“Diante da lei”: Versão corrigida e atualizada do célebre texto de Franz Kafka

July 17, 2017 | Autor: J. Rodriguez | Categoria: Franz Kafka, Filosofia do Direito, Antropología y Sociología Jurídica
Share Embed


Descrição do Produto

"Diante da lei": Versão corrigida e atualizada
do célebre texto de Franz Kafka


José Rodrigo Rodriguez

Uma mulher negra da cidade vê o guarda parado diante da lei e logo percebe que não vai conseguir entrar. Essa é a função do guarda. Ele foi treinado para isso. Não adianta tentar conversar. Apenas alguém muito ingênuo ou muito desinformado seria capaz de imaginar que uma negra poderia tentar dialogar impunemente com o exército ou com a polícia. Talvez um homem ou mulher do campo, e alguém que viva de fato completamente isolada, ainda poderia pensar que a violência estatal é capaz de diálogo. Na cidade ou no campo de hoje ninguém é assim, tão estúpido, tão estúpida.
A mulher negra da cidade sabe que é preciso lutar pela lei. Como fizeram os sindicatos desde o começo do século XX, época em que eram considerados ilegais. Estavam fora da lei, como ela se sente hoje. E é exatamente por isso que o guarda permanece ali, diante da porta aberta, com ordens expressas para não deixar ninguém entrar, custe o que custar. Pois há muitos negros e negras fora da lei e todos eles e elas têm plena consciência de sua condição. Eles e elas sabem como é lá dentro. Sabem dos benefícios de que gozam todos aqueles e aquelas que já estão dentro da lei: acesso a recursos públicos e a meios simbólicos de reconhecimento.
Armado até os dentes, com o dobro do tamanho do maior dos maiores dos guerreiros chineses gigantes de argila, o guarda grunhe, retesa os músculos e olha para todos os lados. De vez quando examina suas armas para checar se estão realmente carregadas. Pela quantidade de munição, alguém poderia dizer que ele está preparado para uma verdadeira guerra. A mulher negra da cidade tem medo do silêncio do guarda, um silêncio que prenuncia a sua vontade de bater e matar, sem contato visual, sem afeto, sem palavras. Não há espaço para papear, negociar com ele ou tentar suborná-lo. Não há nenhuma empatia.
Não adianta culpar o lobo por ser lobo: essa era uma dificuldade mais do que esperada. Mas ainda assim as pernas da mulher negra tremem no momento em que ela resolve gritar o mais alto possível para que o guarda se afaste e a deixe passar. O guarda permanece impassível, alheio ao que se passa em sua volta. A mulher avança passo a passo, aproximando-se do corpo do guarda. Outras mulheres e homens surgem por detrás dela, alguns armados de paus e pedras, algumas portando facas e espadas, outros armados de revólveres e fuzis, outras completamente desarmadas. O soldado aponta seu rifle para o corpo da mulher negra da cidade enquanto todos os outros e outras permanecem estáticos.
Em breve poderia haver golpes e tiros para todos os lados e sangue espalhado por toda a cena caso eles e elas ultrapassassem a linha de segurança e tentassem entrar à força dentro da lei. Em breve poderia não haver tempo para recarregar as armas diante da quantidade de homens e mulheres que tentariam derrubar o guarda. E haveria reforços. Um homem receberia, talvez, um tiro no rosto e jazeria estirado por ali mesmo. Mulheres negras da cidade feridas, atingidas à queima-roupa, gritariam: "Canalha! Canalha!", por detrás de um leque de sangue, envoltas em um coro de vozes em fúria.
Outra mulher e outro e outra e outro e outra e outro e outra e outro e outra ficariam tontas com as coronhadas aplicadas pelo guarda, agora cercado de todos os homens e mulheres que ainda restariam de pé. Talvez fosse preciso feri-lo ou mata-lo ou torcer para a que ordem de resistir fosse revogada pelas autoridades competentes. Talvez fosse preciso produzir mais pilhas e pilhas de mortos e feridos mais sangue embebendo o cimento sujo de restos de couro, borracha, chiclete e cigarros, como de hábito em todas as lutas pela lei que se desenrolaram pela história recente do Ocidente.
Mas talvez nada disso ocorra de fato. Talvez nada disso seja mais possível. Basta que se imagine que a lei não mais exista. Também o estado e a sociedade civil, apenas regras privatizadas nascidas de contratos. Regras que reduzem tudo a interesses privados e reclamam validade sobre todo o Globo, bem longe da mulher negra da cidade que agora procura uma porta por onde ela pudesse querer entrar. Uma porta suspensa no ar, talvez, uma porta enterrada na terra, bem fundo, imune à luta social, pairando na esfera rarefeita do mundo transnacional, que fica em todos os lugares e em lugar nenhum. A mulher negra anda em círculos sobre uma superfície curva e sem fissuras, sem um resquício sequer de cor, em busca de um guarda e de uma porta impossíveis neste mundo branco sólido e compacto que começa a dobrar-se sobre si mesmo.
Hoje sabemos quão estúpido é postar-se diante da lei. Depois da história de um século, sabemos que criticar a lei é lutar por ela. Por isso mesmo as portas e os guardas continuam desaparecendo e com eles a memória das portas e a memória de entrar e sair. Hoje se trata de convencer a todos e a todas que tudo o que existe e poderia existir significa permanecer onde e como já se está. Destruir a memória social de entrar e de sair, pois as regras estão fugindo do direito. As normas contratuais estão sendo novamente imunizadas para se verem totalmente livres da força da lei.
Para voltar a lutar pela lei será preciso lembrar como um dia a luta social a inventou. Será preciso lembrar de sua gênese na luta da igualdade burguesa contra um pântano de privilégios de direito natural, gozados por religiosos venais e nobres de sangue azul e pútrido. Será preciso reinventar a lei; lembrar do desejo de dar a lei a nós mesmo, de instituí-la autonomamente, contra a privacidade dos contratos. Será preciso lembrar como a classe operária civilizou o direito conferindo a ele a ambiguidade que motiva e acirra o processo de fuga da lei.
Será preciso lutar, de novo, contra a liberdade das partes e de mercado e pelo controle coletivo de nossos destinos. Pois a lei ainda é o inimigo que eles e elas mais temem. Lei que transforma tudo em que toca em espaços de escolha humana coletiva. Lei que torna mutável e plástico todo conteúdo supostamente inscrito na face de solenes e vetustas "tábuas da lei". Lei que é o último refúgio possível para a autonomia em um mundo marcado pela tecnocracia e pelo biopoder que deseja transformar tudo em natureza animal imutável. A lei não é eterna e pode desaparecer da face da Terra.
A verdade da lei é a luta social.
Em um mundo branco, compacto e sem fissuras, multidões andam em círculos sobre espaços vazios que se dobram sobre si mesmos. Procuram alguma coisa, insatisfeitos, insatisfeitas, indignados, assustados, mas não encontram sequer uma sombra. E ninguém fala com eles ou com elas, nada e ninguém lhes diz respeito, não há inimigos a enfrentar. O solo é grosso sobre seus pés, não faz calor nem faz frio, milhões de pontos brancos, negros, vermelhos e amarelos vagam sobre uma superfície branca e contínua que será necessário quebrar. Abrir buracos, fendas, fissuras, crateras para atingir o que está dentro. Mas por enquanto, todos e todas apenas caminham. Perplexos, perplexas, ocupando espaços vazios, incomodando o trânsito, oferecendo espetáculos coloridos para a internet e para a televisão. Ainda sem gume.
Ainda.

4










Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.