Diana e as cavalgadas noturnas: magias de malefício segundo o Canon Episcopi no século X

May 30, 2017 | Autor: Larissa de Freitas | Categoria: Magic, Early Middle Ages (History)
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

LARISSA DE FREITAS

DIANA E AS CAVALGADAS NOTURNAS: MAGIAS DE MALEFÍCIO SEGUNDO O CANON EPISCOPI NO SÉCULO X

CURITIBA 2016

LARISSA DE FREITAS

DIANA E AS CAVALGADAS NOTURNAS: MAGIAS DE MALEFÍCIO SEGUNDO O CANON EPISCOPI NO SÉCULO X Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado em História. Orientador: Profa. Dra. Adriana Mocelim

CURITIBA 2016

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LARISSA DE FREITAS

DIANA E AS CAVALGADAS NOTURNAS: MAGIAS DE MALEFÍCIO SEGUNDO O CANON EPISCOPI NO SÉCULO X

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado em História.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________ Professora Doutora Adriana Mocelim Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________ Professor 2 (Titulação e nome completo) Instituição 2

Curitiba, ____ de ________ de 2016

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AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, agradeço a minha mãe Nilza dos Santos Silva por me apoiar quando pensava em desistir. Ao meu pai Carlos Roberto de Freitas, por incentivar meus hábitos de leitura que me trouxeram até aqui. Agradeço ao meu marido, Brendan Ian James Lyth por me ajudar nos momentos de maior ansiedade. Agradeço aos meus avós maternos Nerita Dias dos Santos e Jaime Dias da Silva por cuidarem tanto de toda a família. À minha avó paterna Luiza Schreiter de Freitas, por todo o carinho. Agradeço ao Professor Ronald Hutton, da Universidade de Bristol, por ler minha pesquisa e fazer necessários apontamentos nos tópicos relativos à magia. Agradeço a Professora Luiza Souza da Universidade Federal do Paraná, por me ajudar com a tradução do latim. Aos funcionários da Bayerische Staatsbibliothek pelo material sobre Regino de Prüm. À minha orientadora Professora Adriana Mocelim, por ler minha pesquisa com tanta atenção e me ajudar com tanto afinco. Ao Professor Alexandro Neundorf pela ajuda com a análise do discurso.

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Esto ha ocurrido y volverá a ocurrir, dijo Euforbo. No encendéis una pira, encendéis um laberinto de fuego. Si aqui se unieran todas las hogueras que he sido, no cabrían em la tierra y quedarían ciegos los ángeles. Esto lo dije muchas veces. (BORGES, 2010, p. 45-46, grifo do autor)

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RESUMO

A presente pesquisa busca analisar magia do ponto de vista dos clérigos do século X segundo o Canon Episcopi. O documento é parte de uma coleção canônica compilada por Regino de Prüm por volta do ano 906 d.C. e destinado aos bispos do período. Desde o reinado de Clóvis (481-511) houve certa aproximação entre a Igreja Romana e o Reino Franco; com a ascensão de Luís, o Piedoso (814-840) dá-se uma nova etapa de relações entre a Igreja e o Império Carolíngio, devido à crescente influência do episcopado. Busca-se analisar a razão da existência de documentos como o Canon Episcopi durante o século X tendo em mente a complexa relação entre a Igreja Romana – em particular os bispos – e o Império Carolíngio, bem como a visão dos clérigos medievais a respeito das práticas apresentadas no mesmo. Analisam-se, também, outros elementos presentes no documento e que fazem parte de um contexto mais amplo do imaginário medieval, a exemplo das cavalgadas noturnas e do culto à Diana. O primeiro capítulo busca apresentar o contexto do Reino Franco e sua relação com a Igreja Romana. O segundo capítulo faz a definição de magia segundo conceitos históricos e antropológicos, bem como o contextualiza a magia no século X. Por fim, há a análise do Canon Episcopi e dos elementos lá presentes. Palavras-chave: Idade Média. Magia. Canon Episcopi.

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ABSTRACT

The present research seeks to analyse magic from clergymen’s point of view according to the Canon Episcopi. The document is part of a canonic collection compiled by Regino of Prum around the year 906 BCE. Since the reign of Clovis (481-511) there was a certain approximation between the Roman Church and the Frankish Kingdom; with the rise of Louis the Pious (814-840) there is a new stage of relations between the Church and the Carolingian Empire, due to the growing influence of the episcopate. It searches to analyse the reason of the existence of documents such as the Canon Episcopi during the tenth century having in mind the complex relation between the Roman Church – particularly the bishops – and the Carolingian Empire, as well as the cleric’s view regarding practices presented therein. It also analyses other elements present in the document and that are part of the wider context of the medieval imaginary, such as the nocturnal cavalcades and the worship of Diana. The first chapter aims to present the Frankish Kingdom’s context and its relation to the Roman Church. The second chapter makes a definition of magic according to historical and anthropological concepts, as well as magic’s context in the tenth century. Lastly, there is the analysis of the Canon Episcopi and the elements present therein. Key-words: Magic. Middle Ages. Canon Episcopi.

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SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO....................................................................................................8

2

REINO FRANCO...............................................................................................12

2.1

A RELAÇÃO ENTRE A IGREJA E O REINO FRANCO....................................15

2.1.1

A Igreja

2.1.2

Império Carolíngio (800 – 888)

2.1.3

O Renascimento Carolíngio 22

2.2

O PAPEL DOS BISPOS.....................................................................................25

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MAGIA...............................................................................................................32

3.1

DEFINIÇÕES DE MAGIA..................................................................................32

3.2

A MAGIA NO SÉCULO X...................................................................................36

3. 3

CANON EPISCOPI.............................................................................................43

3.3.1

Análise do Canon Episcopi

45

3.3.2

Diana, deusa dos pagãos

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3.3.3

As cavalgadas noturnas

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CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................62

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REFERÊNCIAS...............................................................................................................64 FONTES PRIMÁRIAS.....................................................................................................68 APÊNDICE A – CANON EPISCOPI: TRADUÇÃO DA VERSÃO LONGA....................69 APÊNDICE B – CANON EPISCOPI: TRADUÇÃO DA VERSÃO CURTA....................71 ANEXO A – CANON EPISCOPI: ORIGINAL DA VERSÃO LONGA.............................72 ANEXO B – CANON EPISCOPI: ORIGINAL DA VERSÃO CURTA.............................73

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1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa busca analisar o Canon Episcopi, documento escrito por Regino de Prüm, por volta do ano 906. O documento trata de uma instrução aos bispos do período sobre como lidar com a prática de determinados tipos de magia. Assim sendo, o recorte do trabalho se situa na Europa do século X. O recorte espacial foi escolhido devido à natureza da fonte primária, que se dirigia a bispos de toda a Cristandade. O recorte temporal, por sua vez, foi escolhido devido à data na qual a fonte foi escrita, ou seja, cerca de 906 a.C. No entanto, para fins da análise da fonte, serão feitas breves comparações com narrativas cuja origem é de um período posterior ao recorte aqui determinado. Por meio da presente pesquisa busca-se responder a duas questões: por que havia a necessidade de documentos como o Canon Episcopi na Europa do século X? De que maneira os clérigos medievais viam as crenças contidas no documento? Ademais, tem-se como objetivo a análise de elementos presentes no Canon Episcopi, a exemplo do culto à Diana e as cavalgadas noturnas. Para tanto, o primeiro capítulo busca fazer a contextualização do período. Analisando o Reino Franco, contexto no qual o documento foi escrito, bem como a relação entre a Igreja e o Império Carolíngio nesse momento, já que o cristianismo romano e o Império Carolíngio começavam a influenciar-se mutuamente. O Canon Episcopi era destinado aos bispos; portanto, é relevante contextualizar também o papel dos bispos nesse período, sua relação para com a Igreja e os fiéis bem como para o Império Carolíngio. O segundo capítulo busca analisar a magia no século X. Primeiramente faz-se um panorama do conceito de magia segundo a antropologia e a história; em seguida, há uma contextualização da magia no século X e, por fim, dá-se a análise do Canon. A princípio, analisam-se aspectos gerais do documento para, posteriormente, partir para a análise de elementos específicos contidos no mesmo, como o culto à Diana e as cavalgadas noturnas. Sendo assim, é relevante que se faça uma discussão teórico-conceitual, a fim de esclarecer os procedimentos utilizados para a realização da pesquisa. Primeiro, é

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relevante discutir o tipo de fonte a ser utilizada. Trata-se de um documento escrito, parte de uma coleção canônica do início do século X, compilada por Regino de Prüm. Segundo Conde (1997, p. 276): por coleções canônicas entende as ‘recompilações de textos que são normativos para a disciplina da Igreja’, mas em um sentido amplo, incluindo no normativo tudo o que faz autoridade, auctoritativus na expressão de Bucardo de Worms. Ocupa-se logo das não sistemáticas e das sistemáticas, desvendando os problemas de fundo e de forma (tradução nossa). 1

Entretanto, é necessário que haja alguns cuidados com esse tipo de fonte. Segundo Moore (2011, p. 15): a lei episcopal é às vezes pensada como nada mais do que uma “fonte normativa”, com somente uma relação tênue com a realidade social. Ela é evitada por alguns acadêmicos que estão em busca de uma “representação objetiva” do que realmente acontecia no passado. De fato, leis episcopais e reais devem ser usadas com cuidado. O historiador legal Alan Watson nos lembra de que leis não devem ser usadas acriticamente, como descrição de uma sociedade. Uma razão óbvia é o fato de que leis são frequentemente emprestadas, como encontramos tão frequentemente nesse período. A lei era aceita de outras culturas, e também era emprestada, por assim dizer, do passado. [...] Na configuração de concílios episcopais, bispos eram capazes de se dirigir aos poderosos da sociedade, se baseando em séculos de tradição legal e em doutrinas sociais lá contidas (tradução nossa). 2

A metodologia a ser utilizada se volta para uma análise qualitativa acerca do documento, por meio da análise do discurso. Convém aqui fazer uma definição de discurso: o discurso são as combinações de elementos linguísticos (frases ou conjuntos constituídos de muitas frases), usadas pelos falantes com o propósito de 1

“Por colecciones canónicas entiende las “recopilaciones de textos que son normativos para la disciplina de la Iglesia”, pero en un sentido amplio, incluyendo en lo normativo todo lo que hace autoridad, auctoritativus en la expresión de Burchardo de Worms. Se ocupa luego de las no sistemáticas y de las sistemáticas, deslindando los problemas de fondo de forma (CONDE, 1997, p. 276). 2 “Episcopal Law is sometimes thought of as nothing more than a ‘normative source’, with only a tenuous relation to social reality. It is avoided by some scholars who are in search of an ‘objective representation’ of what actually happened in the past. Indeed, Episcopal and royal law should be used with caution. The legal historian Alan Watson reminds us that law should not be used uncritically as a description of a society. One obvious reason is the fact that law is often borrowed, as we find so often in this period. Las was accepted from other cultures, and was also borrowed, so to speak, from the past. […] In the setting of Episcopal councils, bishops were able to address the powerful in society, drawing on centuries of legal tradition and the social doctrines contained therein” (MOORE, 2011, p. 15).

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exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo (FIORIN, 2004, P. 11).

Tendo em mente a concepção de discurso, busca-se analisar unidades específicas dentro do mesmo. Segundo Foucault (2008, p. 30): a análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui.

Foucault (2008) ainda argumenta que, no contexto da história, o documento mudou – e continua a mudar – de função. Assim, não cabe mais ao historiador estabelecer valor ao documento ou julgá-lo. Segundo o autor: o documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2008, p. 7).

Para compreender esse conjunto de relações encontrados no documento, em particular os elementos relacionados ao imaginário – conceito que será analisado adiante –, a presente pesquisa também utiliza elementos da antropologia histórica. O procedimento aqui utilizado, no entanto, busca manter o elemento diacrônico característico da ciência histórica. Segundo Burguière (2001, p. 131): como o etnólogo – que utiliza a distância que percebe entre sua própria cultura e a de seu terreno de observação para se desembaraçar de suas próprias categorias e reconstruir um sistema lógico da sociedade que estuda – o historiador pode explorar o caráter parcelar, não construído, dessas fontes brutas, para encontrar, para lá da realidade manifesta, os mecanismos e a lógica que explicam determinada conjuntura – o que se chama uma época – ou determinada evolução. O mesmo procedimento pode ser aplicado às fontes qualitativas ou literárias, na medida em que leva o historiador a interessar-se sistematicamente pelo que os discursos dominantes de uma sociedade dissimulam ou desprezam.

Para a análise do documento proposto busca-se, portanto, analisar unidades particulares contidas no mesmo. A antropologia histórica pode vir a ser usada para esclarecer essas mesmas unidades e contextualizá-las.

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Ademais, busca-se analisar elementos contidos no documento como sendo parte do imaginário medieval. Quanto ao imaginário: o imaginário transborda o território da representação e é levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra. O imaginário constrói e alimenta lendas e mito. Podemos defini-lo como o sistema de quimeras de uma sociedade, de uma civilização que transforma a realidade em visões ardentes do intelecto (LE GOFF, 2011, p. 12).

As strigae, Diana e as cavalgadas noturnas fazem parte de uma significativa tradição medieval. Portanto, cabe analisar esses sistemas de quimeras como parte do imaginário que, segundo Patlagean (apud LE GOFF, 2011, p. 11) “não se trata de outra coisa senão do campo completo da experiência humana, desde o mais coletivamente social até o mais intimamente pessoal”. Por fim, os principais autores aqui utilizados são Russell (1995), cuja obra contém a análise de diversos elementos contidos no Canon Episcopi e a contextualização da magia no período; Flint (1994) para um contexto de magia da Idade Média, assim como elementos contidos no Canon; Kieckhefer (1976, 1995) para um contexto mais amplo de magia na Idade Média, além de um comentário sobre as caçadas selvagens; Hutton (2003, 2014) para a definição de magia e uma análise das cavalgadas noturnas. Para a definição de magia utiliza-se Frazer (2009), Durkheim (1996), Malinowski (1988) e Hutton (2003). Para a contextualização do período a ser estudado foram utilizados Giordani (1985, 1993), que fala a respeito dos Francos; Ribeiro (1998) a respeito da relação entre Igreja e Estado e o papel dos bispos nesse contexto; Baschet (2006) fala do Império Carolíngio e do Renascimento Carolíngio; Favier (2004) para uma análise sobre a figura de Carlos Magno e Moore (2011) para uma análise a respeito dos bispos no período estudado. A fonte primária encontra-se na obra de Russell (1995), em uma transcrição do original em latim; utiliza-se, aqui, uma tradução nossa 3. 2 REINO FRANCO

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Os originais em latim da versão longa e da versão curta encontram-se nos anexos A e B. As traduções, por sua vez, estão presentes nos apêndice A e B.

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O presente capítulo busca relatar de forma breve a história do Reino Franco, mostrando de que forma, aos poucos, o poder temporal passou a se fundir com o poder espiritual. O povo franco, apesar de ser o que mais exerceu influência nos acontecimentos seguintes às invasões bárbaras, é um povo cuja origem é obscura. Giordani (1993, p.84) diz: ”com efeito, a História primitiva das tribos francas é tão misteriosa, tão envolta em trevas que é necessária a maior prudência nesse terreno”. Giordani cita Gregório de Tours (1993, p. 85) e diz que o povo franco teria tido origem na Panônia, o que não deixa de ser uma informação problemática, pois ela é, evidentemente, vaga. Sidônio Apolinário citado por Giordani (1993, p. 87) dizia que “do alto da cabeça desce sobre a fronte uma cabeleira loura [...]. Os olhos são verdes e brancos e a pupila vidrosa [...] Desde a infância têm pela guerra a paixão que temos na idade madura”. A incorporação dos francos ao Império Romano teria se iniciado na segunda metade do século III, quando foram utilizados em larga escala no exército romano (GIORDANI, 1985, p. 87). Aos poucos, por meio de invasões armadas, foram se aproximando da atual fronteira franco-belga. No final do século V, Clóvis conquista a maior parte da Gália e se converte ao cristianismo romano. Outros reis germânicos haviam sido convertidos ao cristianismo de Ário4, que eram considerados heresia. Clóvis, ao se converter ao cristianismo romano, tornou-se um aliado potencial da Igreja Romana, que estava em processo de fortalecimento (PERRY, 2002, p. 155). Já no século VIII, houve a ascensão de Carlos Martel. Carlos, filho bastardo de Pepino II e Alpais, ficou conhecido por sua liderança e capacidade como guerreiro. Após a sua ascensão, empreendeu uma série de vitórias, a mais conhecida delas sendo a luta contra os sarracenos. Eudes, duque da Aquitânia, sentindo o avanço dos muçulmanos, pediu ajuda a Carlos Martel, que obteve a vitória em 732, na batalha de Poitiers. Ainda que tenha 4

“Ário parte da doutrina trinitára de Orígenes, tradicional em Alexandria, que considerava o Pai, o Filho e o Espírito Santo como três hipóstases (isto é, realidades individuais subsistentes) distintas entre si e subordinadas uma à outra, embora participando de uma única natureza divina. [...] Ário está convencido de que, se o Filho é coeterno ao Pai, deve ser não-gerado como Ele. Pela razão de não poder haver dois não-gerados, o Filho, embora anterior a todos os tempos e a toda criação, é posterior ao Pai, do qual recebe o ser: houve um momento em que o Filho não existia [...] o Filho é a única criatura ( ktisma, poiema) criada diretamente do Pai; todo o resto da criação é obra direta do Filho pela vontade do Pai” [...]. Quando do Concílio de Niceia (325) “foi imposta uma fórmula de fé onde eram condenadas as proposições arianas fundamentais e o Filho era definido homoousios (da mesma substância, consubstancial) com o Pai” (SIMONETTI, 2002, p. 149-153).

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combatido os muçulmanos, neste momento, ainda não havia uma ligação estreita entre a Igreja e Carlos Martelo. Segundo Giordani (1985, p. 175): convém aqui lembrar brevemente a posição de Martelo em face da Igreja. Prestou auxílio a S. Bonifácio na obra missionária deste em terras germânicas e, por isso, foi especialmente louvado por Gregório III. Mas os bens eclesiásticos foram pilhados sem a menor cerimônia para benefício dos partidários fiéis de Carlos Martelo. [...] Compreende-se que a memória de Martelo tenha despertado nos meios eclesiásticos da Gália amargas recordações.

