Diário de Nicolau Falkenstein (1451)

June 6, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Gil Vicente, História do teatro português
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ANEXO - Este anexo apresenta uma tradução da parte do diário de Nicolau Falkenstein, referente ao período entre o dia 13 e o dia 25 de Outubro de 1451, onde o clérigo alemão descreve as festividades nupciais de D. Leonor, irmã do rei D. Duarte, com o imperador alemão Frederico III. A tradução utiliza como fonte o texto em latim publicado por António Caetano de Sousa nas suas Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa.

No dia do Santo Colomano1, que é o 13º do mês de Outubro, a esposa, Senhora D. Leonor, por todos chamada Senhora Imperatriz, foi conduzida solenemente pelo Senhor Rei de Portugal, D. Afonso, pelo do seu irmão Infante D. Fernando, pelo seu tio, D. Henrique2, e pelas duas infantas, irmãs da Senhora Imperatriz, desde o Palácio, que ficava na cidade, até ao Castelo Real, dentro dos muros da cidade, situado no cimo de um alto monte. Aí, numa parte do palácio, cearam, e os Embaixadores ficaram noutra parte, afastados. Tendo terminado a ceia, houve durante toda a noite bailados e diversos e preciosos jogos. Primeiro, apresentaram-se perante a Sereníssima Senhora D. Leonor, Imperatriz, os Reis de armas, os Arautos e os representantes de todas as Rainhas de toda a Cristandade, cada um apresentando uma carta escrita à Senhora Imperatriz. Em seguida vieram Etíopes e Mouros, com um mecanismo que fazia lembrar um dragão, com danças e adornos à moda deles, mostrando reverência à Senhora Imperatriz. Depois veio o Infante D. Fernando com o seu séquito, todos muito bem vestidos, com grande elegância, numa só cor; trazia uma carta na sua mão, anunciando que a sua chegada com a sua milícia se deveu àquela festa nupcial. Depois chegaram homens selvagens de um extremo do mundo, de ilhas de mares longínquos, todavia estando sob o domínio do Sereníssimo Rei de Portugal, afirmando “fomos enviados a estas festas nupciais pelos nossos chefes”. E executaram uma dança especial e maravilhosa, ao modo deles. Eis porque, daquela mesma ilha chamada Canária, houve pessoas nuas de ambos os sexos; essa ilha fora descoberta por acaso pelo Senhor Rei de Portugal, D. Duarte, etc. Depois o sereníssimo D. Afonso, Rei do Algarve e de Ceuta, Senhor Irmão mais velho da Senhora imperatriz, veio com os elementos da sua milícia, convocados e escolhidos especialmente para isto, preciosamente vestidos, em dourados, cobertos de primorosos panos samedins, oferecendo à sua irmã, Senhora Imperatriz, uma Carta sua, afirmando que chamara de partes longínquas da terra, os seus companheiros de armas e guerreiros muito fortes para virem a estas festas nupciais, desejosos de feitos militares. Depois chegaram os nobres da Alemanha, com cabeleiras onduladas até aos ombros, com a sua carta. E, na presença da Senhora Imperatriz, testemunharam que tinham sido escolhidos para vir da Alemanha a estas festas nupciais e, desejando enfrentar todas as outras nações, apresentaram-se. No dia 14 de Outubro, D. Leonor, esposa e imperatriz, foi conduzida com um grande fausto e grande aparato, desde o castelo real, para baixo, até um palácio, localizado no meio da cidade de Lisboa; para aí diversos jogos (ludi)3 tinham sido preparados: na porta do referido castelo sentavam-se com grande pompa sete eleitores do Sacro Império Romano, etc.. Estes elegeram por unanimidade, servindo-se das suas cartas, o Sereníssimo Senhor D. Frederico, Rei dos Romanos, como Imperador digníssimo. Num segundo local, sentava-se o Bispo de Colónia com os seus eleitores, nomeando o 1

