípio da igualdade processual deriva da norma constitucional prevista no art.5, caput, descrito acima; assim as partes e procuradores devem merecer tratamento igualitário, visando obterem as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões. 25

TUCCI. Op.cit. p.17. COSTA. Op.cit .p.33 27 NERY. Op.cit. p.44. 26

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A aparente afronta ao princípio da isonomia entre as partes dentro e fora do processo, no dizer de Ada Pelegrini, “obedece exatamente ao princípio da igualdade real e proporcional, que impõe tratamento desigual aos desiguais, justamente para que, supridas as diferenças, se atinja a igualdade substancial.” 28 Essa igualdade substancial apontada por Ada Pelegrini advém do primitivo conceito de igualdade, formal e negativa, no qual a lei não deveria estabelecer qualquer diferença entre os homens, passando-se, então, a realçar-se o conceito realista, que prima pela igualdade proporcional, a qual permite tratamento igual aos substancialmente iguais. No entender de Rogério Lauria Tucci, a igualdade repousa na identidade de situação jurídica em que todas as pessoas se postam. Assim também que proporcional deve ser a verdadeira igualdade, considerando as diversidades existentes entre os homens, uma vez que o tratamento igual a pessoas que se encontram em situações diferentes constituiria autêntica iniquidade.29 A noção acima delineada entre igualdade e desigualdade pode ser encontrada na expressão de Rui Barbosa em Oração aos Moços, a saber: A igualdade e a desigualdade são ambas direitos, conforme hipóteses. A igualdade, quando se trata de direito fundamental. As desigualdades, quando no terreno dos direitos adquiridos. Fundamentais são os direitos do homem por ser homem, independente de qualquer ato aquisitivo. São da essência da criatura. Tais os direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. Adquiridos são os direitos que cada homem tenha, em virtude de ato aquisitivo: o trabalho, a herança, a compra, a doação, o achado, e outros que a lei tenha por geradores ou fontes de direitos. À luz dos direitos fundamentais todos são iguais. À luz dos direitos adquiridos, são todos desiguais. Mas, num e no outro caso, o tratamento da lei é igual para todos os cidadãos nas mesmas condições. A Constituição veda à lei estabelecer desigualdades entre os homens, por serem homens. É idêntica a concessão de cada um à sociedade de todos. Ou, por outras palavras, é universal a igualdade nos cortes à onipotência, é a mesma para todos, nas mesmas condições, a lei que os disciplina.30

A necessidade de tratamento distinto a uma das partes litigantes, como reflexo do comando constitucional, encontra-se prevista em legislação esparsa. O Código de Defesa do Consumidor (arts. 4, inciso I, e 6°, inciso VIII) e a Lei n° 10.173/2001 são dois exemplos de leis surgidas após o advento da Constituição de 1988. O Código de Processo Civil, anterior à Constituição de 1988, também confere benefícios ao Ministério Público e à Fazenda Pública, sobretudo no que diz respeito aos prazos, tomando em conta as dificuldades que estes órgãos apresentam ao litigar em juízo, não raras vezes dependendo de terceiros para colheita de provas documentais. Daí 28

CINTRA.Op.cit. p.55. TUCCI. Op.cit. p. 38. 30 DORIA, A. de Sampaio apud TUCCI. Op.cit. p.38. 29

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a afirmação de Leonardo Greco, no sentido de que tais privilégios somente são legítimos na medida em que se fazem necessários para que o Estado possa exercer com plenitude a sua defesa em juízo, em igualdade de condições com qualquer outro litigante.31 Os exemplos citados demonstram que, em determinados casos, há que se criar mecanismos para que o Princípio da Isonomia vingue na prática. Assim, para que os litigantes possam ao final da demanda ter as chances de sucesso, seja no que diz respeito à tutela jurisdicional propriamente dita, seja no que diz respeito à efetividade temporal desta prestação, mister se faz a interpretação de dispositivos legais sem se perder de vista as garantias trazidas pela Constituição de 1988.

Conclusão A ordem jurídica, basilada nos princípios, trouxe ao ser humano participante de um Estado Democrático de Direito a sensibilidade anteriormente esquecido. O desenvolvimento de teorias do Direito promoveu um despertar axiológico no pensamento juspositivo, se deixou de lado o querer dos valores, da ética e da justiça, dando oportunidade à vontade restritiva das leis, não muito aplicáveis aos casos concretos. Assim, parece que o surgimento de conteúdos constitucionais alusivos a direitos fundamentais, à dignidade humana, à formação de uma sociedade justa e solidária calcada na igualdade real, acaba assumindo importância que vai muito além de meros compromissos políticos, desfazendo as antigas definições e ligando compartimentos científicos ancestrais. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não foi indiferente a essa necessária e fundamental perspectiva axiológica do Direito e contemplou esses valores como seus fundamentos e princípios diretores.

Referências bibliográficas AVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria Geral do Processo. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. COSTA, José Augusto Galdino. Princípios Gerais no Processo Civil. Rio e Janeiro: PROCAM, 1997. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, a. 7, n. 14, abr./1999.

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GRECO. Op. cit. p. 33

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JHERING, Rudolph Von. A luta pelo direito. Trad. Por João de Vasconcelos. 5 ed. Bras. Rio de Janeiro: forense, 1986. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7ªed. rev. e atual. com as leis 10352/01 e 10358/01. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, págs. 165-6. TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988 e processo: regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989.

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Corte Deliberativa, Fórum do Princípio e Constitucionalismo Democrático: visões sobre formas de Deliberação da Corte Fabiana de Almeida Maia Santos 1 Resumo A maneira de deliberação das cortes constitucionais tem chamado a atenção da Academia, especialmente pela complexidade dos casos que chegam aguardando uma decisão dos juízes, e também pela imprevisibilidade desses casos, quer dizer, a sociedade hoje está muito complexa e imprevisível de maneira que bem variáveis são os casos que chegam a serem julgados e, consequentemente, varia também o modo de decidir da corte. De modo geral, chega-se à conclusão que nossa democracia requer uma corte diferente do desenho atual, em que juízes decidem sozinhos sem haver interação entre eles e até mesmo com outros atores externos. O projeto de uma corte deliberativa apresenta um modelo de corte dividida em três fases: pré-decisional, decisional e pós-decisional. O fórum de princípios traz a corte como veiculadora da razão pública. O constitucionalismo democrático, mostra um modelo em que os tribunais chegariam a uma decisão por meio de uma interação com a Administração Pública, movimentos sociais, sindicatos, enfim, atores relevantes para a interpretação constitucional. Todas essas três correntes apresentam um tribunal descentralizado e não detentor da última palavra, fundamental para uma corte deliberativa. Palavras-chave: Corte deliberativa; fórum do princípio; constitucionalismo democrático. Abstract The way of deliberation of the constitutional courts has alerted the Academy, especially because of the complexity of the cases that go to the court and are waiting for a decision by judges, and also because of the unpredictability of these cases, that means the society today is very complex and unpredictable and it means that very diferent are the cases that are judged and, consequently, very different the manner the court decides. We get to a conclusion that our democracy requires a different court with a diferente design, in which judges decide alone without interaction between them and, in fact, with others external actors. The project of a deliberative court shows a model of court divided into three phases: pre decisional, decisional 1

Advogada; Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/FND/UFRJ); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); pesquisadora dos grupos Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional (NP JURIS/ UNESA), Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ) e do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT/UFRJ); bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: fabianamaiaadv@ yahoo.com.br.

Corte Deliberativa, Fórum do Princípio e Constitucionalismo Democrático: visões sobre formas de Deliberação da Corte

and pos decisional. The forum of principles brings a court like transmitting the public reason. Democratic constitutionalism shows a model in which the court would get to a decision by an interaction with Public Administration, social moviments, unions, and so, relevant actors to a constitutional interpretation. All those three currents shows a decentralized court and not holder of the last word, fundamental to a deliberative court. Keywords: Deliberative court; principle forum; democratic constitucionalismo.

Introdução

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Preservar o Estado Democrático de Direito é o papel da Jurisdição Constitucional pois é por meio dela que temos a garantia de supremacia da constituição no Poder Judiciário. A supremacia constitucional, por sua vez, nos traz a ideia da constituição como lei maior. O Supremo Tribunal Federal é o órgão de chefia do Poder Judiciário brasileiro e a ele cabe o papel de guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição Federal. O dinamismo de atuação do STF tem sido palco de discussões frequentemente entre os acadêmicos, operadores de direito ou não. Todos buscam refletir, de maneira geral, como tem sido o poder de decisão dos membros do Supremo e, até, se sofreu alguma influência externa. Fato é que a maneira de decisão das cortes tem sido uma das temáticas mais em voga; destaca-se a preocupação sobre como se dá o convencimento dos juízes até que estes cheguem à decisão. Pergunta-se, ainda, se esses argumentos são testados e contraditados, antes de, de fatos, decidirem. Daí decorre a necessidade de se discutir sobre deliberação na corte, tema que veio à tona no Brasil com a pesquisa de Conrado Hubner Mendes. Conrado Hubner Mendes defende um tribunal com perfil deliberador uma vez que estamos dentro de um regime democrático e as cortes seriam uma espécie de “fóruns deliberativos singulares”, que para ele, seria uma oportunidade à argumentação. Ronald Dworkin, por meio de seu “fórum de princípios”, entende as cortes como um veículo da razão pública e que isso ocorre devido ao fato de a corte ser isolada institucionalmente. O segundo motivo seria pelos ônus argumentativos que lhes são impostos. Dworkin apresenta essa teoria a qual defende que o controle de constitucionalidade dá condições às democracias na construção de um discurso com base em princípios. Também sobre deliberação na corte, Robert Post e Reva Siegel, traz o pensamento de um constitucionalismo chamado de “democrático”. Essa corrente também entende o Poder Judiciário com um papel superior na interpretação constitucional, todavia, não seria o único a interpretar. Ele contaria com o Legislativo, com a Administração Pública, com os movimentos sociais e com os fóruns autorizados e relevantes para essa interpretação constitucional. O constitucionalismo democrático prega um diálogo entre o Judiciário e outras instâncias do debate constitucional e mais, o Judiciário possui um papel importante no sentido que deve traduzir as demandas populares ao direito.

Fabiana de Almeida Maia Santos

Dessa maneira, o presente estudo percorre pelas três correntes as quais versam sobre o papel de deliberação da corte constitucional, maior instância de um país, sendo o primeiro, de Conrado Hubner Mendes, o segundo, de Ronald Dworkin e o terceiro, de Robert Post e Reva Siegel. A pesquisa almeja verificar a viabilidade de uma das teorias para a realidade brasileira. O objeto deste estudo é realizar uma reflexão teórica sobre três propostas acerca da deliberação em cortes constitucionais, a saber: projeto de uma corte deliberativa, fórum do princípio e constitucionalismo democrático. Trabalha com a hipótese de que o constitucionalismo democrático seria uma alternativa viável ao contexto do constitucionalismo brasileiro. Como metodologia adotou a pesquisa bibliográfica.

O projeto de uma corte deliberativa Sabe-se que nos tribunais, quando a demanda sai do julgamento monocrático e é colocada perante os colegiados, pode-se dizer que não existe mais o livre convencimento do juiz, mas o “convencimento entre os juízes”. Isso ocorre porque estes devem buscar um mínimo de consenso, almejando solucionar os casos submetidos para apreciação. Nota-se, também, que essa arranjo é mais notório e importante em uma corte suprema, uma vez que é lá onde ocorrem decisões mais amadurecidas e espera-se uma avaliação mais acurada de seus reflexos no ordenamento jurídico em geral2. Por esse motivo, a maneira de deliberação dos juízes é tão relevante para o presente estudo. Conrado Hubner Mendes acredita que os juízes do Supremo Tribunal Federal decidem sozinhos e, por isso, apresenta o projeto de uma Corte deliberativa. O desiderato parte de uma suposição teórica de que cortes constitucionais 3 são fóruns deliberativos especiais, e, por essa razão, são desejáveis dentro de um regime democrático. Além disso, almeja a transformação de juízes solistas – como ele define os magistrados brasileiros – em juízes deliberadores4. Isso porque Mendes tem o entendimento de que o diálogo é uma espécie de imagem expressiva e rica para a política uma vez que é um símbolo de igualdade, respeito mútuo e reciprocidade. Além disso, significa uma relação de horizontalidade, não hierarquia e de aumento de autonomia5. Entende 2

HORBACH, Carlos Bastide. É preciso mais deliberação no Supremo Tribunal Federal? Conjur. São Paulo, 2013, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2015. 3 Mendes salienta que utiliza em seu estudo a expressão “corte constitucional” no seu sentido mais amplo, abrangendo a distinção convencional entre supremas cortes e cortes constitucionais. 4 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 53. 5 MENDES, Conrado. Not the Last Word, But Dialogue – Deliberative Separation of Powers 2 (November 1, 2009). Legisprudence, Vol. 3, No. 2, pp. 191-246, 2009. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1911835 or http://dx.doi.org/10.2139/ ssrn.1911835, p.1.

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também que as cortes são como fóruns deliberativos singulares, ou seja, seriam espaços que oportunizam o argumento à contagem de votos, foros decisórios que se caracterizam, principalmente, pelo esforço de persuadir e a abertura a ser persuadido por meio de razões imparciais6. Nesta esteira, Mendes organizou seu estudo ilustrando como o STF pode se aprimorar para o que ele chama de uma “corte deliberativa”. Assim, uma corte deliberativa seria desenhada em três fases: (1) prédecisional; (2) decisional; e (3) pós-decisional. A primeira, pré-decisional, se inicia com a existência de um caso formal, reunindo todos os atos por meio dos quais as partes interagem – oralmente ou por escrito – com a corte; a segunda, decisional, seria o momento em que os juízes interagem entre si buscando uma decisão; e, a terceira, pós-decisional, se refere à redação da decisão colegiada, e então toda a sorte de debates que sucede na esfera pública informal em reação à decisão7. Mendes identifica a corte com uma postura de interlocutora institucional, rejeitando, assim, a tradição de se entender a corte como detentora da última palavra no tocante à interpretação constitucional, isto é, não seria a última autoridade para interpretar a constituição, pois o que haveria seria uma interação permanente. Nesse contexto, as cortes atuariam como interlocutoras institucionais e o controle de constitucionalidade, por exemplo, seria uma fase de uma conversa de longo prazo entre a corte, o legislador e a esfera pública genericamente considerada8. Nesse viés, não seria oportuno entendê-la como última palavra uma vez que há relevante interação ao longo do tempo e também porque a corte deveria agir “como um parceiro dialógico” desafiando os outros Poderes a responder às razões que ela apresenta, não apenas “alguém que define, de cima para baixo, o significado da Constituição”. Ela não eixaria de ser um “fórum do princípio” de Dworkin9, no entanto, não falaria sozinha e buscaria responder aos argumentos que ouve10. A corte é também símbolo de deliberação uma vez que é formada por juízes que interagem entre si utilizando-se as técnicas da argumentação e da persuasão almejando a decisão final. As cortes gozariam do benefício da deliberação 6

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MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 54. 7 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 59. 8 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 57. 9 Mais detalhes sobre o Fórum do Princípio de Dworkin no item 2 deste artigo. 10 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 57.

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colegiada e, devido as suas condições decisionais próprias, haveria maior probabilidade de se alcançar boas respostas na interpretação constitucional. Isso porque além de catalisadoras de deliberação interinstitucional e social, as cortes também desenvolveriam uma boa deliberação intrainstitucional11. Mendes apresenta ainda os dois atores que participam da deliberação na corte: os decisores – juízes – e os interlocutores – que compreende aqueles que, formal ou informalmente, remetem argumentos em direção à corte ou expõem posições públicas em relação ao caso judicial respectivo. Entende-se que os interlocutores colaboram guarnecendo subsídios argumentativos à decisão da corte, podendo influenciar ou persuadir, porém, não podem decidir12. Interlocutores formais envolvem todas as partes qualificadas ou legitimadas a participar do caso constitucional específico (os litigantes, amicu curiae etc.) Interlocutores informais são aqueles que, na tentativa de contribuir ou exercer influência indireta na corte, se engajam em debates através de outros veículos comunicativos que a esfera pública oferece (jornais, revistas acadêmicas etc)13.

O projeto de uma corte deliberativa chama a atenção para que uma corte constitucional tenha como missão proferir boas decisões: Uma corte deliberativa constitucional tem o objetivo de obter boas decisões, quando possível e desejavelmente, em uma única voz, ou, quando justificavelmente, em múltiplas vozes, enquanto elas forem precedidas por contestação pública séria e engajamento colegiado. Deliberação não deveria ser subestimada como um significado para aqueles fins externos atrativos. Ela deve se empenhar para ganhar respeito e prestígio, contudo, não apenas para essas qualidades formais e substantivas para os seus resultados, mas por seu caminho que trata seus interlocutores (tradução livre)1415. 11

MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, pp. 57 e 58. 12 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 60. 13 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 60. 14 MENDES, Conrado. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford University Press, 2013, p. 119. 15 A deliberative constitutional court is committed to substantively good decisions expressed, when possible and desirable, in a single voice, or, when justifiable, in multiple voices, as long as they are throughly responsive and preceded by serious public contestation and colegial engagement. Deliberation should not be underestimated as a means for those attractive external ends. It strives to gain respect and prestigie, neverthless, not only by these substantive and formal qualities of its outcomes, but by the way it treats its interlocutors. (MENDES, Conrado. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford University Press, 2013, p. 119.)

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Além disso, entende que são três as tarefas elementares de uma corte deliberativa: (1) provocar a contestação pública; (2) promover a interação colegiada; e (3) redigir uma decisão deliberativa. A proposta do “projeto de uma corte deliberativa” é um projeto bem menos ambicioso que o pensamento a ser apresentado no item três deste artigo, o constitucionalismo democrático, pois Mendes propugna especificamente pelo modo como a corte delibera, ou seja, se refere sobre as ações dos juízes dentro da Corte até a tomada de decisões. Ele chega a mencionar a participação de interlocutores os quais fornecem subsídios argumentativos à decisão da corte, mas não decidem, e não parece que essas figuras possuam um lugar de destaque em seu “projeto”. De modo que a ideia central, de fato, seja exclusivamente o modo de deliberar dos magistrados. A seguir, veremos a corte como o “fórum do princípio” com a perspectiva de Ronald Dworkin. O pensador americano trabalha especificamente sobre como deveria ser a revisão judicial.

A corte como o “fórum do princípio” Mendes identifica como uma das maneiras de encapsular o papel das cortes constitucionais seria defini-las como veiculadoras da razão pública, como o “fórum de princípios” de Ronald Dworkin. Ele explica que isso é devido ao seu ambiente institucional relativamente isolado e aos ônus argumentativos que lhes são impostos, as cortes constitucionais teriam condições de decidir por meio de um tipo superior de razão. Importante dizer que essa teoria defende que o controle judicial de constitucionalidade dá condições às democracias a construir um discurso o qual tem como base os princípios, onde se originaria a autoridade da Constituição16. Para entender melhor esse fenômeno, nos remetemos a Ronald Dworkin o qual propugna que é o Tribunal – a Corte – que deve tomar decisões de princípio, não de política, ou seja, decisões sobre quais direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se alavanca melhor o bem estar geral. Além disso, estabelece que o Tribunal deve tomar essas decisões elaborando e aplicando a teoria substantiva da representação, sendo esta extraída do princípio elementar de que o governo deve tratar as pessoas como iguais17. Mas antes disso, Dworkin aponta a dificuldade de reconciliação entre a revisão judicial e a democracia por vários estudiosos, pois todos utilizam a mesma estratégia, a saber: demonstrar que a revisão judicial adequada não carece que a Corte substitua os julgamentos legislativos substantivos por novos julgamentos de sua autoria18. 16

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MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, pp. 56 e 57. 17 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 101. 18 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 100 e 101.

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As táticas são diferentes. Um programa afirma que o Tribunal pode atingir o nível certo de controle constitucional valendo-se da “intenção” dos constituintes. Outro, que o Tribunal pode evitar infringir a democracia policiando os processos da própria democracia. Ambos os programas se auto anulam: incorporam justamente os julgamentos substantivos que dizem que devem ser deixados ao povo. Essa fuga da substância deve terminar na substância19.

Com isso Dworkin quis dizer que se queremos a revisão judicial devemos aceitar que a Corte tome decisões políticas que sejam consideradas importantes. E é nesse momento que ele diz que a Corte deve tomar decisões de princípio, não de política. Significa dizer que o Tribunal deve tomar decisões sobre quais os direitos que as pessoas possuem sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar geral. Diz, ainda, que o Tribunal deve decidir idealizando e aplicando a teoria substantiva da representação, a qual é extraída do princípio básico de que o governo deve tratar as pessoas como iguais20. Dessa maneira, Dworkin se posiciona favorável ao fato de o que Judiciário decida sobre determinações legislativas, declarando se constitucionais ou inconstitucionais. Assim, o “Fórum do Princípio” seria uma teoria de como deveria ser a revisão judicial, sendo esta uma característica distintiva da vida política americana e copiada em vários lugares do mundo. Pode-se dizer que sua notoriedade é devida a obrigação do debate político incluir o argumento acerca do princípio, não somente quando um caso vai à Corte, mas muito antes e muito depois21. Para essa teoria, chegou-se a um equilíbrio em que o Tribunal desempenha um papel no governo, todavia, não o papel principal. Não é relevante a atuação dos juristas acadêmicos ao tentar disfarçar as decisões políticas que esse equilíbrio atribui aos juízes. O ideal seria trabalhar “abertamente e com boa vontade”, almejando que o argumento nacional de princípio oferecido pela revisão judicial seja o melhor argumento oferecido. Dworkin aponta para a existência de uma instituição que leva algumas questões do campo de batalha da política de poder para o fórum do princípio e essa mesma instituição oferece a promessa de que os conflitos mais profundos, mais fundamentais entre o indivíduo e a sociedade irão, em algum momento, se tornar questões de justiça. Dworkin chama isso de Direito. O Fórum do Princípio seria insuficiente para se tratar de deliberação na corte por duas razões: (1) por se limitar a defender a revisão judicial e (2) por entender que o Tribunal deve tratar pouco de questões políticas. O entendimento de Dworkin de que a corte deve tomar decisões sobre quais 19

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.101. 20 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.101. 21 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.102.

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direitos as pessoas têm sob o nosso sistema constitucional e não decisões de sobre como se alavanca melhor o bem estar geral não parece o mais adequado no constitucionalismo contemporâneo tendo em vista que o exercício que se deve fazer é se o nosso ordenamento jurídico é capaz de abarcar os direitos fundamentais, senão de todas, mas do maior número de pessoas. O fato de olhar sobre o “bem estar geral” não significa dizer que o juiz decidirá de acordo com o que a sociedade determinará sem critérios formais e normativos, no entanto, mister se faz que se faça uma análise sobre as necessidade da sociedade de tempos em tempos. Por essa razão, o constitucionalismo democrático, em um primeiro momento, aparenta ser uma melhor perspectiva por trazer para dentro da corte constitucional partícipes que antes não poderiam interagir e contribuir para a decisão dos juízes. Por esses motivos, nos debruçaremos nesse pensamento no próximo item.