Carlos Martelo morreu em 741, dividindo seus territórios entre seus filhos. Giordani (1985, p. 176) comenta a ideia de que Carlos Martelo teria sido condenado ao inferno por essa pilhagem, ideia essa que veio a perdurar até um século após sua morte. Pepino, o Breve e Carlomano, sucessores de Carlos Martelo, eram fortes aliados. No entanto, em 747, Carlomano renuncia ao poder e decide retirar-se para um mosteiro, entregando seus territórios a Pepino. Restavam, assim, como senhores do reino dos francos Pepino, o Breve e Childerico III – rei instalado por Carlomano e Pepino após a morte de seu pai, visando manter uma aparência de legitimidade. No entanto, Pepino aspirava ao título de rei. Após uma hábil manobra de sua parte, o papa Zacarias acaba por ordenar que ele seja feito rei, por exercer o poder de fato. Pepino, em 751, convocou uma assembleia geral e ali foi declarado rei. Depois disso o bispo Vinfrido, depois de sua morte canonizado como São Bonifácio, fez sua sagração, legitimando ainda mais sua autoridade e conferindo à nova dinastia um caráter religioso (GIORDANI, 1985, p. 177). Pepino se aproximou ainda mais da Igreja Romana ao proteger o incipiente papado contra os lombardos, doando, em seguida, as terras conquistadas para Estevão II. Essa doação fez com que o papa fosse governante dos territórios entre Roma e Ravena, que passavam a ser conhecidos como Estados Pontificiais (PERRY, 2002, p. 155). Essa nova aquisição serviu para demonstrar o crescente poder da Igreja com sede em Roma. Segundo MacCulloch (2010, p. 351): embora esses papas subsequentes tenham descoberto que eles haviam ajudado a criar uma instituição impossível de ser controlada de Roma, a participação do papa na fundação do império havia sido uma dramática

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asserção da nova autoconfiança do papado em seu papel cósmico e sinalizou a vitalidade do Ocidente Latino (tradução nossa). 5

Antes de morrer, em 768, Pepino divide o reino entre Carlomano e Carlos Magno, seus dois filhos. Contudo, Carlomano morre poucos anos depois de ser consagrado, em 771. Carlos Magno, então, se apossa dos territórios que seriam dos filhos de Carlomano. No dia de Natal do ano 800, houve a coroação de Carlos Magno como imperador dos romanos. Existem diversas análises sobre o significado da coroação. Giordani (1993, p. 197) menciona a opinião de alguns contemporâneos: os Anais de Lorsch sugeriram que a coroação implicava na transferência do poder imperial do Oriente para o Ocidente, dos gregos para os francos; outros, por sua vez, que implicava na restauração do Império do Ocidente. Perry (2002, p. 157) aponta o reflexo cultural do evento: a coroação de um governante germânico como imperador dos romanos pelo chefe da Igreja representou a fusão de elementos germânicos, cristãos e romanos, que é a característica essencial da civilização medieval. Essa fusão de tradições foi também evidente no plano cultural, pois Carlos Magno, um reiguerreiro, mostrou respeito pelo conhecimento clássico e pelo cristianismo, tradições que não eram germânicas.

Além disso, segundo Baschet (2006, p. 72), o evento “significa também uma emergência do papado como verdadeiro poder. Ao longo do século IX, graças à aliança com o imperador carolíngio, o papa começa a exercer um poder considerável nos negócios ocidentais”. Assim, esse contexto vem sinalizar um crescente aumento do poder político da Igreja Romana, processo este que se iniciou muito antes, com a conversão de Clóvis. O tópico seguinte busca analisar essa relação. 2.1 A RELAÇÃO ENTRE A IGREJA E O REINO FRANCO A aproximação entre a Igreja e o reino se deu aos poucos. Ela iniciou-se timidamente com a conversão de Clóvis ao cristianismo romano e foi se intensificando 5

“[...] although these subsequent popes had discovered that they had helped to create an institution impossible to control from Rome, the pope’s participation in the empire’s foundation had been a dramatic assertion of the papacy’s new self-confidence in its cosmic role, and it signaled the returning vitality of the Latin West” (MACCULLOCH, 2010, P. 351), .

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até os tempos de Carlos Magno. Diversos fatores vão influenciar essa relação. O presente tópico busca analisar alguns deles. 2.1.1 A Igreja Ainda que o Império Romano do Ocidente tenha sido dissolvido “a idéia de um grande império permaneceu presente no imaginário da sociedade europeia por muitos séculos” (RIBEIRO, 1998, p. 31). Houve, então, a ideia do ressurgimento desse império: em certa medida, a Igreja romana acreditou que poderia ser a arquiteta desse império cristão, cujo poder viesse cumprir o papel unificador antes desempenhado por Roma. Desse modo, a idealização de um império religioso universal não surgiu por mero acaso na Alta Idade Média, mas foi transmitida ao homem medieval pela cultura latina. (RIBEIRO, 1998, p. 31)

Com o contexto de instabilidade do Baixo Império Romano que, devido a um complexo processo político, culminou nas invasões bárbaras, a Igreja teve um papel relevante: “como única instituição estável, ancorada em sua organização, herdada de Roma, e no prestígio de sua doutrina” (RIBEIRO, 1998, p. 32). Ribeiro (1998, p. 32) menciona as distinções feitas por Arcari ao apresentar as fases históricas que levaram ao estabelecimento do império cristão. Essas são: o estágio cenobítico, a experiência episcopal e o império religioso. À época da fase cenobítica, caracterizada pela comunidade concentrada nos mosteiros, a ação do clero representou um papel importante na formação de um império baseado na religião, pois “a ação evangelizadora e civilizadora era um meio de alcançar o objetivo do império religioso” (RIBEIRO, 1998, p. 32). Ainda segundo Ribeiro (1998, p. 32): “ao mesmo tempo verificou-se a sacralização do poder temporal, isto é, a Igreja revestiu de caráter sagrado o poder civil, atribuindo-lhe função religiosa. Em conseqüência, estreitaram-se as relações entre os poderes religioso e civil”. O autor considera o projeto de Gregório Magno no final do século VI e início do século VII como “o primeiro ensaio de unidade religiosa da Europa” (RIBEIRO, 1998, p. 32). Frente à ameaça de desintegração “a Igreja lhe deveu a solução salvadora, que

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consistia em reunir a cristandade ocidental em torno da Sé romana” (RIBEIRO, 1998, p. 32). Ademais, com a atribuição de certo nível de sacralidade ao poder civil, a ideia de um império cristão ganhava consistência. A segunda fase da Igreja-Estado é denominada episcopal, pois é caracterizada pela atividade dos bispos tanto na vida religiosa quanto na vida política do Ocidente. Ribeiro (1998, p. 33) diz que: “muitos deles exerceram importantes cargos junto aos soberanos, como a figura de Isidoro de Sevilha, conselheiro do rei na Espanha visigótica”. A fase do império religioso, por sua vez, deu-se com a criação do Estado Pontifício, no século VIII, que contou com o apoio dos francos. Segundo Ribeiro (1998, p. 33): “a aproximação da Igreja com os francos ocorreu por volta do ano 750, quando se agravaram as divergências entre Roma e Bizâncio, decorrentes de vários motivos, entre eles o iconoclasmo”. Diante da ameaça lombarda, o papa Estêvão II (752-757) encontrou proteção junto de Pepino, o Breve. O papa receberia as terras tomadas pelos lombardos na Itália, dando a Pepino e seus descendentes o título de protetores da cidade e da população de Roma. Além disso, Pepino tirou Childerico III do poder e coroou-se rei, sendo legitimado pela unção de São Bonifácio. Dada a unção, Pepino prestou ao papa Estêvão II um juramento no qual prometia prestar ajuda a Igreja romana. Sobre essa relação, Ribeiro (1998, p. 35) coloca que: ao realçar a dignidade da família carolíngia, atribuindo-lhe caráter sagrado, a Igreja buscava proteção em momento especialmente difícil – a ameaça dos lombardos à Roma. Dessa maneira, a sagração constituía a um só tempo fator de fortalecimento e de limitação do poder real.

Sobre a sagração, Favier (2004 p. 357) comenta: “a unção da sagração reforçou a idéia de uma missão real para com essa Igreja, missão que vai muito além da simples intervenção militar contra o reino lombardo, em proveito do papa”. Deste modo, as relações entre o monarca e a Igreja de Roma foram estreitadas. Carlos Magno, melhor do que Pepino, compreendeu seu papel perante a Igreja: ele coloca sua autoridade a serviço da Igreja e das definições dogmáticas formuladas por esta, mas entende que a unidade de fé é um dos cimentos da

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unidade política. Em outras palavras, o rei franco é responsável diante de Deus por um reino cristão, e o reino cristão só pode ser um (FAVIER, 2004, p. 359).

. A “doação de Constantino” tem um papel importante em relação a esse contexto. A Doação de Constantino, ou Constitutum Constantini, é um documento que se acreditava ter sido escrito por Constantino I e foi majoritariamente acreditado durante toda a Idade Média. Segundo Giordani (1971, p. 297) Otão III, em 1001, proclamou que o documento era um “escrito imaginário e falso”. Dante Alighieri, por outro lado, aceitou sua autenticidade e até mesmo refere-se a ele em sua Divina Comédia. Somente durante o século XV foi-se comprovado que o documento era forjado. Nicolau de Cusa (1432) e Lourenço Valla (1440) duvidaram da autenticidade do documento. Posteriormente, em 1450, o bispo inglês Reinald Peacock comprovou de maneira definitiva a falsidade do documento (GIORDANI, 1971, p. 298) Ainda que ele não seja autêntico, a Doação de Constantino pode oferecer informações valiosas: nós podemos chamá-las de falsificações, mas nossas atitudes em tais questões estão condicionadas pela historiografia humanista que emergiu na Itália no século XV. Isso nos leva a esperar que a nossa história deva ser baseada em evidências cuidadosamente checadas e autenticadas, ou ela simplesmente não pode existir. Há séculos, porém, as pessoas viviam em sociedades que não tinham documentos suficientes para provar o que eles apaixonadamente acreditavam ser verdade: a única solução era criar a documentação que faltava (tradução nossa).6

O documento é constituído de duas partes: a confessio e a donatio. Na primeira parte, Constantino relata sua suposta cura e seu batismo pelo papa Silvestre; na segunda cita os privilégios oferecidos a Silvestre e seus sucessores. Assim, depois de contar uma história sobre sua suposta cura e conversão ao cristianismo, Constantino I garante aos papas não somente o poder sobre a Igreja, mas também o poder temporal sobre os territórios do império do Ocidente. 6

“We can call them forgeries, but our attitudes to such matters are conditioned by the humanist historical scholarship which emerged in Italy in the fifteenth century. That leads us to expect that our history must be based on carefully checked and authenticated evidence, or it simply cannot exist. For centuries before, though, people lived in societies which did not have enough documents to prove what they passionately believed to be true: the only solution was to create the missing documentation” (MACCULLOCH, 2010, p. 351).

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A data de sua composição é incerta, mas, em geral, pensa-se ter sido escrito antes da coroação de Carlos Magno. MacCulloch (2010, p. 351) diz que esse falso documento foi visto pelo clero como um manifesto de como a Igreja poderia ser capaz de controlar a sociedade como um todo. Franco Júnior (2001, p. 71), por sua vez, diz que: [...] a Igreja constituiu-se no arcabouço natural do Império Carolíngio e de suas pretensões imperialistas e unitárias. Mais ainda, somente ela – argumentando com a Doação de Constantino – poderia transformar um rei germânico como Carlos Magno em “imperador dos romanos”.

Ainda que historiadores como MacCulloch (2010) acreditem na importância da Doação de Constantino no processo de desenvolvimento do poder temporal do papado, Giordani (1971, p. 297) recusa a importância da Doação de Constantino nesse contexto. Ele aponta os já citados fatores que demonstram esse desenvolvimento e, por fim, descarta a relevância do Constitutum Constantini. Ademais, a Igreja é incumbida de manter a legitimação do poder imperial por meio da consagração; além disso, ela é responsável por fazer com que as decisões tomadas pelo rei sejam vistas sob a mais favorável luz, “um príncipe cristão, agindo conforme a vontade divina” (BASCHET, 2006, p. 72). Em troca, a Igreja ganha proteção, pois ganha certificados que a conferem autonomia fiscal e judiciária de suas terras, bem como o dízimo que, segundo Baschet (2006, p. 72), seria uma criação carolíngia de 779, que serve para a manutenção do clero. O clero, por sua vez, também tinha uma função específica. De acordo com Franco Júnior (2001, p. 71): “os clérigos participavam então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, os cânones ganhavam força de lei.” Assim, pode-se ver que após diversas fases históricas da constituição da Igreja de Roma houve certo estreitamento entre as relações entre a Igreja de Roma e o Reino Franco. Essa relação pode ser vista por meio da crescente aproximação entre os papeis espirituais e temporais detidos pelos clérigos da Igreja romana. 2.1.2 Império Carolíngio (800 – 888)

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O Império Carolíngio é conhecido por ser uma nova tentativa de afirmação do Ocidente, que havia sido desagregado após a queda do Império Romano. Ele era formado a partir da ideia de unidade vinda do Império Romano. O papel do cristianismo foi fundamental nesse contexto. Quanto à administração das províncias, no entanto, é certo que ela não era tão organizada quanto se imagina. Baschet (2006, p. 73) diz: “quanto à imagem de uma administração bem organizada e fortemente centralizada, como sugerem as capitulares (nome dado às decisões imperiais transmitidas para as províncias), ela é, sem dúvida, ilusória.” De acordo com o autor, o Império era dividido em cerca de trezentos pagi, os quais eram administrados pelos condes, enquanto as fronteiras eram defendidas por duques ou marqueses. Assim, a aristocracia era responsável pelo controle das províncias. O grupo aristocrático ficava, assim, subordinado ao soberano. Contudo, é fato que o Império Carolíngio proporcionou uma aliança entre o reino e a Igreja do ocidente, o que fez com que o alcance desse controle fosse ampliado. Baschet (2006, p. 72) diz: de resto, talvez resida nisso o significado maior do Império Carolíngio: uma primeira afirmação do papado e, mais amplamente, da Igreja Ocidental. Se, mesmo antes, a Igreja havia se apoiado no poder real, esforçando-se para institucionalizar e acentuar a distância que o separava do grupo aristocrático, agora é o papa que consagra o poderio da dinastia carolíngia e dela recebe, em troca, a confirmação de sua base territorial e material. O momento carolíngio repousa, assim, sobre uma aliança entre o Império e a Igreja, que assegura, através de uma troca equilibrada de serviços e apoios, o desenvolvimento conjunto de um e de outro.

Baschet (2006, p. 72), então, prossegue explicando o papel do imperador e da Igreja nesse contexto. O imperador constitui sua base de ação por meio da Igreja. Ele tem o poder de nomear bispos e abades e possui uma ampla rede de cento e oitenta igrejas-catedrais e cerca de setecentos mosteiros. Esses clérigos que estão ao seu alcance prestam-lhe ajuda, oferecendo sua influência e sua erudição. A respeito disso, Franco Júnior (2001, p. 71) escreve:

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o monarca presidia os sínodos, punia os bispos, regulamentava com eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, intervinha mesmo em questões doutrinais. Os bispos eram nomeados pelo soberano, contrariamente à tradição canônica, mas o fato não era considerado uma usurpação, e sim um serviço prestado pelo monarca à Igreja, quase um dever do cargo. Suas conquistas territoriais abriam caminho para a cristianização dos saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e boêmios. Em virtude da crescente extensão do Império, ele instituiu muitas paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses.

Ainda segundo o autor, o resultado desse processo foi o enriquecimento da Igreja, particularmente em relação às propriedades de terra. O Império Carolíngio também teve grande importância em alguns aspectos relativos à organização da Igreja. Isso se deu na figura de Carlos Magno que, segundo Franco Júnior (2001, p. 72) “considerava-se o grande defensor da Igreja, alguém investido de verdadeiro sacerdócio, o responsável pela direção material e sobretudo espiritual de seu povo”. Isso, segundo autores como Tenbrock, reflete a influência cristã presente no pensamento de Carlos Magno que, inclusive, teria lido a obra Cidade de Deus, de Santo Agostinho. Tenbrock apud Giordani (1971, p. 65) coloca que: a missão mais importante do governante cristão é, portanto, a extensão e realização sobre a terra da Cidade de Deus, cujo centro religioso está em Roma, sede do papa, o supremo pastor cristão. Nesta perspectiva da História que Carlos adotou, a guerra contra os pagãos e seu domínio por um governante cristão constituem o cumprimento de uma missão divina, pois servem à extensão da Cidade de Deus, se os domínios se convertem ao cristianismo.

Evidentemente, é impossível mensurar a influência dessa obra na mentalidade de Carlos. Ainda assim, trata-se de uma possibilidade viável, bem como um exemplo da mistura de tradições culturais tão distintas quanto a tradição germânica e a tradição cristã, que agora começam a influenciar-se mutuamente. Ainda sobre o papel desempenhado por Carlos Magno em relação à Igreja, Franco Júnior cita Halphen (2001, p.72): “há uma confusão sistemática dos dois domínios e o papel do chefe espiritual é talvez o que Carlos Magno desempenha de melhor boa vontade.” Carlos Magno, inclusive, se encarrega de papeis que são, geralmente, representados pela Igreja, a exemplo do estabelecimento dos lugares de culto e

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canonizações. Segundo Favier (2004, p. 363) “Carlos proíbe também os cultos suspeitos, condena os ‘falsos doutores’ e proíbe a veneração de ‘falsos nomes de mártires e das memórias duvidosas de santos’”. Sobre esses aspectos, Favier (2004, p. 363) cita o monarca: que os oratórios sejam instalados nos claustros: aí se pode celebrar o ofício mesmo à noite... Que não se erijam monumentos nos caminhos... Que só se venerem aqueles que foram lembrados em razão de sua paixão e dos méritos de sua vida.

