Diálogos transnacionais nas revistas jurídicas brasileiras (1904-1914)

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Diálogos transnacionais nas revistas jurídicas brasileiras (1904-1914)1

Embora sejam homens para os quais o historiador preocupado com a globalização da cultura raramente volta seu olhar, os juristas estiveram, em diversos momentos, profundamente envolvidos em diálogos transnacionais, seja em função de aspectos jurídicos das relações diplomáticas, seja em decorrência da valorização das experiências vividas em outros países própria a essa área do conhecimento. O segundo destes aspectos tende a se acentuar em conjunturas de mudança institucional, quando, chamados a repensar o direito e a cooperar com a elaboração de novas leis, esses bacharéis representam a si mesmos como verdadeiros demiurgos de um tempo ainda por vir e de uma estabilização futura dos conflitos sociais. Nesse processo, sobretudo quando a norma em questão é um código, espécie de diploma legal sistemático que emerge no início do século XIX, sob a influência de ideais ilustrados e da dupla pretensão de completude e perenidade, frequentemente se busca discutir e realizar apropriações da produção jurídica de localidades diversas. Isso se reforça pela temporalidade longa própria ao direito,2 fazendo com que a circulação de ideias e conceitos em muito ultrapasse o lugar e o momento histórico de sua enunciação inicial. Nas primeiras décadas do regime republicano no Brasil, essas questões se fizeram notar com especial força, a partir das tentativas de adequação das leis e instituições à nova situação política, ao lado de mudanças nas formas de pensar o direito. Já em 1890, era editado um novo código penal. Os debates sobre a codificação do direito civil – que, apesar de esforços como o da consolidação de Teixeira de Freitas (1857), não conseguiram avançar durante o Império – ganharam ares de maior concretude com a edição do projeto de Clóvis Bevilaqua em 1899.3 Esse também foi um                                                              1

Este trabalho foi elaborado especialmente para a ESPEA, e seu tema não é exatamente o mesmo do meu mestrado (em andamento na Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação da Professora Eliana Dutra), embora se relacione diretamente com ele e com o projeto que pretendo desenvolver no doutorado. Minha pesquisa para a dissertação se dedica aos debates, nos periódicos jurídicos brasileiros editados entre 1936 e 1943, entre eles os três títulos aqui discutidos em seus momentos de fundação, a respeito das reformas das leis empreendidas pelo governo Vargas. No doutorado, pretendo estudar as permutas entre revistas de direito e os trânsitos intelectuais entre juristas do Brasil, da Argentina e do Uruguai, em recorte temporal próximo ao adotado no mestrado, mas ainda não delimitado. Este texto é, portanto, um esforço, ainda que bastante exploratório, para pensar o gênero de impressos ao qual me venho dedicando na diacronia e uma primeira abertura para o estudo dos diálogos transnacionais em suas páginas. 2 Sobre a temporalidade própria do direito, marcada por aspirações à duração e à repetibilidade, ver: KOSELLECK, Reinhart. Histoire, droit et justice. In: L'expérience de l'histoire. Paris: Seuil, Gallimard, 1997, p. 161-180. 3 Esse projeto viria a se tornar o Código Civil de 1916 e somente seria substituído em 2002.

contexto de expansão do ensino jurídico, a partir das reformas Benjamin Constant (1891) e Rivadávia Correa (1911). Essas reformas romperam com o monopólio dos cursos jurídicos de São Paulo e do Recife, criados pouco após a Independência com o intuito de formar quadros dirigentes para a nova nação, e levaram ao surgimento de faculdades livres em diversos outros centros.4 No Brasil do final do “longo século XIX”, muito em função da qualidade de polígrafos de que inúmeros dos bacharéis em direito se revestiam, em um momento em que o acesso às profissões letradas era ainda muito restrito e em que formações especializadas em humanidades inexistiam ou eram, no mínimo, incipientes, os debates desenvolvidos nesses círculos jamais se limitaram ao âmbito estritamente jurídico. Eles resvalavam com frequência, ainda que de modos sutis, em questões mais amplas, de natureza política, social, cultural. A virada do oitocentos para o novecentos é, ainda, e não casualmente, um momento de forte expansão da imprensa jurídica especializada no Brasil. Em parte, isso se deu por impulso oficial: a criação de revistas acadêmicas foi uma das condições impostas pelo governo para o estabelecimento das novas “faculdades livres de direito”. A emergência de iniciativas editoriais amplas e ambiciosas nas décadas de 1900 e 1910 nos leva a suspeitar, porém, que questões intelectuais mais profundas e esforços para assegurar a intervenção no espaço público poderiam ter presidido o lançamento de revistas jurídicas. Essa impressão se reforça quando se percebe que a concomitância entre a proclamação da República e o desenvolvimento da imprensa especializada em direito também se deu em outros países, conforme observou, por exemplo, Fatiha Cherfouh a respeito da França nas décadas de 1870 e 1880.5 A partir de todas essas questões, discutiremos brevemente o lugar conferido a publicações e autores estrangeiros nos momentos iniciais de três periódicos jurídicos brasileiros que surgiram no início da República. A Revista Forense foi lançada em janeiro de 1904, em Belo Horizonte, com direção a cargo de Estevão Pinto e Mendes Pimentel, ambos então professores da Faculdade de Direito de Minas Gerais. Não trazia, em seu primeiro número, programa explícito, mas procurava estabelecer um diálogo com o leitor na seção “Notas e informações”, inserida no final do mesmo fascículo.                                                              4

Cf. VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo. 150 anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 179 e seguintes. 5 CHERFOUH, Fatiha. L’impossible projet d’une revue de la Belle Époque. L’émergence d’un juriste scientifique. Mil neuf cent. Revue d’histoire intellectuelle. n. 29, 2011, p. 61-62.

