DIAMANTES DA LIXEIRA: Notas sobre o diário como escrita literária

June 14, 2017 | Autor: Beatriz Resende | Categoria: Comparative Literature
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WOOLF, Virgínia. Diário, vol. 1. Lisboa: Bertrand, 1987. p. 137 (grifo meu).
CÉSAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 198.
Cf. "Os olhos, a barca, o espelho". In: A educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987.
BARRETO, A. H. de Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 77.
Idem, ibidem. p. 77.
BENSTOCK, Shari. (Ed.). The private self. EUA: The University of North Carolina Press, 1988. p. 273.
Idem, ibidem. p. 273.
NETO, Torquato. Os últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonard, 1982. (Sem número de página – registro de 28/10).
COCTEAU, Jean. Ópio, diário de uma desintoxicação. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 21.
Idem, ibidem. p. 63.
B ARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Ed. 70, 1984.
COELHO, Eduardo Prado. A noite do mundo. p. 221.
SCARPETTA, Guy. L´impureté. Paris: Grasset, 1985. p. 290.
DIAMANTES DA LIXEIRA: Notas sobre o diário como escrita literária

"(mars 1942) Tous les jours, je me disais: c´est inutile d´ecrire un journal maintenant. J´ai vecu plusieurs existences. Je n´ai pas écrit. Pourquoi commencer n´importe où? Je me trompe. Il faut écrire n´importe où." Jean Cocteau. Journal (1942-1945)


Em 20 de janeiro de 1919, depois de reler o que escrevera em seus cadernos durante o ano anterior, Virginia Woolf registra mais uma das diversas observações que faz sobre o próprio diário. Desta vez uma das mais importantes que se pode encontrar sobre o diário como escrita literária e toda a relação que estabelece entre autor, escritura e um possível futuro leitor. Reconhecendo a escrita "a galope" com que o relato do ano de 18 fora redigido, não pode deixar de observar: "se eu parasse para refletir, nunca haveria de o escrever; e a vantagem deste método é que vai amontoando ao acaso várias coisas dispersas que eu teria excluído se hesitasse, mas que são diamantes da lixeira".
Retomando ainda como metafórica introdução a ameaçadora imagem da lata de lixo para onde podem escorregar diamantes literários, Ana Cristina César, que por toda a sua obra poética joga com a ideia e a forma do diário, anota no dia 16 de outubro de 1983, sintetizando muito do que de contraditório, provocante e doloroso existe num diário:

"Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a má fama depois que estamos mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho Diário não tem graça, mas esquente, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem capazes."

É. Leiamos se formos capazes. Porque há na leitura dos diários uma dificuldade, um misto de pudor e incapacidade de absorver com o recomendado distanciamento a confissão expressa que só é mesmo superado pelo inevitável prazer que este "voyeurismo" provoca. Mas se a leitura pode ser fascinantemente penosa, a escritura do diário revela, de modo geral, o conflito do autor diante do "impublicável". E é a sua dificuldade de rotulação como gênero literário que faz com que o diário faça parte desta espécie de expressões, frequentemente consideradas menores, à margem da produção "oficial" de alguns autores, espécie a que Antonio Cândido classifica como "literatura íntima" e que prefiro, com pequena diferença semântica, chamar de "literatura da intimidade".
As notas que aqui coligimos tiveram seu início no estudo de duas obras de um autor brasileiro (note-se que apesar de existirem expressivas exceções, os diários não são frequentes entre nós): o carioca Lima Barreto. A primeira obra, o Diário íntimo, revelou-se, de saída, uma coletânea de textos de múltiplos tipos, a que, ainda uma vez, Antonio Cândido, dá uma posição de destaque dentro do conjunto de sua obra. O diário abrigava não apenas confissões (geralmente breves e controladas, com raros extravasamentos, nunca indiscretos), mas também crônicas, sobretudo sobre a cidade-amante, a cidade- erótica e, ainda, esboços de obras desenvolvidas ou não posteriormente. A característica de diário íntimo como relato privado até mesmo de coisas públicas, ficava não só evidente como era mesmo enfatizada. Este desejo de privatização, o temor ao publicismo aparece sob a forma de desejo de discrição.

Aqui bem claro declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo de discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha.