Actualmente, o dia 13 de Outubro é para a Igreja o dia de Santo Eduardo; existe um dia dedicado a um Santo Columbano, mas é o dia 23 de Novembro; na tradução de Luciano Cordeiro, utilizada por Luiz Francisco Rebello, o Santo recebe o nome de Colomano, cuja referência não conseguimos encontrar. Permanece a dúvida, portanto. 2 Infante D. Henrique, irmão de D. Duarte. 3 Esta palavra “ludi”, que significa à letra jogos, era utilizada para referir diferentes celebrações, incluindo representações de tipo teatral. 2

mesmo Senhor como imperador. Em frente, num terceiro local, que era o principal, sentava-se o Sumo-Pontífice, o Senhor Papa, com os Senhores Cardeais, coroando com insígnias e coroas imperiais o Senhor Rei dos Romanos, Frederico, e a sua esposa, virgem, Senhora D. Leonor, sempre com cartas e com discursos. Em seguida, num quarto local, em frente à Sé Catedral, onde repousa o corpo de S. Vicente, sentava-se o Reverendíssimo Senhor Bispo, com os seus cónegos e outros clérigos, com as suas vestes, proclamando a Senhora esposa Imperatriz, D. Leonor, que estava presente, a cavalo, com os irmãos, irmãs e Embaixadores4. A quem o Senhor Bispo deu a benção, dizendo: “Cresçam, floresçam e multipliquem-se o teu nome e a tua geração, como as areias do mar. E a benção do Deus Omnipotente esteja sobre ti e a tua descendência seja longa e abençoada, e que todos os povos cristãos te sirvam”. Entretanto apareceu um jovem, vestido à moda de anjo, trazendo do alto da torre da referida igreja uma coroa de ouro à esposa Imperatriz, descendo por engenho humano e cantando no ar: “Aceita a coroa aqui na terra para que no céu sejas coroada por Deus sobre todos os elementos”. E ali o local fora disposto ao modo do Paraíso, do qual um menino angelical, nas alturas, veio pelo ar através de uma janela da torre, trazendo num açafate dourado rosas, lançando-as sobre a cabeça da Senhora Imperatriz e cantando: “Aceita as flores e as rosas, para que tu e os teus descendentes floresçam na terra e com a flor das virtudes, depois de viveres muito tempo na terra, mereças receber nos céus a flor da eterna felicidade”. Num quinto local, perto da referida Catedral, virado a ocidente, foi feita uma paragem. E ali estava congregado muito povo, quase vinte mil pessoas de ambos os sexos, e, quase ao meio-dia, foi feito um discurso por um Doutor notável, em honra e em louvor do Senhor Imperador e da sua esposa, proclamando louvor e toda a honra. No mesmo local tinham sido alinhadas tantas pessoas da realeza, com vestimentas, armas e coroas, quantos os Reis dos reinos de Portugal e dos Algarves, desde o início até ao rei actual, D. Afonso. E ali, outro seu famoso Doutor enalteceu arrebatadamente e maravilhosamente os feitos realizados em prol da Fé Cristã e da República, e proclamou de que modo quantas vezes se expuseram aos Pagãos e aos Infiéis, e obtiveram a vitória. E como prestaram auxílio e observaram sempre obediência à Santa Igreja Romana, subjugaram a si os Africanos e implantaram a fé católica em muitos locais. Ali ouvi a perseverança da fé Cristã no Reino de Portugal e como os Reis de Portugal enfrentaram a morte contra Bárbaros e Africanos, e como a experiência se revela no grande e vasto domínio de Ceuta em África. De que modo, D. Fernando, tio paterno da Senhora Imperatriz, se entregou à morte na defesa do Estado e pela libertação do seu povo em África. E ao ser referida a sua morte, todo o povo começou a chorar, e havia um grande e alto clamor do povo para com Deus, pela alma do referido rei D. Fernando, que assim morreu em África, e que, acredito piamente, está perto da canonização; nunca se poderia narrar esta história sem lágrimas. Num sexto local vieram perante a Senhora Imperatriz três crianças vestidas de anjo. O primeiro anjo trazia o crucifixo, representando a fé que é uma virtude teologal, O segundo anjo, que é chamado a esperança, trazia um ramo verde. O terceiro anjo, que se chamava caridade, trazia na mão uma pomba viva. Disseram à Senhora Imperatriz, Leonor, em fala ritmada, que ela própria, imperatriz, junto ao seu amantíssimo esposo, o Imperador, mantivesse uma firme esperança, uma fé recta, ornamento de todas as virtudes, e para que tivesse maior confiança na coluna imóvel da fé cristã e na caridade perfeita, do que no pai, na mãe e em toda a sua geração. No sétimo local, descendo em direção da praça da cidade, havia uma fonte artificial que jorrava água rosácea para divertimento das pessoas. E aí havia um jardim com diversos animais selvagens. No oitavo local, em frente à Senhora Imperatriz,