Constitucionalismo democrático de Robert Post e Reva Siegel A discussão sobre a interpretação constitucional ganhou fôlego nos Estados Unidos na segunda metade do século XX, confrontando as concepções progressistas da interpretação constitucional – a qual postulavam o pensamento dos juízes como detentores da última palavra – com as propostas conservadoras – as quais defendiam o originalismo como estratégia de contenção do projeto constitucional liberal desatado pela Corte Warren. Nas últimas décadas daquele século, o debate constitucional norte-americano se reconfigurou para acolher um conjunto de propostas progressistas dispostas a defender o caráter democrático do constitucionalismo22. Surgiram, então, as novas teorias partindo de uma perspectiva crítica sobre a detenção da última palavra pelos juízes da Corte Suprema – chamados de juízes maximalistas. Chegou-se a propor a opção pelo minimalismo – em que os juízes e os legisladores interviriam para influenciar na deliberação constitucional, todavia, sem defini-la. Mas houve uma preferência por alguns por seguir uma corrente chamada de “constitucionalismo democrático”23. O Constitucionalismo democrático propugna um Poder Judiciário com papel transcendente (superior) na interpretação constitucional, no entanto, não somente o Poder Judiciário responde pela interpretação constitucional. Esse papel cabe também ao Legislativo, à Administração Pública, aos movimentos sociais e aos fóruns autorizados e relevantes para essa interpretação constitucional. Entende-se que deve haver diálogo entre o Judiciário e outras instâncias do debate constitucional e mais, o Judiciário possui um papel importante no sentido que deve traduzir as demandas populares ao direito. Observa-se como característica 22

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POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p. 9. 23 POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p. 9.

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elementar dessa corrente o fato de que o Judiciário nesse diálogo não teria nem a primeira, nem a última palavra. Significa dizer que os juízes trabalhariam em conjunto dos atores políticos dos movimentos sociais no sentido de codificar os valores progressistas da Constituição24. Os tribunais não devem ter a última (e, em todo o caso, nunca a única) palavra em questões de interpretação constitucional, mesmo ante casos complexos de progresso social. Em uma democracia, o constitucionalismo limita e empodera ao governo para garantir os fins do Estado. No lugar de definir a natureza e o alcance dos direitos constitucionais desde uma torre de Babel onde os tribunais não falam com os organismos estatais, o constitucionalismo democrático propugna uma concepção conforme a qual a realização das provisões constitucionais adquire a sua legitimidade e a sua efetividade como produto de um diálogo progressivo25 (tradução nossa).26

Em recente entrevista sobre a maneira de atuação do Supremo Tribunal Federal o Ministro Luís Roberto Barroso disse entender que o Supremo não ultrapassa a sua atuação e que o Legislativo está ocupando um espaço aquém do que deveria. Quando perguntado se o Supremo não estava ocupando um espaço demais, respondeu o seguinte: Eu diria que o legislativo está ocupando espaço de menos. Sou a favor da retomada do espaço pelo Poder Legislativo. Mas isso não é um ato de força, nem uma canetada, é uma reconquista de espaço político, com legitimidade, com credibilidade, que pressupõe uma reforma política. Essa história de que o Supremo se expandiu excessivamente é uma lenda. O Supremo tem pouquíssimas decisões que sequer tangenciaram a linha de fronteira. É que há aí, uma imprecisão interpretativa. O fenômeno que existe no Brasil é o da judicialização. Por força de uma Constituição abrangente, a sociedade e os atores políticos judicializam todas as matérias, Porém, o Supremo, no geral, é autocontido27. 24

POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, pp. 9 e 10. 25 POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p. 19. 26 Los tribunales no deben tener la última (y, em todo caso, nunca la única) palavra em cuestiones de interpretación constitucional, máxime ante casos complejos de progresso social. En una democracia, el constitucionalismo limita y empodera al gobierno para garantizar los fines del Estado. En lugar de definir la naturaliza y el alcance de los derechos constitucionales desde una torre de Babel donde los tribunales no hablan com los organismos estatales, el constitucionalismo democrático propugna una concepción conforme a la cual la realización de las provisiones constitucionales adquire su legitimidade y su efectividade como producto de um diálogo progresivo (POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013. p. 19). 27 BARROSO, Luís Roberto. Não tenho nenhuma orgulho do volume de processos que o Supremo julga. Os Constitucionalistas. Brasília, 2015, p. 6. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2015.

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Os simpatizantes do constitucionalismo democrático defendem a importância do Poder Judiciário resguardar o caráter indissociável entre a democracia política e os direitos fundamentais. Além disso, defendem também que os direitos possam ser garantidos judicialmente, contanto que essa não seja a única via possível para se assegurar esses direitos e de interpretar a constituição28. Nesse ínterim, se faz importante refletir sobre as margens constitucionais que possuem as democracias contemporâneas. Entendemos que uma instituição democrática deve assumir que a maioria respeite o pacto constitucional. A ideia de pacto constitucional parte do pressuposto de que uma democracia não se baseia na tirania da validade obtida pelo apoio majoritário, mas sim, é fundamentada em um princípio majoritário o qual deve ser restringido aos interesses da consecução da legitimidade pela necessidade de conter até a satisfação igualitária dos interesses de todos. Daí se conclui que uma decisão majoritária não significa que ela seja democrática de verdade29. Quando apresentou seu projeto de uma corte deliberativa, Conrado Hubner Mendes afirmou que deliberação não pode ser considerada apenas uma ferramenta para a produção do consenso, mas também para a produção de uma boa decisão, ainda que não se tenha a unanimidade30. Neste ponto, os pensamento dos autores se aproximam, pois tanto Post e Siegel quanto Mendes não esperam que haja um apoio da maioria em uma decisão final. Post e Siegel, por entenderem que isso não significaria de fato uma democracia. Mendes, por valorizar a boa decisão em contrapartida a decisão escolhida pela maioria. Outro ponto de destaque é com relação à opinião pública. Essa corrente – do constitucionalismo democrático – entende que os tribunais devem ouvir a opinião pública e que a autoridade do direito constitucional depende de sua legitimidade democrática. Tal legitimidade depende de sua capacidade para perceber a opinião pública. Isso não quer dizer que os tribunais tenham que decidir conforme o consenso popular. O Judiciário teria apenas o papel de traduzir o anseio da sociedade31. Um episódio ocorrido no ano de 2013 no Brasil está em consonância com o narrado no parágrafo anterior, ou seja, o fato de que os tribunais não devem ceder simplesmente à opinião pública por ceder. À época do julgamento do caso conhecido como o “Mensalão” o Ministro Luís Roberto Barroso declarou que o STF deveria “ser imune às paixões da opinião pública”, a qual, naquele momento, 28

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POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p. 14. 29 POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p. 18. 30 MENDES, Conrado. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 63 31 POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p.23.

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demonstrava desgosto com o envolvimento de políticos, representantes do povo, em escândalos de corrupção32. Essa inquietação por parte de alguns juristas brasileiros desencadeou um estudo capitaneado pelo professor Marcelo Novelino o qual tinha como escopo verificar até que ponto a opinião pública influencia o comportamento judicial. Foi identificado que essa indagação é afirmativa, ou seja, que de fato a opinião pública tem influência nas decisões do Supremo. A pesquisa demonstrou que a opinião pública influencia seja de maneira consciente, subconsciente ou até mesmo inconsciente. O desiderato aponta ainda que não apenas a opinião pública influencia, como fatores chamados de extrajurídicos, como a ideologia, as características, interesses individuais, as experiências pessoais e profissionais formam o conjunto de elementos importantes para a tomada de decisão33. De volta à discussão sobre o constitucionalismo democrático, sobre este ponto da opinião pública, essa corrente reconhece os protestos – o que Post e Siegel chamam de reações violentas – como mecanismos inclusivos democráticos. Isso porque, para eles, o conflito em certa medida pode gerar uma garantia dos direitos constitucionais, seja por meio da legislação, seja por meio das decisões judiciais34. As decisões constitucionais suscitam resistência em alguns casos, especialmente quando ameaçam o status dos grupos acostumados ao exercício da autoridade. A mobilização a favor ou contra uma decisão é uma forma importante de compromisso democrático . Os argumentos, casos e discussões que plantam Post e Siegel deste enfoque pouco comum na academia jurídica de uma relevância singular em contextos jurídicos singulares nos quais, por conta do influxo de diversos aspectos do cânone neoconstitucional, há um otimismo muitas vezes desmedido acerca das verdadeiras possibilidades de alcançar o progresso social via progresso jurisprudencial35 (tradução nossa)36. 32

Cf É preciso uma revolução no modo como o Supremo atua. O Globo. Rio de Janeiro, 02 set. 2013. Disponível: http://oglobo.globo.com/brasil/e-preciso-uma-revolucao-no-modocomo-supremo-atua-diz-ministro-luis-roberto-barroso-10669190. Acesso em: 25 fev. 2015. 33 NOVELINO, Marcelo. A influência da opinião pública no comportamento judicial dos membros do STF. In: Constitucionalismo e Democracia. FELLET, André; NOVELINO, Marcelo (Org.). Salvador: Juspodivm, 2013, pp. 265 e 266. Disponível: < http://www. editorajuspodivm.com.br/i/f/Pages%20from%20CONSTITUCIONALISMO%20 E%20DEMOCRACIA.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2015. 34 POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p.24. 35 POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, p.24. 36 Las decisiones constitucionales suscitan resistencia en algunos casos, especialmente cuando amenazan el estatus de los grupos acostumbrados al ejercicio de la autoridad (Post e Siegel, 2004). La movilización a favor o en contra de una decisión es una forma importante de compromiso democrático. Los argumentos, casos y discusiones que plantean Post y Siegel de este enfoque poco común en la academia jurídica resultan de singular relevancia en contextos jurídicos en los cuales, por cuenta del influjo de diversos aspectos del canon neoconstitucional, hay un optimismo muchas veces desmesurado acerca de las verdaderas posibilidades de alcanzar el progreso social vía el progresismo jurisprudencial.

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Por fim, Post e Siegel pugnam por uma fundamentação baseada no dissenso do constitucionalismo no trabalho de abertura democrática, de inclusão, ocasionando uma convivência harmônica da sociedade. A Legitimidade democrática da constituição não estaria apenas sustentada no consenso, mas também pelo dissenso, o qual ocasiona comunicações entre os cidadãos. O constitucionalismo democrático advoga para que os tribunais tenham canais para os tribunais se comunicarem com os cidadãos e, assim, entende que a legitimidade do direito constitucional radicará no fato de que o pacto constituinte, além de ser includente e deliberativo em sua gênese, permanece aberto37. Dos três projetos apresentados, este último nos parece ser o mais completo a ser implementado dentro de uma corte constitucional. Contudo, o constitucionalismo democrático não apresenta quais procedimentos legitimariam essas ações de atores externos para contribuir na tomada de decisão. De que maneira as decisões tomadas no referidos fóruns, como os representantes de sindicatos se organizariam para fazerem parte do debate, de que forma a administração pública contribuiria no processo, etc, são apenas exemplos de questões que não ficaram claras e que merecem esclarecimentos para que esse pensamento se torne mais claro e mais viável.

Conclusão O projeto de transformar o Supremo Tribunal Federal em uma corte deliberativa revela-se como desafiador, uma vez que significaria mudar o costume de anos de uma corte constitucional, em que juízes trabalham isolados em seus gabinetes, onde a ausência de argumentação entre os ministros é uma característica marcante e onde a decisão é tomada a partir da soma de votos individuais dos ministros. Dizer que uma corte é deliberativa significa dizer que as partes terão um momento de interagir com a corte, que em um momento seguinte os juízes vão comunicar entre eles almejando uma decisão e não apenas cada um apresentar o seu ponto de vista, e, finalmente, significa se obter uma parte escrita da decisão, mas uma decisão colegiada de fato, em que as partes e os juízes interagiram. Dessa maneira, a corte cumpriria o seu papel de meramente uma interlocutora institucional. Para o “fórum de princípio” de Dworkin existe um entendimento de que a corte possui condições de decidir por possuir um tipo superior de razão e isso é explicado, talvez pelo seu ambiente isolado e aos ônus argumentativos impostos. Para essa teoria o tribunal desempenharia um papel importante no governo, todavia, não o papel principal. Dessa maneira, o “fórum do princípio” desmistifica a centralidade da corte nas decisões, assim como o projeto de uma corte deliberativa. 37

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POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013, pp.24 e 25.

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O constitucionalismo democrático traz uma proposta bem semelhante do projeto de uma corte deliberativa, tirando o poder de decisão dos tribunais. Antes da decisão propriamente dita ocorrer, haveria maior diálogo entre o Judiciário e outras instâncias do debate constitucional, de maneira que os juízes não atuariam sozinhos, ou seja, a decisão seria algo fruto de uma reflexão conjunta. Nesse ponto, a questão da opinião pública ganha destaque, pois há uma indagação a respeito da influência ou não que a opinião pública faz nas decisões do supremo. Infelizmente, não temos no Brasil pesquisa empírica que nos leve a esse resultado. Outro ponto importante a ser considerado no constitucionalismo democrático é com relação ao dissenso, pois, esse pensamento valoriza a falta de consenso, acreditando que isso é democracia e que acarreta comunicação na sociedade. Entendemos que é necessária mais deliberação no Supremo Tribunal Federal, como também que realmente haja um intercâmbio maior entre os atores externos de maneira que os juízes possam ser sensibilizados com as necessidades dos cidadãos e, assim, possam chegar a uma boa decisão, ainda que esta não seja a decisão da maioria. Essa deliberação viria juntamente de uma interpretação constitucional em melhores condições, além de maior legitimidade argumentativa e com maior potencial de interação com outros os outros poderes e atores.

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. É preciso uma revolução no modo como o Supremo atua. O Globo. Rio de Janeiro, 02 set. 2013. Disponível: http://oglobo.globo.com/brasil/e-preciso-umarevolucao-no-modo-como-supremo-atua-diz-ministro-luis-roberto-barroso-10669190. Acesso em: 10 fev. 2015. BARROSO, Luís Roberto. Não tenho nenhuma orgulho do volume de processos que o Supremo julga. Os Constitucionalistas. Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2015. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 41-104. HORBACH, Carlos Bastide. É preciso mais deliberação no Supremo Tribunal Federal? Conjur. São Paulo, 2013. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2015. MENDES, Conrado. Constitutional Courts and Deliberative Democracy. Oxford University Press, 2013. _________________. Not the Last Word, But Dialogue – Deliberative Separation of Powers 2 (November 1, 2009). Legisprudence, Vol. 3, No. 2, pp. 191-246, 2009. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1911835 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1911835. _________________. O projeto de uma corte deliberativa. In: VOJVODIC, Adriana; PINTO, Henrique Motta; GORZONI, Paula; SOUZA, Rodrigo Pagani de. (organizadores). Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2012. NOVELINO, Marcelo. A influência da opinião pública no comportamento judicial dos membros do STF. In: Constitucionalismo e Democracia. FELLET, André; NOVELINO, Marcelo (Org.). Salvador: Juspodivm, 2013, p. 265-328. Disponível: < http://www.

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Corte Deliberativa, Fórum do Princípio e Constitucionalismo Democrático: visões sobre formas de Deliberação da Corte

editorajuspodivm.com.br/i/f/Pages%20from%20CONSTITUCIONALISMO%20 E%20DEMOCRACIA.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2015. POST, Robert e SIEGAL, Reva. Constitucionalismo democrático. Por una reconcilliación entre Constitución y pueblo. Buenos Aires: SigloVeintiuno Editores, 2013.

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A Estrutura do Supremo Tribunal Federal e Eficiência da Justiça Constitucional Julia Wand-Del-Rey Cani1 Resumo O texto da Constituição Federal de 1988 optou pela continuidade do Supremo Tribunal Federal como Tribunal Constitucional, bem como última instância do Poder Judiciário. Nesse sentido, é possível verificar que a competência do Supremo Tribunal Federal se divide em atribuições relativas ao controle de constitucionalidade, competência originária para processar e julgar determinadas ações, para julgar em recurso ordinário e extraordinário, dentre outras que não possuem relação direta com a proteção da Constituição. Contudo, o quadro hoje é de abarrotamento de processos sob responsabilidade de cada um de seus onze ministros, fato que acaba por prejudicar a eficiência da realização de sua finalidade maior – guardião da Constituição Federal. A concentração em um único órgão de funções tão relevantes e diferentes dificulta a concretização dos mandamentos constitucionais. Assim, face ao esgotamento operativo do modelo vigente, seria salutar alteração na estrutura do Supremo Tribunal Federal, no intuito de se corrigir problemas de morosidade processual e fomentar a celeridade, em prol da razoável duração do processo. Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; estrutura; funções; reforma. Abstract The text of the Federal Constitution of 1988 opted for continuity of the Federal Supreme Court as Constitutional Court, as well as the higher instance of the judiciary. In this sense, it is possible to check that the jurisdiction of the Federal Supreme Court is divided into tasks relating to the control of constitutionality, original jurisdiction to prosecute and judge certain actions, to judge on appeal ordinary and extraordinary, among others that have no direct relation with the protection of the Constitution. However, the picture today is an overload of processes under the responsibility of each one of its eleven ministers, a fact that ultimately affect the efficiency of the implementation of its greater purpose – guardian of the Federal Constitution. Concentration in one body as relevant and different functions makes it difficult to implement the constitution. Thus, in the face of exhaustion of operating model in force, it would be salutary to change the structure of the Federal Supreme Court, in order to correct problems of lengthening procedures and promote the speed, in favour of reasonable duration of the process. Keywords: Supremo Tribunal Federal; structure; role; reform. 1

Aluna de mestrado do programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFRJ.

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Introdução O presente artigo tem por objetivo analisar se o Supremo Tribunal Federal, seja atuando como Tribunal Constitucional, seja desempenhando competência recursal ou originária, realiza suas atividades da forma mais eficiente que poderia. Isto é, busca-se identificar se o fato de um único órgão concentrar funções tão relevantes e diferentes dificulta a concretização dos mandamentos constitucionais, bem como quais as consequências desse atual desenho do órgão de cúpula do Poder Judiciário. Pretende-se, ainda, saber se seria viável alteração na estrutura do Supremo Tribunal Federal, no intuito de otimizar a realização da sua atividade primordial, qual seja, a proteção da Constituição Da República Federativa Brasileira. Muito embora a Constituição tenha atribuído ao Supremo Tribunal Federal a competência para proteção de seu texto, outras competências lhe foram outorgadas sem que houvesse relação estrita com a função de guarda da Constituição. Com efeito, o art. 102, caput, prevê que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. Observa-se que foram elencadas várias alíneas contendo competências para julgar originariamente ou em grau de recurso ordinário ou extraordinário processos envolvendo interesses de grupos determinados, que poderiam ser deslocados para outro órgão do Poder Judiciário. De fato, a reforma trazida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, preocupou-se com a razoável duração do processo, bem como com os meios de garantir a celeridade de sua tramitação. Contudo, em que pese algumas competências terem sido deslocadas para o Superior Tribunal de Justiça, outras competências recaíram e ainda recaem sobre o Supremo Tribunal Federal e o quadro hoje é de abarrotamento de processos sob responsabilidade de cada um de seus onze ministros, fato que acaba por dificultar a realização de sua finalidade maior – guardião da Constituição Federal. A análise que se pretende fazer vai ao encontro das discussões que envolvem a Proposta de Emenda Constitucional número 275, apresentada em junho de 2013, com o objetivo de aperfeiçoar o funcionamento das instituições que compõe o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Trata-se de proposta que visa à criação de uma Corte Constitucional, a partir da redução de competência do Supremo Tribunal Federal, aumento de sua composição, bem como modificação na forma de nomeação de seus ministros. A intenção é concentrar, na Corte Constitucional, somente a interpretação e aplicação da matéria constitucional, deslocando para o Superior Tribunal de Justiça grande parte da competência que hoje cabe ao Supremo Tribunal, mas que não envolve diretamente a guarda da Constituição.

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O Supremo Tribunal Federal como tribunal constitucional A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, fazendo com que a legitimidade de todos os poderes estatais decorra de seus fundamentos e se estabeleça na proporção em que foram por ela distribuídos. André Ramos Tavares (2005, p.114), afirma que a Constituição configura limite para o Legislador, bem como parâmetro para promover o seu controle, além de oferecer padrões de obediência obrigatória pelos poderes do Estado. Em verdade, a Constituição está preocupada não apenas com o Legislador, mas com uma série de órgãos e estruturas que, em regra, serão controladas por um Tribunal Constitucional. Para Tavares (2005, p. 189), “no Estado Constitucional, a Constituição é o centro do universo jurídico, e, com isso, seria possível sustentar teoricamente que a função do Estado é a de aplicar – incluindo garantir – essa Constituição”. O Tribunal Constitucional pode ou não ser órgão integrante do Poder Judiciário, o importante é que sua principal função seja zelar pela correta aplicação e interpretação da Constituição. Víctor Ferreres Comella (2005, p. 8) escreve nesse sentido: Pero aunque no haya un fundamento “expressivo” detrás de la decisión de crear un Tribunal Constitucional, en todo caso un Tribunal de esta naturaliza tenderá a ser particularmente sensible ante las cuestiones constitucionales. No puede olvidarse facilmente de las razones que llevaron a los constituyentes a ponerlo em pie como Tribunal especial: garantizar la supremacia de la Constitución a la ley.