É evidente que este gesto de Medeia a destruir suas crias o autor nunca cometeu, gesto impossível também a outros autores, mesmo aqueles que, como Kafka ou o Benjamin de Diário de Moscou, expressam o desejo de que seus escritos fossem destruídos e os confiaram a sábios e traidores amigos como Max Brod e Gershom Scholem.
O segundo texto de nosso autor foi o Diário do hospício, transcrito por Francisco de Assis Barbosa que não apenas publicou como, várias vezes, decifrou as anotações feitas a lápis nas costas de tiras de papel pardo já usado. Este diário, ao ser escrito, tinha a finalidade inicial de servir como notas que se transformariam, posteriormente, numa espécie de romance autobiográfico onde de discutissem temas como o sequestro a que o doente mental é submetido, a anomis, as humilhações, a dolorosa exclusão que lhe é imposta. Seria o não terminado Cemitério dos vivos. A escrita, no entanto, tem aí outro móvel mais imediato: assegurar pelo uso do discurso a própria sanidade, estabelecendo, assim, uma diferença entre o escritor e os demais companheiros daquela "casa de loucos".
Esta impossibilidade do texto ser transformado em um outro (a redação do romance é interrompida no trecho em que o autor narra a cena que, durante sua permanência mais forte impacto lhe causara) que se apresentasse como um romance nos moldes tradicionais do início do século, revela peculiaridades do texto original, fragmentado. Como se já houvesse uma forma própria adequada à história contada, a que qualquer tentativa de complementar ou encadear artificialmente, a posteriori, fosse fatal. Além disso, evidencia-se, de saída, a diferença entre diário e autobiografia. Cabe lembrar que Virginia Woolf, por diversas vezes, durante a escrita de seus diários, menciona a vontade de um dia escrever sua autobiografia, que seria algo diferente do registro que ia fazendo. A autobiografia seria deliberadamente voltada para um público leitor ao invés de ser um registro privado aberto unicamente ao restrito círculo doméstico que eventualmente tinha acesso à leitura dos Diários. Em determinado trecho chega a datar o projeto: Aos 60 anos iria escrevê-la. Aos 59 a escritora interrompe sua vida.
Lima Barreto também torna evidente a diferença que faria da autobiografia uma espécie de diário passado a limpo e submetido a censuras:

Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho da minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela: é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para ser bem compreendido exigiria uma autobiografia que nunca farei.

A ensaísta americana Nancy Walker em "Wider than the sky: public presence and private self in Dickinson, James and Woolf", observando que quando o escritor é uma mulher as formas claramente autobiográficas proporcionam um mergulho nas tensões entre privado e público, o que "eu" e o "outro", que têm sido especialmente problemáticas para as mulheres, afirma que a autobiografia é "o que eu lembro", enquanto o diário tem a ver com "o que eu sou agora, neste instante".
Se a diferença em relação à autobiografia se evidencia, surgem similitudes com outra manifestação da literatura intimista: a correspondência. Não exatamente cartas em geral, mas as pertencentes a um tipo específico de correspondência, aquela que é redigida com quase a mesma regularidade da "lei de Blanchot": o diário é sempre regido pelo calendário, única exigência a que o diarista não se pode furtar. É o caso famoso das cartas que Van Gogh escreve a seu irmão Théo. Nelas fica bem claro que o destinatário importa pouco. Na escrita quase diária que independe das respostas, o interlocutor é apenas uma espécie de garantia de não estar falando sozinho, como um louco. É também, o caso de grande parte da correspondência de Antonin Artaud, especialmente as cartas de Rodez.
Ao evocarmos exemplos de diário como vários dos citados, surge evidente uma relação entre a escrita de diários e a vivência de uma situação de exclusão. No exílio voluntário como o de Van Gogh – a que se segue a reclusão forçada –, nas internações impostas, o texto autodestinado surge como uma espécie de mediador entre o espaço do confinamento e o espaço público impossível ou indesejado. É ainda Nancy Walker quem aponta a mediação exercida pela palavra da confidência entre autoras que vivem uma situação de recolhimento do mundo como Emily Dickinson e Alice James, apontando a importância que exercem as cartas e diários para autoras mulheres, por serem formas que não assumem diretamente a exposição a "olhos estranhos":

Quando o escritor é uma mulher, tais formas abertamente autobiográficas revelam as tensões entre público e privado, entre "eu" e "outro" que têm sido especialmente problemáticos para mulheres.