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O texto refere várias vezes o termo “Oratores” que deveria corresponder a um cargo próximo de Embaixador. 3

sentavam-se treze profetas, com os seus hábitos à moda dos profetas, cada um com o seu livro na mão, profetizando muitos bens e muita prosperidade ao esposo e à esposa, e que a esposa fora escolhida condignamente. E depois a Senhora Imperatriz dirigiu-se, com o Rei e a Rainha, irmãos e irmãs e com toda a milícia, de local em local, sendo seguida por todo o povo, tudo observando e ouvindo. Havia mais de vinte mil pessoas na comitiva e nos ajuntamentos. E esta procissão durava desde manhã até à noite. No dia 15 do mês de Outubro, o Senhor Rei de Portugal organizou várias danças na praça situada em frente do palácio da Senhora Imperatriz. E à hora do meio-dia o Rei enviou seis touros bravos e perante todo o povo compareceram sarracenos de ambos os sexos com as danças e os seus bailados. E tomaram dois touros vivos, que mataram e dividiram em porções, para distribuir entre si. Porém, no dia 16 do mês de Outubro, o Senhor Rei de Portugal saiu do seu Palácio Real em direção da sua irmã Imperatriz, e vinha assim, com grande reverência: Primeiro um pequeno jovem de uma beleza admirável, montado com muitos enfeites num grande cavalo, coberto por um tecido dourado, e que era seguido por um carro muito ornamentado, que transportava capacetes, escudos e lanças para um torneio. No meio dos capacetes, uma águia tinha o seu ninho. Em seguida vinham doze soldados armados com os seus cavalos e com um grande aparato. E cada soldado trazia cinco servos convenientemente equipados, montados nos seus cavalos, envergando lanças e couraças para confrontos militares. Depois vinham doze Arautos vestidos e armados, a cavalo, e devidamente formados. Depois, tocadores de tuba e de trombeta, admiravelmente enfeitados e formados. Depois vinha o Sereníssimo Senhor Rei de Portugal, gloriosamente, com as suas armas, que nunca eu tal vira acontecer, e era seguido por seis jovens vestidos a ouro e a prata, com todo o encanto, em cavalos belíssimos. E atravessaram assim a cidade, em procissão, até um grande palácio de madeira e vigas e com duas altas torres. As torres e os telhados do palácio estavam cobertos cum um rico tecido cinzento e negro, pintado a ouro e prata; era nesse palácio que o Rei habitava. Porém, no dia 17 do mês de Outubro de manhã, antes do nascer do sol, vieram Cristãos de um dos lados, Sarracenos de outro, também Selvagens de outro, e de outro lado ainda Judeus, cada um deles a cantar na sua língua, gritando e dançando. Porém, à primeira hora daquele dia5 chegou um nobre homem, de nome Lemerent, Capitão-Mor de todo os mares no Reino de Portugal, ele próprio o quinto, preciosamente vestido, magnifico, a cavalo. Ao chegar ao palácio, onde o Senhor Rei de Portugal habitava com a sua guarda, clamava através do seu Arauto, e chamava o Rei Senhor de Portugal e todos os seus soldados para a prática de feitos militares. O Rei de Portugal testemunhou que queria participar e declarou afrontar a todos eles. E à mesma hora apareceu uma serpente artificial, horrível, de pescoço levantado, na qual se sentava um soldado belissimamente armado, exigindo ao Senhor Rei de Portugal para vir lutar, para entrar em duelo e participar no torneio. Entretanto o Senhor Rei de Portugal comparece com os seus doze eleitos, preciosamente e magnificamente armado, a cavalo, cobertos por panos dourados até ao chão. Vinham de um lado e à frente seguiam tocadores de trombetas e Arautos em direcção de uma grande praça. Do outro lado da praça chegou o Senhor Infante D. Fernando, irmão do Rei Senhor de Portugal, preciosa e muito elegantemente, na companhia de arautos e de trombetas e com doze soldados armados. Queria afrontar o Senhor Rei e seus soldados. Esta praça era grande e larga, e no meio dela, atravessando-a a todo o comprimento, uma barreira feita de tábuas e de estacas separava os participantes no 5