A propósito, convém apresentar a ressalva feita por Tavares (2005, p.154), com relação à utilização dos termos Tribunal Constitucional e Corte Constitucional. Segundo o autor, o termo “Corte” pode sugerir que não se trata de um autêntico tribunal, ao mesmo tempo em que pode ser empregado como referência a corpos legislativos, razão pela qual também o presente estudo se utilizará do termo Tribunal Constitucional. A origem de um órgão especial e autônomo, denominado Corte Constitucional, orientado para a revisão judicial da legislação, remonta à Constituição austríaca de 1920, a partir de nítida inspiração em Hans Kelsen, que defendia a existência de um órgão com exclusividade e monopólio no exercício do controle da constitucionalidade (TAVARES, 22005, p. 158). Segundo Tavares (2005, p.133), a implementação do Tribunal Constitucional enfrentou dificuldades, mas o fato é que tal modelo foi difundido pela Europa, tendo influenciado, também, boa parte do mundo. Conforme escreve André Tavares (2005, p. 191), duas premissas dão suporte à totalidade de funções desempenhadas pelo Tribunal Constitucional, quais sejam, a ideia de supremacia da Constituição e a necessidade de que o texto constitucional contemple o órgão que atuará como Tribunal Constitucional e

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a ele atribua a sua guarda. O autor afirma “Assim, o Tribunal Constitucional é o órgão máximo de garantia da supremacia da Constituição, e seu surgimento encontra-se atrelado ao surgimento e à evolução do Estado Constitucional de Direito”. E prossegue: Todas as funções próprias a serem exercitadas pelo Tribunal Constitucional devem ser categoricamente inseridas na respectiva Constituição, sendo inviável e inaceitável que se possam fazer depender da lei (e pois, do Parlamento, como “poder” constituído). (TAVARES, 2005, p. 203)

Em sua origem, os tribunais constitucionais sempre estiveram relacionados ao controle de constitucionalidade das leis. Atualmente, a realização do mencionado controle é a principal função atribuída a um tribunal constitucional. No entanto, como esse controle é apresentado, pelos diversos países, por meio das mais variadas estruturas inseridas em diferentes sistemas jurídicos (TAVARES, 2005, p.173), observa-se a existência não apenas de forma variada e ampla de fiscalização das leis, como também de atribuição de outras funções ao Tribunal Constitucional. Segundo Tavares (2005, p.175, 176), “trata-se de órgão constitucional que passou a desenhar um espaço próprio de atuação”, desempenhando, além da tarefa de controle, função legislativa e governativa. Os Tribunais Constitucionais, segundo Tavares (2005, p. 192), desenvolveram-se junto com o Direito Constitucional, assumindo lugar de destaque no cenário jurídico atual, garantindo o processo de reconhecimento e reforço das constituições, razão pela qual “sua presença é considerada imprescindível, e suas funções foram gradualmente alargadas”. O autor ressalta, ademais, que “o Tribunal Constitucional é, concomitantemente, partícipe e garante do governo, da normatividade (Estado de Direito), da governabilidade e da constitucionalidade, dentre outras funções”. Para Gilmar Ferreira Mendes (2008), às Cortes Constitucionais pertence função autônoma de controle constitucional, que não se identifica com nenhuma das funções próprias de cada um dos Poderes tradicionais, mas se projeta de várias formas sobre todos eles, para reconduzi-los à rigorosa obediência das normas constitucionais. Desse modo, segundo Mendes, os Tribunais Constitucionais possuem função tão especial que não poderiam integrar estrutura de nenhum dos Poderes do Estado. Tavares (2005, p. 543) menciona também que, por depositarem no Tribunal Constitucional a esperança da correção das leis e atos injustos, o órgão acaba por se considerado o guardião da justiça, pacificador de grandes conflitos sociais ou mesmo institucionais. Ocorre que essa atribuição ao Tribunal Constitucional de ser o responsável por uma sociedade harmônica e organizada é excessivo, podendo mesmo ser compreendido como um mito, uma verdadeira função mística de manutenção da ordem e da Justiça. Por esse motivo, é preciso que haja muito cuidado do Tribunal Constitucional, qual seja, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, a fim de

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que suas funções de guardião da Constituição, de promoção dos direitos fundamentais e da democracia no Estado Democrático de Direito não sejam descaracterizadas pelo exercício sem limites da discricionariedade. A propósito, discorre Guilherme Penã: Considerando a impossibilidade jurídica de controle, interno ou externo, sobre o exercício da autonomia processual pelo tribunal de cúpula do Poder Judiciário, dada a superposição do Supremo Tribunal Federal na organização judicial brasileira, (...) a manutenção da justiça constitucional nos limites à autonomia processual depende, única e exclusivamente, da autocontenção judicial. (DE MORARES, 2012, p. 114)

Com relação ao Tribunal Constitucional do cenário brasileiro, é imperioso ressaltar que, quando das discussões na Assembleia Constituinte de 1987/1988, foram formuladas três propostas acerca da estrutura do Supremo Tribunal Federal: i- a criação de um Tribunal Constitucional ou Tribunal das Garantias Constitucionais, cujas atribuições seriam exclusivas sobre questões constitucionais, com ministros temporários escolhidos pelo Congresso Nacional ou pelos três poderes da República. ii- a criação, no próprio Supremo, de uma seção especializada para conhecer as questões constitucionais, composta por ministros temporários – O Supremo Tribunal Federal manteria sua função unificadora da legislação federal, com ministros vitalícios. iii- a continuidade do Supremo Tribunal Federal, que permaneceria como Tribunal Constitucional, Tribunal Federal e de cassação, com ministros vitalícios (KOERNER, FREITAS, 2013). Foi vencedora a última proposta, mantendo-se o status quo do Supremo Tribunal Federal, que exerceria atividade de Tribunal Constitucional, sem abrir mão de outras funções, como última ou única instância recursal para determinados casos, conforme previsão constante do Art. 102, da Constituição Federal. Ao Supremo Tribunal Federal, assim, coube desempenhar dois papéis: preservar o texto da Constituição Federal em sede de controle de constitucionalidade e prestar a tutela jurisdicional, por via recursal ou originariamente, resolvendo conflitos que emergem no caso concreto, cujo interesse está adstrito às partes envolvidas ou não envolvem diretamente a guarda da Constituição. Conforme se depreende do texto “Judicialização, ativismo judicial e Legitimidade Democrática”, de Luis Roberto Barroso (2008), a Constituição Federal de 1988, analítica e desconfiada do Poder Legislador, determinou que o Supremo exercesse ambos os referidos papéis, bem como traz em seu texto “matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária”. Verifica-se que o desenho atual do Tribunal de cúpula do Poder Judiciário foi uma escolha dentre algumas opções possíveis e discutidas em momento oportuno. A questão é saber se hoje se mantém inalteradas as condições sociais,

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econômicas, políticas e jurídicas que embasaram aquela decisão por determinado arranjo institucional. É possível que o acúmulo de competência, o aumento no número de demandas que chagam ao Supremo, a morosidade da máquina judiciária como um todo, bem como a recente valorização dos precedentes representem alteração significativa para justificar novas discussões em torno de uma nova estrutura para o Supremo Tribunal Federal.

– Diversidade de funções em um Tribunal Constitucional Com efeito, a função desempenhada pelo Tribunal constitucional é complexa, tendo em vista haver uma real diversidade de atribuições, muitas vezes sem qualquer relação com categorias fundamentais da teoria da Justiça Constitucional2. Se por um lado, tal complexidade pode levar à exacerbação do Tribunal Constitucional, por outro, não se pode deixar de considerar que algumas funções que vão além do controle de constitucionalidade derivam da necessidade de se garantir a supremacia da constituição e, nessa medida, seriam inafastáveis. As mencionadas funções consistem no controle de constitucionalidade – função originária, no alargamento do campo de atos passíveis de controle, bem como a possibilidade de se controlar as reformas constitucionais (TAVARES, 2005, p. 192-196). O fato de o Tribunal realizar atividades consideradas não próprias de um Tribunal Constitucional não o descaracteriza como tal, contudo, é possível que o desempenho de tais funções secundárias influencie na celeridade de seu trabalho, bem como motive a vulgarização do órgão perante os operadores do Direito e a sociedade em geral, na medida em que seja utilizado recorrentemente para resolver problemas considerados ordinários e não próprio da Justiça Constitucional (TAVARES, 2005, p. 157). Nesse sentido: Da análise do Direito brasileiro depreende-se que muito do que consta como competência do Supremo Tribunal Federal é matéria que, a rigor, deveria estar cometida a outro órgão do Poder Judiciário, como o superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, muito do que efetivamente se caracterizaria, teoricamente, como controle de constitucionalidade não consta do rol de atribuições do Supremo Tribunal Federal. (...) As novas funções, ao contrário daquela denominada “função histórico-originária” e de suas correlatas, encontram-se, ainda, em processo de evolução e consagração em diversos estados. (...) Não há como confundir o fundamento das funções próprias do Tribunal constitucional com a função histórico-originária deste. Todas, inclusive a histórico-originária, apresentam o mesmo fundamento de existência - a Constituição e suas prescrições como objetivo último 2

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O conceito de justiça constitucional, segundo André Ramos Tavares (2005, p. 147), é amplo e engloba todos os instrumentos de garantia dos postulados constitucionais, unidos com a finalidade de conquistar a efetividade das normas fundamentais. Ressalte-se que a Justiça Constitucional contém em si a própria Jurisdição Constitucional, que com ela não se confunde, tendo em vista que essa remete à ideia de desenvolvimentos processual, isto é, instrumento por meio do qual se realiza a tomada de decisão de caráter jurisdicional.

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de cumprimento maximizado. (...) O fundamento de todas as funções é comum, o que não significa a possibilidade de reduzi-las a uma única função-tronco. Sustenta-se, pelos motivos expostos, a autonomia das demais funções. (TAVARES, 2005, p. 198-200)

Ao discorrer sobre a referida complexidade de funções que são atribuídas ao Tribunal Constitucional, André Tavares explica as funções próprias e impróprias: As funções impróprias são aquelas que determinada realidade estatal imputa ao Tribunal Constitucional ignorando a posição e a natureza dessa instituição. São funções que não se compadecem com a posição de garante da Constituição, deslocando-se da categoria de funções que são estruturais (próprias) a qualquer justiça constitucional. (...) Provavelmente sempre haverá, em diversos ordenamentos jurídicos pontuais, por força das respectivas constituições, funções desempenhadas pelo órgão “Tribunal Constitucional”, que são incompatíveis com ele enquanto instituição imprescindível ao Estado Constitucional. (...) As funções chamadas próprias são aquelas que pertencem a um tribunal constitucional por sua natureza e desenvoltura. São as funções estruturais da Justiça constitucional, responsáveis por sua identificação e caracterização final. Todas as funções próprias são essenciais, e delas não se pode desvencilhar o Tribunal Constitucional, sob pena de grave prejuízo para a Constituição e o sistema jurídico. (TAVARES, 2005, p. 192, 209)

Em que pese o exercício de funções impróprias não descaracterizarem um tribunal como Constitucional, seria interessante que tais funções fossem deslocadas para outra instituição que não tenha recebido o encargo maior de guardar e promover especificamente o texto da Constituição. Segundo Tavares (2005, p. 209): “são atividades que devem ser eliminadas, porque não fazem parte da natureza do Tribunal Constitucional e não encontram fundamento para serem exercidas por esse órgão”. Verifica-se que não há empecilho a que um órgão que também atue como Tribunal Constitucional exerça funções além daquela originária de controle de constitucionalidade das leis. No entanto, parece mais adequado que tais atividades “extras” ainda mantenham vinculo com o desenvolvimento da Justiça Constitucional. Caso contrário, a concentração de atividades próprias e impróprias de um Tribunal Constitucional em uma mesma instituição pode levar à perda de eficiência da estrutura como um todo.

– Tribunais Puros e Impuros Ao discorrer sobre “Las consecuencias de centralizar el control de constitucionalidad de la ley en un Tribunal especial. Algunas reflexiones acerca del activismo judicial”, Victor Ferrer Comella (2005, p.1, 2) considera que, historicamente, a opção por um modelo centralizado de justiça constitucional, isto é, modelo em que um único Tribunal é competente para invalidar as leis (ao

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contrário do modelo descentralizado, em que todos os tribunais podem afastar a aplicação de uma lei tida como contrária ao texto constitucional), está ligada à necessidade de se obter segurança jurídica nos julgados. Victor Ferreres Comella (2005, p.2) apresenta outras razões para escolha do modelo centralizado de justiça constitucional: a intensidade com que os Tribunais Constitucionais podem evitar as questões constitucionais; bem como a intensidade por meio da qual podem exercer o controle de constitucionalidade – quanto mais deferente ao legislador, menos intensa a forma de controle. A tese principal de Comella visa demonstrar que, em comparação com os tribunais de um modelo descentralizado, é menos provável que um Tribunal Constitucional pratique algumas das citadas formas de “passividade judicial”, em verdade, tal órgão atuará em direção mais ativista. Ressalte-se que Comella (2005, p.3) ainda traz a caraterização da estrutura dualista, dentro do modelo centralizado de justiça constitucional, porquanto divide o poder judicial, por um lado, em tribunais ordinários e, por outro, em um Tribunal Constitucional, cada um com atribuições diferentes. Aos tribunais ordinários, atribui-se a função judicial ordinária, que consiste em aplicar a legislação a casos concretos. Enquanto ao Tribunal Constitucional, atribui-se a função constitucional, configurando essa na tarefa de controlar a validade das leis face à Constituição do país. A estrutura dualista apresentada (COMELLA, 2005, p. 4) pode ser mais ou menos rígida, de acordo o grau de pureza do Tribunal Constitucional. A pureza diz respeito ao fato de o Tribunal exercer o controle de constitucionalidade de leis como única função ou não. De fato, o modelo centralizado apresentado por Comella tem como característica a presença do Tribunal Constitucional como o único responsável por invalidar as leis, porém, nada impede que tal órgão desempenhe concomitantemente outras funções, como aplicação da lei a casos concretos. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional não será puro se, aparte o controle de constitucionalidade das leis, tem de desempenhar outras funções. Ou seja, será tanto menos puro quanto mais importantes forem essa outras funções e quanto maior a carga de trabalho que essas gerarem. Aplicando essa classificação ao Supremo Tribunal Federal, percebe-se que se trata de instituição impura, tendo em vista a realização de outras atividades, que não apenas o controle de constitucionalidade das leis, fato que vai de encontro com o postulado por Comella: Dado que el Tribunal Constitucional está especializado en assuntos constitucionales, los comentaristas no tienen que esforzarse por aislar os casos constitucionales y separarlos de los casos ordinarios. La especialización simplifica el debate público. Además, em la medida en que el Tribunal decide en abstracto, hace abstracción de las circunstancias de los diversos casos a los que podría aplicarse la ley, aislando de esta manera la cuestión relativa a la validez de la ley, y desligándola de otras cuestiones jurídicas. (COMELLA, 2005, p. 19)

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A estrutura do Supremo Tribunal Federal Como mencionado anteriormente, o texto consagrado na Constituição da República Federativa brasileira de 1988 optou pela continuidade do Supremo Tribunal Federal como Tribunal Constitucional, bem como última instância do Poder Judiciário. Nesse sentido, a partir de análise do art. 102, da Constituição Federal, é possível verificar que a competência do Supremo Tribunal Federal se divide em atribuições relativas ao controle de constitucionalidade, competência originária para processar e julgar determinadas ações, para julgar em recurso ordinário e extraordinário, bem como para editar súmula e conhecer de reclamações, conforme previsão no art. 103, da Constituição. Trata-se de instituição composta por onze Ministros empossados em cargos vitalícios, brasileiros natos, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, consoante consta do art. 101, Da Constituição Federal. Os onze Ministros são nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. São órgãos do Tribunal: o Plenário, as duas Turmas e o Presidente. O Plenário é composto pelos onze Ministros e é presidido pelo Presidente do Tribunal. As Turmas são constituídas por cinco Ministros cada. O acervo atual em trâmite no Supremo Tribunal Federal soma 55.899 mil processos, sendo que esses são computados e divididos, para fins de estatística, em classes: recursais (40.312 processos); Controle Concentrado (2.010 processos); criminais (3.652 processos); e demais originárias (9.925 processos). Ressaltese que são classes recursais o recurso extraordinário, o recurso extraordinário com agravo e o agravo de instrumento. São classes originárias todas as demais, incluídos os recursos ordinários3. Chama atenção o fato de uma parcela mínima dos processos representarem atuação do órgão em controle de constitucionalidade abstrato, ou seja, atividade própria de Tribunal Constitucional. Ademais, nota-se claramente que grande parte dos processos em tramitação no Supremo Tribunal Federal consiste em recursos extraordinários e agravos de instrumento. É certo que também estão inseridos, nas classes recursais, os recursos extraordinários que tratam de controle concreto de constitucionalidade, mas não se pode deixar de considerar que o trabalho maior do Tribunal está concentrado nos recursos, isto é, na parte da estrutura da instituição relacionada com o fato de ser única ou última instância recursal do Poder Judiciário. Conforme mencionado, o Supremo Tribunal Federal funciona, ao mesmo tempo, como última instância para recursos provenientes das Justiças federal e estadual, corte constitucional e foro especial para indivíduos que ocupam 3

Os dados apresentados foram obtidos a partir de consulta aos dados do acervo atual de processos em tramitação no Supremo Tribunal Federal, disponível em http://www.stf. jus.br.

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cargos políticos na esfera federal. Tais competências atraem para o Supremo aproximadamente cinquenta e oito mil processos, que são distribuídos pelos onze ministros que o compõe. Não é forçoso considerar, a partir desses dados, que o acúmulo de processos contribui para morosidade na atuação do órgão. A propósito, Marcelo Tavares4 mencionou que hoje há, no âmbito do supremo Tribunal Federal, grande convivência de processos de alto valor, como ações de controle de concentrado de constitucionalidade, com causas de menor complexidade, a exemplo do julgamento de recurso relacionado a roubo de galinhas. Segundo Tavares, é possível observar no Tribunal um grande ‘varejo de ações’, e o motivo pode estar justamente no fato de o Supremo não estar disposto a abrir mão do poder que representa a competência para julgar e processar diversas matérias. Como consequência, a própria Constituição Federal, bem como a legislação federal vem sendo constantemente alteradas, no intuito de frear o acesso de litigantes ao órgão de cúpula do Poder Judiciário. Mecanismos como repercussão geral, súmulas vinculantes, recursos repetitivos, abstrativização do controle de constitucionalidade concreto, dentre outros, constituem barreiras impostas aos cidadãos como forma de promover a celeridade da máquina judiciária, especialmente do Tribunal ora analisado. Nesse sentido, questiona-se as reformas até aqui feitas no ordenamento jurídico foram suficientes e eficazes para corrigir problemas de morosidade processual e fomentar a celeridade, em prol da razoável duração do processo, ou se é preciso alteração na estrutura, no próprio desenho apresentado pelo Supremo. É inegável que o Supremo Tribunal Constitucional, ao exercer a Justiça Constitucional ao lado de competências outras, mantém a forma eleita pelo Poder Constituinte Originário. Porém, conforme ressaltado, alterações na sociedade levaram à necessidade de modificação no ordenamento, restando evidente o esgotamento operativo que esse modelo gera. É imperioso que questões relacionadas à funcionalidade prática e à estética do Tribunal, isto é, preocupadas com a adoção de um desenho que esteja em condições de oferecer a resposta adequada e célere para os problemas derivados da supremacia da Constituição (TAVARES, 2005, p. 158, 159). André Ramos Tavares afirma, ainda, que: Quando o Tribunal Constitucional confunde-se com um Tribunal judicial, todas as funções próprias do Judiciário serão transferidas àquele. Isso costuma ocorrer sempre que o Tribunal Constitucional é apresentado como Tribunal Supremo. Ocorre que, em tais circunstâncias, boa parte dessas funções é imprópria e, assim, interferirá na eficiência do Tribunal Constitucional. Considere-se, exemplificativamente, a função de solucionar casos concretos (independentemente de vínculo constitucional direto). Quando um Tribunal Constitucional é chamado para desenvolver esse tipo de função, evidentemente que estará atuando fora do círculo da Justiça Constitucional. 4

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Trata-se de palestra apresentada em 29.04.2014, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no I Simpósio do LETACI.

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Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013 A proposta de Emenda Constitucional nº 275, de 20135, pretende criar a Corte Constitucional, alterar a composição, a competência e a forma de nomeação dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, bem como alterar a composição do Conselho Nacional de Justiça. Nesse momento, dar-se-á enfoque na criação da Corte Constitucional, conforme a proposta de emenda à Constituição Federal. As competências que eram destinadas ao Supremo Tribunal Federal e não constam do texto da nova redação dos artigos 101 e 102 da Constituição passariam ao Superior Tribunal de Justiça, que contaria com número bem maior de Ministros. O Supremo Tribunal seria transformado em Corte Constitucional, mantendo as funções clássicas de Justiça Constitucional, como o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, bem como funções primordiais, relacionadas com a proteção da Constituição. Além disso, sua competência seria reduzida e o número de componentes aumentado para quinze Ministros. Ressalte-se que as ações que envolvem foro por prerrogativa de função também seriam deslocadas para o âmbito de competência do Superior Tribunal de Justiça. A Proposta de Emenda à Constituição tem por objetivo aperfeiçoar o funcionamento das instituições que compõe a cúpula do Poder Judiciário, quais sejam, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. A justificativa apresentada pela PEC diz respeito à organização do Supremo Tribunal Federal, que, segundos autores da proposta, padece de graves defeitos na forma de sua composição, bem como no tocante ao âmbito de sua competência. Ademais, a Sra. Luiza Erundina – uma das autoras da PEC – informa: A nosso ver, o objetivo precípuo do Supremo Tribunal Federal, definido no art. 102 da Carta Magna como “a guarda da Constituição”, é obliterado pelo acúmulo de atribuições para julgar processos de puro interesse individual ou de grupos privados, sem nenhuma relevância constitucional. A razão dessa sobrecarga de processos de competência do Supremo Tribunal Federal advém do modelo existente anterior à Constituição de 1988, pois era o único Tribunal situado acima do conjunto dos Tribunais Federais, dos Estados e do Distrito Federal. A Constituição de 1988, ao criar o Superior Tribunal de Justiça em posição igualmente sobranceira em relação ao conjunto dos Tribunais da Justiça Federal e Estadual, deveria ter reservado à Corte Suprema apenas as causas de relevância constitucional. (http://www. camara.gov.br) 5

Dados obtidos a partir do site http://www.camara.gov.br. A Proposta de Emenda à Constituição nº 275, de 2013, é de autoria da Sra. Luiza Erundina, deputada Federal do PSB- SP e, nesse momento, aguarda Parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

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Interessante destacar, também, que a PEC nº 275 traz previsão distinta para a forma de nomeação dos Ministros da Corte Constitucional: seriam nomeados pelo Presidente do Congresso Nacional (e não pelo Presidente da República), após aprovação de seus nomes pela maioria dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (não apenas pelo Senado Federal), a partir de listas de candidatos oriundos da Magistratura, do Ministério Público e da advocacia. A proposta é que as referidas listas sejam tríplices e elaboradas pelo Conselho Nacional de Justiça, pelo Conselho Nacional do Ministério Público e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Para José Afonso da Silva, que emitiu parecer6 sobre a PEC nº 275, a citada PEC não traz grande modificação no sistema de jurisdição constitucional, quando apenas transforma nominalmente o Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional. O autor justifica seu posicionamento afirmando que a manutenção da vitaliciedade dos membros da Corte e a atribuição de controle de constitucionalidade pelo modelo difuso (não condizem com o próprio conceito de Corte Constitucional. Ademais, ressalta que as Cortes Constitucionais não devem integrar a estrutura do Poder Judiciário. Precisamente com relação à questão jurídica, José Afonso da Silva analisa a PEC no intuito de saber se é constitucional ou inconstitucional e não encontra objeções à tramitação da proposta e acrescenta que considera positiva a transferência de determinadas competências do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, principalmente quando em questão processos que não têm cabimento em tramitar em um Tribunal Constitucional. Já com relação ao aspecto político, José Afonso da Silva levanta a questão da oportunidade e conveniência de promover alterações no Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que pareceria revide dos parlamentares diretamente atingidos pelas decisões do órgão. Fábio Martins de Andrade (2014) se posiciona contra o aumento no número de Ministros da Corte de onze para quinze, bem como contra a proposta de nova forma de nomeação, argumentando que poderia haver instabilidade institucional com as mudanças. Contudo, no que tange à competência, o autor considera que a ideia de limitá-la à interpretação e aplicação da Constituição Federal é interessante e produtiva, tendo em vista que o acúmulo exagerado de casos no Tribunal sobrecarrega os Ministros. Segundo o autor: Em suma, na parte que pretende reduzir substancialmente a competência do STF para transformá-lo efetivamente em Corte Constitucional, cuja vocação lhe foi sinalizada desde o primeiro instante de concepção na Constituição de 1988, a proposta é ambiciosa e merece atenta reflexão. Todavia, quanto à parte da proposta que pretende alterar a atual composição e a forma de nomeação dos Ministros, deve-se atentar para que tais mudanças não sejam influenciadas por interesses partidários ou políticos de maiorias ocasionais de menor importância. (ANDRADE, 2014) 6

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Trata-se de parecer elaborado pelo Autor José Afonso da Silva, a pedido da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros, acerca das questões trazida pela Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013.

Julia Wand-Del-Rey Cani

Conclusão É possível afirmar que o atual desenho constitucional, especialmente no que toca ao Supremo, pode estar influenciando negativamente o desempenho da atividade precípua de guarda da constituição, tendo em vista o Tribunal destinar a maior parte de seu período de trabalho com questões recursais não relacionadas diretamente à promoção da supremacia da Constituição Federal. Alterações na estrutura do órgão de cúpula do Poder Judiciário, assim, poderiam promover maior eficiência na atuação do órgão. Por outro lado, não podemos deixar de considerar que cada país desenvolve a estrutura que melhor se adequa às necessidades de sua sociedade e, nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal foi fruto de muita discussão quando da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 e, de fato, desempenha, não exclusivamente, funções de Tribunal Constitucional. O Supremo Tribunal Federal é, portanto, o órgão de cúpula do Poder Judiciário que exerce, precipuamente, a atividade de guarda da Constituição Federal. Se o contexto político não favorece a uma radical alteração na estrutura do Supremo Tribunal, e tendo em vista a concentração nele de funções tão relevantes e diferentes, o fato é que o órgão está sobrecarregado a ponto de restar obstaculizada a concretização de certos mandamentos constitucionais, razão pela qual seria salutar que houvesse transferência de determinadas funções para outro órgão, como o Superior Tribunal de Justiça, permanecendo no órgão de cúpula do Poder Judiciário somente as funções mais próximas à guarda da Constituição.