O poeta Torquato Neto, que durante internação em sanatório do Piauí mantém um diário, fala da mesma necessidade de garantir a "sanidade" pela sua afirmação através do discurso em um de seus textos mais conhecidos: "É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus".
A questão da reclusão, voluntária ou não, como espécie de terreno fértil à produção desses textos que trazem o universo público para o privado e que terminarão, inversamente, por dar publicidade ao universo o mais privado do escritor, pode ser retomada com a leitura de Ópio, diário de uma desintoxicação, de Jean Cocteau. Nesse diário sem datas fixas, mas escrito com regularidade evidente durante cerca de três meses – como o Diário do hospício, de Lima Barreto – Cocteau afirma disposição semelhante à do autor brasileiro:

É preciso deixar um vestígio desta viagem que a memória esquece; é preciso, mesmo quando impossível, escrever, desenhar, sem atender aos convites romanescos da dor; não me aproveitar do sofrimento como de uma música; amarrar a caneta no pé, se necessário.

E, mais adiante, nomeando intenção frequente na escritura do diário: "Aproveitemos a insônia para tentar o impossível: descrever a carência".
Quando mencionamos a questão do destinatário passamos pela questão mais polêmica que cerca o estudo dos diários. Jean Rousset em seu estimulante artigo "Le journal intime, texte sans destinataire?" classifica os diferentes tipos de diário segundo o grau de abertura ou fechamento em relação a possíveis destinatários. Assim, os graus de destinação da escritura do diário variam desde a autodestinação – o texto escrito para ser lido pelo próprio escritor mais tarde ou uma pseudodestinação em diários que seriam pretensamente escritos para algum posterior leitor a quem o autor não tem, na verdade, nenhuma intenção de mostrar (filhos, descendentes) ou onde uma forma de interpelação ao próprio diário torna a escritura mais fácil, construindo-se um destinatário imaginário ou retórico, como em O ofício de viver, de Cesare Pavese. Diários abertos seriam diários conjugais, escritos a quatro mãos, ou aqueles cuja leitura é franqueada a um número restrito de leitores que partilham da intimidade do escritor (Anais Nin, Virginia Woolf). E, finalmente, existiram aqueles diários de grau de abertura bem maior. Dentro desta classificação há uma diferença bastante grande. Ela comporta os diários cuja publicação póstuma teria sido autorizada em vida, durante sua escritura, e os diários escritos para imediatas publicações. É o conhecido caso dos diários de Gide.
Na verdade, tais diários de total abertura, com publicação concomitante, não nos interessam. Trata-se, a nosso ver, de uma forma híbrida, entre a ensaística, a ficção e as memórias. Os de publicação autorizada, de modo geral também não inspiram grande interesse. Ficamos, pois, com os diários realmente íntimos e os franqueados a um pequeno e igualmente íntimo público.
A autodestinação do texto ou seu caráter de total intimidade não significam, no entanto, uma garantia de absoluta franqueza, por contraditório que isto possa parecer. Raros são os diários onde o autor se permite desvendar a própria intimidade. Peter Gay chama mesmo atenção para o fato ao destacar a excepcionalidade do diário de Mabel Todd que lhe serve como fonte principal de pesquisa; o "querido diário, velho amigo" que recebeu indiscretas confidências fornecendo material ao estudo de comportamento do livro A experiência burguesa.
Virginia Woolf manifesta sua preocupação com a difícil sinceridade, a tentação ao controle ao escrever em 20 de abril de 1919: "O principal requisito, penso, relendo meus velhos volumes, é não exercer a função de censor".
Hoje não nos parece haver dúvidas quanto à importância desses escritos periféricos para o estudo da obra de um autor, nem tão pouco quanto ao seu valor. Nestes diários a que o próprio autor atribui certa clandestinidade, porém, há uma dúvida que os torna ainda mais interessante. A dúvida – que nos diários destinados à publicação inexiste – é o lixo varrido, a poeira doméstica, para retomar a imagem de Virginia Woolf, a que se misturam os "diamantes" que nem sempre brilham de imediato, mas que, uma vez encontrados recompõem o prazer do texto em mais alto grau.