Às seis horas da manhã 4

torneio. E essa barreira era totalmente coberta por um rico pano, de cor cinzenta. Em seguida chegou um elefante de grande porte, e havia uma estrutura construída com tábuas, levando sobre si uma torre com ameias, na qual se posicionaram quatro tocadores e quatro pequenos Etíopes, munidos de lanças e de grandes canas, que lançavam sobre o povo maçãs e laranjas. Havia aí um pequeno e jovem Etíope, de nome Peroblanco, que o duque de Sevilha, oferecera ao soldado Cristovão Ungenad. A razão é porque esse soldado, Cristovão Ungenad, do Ducado de Coríntia, viera para o Reino de Portugal, vindo do reino de Granada, com o propósito de lutar; e ele era também um, de entre os participantes no torneio, contra o Rei de Portugal. E participou nestas festas nupciais, porque, por causa de vicissitudes da viagem e de outros perigos, não pudera ir para a Galiza, e assim mais de oitenta homens traziam o referido elefante, que era seguido por oito soldados equipados, em cavalos de diversas cores e de diversas figuras. O primeiro cavalo reproduzia a figura de um autêntico cervo, coberto por um tecido samedim6. O segundo cavalo reproduzia a figura de um unicórnio, coberto até ao chão de tecido samedim. O terceiro cavalo reproduzia a figura de um boi, coberto de tecido samedim. O quarto cavalo reproduzia a forma de um leão, coberto de um tecido samedim. O quinto cavalo reproduzia a figura de um capricórnio, coberto de um tecido samedim. O sexto cavalo reproduzia a forma de um urso selvagem, coberto de um tecido samedim. O mesmo acerca das outras figuras de cavalos. E soldados sentados, elegantes e muito bem equipados, avançavam à sua ordem. Eis a magnificência e a preciosidade, tudo em honra do reino do noivo e da noiva. Veio então o Rei de Portugal, magnificamente armado, num cavalo, com a sua lança, trazendo sobre o seu elmo uma serpente7 dourada, enquanto o irmão do Senhor Rei, D. Fernando, trazia sobre o seu elmo a imagem dourada de um leão8. No dia 18 do mês de Outubro, decorrendo os festejos e as alegrias, compareceu ante o palácio da Esposa, Senhora Imperatriz, um animal horrível, um tipo de dragão, que quarenta homens transportavam. Nele se sentava um soldado esplendidamente armado, que envergava um diadema na cabeça. E, quase todos os dias, passavam à frente dos aposentos dos Embaixadores do Senhor Imperador tocadores de tuba e de trombeta com jogos diversos. E dos dois lados havia trinta e dois participantes no torneio. E o competidor vencedor recebeu da parte da Senhora Rainha, do Reino de Portugal, que até então nunca fora atacada9, um copo de prata dourada. No segundo dia o competidor que obteve a vitória recebeu um “fuzorium”10 dourado. No terceiro dia foi dado ao vencedor um pequeno anel com uma pedra preciosa. E assim, ao quarto dia, de forma idêntica. Os embaixadores não cessavam de solicitar assuntos junto do Senhor Rei. E enviaram repetidamente um mensageiro ao imperador.11 No dia 19 do mês de Outubro houve de novo torneios e bailados como nos dias anteriores. E neste dia mesmo, ao cair da noite, por mandato do Senhor Rei de Portugal, todos os panos dependurados nas paredes durante o período dos torneios foram recolhidos pelo povo. Quem pôde recolheu-os para seu uso. 6

No texto em latim aparece “samedino” que associámos à ilha de Samos, no entanto sem poder confirmar. A tradução, que já referimos, citada por Luiz Francisco Rebello, utiliza o termo “tecidos samedins”. 7 O texto utiliza a palavra “basiliscum”, uma serpente mítica e mágica. Em rigor meio serpente, meio dragão. 8 Qual o resultado deste torneio entre D. Afonso e D. Fernando? 9 Esta passagem “que até então nunca fora atacada“ é para nós incompreensível. 10 Termo latino cuja tradução não encontrámos. 11 Este dis parece confuso, pois estaríamos no dia 18 de Outubro e o autor refere um “segundo” e um “terceiro” e um “quarto” dia; Por outro lado não se compreende se é outro torneio, independente do que foi descrito no dia 17. 5