O autor, assim, aponta esse como um dos fatores que fez com que Carlos Magno demonstrasse preocupação com a questão do monasticismo. Houve um apoio do imperador a atuação dos beneditinos “que aos seus olhos estavam caóticos e decadentes (MACCULLOCH, 2010, p. 354, tradução nossa). 7 Isso trouxe para as comunidades monásticas beneditinas, papeis que não faziam parte da Regra de São Bento, mas que, hoje, são elementos pelos quais os monges daquele período são conhecidos, a exemplo da erudição, da humildade e da organização de suas comunidades: nenhum dos papeis de um mosteiro beneditino que acabaram de ser descritos – erudição, intercessão eucarística ou engenharia social – tiveram qualquer papel ou receberam qualquer menção na Regra de S. Bento. Entretanto, em razão deles, os séculos nove ao onze foram uma idade de ouro para os mosteiros da Regra; a sobrevivência da civilização europeia teria sido inconcebível sem mosteiros e conventos. [...] A visão de ordem e regularidade que os beneditinos representavam era justamente o que os governantes da idade carolíngia estavam buscando (MACCULLOCH, 2010, p. 358-359, tradução nossa). 8

O tópico seguinte busca analisar o movimento responsável pelo apoio aos mosteiros, o chamado Renascimento Carolíngio. 2.1.3 O Renascimento Carolíngio 7

“Which to his eyes were chaotic and decadent” (MACCULLOCH, 2010, p. 354). “None of the roles of a Benedictine monastery just described – scholarship, eucharistic intercession or social engineering – had played any part or received any mention in the Rule of St Benedict. Nevertheless, because of them, the ninth to eleventh centuries were a golden age for monasteries of the Rule; the survival of European civilization would have been inconceivable without monasteries and nunneries. […] The vision of order and regularity which the Benedictines represented was just what the rulers of the Carolingian age were looking for” (MACCULLOCH, 2010, p. 358-359). 8

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A Gália se encontrava decadente logo quando Carlos Magno assumiu o poder. Dizia-se que o enfraquecimento político sofrido pelos merovíngios era somente um reflexo de uma decadência geral que se manifestava também em outras áreas, como as letras, as artes e, inclusive, a vida religiosa (GIORDANI, 1971, p. 200). Carlos Magno, no entanto, procurou reverter essa situação: Carlos Magno procurou instruir o clero na leitura das Sagradas Escrituras e dos textos dos Padres da Igreja – os grandes teólogos dos primeiros séculos do catolicismo –, a fim de que pudesse contar com auxiliares administrativos mais eficientes (RIBEIRO, 1998, p. 39).

Esse movimento foi comparado ao florescimento cultural proporcionado pela Renascença do século XV, de modo que é chamado de Renascimento Carolíngio. Sobre o Renascimento Carolíngio, Giordani cita Calmete (1971, p. 201): a Renascença carolíngia iria marcar um degrau, estabelecer, na sequência dos tempos, uma espécie de bastião sobre o qual a inteligência poderia apoiar-se para conduzir a luta contra a barbárie do espírito. Em um sentido, ela foi, talvez, mais importante que a Renascença, infinitivamente mais brilhante, do século XV. Pela vontade do soberano e pelas próprias condições em que se realizou, impregnada do Cristianismo, ela iria tocar, por séculos, o Cristianismo inseparável de toda a atividade intelectual do Ocidente.

Tanto Giordani (1971, p. 201) quando MacCulloch (2010, p. 352) mencionam a Capela Palatina, construída por Carlos Magno em sua capital – Aachen, ou Aix-laChapelle. Ela foi inspirada pela igreja São Vital em Ravena e hoje se encontra dentro de uma catedral. Autores como Baschet (2006, p. 74), Giordani (1971, p. 201), MacCulloch (2010, p. 352) e Perry (2002, p. 157) ressaltam a importância das cópias de texto, que impediam que um único manuscrito restasse e fosse extraviado ou danificado. Assim foram preservados não somente escritos cristãos, mas também obras da literatura clássica. Uma caligrafia foi desenvolvida para esse processo, a chamada “minúscula carolíngia” (Carolingian minuscule), uma letra menor e mais elegante que permitia que os manuscritos fossem escritos de forma mais rápida e de maneira mais legível.

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A manutenção dos textos gerou outra conseqüência: a conservação do latim. Baschet (2006, p. 75) diz: em um momento em que a língua latina evolui de modo diferente segundo as regiões, os clérigos carolíngios tomam uma decisão que sela o destino linguístico da Europa. Eles optam por restaurar a língua latina, não exatamente em sua pureza clássica, mas ao menos em sua versão corrigida, ainda que simplificada. Eles consideram esta escolha indispensável à transmissão de um texto bíblico correto e à compreensão dos fundamentos do pensamento cristão. Mas, ao mesmo tempo, eles reconhecem que as línguas faladas pelas populações distanciam-se inexoravelmente do bom latim, a ponto de recomendarem que os sermões sejam traduzidos para as diferentes línguas vulgares de suas audiências. Assim, eles abrem a via ao bilinguismo que caracteriza toda a Idade Média, com, de um lado, uma multiplicidade de línguas vernáculas faladas localmente pela população e, de outro, uma língua erudita, aquela do texto sagrado e da Igreja, tornada incompreensível para o comum dos fiéis. Essa dualidade lingüística aprofunda, então, o fosso entre os clérigos e os laicos, assegurando, ao mesmo tempo, uma unidade marcante à Igreja ocidental.

As miniaturas também são expressão da arte carolíngia. Miniaturas, ou iluminuras, são as imagens decorativas presentes nos manuscritos. Trata-se de um tipo de arte reservado às aristocracias do período. Giordani (1971, p. 263) cita algumas escolas e oficinas daquele período que eram conhecidas por realizarem aquele tipo de trabalho; estas são as escolas de Reims, de Tours, de Metz, a escola franco-saxônica e o scriptorium de S. Gall. Também na Literatura se destacam alguns autores desse período. Entre eles, talvez o mais conhecido tenha sido Alcuíno (735-804). Ele nasceu em Yorkshire, na Inglaterra, e fez seus primeiros estudos em York. Em 781 encontrou Carlos Magno, em Parma e pede que organize uma biblioteca em Aix-la-Chapelle. A partir disso fica fazendo parte da corte de Carlos Magno, até que decide se retirar para a abadia de São Martinho de Tours (GIORDANI, 1971, p. 207). Alcuíno foi escritor, tendo obras sobre arte, filosofia e teologia, baseando-se na obra de Santo Agostinho. Além disso, ele também foi poeta, com os seus Carmina, que contêm algumas inovações na métrica e forma (GIORDANI, 1971, p. 207). O Renascimento Carolíngio não durou muito. Ele vai até o reinado de Luís, o Piedoso (814-840), mas, com sua morte, o império se desestabiliza. A partilha de Verdun, em 843, divide o Império entre seus três filhos. As incursões normandas,

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somadas às pressões fronteiriças e aos problemas internos fazem com que o controle das províncias seja dificultado. O imperador não consegue obter a fidelidade da aristocracia encarregada do controle das províncias, de modo que o poder central se enfraquece. Essa aristocracia que era responsável pela proteção das províncias, desde o século IX erigia suas próprias torres ou castelos e faziam a tentativa de exercer um poder autônomo. Com a morte de Carlos, o Gordo, em 888, ninguém se preocupa com sua sucessão (BASCHET, 2006, p. 77). O Renascimento Carolíngio, porém, serve para exemplificar a aliança entre o poder espiritual e o poder real. Baschet (2006, p. 78) lista diversos elementos que sofreram mudanças com esse movimento: através de sua aliança com o reino, depois Império, dos francos, a Igreja consolida sua organização e lança bases de sua posição dominante no seio da sociedade (dízimo, reforma dos cabidos das catedrais, reforço dos grandes monastérios, unificação litúrgica, fixação e difusão dos textos de base e dos instrumentos gramaticais indispensáveis para a manutenção de uma unidade lingüística erudita da cristandade, afirmação da autoridade romana, definição das regras do casamento e do parentesco).

Assim, o Renascimento Carolíngio se mostra não somente como um movimento cultural que influenciou diversos aspectos da cultura medieval. Ele também é um reflexo da aliança entre a Igreja e o Império Carolíngio, que proporcionou o aumento da erudição do clero, bem como a propagação da cultura cristã. 2.2 O PAPEL DOS BISPOS Depois de discutir a relação entre a Igreja romana e o Império Carolíngio e o aumento do poder temporal da Igreja que decorreu desse processo, também é relevante discutir o papel dos bispos nesse contexto. É ponto pacífico que a maior parte do episcopado vinha de famílias ricas. No entanto, essa origem aristocrática não era vista com maus olhos, mas “como um pano de fundo apropriado para alguém que poderia controlar uma comunidade bem como governar seu culto religioso” (MOORE, 2011, p. 13, tradução nossa). 9 9

“As an appropriate background for someone who could rule a community, in addition to governing its religious cult” (MOORE, 2011, p. 13).

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No âmbito da administração, os bispos haviam sido encarregados de dirigir o clero e os fieis da sua localidade. Assim, os bispos que tinham sua sede na capital de cada província detinham certa proeminência sobre os demais bispos daquela circunscrição (FOURNIER apud GIORDANI, 1971, p. 308). O prestígio dos bispos cresceu e isso os tornou “os verdadeiros protetores da população em todos os domínios” (GIORDANI, 1971, p. 308). Os bispos herdaram não só o papel de protetores, mas também um papel quase que aristocrático em relação às cidades e propriedades de terra. Moore (2011, p. 5) diz: os bispos herdaram um duradouro papel aristocrático vindo desde a antiguidade tardia, com freqüência governando cidades e controlando extensas propriedades e as pessoas que viviam nelas. O primeiro exercício de sua autoridade era na legislação feita em concílios. Essa lei era abrangente e expressiva não somente de ideais morais, mas também de um pensamento social elaborado por completo (tradução nossa).10

No entanto, isso não significava que se portavam como, e tinham o mesmo status, do que a aristocracia laica. Os bispos também se apoiavam no caráter simbólico de seus cargos, o que resultou na afirmação de sua identidade de bispos. Moore (2011, p. 14) coloca: os bispos, ademais, não agiam como equivalentes de senadores ou nobres, mas como um grupo distinto e coeso, possuindo uma identidade unificada e consciente de si mesma. Eles benziam com sal e água. Eles adotaram um penteado especial, conectando-os simbolicamente ao ascetismo do deserto e um código moral que os trouxe a um contato com os pobres e os deu uma posição única da qual fazer demandas a seus reis (e aos pobres) (tradução nossa).11

No século VII, com os merovíngios, a relação entre o episcopado e o poder real mudou um pouco. Os reis delegavam aos bispos a função de moldar os reinos e suas 10

“Bishops inherited an enduring aristocratic role going back to late antiquity, often governing cities and controlling extensive properties and the people who lived on them. The premier exercise of their authority was in legislation enacted at councils. This law was wide in scope and expressive not only of moral ideals, but also of a fully elaborated social thought” (MOORE, 2011, p.5). 11 Bishops, moreover, did not act as functional equivalents of senators or nobles, but as a distinctive, cohesive group, possessing a self-conscious and unifying identity. Unlike senators, bishops ordained clerics, gave sermons, and baptized people. They made blessings of salt and water. They adopted a special hairstyle symbolically connecting them to the asceticism of the desert and a moral code that brought them into contact with the poor and that gave them a unique position from which to make demands to their kings (and on the poor) (MOORE, 2011, p. 14).

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instituições. Os bispos, por sua vez, dependiam do apoio dos reis para convocar seus concílios (MOORE, 2011, p. 139). A legislação dos reinos era composta por uma relação próxima entre bispos e reis. Os bispos acreditavam ser os defensores dos valores morais cristãos, valores os quais deveriam ser garantidos pela aprovação do rei. O rei, por sua vez, buscava associar-se com os bispos e com as leis formuladas por eles com o intuito de garantir o prestígio de seu papel benevolente: os concílios se tornaram o cenário para a compilação das leis romanas e do direito consuetudinário germânico. Nesse meio tempo, a legislação real foi sutilmente transformada de acordo com a lei conciliar. Os bispos viam sua legislação como a atividade religiosamente sancionada de uma ordem de homens religiosos, a ser incentivada e protegida pelos bons reis. A legislação conciliar era potente, e os reis buscavam associar-se a ela – aqui podemos ver um desejo, por parte dos reis, de ganhar um papel benevolente e protetor (MOORE, 2011, p. 139, tradução nossa).12

Ainda que o rei detivesse a maior parte do poder, segundo o costume, o relacionamento entre reis e bispos não ocorria de maneira autoritária, envolvendo certa negociação de ambas as partes. Segundo Moore (2011, p. 141): a relação entre o rei e seus bispos não era aquela de um mestre e seus seguidores. Embora os bispos tivessem que levar em consideração a vontade do rei (voluntas regis), conflitos entre reis e bispos eram tipicamente complexos, envolvendo negociação e posicionamento (tradução nossa). 13

A vontade do rei viria por meio da sugestão e da confirmação e servia, entre outras coisas, para apontar novos bispos. Clóvis teria usado essa prerrogativa de maneira discreta, mas eficaz. Os reis que vieram depois dele, contudo, intervieram no processo de maneira mais abusiva (GIORDANI, 1971, p. 310). Nesse contexto, também é importante ressaltar o papel dos bispos em relação aos pobres, já que essa era uma função que cabia ao bispo não só em relação ao seu 12

Councils became the setting for compilations of Roman and customary Germanic law. In the meantime, royal legislation was subtly transformed in line with conciliar law. Bishops saw their legislation as the religiously sanctioned activity of a holy order of men, to be fostered and protected by good kings. Conciliar legislation was potent, and kings sought an association with it – here we can see a desire on the part of kings to gain a protective and benevolent role (MOORE, 2011, p. 139). 13 “The relation between the king and his bishops was not that of a master and his followers. Although bishops had to take note of the king’s will (voluntas regis), conflicts between kings and bishops were typically complex, involving negotiation and posturing” (MOORE, 2011, p. 141).

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papel eclesiástico, mas também em seu papel como administrador laico: “a lei canônica dos merovíngios tentou estabelecer uma ‘paz’ para os pobres, órfãos e viúvas, e ameaçou os ‘assassinos dos pobres’ com uma maldição” (MOORE, 2011, p. 197, tradução nossa).14 Enquanto os laicos tinham a responsabilidade de proteger somente os seus, o bispo tinha o dever de proteger todos aqueles que possuem algum tipo de necessidade. Moore cita Isidoro de Sevilha (2011, p. 198): “Um laico cumpre seu dever de hospitalidade recebendo um ou dois, mas o bispo é inumano a não ser que ele receba a todos” (tradução nossa).15 No entanto, ainda que a caridade fosse uma prática bem vista e que fazia parte dos deveres de um bispo, nem todos eles cumpriam seus deveres para com os pobres. O término da dinastia Merovíngia aconteceu em 751, dando lugar à dinastia Carolíngia. Historiadores como Moore (2011, p. 204) vêem esse fenômeno como uma reforma do reinado, criando um reino baseado em conceitos teocráticos de governo: a usurpação foi concebida como uma reforma na realeza baseada em conceitos teocráticos de poder real que nós traçamos para o pensamento episcopal social [...]. Ao mesmo tempo, foi pretendido como um retorno à Igreja dos francos, especialmente o episcopado, que foi acusado de ter abandonado seus deveres mais importantes. Bonifácio reclamava que os bispos iam à caça, participavam de guerras, ou eram casados (tradução nossa).16

Essa teoria serve para contrapor a historiografia antiga, que dizia que os francos abandonaram a dinastia merovíngia devido a sua incompetência: as fontes que criavam essa impressão dos reis merovíngios tardios não são contemporâneas e são pintadas por propaganda tardia, que diminuía a linhagem real merovíngia para reivindicar a captura do poder pelos carolíngios. Em vez disso, pode-se apontar à potência do ideal de reforma para gerar mudança e para prover transições de uma fase histórica para outra (MOORE, 2011, p. 205, tradução nossa).17 14

“Merovingian Canon Law attempted to establish a ‘peace’ for the poor, orphans and widows, and threatened ‘murderers of the poor’ with a curse” (MOORE, 2011, p. 197). 15 “A layman fulfills his duty of hospitality by taking in one or two, but the bishop is inhumane unless he receives everyone” (ISIDORE apud MOORE, 2011, p. 198). 16 “[...] the usurpation was conceived as a reform of kingship based on theocratic concepts of royal power that we have traced to Episcopal social thought. At the same time it was intended as a revival of the Frankish Church, especially the episcopate, which was accused of having abandoned its most important duties. Boniface would complain that bishops went hunting, took part in war, or were married” (MOORE, 2011, p. 204).

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A ideia de que o episcopado também teria abandonado alguns de seus valores morais cristãos também é contestada. Giordani (1971, p. 311) argumenta: seria errôneo emitir um julgamento sobre o valor moral do episcopado da Gália Medieval levando-se em consideração as escolhas abusivas dos merovíngios ou de um Carlos Martelo. Na realidade, ao lado de titulares de sedes episcopais que se revelaram indignos, encontramos homens de elevado gabarito moral e cuja atuação em prol dos fiéis que lhes foram confiados ficou assinalada nas páginas da História.

Havia, inclusive, certa preocupação por parte de Carlos Magno em relação à moral do clero. Segundo Favier (2004, p. 385): Carlos insiste o tempo todo: cabe ao bispo verificar a competência dos clérigos propostos pelos proprietários, dar seu consentimento às nomeações e proceder a missões regulares de inspeção. É mais do que evidente que a reforma das igrejas rurais passa pela reforma moral e disciplinar do episcopado. Enquanto o bispo não tiver recuperado sua autoridade moral, seu poder praticamente não vai além de sua cidade episcopal.

Moore (2011, p. 204), então, propõe a ideia de que a reforma teria ocorrido em razão da inadequação das instituições vigentes em frente a uma nova fase que estava se formando. Nesse contexto, a lei real tinha como base a iniciativa dos bispos. O reino, nesse momento, era considerado como sendo uma entidade de importância religiosa (MOORE, 2011, p. 245). Um dos argumentos para esse processo vem dos escritos de Santo Agostinho, o chamado agostinianismo político. Franco Jr (2001, P. 73) diz: “a partir de inícios do século IX, inspirada no Direito Canônico e em Santo Agostinho, ganhou terreno a teoria do agostinianismo político, que afirmava a superioridade espiritual sobre a temporal, dos bispos sobre os reis.” Moore (2011, p. 253) define essa teoria como tendo sido uma leitura errônea da obra Cidade de Deus, de Santo Agostinho: “de acordo com esse argumento,

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“The sources creating this impression of the late Merovingian kings are not contemporary and are colored by later propaganda, which belittles the Merovingian royal line so as to vindicate the Carolingian seizure of power. Instead, one can point to the potency of the reform ideal to generate change and to provide transitions from one historical phase to another” (MOORE, 2011, p. 205).