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Modernização e Eficiência: os Eternos Desafios do Setor Portuário Brasileiro Raphael Villela1 Resumo A globalização altera de maneira substancial a lógica de organização da produção de bens e serviços, graças ao contínuo e gradual processo de abertura da economia mundial, a partir da década de 1970. Este processo se dá através da liberalização dos fluxos financeiros, comerciais e de serviços em escala global, viabilizados pelas modernas tecnologias de transportes e telecomunicações. Neste sentindo, a logística portuária assume um papel central nas estratégias de governos e empresas para uma inserção competitiva na globalização. No Brasil, o processo de abertura econômica tem início apenas na década de 1990, a partir das inúmeras reformas introduzidas pelo governo, entre as quais se destaca a reforma do setor portuário nacional. Assim, um novo marco regulatório para o setor é estabelecido pela Lei nº 8.630/1993 (Lei dos Portos) que é revogada posteriormente pela Lei nº 12.815/2013 (Nova Lei dos Portos). O objetivo central deste trabalho consiste, portanto, em analisar a evolução do sistema portuário brasileiro ao longo das duas últimas décadas. Palavras-chave: Globalização; portos, logística, Brasil. Abstract The globalization has chaged dramatically the concept of the industrial production and services. The causes are related with the world economic openness, like the liberalization of trade, capital inflows and markets started during 1970s. Thus, this dynamics seems to benefit the emergency of ports as the key vectors for a competitive play for companies and governments in the globalization era. In Brazil, the economic opening process, started during the 1990 decade, also reached the regulation and administration of ports activities as a strategy for a competitive play in the globalization era. The reform of the Brazilian port sector begins in 1993, with the Law of Ports. Later in 2013, the New Law of Ports repeals the former rule. The main goal of this paper is to analysis the evolution of the Brazilian port sector over the past two decades. Keywords: Globalization; ports, logistics, Brazil.

Introdução A logística portuária adquire um papel cada vez preponderante nas estratégias de governos e corporações, a partir do processo de abertura da economia mundial iniciada na década de 1970. A disponibilidade de modernas 1

Mestrando em População, Território e Estatísticas Públicas (ENCE/IBGE); Pós-graduando em Análise Ambiental e Gestão do Território (ENCE/IBGE); Geógrafo (UFRJ).

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tecnologias de transportes e telecomunicações, como o contêiner e a internet, possibilita aos agentes produtivos a integração da produção em múltiplas escalas, através das vantagens competitivas que os territórios oferecem à circulação, à produção, ao consumo e à inovação (SANTOS, 2002; HARVEY, 2011). Os portos tornam-se, assim, o principal palco deste processo, pois 89,79% do comércio internacional de mercadorias, em volume, é realizado pelo modal marítimo (RODRIGUE, 2013). As cidades-portuárias, por sua vez, são as protagonistas, pois cabe a elas a articulação entre as inúmeras funções econômicas, comerciais, políticas e portuárias propriamente ditas (COLLIN, 1999). No Brasil, o processo de abertura econômica iniciado nos anos 1990 é seguido pela modernização do sistema portuário, como estratégia para a inserção competitiva do país na globalização. A reforma do setor portuário torna-se, assim, prioritária na agenda política do governo, em razão da reduzida eficiência, competitividade e qualidade dos serviços e das infraestruturas portuárias. A Lei nº 8.630/1993, também conhecida como a “Lei dos Portos”, representa um marco no setor portuário ao reduzir o papel do Estado, possibilitando à iniciativa privada uma maior participação no setor. Houve, assim, um expressivo crescimento dos investimentos privados, resultando numa maior competitividade, eficiência e qualidade das instalações e dos equipamentos portuários nacionais. Duas décadas mais tarde, a Lei nº 12.815/2013, conhecida como a “Nova Lei de Portos”, revoga o marco regulatório anterior, objetivando ampliar a participação de capitais privados em prol da contínua modernização do setor. Este trabalho tem como objetivo analisar a evolução recente do setor portuário brasileiro após a série de reformas promovidas desde a década de 1990. Para tanto, é necessário: (I) identificar as causas que explicam a proeminência dos portos na globalização; (II) compreender as principais características e etapas da reforma portuária brasileira; (III) avaliar a evolução da movimentação de cargas pelo setor portuário nacional; (IV) identificar quais os elementos econômicos e geográficos explicam a hierarquia do setor portuário do país. A relevância deste trabalho é justificada, em primeiro lugar, pelos estudos ainda raros sobre a temática portuária no Brasil. A disponibilidade de instalações portuárias modernas e eficientes é, enfim, um desafio central para as autoridades brasileiras2, uma vez que o nível de competitividade e produtividade da economia nacional é prejudicada em grande medida pela precariedade do seu setor portuário. Assim, tornou-se comum denominar tal fragilidade como “Custo Brasil”. Indo além, é possível observar que a inserção do setor de transportes nas estratégias de desenvolvimento do país permanece ainda hoje secundária, pois a força do discurso desenvolvimentista pautado nos impactos estruturadores dos grandes empreendimentos é ainda dominante, o que dificulta uma profunda reflexão à melhor maneira de aumentar a competitividade técnico-operacional do porto, aeroporto, rodovia e ferrovia (DIAS, 2005). 2

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Apesar de relativamente pequena, da ordem de 1,5% (UNCTAD, 2012), a participação do Brasil no comércio internacional possui um grande potencial de crescimento.

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Globalização: do transporte à logística A globalização altera de maneira substancial a lógica de organização da produção de bens e serviços graças ao contínuo e gradual processo de abertura da economia mundial, a partir da década de 1970. Este processo se dá através da liberalização dos fluxos financeiros, comerciais e de serviços em escala global, viabilizados pelas modernas tecnologias de transportes e telecomunicações. A emergência de um novo paradigma produtivo foi a resposta encontrada pelas corporações frente à crise estrutural do modelo fordista de produção. As principais causas deste esgotamento podem ser explicadas pelo(a): (1) gigantismo das unidades produtivas; (2) produto marginal decrescente do trabalho; (3) aumento dos movimentos grevistas; (4) perda de qualidade dos produtos; (5) saturação dos mercados consumidores urbanos de massa e; (6) rigidez excessiva do sistema produtivo (BOYER, 1994). O fordismo pode ser caracterizado pela produção em massa para amplos mercados consumidores urbanos. A produção era estruturada de maneira piramidal e contava com uma forte organização técnica-científica do trabalho no interior da fábrica. A produção era voltada preferencialmente ao mercado interno com foco na oferta, o que gerava grandes estoques durante as flutuações negativas do ciclo econômico. As estratégias das grandes firmas privilegiavam tanto a integração vertical da cadeia produtiva, quanto a integração horizontal, neste último caso com a aquisição das firmas concorrentes (RODRIGUE, 2013). A organização das cadeias produtivas se dava de maneira descontínua, implicando, portanto, que grandes quantidades de peças, componentes e produtos finais precisavam ser armazenados para a garantia dos estoques tanto dos insumos, quanto das mercadorias. As sucessivas crises da década de 1970 tornam o paradigma fordista de produção inadequado para a acumulação de capital, em um cenário de forte imprevisibilidade. A solução encontrada pelas firmas foi a flexibilização da produção possibilitada pela maior mobilidade dos fatores de produção, graças às mudanças no marco regulatório e às modernas tecnologias de transporte e telecomunicações (RODRIGUE, 2013). A globalização impõe, assim, que as firmas sejam apreendidas não mais como um simples locus de produção de mercadorias, mas como um organismo que faz parte de um denso e complexo sistema de empresas articuladas em rede e com forte integração horizontal. Assim, a estratégia de redução dos custos continua associada às economias de escala, todavia esta se combina cada vez mais com a crescente necessidade de diversificação das atividades (VELTZ, 1999). As estratégias e variáveis associadas à diversificação estão relacionadas com: (1) a qualidade; (2) a variedade; (3) a capacidade de reação; e (4) de inovação das firmas que interagem em um ambiente cada vez mais competitivo. A qualidade se converteu em condição indispensável para a sobrevivência das firmas, estas buscam cada vez mais conciliar a redução dos custos com uma crescente qualidade dos produtos (VELTZ, 1999).

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A variedade representa a capacidade de produzir uma multiplicidade de produtos ou opções que podem ser combinadas à mercadoria final. Entretanto, as firmas se deparam com a necessidade de abastecer amplos mercados com uma variedade crescente de produtos e opções. A reação, representa a capacidade da firma reagir com velocidade e eficiência às flutuações do ciclo econômico, sendo fundamental para a redução dos custos de armazenagem e de comercialização dos produtos. Finalmente, a inovação representa a capacidade da firma criar novos produtos, sendo esta a principal e mais efetiva estratégia de competição no horizonte de longo prazo (VELTZ, 1999). A técnica que torna possível a combinação de todas estas estratégias de competição das firmas é a logística, pois cabe a ela articulação das mais diversas esferas de produção e consumo, em um mundo industrial organizado em rede. A logística, pode ser entendida como a arte de planejar, organizar e gerir, em múltiplas escalas, o controle dos estoques e da circulação fluida dos fluxos materiais e imateriais ao longo de toda a cadeia produtiva, desde a concepção do produto até o consumidor final. As infraestruturas de transporte representam, portanto, apenas um entre os muitos componentes da logística (BARAT, 2011; MONIÉ, 2011). A eficiência e a eficácia dos sistemas logísticos é, assim, essencial para a redução dos custos decorrentes da estocagem, transporte, distribuição e comercialização dos produtos. A existência de gargalos nas infraestruturas de transportes impõem grandes custos às empresas e aos governos em um contexto de acirrada competição proporcionada pela globalização. E o mais importante, o ganho de capital é maior com a redução dos custos envolvidos com a circulação do que com a produção (BARAT, 2011). A introdução do contêiner possibilitou a flexibilização do transporte, ao reduzir drasticamente os custos inerentes às operações de transbordo de cargas. O impacto econômico do contêiner é brutal, este equipamento é capaz de reduzir em até 25 vezes o trabalho necessário para a carga/descarga dos navios da era fordista. Ele representa, fundamentalmente, uma racionalização do transporte em termos de tempo e custo, ampliando, portanto, a eficiência através da multimodalidade (RODRIGUE, 2013). Paralelamente, o uso cada vez mais disseminado das tecnologias de telecomunicações, a partir das informações via satélite e da comunicação via internet, permite que os atores produtivos possam organizar in-time a produção em múltiplas-escalas (local, regional, nacional e global). É esta a dinâmica que caracteriza o fim da era dos transportes para a da logística, onde a circulação e a produção tornam-se indissociáveis (CASTELLS, 1999; HARVEY, 2011). A redução das fricções na circulação torna-se, portanto, fundamental para a inserção competitiva dos territórios na globalização. Para tanto, a constituição de modernas e eficientes infraestruturas de transportes, como rodovias, ferroviais, hidrovias, portos e aeroportos, torna-se essencial. Ademais, como a circulação é produtiva, logo a produtividade e a qualidade da força de trabalho local é também imprescindível (HARVEY, 2011).

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No caso do Brasil, o governo ao focar suas ações apenas na questão da modernização dos equipamentos e instalações portuárias prioriza apenas as formas, deixando de lado os conteúdos que representam as competências e capacidades da população local em agregar valor à produção. Assim, como o espaço representa uma “forma-conteúdo” (SANTOS, 2002: 86) é possível compreender o porquê dos muitos insucessos das políticas públicas formuladas no país. O “Custo-Brasil” não se restringe apenas aos gargalos nas infraestruturas de transporte, telecomunicações e energia, mas fundamentalmente à questão da educação e da capacitação da população frente às transformações em curso na economia global.

As reformas no setor portuário brasileiro A década de 1990 marca o início de uma série de reformas pelo governo brasileiro com o intuito de promover uma inserção competitiva na globalização. Primeiro, com a promoção de políticas de abertura econômica e comercial. Posteriormente, a modernização do setor portuário passa a ser uma prioridade na agenda de reformas do Governo Federal que identifica na baixa produtividade e competividade, na obsolescência dos equipamentos e instalações portuárias, nos elevados custos operacionais e tarifários e na incapacidade de gestão e coordenação os principais problemas do setor (MONIÉ & VIDAL, 2006). A reforma portuária brasileira se deu, em primeiro lugar, com a extinção da Portobrás em 1990, antiga autarquia federal responsável pela gestão do setor, sob a responsabilidade do Ministério dos Transportes. Entretanto, o que se produziu foi um vazio institucional, apenas suprimido com a promulgação da Lei nº 8.630/1993, a “Lei dos Portos”. Seu objetivo era descentralizar e quebrar os monopólios existentes, promovendo uma gestão co-participativa, além da competitividade entre os portos. A esfera estatal se manteve responsável pela fiscalização, gestão ambiental e até a promoção comercial dos portos (PORTO, 1999). A inciativa privada passa a atuar no setor através do arrendamento dos terminais portuários. Os operadores privados tornam-se, assim, responsáveis pelo manuseio de cargas e por realizar investimentos na modernização dos equipamentos e instalações portuárias. Ademais, estes também estão autorizados a movimentar cargas de terceiros o que viabilizou, por exemplo, a ação da Vale como um dos maiores operadores logísticos do país (MONIÉ, 2011). A terceira etapa se dá com a Lei nº 9.277/1996 que descentraliza a administração e exploração de portos federais aos estados e municípios. Em 2001, o Governo Federal anuncia a criação da ANTAQ3 com o objetivo de fiscalizar e regular a exploração das atividades portuárias no país (MONIÉ e VIDAL, 2006). Em 2008 é anunciada, pelo decreto Lei nº 6.620/2008, a criação da Secretaria Especial de Portos da Presidência da República, com status de ministério, sendo responsável pela concepção de estratégias para o setor, porém com pouco ou nenhum efeito positivo prático sobre a eficiência na gestão e na modernização portuária do país. 3

Agência Nacional de Transportes Aquaviários

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A última etapa se dá com a Lei nº 12.815/2013, conhecida como a “Nova Lei dos Portos”, e que revoga o marco regulatório anterior. O objetivo da Nova Lei de Portos é garantir uma maior segurança jurídica à participação privada no setor. Suas principais disposições estão relacionadas com: (1) a determinação que o contrato de concessão seja estendido à administração portuária; (2) a extinção das denominações de carga própria e de terceiros; (3) o estabelecimento de que se tornam objeto de concessão os terminais portuários instalados dentro da área do porto organizado; (4) o estudo sobre a viabilidade locacional do empreendimento portuário; (5) o poder regulatório do setor que passa ao controle da Secretaria Espacial de Portos e, em menor medida, à ANTAQ; (6) a redefinição dos Conselhos Administrativos Portuários que perdem autonomia tornando-se, assim, meros órgãos consultivos (BRITTO et. al. 2015). Entretanto, o novo marco regulatório mais do que garantir a participação da iniciativa privada no setor restabelece parte do poder centralizador da gestão portuária ao governo federal. Outra disposição importante que diz respeito à questão da análise da viabilidade locacional do empreendimento portuário, longe de representar uma boa intencionalidade em relação à racionalização dos investimentos pode representar, sem embargo, um retrocesso ao desestimular a competitividade e, consequentemente, tanto a redução das tarifas, quanto a qualidade dos serviços prestados (BRITTO et. al. 2015). O desafio da modernização e da eficiência pode, neste sentido, permanecer nos próximos anos.

Evolução recente do sistema portuário nacional A série de reformas implementadas pelo Estado brasileiro durante a década de 1990 produziu um efeito positivo sobre o volume de cargas movimentado pelo sistema portuário nacional, apesar dos gargalos ainda existentes. O maior dinamismo se dá nos portos especializados na movimentação de granéis sólidos e líquidos, ou seja, na movimentação de commodities minerais, metálicas, agrícolas e energéticas. O Brasil é o 2º maior exportador de minério de ferro4, respondendo por 27% do total mundial no ano de 2013. O país também figura entre os cinco principais exportadores de grãos, atrás dos EUA, Austrália, Argentina e Canadá (UNCTAD, 2014). A movimentação de commodities minerais foi emulada em grande medida pela demanda chinesa por minério de ferro, sobretudo, entre os anos de 2000 e 2008. O que explica o maior dinamismo dos portos de: Itaqui no Maranhão, responsável pelo escoamento da produção mineral do Sudeste do Pará pela mineradora Vale; Itaguaí no Rio de Janeiro, responsável pelo escoamento da produção de minério de ferro e de aço da Vale, CSN, TKCSA e MMX; Tubarão no Espírito Santo, responsável pelo escoamento da produção mineral da Vale no estado de Minas Gerais (gráfico 1). 4

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A Austrália é maior exportadora deste minério com 49% do total mundial em 2013 (UNCTAD, 2014).

Raphael Villela

Ademais, são também responsáveis pela movimentação de minérios os portos de Ponta Ubu e Praia Mole, ambos no estado do Espírito Santo, e de Vila do Conde no estado do Pará. Os portos de São Sebastião (SP) e de Aratu (BA) são especializados na movimentação de granéis líquidos (petróleo e derivados) pela Petrobrás. Em relação à movimentação das commodities alimentares merecem destaque os portos de Rio Grande e de Paranaguá, situados respectivamente nos estados do Rio Grande do Sul e do Paraná e responsáveis pela escoamento da produção de grãos, sobretudo a soja, nas regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil. Os portos da região norte devem experimentar um crescimento mais acelerado ao longo das próximas décadas, em razão, da expansão da fronteira agrícola em direção a Amazônia. Ademais, se resolvidos alguns dos principais gargalos no setor de transportes, como no caso da BR-163, os portos região Norte podem facilmente abocanhar vastas áreas do Centro-Oeste à sua hinterlândia (ADÃO, 2005). O porto de Santos (SP), por sua vez, caracteriza-se pela diversidade de cargas movimentadas, desde os granéis sólidos (soja) e líquidos (petróleo e derivados), como automóveis e autopeças, além de produtos industrializados transportados em contêineres e que possuem maior valor agregado (MONIÉ, 2009).

Gráfico 1: Movimentação de cargas nos principais portos do Brasil em Toneladas

Elaboração Própria Fonte: ANTAQ

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O setor de commodities está relacionado aos grandes grupos nacionais e transnacionais, sendo caracterizado pelo baixo valor agregado e pela pouca vinculação com o território local que é percebido como um atrito à perfeita circulação destes produtos até os mercados internacionais. Assim, apesar da contribuição que o setor de commodities traz para o fortalecimento dos indicadores macroeconômicos sua capacidade de indução do desenvolvimento é reduzida. A movimentação de contêineres é um motor mais fiel do grau de inserção e desenvolvimento dos territórios na economia mundial globalizada, pois é através destes que circulam bens industrializados (RODRIGUE, 2013). O Brasil ocupa uma posição periférica nos fluxos internacionais de mercadorias em contêineres, apesar do acelerado crescimento nas últimas décadas (gráfico 2), o país é apenas o 9º maior movimentador de contêineres entre as economias emergentes (UNCTAD, 2014).

Gráfico 2: Movimentação de contêineres em TEUs pelo Sistema Portuário Brasileiro

Elaboração Própria Fonte: UNCTAD

A hierarquia portuária aqui estabelecida reproduz a distribuição do parque industrial e dos principais mercados consumidores do país, consequentemente os portos das regiões Sudeste e Sul são os mais dinâmicos. Apesar da realocação da produção industrial em setores intensivos em mão-de-obra para o Nordeste e da pujança do setor agroalimentar no Centro-Oeste, o mapa industrial brasileiro não apresenta nenhuma grande alteração. Os portos do Sul e Sudeste são responsáveis por mais de 80% do tráfego de contêineres (ANTAQ), representando, portanto, a mais importante hinterlândia portuária do país, quando consideramos as mercadorias industrializadas (gráfico 3).

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Raphael Villela

Gráfico 3: Movimentação de contêineres em TEUs nos 10 principais portos Brasileiros

Elaboração Própria Fonte: ANTAQ

O porto de Santos consolida-se como o mais importante do país, tendo como hinterlândia imediata o parque industrial e o mercado consumidor de São Paulo, sendo também o que apresenta o perfil mais diversificado de movimentação de cargas. Na região Sul merece destaque o porto de Itajaí (SC), cujo dinamismo está associado às exportações do complexo de carnes (suína, frango e bovinos) e ao pujante setor industrial localizado no Vale do Itajaí. Entretanto, há de se ressaltar que o provável significado do dinamismo em Itajaí resulta, sobretudo, da municipalização da gestão portuária que passou ao controle da Prefeitura Municipal no decorrer da 2ª metade da década de 1990. Neste sentido, o porto passa a ser apreendido como um vetor para o desenvolvimento local e regional, expressando uma cultura de administração portuária inédita no Brasil (MONIÉ, 2011).

Considerações finais O breve panorama da evolução do sistema portuário evidencia, portanto, que o país se insere de maneira periférica globalização. Os portos e os terminais portuários mais dinâmicos estão relacionados com a exportação de commodities agrícolas, minerais e metálicas com reduzido valor agregado, cuja contribuição para o desenvolvimento do país é muito tímida. O cenário

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atual parece indicar ainda que a demanda internacional pelas principais commodities exportadas pelo Brasil permanecerá estável nos próximos anos. O que se constitui num desafio tanto para os atores produtivos envolvidos na exploração, produção e comercialização destes produtos, quanto para o governo. Apesar do aumento do nível de competitividade, a modernização do sistema portuário brasileiro se deu de maneira superficial e incompleta. Os resultados parecem demonstrar uma dificuldade por parte das autoridades em contextualizar as transformações em curso no espaço econômico mundial e o papel que o Brasil desempenha na globalização. Mais recentemente, o retorno do viés desenvolvimentista e da falsa percepção por parte das autoridades políticas em relação ao impacto estruturador dos grandes projetos de infraestrutura podem, sem dúvida, dificultar a racionalização tanto dos investimentos, quanto da regulação das atividades produtivas no país. As políticas voltadas para o setor portuário são concebidas ainda hoje de forma setorial, funcional e excludente. Os portos são apreendidos, ainda hoje, como um simples elo terminal dentro de uma infraestrutura de transportes e não como parte integrante de um complexo sistema logístico. Para garantir uma inserção competitiva na globalização é preciso avançar na agenda de reformas, pois o novo paradigma produtivo impõem que tanto a circulação quanto a produção devem ser considerados de forma indissociável.

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Negociado versus Legislado Déborah de Paula Iennaco de Rezende1 Resumo Este texto destaca a existência, do conflito existente entre o negociado e o legislado no direito do trabalho. O negociado representa um grande avanço no tratamento ao trabalhador, e no contrato de trabalho. Contudo, é notório que não se pode tratar o direito do trabalho com regras como do direito Civil, sendo necessária a tutela do empregado. Isto porque, não há concorrência nos nossos moldes sindicais, bem como algumas normas não admitem a flexibilização. Palavras-chave: Direito do trabalho; flexibilização; negociação; limitações; negociado; legislado. Abstract This text highlights the existence of conflict between the negotiated and legislated in labor law. The negotiated represents a breakthrough in treating the worker and the labor contract. However, it is clear that one can not deal with labor law as rules of civil law, the guardianship of the employee being required. This is because there is no competition in our union molds, as well as some provisions do not allow the flexibility. Keywords: Labour law; easing; negotiation; limitations; negotiated; legislated.

Contextualização histórica Antes de adentrar ao problema, importante é tecer breves comentários acerca do surgimento da discussão da sobre a flexibilização no direito do trabalho. E o faz muito bem Alice Monteiro de Barros2 (2009): O Direito do Trabalho surgiu em momento histórico de crise, como resposta política aos problemas sociais acarretados pelos dogmas do capitalismo liberal. Seu marco, no contexto mundial, é o século XIX. A disciplina em estudo surgiu quando se tentou solucionar a crise social posterior à Revolução Industrial. O desgaste prematuro do material humano nos acidentes mecânicos do trabalho, os baixos salários e as excessivas jornadas foram, então, inevitáveis. O direito Civil já não se encontrava apto à solução desses problemas, os quais exigiam uma legislação mais de acordo com o momento histórico1

Advogada, mestranda no programa de mestrado em Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e efetivação dos Direitos Humanos no contexto Social e Político contemporâneo”. Pós-graduada em Direito Trabalhista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC PUC-MG. Graduada no curso de Direito pelo Instituto Vianna Júnior. 2 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTR, 2009. p. 86.