No dia 20 do mês de Outubro, antes do nascer do sol, chegou à praça uma multidão de ambos os sexos, de diversas nações e de diversas línguas, repleta de alegria e com danças diversas. Entretanto chegaram caçadores com grandes cães que conduziam um leão, um urso e um grande porco selvagem e mostraram uma caçada admirável. Porém, à segunda hora depois do meio-dia12, chegaram homens armados, que lutavam e combatiam uns contra os outros, e depois lutaram dois pequenos pigmeus adultos. No dia 21 do mês de Outubro os torneios foram retomados e os panos ricos e variegados, de diversas cores, foram fixados na parede e estendidos de um lado e de outro lado para o torneio; vieram doze nobres13 e soldados montados em cavalos magníficos, cobertos por tecidos dourados quase até ao chão, belíssimos nas suas armas. E cada um era acompanhado no cavalo por um criado, que o precedia com uma lança. E cada criado estava belissimamente vestido, como os anjos costumam ser pintados. Depois de estes participantes no torneio se terem ido embora há três ou quatro horas, chegou alguém magnificamente vestido, acompanhado de uma grande comitiva, com cavalos maravilhosos, que se intitulava Rei de Tróia, tendo consigo três filhos. O primeiro filho chamava-se Heitor, o segundo Príamo e o terceiro Ajax14, trajando vestes reais e de um aparato brilhante. Dirigindo-se para o salão real ou palácio, onde então estava a esposa, a Senhora Imperatriz, D. Leonor, e onde o Senhor Rei de Portugal, com a esposa e duas irmãs da Senhora Imperatriz, os embaixadores e os maiores nobres se reuniam para almoçar. Esse Rei de Tróia proclamava em voz alta, por intermédio de um seu Arauto, como se tinha sabido nas terras longínquas ultramarinas e principalmente no seu reino de Tróia que o Senhor Rei de Portugal e do Algarve e de outros Reinos, que era seu vizinho em África, dera em casamento a sua irmã mais velha, D. Leonor, ao gloriosíssimo Senhor Imperador, D. Frederico. E para louvor e honra da Coroa Imperial e do seu Reino se propôs competir e realizar magníficos feitos, incluindo actos bélicos e militares no seu reino. Por essa razão, o próprio Rei de Troia, com os filhos e com os seus cortesãos experimentados em acções militares, veio a esta festa nupcial. Queria bater-se contra qualquer pessoa, de qualquer nação ou língua. Isto ouvindo, o Senhor Rei de Portugal com os seus companheiros de armas, saiu do seu palácio e veio propositadamente até à praça, com os seus delegados bem e magnificamente armados, por entre o clamor, o júbilo e os toques de tubas. Aqui, em face da Senhora Imperatriz e das irmãs e da Rainha de Portugal, etc., os magníficos torneios foram realizados, como nunca antes tinham sido vistos iguais. Porque neles participavam grandes nobres de Inglaterra, Escócia, Irlanda e Sevilha e cada um queria aparecer esplendidamente. E perto da hora do sol-pôr a senhora e esposa, a saber, a Senhora Imperatriz, com a senhora, Rainha de Portugal, deu ao vencedor, por uma condessa ainda donzela, um anel de ouro com pedras preciosas. E tendo isto terminado, por mandato régio, os tecidos fixados e estendidos nas paredes foram recebidos pelo povo miúdo, tendo cada um reclamado o que pôde para seu uso. Eis a magnificência. No dia 22 do mês de Outubro de manhã chegou um Senhor a cavalo, esplendidamente e com a sua comitiva, afirmando por intermédio de um Arauto seu que proclamava que ele era um Rei na Europa e que o seu povo o enviara. E por intermédio do Arauto chamou a si todos os Reis e Príncipes asseverando: “Vós que presidis e habitais no universo, eis os males que crescem e desabam sobre 12

Corresponderia às duas horas da tarde No texto original aparece a palavra latina “comites”, que supomos poder corresponder a uma posição hierárquica na estrutura nobilástica (porventura condado) 14 Parece haver incongruência nos nomes. Príamo era rei de Tróia, Heitor era seu flho, e Ajax foi um herói grego que participou na guerra. 13