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pensadores medievais não compreenderam Agostinho e esperavam estabelecer a “Cidade de Deus” na terra (tradução nossa). 18 No entanto, o agostinianismo político vem sendo debatido por autores como Oakley (2006) e Markus (1988). Oakley (2006, p. 89) fala de uma distinção entre o Agostinho da Cidade de Deus e do Agostinho político: “o Agostinho que encontramos no pensamento político da Idade Média Ocidental (ou Latina) não é o Agostinho que se encontra nas páginas de Cidade de Deus” (tradução nossa). 19 O que explicaria a leitura feita pelos pensadores medievais citados acima. Já Markus (1988, p. 141) diz que: “ele [Agostinho] nunca havia duvidado de que a violência deveria ser controlada pela autoridade pública e que terroristas donatistas deviam ser punidos” (tradução nossa). 20 Moore (2011, p. 253), portanto, ao examinar fontes vindas de concílios e das liturgias do período carolíngio, sugere que os escritos de Santo Agostinho contra o donatismo21 teriam influenciado a Igreja a se apoiar no Estado para reforçar a doutrina religiosa e punir aqueles que não a seguiam, em vez de tentar se sobrepor ao Estado. Os bispos não pretendiam diminuir o poder do Estado – pois estavam a favor à ideia de um império com princípios cristãos – “o que os dignitários religiosos pretendiam na verdade era um lugar de relevo no Estado” (RIBEIRO, 1998, p. 42). Em contraposição ao agostinianismo político, Moore (2011, p. 254) defende que: os bispos francos acreditavam que sua sociedade poderia ser retificada fazendo-a seguir um padrão divino, um conceito vindo de suas próprias tradições de pensamento social. Os bispos pensavam no poder real e episcopal como sendo dois lados da mesma moeda. A realeza sagrada dos carolíngios derivava de uma antiga tradição que confrontava a realidade social com atos da imaginação (tradução nossa).22 18

“According to this argument medieval thinkers misunderstood Augustine and hoped to establish the “City of God” on earth” (MOORE, 2011, p. 253). 19 “The Agostine whom one encounters in the political thinking of the Western (or Latin) Middle Ages is not the Agostine one finds in the pages of the City of God” (OAKLEY, 2006, p. 89). 20 “He had never doubted that violence should be controlled by the public authorities and that Donatist terrorists should be punished” (MARKUS, 1988, p. 141). 21 “Cisma que feriu a igreja na África do norte no séc. IV e início do V, que perdurou pelo menos até a virada do séc. VII e foi o reflexo de divisões tanto sociais e econômicas quanto religiosas, entre os cristãos norte-africanos [...]. Os donatistas consideravam-se os autênticos herdeiros da igreja da África do norte, tal como fora antes da grande perseguição e, em particular, tal como fora no tempo de Cipriano. Eram, portanto conservadores em sua liturgia, e celebravam o ‘ágape’, como também a eucaristia, ignorando as novas festas aceitas pelos católicos, como a Epifania [...]” (FREND, 2002, 427-431). 22 “Frankish bishops believed that their society could be rectified by making it conform to a divine pattern, a concept drawn from their own traditions of social thought. […] Bishops thought of royal and Episcopal power as two aspects of a single problem. Carolingian sacral kingship derived from an ancient tradition

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O autor ainda argumenta que essa integração entre o poder real e o episcopal reflete a influência de uma aristocracia educada, que manipulava uma tradição legal e intelectual que, sob domínio carolíngio, veio a ser a base da legitimidade do poder real: “O caráter sagrado da realeza carolíngia veio de tradições episcopais que se tornaram, primeiramente, uma fonte intelectual de seu rei” (tradução nossa). 23 Com a ascensão de Luís, o Piedoso (814-840) dá-se uma nova etapa de relações entre a Igreja e o Estado, devido à crescente influência do episcopado. Ribeiro (1998, p. 42) coloca que: a fraqueza do imperador propiciava o fortalecimento do prestígio do alto clero, formado por aqueles que ocupavam o topo da hierarquia eclesiástica. Existia um forte desejo, por parte dessa parcela do clero, de ampliar seu espaço, de libertar o poder religioso da dominação temporal. .

Os bispos também atribuíam ao clero o papel de juiz da sociedade, pois eles eram os únicos capazes de interpretar as Sagradas Escrituras de maneira adequada. Isso acabou por atribuir a eles um papel cada vez mais importante no âmbito político: ao proclamarem a reforma das sociedades leiga e religiosa, os bispos desviaram-se de seu ministério espiritual e tomaram partido nas lutas entre os herdeiros do poder imperial, assumindo papel cada vez mais influente nas disputas políticas (RIBEIRO, 1998, p. 43).

Por fim, fazendo uma breve análise do papel dos bispos, fica evidente que com o aumento de seu prestígio e autoridade, o episcopado passou a ter influência não só no âmbito religioso – batismos, sermões, entre outros –, mas também no temporal, refletindo-se, em especial, nos concílios e na composição de leis.

that confronted social reality with acts of the imagination (MOORE, 2011, 254). 23 the sacred character of Carolingian kingship drew upon episcopal traditions, which became a primarily intellectual resource of their king (MOORE, 2011, p. 264).

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3 MAGIA

A palavra magia é derivada do grego mageia, mais tarde traduzida para o latim como magia (HUTTON, 2003, p. 104). Esse termo foi utilizado em ambos os idiomas para definir fenômenos particulares de seu tempo, de modo que essa definição se modificou ao longo das décadas. Os primeiros estudos sobre a prática da feitiçaria, segundo Russell (1973, p.28), apareceram no final do século XVIII, quando a feitiçaria não mais era perseguida por meios legais. Assim, esses eventos passaram a ser tratados como acontecimentos históricos e não como eventos corriqueiros. No século XIX, com a antropologia, houve diversas pesquisas que buscavam situar o papel da magia em relação à religião. Essa concepção perdurou por muitas décadas, até que no início da década de 1990 os pesquisadores passaram a adotar um novo foco para suas pesquisas, analisando os conceitos de magia específicos de determinados contextos, em vez de promover uma definição mais ampla – método que ainda é utilizado nas pesquisas mais recentes. O primeiro tópico busca discutir uma série de definições de modo a fazer um

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panorama acerca do termo magia24, de acordo com o que se apresenta como mais relevante à pesquisa aqui apresentada. O segundo tópico, por sua vez, fará uma análise acerca dos conceitos de magia utilizados pelos europeus medievais. 3.1 DEFINIÇÕES DE MAGIA O século XIX trouxe uma série de estudos sobre o tema, em sua maior parte comparando a magia à religião. Um dos estudos mais significativos foi o de Frazer (2009) em The Golden Bough. Frazer fala de uma "Idade da Magia", na qual indivíduos praticam a magia para, assim, atingir determinado objetivo. Frazer escreveu (2009, p. 45): o mago não duvida que as mesmas causas produzirão sempre os mesmos efeitos, que a performance da cerimônia apropriada, acompanhada do feitiço apropriado, inevitavelmente será atendida pelos resultados desejados. (...) Ele não suplica a nenhum poder maior: ele não busca o favor de ser instável e inconstante nenhum: ele não se degrada perante nenhum dever (tradução nossa).25

. A magia, para ele, assim como a ciência, consistia em uma ação feita com o objetivo de se obter resultados diretos, sem o auxílio de divindades. Frazer (2009), em seguida, distingue magia da religião, dizendo que, em dado momento, esses indivíduos perceberam sua ineficácia perante a natureza: a chuva ainda caia no chão sedento: o sol ia em busca de sua jornada diária pelos céus, e a lua de sua noturna. Pois ele não mais podia alegrar-se na agradável ilusão de que era ele que guiava a terra e o céu em seus cursos, e que eles iriam cessar de fazer suas grandes revoluções se ele retirasse suas fracas mãos da roda. Na morte de seus inimigos e amigos ele não mais via a prova de uma potência irresistível vinda de si mesmo ou de encantamentos hostis; ele, agora, sabia que amigos e inimigos haviam sucumbido a uma força mais forte do que qualquer uma que ele conseguiria administrar, e em obediência a um destino que ele não possuía poder para controlar (tradução nossa).26 24

Para mais informações sobre a definição de magia ver HUTTON, Ronald. The new old paganism. In: Witches, Druids and King Arthur. London: Hambledon Continuum, 2003. 25 “The magician does not doubt that the same causes will always produce the same effects, that the performance of the proper ceremony, accompanied by the appropriate spell, will inevitably be attended by the desired results. (...) He supplicates no higher power: he sues the favour of no fickle and wayward being: he abases himself before no awful deity” (FRAZER, 2009, p. 45). 26 “The rain still fell on the thirsty ground: the sun pursued his daily, and the moon her nightly journey

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A religião, por sua vez, é definida da seguinte forma: “por religião, então, eu entendo uma propiciação ou conciliação de poderes superiores ao homem, que se acredita que dirigirem e controlarem o curso da natureza e da vida humana” (FRAZER, 2009, p. 46, tradução nossa).27 Segundo Frazer (2009) a magia se dá da seguinte forma: “a sucessão de eventos é perfeitamente regular e certa, sendo determinada por leis imutáveis [...] os elementos do capricho, da chance, e de acidentes estão banidos do curso da natureza” (FRAZER, 2009, p. 45, tradução nossa). 28 A magia, portanto, é distinta da religião na medida em que a magia, se realizada corretamente, virá a obter sempre os mesmos resultados; enquanto a relação do indivíduo com a religião consiste na busca, por parte do indivíduo, de conciliar a um poder maior, recebendo, assim, aquilo que havia desejado. O historiador americano Kieckhefer (1995), faz parte de uma geração posterior de pesquisadores, a da década de 1990. Ele discorda da teoria de Frazer (2009) quando se trata de magia medieval, por duas razões: em primeiro lugar, as fontes primárias pouco dizem sobre como, precisamente, as pessoas medievais concebiam a força de suas ações (...). Em segundo lugar, pessoas comuns da Europa medieval provavelmente não distinguiam com precisão a coerção e a suplicação (KIECKHEFER, 1995, p. 15, tradução nossa).29

Durkheim (1996), por sua vez, também busca definir a magia por meio de uma comparação com a religião. Para Durkheim (1996, p. 25) “uma religião não se reduz across the sky. For he could no longer cherish the pleasing illusion that it was he who guided the earth and the heaven in their courses, and that they would cease to perform their great revolutions were he to take his feeble hand from the wheel. In the death of his enemies and friends he no longer saw a proof of the resistless potency of his own or of hostile enchantments; he now knew that friends and foes alike had succumbed to a force stronger than any that he could wield, and in obedience to a destiny which he was powerless to control” (FRAZER, 2009, p. 55-56). 27 “By religion, then, I understand a propitiation or conciliation of powers superior to man which are believed to direct and control the course of nature and of human life” (FRAZER, 2009, p. 46). 28 “The succession of events is perfectly regular and certain, being determined by immutable laws […] the elements of caprice, of chance, and of accident are banished from the course of nature” (FRAZER, 2009, p. 45). 29 “First of all, the sources tell us little about precisely how medieval people conceived the force of their actions (…). Secondly, ordinary people in medieval Europe probably did not distinguish sharply between coercion and supplication (KIECKHEFER, 1995, p. 15).

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geralmente a um culto único, mas consiste em um culto dotado de uma certa autonomia [...]. Às vezes os cultos são hierarquizados e subordinados a um culto dominante, no qual acabam inclusive por ser absorvidos”. Da mesma maneira, existem fenômenos religiosos que não fazem parte de uma religião. Isso ocorre porque eles não estão ligados, ou cessaram sua ligação a um sistema religioso. A magia, entretanto, possui características que se assemelham às da religião. Ela também é constituída de crenças, ritos e deuses: ela tem igualmente suas cerimônias, seus sacrifícios, suas purificações, suas preces, seus cantos e suas danças. Os seres que o mágico invoca, as forças que emprega não são apenas da mesma natureza que as forças e os seres aos quais se dirige a religião; com muita frequência, são exatamente os mesmos. (...) Há inclusive divindades regulares e oficiais que são invocadas pelo mágico. Algumas vezes, são os deuses de um povo estrangeiro: por exemplo, os mágicos gregos faziam intervir deuses egípcios, assírios ou judeus. Outras vezes, são deuses nacionais mesmos: Hécate de Diana eram objeto de um culto mágico; a Virgem, Cristo e os santos foram utilizados da mesma maneira pelos mágicos cristãos. (DURKHEIM, 1996, p. 26-27)

Durkheim (1996), então, diferencia a magia da religião na medida em que as práticas religiosas são sempre coletivas. As crenças mágicas, por sua vez, não se dão na coletividade, mas de maneira isolada: não existe uma igreja mágica [...]. O mágico tem uma clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem uns aos outros [...] Ao contrário, a religião é inseparável da idéia de igreja. Sob esse primeiro aspecto, já existe entre a magia e a religião uma diferença essencial (DURKHEIM, 1996, p. 28-29, grifo do autor).

Segundo Durkheim (1996, p. 29), ainda que existam sociedades formadas pelos praticantes de magia, elas não são um fator indispensável ao seu funcionamento. A religião, contudo, é essencialmente ligada à ideia da igreja e o funcionamento dos cultos religiosos depende dessa coletividade. Malinowski (1988) se baseia nas teorias de Frazer (2009) e de Durkheim (1996) ao observar os fins objetivos do ato mágico, bem como a relação social promovida pelo mesmo. Assim como os autores anteriores, Malinowski (1988) também parte de uma comparação com a religião para encontrar a definição de magia.

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Para além dessas influências, Malinowski oferece suas próprias definições de magia e religião. A magia, segundo Malinowski (1988, p. 91), é definida como: magia como uma arte prática constituída por actos que são apenas meios para um fim objectivo que se espera vir a desenrolar posteriormente; religião como um conjunto de actos independentes que constituem por si próprios a realização da sua finalidade.

Assim, a magia sempre fica a cargo dos feiticeiros; a religião, por sua vez, em suas condições primitivas é um assunto do qual todos participam de maneira igual. Durante as décadas de 1970 e 1980 o debate acadêmico em torno da definição de magia permaneceu com a proposta de distinguir essa prática em relação à religião. No entanto, na década de 1990, foi notado o problema da comparação entre esses dois fenômenos. Houve, então, uma ruptura dos antigos moldes de pesquisa e outras definições começaram a surgir: [...] para historiadores do ocidente, conhecendo somente a sua própria disciplina e somente uma tradição religiosa Judaico-Cristã, esses assuntos costumavam ser intelectualmente bem como teologicamente indigeríveis. Agora, as lições de antropologia tendo se tornado familiares é comum aceitar a impossibilidade de separar a mágica da religião e partir para assuntos mais interessantes (MACMULLEN apud HUTTON, 2003, p. 101, tradução nossa).30

Ao final da década de 1990 e início dos anos 2000 houve uma rejeição das definições que comparavam a magia à religião, em particular feita pelos acadêmicos que estudavam a magia na antiguidade (HUTTON, 2003, p. 100-106). Aqui será utilizada a definição feita por Hutton (2003, p. 106): “como abrangendo quaisquer práticas formalizadas feitas por seres humanos, desenhadas para atingir fins particulares pela manipulação e direção de um poder sobrenatural ou espiritual oculto no mundo natural” (tradução nossa).

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"The relationship between religion and magic and the definition of the two terms. For historians of the west, knowing their own discipline and only the Judaeo-Christian religious tradition, these matters used to be intellectually as well as theologically indigestible. Now, the lessons of anthropology grown familiar, it is common to accept the impossibility of separating magic from religion and move onto more interesting subjects" (MACMULLEN apud HUTTON, 2003, p. 101) 31 “[…] as embracing any formalized practices by human beings designed to achieve particular ends by the manipulation and direction of supernatural power or spiritual power concealed within the natural world” (HUTTON, 2003, p. 106).

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Assim, após um amplo debate feito pela antropologia e pela história tendo como ponto de partida uma comparação entre a religião e a magia, grande parte dos historiadores passaram a rejeitar esse procedimento, passando a encontrar definições específicas para cada período estudado. 3.2 A MAGIA NO SÉCULO X Em geral, intelectuais da Europa medieval separavam a magia em duas categorias distintas: natural e demoníaca (KIECKHEFER, 1995, p. 9). A primeira lidava com os poderes ocultos presentes na natureza, enquanto a segunda recorria a demônios como intermediários para atingir determinado fim. O conceito de magia, no entanto, não era algo tão simples. Na Europa medieval, uma feiticeira ou maga poderia ter qualquer um dos seguintes nomes, de acordo com sua função: (1) strix, stria, striga, ou strigimaga (originalmente um tipo de coruja, e depois um espírito noturno, um vampire e, finalmente, uma bruxa); (2) sortiarius ou sortilegus (i.e., um vidente, um que lê a sorte [sortes]); (3) masca (ocasionalmente talamasca), associados com o uso de máscaras de animais como festivais; (4) lâmia ou lama (um vampiro);(5) maleficus (aquele que faz magias malignas, maleficium); (6) scobax (do grego scôps, um tipo de coruja, ou do latim scuba, uma vassoura); (7) gazarius (de Catharus, um herege cátaro); (8) waudensis (de Waldensis, um herege valdense); (9) herbarius (aquele que recolhe ervas); (10) pythonissa (profetiza); (11) facture (que parece derivar do latim factuse significa aquele que faz feitiços); (12) divitator (vidente); (13) mathematicus (vidente); (14) necromanticus (vidente por meio de cadáveres, corrompido para nigromanticus); (15) veneficus (aquele que prepara poções, geralmente venenos); (16) tempestarius (aquele que faz tempestades); (17) incantator (encantador, aquele que faz encantamentos); (18) anglo-saxão wicce, wicca (aquele que adivinha ou lança feitiços; a forma masculina wicca é mais comum do que a forma feminina wicce; (19) do alemão Hexe, derivando do alto alemão arcaico hagazussa (um espírito noturno, canibal ou feiticeira) (RUSSELL, 1995, p. 15-16, tradução nossa).32 32

“(1)strix, stria, striga, or strigimaga (originally a screech-owl, then a night-spirit and a vampire, finally a witch); (2) sortiarius or sortilegus (i.e., a diviner, one who reads the lots [sortes]); (3) masca (occasionally talamasca), associated with the use of animal masks as festivals; (4) lamia or lama (a vampire);(5) maleficus (one who does evil magic, maleficium); (6) scobax (from Greek scôps, a screech-owl, or Latin scuba, a broom); (7) gazarius (from Catharus, a Catharist heretic); (8) waudensis (from Waldensis, a Waldensian heretic); (9) herbarius (an herb-gatherer); (10) pythonissa (prophetess); (11) facture (which seems to derive from the Latin factus and to mean a “maker” of spells); (12) divitator (diviner); (13) mathematicus (diviner); (14) necromanticus (diviner by corpses, corrupted to nigromanticus); (15) veneficus(preparer of potions, usually poisons); (16) tempestarius (storm-maker); (17) incantatory (enchanter, one who makes incantations); (18) Anglo-Saxon wicce, wicca (one who divines or casts spells; the masculine form wicca is more common than the feminine wicce; (19) German Hexe, deriving from Old

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Flint (1991, p. 68) diz que tal distinção revela a existência de um vasto número de praticantes, de tal modo que até mesmo são mencionados em conjuntos de leis da época, a exemplodas Leis Visigóticas.33 Russell (1995, p. 7) não menciona a divisão sugerida por Kieckhefer (1995), mas determina que a distinção entre "alta magia" (high magic) e "baixa magia" (low magic) é fundamental para compreender o fenômeno: a baixa magia é prática e voltada para a obtenção de efeitos imediatos, por exemplo, urinar em um fosso para causar a chuva ou espetar uma boneca de cera com um alfinete para causar dor; alta magia é similar à especulação religiosa, científica e filosófica e busca conhecimentos ocultos para entender, alcançar e, por último, controlar o Universo (RUSSELL, 1995, p. 7, tradução nossa).34

Segundo Russell (1995, p. 7) categoria de alta magia estão práticas como astrologia, alquimia e adivinhação; na categoria de baixa magia, por sua vez, estariam todas as práticas que tivessem como objetivo fazer mal a alguém. Ainda segundo Russell (1995, p. 6-7) Na Idade Média, teólogos como Alexandre de Hales distinguiam divinatio e maleficium, bem como, posteriormente, na Idade Moderna, livros como o Malleus Malleficarum. Ademais, Russell (1995, p. 17) aponta uma distinção entre a bruxaria e a feitiçaria35: ”o grau o qual demônios eram reverenciados e Cristo rejeitado na feitiçaria e bruxaria europeia fornece uma melhor distinção entre os dois [...] a bruxaria européia é melhor vista como um culto religioso ao demônio” (tradução nossa). 36 Ainda que haja a High German hagazussa (a night-spirit, cannibal, or sorceress)” (RUSSELL, 1995, p. 15-16). 33 “Sob a coroa de Rescesvindo (654), promulga-se o chamado ‘Código Visigótico’ ou ‘Fuero Juzgo’, a mais importante compilação de leis dos visigodos, a qual reúne tanto os antigos costumes germânicos, quanto as disposições oriundas do Direito Romano e Canônico” (AZEVEDO, 1997, p. 7). 34 “Low magic is practical and aimed at obtaining immediate effects, for example, urinating into a ditch to cause rain or sticking a wax doll with a pin to cause pain; high magic is akin to religious, scientific, and philosophical speculation and reaches out through occult knowledge to understand, grasp and ultimately control the Universe” (RUSSELL, 1995, p. 7). 35 Russell (1995) utiliza os termos em inglês sorcery e witchcraft. Tanto o termo sorcery quanto o termo feitiçaria possuem origem em palavras latinas – sors e facere, respectivamente – de modo que a escolha do termo feitiçaria se baseia nesse fato. O termo witchcraft tem sua origem no inglês antigo wicce e, portanto, não possui equivalentes imediatos em português. Assim, a escolha da palavra bruxaria na tradução trata-se de uma questão de conveniência e não possui ligação com a figura da bruxa, comum na Idade Moderna. Descarta-se o uso da palavra magia, por esta ter um correspondente mais próximo de sua origem grega mageia, para o português.