Negociado versus Legislado

social. Isso porque a celebração e o cumprimento do contrato de trabalho disciplinados pela liberdade assegurada às partes no direito clássico, intensificavam a flagrante desigualdade dos interlocutores sociais. Diante das agitações dos trabalhadores e das lutas sociais no continente europeu, o Estado resolveu intervir na regulamentação do trabalho, inspirando-se em normas que lhe atribuem critérios próprios, não encontrados em outro ramo do Direito. Essas normas são os princípios peculiares do Direito do Trabalho, entre os quais está o da proteção, centralizado numa garantia de condições mínimas de trabalho, sustentadas por um outro princípio, o da irrenunciabilidade. Por longo tempo, a orientação da legislação no Brasil e não América Latina, em geral, também caracterizou-se pelo garantismo dispensando pelo Estado, com restrições das relações coletivas, e as modificações havidas foram no sentido de aprofundar essa tendência, em virtude de razões políticas, econômicas e ideológicas. Associadas a esses fatores, a doutrina social cristã e socialista e as convenções internacionais da OIT também influenciaram essa legislação garantista, asseguradora de condições mínimas de trabalho. Com isso se vê, a concepção política, em geral reflete-se no ordenamento jurídico dos povos e nele se insere, evidentemente, o Direito do Trabalho. Acontece que as relações individuais de trabalho vêm de sofrendo várias modificações nos últimos anos, em face da conjugação de fatores como a crise econômica no início de 1970, desencadeada pelo alto preço do petróleo; a inovação tecnológica; as modificações radicais na organização da produção; a necessária competitividade com os países orientais e a necessidade de combater o desemprego, entre outros. Essas mudanças desencadearam a discussão sobre a flexibilização do emprego, cujos significados variam conforme o sistema legal que se adote e o grau de desenvolvimento dos países. Muitos sustentavam que a predominância de norma imperativas nos institutos jurídicos era o fato gerador da crise das empresas, uma vez que lhe retirava as possibilidades de adaptarem-se a um mercado turbulento. Afirmavam que a rigidez daí advinda impedia a competitividade das economias europeias e o aproveitamento das oportunidades de inovação tecnológica. Outros, ao contrário, atribuíam a culpa pela crise econômica à estrutura orgânica e aos métodos de gestão, típicos da concepção fordista da produção, e viam a rigidez das instituições mais como um resultado da crise do que como sua origem. Por outro lado, o Estado do Bem-Estar Social que vigorou durante grande parte do século XX e que tinha uma concepção mais solidária de proteção ao ser humano como ao empregado começou a entrar em crise nos anos 60. Como consequência desse fenômeno, temos no Brasil, a estabilidade no emprego, que começa a ser substituída pelo FGTS. Não é menos certo, entretanto, que o Estado do Bem-Estar Social propiciou a acumulação de riquezas em detrimento das reivindicações sociais. A década de 1990 reflete uma política neoliberal, com o abandono do conceito de Estado do Bem-Estar Social. Enquanto se privilegiam os grandes grupos econômicos, as pequenas e médias empresas quebram em decorrência do dano causado pelas políticas econômicas.

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A flexibilização teve dois momentos históricos: o primeiro coincide com o chamado “direito do trabalho de emergência”e corresponde a um processo temporário; o segundo coincide com a “instalação da crise”e corresponde a reivindicação patronais permanentes. Dois tipos de flexibilização podem ser destacados. A flexibilização interna atinente à ordenação do trabalho na empresa, compreende a mobilidade funcional e geográfica, a modificação substancial das condições de trabalho, do tempo de trabalho, da suspensão do contrato e da remuneração. Enquadra-se nessa forma de flexibilização o trabalho em regime de tempo parcial (art. 58 – A da CLT), e a suspensão do contrato a que se refere o art. 476-A do mesmo diploma legal. Paralelamente, temos a flexibilização externa, que diz respeito ao ingresso do trabalhador na empresa, às modalidades de contratação, de duração do contrato, de dissolução do contrato, como também à descentralização com recurso a formas de gestão de mão-de-obra, subcontratos, empresa de trabalho temporário, etc. Encaixa-se nessa segunda forma a inserção do trabalhador no regime do FGTS, retirando-lhe qualquer possibilidade de adquirir estabilidade no emprego. Esse regime foi introduzido no País no primeiro momento histórico da flexibilização, ou seja, como imposição do chamado direito do trabalhador da emergência. O fenômeno da flexibilização (e aqui está o tema deste trabalho) é encarado também sob o enfoque da “desregulamentação normativa, imposta pelo Estado, a qual consiste em derrogar vantagens de cunho trabalhista, substituindo-as por benefícios inferiores. A “desregulamentação normativa”imposta unilateralmente pelo Estado (flexibilização heterônoma) é considerada por alguns doutrinadores como “selvagem”. Em contrapartida a ela, sugere-se uma “regulamentação laboral de novo tipo”, a qual pressupõe a substituição das garantias legais pelas garantias convencionais (flexibilização autônoma), com a primazia da negociação coletiva. Situa-se aqui a hipótese de redução salarial prevista na Constituição de 1988 (art. 7º, VI), mediante convenção ou acordo coletivo, como também de majoração da jornada de seis horas para turnos ininterruptos de revezamento, sempre mediante negociação coletiva (art. 7º, XIV). A flexibilização traduz aqui uma forma de adaptação das normas trabalhistas às grandes modificações verificadas no mercado de trabalho. Até nessa hipótese de flexibilização, os limites mínimos previstos nos diplomas constitucionais e internacionais devem ser respeitados, mesmo porque os direitos trabalhistas integram o rol dos direitos fundamentais nas Constituições de 1988.

Apresentação do problema: Negociado versus Legislado Para apresentar o problema, importante destacar uma passagem do livro de Fábio Rodrigues Gomes3 (2010): 3

GOMES, Fábio Rodrigues. Direitos Fundamentais dos Trabalhadores: critérios de identificação e aplicação prática. São Paulo: LTR, 2013. P.39.

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Intervenção estatal desmedida versus liberdade sem meias-medidas; paternalismo inconsequente versus pragmatismo econômico; excesso de autonomia pública versus carência de autonomia privada. Estas são algumas das ideias lançadas no debate entre os que defendem o direito do trabalho e os que almejam a sua redução, flexibilização ou, quiçá, a sua supressão. De um lado, estão os que ressaltam a falácia da igualdade formal, geradora da exploração impiedosa dos trabalhadores, desde os ido da Revolução Industrial. Na outra ponta, estão os que registram a ineficiência da atuação estatal, que, ao inflacionar os direitos “protetores”acaba por criar uma legião de desprotegidos, isto é, de excluídos do mercado formal de trabalho, em virtude do excessivos custo que ele proporciona.

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Hoje os debates acerca da tão falada flexibilização dos direito trabalhistas estão na moda. Essa é a bandeira que surge no âmbito dos empregados e também no âmbito patronal, na qual se busca a prevalência do negociado sobre o legislado. Com isso, o princípio da imperatividade, próprio do Direito do Trabalho, cederia seu posto ao da disposição que governa o Direito Civil. Embora a presença do sindicato relativizasse essa mudança é possível e até provável que ela abrisse as portas para a construção paulatina de um verdadeiro Direito Civil do Trabalho. Para os que defendem a prevalência do negociado sobre o legislado o argumento gira em torno de que as relações de trabalho no Brasil estão sujeitas a uma legislação extensa e detalhada, nem sempre adequada à realidade dos trabalhadores e das empresas. Além da ênfase à idade da CLT, e, ainda a desnecessária infantilização e extrema proteção aos trabalhadores que muitas vezes preferem negociar as regras do seu contrato de trabalho. Nesse contexto, a presença do sindicato não impede a disparidade de forças, por mais que, muitas vezes esconda, uma negociação da lei se torna ainda mais perigosa do que uma alteração legislativa, pois tende a ser mais efetiva e legitimada. Hoje, alguns sindicatos têm grande poder de barganha e melhores condições de evitar negociações prejudiciais. Mas, a maioria não se esforça em prol dos empregados, afinal, nos nossos moldes sindicais não há concorrência. O Brasil não ratificou a Convenção 87 da OIT (Anexo I), havendo a unicidade sindical. E isso, além da imposição da organização por categoria, impede a concorrência que pode ser uma grande propulsora no trabalho comprometido com os empregados associados ao sindicato. Na esfera trabalhista, devemos sempre lembrar que o discurso tem grande facilidade de destoar da prática. Enquanto se lembra que o empregado não é criança e se critica o princípio da proteção, o que realmente ocorre são contratos menos contratos, dada a desigualdade crescente de forças entre os atores. Com isso, o negociado prevalecendo ao legislado é perigoso não apenas pelas possibilidades jurídicas que abre, nem pelas eventuais práticas fora da lei, mas pelo simbolismo que traz. Ela significa a aceitação por parte do movimento sindical do discurso da facilidade da transformação progressiva de normas de

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ordem pública em normas dispositivas, civilizando no mau sentido o Direito do Trabalho. Em leitura ao livro “O que o dinheiro não compra”, em várias passagens pude extrair uma ligação com o tema, Michael Sandel4 (2012): O que devemos fazer quando a promessa de crescimento econômico ou de eficiência econômica significa estabelecer um preço para bens que consideramos sem preço? Às vezes, enfrentamos o dilema de nos movimentar em mercados moralmente questionáveis na expectativa de alcançar fins meritórios.

Isto porque muitas vezes os sindicatos/trabalhadores, na ânsia de transformar seu esforço/trabalho em lucro, querem negociar aquilo que nem sempre é negociável, ou “não tem preço”, expressão muito usada no livro citado. Ocorre que, como extraído do livro já mencionado Michael Sandel (2012)5: “Em terrenos carregados de peso moral, certas maneiras de valorar os bens podem ser mais importantes e adequadas do que outras.” Assim, há que se pensar no peso moral que há na relação trabalhista, e toda àquela em que se deve respeitar a dignidade da pessoa humana. Com isso, pode-se afirmar que se correr ao bel prazer das escolhas e valores que cada um dará ao seu próprio direito, por fim não haverá qualquer segurança jurídica.

Conclusão: critérios para solução do conflito/tensão entre negociado e legislado O trecho abaixo foi extraído do livro “Direitos Fundamentais dos Trabalhadores”, onde Fábio Rodrigues Gomes6 (2010) apresenta a busca de resolver a tensão entre negociado e legislado: Dito de maneira bem resumida, defende-se a prevalência do negociado sobre o legislado, da autonomia privada sobre a autonomia pública relegandose aos autores sociais o direito de combinarem entre si as suas regras de convivência. Mas poderiam eles transigir até que ponto? Até onde poderiam ser suprimidas (ou tomadas dispositivas) as normas constitucionais relativas aos direitos dos trabalhadores? Enfim, haveria um limite a partir do que a Constituição deve intervir?

Creio que sim. E a fronteira seria demarcada pelos direitos dos trabalhadores, cujo alto grau de importância não pode ser suprimido pela manifestação dos sujeitos privados e/ou das maiorias eventuais. 4

SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: Os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2012, 237 p 80. 5 Ibid. 6 GOMES, Op.Cit., p 31.

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O problema estava na enorme fragilidade da CLT. Na sua vulnerabilidade absoluta em face das maiorias eventuais, que vez por outra, estariam atentando contra direitos que não eram simples privilégios patrimoniais, mas, sim, verdadeiras reservas morais garantidoras da humanidade do trabalhador. Um antídoto a sua coisificação. Venho agora sugerir uma resposta alternativa ao porque da resistência apresentada pelos arts. 7º ao 11 da CF/88: a sua classificação como direitos fundamentais. Deste modo, friso mais uma vez que a minha expectativa é a de contribuir para a racionalização dos direitos fundamentais dos trabalhadores como um todo, a fim de tornar mais controláveis as decisões que a eles visem proteger e promover, cerrando fileiras contra a autonomia publica e/ou privada, ou que a eles venham a se contrapor em beneficio destas mesmas autonomias.

Assim, conclui-se que o negociado pode prevalecer sobre o legislado, afinal, o negociado é direito fundamental, mas, é preciso que este sofra limitações, como a compensação, não há que se falar em norma negociada, sem que haja um benefício ao empregado que compense a sua diminuição ou até mesmo supressão. No que tange a normas que envolvam saúde, higiene e segurança do trabalho, não pode haver a prevalência do negociado sobre o legislado. Esses critérios de solução para a tensão entre o negociado e legislado já são praticadas como podemos observar nos julgados encontrados: RECURSO DE REVISTA. HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO POR MEIO DE NORMA COLETIVA. INVALIDADE. Esta Corte Superior considera inválida cláusula normativa que suprime integralmente o direito do empregado a  “HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO. ACORDO COLETIVO. VALIDADE. O entendimento desta Corte, fundado no art. 7º, inc. XXVI, da Constituição da República, firmou-se no sentido de prestigiar a negociação coletiva. Entretanto, para as situações a partir da vigência da Lei 10.243, de 19 de junho de 2001 (art. 58 da CLT), a jurisprudência vem repudiando a supressão integral do pagamento das horas  in itinere, por meio de negociação coletiva. Trata-se de direito assegurado por norma de ordem pública, razão por que não é dado às partes negociarem para suprimi-lo. (...)” (RR - 185-10.2010.5.04.0662 , Relator Ministro: João Batista Brito Pereira, Data de Julgamento: 26/06/2013, 5ª Turma, Data de Publicação: 01/07/2013) “HORAS  IN ITINERE. SUPRESSÃO. NORMA COLETIVA. INVALIDADE. 1. O princípio do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, consagrado no artigo 7º, XXVI, da Constituição da República, apenas guarda pertinência com aquelas hipóteses em que o conteúdo das normas pactuadas não se revela contrário a preceitos legais de caráter cogente. 2. O pagamento das horas in itinere está assegurado pelo artigo 58, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, norma que se reveste do caráter de ordem pública. Sua supressão, mediante norma coletiva, afronta diretamente a referida disposição de lei, além de atentar contra os preceitos constitucionais assecuratórios de condições mínimas de proteção ao trabalho. Resulta evidente,

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daí, que tal avença não encontra respaldo no artigo 7º, XXVI, da Constituição da República. 3. Precedentes. 4. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (...)” (AIRR - 497-58.2011.5.24.0091 , Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, Data de Julgamento: 26/06/2013, 1ª Turma, Data de Publicação: 05/07/2013) “RECURSO DE REVISTA. HORAS  IN ITINERE. SUPRESSÃO. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. IMPOSSIBILIDADE. De acordo com entendimento reiterado desta Corte, a partir da publicação da Lei 10.243/2001, a qual acresceu o § 2º ao art. 58 da CLT, não é possível suprimir, por meio de norma coletiva, a concessão de pagamento das horas in itinere, pois se trata de garantia mínima assegurada ao trabalhador. O legislador constituinte (art. 7º, XXVI), ao prever o reconhecimento das negociações coletivas, não chancelou a possibilidade de subtrair direito indisponível dos trabalhadores por meio dessa modalidade de pactuação. Indene, portanto, a sua literalidade. Desse modo, estando a condenação em horas in itinere em período posterior à vigência da Lei 10.243, de 27/6/2001, incabível a supressão de quantum devido a esse título mediante pactuação coletiva. Incidência da Súmula 333 do TST e do § 4º do art. 896 da CLT. Há precedentes da SBDI-1 do TST. Recurso de revista não conhecido.” (RR - 144200-11.2009.5.03.0056 , Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 26/06/2013, 6ª Turma, Data de Publicação: 28/06/2013) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERVALO INTRAJORNADA - REDUÇÃO POR NORMA COLETIVA - SÚMULA Nº 437, II, DO TST.  Inadmissível recurso de revista contra acórdão regional proferido em conformidade com a Súmula n° 437, II, desta Corte,  verbis: - É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva-. Agravo de instrumento desprovido. Processo: AIRR - 350-37.2012.5.03.0073 Data de Julgamento: 16/10/2013, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/10/2013. (meu grifo) ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. PROPORCIONALIDADE. ACORDO COLETIVO. RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA CONHECIDO E PROVIDO. ARTIGO 7º, INCISO XXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MÁ-APLICAÇÃO.  Este Tribunal Superior, modificando entendimento acerca da possibilidade de flexibilização do percentual relativo ao adicional de periculosidade pactuado em acordo ou convenção coletiva, cancelou o item II da Súmula nº 364, através da Resolução nº 174/2011. Portanto, nesta Corte, prevalece o entendimento de que os direitos relativos à saúde e segurança do trabalho, dentre dos quais se insere o adicional de periculosidade, advém de normas públicas imperativas e cogentes, cuja observância não pode ser objeto de negociação coletiva. Dessa forma, conforme previsão do artigo 193, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho, o

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trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado o pagamento de adicional de trinta por cento sobre o salário, tratando-se de direito indisponível do trabalhador, não podendo ser pago tal como avençado pelas partes, ou seja, proporcionalmente ao tempo de exposição ao risco. Nesse sentido, precedentes desta SBDI1, pelo que ressalvo o meu ponto de vista. Recurso de embargos conhecido e provido.”  (RR - 801100-36.2002.5.16.0900, Relator:  Ministro Renato de Lacerda Paiva, Data do Julgamento: 15/03/2012, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 23/03/2012).

Referências bibliográficas BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho, 5. ed., rev. e ampl., São Paulo: LTR, 2009. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: LTr, 2004. GOMES, Fábio Rodrigues. Direitos Fundamentais dos Trabalhadores: critérios de identificação e aplicação prática. São Paulo: LTR, 2013. SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: Os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. www.tst.jus.br (acessado em 30 de outubro de 2013).

Anexo I Convenção Relativa à Liberdade Sindical e à Proteção do Direito de Sindicalização Convenção nº 87/OIT A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho: Convocada em São Francisco pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho, e reunida naquela cidade em 17 de junho de 1948 em sua trigésima primeira reunião; Depois de haver decidido adotar, sob a forma de convenção, diversas propostas relativas à liberdade sindical e à proteção ao direito de sindicalização, questão que constitui o sétimo ponto da ordem do dia da reunião; Considerando que o preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho enuncia, entre os meios suscetíveis de melhorar as condições de trabalho e de garantir a paz “a afirmação do princípio da liberdade de associação sindical”;  Considerando que a Declaração de Filadélfia proclamou novamente que “a liberdade de expressão e de associação é essencial para o progresso constante”; Considerando que a Conferência Internacional do Trabalho, em sua trigésima reunião adotou por unanimidade os princípios que devem servir de base à regulamentação internacional, e Considerando que a Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu segundo período de sessões, atribuiu a si mesma estes princípios e solicitou da Organização

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Internacional do Trabalho a continuação de todos seus esforços com o fim de possibilitar a adoção de uma ou várias convenções internacionais, adota, com data de 9 de julho de mil novecentos e quarenta e oito, a seguinte Convenção, que poderá ser citada como a Convenção sobre a liberdade sindical e a proteção ao direito de sindicalização, 1948:   PARTE I LIBERDADE SINDICAL Artigo 1 Todo Membro da Organização Internacional do Trabalho para quem esteja em vigor a presente Convenção se obriga a pôr em prática as seguintes disposições: Artigo 2 Os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem autorização prévia, têm o direito de constituir as organizações que estimem convenientes, assim como o de filiar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas. Artigo 3 1. As organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de redigir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente seus representante, o de organizar sua administração e suas atividades e o de formular seu programa de ação.  2. As autoridades públicas deverão abster-se de toda intervenção que tenha por objetivo limitar este direito ou entorpecer seu exercício legal. Artigo 4 As organizações de trabalhadores e de empregadores não estão sujeitas a dissolução ou suspensão por via administrativa. Artigo 5 As organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de constituir federações e confederações, assim como de filiar-se às mesmas e toda organização, federação ou confederação tem o direito de filiar-se a organizações internacionais de trabalhadores e de empregadores. Artigo 6 As disposições dos artigos 2, 3 e 4 desta Convenção aplicam-se às federações e confederações de organizações de trabalhadores e de empregadores.  Artigo 7 A aquisição da personalidade jurídica pelas organizações de trabalhadores e de empregadores, suas federações e confederações, não pode estar sujeita a condições cuja natureza limite a aplicação das disposições dos artigos 2, 3 e 4 desta Convenção. Artigo 8 1. Ao exercer os direitos que lhes são reconhecidos na presente Convenção, os trabalhadores, os empregadores e suas organizações respectivas estão obrigados, assim como as demais pessoas ou coletividades organizadas, a respeitar a legalidade. 

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2. A legislação nacional não menoscabará nem será aplicada de forma que menoscabe as garantias previstas nesta Convenção.  Artigo 9 1. A legislação nacional deverá determinar até que ponto aplicar-se-ão às forças armadas e à polícia as garantias previstas pela presente Convenção.  2. Conforme os princípios estabelecidos no parágrafo 8 do artigo 19 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, a ratificação desta Convenção por um membro não deverá considerar-se que menoscaba em modo algum as leis, sentenças, costumes ou acordos já existentes que concedam aos membros das forças armadas e da polícia, garantias prescritas na presente Convenção.  Artigo 10 Na presente Convenção, o termo organização significa toda organização de trabalhadores e de empregadores que tenha por objeto fomentar e defender os interesses dos trabalhadores e dos empregadores.  PARTE II PROTEÇÃO DO DIREITO DE SINDICALIZAÇÃO Artigo 11 Todo Membro da Organização Internacional do Trabalho para o qual esta Convenção esteja em vigor, obriga-se a adotar todas as medidas necessárias e apropriadas para garantir aos trabalhadores e aos empregadores o livre exercício do direito de sindicalização. 

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PARTE III DISPOSIÇÕES DIVERSAS Artigo 12 1. Respeito dos territórios mencionados no artigo 35 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, emendada pelo Instrumento de Emenda à Constituição à Constituição da Organização Internacional do Trabalho, 1946, exceção feita dos territórios a que se referem os parágrafos 4 e 5 do citado artigo, de acordo com a emenda, todo membro da Organização que ratifique a presente Convenção deverá comunicar ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho, no prazo mais breve possível, após sua ratificação, uma declaração na qual manifeste:  a) os territórios a respeito dos quais se obriga a que as disposições da Convenção sejam aplicadas sem modificações; b) os territórios a respeito dos quais se obriga a que as disposições da Convenção sejam aplicadas com modificações, junto com os detalhes dessas modificações;  c) os territórios a respeito dos quais é inaplicável a Convenção e os motivos pelos quais é inaplicável;  d) os territórios a respeito dos quais reserva sua decisão. 