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nós.” Abriu um grande livro e clamando disse: “Julgai justamente, os filhos dos homens, e aplicai o que é justo, e as muitas leis da justiça”15. Ao meio dia chegaram cavaleiros armados, de acordo com os costumes dos Pagãos e dos Sarracenos, lutando entre si com armaduras, lanças e “dorsiculis”16, tendo cavalos velocíssimos, e que saltavam como cabras monteses, chamados ginetes. São de grande valor. No dia 23 do mês de Outubro juntou-se muito povo em frente ao palácio da Senhora Esposa, isto é da Imperatriz; com diversos instrumentos musicais: tubas, trombetas, etc. E juntaram-se em quatro grupos. No primeiro Cristãos, de ambos os sexos, com danças à sua moda. No segundo Sarracenos, de ambos os sexos, à moda deles. No terceiro Judeus, mais de mil, de ambos os sexos, à moda deles. No quarto Etíopes, Mouros e homens selvagens da ilha Canária , onde as pessoas de ambos os sexos andam nus, pensando que só eles habitam e habitaram no mundo, etc.. É uma longa história a forma como foram descobertos por acaso. Nessa mesma ilha foi começada e implantada a fé Cristã. À segunda hora depois do meio-dia vieram seis soldados, esplendidamente bem armados, da parte do governo da cidade de Lisboa, os quais eram seguidos por todos os membros do governo e pelos mais velhos. E todos estavam muito bem vestidos, da mesma cor, vermelho escarlate. Esses soldados falaram através dos seus Arautos: Se houvesse habitantes do reino ou estrangeiros, de que estado ou de que condição social fossem e que quisessem participar nos torneios ou noutros jogos militares, que comparecessem apetrechados naquela praça naquela hora. Imediatamente, alguns soldados do palácio real, e da Senhora Rainha, muitos hóspedes e filhos da terra, muito bem arreados avançaram, opondo-se corajosamente. E aos vencedores eram oferecidas duas pedras preciosas, incrustadas em ouro. No dia 24 do mês de Outubro o Senhor Rei de Portugal organizou um grande banquete, num palácio, especialmente construído para a ocasião, que era belissimamente decorado com tapetes de diversas cores e com imagens bordadas representando diversas figuras e histórias. Na primeira mesa, sentavam-se as pessoas, em frente a grandes jóias 17 e a magníficos objectos de prata, dispostas assim, à maneira real, e protegidas por guardas: no lugar principal, por debaixo de tecidos dourados, com grande brilho, sentava-se a Esposa, Senhora Imperatriz, D. Leonor. No segundo lugar da mesma mesa sentava-se o Senhor Rei de Portugal, irmão mais velho da Senhora Imperatriz. No terceiro lugar, do outro lado, sentava-se D. Catarina, irmã da Senhora Imperatriz. E ao lado dela, no quarto lugar, sentava-se o Infante D. Fernando, o irmão mais novo da Senhora Imperatriz. No quinto lugar, sentava-se D. Joana, a irmã mais nova da Senhora Imperatriz. E no sexto lugar sentavam-se os Embaixadores do Senhor Imperador. E todas estas pessoas se serviam de água pura à mesa no banquete, excepto D. Fernando, irmão do Senhor Rei de Portugal, e dos Embaixadores do Senhor Imperador que se serviram de vinho misturado com água. Nas outras mesas, por ordem decrescente, sentava-se em primeiro lugar o Senhor Marquês, Condes, Barões, Soldados, e pessoas importantes pela ordem de importância. E do outro lado, em frente a eles, sentavam-se as condessas, as baronesas, nobres senhoras, todas muito bem vestidas e com grande fulgor. E muitos brindes foram oferecidos aos estrangeiros. Quem verá tais coisas? Terminado o almoço irrompeu uma grande alegria em todo o povo com danças e cantos. Vieram cantores muito harmoniosos que

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Qual o papel deste cavaleiro (Rei da Europa) e do texto que proclama? Não conseguimos esclarecer totalmente. 16 Não sabemos o que sºão dorsiculis, podendo corresponder a protecções do dorso. 17 Aparece no texto em latim o termo “clenodiis” cujo significado supomos ser jóias. 7