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distinção relativa à bruxaria, Russell (1995) parece não apontar o papel da feitiçaria nesse contexto. Flint (1991, p. 68), porém, rejeita a relevância dessa distinção. No entanto, essa concepção da existência de um culto organizado é importante para o presente estudo, pois ela é distinta da ideia de maleficium: “na Idade Média, magias maléficas foram agrupadas sob o termo maleficium, que poderia significar qualquer tipo de crime ou maldade” (RUSSELL, 1995, p. 13, tradução nossa).37 Note que a definição trata do grau na relação entre demônios e praticantes. Na literatura cristã a magia só poderia ser feita com a ajuda de poderes demoníacos, pois nenhum ser humano, sozinho, seria capaz de realizar tais feitos: para os cristãos, a magia era repreensível porque era o trabalho de demônios. Eles eram espíritos malignos, fundamentalmente submetidos a Deus, mas eles se portavam como deuses e eram venerados [...]. Veneração a esses deuses era inseparavelmente ligada à magia e, consequentemente, não era uma religião autêntica (KIECKHEFER, 1995, p. 37, tradução nossa). 38

Cristãos tardo-antigos viam todo tipo de magia como sendo demoníaca: “Taciano (século II) via ervas, amuletos, e outros aparatos mágicos como não tendo poder em si mesmos; eles não são nada além de um tipo de sistema de sinais criado por demônios para que seres humanos pudessem comunicar seus desejos” (KIECKHEFER, 1995, p. 38, tradução nossa).39 Santo Antônio do Egito (apud KIECKHEFER, 1995, p. 38) recomenda o sinal da cruz: “onde o sinal da cruz é feito, a magia perde seus poderes e a feitiçaria falha” (tradução livre). 40 Um dos escritos mais relevantes a respeito desse tema está na obra Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona. Agostinho diz:

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“The degree to which demons were revered and Christ rejected in European sorcery and in witchcraft provides a better distinction between the two” (RUSSELL, 1995, p. 16-17). 37 In the Middle Ages, malevolent magic was subsumed under the term maleficium, which could mean any kind of crime or evil doing” (RUSSELL, 1995, p. 13). 38 “For the Christians, magic was reprehensible because it was the work of demons. These were evil spirits, ultimately subject to God, but they paraded as gods and received veneration. (…) Veneration of these gods was inseparably bound up with magic and therefore was not authentic religion” (KIECKHEFER, 1995, p. 37). 39 “Tatian (second century) viewed herbs, amulets, and other accoutrements of magic as having no power in themselves; they are nothing but a kind of signal-system devised by demons so that human beings can communicate their desires” (KIECKHEFER, 1995, P. 38). 40 “Where the sign of the cross is made, magic loses its power and sorcery fails” (ST. ANTHONY apud KIECKHEFER, 1995, p. 38).

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realmente, os demónios gostam das torpes cenas que ao pudor desagradam; nos malefícios dos mágicos gostam das mil maneiras de enganar que a inocência detesta. Não poderão, portanto, nem o pudor nem a inocência, ao pretenderem dos deuses um favor, obtê-lo pelos seus méritos próprios sem a intervenção de seus inimigos (SANTO AGOSTINHO, 1997, p. 751).

Russell (1995, p. 18) lista os graus de intensidade nos quais uma bruxa ou feiticeira poderia se relacionar com demônios: encantamentos onde eles são chamados e compelidos a ceder a alguém (isso poderia ser feito com demônios muito mais facilmente do que com o Diabo), um pacto implícito com os espíritos; um pacto explícito, prometendo algo em troca por sua ajuda; sacrifícios, homenagens ou outras reverências; e, finalmente, adoração (tradução nossa).41

Em diversas fontes da literatura cristã, em especial nas vidas de santos, é possível ver como se lidava com esse tipo de prática 42. Segundo Flint (1994, p. 60) Gregório de Tours, em seu Liber de Passione et Virtudibus Sancti Juliani Martyris, conta de cristãos que, ao adoecer, haviam procurado harioli e sortilegi para curá-los, sem obter efeitos. Contudo, ao serem submetidos a uma relíquia cristã os fieis acabavam sendo curados: A mulher de Serenatus, por exemplo, fica doente no caminho de casa vindo dos campos e não conseguia falar. Seus amigos chamam “harioli” em sua ansiedade e eles, por sua vez, aplicam “ligamina” de ervas e dizem sobre ela “palavras de encantamentos” (sem afeito algum). A sobrinha de Gregório, Eustemia, sabe mais. Ela remove as ligamina e as substitui por óleo e cera da tumba de São Martim, com sucesso instantâneo (FLINT, 1994, p. 60, tradução nossa).43

Ou em uma crônica sobre o Bispo Wilfrid, do século VIII, escrita por Eddius Stephanus (2007, p. 29): 41

“Incantations where they are called up and compelled to do one’s bidding (this could be done with demons much more easily than with the Devil); an implicit pact with the spirits; an explicit pact promising something in return for their aid; sacrifice, homage or other reverence; and finally worship” (RUSSELL, 1995, p. 18). 42 Para uma análise mais detalhada de magia na literatura cristã ver: FLINT, Valerie. I.J. The Situation In:The Rise of Magic in Early Medieval Europe. Princeton: University of Princeton Press, 1994. 43 “The wife of one Serenatus, for instance, becomes ill on her way home from the fields and cannot speak. Her friends summon ‘harioli’ in their anxiety, and these in their turn apply ‘ligamina’ of herbs and say over her ‘words of enchantment’ (to no effect at all). Gregory’s niece Eustemia knows better. She removes the ligamina and replaces them with oil and wax from the tomb of Saint Martin, with instant success” (FLINT, 1994, p. 60).

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os inimigos, porém, eram duros e, endurecendo seus corações como o Faraó, não estavam dispostos a deixar o povo de Deus partir, orgulhosamente declarando que eles tratavam como sua própria posse tudo aquilo que o mar lançava a terra. O sacerdote principal de seu culto idólatra também se colocou perante os pagãos, em uma alta colina e, como Balaam, tentou amaldiçoar o povo de Deus e selar suas mãos por meio de suas artes mágicas. Naquele momento, um dos companheiros de nosso Bispo pegou uma rocha que havia sido abençoada por todo o povo de Deus e a arremessou de sua catapulta à maneira de Davi. Ela perfurou a frente do mago e penetrou até o cérebro, enquanto ele permanecia amaldiçoando; a morte o levou despercebido, como havia feito a Golias, e o seu corpo sem vida caiu de costas na areia (tradução nossa).44

Por meio dessa narrativa pode-se ver como os feiticeiros eram algo a ser combatido, por irem contra o povo de Deus. Também é evidente a superioridade do poder divino contra o dos supostos pagãos. Uma prece encontrada em um manuscrito do século X pede proteção contra encantamentos: “eu peço, em nome de Cristo, que não deixes este local e esta paróquia ser prejudicados por chuvas fortes ou gelo ou tempestades ou murmúrios de feiticeiros (FRANZ apud FLINT, 1994, p. 66, tradução nossa).45 Referências à magia podem, portanto, ser encontradas em códigos legais, hagiografias, preces e nos exempla46. Por que essa extensa oposição era necessária na Europa do século X? A resposta pode ser encontrada na obra de Flint (1994, p. 68-69): eles eram em todas as subdistinções que sejam possíveis fazer entre eles, todos em algum sentido “magos” e, portanto, praticantes de magia não-cristã de um tipo convincente, distintos nas nossas fontes cristãs por muitos nomes derrogatórios (ou às vezes chamados, simplesmente, de maleficus), eram vistos 44

“The enemy however were fierce, and, hardening their hearts like Pharaoh, were unwilling to let the people of God depart, proudly declaring that they treated as their own possessions all that the sea cast upon the land. The chief priest of their idolatrous worship also took up his stand in front of the pagans, on a high mound, and like Balaam, attempted to curse the people of God, and to bind their hands by means of his magical arts. Thereupon one of the companions of our bishop took a stone which had been blessed by all the people of God and hurled it from his sling after the manner of David. It pierced the wizard's forehead and penetrated to his brain as he stood cursing; death took him unawares as it did Goliath, and his lifeless body fell backwards onto the sand” (STEPHANUS, 2007, p.29). 45 “I ask in Christ’s name that you Will not let this place and parish be harmed by heavy rains or ice or storm or the murmuring of enchanters” (FRANZ apud FLINT, 1994, p. 66). 46 “O exemplum é uma historinha dada como verídica e destinada a inserir-se num discurso (em geral um sermão) para convencer um auditório através de uma lição salutar. A história é curta, fácil de guardar, convence. Utiliza-se da retórica e dos efeitos da narrativa, impressiona. Engraçada ou, mais frequentemente, de dar medo, a historinha dramatiza” (LE GOFF, 2007, p. 16).

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frequentemente cuidando de suas próprias vidas. Em segundo lugar, eles eram uma fonte de grande preocupação para os cristãos e difíceis de serem acomodados dentro da Igreja; e, em terceiro lugar, havia muitos deles. Nós estaríamos muito errados em fazer tal conclusão a partir de paralelos antropológicos, das perseguições e ataques [de perseguição a feiticeiros], ou de hostis e repetitivas legislações sozinhas. E nós certamente não podemos extrapolar para toda a Europa uma imagem formada a partir da pauta de conselhos, reis ou povos individuais, proferida separadamente. Quando esses diferentes tipos de informação são reunidos, no entanto, e, especialmente, quando damos um peso maior do que estamos acostumados a esses paralelos antropológicos, aí então todos se combinam para produzir uma interessante imagem dessa energética, e de grande demanda, atividade sobrenatural nãocristã (tradução nossa).47

A magia, como foi visto anteriormente, oferecia uma solução imediata para os problemas e anseios dos indivíduos do período. Esses bruxos e feiticeiros, portanto, ofereciam um apoio de certa forma semelhante ao oferecido pela Igreja, mas que conflitava com as ideias da mesma. Segundo Flint (1994, p. 70), a idéia de que a crença na bruxaria pode surgir de uma necessidade de dar razão (e se possível consolar) desgraças e ansiedades, e de um desejo de apoio a suas esperançosas expectativas é, agora, graças aos trabalhos de, primeiramente, antropólogos, familiar a nós. E é uma idéia que explica admiravelmente a popularidade de muitos daqueles magos os quais já vimos. Ela resolve muitas questões sobre a persistência e a prevalência dos praticantes de magia não-cristãos os quais brevemente pesquisamos; e ela acentua o relevo da força bem como da natureza daquela competição a qual a igreja medieval agora deve conter (tradução nossa). 48

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“They were, for all the subdistinctions it may be possible to make between them, all in some sense “magicians”, and thus non-Christian magical practitioners of a convincing kind, distinguished in our Christian sources by many derogatory names (or sometimes called simply “maleficus”), are to be seen often going on about their business. Secondly, they were a source of great concern to Christians and hard to accommodate within the church; and, thirdly, there were very many of them. We should be quite wrong to draw such a conclusion from anthropological parallels, from persecution and outbursts, or from repetitive and hostile legislation alone, and we certainly cannot extrapolate across the whole of Europe a picture drawn from the rulings of individual councils, kings or peoples, and uttered at separate times. When these different types of information are put together, however, and especially when we give living anthropological parallels a greater weight than we are sometimes accustomed to do, then all do combine to produce an engrossing picture of energetic, and sought after, non-Christian supernatural activity” (FLINT, 994, p. 68-69). 48 “The idea that a belief in witchcraft can spring from a need to account for (and if possible solace) misfortune and anxiety, and from a desire for the support of hopeful expectations, is, thanks to the labors primarily of anthropologists, an idea now familiar to us. And it is one that explains admirably the popularity of many of those magi at whom we have looked already. It solves many pressing questions about the persistence and the prevalence of the early non-Christian practitioners of magic we have briefly surveyed; and it throws into the sharpest relief at the same time both the strength and the nature of that competition with which the early medieval church must now contend” (FLINT, 1994, p. 70).

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Deste modo, os praticantes de magia, por serem tão requisitados, ofereciam uma numerosa oposição à Igreja Católica, que agora tentava contê-los. Isso pode responder à questão levantada anteriormente. Os documentos – a exemplo das Leis Visigóticas contra feiticeiros, das narrativas como a do Bispo Wilfrid e documentos como o Canon Episcopi – eram uma forma, encontrada pela Igreja Católica, de conter essas forças não-cristãs que detinham certo poder perante os fieis, seja por meios espirituais, seja por meios legais. 3. 3 CANON EPISCOPI Informações sobre a vida de Regino são escassas; contudo, acredita-se que Regino teria vindo de uma família nobre (SAPERE; NEYRA, 2011, p. 4). Regino teria nascido por volta de 840, em Espira, no atual estado da Renânia-Palatinado. Ele teria iniciado sua carreira eclesiástica em um mosteiro beneditino em Prum, na mesma localidade. Regino “foi eleito abade em 892, tendo renunciado dessa função em 899, ele foi então ao arcebispo de Treves, que o nomeou abade do mosteiro Saint Martin de Trèves (GRÉMY, 2008, p. 327, tradução nossa).49 Sapere e Neyra (2011, p. 4) afirmam que Regino teria sido substituído por Richar deHennegau por motivos obscuros. Em Treves Regino teria escrito suas obras de maior relevância. O Chronicon, uma crônica que aborda desde os princípios da era cristã até o ano de 907; é uma das principais crônicas a respeito dos francos e teria sido dedicado ao bispo Adalbero de Augsburgo. Além disso, escreveu um tratado sobre música chamado De armonica institutione. O De synodalibus causis et disciplinis ecclesiasticis libri duo teria sido escrito nessa mesma época, devido ao incentivo do arcebispo Radbod de Treves (SAPERE; NEYRA, 2011, p. 4). Sua morte teria ocorrido por volta do ano 915. O documento a ser analisado na presente pesquisa é o Canon Episcopi. O Canon Episcopi foi escrito por Regino por volta do ano 906. Ele foi originalmente escrito em latim e aparece na obra De synodalibus causis et disciplinis ecclesiasticis libri duo, que teria sido dedicado ao arcebispo Hatto da Mogúncia (SAPERE; NEYRA, 2011, p. 49

“(…) dont il avait éte elu abbé en 892; ayant démissioné de cette function en 899, il s’était alors rendu auprès de l’archevêque de Trèves, qui l’avait nommé abbé du monastère de Saint Martin de Trèves” (GRÉMY, 2008, p. 327).