Entre os pequenos textos que compunham essa divisão da revista, um remetia à obra Teoria da nulidade dos atos e convenções, do francês Victor Hippolyte Solon, publicada originalmente na primeira metade do século XIX, e traduzida especialmente para aparecer de forma seriada nas edições inaugurais da Forense. Nesse texto, é interessante notar que, à exaltação do jurista europeu, soma-se o intuito em destacar a contribuição “nacional” ao texto, por meio das notas: As notas, com que o saber e a longa experiência forense do ilustre catedrático de Teoria e Prática do Processo [Levindo Ferreira Lopes] vão enriquecer a versão da obra esgotada e rara de Solon, farão avultar o mérito da publicação.6

Na Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, cujo primeiro exemplar veio a público no Rio de Janeiro em julho de 1906, por iniciativa de Antonio Bento de Faria, então advogado e futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (1937-1940), a nota de apresentação recebeu o singelo título de “Duas palavras” e se preocupou em estabelecer uma espécie de “missão” cultural e política para a publicação e suas congêneres, afirmando que “são elas preparadores dos materiais com que mais tarde se há de constituir nova lei, ou formar obras de maior tomo.”7 A revista era nitidamente ambiciosa: a mesma nota ressalta que ela nunca contaria com menos de 200 páginas por fascículo (a Forense tinha cerca de 80) e seguiria sempre a divisão das matérias do primeiro número. Nessa organização interna, um fator se destaca: a presença de seções de “doutrina” (artigos teóricos) e “jurisprudência” (decisões judiciais) estrangeiras, que, embora fossem menos extensas, eram colocadas quase sempre antes das equivalentes nacionais, expressando escolhas nada inocentes de seus editores. No primeiro ano de existência da revista, a abertura para o exterior se limitou a Portugal, Itália, França e, com menor frequência, Suíça, Bélgica e Alemanha (neste último caso, a partir de traduções francesas). Lançada alguns anos mais tarde, em 1912, a paulistana Revista dos Tribunais se destaca por ser seu fundador e primeiro diretor um polígrafo por excelência: Plínio Barreto, que aliou a atuação jurídica à jornalística, especialmente no diário O Estado de São Paulo, em que redigiu de crônicas forenses a críticas literárias, citando com frequência publicações francesas, como a Revue des Deux Mondes. A escrita da nota de apresentação, intitulada “Programa de uma revista”, ficou, contudo, a cargo não do                                                              6 7

Revista Forense. Belo Horizonte, v. I, fasc. 1º, 15 de janeiro de 1904, p. 89. Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal. Rio de Janeiro, v. I, fasc. 1º, julho de 1906, p. IV.

redator, mas de um jurista já então muito consagrado, Pedro Lessa. Nesse texto, provavelmente encomendado como parte de uma estratégia de legitimação para o novo título, Lessa destaca o lugar que seria dado ao diálogo com a produção de outros países: Dado o fenômeno da crescente coordenação das nações civilizadas, cada vez mais estreitamente ligadas entre si pelas indústrias, pelo comércio, pelas artes, pela ciência, pela política, pela moral e pelo direito, e cada vez mais influindo o progresso de umas no das outras, essa cooperação de todas para o aperfeiçoamento dos institutos jurídicos, pela investigação das verdades que lhes servem de base, é uma natural e preciosíssima consequência.8

Em seu primeiro ano de existência, a análise das páginas da revista deixa claro quais eram as nações consideradas “civilizadas”: na seção “Jurisprudência estrangeira”, publicada ao fim de cada fascículo, as notas foram elaborados integralmente a partir de publicações europeias, com destaque para as francesas Journal de Droit International Privé e Revue de Trimestrielle de Droit Civil e a italiana Rivista de Diritto Comerciale. Esse breve panorama nos permite esboçar a conclusão de que, ainda que se possa encontrar em limitações de caráter linguístico ou em restrições materiais para a circulação de impressos a justificativa para a forte ênfase nos países europeus, notadamente a França, nos diálogos transnacionais travados nas páginas das revistas jurídicas brasileiras lançadas no início da República, isso se ligou a um esforço para integrar, a partir do direito, o Brasil ao grupo das chamadas “nações civilizadas”, para retomar uma derradeira vez a expressão (bastante comum no período) empregada por Pedro Lessa. Esse interesse em conhecer e dialogar com ideias e autores estrangeiros se ligou, certamente, à preocupação de refundar o sistema jurídico em bases republicanas. Ao mesmo tempo, salta aos olhos a ausência de diálogo com os vizinhos países da América hispânica, algo que se desenvolveria com força surpreendente nas décadas seguintes,9 talvez em função da busca por soluções próprias para o “problema nacional” que ganha força a partir dos anos 1920. Ambas as questões podem ser vistas como instigantes chamados para integrar os juristas ao universo de estudos da globalização da cultura – mesmo porque, no Brasil do oitocentos e de boa parte do novecentos (e como foi brevemente exemplificado com Plínio Barreto), eles eram, com frequência, os mesmos homens que se engajavam na grande imprensa, na literatura, no pensamento social.                                                              8

LESSA, Pedro. Programa de uma revista. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. I, fasc. 1º, 2 de fevereiro de 1912, p. 7, grifos nossos. 9 Em levantamentos feitos em resenhas bibliográficas de diversos periódicos jurídicos brasileiros editados entre 1936 e 1943, conseguimos localizar 138 publicações estrangeiras citadas, das quais apenas 27 eram editadas na Europa e nos Estados Unidos.

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