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2. As obrigações a que se referem os apartados a) e b) do parágrafo 1 deste artigo considerar-se-ão parte integrante da ratificação e produzirão os mesmos efeitos.  3. Todo Membro poderá renunciar, total ou parcialmente, por meio de uma nova declaração, a qualquer reserva formulada em sua primeira declaração em virtude dos apartados b), c) ou d) do parágrafo 1 deste artigo. 4. Durante os períodos em que esta Convenção possa ser denunciada, de acordo com as disposições do artigo 16, todo Membro poderá comunicar ao Diretor Geral uma declaração pela qual modifique, em qualquer outro aspecto, os termos de qualquer declaração anterior e na qual indique a situação dos territórios determinados.  Artigo 13 1. Quando as questões tratadas na presente Convenção sejam da competência das autoridades de um território não metropolitano, o membro responsável das relações internacionais deste território, de acordo com o governo do território, poderá comunicar ao Diretor Geral da Repartição Internacional do Trabalho uma declaração pela qual aceite, em nome do território, as obrigações da presente Convenção  2. Poderão comunicar ao Diretor Geral da Repartição Internacional do Trabalho uma declaração pelas qual aceitem as obrigações desta Convenção: a) dois ou mais Membros da Organização, a respeito de qualquer território que esteja sob sua autoridade comum; ou  b) toda autoridade internacional responsável pela administração de qualquer território em virtude das disposições da Carta das Nações Unidas ou de qualquer outra disposição em vigor, referente a dito território.  3. As declarações comunicadas ao Diretor Geral da Repartição Internacional do Trabalho, de conformidade com os parágrafos precedentes neste artigo deverão indicar se as disposições da Convenção serão aplicadas no território interessado com modificações ou sem elas; quando a declaração indique que as disposições da Convenção serão aplicadas com modificações, deverá especificar em que consistem as citadas modificações.  4. O Membro, os Membros ou a autoridade internacional interessados poderão renunciar, total ou parcialmente, por meio de uma declaração ulterior, ao direito de invocar uma modificação indicada em qualquer outra declaração anterior. 5. Durante os períodos em que esta Convenção possa ser denunciada de conformidade com as disposições do artigo 16, o Membro, os Membros ou a autoridade internacional interessados poderão comunicar ao Diretor Geral uma declaração pela qual modifiquem, em qualquer outro aspecto, os termos de qualquer declaração anterior e na qual indiquem a situação no que se refere à aplicação da Convenção. 

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PARTE IV DISPOSIÇÕES FINAIS Artigo 14 As ratificações formais da presente Convenção serão comunicadas para seu registro ao Diretor Geral da Repartição Internacional do Trabalho. Artigo 15 1. Esta Convenção obrigará unicamente aqueles Membros da Organização Internacional do Trabalho cujas ratificações houver registrado o Diretor Geral da Repartição Internacional do Trabalho.  2. A presente convenção entrará em vigor doze meses após a data em que as ratificações de dois membros tiverem sido registradas pelo Diretor Geral. 3. A partir daquele momento, esta Convenção entrará em vigor, para cada Membro, doze meses após a data em que tiver sido registrada sua ratificação. Artigo 16 1. Todo Membro que tiver ratificado esta Convenção poderá denunciá-la à expiração de um período de dez anos, a partir da data em que tiver entrado inicialmente em vigor, mediante ata comunicada, para seu registro, ao Diretor da Repartição Internacional do Trabalho. A denúncia não terá efeito até um ano após a data em que tiver sido registrada. 2. Todo Membro que tiver ratificado esta Convenção e que no prazo de um ano depois da expiração do período de dez anos mencionado no parágrafo precedente, não fizer uso do direito de denúncia previsto neste artigo, ficará obrigado durante um novo período de dez anos, e no sucessivo poderá denunciar esta Convenção à expiração de cada período de dez anos, nas condições previstas neste artigo. Artigo 17 1. O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho notificará a todos os membros da Organização Internacional do Trabalho o registro de quantas ratificações, declarações e atas de denúncia lhe sejam comunicadas pelos Membros da Organização. 2. Ao notificar aos Membros da Organização o registro de segunda ratificação que lhe tiver sido comunicada, o Diretor Geral informará aos membros da Organização sobre a data em que esta Convenção entrará em vigor. Artigo 18 O Diretor Geral da Repartição Internacional do Trabalho comunicará ao Secretário Geral das Nações Unidas, para efeitos de registro e de conformidade com o artigo 102 da Carta das Nações Unidas, uma informação completa sobre todas as ratificações, declarações e atas de denúncia que houver registrado de acordo com os artigos precedentes. Artigo 19 Cada vez que o estime necessário, o Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho apresentará à Conferência Geral uma memória sobre a aplicação da Convenção e considerará a conveniência de incluir na ordem do dia da Conferência a questão de sua revisão total ou parcial. 

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Artigo 20 1. Em caso de que a Conferência adote uma nova Convenção que implique uma revisão total ou parcial da presente, e a menos que a nova Convenção contenha disposições em contrário: a) a ratificação por um Membro, da nova convenção revisora implicará ipso jure, a denuncia imediata desta Convenção, não obstante as disposições contidas no artigo 16, sempre que a nova Convenção revisora tiver entrado em vigor; b) a partir da data em que entre em vigor a nova convenção revisora, a presente Convenção cessará de estar aberta à ratificação pelos Membros. 2. Esta Convenção continuará em vigor em todo caso, em sua forma e conteúdo atuais, para os Membros que a tiverem ratificado e não ratifiquem a Convenção revisora. Artigo 21 As versões inglesa e francesa do texto desta Convenção são igualmente autênticas.

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Justiça Restaurativa e o Combate à Seletividade do Sistema Penal Bianca Freire Ferreira1 Resumo É sabido que desde os primórdios o Direito Penal é utilizado como meio de controle social. Porém, nos dias atuais em virtude do grande aumento da criminalidade, a sociedade vem clamando por uma resposta maior desse ramo do Direito para a solução dos tantos conflitos existentes no mundo moderno. A grande questão é que um país onde o sistema penal só funciona para punir o pobre, a justiça retributiva vem sido confundida com sede de vingança. O que ocorre, é que em uma sociedade onde estejam presentes as desigualdades, os favorecimentos e a dominação injusta, o direito penal exercerá sempre um controle injusto, onde apenas alguns serão punidos, muito embora “outros” cometam delitos de maior potencial ofensivo. Assim, o presente trabalho abordará como o uso do Direito Penal para o controle da sociedade pode em alguns casos, entrar em conflito com os preceitos estabelecidos em um Estado Democrático de Direito, além de violar garantias constitucionais. Palavras-chave: Penal; mínimo; controle; garantias; constituição. Abstract It is known that since the beginning Criminal Law is used as a means of social control. However, nowadays due to the large increase in crime, society has been crying for a greater response this branch of law for the solution of many conflicts in the modern world. The great thing is that a country where the criminal justice system works only to punish the poor, the retributive justice has been confused with revenge. What happens is that in a society where inequalities are present, the favoritism and unfair domination, criminal law will always have an unfair control, where only a few will be punished, even though “other” commit crimes potentially offensive. Thus, this paper will discuss how the use of criminal law to control the company may in some cases conflict with the principles established in a democratic state, in addition to violating constitutional guarantees. Keywords: Criminal; minimum; control; guarantees; constitution.

Introdução A fim de evitar que o Direito Penal viole direitos fundamentais estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito, faz-se necessário que sua intervenção se dê de forma limitada e regulamentada. Nesse sentido, a necessidade da sociedade em buscar uma satisfação para os problemas oriundos 1

Pós- graduada em direito penal e processo penal pela UNESA. Advogada.

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do aumento da criminalidade cresce a cada dia. Nesse caso, faz-se necessária a seguinte pergunta: Em que ponto o Direito Penal deixa de ser um meio de proteção ao cidadão e passa a ser uma ameaça aos princípios e garantias previstas em nossa Carta Magna de 1988?

O direito penal e a sua intervenção mínima O direito penal brasileiro é um ramo do direito público e, segundo Luis Regis Prado2 pode ser definido como: “a parte do ordenamento jurídico que enumera as ações ou omissões delitivas, aplicando-lhes certas penas ou medidas de segurança. Em seu conceito material refere-se às condutas consideradas reprováveis ou danosas à sociedade que atingem bens jurídicos indispensáveis à sua própria existência”. 

Segundo Nilo Batista3 a missão do Direito Penal “é proteger os bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena.” Nesse sentido, importa destacar que no direito penal, o titular do direito de punir é o Estado e, em nosso ordenamento jurídico tem como pena mais gravosa a privativa de liberdade, ou seja, aquela que restringe o direito de ir e vir do indivíduo. Assim, o direito penal se difere dos outros ramos do direito. Na esfera cível por exemplo, quando um ilícito é cometido, as partes podem convencionar livremente a forma com que a reparação dos danos se dará tendo em vista se tratar de direito disponível. Desta forma, merece destaque o fato de ser o direito penal a ultima ratio, ou seja, a sua intervenção deverá se dar apenas nas hipóteses em que os outros ramos do direito não puderem aplicar a sanção eficaz referente à determinada conduta. Alguns doutrinadores inclusive, afirmam que o direito penal deve ser usado de forma subsidiaria. Juristas renomados já abordaram em suas obras a intervenção do Direito Penal no controle das sociedade,Tobias Barreto4 diz que “o Estado não deve recorrer ao direito penal se pode garantir proteção com outros instrumentos jurídicos.” Claus Roxin5, também corrobora o caráter secundário deste ramo do direito: 2

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PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral –1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, volume 1.  3 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007 4 BARRETO, Tobias, Introdução ao Estudo do Direito Apud BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro. 5 ROXIN, Claus. Derecho Penal – parte general. apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Impetus: Rio de Janeiro, 2011, pg. 48.

Bianca Freire Ferreira

“A proteção de bens jurídicos não se realiza são mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.”

Ainda com relação a intervenção mínima do direito penal, importa mencionar que este instituto tem por objetivo limitar o poder incriminador do Estado, desta forma, se outro ramo do direito for suficiente para tutelar o bem jurídico em questão, a sua criminalização será descabida.

O controle social O controle social é exercido sobre o indivíduo desde o momento de seu nascimento.Tal controle nada mais é do que o conjunto de mecanismos que, através de sanções tem por objetivo submeter o indivíduo às normas comunitárias. Pode-se dizer que o controle social é dividido em duas espécies: o difuso, realizado pela família, meios de comunicação, moda, etc e o institucionalizado, que se dá por intermédio dos tribunais, das polícias e das escolas. O sistema penal faz parte do controle institucionalizado punitivo e tem por objetivo por em prática as normas de Direito Penal através da justiça retributiva. Destaca-se que para grande parte da população, a existência de uma pena é de extrema importância para o controle da vida em sociedade, uma vez que traz uma sensação de segurança. As sanções penais devem ter sua aplicabilidade limitada e regulamentada tendo em vista se tratar de uma forma de invasão do poder estatal na liberdade do indivíduo. Importa ressaltar que o controle social exercido pelo direito penal não tem como objetivo a reparação do dano, mas sim a preservação da norma violada. Muito embora existam outros meios para o controle social, o direito penal é considerado o principal, tendo em vista a sua função tipificadora de condutas delituosas consideradas perigosas ao bem estar da sociedade.

A seletividade do controle social exercido pelo sistema penal brasileiro O sistema penal brasileiro, se analisado sob a ótica da legislação e doutrina pátria, vive uma busca incessante pelo controle social eficaz e justo. Ocorre que na prática, o controle social exercido pelo direito penal se dá de forma seletiva e a persecução criminal varia de acordo com a classe social e raça do acusado.

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Com relação ao controle social exercido pelo Direito Penal, Zaffaroni6 afirma que existe uma espécie de seletividade neste controle: “Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma conduzir-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior perseguição por parte das autoridades como permanentes suspeitos incrementa a estigmatização social do criminalizado”

Ainda sobre o tema Zaffaroni7 diz que o delito é uma “uma construção destinada a cumprir certa função sobre algumas pessoas e o respeito de outras, e não uma realidade social individualizável.” Nesse sentido, Maria Lúcia Karan8 ensina que: “os escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiça e de violência, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, são preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso ou para quem é vítima dos grupos de extermínio. (…) Esta desigualdade, tão facilmente constatável, é, no entanto, encoberta por uma propaganda tão enganosa e eficaz, que, apesar disto, consegue ‘vender’ a ideia da solução penal como alguma coisa desejável, até mesmo para os setores mais conscientes e progressistas.”

Dessa forma, a ressocialização que é um dos objetivos da pena aplicada pelo sistema penal, vai perdendo espaço, uma vez que o isolamento e o preconceito para com o acusado que posteriormente é condenado vem sendo cada vez mais comum nos dias atuais. Importante lembrar que um controle social seletivo é totalmente prejudicial, uma vez que não se combate todas as condutas ilícitas praticadas, mas sim as que os órgãos punitivos “elegem” para perseguição. Assim, para que um indivíduo seja considerado criminoso, basta que possua características consideradas nocivas a sociedade, independente de ter cometido algum ato ilícito. Nesse sentindo, importa mencionar ainda a cifra oculta ou cifra negra, que se refere aos crimes oficialmente “desconhecidos”, ou seja, aqueles crimes que não foram perseguidos pelo sistema penal, o que corrobora a ideia de que 6

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 8 KARAN, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2. ed. Rio de Janeiro : Luam, 1993.

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o controle social exercido pelo direito penal brasileiro não é efetivo, tendo em vista que ao invés de combater a criminalidade de uma maneira geral, seleciona os casos que deverão ser observados pelos órgãos punitivos. Assim, muito embora seja o objetivo do Direito Penal proteger os bens jurídicos por meio da aplicação de sanções, muita das vezes acaba violando outros bens jurídicos ao aplicar as penas, tendo em vista o caráter seletivo do controle social realizado. Nem todos os que cometem delitos são submetidos à sanção. Desta forma, pode-se dizer que alguns indivíduos, em razão de sua classe social ou raça não são sujeitos do direito, mas sim objetos dele.

A criminalização da pobreza no Brasil A criminalização da pobreza é um fenômeno que existe no Brasil desde a época colonial. A partir de então, as pessoas de baixa renda, moradoras de áreas periféricas tais como favelas e morros passaram a ser taxadas de criminosos não pelas condutas praticadas, mas pelas condutas que poderiam vir a praticar. Acerca do tema, importa mencionar o que dizia D. Leopoldina9, esposa de D. Pedro I sobre as “classes perigosas” que residiam no Rio de Janeiro em 1824: “(...) O Rio é um lugar imundo, temos que tratar de sair daqui no verão (...). Os pobres se exterminam a si mesmos, contagiam-se uns aos outros nos cortiços. Os alforriados deixaram de ser pobres excluídos para ser os pobres perigosos”.

É possível observar que a criminalização da pobreza no Brasil é cultural e não um fenômeno que atinge tão somente a sociedade atual. O conceito de pobreza vem sempre misturado a ideia de periculosidade, o que ocasiona a distância e a discriminação entre pessoas de classes sociais distintas, bem como o isolamento dos moradores das muitas áreas periféricas existentes em nosso país. Cumpre destacar que a própria mídia influencia de forma negativa a forma com que o controle social é exercido pelo sistema penal, seja ao dar uma notícia relacionada a algum fato criminoso, seja ao colocar nas novelas atores negros moradores de favela como bandidos. Nesse caso, observa-se mais uma vez situações onde a atividade desenvolvida perde seu objetivo, tal qual ocorre no controle social. A mídia tem o papel de informar a sociedade os fatos como eles de fato são, e não formar opiniões acerca de um determinado assunto. Na realidade, 90% dos moradores de favelas são pessoas de bem, trabalhadores que tentam sobreviver dia após dia em meio à tanta discriminação e hostilidade. Em razão disso, muitos inclusive tem vergonha de dizer onde moram e inventam outro endereço na tentativa de se esquivar do preconceito. 9

KAISER, G. (1997). Dona Leopoldina: uma Habsburgo no trono brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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Quantos favelados morrem todos os dias em decorrência de confrontos entre bandidos e policiais sem que haja qualquer divulgação pela mídia? Fato esse que não ocorre quando morre um jovem de classe média vitima de bala perdida, tal notícia será capa de jornais e matéria dos principais programas de televisão. Ainda com relação à criminalização da pobreza, importa ressaltar a forma com que os criminosos são tratados pelas pela polícia brasileira, quando um crime é praticado por um indivíduo de classe média ou alta, o acusado é encaminhado à delegacia de forma pacífica e as garantias individuais lhe são asseguradas. Na hipótese do crime ser praticado por um indivíduo pobre, este será encaminhado à delegacia por meio de agressões físicas e verbais, sem qualquer observância às garantias antes mencionadas. A título de ilustração podemos citar o Rio de Janeiro que atualmente conta com as UPPs (unidades de polícia pacificadora) situadas em alguns pontos da cidade. Nas regiões onde as UPPs estão instaladas a média é de 40(quarenta) habitantes para cada policial militar. A baixada fluminense não possui UPP mas registra o dobro de homicídios em relação à capital, nessa região do estado do Rio de Janeiro que fica afastada dos bairros valorizados, a média é de 1900 habitantes para um policial militar, ou seja, fica claro que nas regiões em que a população possui uma condição financeira menor, muito embora a incidência de crimes supere a da capital, não há investimento governamental no que tange à segurança pública, existe uma banalização da criminalização, a sociedade não se mobiliza e tampouco se incomoda ao ver nos jornais noticiais de chacinas nas regiões mais pobres do Brasil, ao contrário, para alguns setores sociais, os massacres ocorridos em áreas pobres do país, traz uma sensação de tranquilidade uma vez que os “indivíduos perigosos” estariam sendo dizimados, e por conseguinte a violência também seria extinta. Destaca-se que a criminalização da pobreza, bem como o controle social seletivo propaga o “medo do outro”, ou seja, a população de baixa renda cada vez mais isolada das demais classes sociais.

Justiça retributiva versus justiça restaurativa Quando falamos em seletividade do sistema penal, merece destaque a forma com que a justiça se manifesta em nosso país. É sabido que o Estado exerce a justiça retributiva, ou seja, aquela que tem por objetivo a punição do indivíduo que pratica a conduta criminosa. O modelo adotado vem sendo alvo de diversas críticas, tendo em vista a maneira como são tratados acusado e vítima. Para tal instituto, a vítima é tão somente um meio de prova e a reparação do dano é totalmente esquecida, o mesmo acontece com o acusado que deve ser castigado com pena proporcional ao mal praticado e, tem a culpa apurada com base em condutas passadas.

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Segundo esse modelo de justiça, o castigo fará com que o acusado reflita sobre o que fez e não venha a praticar mais condutas delituosas. Em âmbito de Brasil, ressalta-se que a justiça retributiva não é aplicada a todos que praticam crimes, conforme exposto anteriormente, muito embora indivíduos de diversas classes sociais cometam delitos, a grande parte dos acusados que são processados, julgados e condenados a cumprir as penas inerentes ao sistema são os pobres. Assim, verifica-se a necessidade de um modelo novo de justiça a fim de resgatar o princípio da intervenção mínima do direito penal que se perdeu ao longo do tempo. Desta forma, a Justiça Restaurativa assunto cada vez mais em evidência e objeto de estudo de diversos doutrinadores vem sendo considerada uma forma de diminuir a seletividade do controle social exercido pelo estado por Direito Penal, uma vez que segundo Tony Marshall10: “Justiça Restaurativa é um processo pelo qual todas as partes ligadas a uma ofensa em particular, se reúnem para resolver coletivamente como lidar com as consequências da ofensa e suas implicações para o futuro”.

Ademais, esse novo modelo de justiça visa assegurar as garantias do devido processo legal, que em alguns casos vem sendo deixada de lado na justiça retributiva. Cumpre informar que ao contrário do instituto anterior mencionado, a justiça restaurativa busca uma reparação ao dano sofrido pela vítima através do diálogo entre ela e seu agressor que deverá assumir o compromisso de compensar o mal que ocasionou. Defende-se a existência do tripé vítima – ofensor – comunidade para que seja restabelecida a relação abalada em virtude do dano. Na justiça restaurativa prevalece a ideia de que impor um castigo por meio de pena é ineficaz, uma vez que causar dor e sofrimento ao agressor em nada ameniza os danos sofridos pela vítima e pela comunidade onde se deu o delito. Ou seja, o presente instituto visa eliminar a sanção exagerada, assim como visa ainda diminuir a intervenção do Direito Penal nos casos em que haja a possibilidade de solução do problema sem a influência deste. Algumas críticas são feitas acerca do novo modelo de justiça no que tangem a sua eficácia e legalidade, de acordo com os doutrinadores que criticam tal sistema, este teria aplicabilidade tão somente nos casos de crimes contra o patrimônio e, quando aplicados em outros crimes poderia “estimular à prática criminosa”. Fato é que, muito embora críticas existam, as vantagens da justiça restaurativa se sobrepõem. 10

MARSHALL, Tony. Apud AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa: A Humanização do Sistema Processual como forma de Realização dos Princípios Constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2009

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Nesse sentido, importa refletir no que tange a aplicabilidade da justiça restaurativa no direito penal brasileiro. O ponto primordial seria a mudança na forma com que a sociedade e o sistema penal pátrio lidam com o crime e com o criminoso, não haveria mais espaço para o sentimento de vingança e de isolamento do agressor no novo sistema. Outro ponto importante seria a não intervenção do Estado na solução dos conflitos, esses deixariam de ser resolvidos por terceiros e passariam a ser dirimidos pelas partes envolvidas. O modelo restaurativo extingue a ideia de responder o mal com o mal, na medida em que contrário ao que faz a justiça retributiva ao condenar o acusado com base em atos passados, volta-se para o futuro, na tentativa de solucionar os conflitos com base na ética e na proporcionalidade. O ideal seria um sistema dual, onde elementos das justiças retributiva e restaurativa se complementem a fim de criar uma justiça individualizada para cada caso concreto. A justiça restaurativa não visa extinguir a justiça criminal e tampouco seu aspecto retributivo por completo, o que se deseja é a união desses dois modelos a fim de encontrar um ponto de equilíbrio referente ao poder punitivo do Estado. Dessa forma, o projeto de Lei 7.006/06 é um grande marco no direito brasileiro, tendo em vista que fornece meios para que tal procedimento seja inserido em nosso sistema penal

Conclusão

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Desde sua colonização o Brasil sofre o processo de criminalização da pobreza que atualmente vem tomando proporções maiores em decorrência da propagação midiática. Em razão disso, uma pergunta precisa ser respondida: Por que muito embora a lei penal seja a mesma para todos, apenas as condutas de alguns indivíduos de raça ou classe econômica específicas são consideradas criminosas? Por que os crimes praticados pela elite geram na sociedade um desejo de vingança menor do que os crimes praticados por favelados? A resposta é simples, o sistema penal brasileiro exerce seu controle de forma seletiva, ou seja, nem todos que praticam condutas delituosas respondem por elas, apenas uma parte dos criminosos são processados, julgados e condenados, enquanto a grande maioria permanece impune. Desta forma, é possível observar que além das desigualdades sociais existentes em nosso país, existe uma desigualdade no que tange a proporcionalidade das penas quando aplicadas a indivíduos pertencentes à classes distintas. Verifica-se ainda que devido a este fenômeno, a intervenção mínima do direito penal deixa de ser regra para se tornar exceção, nos casos onde figuram como autor do fato, indivíduos de baixa renda e negros.

Bianca Freire Ferreira

A fim de resgatar o princípio da ultima ratio, surge um novo modelo de justiça, a restaurativa, que tem por objetivo o emponderamento de todos os envolvidos que deverão, por meio do diálogo chegar a uma solução para conflito. O processo de descriminalização da pobreza e a busca por um controle social isento de seletividade é um trabalho árduo que requer a participação não só do autor do fato e vítima, mas do Estado de uma maneira geral que precisa por em prática um sistema penal mais humanizado.

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O Conceito de Direitos Humanos e seu Valor Moral Hamerson Castilho do Nascimento1 Resumo O presente trabalho tem por objetivo conceituar direitos humanos, com o fito de impedir que se use tal expressão de forma imprecisa ou impensada. Por primeiro, elencando as cinco características que o definem: a universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade para, assim, demonstrar os direitos humanos como espécie dos direitos subjetivos. Superada essa primeira parte, será iniciada uma segunda fase, onde o foco se dará para o caráter moral dos direitos humanos e os efeitos disso para a ordem jurídica. Palavras-chave: Direitos humanos; direitos subjetivos; moralidade. Abstract This paper aims to conceptualize human rights, with a view to prevent the use such an expression of inaccurate or thoughtless way. By first, listing the five characteristics that define it: universality, fundamentality, the abstractness, morality and the priority for thus demonstrate human rights as a kind of subjective rights. Overcome this first part, a second phase will start, where the focus will be given to the moral character of human rights and the effects of this for the law. Keywords: Human rights; subjective rights; morality.