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4). O livro é uma espécie de compilação de regras retiradas de sínodos anteriores, penitenciais e capitulários, “o objetivo com a redação era oferecer a Hatto um livro adequado para levar durante suas visitas pela diocese e utilizá-lo no tribunal episcopal (SAPERE; NEYRA, 2011, p. 4, tradução nossa). 50 O Canon teria sido originário do Sínodo de Ancira 51 (KORS, PETERS, 2001, p. 60). A ideia de que o Canon teria surgido no em Ancira, porém, foi refutada no século XVII. Russell (1995, p. 76) afirma que o Canon não teria tido sua origem no Concílio de Ancira e, inclusive, nem mesmo seria um cânone. Essa noção, segundo o autor, teria sido derivada de uma leitura errônea do documento. Segundo Kors e Peters (2001, p. 60) a leitura errônea teria ocorrido da seguinte forma: “principalmente porque na coleção de Regino ele seguiu um genuíno cânone de Ancira e copistas posteriores e usuários dos textos atribuíram Episcopi a Ancira também” (tradução nossa).52 Russell (1995, p. 76) afirma que esse teria sido um erro "de grande importância [pois] atribuí-lo ao prestigioso Sínodo de Ancira ajuda a explicar porque lhe foi dado tanto peso ao longo da Idade Média (RUSSELL, 1995, p. 76, tradução nossa).53 Ainda segundo Russell (1995, p. 77): acreditando que o cânone datava do venerável Sínodo de Ancira, teólogos da baixa idade média tiveram de justificar a sua própria aceitação da bruxaria argumentando que o cânone se aplicava a velhos costumes pagãos, mas não à bruxaria contemporânea. Historiadores liberais argumentaram que a necessidade dessa complexa troca demonstra, primeiramente, que não havia crença em bruxas na alta idade média e, em segundo lugar, que a bruxaria não existiu até que os inquisidores a criaram; se houvesse, aqueles que a 50

“El objetivo conla redacción era procurarle a Hattoun libro adecuado para llevar durante sus visitas por la diócesis y utilizarlo en el tribunal episcopal” (SAPERE; NEYRA, 2011, p. 4). 51 “[…] um dos primeiros, e certamente o mais celebrado desses concílios foi o de Ancira, capital da Galácia, que ocorreu com o proposto de curar as feridas infligidas à Igreja pela última perseguição, e especialmente para ver o que poderia ser feito no assunto dos lapsi. […] O concílio ocorreu, conforme os cânones apostólicos, na quarta semana depois da Páscoa. Tendo Maximin morrido durante o verão de 313, o primeiro Pentecostes depois de sua morte caiu em 314 [one of the first, and certainly the most celebrated, of these Councils, was that of Ancyra, the capital of Galatia, which was held for the purpose of healing the wounds inflicted on the Church by the last persecution, and especially to see what could be done on the subject of the lapsi. […] the Council was held conformably to the apostolic canons, in the fourth week after Easter. Maximin having died during the summer of 313, the first Pentecost after his death fell in 314]” (HEFELE, 2007, p. 199, tradução nossa). 52 “[…] chiefly because in Regino’s collection it followed a genuine canon of Ancyra and later copiers and users of the text ascribed Episcopi to Ancyra as well” (KORS; PETERS, 2001, p. 60). 53 “This mistake was of great importance [...] by assigning it to the prestigious council of Ancyra helps to explain why it was given such weight throughout the Middle Ages.” (RUSSELL, 1995, p. 76)

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reportaram teriam provido seus próprios detalhes em vez de meramente repetir o cânone (tradução nossa).54

O autor contrapõe essa ideia, dizendo que os cânones antigos não eram modificados quando reproduzidos; se estes fossem importantes, porém, seriam frequentemente comentados e discutidos – como de fato ocorreu com o Canon Episcopi entre os séculos XI e XV. Posteriormente, o Canon será citado por autores como Ivo de Chartres, Bucardo de Worms e Graciano, em seu Decretum, de modo que o texto passará a fazer parte da lei canônica (GINZBURG, 2012, p. 107). Na obra aparecem duas versões do Canon: a primeira delas, mais curta, foi reproduzida por Bucardo de Worms em seu Decretum e também em Corrector; a segunda versão, mais longa, também foi reproduzida por Bucardo na forma de um texto penitencial (RUSSELL, 1995, p. 292). Autores como Kors e Peters (2001) identificam o Canon Episcopi como sendo a junção de dois textos. Segundo os autores: quando examinado de perto, fica claro que o Canon é composto de dois textos diferentes: as primeiras três frases ecoam um número de expressões do final do século IX que lidam com a heterodoxia; o resto do texto, contudo, é bem diferente, uma elaborada condenação de falsas crenças que levantam a questão da realidade de uma prática que, posteriormente, vai se tornar o sabá das bruxas (KORS; PETERS, 2001, p. 60, tradução nossa). 55

Por fim, o Canon Episcopi foi um documento amplamente utilizado durante a Idade Média e que veio a influenciar diversos autores cristãos medievais em sua relação com a prática da bruxaria. O capítulo seguinte trata da análise desse documento e das crenças sobre magia contidas no mesmo. 3.3.1 Análise do Canon Episcopi 54

“Believing that the canon dated back to the venerable synod of Ancyra, later medieval theologians had to justify their own acceptance of witchcraft by arguing that the Canon applied to old pagan beliefs but not to contemporary witch practices. The liberal historians have argued that the need for this sophisticated reversal demonstrated first that there was no belief in witches in the early Middle Ages and second that witchcraft did not exist until the Inquisitors invented it; if it had those who reported it would have provided their own details rather than merely repeating the canon” (RUSSELL, 1995, p. 77). 55 “When examined closely, it is clear that the Canon is a composite of two different texts: the first three sentences echo a number of late ninth-century expressions of concern over heterodoxy; the rest of the text, however, is quite different, an elaborate condemnation of false beliefs that raises the question of the reality of a practice that will later become the witches’ Sabbath” (KORS, PETERS, 2001, p. 60).

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A versão longa do Canon Episcopi abre com um chamado para que todos os bispos tentem combater a magia. O documento abre com a seguinte frase: para que os bispos e os servos dos bispos trabalhem para todos os homens com esforço e dedicação para que as artes perniciosas inventadas pelo diabo, sortilégios e malefícios, sejam erradicados de dentro de suas paróquias e se encontrarem algum homem ou mulher desse séquito desonesto e torpe expulse-o de sua paróquia (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292, tradução nossa).56

Deste modo, seu nome deve-se a sua suposta origem: “ele é assim chamado devido sua suposta origem em um concílio do século IV e a citação costumeira de cânones conciliares pela sua palavra, ou suas palavras, de abertura” (KORS, PETERS, 2001, p. 60, tradução nossa).57 Assim, ele recebe seu nome devido à sua palavra de abertura: episcopi. Por meio dessa frase também é possível ver alguns elementos já analisados nesse capítulo: em primeiro lugar, da magia como oriunda de poderes diabólicos, e em segundo lugar os malefícios e sortilégios, que são considerados tipos distintos de magia. Como visto anteriormente, os cristãos medievais acreditavam que todo e qualquer tipo de magia provinha do demônio (KIECKHEFER, 1995, p. 38). Neste momento, segundo Russell (1995, p. 72), a Igreja começa a relacionar a bruxaria ao contatos com demônios: “a prática da magia estava, lentamente, começando a ser identificada com o diabolismo” (tradução nossa). 58 O documento utiliza os termos sortilegam e maleficam para se referir à magia. Sortilegam é um termo derivado da palavra sortilegium, que trata de adivinhação ou “aquele que lê a sorte” (RUSSELL, 1995, p. 15). 59 Maleficam, por sua vez, vem do termo maleficium que, como já visto, era um termo popular da época para remeter à 56

“Ut episcopi episcoporumque ministri omnibus viribus elaborare studeant ut perniciosam et a diabolom inventam sortilegam et maleficam artem penitus ex parochiis suis eradant, et si aliquem virum aut feminam huiuscemodi sceleris sectatorem invenerint turpiter dehonestatum de parochiis suis eiciant” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292) 57 “So called because of its alleged origin in a fourth-century church council and the customary citation of conciliar canons by their opening word or words” (KORS, PETERS, 2001, p. 60). 58 “The practice of magic was slowly beginning to be identified with diabolism” (RUSSELL, 1995, p. 72). 59 “One who reads lots (sortes)” (RUSSELL, 1995, p. 15).

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magia que fazia mal às pessoas. Maleficium, portanto, “poderia ser qualquer crime ou maldade” e aqueles que praticavam maleficia “eram geralmente tratados como qualquer outro criminoso que faz mal a alguém” (RUSSELL, 1995, p. 13, tradução nossa). 60 Em seguida, são feitas duas citações da Bíblia, provenientes das Epístolas Pastorais. As Epístolas Pastorais são geralmente atribuídas a Paulo; no entanto, alguns autores disputam essa teoria, alegando que existem discrepâncias tanto no estilo de escrita em relação a outros escritos paulinos, como discrepâncias teológicas: “a maioria dos que advogam por um pseudônimo sentem que um admirador de Paulo pôs as cartas à pena em um tempo posterior a morte de Paulo e utilizou o nome de Paulo para assegurar a aceitação de suas ideias” (LEA; GRIFFIN JR., 1992, p. 24, tradução nossa).61 A primeira delas, a Epístola a Tito, é aqui utilizada para se referir à necessidade de punição aos praticantes de magia: “como dizia o apóstolo: evite o herege depois da primeira e segunda admoestação, sabes, porque é subvertido aquele que age deste modo (Tito 3)”. E o autor prossegue: “são subvertidos pelo diabo e cativos dele, os que abandonaram ao seu criador pelo diabo e o apóiam” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292, tradução nossa). 62 Assim, a mensagem bíblica dá força à ideia de evitar – ou exilar, como o documento recomenda, aqueles que praticam magia: “[...] e se encontrarem algum homem ou mulher desse séquito desonesto e torpe expulse-o de sua paróquia” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292, tradução nossa).63 Russell (1995, p. 79) fala do exílio como punição: a sentença de exílio era justificada com o argumento de que aqueles que praticam essas coisas implicitamente se desligaram de Deus e se tornaram hereges e servidores do Diabo. Ainda que essa sentença seja leve se comparada com o rigor das penalidades posteriores, ela já é ameaçadora, pois contém, primeiramente, uma das primeiras conexões diretas de bruxaria à 60

“[...] could mean any crime ore evil doing [...] were usually treated like any other criminals who cause harm to others” (RUSSELL, 1995, p. 13). 61 “Most who advocate pseudonimity feel that an admirer of Paul penned the letters at a time after Paul’s death and used the name of Paul in order to secure acceptance of his ideas” (LEA; GRIFFIN JR., 1992, p. 24). 62 “Ait enim Apostolus: Haereticum post unam et secundam admonitionem devita, sciens, quia subversus est, qui eiusmodi est (Titus 3) [...] Subversi sunt et a diabolo capti tenentur, qui derelicto creatore suo a diabolo suffragia quaerunt” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292). 63 “[...] et si aliquem virum aut feminam huiuscemodi sceleris sectatorem invenerint turpiter dehonestatum de parochiis suis eiciant” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292).

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heresia e, em segundo lugar, uma forte afirmação da natureza diabólica da heresia (tradução nossa).64

O trecho seguinte, junto da segunda citação às Epístolas Pastorais – desta vez Timóteo – parece confirmar a ideia do autor e dá mais detalhes em relação às atividades desses indivíduos: “e, por esse motivo, se deve limpar a Santa Igreja de tal peste. Pois isso não deve ser omitido, porque certas mulheres se desviaram seguindo a Satanás (1 Timóteo 5:15)” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292, tradução nossa).65 É importante ressaltar que, até este momento, a condenação ao exílio não se baseava na ideia de que estas mulheres de fato participavam de encontros com o Diabo. A condenação baseava-se somente na crença de que esses encontros aconteciam. Segundo Russell (1995, p. 79-80): “assim, a condenação se dá em dois níveis: é proibido acreditar que você mesmo cavalga, e é proibido acreditar que outros o fazem” (tradução nossa).66 O trecho abaixo continua a condenar a crença nessas viagens e, além disso, mostra a possibilidade de que elas levem outras mulheres consigo: mas tomara que elas, sozinhas, pereçam com sua perfídia e não arrastem muitos consigo em sua infidelidade. Pois um grande número de pessoas, enganadas por falsas opiniões as quais crêem ser verdadeiras e, ao crer, se desviam da fé correta e se voltam aos erros pagãos, quando se acredita existir alguma divindade ou nume além do Um. Por que motivo o sacerdote da Igreja, bem como todos aqueles comprometidos com ele, deve firmemente proclamar que têm conhecido a falsidade [de tais ideias], e que não um espírito divino, mas um espírito maligno inflige tais fantasmas às mentes dos infiéis (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 293, tradução nossa).67 64

“The sentence of exile was justified on the grounds that those who practice these things have implicitly cut themselves off from God and become heretics and servants of the Devil. Though this sentence is light compared with the harshness of later penalties, it is already menacing, for it contains, first, one of the earliest direct linkings of witchcraft to heresy and, second, a strong statement of the diabolical nature of heresy” (RUSSELL, 1995, p.79). 65 “Illud etiam non omittendum, quod quaedam scelerate mulieres retro post Satanam conversae (1 Timotheos 5:15)” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292). 66 “Thus the condemnation is on two levels: it is forbidden to believe that you yourself ride out, and it is forbidden to believe that others do so” (RUSSELL, 1995, p. 79-80). 67 “Sed utinam hae solae in perfidia sua perissent, et non multos secum in infidelitatis interitum pertraxissent. Nam in numera multitudo hac falsa opinione decepta haec vera esse credit, et credendo a recta fide deviat et in erronem paganorum revolvitur, cum aliquid divinitatis aut numinis extra unum esse arbitratur. Qua propter saccerdotes per ecclesias ibi comissas populo cum omni instantia praedicare debent ut noverint haec omnimodis falsa esse, et non a divino sed a maligno spiritu tália phantasmata mentibus infidelium irrogari” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 293).

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Nota-se que, além das acusações anteriores, a noção de que qualquer outro que não Deus tenha esse tipo de poder também vai contra a Igreja. O papel do sacerdote, nesse caso é mostrar a falsidade de tais ideias, bem como sua origem demoníaca. O Canon Episcopi prossegue, relatando as atividades do Diabo nesse contexto e, por fim, levanta a questão da factualidade desses encontros: assim, o próprio Satanás, que se transfigura em um anjo de luz, quanto captura a mente de quaisquer mulherzinhas, e as subjuga a si pela infidelidade e incredulidade. Nesse mesmo lugar ele se transforma em pessoas de diversas espécies em suas similitudes. Suas mentes, as quais ele possui, em sonho ilude: vez feliz, vez triste, vez douto, vez indouto. [...] Opina-se que as mentes dos fiéis saem não em alma, mas em corpo. Quem, então, não sai de si próprio em sonho e visões noturnas e não vê dormindo aquilo que nunca havia visto em vigília? Quem verdadeiramente é tão tolo de acreditar que todas essas coisas, que são feitas somente em espírito, julgam-se acontecer no corpo? (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 293, tradução nossa).68

Aqui se pode ver como o demônio teria o poder de se transformar em seres humanos, noção que será retomada na versão curta do Canon. Ademais, a crença das cavalgadas com Diana é atribuída a um sonho, não a um encontro real. A versão curta trata-se de uma instrução mais explícita para os bispos, incumbindo-os de inquirir sobre diversos fatores: deve-se procurar em todo lugar se alguma mulher seja aquela que, por meio de malefícios e encantamentos, diga que pode mudar a mente dos homens, isto é, de ódio em amor, ou de amor em ódio converta, ou um bom homem ou dane ou roube. E se alguma é esta que diga que ela própria, com uma turba de demônios transformados à semelhança de mulheres, em certas noites cavalga sobre certas bestas e no consórcio dessas é contada, essa tal de todos os modos deve-se expulsar da paróquia (RUSSELL, 1995, p. 291, tradução nossa).69 68

“Siquidem ipse Satanas, qui transfigurat se in angelum lucis, cum mentem cuiuscunque mulierculae ceperit et hanc sibi per infidelitatem et incredulitatem subiugaverit, illico transformat se in diversarum personarum species atque similitudines, et mentem, quam captivam tenent, in somnis deludens, modo laeta, modo tristia, modo cognitas, modo incognitas, [...] infidelis mens haec non in animo, sed in corpore evenire opinatur. Quis enim non in somnis et nocturnis visionibus extra se ipsum educitur et multa videt dormiendo, quae nunquant viderat vigilando? Quis vero tam stultus et hebes sit, qui haec omnia, quae in solo spiritu fiunt, etiam in corpore accidere arbitretur?” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 293). 69 “Perquirendum si aliqua femina sit quae per quaedam maleficia et incantationes mentes hominum se immutare posse dicat, id est, ut de odio in amorem, aut de amore in odium convertat, aut bona hominum aut damnet aut subripiat. Et si aliqua est quae se dicat cum daemonum turba in similitudine mulierum transformata certis noctibus equitare super quasdam bestias et in earum consortio annumeratum esse,

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Quanto à versão curta do Canon Episcopi, Russell (1995, p. 78) coloca que: primeiro eles precisam inquirir se havia quaisquer mulheres que, por meio de encantamentos, provocavam amor, ódio, ou prejudicavam pessoas ou propriedades. Em seguida, eles devem determinar se havia quaisquer mulheres clamando cavalgar à noite em uma besta acompanhada por uma horda de demônios transformados em mulheres e dizendo que ela havia se tornado parte de seu bando. A primeira parte da instrução lida com feitiçaria simples, mas indica que, já, a Igreja estava começando a conectar a feitiçaria a acusações mais sérias de bruxaria e heresia. A segunda parte é mais importante: ela contém tanto mudança de forma quanto uma referência completa das cavalgadas selvagens da tradição popular (RUSSELL, 1995, p. 79-80, tradução nossa).70

A versão curta, portanto, explicita o que seriam esses malefícios ou encantamentos – transformar ódio em amor ou amor em ódio, bem como prejudicar pessoas e sua propriedade – e menciona novamente as cavalgadas noturnas junto dos demônios que podiam, inclusive, se transformar em mulheres. O Canon Episcopi é repleto de referências a tradições populares medievais, algumas delas podem ser relacionadas à versão curta do documento. Russell (1995, p. 81) diz que: aqui, na virada do século X, nós vemos o amálgama de diversas tradições. A mais velha é a antiga ideia das strigae, vampiras noturnas que voavam para beber sangue humano. A segunda é a tradição do Norte, as Valquírias, que deram início à noção Édica de bruxas “jogando seus jogos no ar”. A terceira é o velho medo de fantasmas vagando à noite. A quarta, e mais poderosa na tradição popular, é aquela da cavalgada selvagem ou wilde Jagd. As quatro tradições estão fundidas na noção de mulheres que voam à noite para o culto a deuses estranhos. Se o beber de sangue e o canibalismo das strigae ainda não está presente no Canon, ele em breve estará, assim como a ideia de voo em animais ou cercas ou cabos. No Canon propriamente dito, a cavalgada ocorre nos animais e é, evidentemente, terrestre em vez de aérea (tradução livre). 71 haec talis omnimodis ex paroechi aejiciatur” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 291). 70 “First they must determine whether there were any women who through incantations provoked love, hatred or harm to persons or property. Then they must determine whether there was any woman claiming to ride out at night on a beast accompanied by a throng of demons transformed into women, and asserting that she had become a part of their band. The first part of the instruction deals with simple sorcery but indicated that already the Church was beginning to attach sorcery to more serious charges of witchcraft and heresy. The second part is more important: it contains both shapeshifting and a full reference to the wild ride of folk tradition” (RUSSELL, 1995, p. 79-80). 71 “Here, at the turn of the tenth century, we see the amalgamation of several traditions. The oldest is the ancient idea of the strigae, night vampires who flew out to drink human blood. The second is the Northern tradition of the Valkyries, who give rise to the Eddic notion of witches `playing their game in the air`. The third is the old fear of ghosts walking about at night. The fourth, and most powerful in folk tradition, is that

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Eliade (1979) também relaciona as striga – ou strigoi, vocábulo romeno utilizado pelo autor – à Diana. Alguns dos elementos característicos das strigoi citados pelo autor de fato coincidem com características presentes no Canon Episcopi, embora grande parte deles não esteja presente. Eliade (1979, p. 86-87) coloca que: diz-se que tem poderes sobrenaturais; por exemplo, podem entrar em casas e portas fechadas ou brincar desarmadas com lobos e ursos. Realizam todos os malefícios imputados às bruxas: causam epidemia no homem e no gado, imobilizam ou desfiguram homens, provocam secas, “segurando a chuva, roubam o leite às vacas e, sobretudo, enfeitiçam os homens. [...] Supõe-se que saem em noites especiais, principalmente nas noites de São Jorge e Santo André e, quando voltam, dão três cambalhotas e recuperam a forma humana (grifo nosso).