cantaram canções durante duas horas. Depois veio muita gente, a saber, Cristãos, Sarracenos, Mouros, Judeus e homens selvagens18, alegres e que cantaram durante toda a noite. E havia muitas e fortes luzes por toda a cidade, à frente do palácio, na parte inferior e superior, junto à fachada das casas. No dia 25 do mês de Outubro a esposa, senhora D. Leonor foi conduzida gloriosa e solenemente à Igreja Catedral da sua cidade, onde o corpo de S. Vicente repousa. Nessa mesma igreja, a senhora esposa tinha sido baptizada, quando era recém-nascida, depois do parto, como é costume fazer-se. Aqui foi celebrado solenemente o ofício divino da Epifania do Senhor. E houve cerimónias de oferendas ao altar maior, muito ornamentado, comparecendo com oblações, de acordo com a ordem de hierarquia, os reis e os príncipes. A sereníssima senhora esposa, as irmãs, etc., muito dignamente, também compareceram pela justa ordem. O Reverendíssimo Senhor Bispo de África conduziu o ofício, dando a todos a sua santa benção e a paz. Terminadas as grandes cerimónias, havia muito povo reunido à frente da referida Igreja, esperando a saída da senhora esposa, que tendo saído se voltou e face à fachada da Igreja e ajoelhada em terra recebeu em nome do Senhor a licença de parte de S. Vicente e da Igreja paroquial do santo. E a Senhora Rainha, que então acompanhava a senhora esposa, partiu para um certo sitio fora da cidade. Porque estava grávida e perto de dar à luz. E assim, em procissão, a senhora esposa foi conduzida com grande gáudio pelos irmãos, irmãs, amigos, parentes, príncipes e por todo o povo, para fora da cidade até ao porto de mar. No porto de mar estava atracado um grande navio de nome Carraca. Mas em Veneza é denominado justamente Gocken. E aqui a senhora esposa com os seus parentes, as donzelas, os Embaixadores do Senhor Imperador e demais comitiva entrou no navio e ceou. Ó quantas lamentações e quantas lágrimas do povo havia no litoral do mar! Porque a senhora esposa, era amada por todos, porque causa da sua inata bondade e a virtude. Porém, permaneceu a senhora esposa com a comitiva no porto de mar, durante alguns dias e noites, por causa da preparação de outros navios, da guarda e do que era indispensável; e todos os dias vinha o Senhor Rei de Portugal para consolar a sua irmã, a senhora esposa. E tendo todos os navios sido preparados para a comitiva e com cada uma das coisas que eram indispensáveis: bombardas, caixas, fundas e “Basilistis”19, aptas a serem usadas em caso de defesa, mas também Capitães, marinheiros experimentados na guerra e sobretudo experimentados no mar, mas também ecónomos, pilotos de navios e mestres astrólogos, bem formados em estrelas e nos caminhos do céu. Tendo todos estes equipamentos sido trazidos para os referidos navios, veio o Rei de Portugal com o seu Conselho Régio à presença da senhora esposa, convocando todos os Capitães, soldados, guardas, oficiais e as pessoas mais importantes no navio, para prestarem um novo juramento, comprometendo-se a actuar com fidelidade e, se fosse caso disso, a darem a sua vida. E O Senhor Marquês de Valência, Capitão-Mor de mar e terra, andando de um lado para o outro, foi dando ordens e advertindo todos os Capitães e oficiais a obedecerem rigorosamente, sob pena de morte. E assim, tendo terminado estes actos, o Senhor Rei de Portugal teve várias conversas com os Embaixadores do Senhor Imperador, sobre tão grande expedição e sobre a comitiva, apresentando a sua irmã, a esposa, como autoridade no mar e a ela desejando-lhe o melhor. E com um abraço despediu-se dos Embaixadores.

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“Homens selvagens” no texto poderá corresponder a negros ou africanos. “Basilistis” é um termo latino que não conseguimos decifrar completamente. Poderá corresponder a bestas. 8

Ó Portugal, ó Portugal, belo país. Aqui há abundância de pão, de vinho, e de bom azeite, há muitos frutos de árvores, laranjas, limões, romãs, figos, maçãs, limões20, gado do campo, carnes e peixes, mel doce, em muitos locais cresce a cana do açúcar21. Ó Sintra, ameníssimo local e jardim real, com um pequeno rio com boas trutas. Há aí também irmãos devotos, no Mosteiro de S. Jerónimo, a viver sob a sua regra. Portugal e os Reinos do Algarve são regidos por uma administração de justiça que cumpre e vela pela obediência, dá ao povo paz e administra nestes reinos uma moeda com valor.

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No texto em latim temos “citran” e “lemoni” que parecem referir o mesmo fruto: limões. Como cremos que não existiria cana do açúcar em Portugal no século XV, perguntamos se, em vez de “canis”, que está no texto, seria “panis”, referindo-se a pão, ou seja, a cereal. 21

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