Introdução Ainda nos dias atuais é tormentosa a tarefa de encontrar uma definição única para certas expressões do glossário político, a exemplo de: “democracia”, “liberdade” e “soberania”. Dificuldade essa que também surge no que tange ao vocábulo Direitos Humanos. Cabe observar que o uso equivocado e irrefletido desses termos no cotidiano nos leva em regra para um significado emotivo, o que gera um irreparável esvaziamento semântico além de um desabono da sua efetividade político-jurídica. Certo é que a falta de um deslindamento da definição de direitos humanos abre caminho para que dele se empregue de forma inflacionária, servindo, diversas vezes, de instrumental retórico, de forma arbitrária, a cargo de interesses pessoais daqueles que os utilizam. 1

Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC – Juiz de Fora - MG; Pós-Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá; Pós-Graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Estácio de Sá; Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá; Professor de Direito do Consumidor, Responsabilidade Civil e História do Direito Brasileiro na graduação da Universidade Estácio de Sá; Advogado atuante inscrito na OAB/RJ.

O Conceito de Direitos Humanos e seu Valor Moral

No estudo dos direitos humanos é imperioso entender o alcance desse vocábulo, de forma muito mais ampla que uma conotação puramente emotiva. Assim sendo, o presente trabalho prioriza analisar e sugerir uma interpretação conceitual desses direitos, que se norteiam em questões verossímeis e que esteja dotada da relevância prática e teórica dos direitos humanos. Para realização dessa tarefa, a pesquisa estará divida em duas fases: primeiro explorando as características que diferenciam direitos humanos de outros direitos; segundo examinando, com maior profundidade, a quarta característica supracitada, denominada de moralidade ou de valor moral, citada por parte da doutrina como a mais importante.

Os direitos humanos e suas características Tomando como ponto de partida uma perspectiva pragmática, o vocábulo “direito” designa tanto objetos, como propriedades e ainda explana emoções, sendo, assim, dotado de forte carga emotiva. Assim torna-se imperioso para a compreensão das características dos direitos humanos, uma breve síntese da interpretação do termo “direito” mais adequada para utilizarmos como referência no estudo em questão. Segundo os ensinamentos de Carlos Santiago Nino, necessário se faz questionar quanto à ocorrência de determinada situação normativa para que reste evidenciado o surgimento de direitos humanos, devendo tal pesquisa ser pautada em uma acepção originada no conceito de direito subjetivo em geral2. O citado autor na mesma obra expõe que dentre variadas conceituações apresentadas no que tange ao direito subjetivo, predomina o significado referente a deveres conexos a outros direitos ou a deveres que somados aqueles resultam no que ele denomina “perímetro protetor”. Com base nessa essa concepção: ...frases da forma ‘tenho direito a x’ fazem referência à existência, no sistema relevante, de uma norma que impõe a outros o dever de deixar de fazer x ou de me facilitar a realização de x – se x é uma ação – ou de me proporcionar (ou me fazer x) ou não me retirar (ou não me fazer x) – se x é um bem ou benefício3.

Ao analisar, em seu sentido liberal clássico, o direito à liberdade, cabe ressaltar que este direito tem como titular o cidadão, como destinatário o Estado e como objeto a omissão de intervenções estatais na vida. Tal afirmação se faz com base na observação que a conceituação predominante do direito (subjetivo) é alcançada pela conexão de, no mínimo, três variáveis: um sujeito (titular), um terceiro (destinatário) e um bem da vida (objeto). 2

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NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2007, p. 25. NINO, Carlos Santiago, Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2007, p. 27.

Hamerson Castilho do Nascimento

Necessário se faz, ainda, distinguir os direitos (subjetivos) em um todo dos direitos humanos, uma vez que é cabível afirmar que todo direito humano é também um direito (subjetivo), porém, nem todos os direitos (subjetivos) podem ser classificados como direitos humanos. Para tanto devemos analisar as características necessárias para compor uma lista descritiva de direitos humanos. Segundo os estudos apresentados por de Robert Alexy, em sua obra Constitucionalismo Discursivo, é possível definir direitos humanos a partir de cinco características, as quais passamos aqui a elencar: a universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade4. Tais características permitem identificar, com uma precisão bem maior, quais direitos (subjetivos) são também direitos humanos e, por conseguinte, passam a possuir status independente, prioritário e superior aos demais direitos. Cabe agora explicitar ainda que de maneira superficial as características supracitadas, para, após, examinar-se mais detidamente o caráter moral dos direitos humanos. Primeira característica – a universalidade – os direitos humanos fundamentam obrigações e deveres erga omnes, impondo sua validade a todos, sem fazer distinção a religião, o grupo, a cultura, a tradição do indivíduo. A universalidade desses direitos existe em contraposição às crises e aos riscos da moderna civilização, que já não podem mais ser superados pela alegação de instituições políticas e jurídicas tradicionais. Cabe ressaltar que a tradição é marcada por percepções individualistas dos valores, destarte que cada sociedade e cada cultura julgam-se detentoras da verdade e entendem equivocado todo aquele que pensa diferentemente da sua noção individualizada de verdade, de bem e de justiça. Entretanto, é necessário um entendimento da ideia de direitos humanos que ultrapasse obstáculos subjetivos, assim como, particulares de cada forma de vida cultural específica, harmonizando interesses individuais com interesses da coletividade, haja vista, que os desafios éticos hodiernos alcançaram um patamar universal. Tomando como ponto de partida a universalidade se torna possível depreender que titular dos direitos humanos é cada pessoa estimada individualmente. Segundo Alexy, a universalidade vista pelo lado do destinatário é mais complexa, uma vez que certos direitos humanos – como a vida, por exemplo – destinam-se contra todos aqueles que são destinatários de deveres e obrigações, assim sendo, oponíveis não só a todos os cidadãos, mas também oponível a todos os Estados e até mesmo a todas as organizações. Diferentemente do direito à vida, determinados direitos encontram uma barreira para sua existência. Cita-se aqui o direito à participação na formação da vontade política. Esse é um direito que não pode o sujeito opor a qualquer Estado, só será oponível aquele onde vive ou pertença. Segunda característica – a fundamentalidade – dispõe que os direitos humanos são incapazes de proteger todas as fontes imagináveis de bem-estar, apenas alcançam interesses e carências fundamentais do homem. Alexy entende 4

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 94.

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O Conceito de Direitos Humanos e seu Valor Moral

que um interesse e uma carência são tratados como fundamentais “quando sua violação ou não satisfação ou significa a morte ou padecimento grave ou acerta o âmbito nuclear da autonomia”5. Cabe aqui a citação da existência de uma variedade de direitos que, por se aduzirem a bens e interesses não indispensáveis para a escolha e para a materialização de planos de vida, não alcançam o status de fundamental ao ser humano. Nessa seara podemos elencar de maneira exemplificativa o direito de utilizar ou negociar um bem, tal direito é concedido somente àquele que detém a propriedade desse bem. A escola em que o filho menor irá estudar é uma escolha que cabe ser feita pelos pais ou responsáveis desse menor. Portanto, os direitos agora citados não integram a esfera de necessidades fundamentais, não são comuns a todos os seres humanos ficando de fora do elenco dos direitos humanos. Com base nesse entendimento, cabe afirmar que o conceito de direitos humanos espelha a noção de que nem todos os direitos devem adquirir o adjetivo “humanos”, pelo simples fato de existirem bens e interesses que são protegidos por motivos diversos que não sejam a circunstância fundamental de fazer parte da espécie humana. É certo que Eles fundamentam outros direitos Terceira característica – a abstratividade – revela que os direitos humanos, por serem universais e fundamentais, assumem um conteúdo de importância abstrata, o que os torna indivisíveis ou indeterminados, em nenhuma situação devem ser violados. Conquanto, a utilização desses direitos em casos concretos, muitas vezes, determina a restrição de outros direitos de mesmo valor (abstrato). Objetivando que a redução (circunstancial e concreta) desses direitos seja mínima ou a menor possível, deve ser adotada a ponderação. Quarta característica – a moralidade – diz respeito à sua validade e não ao titular, ao destinatário ou ao objeto dos direitos humanos. Nos dizeres de Alexy, há distinção entre direitos morais e direitos jurídicos. Os ditos direitos jurídicos tem origem através de atos de fixação por uma autoridade, ou seja, por decisões legislativas, práticas judiciais, contratos, etc. e assim passam a existir ou ter validade. Em contrassenso, a validade ou existência dos direitos morais se dá independentemente de aceitação jurídica, impondo que o respeito a tais direitos ocorra ainda que diante de sistemas jurídicos que não os reconheçam e justamente porque não os reconheçam. Quinta característica – a prioridade – decorrência da validade moral dos direitos humanos e de seu caráter fundamental. É cabível o entendimento que os direitos humanos têm uma prioridade ante ao direito positivo. O direito positivo, como, leis, regulamentos ou contratos, ainda que se oponha ou que desconheça não pode afetar a vigência de direitos humanos enquanto direitos moralmente vigentes. Devendo ser, juridicamente, desconsiderada ou até mesmo, declarada nula qualquer norma ou decisão fundada no direito positivo que contradiga direitos humanos. 5

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ALEXY, Robert, Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 48.

Hamerson Castilho do Nascimento

Destarte o reconhecimento da validade moral dos direitos humanos seja reconhecida, conferindo-lhe capacidade de reivindicar e certificar legitimidade a uma ordem jurídica estabelecida, essa validade não os torna aptos a serem impostos e institucionalizados. Para isso, essencial que se revista de validade jurídica positiva, a qual estabelece as condições para a sua implementação. Cabe afirmar que os ditos direitos de caráter moral carecem de sua incorporação ao ordenamento jurídico positivo estatal, na condição de direitos fundamentais, com intuito de lhes garantir uma maior eficácia social. Quanto a isso, Alexy afirma que: No âmbito intra-estatal existe o passo decisivo para a imposição dos direitos do homem em sua positivação como direitos fundamentais da constituição. Com isso, eles ganham, ao lado de sua validez moral, uma positiva jurídica. A validez moral dos direitos do homem exclui, sem dúvida, que eles sejam anulados por direito positivo. Ela, porém, não exclui que lhe seja acrescentada uma validez positiva jurídica. Ao contrário, a validez moral dos direitos do homem exige, como um dos meios mais eficazes de sua imposição, sua positivação. Essa é a conexão fundamental entre direitos do homem e fundamentais. Direitos fundamentais são, portanto, direitos do homem transformados em direito constitucional positivo.6

Com base nesses fundamentos, é correto afirmar que o vocábulo “direitos humanos” é aplicável a direitos que gozem de validade moral e universalidade e, concomitantemente, protejam interesses e carências mais fundamentais de seres humanos, em razão disso, comportem determinado conteúdo composto de importância abstrata e estejam revestidos de um caráter prioritário quando comparado aos demais direitos jurídico-positivos. Sem, entretanto, esquecer, sua introdução ao ordenamento jurídico positivado, na forma de direitos fundamentais, e assim passem a dispor de reconhecimento e proteção.

O caráter moral dos direitos humanos Após discorrer sobre todas as características dos direitos humanos, cabe agora um olhar mais atento àquela que entendemos ser a mais marcante na diferenciação entre os direitos humanos e os direitos positivos, a moralidade ou validade moral. A moralidade dos direitos humanos não tem ligação com qualquer das variáveis acima destacadas, quais sejam, sujeito (cidadão), destinatário (Estado) e objeto (bem da vida). A moral, assim como a prioridade, diz respeito à validade dos direitos humanos. 6

ALEXY, Robert, Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 95-96.

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O Conceito de Direitos Humanos e seu Valor Moral

Com base no anteriormente exposto, os direitos humanos possuem um caráter prioritário (moral) que é devidamente compatível com um caráter secundário (jurídico-positivo). Direitos humanos não são direitos positivados, diferentemente desses, aqueles são tão somente dotados de validade moral. É certo que em determinados casos é possível a convivência harmoniosa dessas duas condições. Pactos internacionais, tais como, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (IPBPR) e a Convenção Europeia para proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (EMKR), carregam conjuntamente, os dois traços citados, naturalmente. Segundo os entendimentos adquiridos com a teoria Alexyana, a essência do plano normativo é a validade. Em sua obra Direitos humanos sem metafísica Alexy afirma: ...Os direitos humanos possuem, enquanto tais, somente uma validade moral. A quarta característica dos direitos humanos é, assim, seu caráter moral. Um direito vale moralmente se ele pode ser justificado em relação a todo aquele que admite uma fundamentação racional. A validade dos direitos humanos é a sua existência....7

Cabe ressaltar não ser possível afirmar que um direito válido moralmente possa de pronto ser alçado ao patamar dos direitos humanos. Tal afirmação só será possível se o direito dotado de moral for concedido ou reconhecido por uma norma moralmente válida. Conforme já observado, para que se diferencie normas de direito positivas das normas de direito moral é necessário analisar de que forma elas são aceitas. Enquanto normas de direito jurídicas passam a ser aceitas quando estabelecidas por autoridade competente ou por uma convenção, as de direito moral são aceitas por méritos próprios. Cabe assim o entendimento de que uma norma de direito moral passa a gozar de validade, não pelo fato de ter sido ela fixada por determinada autoridade ou por determinada convenção, mas sim por sua condição de determinação e justificação perante cada indivíduo. É o que se depreende da leitura dos primeiros artigos da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 Artigo 1. Todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Artigo 2. 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra 7

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Alexy, Robert. Direitos Humanos sem Metafísica?, in: Teoria Discursiva do Direito, editado e traduzido por Alexandre T. G. Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 115.

Hamerson Castilho do Nascimento

condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.8

Certamente não é o seu conteúdo o que discrimina normas de direito positivo de normas de direito moral, uma vez que, juízos de conteúdo moral podem perfeitamente estar elencados por normas jurídicas, assim exemplificativamente podemos citar “é proibido cometer o assassinato”. De mesmo modo, não se pode afirmar ser seguro, para chegar a uma conclusão sobre essa questão, a utilização de determinado preceito estabelecendo que normas jurídicas, diversamente das normas morais, condicionam como devido um ato coercitivo ou mesmo uma sanção. Considerando-se que, mesmo havendo normas jurídicas carentes do citado elemento, não se pode negar a existência de juízos morais que estabelecem como devido uma pena, que a titulo exemplificativo cita-se, “os assassinos cruéis devem ser submetidos à pena de morte”. Ademais, no processo de justificação de uma norma jurídica, em determinado momento será imperioso recorrer a um juízo normativo que não aquele imposto por uma norma jurídica, uma vez que, tal juízo não terá aceitação em virtude de ser ele formulado por essa ou aquela autoridade, mas exclusivamente por ser racional e justificável. O que essa reflexão impõe como magna conclusão é que as normas jurídicas, quando entendidas como proposições justificatórias – tais como normas que consagram direitos humanos –, possuem indiscutivelmente um caráter moral e exprimem, por conseguinte, um caso especial do discurso moral. A razão de uma norma jurídica não só deve incluir a descrição da prescrição de uma autoridade ou de uma convenção, mas também um juízo normativo que lhes dê autoridade ou legitimidade. Como exemplo tratemos agora do direito à vida. Dissertar que o direito a vida é um direito humano não tem o mesmo significado de afirmar que o direito à vida vale moralmente. O direito à vida só valerá moralmente se uma norma dotada de validade moral determinar que todos tenham direito à vida. Se uma norma que emana o comando de direito à vida é valida moralmente o direito humano que concede direito à vida existe enquanto direito humano, ou seja, existe moralmente. Cabe afirmar que esse direito ainda que não esteja positivado, não tendo um caráter jurídico, está, por certo, dotado de validade moral. Para que possam gozar de validade jurídica os direitos humanos, que são direitos moralmente válidos necessitam de uma norma positiva que os reconheça. Conquanto esta norma positiva deve, igualmente ao direito humano em questão, ser moralmente válida. Esse reconhecimento transforma um direito humano em direito positivo. A partir dessa positivação do direito humano o mesmo passa 8

_____. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em http://unesdoc. unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em 25/04/2015.

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O Conceito de Direitos Humanos e seu Valor Moral

estar dotado do status de direito fundamental, passando a gozar, além de sua validade moral, também de uma validade jurídica. Cabe ressaltar que mesmo estando agora dotado de validade jurídica, passando a ser reconhecido como um direito positivo, reconhecido como um direito fundamental, ele permanece com o status de direito humano. No plano normativo a existência de um direito é atribuída ao reconhecimento de sua validade. Para que um direito humano seja reconhecido como existente é necessário que ele tenha validade. Como exemplo podemos citar o direito a liberdade. Esse é um direito dotado de todas as características acima citadas, podemos então afirmar se tratar de um direito humano. No Brasil, está positivado o direito à liberdade, tendo ele alcançado o patamar de direito fundamental. Mas esse direito à liberdade não valerá em qualquer ordenamento jurídico mundo afora pelo simples fato de ser ele um direito moralmente válido. Ele só terá validade em outros países se em um país “X” existir uma norma válida que determine esse direito. Existência equivale à validade, visto que a essência no plano normativo é validade.

Conclusão Como foi apresentado no estudo em epígrafe os direitos humanos possuem cinco características que os distinguem dos demais direitos. Para que se conceda a um direito status de um direito humano é necessário ele estar dotado de validade moral e universal e, concomitantemente, deve visar a proteção de interesses e carências fundamentais do homem, apresentando, em razão disso, um conteúdo favorecido de importância abstrata e prioridade frente aos demais direitos jurídico-positivos. Deve-se ressaltar ser imprescindível para o reconhecimento e proteção de tais direitos, sua integração ao ordenamento jurídico positivado, na forma de direitos fundamentais. É consectário lógico que a conversão dos direitos humanos em direitos positivos, os concede uma condição de direitos socialmente reivindicáveis, mas não é essa declaração que lhes confere o seu “ser” específico. Contrariamente a isso é a pré-existência desses direitos, como procedentes da natureza humana, que torna imediata a sua aplicação em uma declaração formal. Demonstrou, ainda, essa pesquisa ser a moralidade dos direitos humanos oriundo do fato de serem axiomas justificatórias que tem por determinação o questionamento de leis, instituições, medidas ou ações, autonomamente de serem, ou não, estabelecidos por determinada autoridade ou por determina convenção. E até pelo fato de os direitos humanos não se identificarem obrigatoriamente com direitos que irrompem de normas de direito positivo é que eles são capazes de conferir legitimidade a uma estabelecida ordem jurídica estatal. Assim sendo, o discurso dos direitos humanos está objetivado a um discurso que se impõe a tornar adequada a realidade a certos ideais e não, pura e simplesmente, a um discurso de constatação daquilo que meramente ocorre na realidade.

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Hamerson Castilho do Nascimento

Conclui-se assim serem os direitos que gozam de valores morais os únicos dentro de um ordenamento jurídico com capacidade de legitimá-lo. Um texto Constitucional só pode legitimar-se quando ratifica direitos humanos.

Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. Alexy, Robert. Direitos Humanos sem Metafísica?, in: Teoria Discursiva do Direito, editado e traduzido por Alexandre T. G. Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Travesinno. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2007. TRIVISONNO, Alexandre T. G. (Org.); MERLE, Jean-christophe (Org.). A moral e o direito em Kant - ensaios analiticos. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. _____. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em http://unesdoc. unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf . Acesso em 25/04/2015.

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Redução da Maioridade Penal no Combate à Criminalidade: Tratamento do Efeito ou da Causa?1 Thalissa Corrêa de Oliveira2 Resumo O presente artigo tem por objetivo pesquisar, analisar e descrever questões relacionadas à discussão existente quanto à redução da maioridade penal. Preliminarmente, busca-se analisar o Estatuto da Criança e do Adolescente como marco de uma era de proteção integral, bem como o tratamento dispensado ao menor autor de ato infracional, com o objetivo de demonstrar a existência de legislação coercitiva da prática de atos ilícitos praticados por menores de dezoito anos. Nesse sentido, discorremos sobre a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal e a Proposta de Emenda Constitucional nº 171 de 19 de agosto de 1993, cujo objetivo é a alteração no texto do art. 226 da Constituição Federal, justamente no sentido de reduzir a maioridade penal para dezesseis anos. Ressalva-se, ainda, que todo o argumento utilizado na manifestação contrária à redução da maioridade penal baseia-se na análise da ineficácia da função ressocializadora do sistema penitenciário brasileiro e a consequente inutilidade da redução no combate à criminalidade. O método de pesquisa baseou-se em pesquisa documental, realizadas por meio de pesquisa bibliográfica. Concluiu-se, finalmente, pela inadmissibilidade da redução da maioridade penal em razão de não residir o problema na idade estabelecida para que seja possível a responsabilização penal, mas sim, na falta de promoção do Poder Público, de medidas que confiram efetividade às medidas coercitivas já existentes. Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente; redução da maioridade penal; PEC 171/93; sistema penitenciário brasileiro; medidas socioeducativas. Abstract The purpose of this paper is to search for, analyze and describe issues related to the existing discussion regarding the reduction of legal age. Preliminarily, it tries to analyze the Status of the Child and the Adolescent as a landmark of an era of full protection, as well as the handling of the smaller author of delinquent acts, with the objective of demonstrating the existence of coercive legislation the practice of unlawful acts committed by minors of 18 1

Artigo Científico apresentado pela acadêmica do 8º Período de Direito da Faculdade de Direito de Valença, do Centro de Ensino Superior de Valença, da Fundação Educacional Dom André Arcoverde. 2 OLIVEIRA, Thalissa Corrêa de. Formanda da Fundação Educacional Dom André Arcoverde, no Curso de Direito, 8º Período, da turma de 2016. Autora das publicações: Artigo Científico na Revista Interdisciplinar de Direito da FDV ano 10, nº 10, Outubro de 2013. “Evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente com ênfase no Ordenamento Jurídico Brasileiro”; e, Resumo da Revista Saber Digital – Edição Especial. Resumos da II SEMIC 2014 v. 2, n. 1, “A legitimidade da intervenção do poder judiciário na discricionariedade do poder executivo no direito social à saúde e sua necessária manifestação quanto à questões de reconhecida repercussão geral como meio de prover a segurança jurídica”. E-mail.: [email protected].

Redução da Maioridade Penal no Combate à Criminalidade: Tratamento do Efeito ou da Causa?

years. In this sense, we argue about the unconstitutionality of the reduction of full legal age and the Proposed Constitutional Amendment no. 171, August 19, 1993, whose objective is to change the text of art. 226 of the Federal Constitution, precisely in order to reduce the legal age for sixteen years. It should be pointed out that all the argument used in the demonstration against the reduction of legal age is based on analysis of the ineffectiveness of Resocialization function system Brazilian penitentiary and the consequent uselessness of reduction in fighting crime. The method of research was based on documentary research, carried out by means of bibliographic research. It was concluded that, finally, the inadmissibility of the reduction of legal age in reason of not reside the problem in age established for that it may be possible for criminal responsibility, but, in the absence of promotion of Public Power, of measures that give effectiveness to coercive measures already exist. Keywords: Statute of the Child and the Adolescent; reduction of legal age; PEC 171/93; system brazilian penitentiary; socio-educational measures.