Deste modo, as striga, assim como as feiticeiras descritas no Canon Episcopi (apud RUSSELL, 1995, p. 292), enfeitiçariam os homens – “mentes hominum se immutare posse”. Além disso, elas saem em noites determinadas – “certis noctibus” – para praticar malefícios. 3.3.2 Diana, deusa dos pagãos Como visto anteriormente, o Canon Episcopi está relacionado a diversas tradições populares da Idade Média. Uma das tradições mais significativas presentes no Canon são as cavalgadas com Diana. Sobre Diana, Russell (1995, p. 47) diz: suas características mais bem conhecidas são aquelas de dama caçadora, a fria e pálida virgem da lua, que transforma seus futuros amantes em animais e os mata. [...] A virgem caçadora também era a protetora dos animais [...] e consequentemente garantidora de sua fertilidade. Foram as inclinações de Diana à procriação que a fizeram deusa da lua, cuja fase crescente simboliza aumento, e cujos chifres naquele estágio simbolizam (entre outras coisas) o estranho puxar lunar sobre os animais; a lua também era associada com o ciclo mensal das fêmeas humanas e, portanto, Diana era a guardiã da fertilidade das mulheres bem como a dos animais (tradução nossa).72 of the wild ride or wilde Jagd. The four traditions are fused in the notion of the woman who flies out at night to the worship of strange gods. If the blood drinking and cannibalism of the strigae is not yet present in the canon, it soon will be, as will the idea of flight on animals or fences or sticks. In the canon itself, the ride takes place on animals and evidently is terrestrial rather than aerial” (RUSSELL, 1995, p. 81). 72 “Her best-known characteristics are those of the maiden huntress, the cold and pale virgin of the moon who transforms would-be lovers into animals and slays them. […] The virgin huntress was also the protector of animals […] and consequently the guarantor of their fertility. It was Diana’s proclivities for

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Na Idade Média, outros atributos além daqueles da tradição clássica são dados a Diana. Russell (1995, p. 80) fala das tradições relacionadas à deusa romana nesse período: nós descobrimos que o culto a Diana ou deusas da fertilidade relacionadas é uma das práticas pagãs mais resistentes à cristianização nos séculos VII e VIII. Agora ela aparece novamente, como líder da wilde Jagd, como uma deusa e, mais significativamente, como líder de demônios, pois seus seguidores são parte humanos e parte demônios na forma de mulheres (tradução nossa). 73

A versão longa do Canon Episcopi contém detalhes das atividades das mulheres que seriam iludidas pelo diabo e, logo em seguida, cita a deusa Diana: o demônio as seduz com ilusões e fantasmas e elas crêem e professam nas horas noturnas com Diana, a deusa dos pagãos, e inúmeras multidões de mulheres cavalgar sobre certas bestas, e percorrem muitas terras no silêncio noturno, e por juramentos obedecem aos comandos de sua senhora e, certas noites, ao seu serviço são convocadas (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292, tradução nossa). 74

Com base na análise do discurso do documento, é relevante ressaltar as palavras utilizadas pelo Canon Episcopi para descrevê-la. Diana é chamada de domina, uma deusa a qual as mulheres obedecem como uma “senhora”. A respeito disso, Russell (1995, p. 80) coloca que: não só as mulheres cavalgam com ela, mas a obedecem como sua senhora (domina) ao contrário de seu verdadeiro Senhor, Jesus Cristo (dominus). E elas se encontram secretamente em noites específicas para cultuá-la. Ainda estamos longe do sabá do século XV, mas agora pela primeira vez muitos dos

procreation that made her the goddess of the moon, whose crescent phase symbolizes increase, and whose horns in that stage symbolize (among other things) the strange lunar pull upon animals; the moon was also associated with the monthly period of human females, and hence Diana was a guardian of fertility of women as well as that of animals” (RUSSELL, 1995, p. 48). 73 "We have found the worship of Diana or related fertility goddesses one of the pagan practices most resistant to Christianization in the seventh and eighth centuries. Now she appears again, as the leader of the wilde Jagd, as a goddess, and, most significantly, as the leader of demons, for her followers are partly human and partly demons in the shape of women" (RUSSELL, 1995, p.80). 74 “Daemonum ilusionibus et phantasmatibus seductae, credunt se et profitentur nocturnis horis cum Diana paganorum dea et innumera multitudine mulierum equitares uper quasdam bestias, et multa terrarum spatia intempestate noctis silentio pertransire, eiusque iussionibus velut dominae obedire, et certis noctibus ad eius servitum evocari” (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292).

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elementos da bruxaria posterior foram reunidos, amalgamados e classificados como heresia e diabolismo (tradução nossa).75

Existem referências à deusa Diana durante a Idade Média. Contudo, elas são esporádicas (FLINT, 1994, p. 122). Ginzburg (2012, p. 127) relata: no início do século V, num sermão contra os pagãos, Máximo de Turim descreveu um camponês embriagado pronto a mutilar-se em honra de uma deusa inominada (talvez Cibele) e comparou-o a um dianaticus ou a um adivinho. O termo dianaticus, introduzido pela especificação “como dizem as pessoas [sicut dicunt]” era, portanto, uma palavra de uso corrente; à semelhança de seu sinônimo lunaticus, provavelmente significava “endemoninhado”, “possesso”, presa de um frenesi religioso. Gegório de Tours fala de uma estátua de Diana venerada nas proximidades de Trèves; ainda no final do século VII, as populações da francônia, segundo uma biografia de são Ciliano, manifestavam hostilidade contra os missionários cristãos homenageando a “grande Diana”.

Ademais, Diana é frequentemente relacionada a outras divindades. Flint (1994, p. 122) comenta: como tem sido frequentemente apontado, Diana podia ser facilmente associada, e de fato igualada, a outras deusas femininas, como a grega Hécate acompanhada por seus cães ou a alemã Holda, como seres e bestas que se moviam livremente no ar, entre a terra e a lua (tradução nossa). 76

Uma das principais referências para a conexão entre Diana e Holda é Bucardo de Worms, em seu Decretum e seu Corrector – décimo nono livro do Decretum –, escritos entre os anos 1008 e 1012. Ambos os volumes citavam o Canon, frequentemente fazendo pequenas adições ou alterações. Holda seria uma deusa da fertilidade do norte alemão e líder das cavalgadas selvagens (RUSSELL, 1995, p. 81). Bucardo fala de voos com Holda e Diana e recomenda diferentes penas para essas ocorrências: “um ano de penitência por voar

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“Not only do the women ride out with her, but they obey her as their lady (domina) as opposed to their true Lord, Jesus Christ (dominus). And they meet secretly on specified nights to worship her. We are still far from the Sabbath of the fifteenth century, but now for the first time many of the major elements of later witchcraft have been brought together, amalgamated, and labeled as heresy and diabolism” (RUSSELL, 1995, p. 80) . 76 “As has frequently been pointed out, Diana could easily be associated, and indeed equated, with other female goddesses, such as the Greek Hecate accompanied by her hounds or the German Holde, as beings and beasts who moved freely between the earth and the moon (FLINT, 1994, p. 122).

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com Holda e por voar com Diana ou participar de combates demoníacos, dois anos. É pior se há blasfêmia ativamente envolvida” (FLINT, 1994, p. 123, tradução nossa). 77 Quanto à Herodíade, ela é mencionada pelo Decretum, de Bucardo. Ginzburg (2012, p. 107) diz: “cem anos depois, em seu Decretum, Bucardo, bispo de Worms, retomou com variantes mínimas esse cânone, [...] e agregando ao nome de Diana o de Herodíade (cum Diana paganorum dea vel Herodiade)”. Herodíade faz parte da tradição cristã. De acordo com Cohn (2000, p. 168, tradução nossa) ela foi: “a mulher de Herodes, o tetrarca, e a instigadora do assassinato de João Batista”.78 Lea (1939, p. 1441-1442) sugere uma provável origem para a relação entre Diana e Herodíade: Baronius [...] declara que nos atos de São Dâmaso (papa 366-84), antigamente recitado nas igrejas, há um relato de um concílio romano no qual, entre outras coisas, foi decretado “excomungadas por todos os malefícios, feitiçaria, sortilégio e todas as demais superstições cujas mulheres, principalmente aquelas que são iludidas por demônios e pensam que vagam à noite sobre animais com Herodíade”. [...] É claro que isso é muito posterior a 382 – e mesmo a Regino – mas pode indicar a fonte da qual Bucardo retirou Herodíade como adjunta a Diana (tradução nossa).79

A primeira menção a Herodíade como líder de espíritos malignos aparece em 936, em um escrito do bispo de Liège que: “condena aqueles que acreditam que Herodíade reina um terço do mundo” (RUSSELL, 1995, p. 75, tradução nossa). 80 Russell (1995, p. 310, grifo do autor) prossegue: a idéia de que Herodíade reinava um terço do mundo pode bem ter sido derivada dos poderes trinos de Hécate. Não há razão particular pela qual essa vilã bíblica deveria ser selecionada como líder de tropas de seres malignos 77

“One year’s penance for flying with Holde, and for flying with Diana or indulging in demonic combats, two years. It is worse if there is active blasphemy involved” (FLINT, 1994, p. 123). 78 “The wife of Herod the tetrarch and the instigator of the murder of John the Baptist” (COHN, 2000, p. 168). 79 “Baronius […] states that in the Acts of St. Damasus (Pope 366-84), formerly recited in the churches, there is an account of a Roman Council in which among other things it was decreed ‘excommunicandos esse omnes maleficiis, auguriis, sortilegiis omnibusque aliis supertitionibus vacantes; qua sentential praesertim foeminas illas plectendas esse quae illusae a daemone se putant noctu super animalia ferri atque una cum Herodiade circumvagari’ […] Of course this is long posterior to 382 – and even to Regino – but it may indicate the source whence Burchard drew Herodias as an adjunct to Diana” (LEA, 1939, p. 1441-1442). 80 “Condemns those who believe that Herodias rules one-third of the world” (RUSSELL, 1995, p. 75).

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além da semelhança superficial de seu nome ao nome da deusa. Esse argumento é confirmado pelo subsequente lugar comum de ligar o nome de Herodíade ao de Diana em relatos sobre o voo das bruxas (tradução nossa). 81

Além de Herodíade, Diana também era relacionada à Hécate. Segundo Cohn (2000, p. 168): “deusa da lua e amante da noite, Diana também era, em um de seus aspectos, identificada com Hécate, deusa da magia. E era característico de Hécate que ela cavalgava à noite, seguida por uma tropa de mulheres, ou melhor, almas disfarçadas de mulheres” (tradução nossa). 82 Ginzburg (2012, p. 109-110) comenta a razão dessas conexões: a presença dessas variantes indica que tradições similares, ou percebidas como tal, foram detectadas em tempos e lugares diferentes. Isso poderia confirmar a difusão dessas crenças; contudo, permanece a dúvida sobre se canonistas e bispos (como mais tarde os inquisidores) forçavam para dentro de módulos preestabelecidos as crenças que combatiam. Por exemplo, a referência à Diana, “deusa dos pagãos”, faz suspeitar logo da presença de uma interpretatio romana, de uma lente deformante, derivada da religião antiga.

Deste modo, não se sabe se as diversas associações de divindades com Diana tratam de tradições de certo modo similares que foram, posteriormente, agrupadas ou se trata de uma tentativa, por parte dos clérigos, de agrupar essas tradições em moldes pré-determinados, uma espécie de interpretatio romana.83 Kieckhefer (1976, p. 39) levanta a possibilidade de uma interpretatio Christiana: “a tradução de noções pagãs em termos cristãos, o autor igualava divindades pagãs com demônios, e atribuiu a crença popular em cavalgadas noturnas à sugestão de espíritos malignos” (tradução nossa).84 81

“The Idea that Herodias rules one-third of the world may well be derived from the three-fold powers of Hecate. There is no particular reason why this one Biblical villainess should be selected as a leader of troops of evil beings other than the superficial resemblance of her name to that of the goddess. This argument is confirmed by the subsequent commonplace of linking Herodias’ name with that of Diana in accounts of the witches’ flight (RUSSELL, 1995, p. 310). 82 “Goddess of the moon and lover of the night, Diana was also, in one of her aspects, identified with Hecate, goddess of magic. And it was characteristic of Hecate that she rode at night, followed by a train of women or rather souls disguised as women” (COHN, 2000, p. 168). 83 “Identificação dos deuses nativos com equivalentes romanos, seja pela associação do nome do deus nativo à divindade romana, seja pela latinização pura e simples do nome da divindade indígena” (MENDES; OTERO, 2004, p. 202). 84 “The translation of pagan notions into Christian terms, the author equated pagan deities with demons, and attributed the popular belief in nightly rides to the suggestion of malign spirits” (KIECKHEFER, 1976, p. 39).

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O autor prossegue, dizendo que embora possa existir uma interpretação por parte dos clérigos, seria incorreto dizer que havia um culto real a essas deusas, que depois foram associadas a demônios. Kieckhefer (1976, p. 39) coloca que: a interpretatio Christiana não sugeriu que pagãos reconheceram a verdadeira identidade de seus deuses e persistiram em venerá-los apesar desse conhecimento, como no diabolismo. Nem há a implicação dessa interpretação de que havia qualquer tipo de pacto recíproco entre o diabo e seus partidários (tradução nossa).85

Assim, as cavalgadas com Diana fazem parte de uma ampla tradição que associou Diana a divindades diversas durante a Idade Média – e mesmo durante a Idade Moderna, embora esse não seja o foco da pesquisa. O Canon Episcopi liga Diana ao paganismo e, portanto, a demônios. Deste modo, ainda que as punições destinadas àquelas que sonhavam ou acreditavam cavalgar com Diana fossem relativamente leves, era necessário que os bispos fossem instruídos a lidar com esses casos. 3.3.3 As cavalgadas noturnas Além de Diana, outra tradição presente no Canon Episcopi é a das cavalgadas noturnas, muitas vezes relacionadas a tradições germânicas a exemplo da Valquírias e da wilde Jagd. Desde os estudos de folclore feitos por Jacob Grimm (1883) foram feitas relações entre as tradições germânicas sobre cavalgadas que ocorriam à noite e as tradições sobre feitiçaria. Grimm (1883, p. 1045, grifo do autor): “até o último período nós percebemos em todo o negócio das bruxas uma clara conexão com os sacrifícios e mundo espiritual dos antigos alemães” (tradução nossa).86 Russell (1995, p. 48) fala das Valquírias: as Valquírias mudavam de forma, cavalgavam à noite, e se encontravam no trolla-thing, onde divertimentos antecipatórios do sabá ocorriam. O deus Odin

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“The interpretatio Christiana did not suggest that pagans recognized the true identity of their gods and persisted in venerating them despite this knowledge, as in diabolism. Nor did this interpretation imply that there was any sort of reciprocal pact between the devil and his adherents” (KIECKHEFER, 1976, p. 39). 86 “Down to the latest period we perceive in the whole witch-business a clear connection with the sacrifices and spirit-world of the ancient Germans” (GRIMM 1883, p. 1045, grifo do autor).

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podia se transformar também, bem como a deusa Freya, que caçava à noite montada em um javali (tradução nossa).87

Ainda que a tradição a respeito das Valquírias seja esporadicamente relacionada às cavalgadas contidas no Canon Episcopi, as referências são escassas. Mais frequentemente, a tradição germânica relacionada às cavalgadas noturnas é a das caçadas selvagens, ou wilde Jagd: a tradição teutônica mais influente na bruxaria foi a rota selvagem, ou Wilde Jagd, na qual uma procissão de seres, liderados por um espírito, vagava pelo campo se divertindo, matando, devastando ou comendo qualquer coisa que eles encontrassem em seu caminho (RUSSELL, 1995, p. 79, tradução nossa). 88

A tradição das caçadas selvagens possui origem germânica; contudo, a partir do século XI muitos textos a respeito dessa narrativa começaram a circular. Assim, em locais diferentes, personagens míticas diferentes lideram a caçada. Ginzburg (2012, p. 123) diz que: a partir do século XI, uma série de textos literários em latim e em língua vulgar, proveniente de grande parte do continente europeu – França, Espanha, Itália, Alemanha, Inglaterra, Escandinávia –, fala das aparições do “exército furioso” (Wütischend Heer, Mesnie furieuse, Mesnie Hellequin, exercitus antiquus), também chamado de “caça selvagem” (Wilde Jagd, Chasse sauvage, Wild Hunt, Chasse Arthur). Nessas aparições, reconhece-se a tropa dos mortos; às vezes, mais precisamente, o batalhão dos mortos antes do tempo – soldados caídos em combate, crianças não batizadas. Como seus guias, alternam-se personagens míticas (Herlechinus, Wotan, Odin, Artur e assim por diante).

Russel (1995) aponta a relação entre Diana e Holda feita por Bucardo no início do século XI como evidência de que a ideia das striga, analisada anteriormente, estava conectada a das cavalgadas noturnas. Segundo o autor: “aqui está uma evidência adicional conclusiva de que [...] a ideia das strigae havia sido ligada a das cavalgadas selvagens” (RUSSELL, 1995, p. 81, tradução nossa). 89 87

“The Valkyries shifted their shape, rode out at night, and met at the trolla-thing, where revels anticipatory of the sabbat occurred. The god Odin could transform himself too, as could the goddess Freya, who hunted nightly astride a boar” (RUSSELL, 1995, p. 48). 88 “The Teutonic tradition most influential in witchcraft was the wild rout, or wilde Jagd, in which a procession of beings, led by a spirit, roamed through the countryside reveling, killing devastating, or eating whatever they found in their path” (RUSSELL, 1995, p. 79). 89 “Here is further, conclusive evidence [...] that the idea of the strigae had been linked to that of the wild ride” (RUSSELL, 1995, p. 81).

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Ginzburg (2010) também relaciona as cavalgadas noturnas a crenças relacionadas ao Canon Episcopi. De acordo com o autor: Holda, com efeito, analogamente à sua coirmã da Alemanha meridional, Perchta, é ao mesmo tempo deusa da vegetação, e portanto da fertilidade, e guia do “exército furioso” ou da “caça selvagem” (Wütischend Heer, Wilde Jagd, Mesnie Sauvage) – isto é, do bando dos que morreram prematuramente, que percorre à noite, implacável e terrível, as ruas das aldeias, enquanto os habitantes trancam as portas em busca de proteção. Não há dúvida de que as cavalgadas noturnas das mulheres adeptas de Diana são uma variante da “caça selvagem”; e explica-se assim a espantosa presença de Diana, “deusa dos pagãos”, entre esses mitos populares (GINZBURG, 2010, p. 65).