Essa "dúvida insondável" sobre o valor mesmo do diário, do que ele registra, da escritura que o constrói, é o que Roland Barthes classifica como "doença do diário". Em "Deliberação", artigo escrito em 1979, Barthes fala de suas próprias dúvidas sobre a validade ou não de manter um diário, desenvolvendo reflexão a partir de trechos do diário que por anos manteve, inclusive, o de 22 de julho de 1977, tornado célebre por conter a afirmativa: "De repente, tornou-se-me indiferente não ser moderno". No ensaio, Barthes declara com veemência o que vem sendo nosso pressuposto inicial, o de que a única justificativa de um diário íntimo como obra a ser publicada é a literária.
É aí que questiona a existência de qualquer sinceridade possível no diário, considerando que, após a psicanálise, a crítica sartriana e quejandos, que tornaram vã a confissão, "a sinceridade não passa de um imaginário de segundo grau". De tudo isto Roland Barthes pretende tirar uma deliberação: "deliberação pessoal destinada a permitir uma decisão prática: deverei manter um diário tendo em vista publicá-lo?" E termina o ensaio dizendo "só posso salvar o diário com a condição de o trabalhar até a morte, até o fundo da extrema fadiga, como um texto mais ou menos impossível: trabalho ao termo do qual é bem possível que o diário assim mantido já não se assemelhe em nada a um diário".
Em janeiro de 1987, as edições du Seuil publicam a obra póstuma de Barthes, Incidents, editado por François Whal. O livro divide-se em três partes: a primeira refere-se ao lugar de origem do autor, o campo de Bayonne, no sudoeste da França. A segunda – texto admirável! – é uma espécie de diário sem a "lei de Blanchot", notas escritas durante viagem ao Marrocos, onde ao aspecto fragmentário peculiar aos diários junta-se o alegórico. Com o intermezzo de um texto sobre o Palace, a terceira parte traz um diário redigido entre 24 de agosto e 17 de setembro de 1979: "Soirées de Paris". Este conjunto evoca no leitor todo o potencial de "voyeurismo" que um diário é capaz de despertar, especialmente quando o relato de um diário é a referência ao sexual ou ao amoroso, mesmo porque ao longo de todo o volume Barthes se revela, ele também, um "voyeur".
Eduardo Prado Coelho, em ensaio de A noite do mundo considera o texto "obviamente doloroso e desprotegido (é, sobretudo, o desprotegido que me agrada)." Para Prado Coelho o corpus são "restos, evidentemente, estilhaçados, fragmentos".
O que parece especial em relação ao registro dessas apenas 16 soirées é o fato de mostrar que a importância de um diário como escrita literária, como "motivo poético", nada tem a ver com sua extensão, com o volume de informações que transmita. Afirma-se assim o diário como uma forma de manifestação lírica e como texto que evoca uma leitura toda especial – uma leitura "impura" – pois não temos que ler tudo, assim como o narrador não tem que contar tudo. Também em sua relação com o conjunto da obra o aspecto fragmentário do diário importa. Um breve registro ou a revelação contida em uma parte do diário podem ser decisivos para a compreensão da obra de um autor não só por conter uma decifração, como também por propor uma elaboração teórica.
F. W., editor de incidents, faz questão de relacionar o livro póstumo ao ensaio citado, "Deliberação", e considera que "Soirées de Paris", pela forma como o manuscrito estava intitulado, paginado, com algumas indicações como a razão da interrupção de 22 de setembro, indicariam que o texto se destinava à publicação, estando logo em seguida ao envio à Tel Quel do ensaio.
Guy Scarpetta, falando da escrita íntima, chama atenção para o jogo de máscaras que se revela no diário:

Lisant un journal, intime, on n´accède pas à un Profondeur, une Verité, un Secret, on entre au contraire dans tout un jeu de masques, de simulacres, de semblant, sensible dès qu´on passe au-del `du "pacte autobiographique".

Quando associamos a declaração de impossibilidade de manter um diário para publicação à escrita simultânea de "Soirées de Paris", Barthes escritor de diário aparece como tricheur, dissimulador, prestidigitador. Farsante autor de diário, obra a quem ele mesmo negara qualquer qualidade de "sinceridade". Mas a verdade é que Roland Barthes morre pouco depois, em fevereiro de 1980. Lembremos que escreve: "só posso salvar o diário com a condição de trabalhar até a morte".
Kafka, em seus diários – o maior desafio que se coloca a quem se interessa pelo gênero – deixou bem claro que jamais prometera dizer tudo.











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