Introdução

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As discussões em torno da redução da maioridade penal crescem a cada dia, estando o fomento dessa discussão diretamente ligado a um número cada vez maior de jovens envolvidos na prática de condutas ilícitas. Diante de condutas bárbaras cometidas por jovens, e que de fato, causam comoção social, é que a sociedade vem nas últimas décadas clamando por ações governamentais capazes de resolver problemas ligados à criminalidade. É com base na transformação social e insegurança na qual é submetida à sociedade, que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 171 de 19 de Agosto de 1993 vem ganhando força desde sua publicação. A referida PEC tem por objetivo reduzir a maioridade penal que hoje consta de dezoito anos para os dezesseis, de modo que jovens nessa faixa etária sejam punidos de maneira equivalente ao sistema, que hoje é aplicado aos maiores de dezoito anos. Como questão polêmica que é, apresenta os mais variados argumentos favoráveis e contrários a sua aprovação. É, assim, tarefa extremamente árdua àqueles aos quais cabe a responsabilidade de manifestar-se quanto à aprovação ou não da PEC, visto que, qualquer que seja a conclusão que se venha a chegar, poderá ela ser responsável pela solução da problemática envolvendo jovens em condutas ilícitas, ou mesmo responsáveis pela efetiva desestruturação do objetivo ressocializador atribuído ao já falido sistema carcerário brasileiro. É nesse sentido, que se mostra de extrema importância a análise quanto ao real objetivo da chamada ‘PEC da maioridade’, a transferência de responsabilidade do problema existente, ou seja, dos efeitos com os quais temos que lidar, ou o tratamento na causa do problema, atingindo sua ‘raiz’ e de fato proporcionando soluções? Assim, para que possamos fazer uma reflexão racional a fim de compreender a proposta apresentada pela PEC, é necessário que seja feita uma análise de diversas outras questões, como, por exemplo, o atual tratamento dispensado ao menor autor de ato infracional, a (in)constitucionalidade da redução da maioridade penal, e a (in)utilidade da redução da maioridade como mecanismo de combate à criminalidade.

Thalissa Corrêa de Oliveira

Destarte, objetiva este trabalho, a demonstração de que a redução da maioridade penal além de não se apresentar como meio eficaz na diminuição da criminalidade no Brasil, não contribui, também, para a reeducação, ressocialização e reinserção do jovem na sociedade de modo adequado.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) – A era da proteção integral O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) representa um marco na consolidação dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil. Trata-se de ramo novo e especial, que dispõe sobre o tratamento diferenciado que deve ser atribuído à crianças e adolescentes respeitando-se o direito Internacional e os Tratados de Direitos Humanos3. Todo esse tratamento especial decorre do fato de que durante muito tempo crianças e adolescentes não dispunham de quaisquer proteção, é o que aponta Maurício de Jesus, ao dizer que a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 não faz qualquer menção referente à proteção ou garantia às crianças e adolescentes, sem sequer mencioná-las: “A doutrina penal do menor surgiu primeiro no Código Criminal de 1830, mantendo-se no Código Penal de 1890, ambos na vigência da Constituição Federal de 1824”4. Não havia, portanto, qualquer proteção ou menção constitucional no que diz respeito à evolução jurídica dos direitos da criança e do adolescente. O advento do Código Penal de 1940 alterou o Código de Menores de 1927, “determinando a responsabilidade penal aos dezoito anos”.5 No mesmo sentido, João Batista Saraiva completa, apontando que “(...) essa responsabilização teve como fundamento condição de imaturidade do menor até então sujeito à pedagogia corretiva sem distinção entre delinquentes e abandonados”6. A grande mudança na verdade, ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988, onde, na visão de Miguel Bruñol: “A população infantojuvenil deixa de ser tutoria/discriminatória para tornar-se sujeito de direitos”7. A mudança foi extremamente significante no cenário jurídico brasileiro, que 3

ROSSATO, Luciano Alves.; LÉPORE, Paulo Eduardo.; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: Lei n. 8.069/1990 – artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 12. 4 JESUS, Maurício Neves. Adolescente em conflito com a Lei. Prevenção e proteção integral. 5. ed. Campinas: Savanda, 2006, p. 23. 5 LIBERATI, Wilson Donizeti. ECA: um modelo de legislação. Fundação Brinq. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2015, p. 01. 6 SARAIVA. João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei. Da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 27. 7 BRUÑOL, Miguel Cillero. O interesse superior da criança no marco da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança apud MÉNDEZ, Emídio Garcia.; BELOFF, Mary. (Orgs.). Infância. Lei e Democracia na América Latina: Análise crítica do panorama legislativo no marco da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança 1990-1998. Trad. Eliete Avilc. São Paulo: Lúmen Júris, 2010, p. 15.

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Redução da Maioridade Penal no Combate à Criminalidade: Tratamento do Efeito ou da Causa?

já estava há décadas atrasado com base nas mudanças já ocorridas no cenário internacional. Hoje, conforme aponta Cleyson de Moraes Mello: O Direito da Criança e do Adolescente está inserido no ramo do Direito Público, já que o Estado tem interesse em assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade os direitos fundamentais constitucionalmente previstos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) adotou a doutrina da proteção integral, onde crianças a adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.8

Nesse contexto, o ECA surgiu a partir da experiência de indignação nacional e pressões internacionais. Foi nele, conforme ensina Alberton, que crianças a adolescentes passaram a ser reconhecidos como ‘sujeitos de direitos’ de ‘prioridade’ absoluta9. Em suma, na opinião de Maurício Jesus, com essa concepção, “A nova lei começava a reconhecer a importância do controle social e da antecipação ao desvio social”10, para torná-los cidadãos com direitos e deveres.

O tratamento dispensado ao menor autor de ato infracional de acordo com a Lei n. 8.069/90 O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, protege os menores de dezoito anos e estabelece direitos à vida, à saúde, à educação, à profissionalização, à dignidade, dentre outros, além de abordar questões relativas à política de atendimento, medidas protetivas ou socioeducativas. O Estatuto foi criado com o objetivo de substituir o antigo Código de Menores de 1979, que na época, em nada contribuía para alterar a condição do menor infrator. Ao menor infrator é aplicada uma sanção diversa da que é aplicada a um adulto que cometa o mesmo crime. “Essa sanção vem prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente como medida socioeducativa, a qual visa à regeneração deste menor, a fim de que não cometa mais nenhum outro delito”.11 O ECA prevê, em seu capítulo IV, art. 112, um rol de medidas socioeducativas a serem aplicadas aos adolescentes autores de atos infracionais. Aponta Rogério Sanches Cunha que: As medidas socioeducativas previstas no art. 112 do Estatuto têm por objetivo: (i) a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; (ii) a integração social do adolescente e a garantia de seus 8

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MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução ao Estudo do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2009, p. 18. 9 LIBERATI, Wilson Donizeti. Op. Cit.. p. 01. 10 JESUS, Maurício Neves. Op. Cit., p. 24. 11 BARROSO FILHO, José. Do Ato Infracional. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2015.

Thalissa Corrêa de Oliveira

direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e (iii) a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos observados os limites previstos na lei12.

Em casos excepcionais, o Estatuto prevê em seu art. 121 a medida de internação, o que seria equivalente à prisão no sistema aplicado aos maiores de dezoito anos. Para Sanches: “A internação constitui medida de privação de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”13. É perceptível, portanto, as incontestáveis providências adotadas pelo Estatuto para repressão dos atos praticados pelo menor autor de ato infracional. O Estatuto estruturou-se no ano de 1990 para reforçar o que prega a Carta Magna, e, de certo modo, para sanar danos causados por leis que antecederam sua criação. É certo que tanto a Constituição de 1988 quanto o ECA, não trouxeram as soluções almejadas, estando ainda, muito distantes de atingir a real finalidade que procuram alcançar. Assim, compreendemos que a eficácia das medidas socioeducativas presentes no aludido Estatuto, não podem ser alcançadas devido ao choque que existe entre a teoria e a realidade. O que há na verdade, é a inaplicabilidade das medidas de forma adequada. Buscando a melhoria do sistema e eficácia na aplicação das medidas é que segundo Valter Kenji Ishida: “as entidades abrigadoras, os locais de internação de menores etc. deverão ser fiscalizados pelo Magistrado, pelo Promotor de Justiça e pelos Conselhos Tutelares, aferindo-se as condições de atendimento, [...]”14. É para atingir o fim reeducação e ressocialização, que de acordo com Paulo Afonso Garrido, que o Estado adequou a tutela jurisdicional às especificidades da matéria, motivo pelo qual lhe foi dado o adjetivo de “diferenciada” e “socioeducativa”15. É importante, que, no momento da aplicação de qualquer das medidas socioeducativas seja feita uma análise do contexto social em que vive o adolescente, observando-se as condições culturais, sociais, políticas e econômicas em que vive. Em resumo, existe legislação própria que regula as medidas que devem ser adotadas ao menor autor de ato infracional, legislação essa que segundo informações do site da Fundação Abrinq “o Brasil é referência mundial no que diz respeito à legislação destinada à infância e à adolescência”. 12

ROSSATO, Luciano Alves.; LÉPORE, Paulo Eduardo.; CUNHA, Rogério Sanches.. Op. Cit., p. 56. 13 Ibidem, Idem. 14 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 141. 15 PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Direito da Criança e do Adolescente e Tutela Jurisdicional Diferenciada. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 215.

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A responsabilidade penal e a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal De acordo com o Código Penal Brasileiro, o menor é aquele com idade inferior a dezoito anos e que não possui capacidade de responder criminalmente por seus atos. Dispõe o art. 27 do Código Penal: “os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos as normas estabelecidas na legislação especial”. Isso não significa, porém, que o menor não será responsabilizado por seus atos, a forma pela qual é feita a responsabilização é que muda. Nesse sentido aponta o Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, José Heitor dos Santos que, o maior de dezoito anos de idade que pratica crimes e contravenções penais (infrações penais), “(...) pode ser preso, processado, condenado e, se o caso, cumprir pena em presídios. O menor de dezoito anos de idade, de igual modo, também responde pelos crimes ou contravenções penais (atos infracionais) que pratica16. Visto que, há expressamente previsão constitucional no sentido da idade mínima do imputável, é compreensível que para alterar na Constituição, o que a princípio poderia ser feito por meio da utilização do poder constituinte reformador, que possui o poder de alterar o texto constitucional por meio de Emenda. Ocorre, entretanto, que há divergência doutrinária nesse sentido. Alguns doutrinadores entendem que a norma de que consta o artigo 228 da Constituição Federal é clausula pétrea, não sendo, portanto mutável, o que não permite sua alteração por meio de Emenda Constitucional, a alteração seria possível apenas por meio do poder constituinte originário. É nesse ponto que, reside a problemática do tema, vislumbrando que a norma do artigo 228 da CF é considerada a norma cláusula pétrea, é que Alexandre de Moraes, em conformidade com a maior parte da doutrina aponta: Entendemos impossível essa hipótese, por se tratar a inimputabilidade penal, prevista no art. 228 da Constituição Federal, de verdadeira garantia individual da criança e do adolescente em não serem submetidos à persecução penal em juízo, nem tampouco ser responsabilizado criminalmente, com consequente aplicação da sanção penal. Lembremo-nos, pois, que essa verdadeira clausula de irresponsabilidade penal do menor de dezoito anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em juízo. Assim, o art. 228 da CF encerraria a hipótese de garantia individual prevista fora do rol exemplificativo do art. 5º. cuja possibilidade já foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 150, III, b (Adin nº 939-7/DF) e consequentemente autentica cláusula pétrea prevista no art. 60 parágrafo 4º, IV – os direitos e garantias individuais.17 16

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SANTOS, José Heitor dos. Redução da maioridade penal. Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2015, p. 01. 17 MORAES, Alexandre de. Direitos Fundamentais. Teoria Geral, comentários dos artigos 1º à 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 1998, p. 152.

Thalissa Corrêa de Oliveira

A análise do art. 228 da CF/88, como cláusula pétrea é a comprovação da impossibilidade jurídica de redução da maioridade penal. Importante destacar, que o tratamento prioritário atribuído ao menor pela referida Constituição não se trata de incentivo à violência ou mesmo tentativa de atribuir ao menor uma condição de ser humano em desenvolvimento que não mais é aplicável nos dias de hoje, o que se propõe, na verdade, é a garantia constitucional de que os jovens não serão reprimidos ou mesmo submetidos às mesmas medidas, as quais, são submetidos os adultos, de modo que aqueles tenham especial atenção objetivando sua ressocialização de modo mais ágil e eficaz.

Proposta de Emenda à Constituição 171/1993 A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93 que reduz a maioridade penal de dezoito para dezesseis anos vem há mais de duas décadas se arrastando na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados18. A proposta de emenda foi apresentada em 19 de agosto de 1993, pelo então Deputado Benedito Domingos – PP/DF, com o objetivo de alterar a redação do art. 228 da Constituição Federal, relativo à imputabilidade penal do maior de dezesseis anos (PEC 171/93). No dia 31 de março de 2015, foi aprovada a tramitação da PEC da maioridade penal pela CCJ, que faz análise apenas quanto à constitucionalidade, legalidade e técnica legislativa da PEC, que passará por análise de uma Comissão especial para examinar o conteúdo da proposta19. É certo que a PEC 171/93 ainda tem um longo caminho a percorrer até ser ou não, aprovada, o fato é que desde a época em que foi apresentada, ela tem sido motivo de grande discussão no mundo político e jurídico. Apesar de mostrar-se para muitos como a solução para o problema da criminalidade envolvendo jovens na faixa etária dos dezesseis aos dezoito anos, a PEC 171/93, para outros nada mais é do que uma medida ineficaz que não possui outro sentido sequer a não ser mascarar o real foco do problema. Nesse sentido, Vinícius Bocato aponta que: A diminuição da idade penal não será capaz de impedir que amanhã sejam recrutados aqueles entre 14 e 16 anos de idade, ou mesmo os mais jovens. E a partir daí, qual será a simplista solução a ser proposta? Por certo continuaremos o mesmo processo de redução sem discussão das verdadeiras causas a serem atacadas, quando então no Brasil até mesmo o recém-nascido merecerá punição por ser um “criminoso em potencial20. 18

REDE TRIBUNA ONLINE. PEC 171/93. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2015. 19 BRASIL, Câmara dos Deputados. CCJ aprova tramitação da PEC da maioridade penal. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2015. 20 BOCATO, Vinícius. Razões para não reduzir a maioridade penal. Portal Fórum. Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2015, p. 255.

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Redução da Maioridade Penal no Combate à Criminalidade: Tratamento do Efeito ou da Causa?

Conforme dispõe Nota Técnica emitida pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) quanto à inconstitucionalidade da PEC 17193: Ao se estabelecer limite de idade para que haja responsabilização no âmbito penal, não se pretendeu discutir se havia ou não capacidade de entendimento em relação à ilicitude do fato por parte do jovem (menor de 18 anos). Tratase de critério puramente biológico em que se pretende, para tal faixa etária, possibilitar uma resposta Estatal diversa do malfadado sistema penitenciário. Nada indica que a idade de dezoito anos seja um marco preciso no advento do injusto e de autodeterminação.21

É a prevenção, em seu mais amplo aspecto, que deve orientar a temática do adolescente infrator, adotando-se, para isso, toda uma política de atendimento a ser implementada pelas esferas no âmbito dos governos federal, estadual e municipal, tal qual recentemente, apresenta pela Lei 12.594/12, que institui o Sistema de Atendimento Socioeducativo (SINASE).

Ineficácia da função ressocializadora no falido sistema penitenciário brasileiro O Código Penal Brasileiro estabelece um sistema de punição justo e merecido, onde a pena é aplicada proporcionalmente à gravidade objetiva do fato, e aos fins visados pelo direito penal. É o que se pode extrair da parte final do art. 59 do Código Penal Brasileiro. Ocorre que, na verdade, a pena de prisão está muito aquém de cumprir sua finalidade no que diz respeito à ressocialização dos indivíduos. Os presídios não possuem quaisquer condições dignas para que seja proporcionado a uma pessoa, meios para sua ressocialização e, reinserção na sociedade de maneira adequada, pelo contrário, a pena de prisão em nosso país é cumprida de modo desumano e cruel, o que fere absolutamente nossa Constituição, e que, consequentemente, só produz efeitos negativos na sociedade, além de ferir também o princípio da dignidade da pessoa humana. Imperioso faz, destacar a lição de Tourinho: Por mais que se queira negar, a pena é castigo. Diz-se também, que a sua finalidade precípua é reeducar para ressocializar, reinserir, reintegrar o condenado na comunidade. O cárcere, contudo, é simplesmente um castigo, e, como já se disse, esconder sua verdadeira e íntima essência sob outros rótulos, é ridículo e vitoriano. Os condenados vivem ali como farrapos humanos, castrados até a esperança. É impossível, portanto, não cobrar do Estado resultados por uma função que lhe é atribuída, a responsabilidade pela execução legal dos direitos e o dever de reeducar e socializar o delinquente.22 21

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IBCCRIM, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Nota Técnica Sobre a PEC 171/93. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2015, p. 03. 22 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 211.

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Nesse sentido, Michel Foucault já mencionava a função do Estado no tocante à aplicação da pena: A prisão, local de execução da pena, é ao mesmo tempo local de observação dos indivíduos punidos. Em dois sentidos. Vigilância é claro. Mas também conhecimento de cada detento, de seu comportamento, de suas disposições profundas, de sua progressiva melhora; as prisões devem ser concebidas como um local de formação para um saber clínico sobre os condenados.23

Portanto, apesar da existência de função atribuída ao Estado, de ressocialização daqueles que cometeram crimes, é sabido que este direito não está sendo respeitado. Segundo Relatório Anual do CNJ do ano de 2013, “No Rio Grande do Norte [...] a constatação é de que entre 90% e 95% das unidades prisionais do estado não tenham condições de receber detentos”24. Dados do Relatório Anual do CNJ do ano de 2013 ainda destacam que “No tocante a qualidade do encarceramento, os relatórios dos mutirões relatam péssimas condições de saúde, superlotação, casos de tortura de presos entre outras ilegalidades”.25 Conforme ressaltado na Exposição de Motivos que fundamenta o Projeto de Lei no Senado nº 513/2013, que propõe atualização na Lei de Execução Penal: Note-se que a população carcerária nacional, estimada pelo Ministério da Justiça em 333.912 pessoas em 2005, passou à cifra de 599.577 em dezembro de 2012, o que significa um crescimento do índice proporcional de 181 para 279 presos por 100 mil habitantes em menos de uma década. Considerando a velocidade média de crescimento da população carcerária e de geração de vagas, a mais simples projeção estatística indica um cenário extremamente preocupante para as próximas décadas, podendo chegar a mais de 1 milhão de presos em dez anos, além do alarmante cenário de violação de direitos humanos e fundamentais sobre o qual o Brasil foi chamado a responder e se justificar recentemente na Assembleia da Organização das Nações Unidas.26

Diante dos dados apresentados, é nitidamente perceptível a situação crítica na qual se encontra o sistema penitenciário brasileiro, tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo. Há de se chamar atenção para o fato de que esses índices são baseados na previsão constitucional da inimputabilidade dos menores de dezoito anos previstos em seu artigo 228, o que nos leva a crer 23

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Relatório Anual CNJ 2013, p. 45. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2015. 25 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Op. Cit.. 26 BRASIL, Câmara do Senado. Exposição de Motivos que fundamenta o Projeto de lei no Senado nº 513/2013, que propõe a atualização na Lei de Execução Penal. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2015. 24

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que a redução da maioridade penal para dezesseis anos elevaria ainda mais esses índices, submetendo um maior número de pessoas a essa situação degradante em que se apresentam os presídios brasileiros. Para Cezar Roberto Bittencourt: “A pena Privativa de liberdade, como sanção principal de aplicação genérica, está falida”.27 O sistema penitenciário brasileiro não cumpre os ideais ressocializadores do art. 1º da Lei de Execução Penal, não atinge os anseios e os objetivos pelos quais foram criados, “(...) mostrando-se desumano, brutalizador e absolutamente ineficaz”28. Sendo o objetivo o alcance da eficácia do sistema e o afastamento dos jovens da criminalidade, evitando que pratiquem atos infracionais ou reincidam é necessário impedir que convivam com adultos experientes no crime, visto que a personalidade em formação é facilmente “corrompida”. A mudança na faixa etária para fim de responsabilização penal só provocaria um aumento ainda maior na população carcerária sem resolução das verdadeiras raízes do problema, ocorrendo apenas seu deslocamento.

Inutilidade da redução da maioridade penal como meio de combate à criminalidade A cada noticiário de crime cometido por um adolescente no Brasil a população clama ainda mais pela redução da maioridade penal como forma de solucionar o problema da criminalidade. A triste realidade, como aponta Vinícius Bocato, no sítio do Portal Fórum, é que: “A cada crume brutal cometido por um adolescente, discutimos os efeitos da violência, ma não suas causas. Discutimos como reprimir, não como prevenir”29. Reduzir a maioridade penal é atacar o efeito em lugar da causa. Miguel Reale Júnior aponta que: “No Brasil temos o mau hábito de imaginar que se muda a realidade mudando-se a lei. A lei não muda a realidade. A realidade é que precisa ser mudada para se adaptar a lei que ai existe”.30 O que diversas vezes não é apontado são pesquisas que comprovam o baixo índice de crimes contra a vida cometidos por menores. Ainda que com aumento gradativo, pesquisa realizada por Caco Barcelos na cidade de São Paulo aponta que: “Na análise de 3.233 crimes de morte ocorridos no ano de 2005, 98,1% (3.172) foram de autoria de adultos, e 1,9% (69) de responsabilidade de menores”31. 27

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BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. Causas e Alternativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 195. 28 LINS, Evandro.; SILVA, C. F.. De Beccaria a Filippo Gramática. Sistema Penal para o Terceiro Milênio: atos do colóquio Marc Ancel. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p.33. 29 BOCATO, Vinícius. Op. Cit.. 30 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. V.II. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 114. 31 BARCELLOS, Caco. Quem é o vilão da violência na cidade de SP: o adulto ou o adolescente? Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2015.

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De acordo com Luccas Fróes, do sítio “Nossa Política”, dados do Ministério da Justiça de 2014 apontam que: “aproximadamente 1% dos crimes no Brasil apenas são praticados por adolescentes com 16 e 17 anos, faixa etária a ser atingida com a redução da maioridade penal, sendo que, desse 1%, não chega a um décimo o número de jovens que praticaram crimes contra a vida (homicídio e latrocínio)”32. Ainda de acordo com o sítio supracitado: O índice de reincidência dos jovens que passam pelo sistema socioeducativo está próximo dos 20%. Se reduzirmos a maioridade penal, esses jovens passarão a ficar a cargo do desastroso sistema prisional brasileiro, onde a exposição, a experiência e comportamentos criminosos são muito maio entres e no qual o índice de reincidência beira os 70%. Mesmo que você não acredite nos índices, há de concordar que para o menor, hoje, a chance de recuperação é abaixo do que deveria, no sistema prisional é muito pior; a inutilidade das prisões brasileiras na edificação, formação humana é notória e inquestionável. Ou seja: em vez de trabalhar pela efetividade do sistema socioeducativo que atende, ou deveria atender, ao menor infrator, aumentando suas chances de reabilitação, boa parte da sociedade tenciona colocar os jovens num ambiente muito mais nocivo, onde as possibilidades são ainda menores.

Assim, jamais serão solucionados os problemas da criminalidade entre os jovens com a simples redução da maioridade penal. A alteração da lei não reduz a criminalidade, o que produz efeitos reais, é, na realidade, a aplicação e execução adequada da mesma.

Considerações finais As questões relativas aos direitos da criança e do adolescente vêm a cada dia ganhando mais espaço na sociedade contemporânea, principalmente, no que diz respeito ao tratamento dispensado ao menor autor de ato infracional. A proposta de emenda à Constituição de nº 171/93 surgiu objetivando a redução da maioridade penal para os dezesseis anos, idade em que segundo os defensores da proposta, o jovem deveria responder criminalmente, sujeitando-se às sanções previstas no Código Penal Brasileiro, pelos atos ilícitos que venha a cometer. Ocorre que, o problema na realidade, não está na falta de legislação punitiva. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê uma série de medidas que devem ser aplicadas ao menor que pratique ato ilícito, inclusive medida de internação, o que equivale a prisão destinada aos maiores de dezoito anos que cometem crimes. 32

FRÓES, Luccas. Redução da maioridade é retrocesso. Disponível em:
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