Autores com estudos mais recentes também fazem essa conexão, a exemplo de Durrant e Bailey (apud HUTTON, 2014, p. 161): em lendas alemãs e celtas, a Caçada Selvagem consistia em um bando de fantasmas ou espíritos que cavalgariam à noite. A caçada era geralmente liderada por uma figura divina ou semi-divina, ou feminina… ou masculina, frequentemente chamada de Herne o Caçador. Na Europa cristã durante a Idade Média, autoridades frequentemente transformavam a líder feminina das caças selvagens na deusa clássica Diana… Em adição, a crença desenvolveu que grupos de mulheres, em vez dos espíritos dos mortos, cavalgariam com Diana ... Essa crença era uma importante base para as noções posteriores de voos noturnos e sabá das bruxas (tradução nossa).90

Outros autores relacionam as caças selvagens ao Canon Episcopi, a exemplo de Eliade (1979) e Jones e Pennick (1995); no entanto, estes parecem não discorrer sobre o assunto. Eliade (1979, p. 87), por sua vez, rejeita a comparação com os wilde Heer: “falta-lhes o traço mais característico: o barulho terrífico que amedronta toda a aldeia”. Russell (1995) e Ginzburg (2012), apesar de relacionarem essas crenças germânicas às tradições contidas no Canon, citam exemplos tardios – do século XI e XV respectivamente. Eles serão tratados de maneira breve, por não estarem

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“In German and Celtic legend, the Wild Hunt consisted of a band of ghosts or spirits who would ride through the night. The hunt was usually led by a divine or semi-divine figure, either female ... or male, often called Herne the Hunter. In Christian Europe during the Middle Ages, authorities often transformed the female leader of the Wild Hunt into the classical goddess Diana ... In addition, the belief developed that groups of women, instead of the spirits of the dead, would ride with Diana ... This belief was an important basis for the later notions of night flight and the witches’ sabbath” (DURRANT; BAILEY apud HUTTON, 2014, p. 161).

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diretamente relacionados ao Canon e por fugirem do recorte temporal da presente pesquisa. Russell (1995, p. 96) conta um relato de Orderic Vitalis sobre um padre de Bonneville que, em janeiro de 1091, teria sido abordado por um enorme gigante, que pediu que ele parasse. Logo em seguida, o padre teria visto uma procissão daqueles que sofriam no purgatório. O autor coloca que o gigante da narrativa “poderia ser uma representação do Homem Selvagem”.91 Sobre a relação com as cavalgadas de Diana, o autor coloca que: todos esses elementos parecem estar relacionados à caçada selvagem, e a conexão é firmemente demonstrada pelo fato de que o líder da procissão era Harlequim. A procissão de Orderico lembra tanto a caça selvagem quanto as cavalgadas noturnas Diânicas (RUSSELL, 1995, p. 97, tradução nossa). 92

Ginzburg (2012) em uma pesquisa posterior à citada anteriormente, parece chegar a uma conclusão diferente. Ele encontra paralelos entre o exército selvagem e as cavalgadas de Diana nos sermões de um pregador do século XV, que será citado de maneira breve, pois foge ao recorte temporal da presente pesquisa. Contudo, desta vez, ele encontra discrepâncias entre as tradições da procissão de mortos e as cavalgadas com Diana: as procissões de mortos eram “de modo geral conduzidas por figuras masculinas míticas ou mitificadas, manifestava-se quase exclusivamente a homens [...] O cortejo das mulheres extáticas, guiado por figuras femininas, manifestava-se quase sempre a mulheres” (GINZBURG, 2012, p. 125). Ao analisar sua fonte, Ginzburg (2012, p. 126) conclui dizendo que aquela “pode ser considerada uma variante isolada”. Ora, “os sonhos com Diana eram, aparentemente, confinados às mulheres” (FLINT, 1994, p. 122).93 Como poderia, então, uma única referência ao bando dos mortos no século XI provar a relação entre as caçadas selvagens e as cavalgadas de Diana no Canon Episcopi?

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“The giant may be a manifestation of the Wild Man” (RUSSELL, 1995, p. 97). “All these elements seem related to the wild chase, and the connection is firmly demonstrated by the fact that the leader of the procession was Herlechin. Orderic’s procession resembles both the wild chase and the Dianic riding-out at night” (RUSSELL, 1995, p. 97). 93 “Diana dreams were, apparently, confined to women” (FLINT, 1994, p. 122). 92

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Hutton (2014), por sua vez, coloca que as relações entre essas tradições distintas podem ter sido feitas por alguns autores devido ao trabalho de Grimm (1883). Segundo Hutton (2014, p. 175): “ela é essencialmente uma construção moderna, grandemente derivada do trabalho de Grimm” (tradução nossa). 94 Em seguida, Hutton (2014) classifica os elementos vistos anteriormente em três tradições distintas: uma procissão de espíritos femininos, frequentemente incluindo seres humanos privilegiados e com frequência lideradas por uma mulher sobrenatural, cujos clérigos medievais chamavam Diana ou Herodíade e que era conhecida por uma série de nomes locais; um caçador espectral solitário, tido como demoníaco, amaldiçoado, ou de outro mundo; e uma procissão dos mortos humanos, normalmente pensados como estando vagando para expiar seus pecados, com freqüência barulhentos e tumultuosos e geralmente consistindo daqueles que haviam morrido prematura e violentamente. A primeira delas pode bem ter origens pré-cristãs, e provavelmente contribuiu diretamente para a formulação do conceito do sabá das bruxas. As outras duas parecem ser medievais em sua concepção, a terceira estando diretamente relacionada à crescente especulação sobre o destino dos mortos nos séculos XI e XII (HUTTON, 2014, p. 175, tradução nossa).95

Ainda que haja referências tardias, elas são escassas e inconclusivas. Segundo Kieckhefer (1976, p. 161) “saberes modernos sobre a ‘caçada selvagem’ [...] não contam como evidência para a sobrevivência das ideias citadas no Canon Episcopi, apesar de sua semelhança”. Assim sendo, por meio do Canon sozinho não é possível ligar as crenças relacionadas às cavalgadas de Diana às caçadas noturnas. De qualquer modo, é possível responder à questão levantada no início da pesquisa. De que maneira as crenças contidas no documento eram vistas pelos clérigos do século X? Como visto anteriormente, o Canon não condenava a participação real nesses encontros, mas a crença de que dele se participava, já que essa era uma ilusão 94

“It is essentially a modern construction, derived largely from the work of Grimm” (HUTTON, 2014, p. 175). 95 “A procession of female spirits, often joined by privileged human beings and often led by a supernatural woman whom medieval clerics called Diana or Herodias and who was known by a range of local names; a lone spectral huntsman, regarded as demonic, accursed, or otherworldly; and a procession of the human dead, normally thought to be wandering to expiate their sins, often noisy and tumultuous, and usually consisting of those who had died prematurely and violently. The first of those may well have pre-Christian origins, and probably contributed directly to the formulation of the concept of the witches’ sabbath. The other two seem to be medieval in their inception, with the third to be directly related to growing speculation about the fate of the dead in the eleventh and twelfth centuries” (HUTTON, 2014, p. 175).

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causada por demônios. Flint (1994, p. 124, grifo do autor) coloca que: “tanto Bucardo quanto Regino são, ademais, insistentes que elas [as cavalgadas] são meramente sonhos” (tradução nossa).96 Essas crenças, portanto, não recebem punições tão pesadas, já que esses encontros não eram tidos como reais. Ainda assim, é evidente que um sonho com Diana, “a deusa dos pagãos”, não era o ideal. Flint (1994, p. 125) prossegue: mas isso sendo dito, sonhos como os de Diana não eram de primeira importância, e a atitude das autoridades para com eles é indulgente, mais indulgente do que ela é para rituais e estátuas a Diana. A magia dos céus é perigosa porque os céus são repletos de demônios, mas menos perigosa em certos sonhos do que na realidade (tradução nossa). 97

Portanto, ainda que esses sonhos representassem um risco, eles não eram tão ameaçadores à autoridade da Igreja quanto uma crença de que as cavalgadas de fato haviam ocorrido. Assim, ainda que a punição recomendada pelo Canon seja relativamente branda, há a necessidade de que os bispos sejam instruídos sobre como lidar com tais ocorrências.

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“Both Buchard and Regino are, moreover, insistent that these are merely dreams” (FLINT, 1994, p. 124). 97 “But, that being Said, dreams such as the Diana ones were not of the first importance, and the attitudes of the authorities to them is indulgent, more indulgent than it is to rituals and statues to Diana. The magic of the heavens is dangerous because the heavens are full of demons, but less dangerous in certain dreams than in reality” (FLINT, 1994, p. 125).

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa buscou-se determinar o motivo pelo qual documentos como o Canon Episcopi eram necessários na Europa do século X. Por meio de uma análise do contexto histórico do período, bem como das crenças relacionadas a malefícios e sortilégios, foi possível observar um grande número de supostos praticantes de magia; praticantes que eram altamente requisitados pelos indivíduos do período. Flint (1994, p. 69) coloca que: “muitas pessoas estavam acostumadas a chamar esses ‘feiticeiros’, e a fazê-lo na primeira instância. Costumes e hábitos enraizados e vigorosamente vivos são os mais difíceis de mudar” (tradução nossa). 98 Assim, o Canon veio como um meio de utilizar a crescente influência dos bispos para combater essas forças não-cristãs que representavam certo risco à autoridade da Igreja. Outro dos objetivos da presente pesquisa era compreender de que modo a Igreja do século X via as crenças contidas no documento. No segundo capítulo pode ser observada a concepção de magia da época. A magia era sempre relacionada a demônios, pois um ser humano não seria capaz de realizar tais feitos por conta própria. As crenças apresentadas no documento, portanto, eram vistas como demoníacas e, consequentemente, os indivíduos que demonstrassem tais inclinações deveriam ser punidos. O Canon Episcopi não estabelece as cavalgadas com Diana como algo factual, mas aponta que esses eventos supostamente ocorriam em sonho. Embora as cavalgadas se dessem somente em sonho, ainda havia a necessidade de punição. No entanto, as punições para os indivíduos que sonhassem com Diana não eram severas, o que demonstra que “as autoridades sentiam-se capazes de ser relativamente brandas” (FLINT, 1994, p. 125, tradução nossa). 99 98

“Many persons were accustomed to call upon these ‘sorcerers’, and to do so in the very first instance. Rooted and vigorously alive custom and habit are the most difficult of all to change” (FLINT, 1994, p. 69). 99 “The authorities felt able to be relatively relaxed” (FLINT, 1994, p. 125).

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O terceiro objetivo da presente pesquisa foi a análise de dois elementos contidos no documento: o culto à Diana e as cavalgadas noturnas. De fato, a análise da visão do documento sobre as tradições relacionadas à Diana demonstrou desdobramentos bastante amplos, a exemplo da associação de Diana a deusas de tradições tão diversas como a germânica e a cristã. Essas variantes podem tanto determinar a difusão desse elemento em lugares e tempos distintos, quanto estabelecer a existência de um molde pré-determinado feito pela Igreja. Com as ferramentas disponíveis até então, não foi possível determinar qual dessas alternativas era a correta; contudo, a maioria dos autores aqui analisados parece acreditar em uma espécie de interpretatio nas crenças sobre Diana. Quanto às cavalgadas noturnas, elas resultaram em um desdobramento inesperado. Por meio de leituras preliminares, foi possível ver uma relação entre as cavalgadas de Diana e as caçadas selvagens da tradição popular germânica. No entanto, após uma análise mais cuidadosa, não foi possível encontrar uma conexão entre essas tradições no Canon Episcopi. Sendo assim, ainda que existam esporádicas referências posteriores, que fogem ao recorte temporal deste trabalho, há uma lacuna significativa entre elas e o Canon, de modo que essa associação pode ter sido feita posteriormente. Entretanto, a pesquisa mostrou possíveis conexões entre as crenças sobre as cavalgadas noturnas e as strigae, que poderá servir a uma pesquisa futura.

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REFERÊNCIAS

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FONTES PRIMÁRIAS

CANON EPISCOPI. Canon episcopi. In: RUSSELL, Jeffrey Burton. Witchcraft in the Middle Ages. 5 ed. Ithaca: Cornell University Press, 1995.

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APÊNDICE A – CANON EPISCOPI: TRADUÇÃO DA VERSÃO LONGA

Para que os bispos e os servos dos bispos trabalhem para todos os homens com esforço e dedicação para que as artes perniciosas inventadas pelo diabo, sortilégios e malefícios, sejam erradicados de dentro de suas paróquias e se encontrarem algum homem ou mulher desse séquito desonesto e torpe expulse-o de sua paróquia. Como dizia o apóstolo: evite o herege depois da primeira e segunda admoestação, sabes, porque é subvertido aquele que age deste modo (Tito 3). São subvertidos pelo diabo e cativos dele, os que abandonaram ao seu criador pelo diabo e o apóiam. E, por esse motivo, se deve limpar a Santa Igreja de tal peste. Pois isso não deve ser omitido que certas mulheres se desviaram, seguindo a Satanás (1 Timóteo 5:15). O demônio as seduz com ilusões e fantasmas e elas crêem e professam nas horas noturnas com Diana, a deusa dos pagãos, e inúmeras multidões de mulheres cavalgar sobre certas bestas, e percorrem muitas terras no silêncio noturno, e por juramentos daquela obedecem aos comandos de sua senhora e, certas noites, ao seu serviço são convocadas. Mas tomara que elas, sozinhas, pereçam com sua perfídia e não arrastem muitos consigo em sua infidelidade. Pois um grande número de pessoas, [são] enganadas por falsas opiniões as quais crêem ser verdadeiras e, ao crer, se desviam da fé correta e se voltam aos erros pagãos, quando se acredita existir alguma divindade ou nume além do Um. Por que motivo o sacerdote da Igreja, bem como todos aqueles comprometidos com ele, deve firmemente proclamar que têm conhecido a falsidade [de tais idéias], e que não um espírito divino, mas um espírito maligno inflige tais fantasmas às mentes dos infiéis. Assim, o próprio Satanás, que se transfigura em um anjo de luz, quanto captura a mente de quaisquer mulherzinhas, e as subjuga a si pela infidelidade e incredulidade. Nesse mesmo lugar ele se transforma em pessoas de diversas espécies em suas similitudes. Suas mentes, as quais ele possui, em sonho ilude: vez feliz, vez triste, vez douto, vez indouto. Às pessoas mostrando, cada uma delas

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conduzida por um desviante e com o espírito dele isso compartilham. Opina-se que as mentes dos fiéis saem não em alma, mas em corpo. Quem, então, não sai de si próprio em sonho e visões noturnas e não vê dormindo aquilo que nunca havia visto em vigília? Quem verdadeiramente é tão tolo de acreditar que todas essas coisas, que são feitas somente em espírito, julga-se acontecer no corpo? (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292-293, tradução nossa).

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APÊNDICE B – CANON EPISCOPI: TRADUÇÃO DA VERSÃO CURTA

Deve-se procurar em todo lugar se alguma mulher seja aquela que, por meio de malefícios e encantamentos, diga que pode mudar a mente dos homens, isto é, converter ódio em amor, ou de amor em ódio, ou um bom homem [em um que] dane ou roube. E se alguma é esta que diga que ela própria, com uma turba de demônios transformados à semelhança de mulheres, em certas noites cavalga sobre certas bestas e no consórcio dessas é encontrada, essa tal de todos os modos deve-se expulsar da paróquia (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 291, tradução nossa).

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ANEXO A – CANON EPISCOPI: ORIGINAL DA VERSÃO LONGA Ut episcopi episcoporumque ministri omnibus viribus elaborare studeant ut perniciosam et a diabolom inventam sortilegam et maleficam artem penitus ex parochiis suis eradant, et si aliquem virum aut feminam huiuscemodi sceleris sectatorem invenerint turpiter dehonestatum de parochiis suis eiciant. Ait enim Apostolus: Haereticum post unam et secundam admonitionem devita, sciens, quia subversus est, qui eiusmodi est (Titus 3). Subversi sunt et a diabolo capti tenentur, qui derelicto creatore suo a diabolo suffragia quaerunt. Et ideo a tale peste mundari debet santa ecclesia. Illud etiam non omittendum, quod quaedam scelerate mulieres retro post Satanam conversae (1 Timotheos 5:15), daemonum ilusionibus et phantasmatibus seductae, credunt se et profitentur nocturnis horis cum Diana paganorum dea et innumera multitudine mulierum equitare super quasdam bestias, et multa terrarum spatia intempestate noctis silentio pertransire, eiusque iussionibus velut dominae obedire, et certis noctibus ad eius servitum evocari. Sed utinam hae solae in perfidia sua perissent, et non multos secum in infidelitatis interitum pertraxissent. Nam innumera multitudo hac falsa opinione decepta haec vera esse credit, et credendo a recta fide deviat et in erronem paganorum revolvitur, cum aliquid divinitatis aut numinis extra unum esse arbitratur. Quapropter saccerdotes per ecclesia sibi comissas populo cum omni instantia praedicare debent ut noverint haec omnimodis falsa esse, et non a divino sed a maligno spiritu talia phantasmata mentibus infidelium irrogari, siquidem ipse Satanas, qui transfigurat se in angelum lucis, cum mentem cuiuscunque mulierculae ceperit et hanc sibi per infidelitatem et incredulitatem subiugaverit, illico transformat se in diversarum personarum species atque similitudines, et mentem, quam captivam tenent, in somnis deludens, modo laeta, modo tristia, modo cognitas, modo incognitas, personas ostendens, per devia quaque deducit, et cum solus eius spiritus hoc partitur, infidelis mens haec non in animo, sed in corpore evenire opinatur. Quis enim non in somnis et nocturnis visionibus extra se ipsum educitur et multa videt dormiendo, quae nunquant viderat vigilando? Quis vero tam stultus et hebes sit, qui haec omnia, quae in

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solo spiritu fiunt, etiam in corpore accidere arbitretur? (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 292-293) ANEXO B – CANON EPISCOPI: ORIGINAL DA VERSÃO CURTA

Perquirendum si aliqua femina sit quae per quaedam maleficia et incantationes mentes hominum se immutare posse dicat, id est, ut de odio in amorem, aut de amore in odium convertat, aut bona hominum aut damnet aut subripiat. Et si aliqua est quae se dicat cum daemonum turba in similitudine mulierum transformata certis noctibus equitare super quasdam bestias et in earum consortio annumeratum esse, haec talis omnimodis ex paroechia ejiciatur (CANON EPISCOPI apud RUSSELL, 1995, p. 291).

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