Diário de um olhar

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura, Desenho, Viagem
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Diário de um olhari Emília Ferreira Catarina, de três anos, vai no carrinho, conduzida pela mãe. Nota que, no sentido contrário ao do seu avançar no mundo, o mundo parece recuar. Ficar para trás. E pergunta: — Mãe, quando nós andamos, o mundo também anda?

Dia 1 O homem sentado no lugar 31 encosta a cabeça ao vidro da janela e sonha. Fá-lo de olhos abertos, tentando apreender as nuances da paisagem. Tem já alguns anos de experiência de comboios, aprendeu a ler o movimento com uma clareza crescente. Percebe já as mudanças cromáticas, os volumes, as texturas, as linhas. Observa as mutações do céu, das cores da terra e dos seus acidentes, das árvores, das águas. Até outros movimentos mais súbitos e fugidios, como o voo dos pássaros, a passagem dos carros, nas estradas paralelas, eventualmente o muito fugaz e ruidoso cruzar com um comboio que viaja em sentido oposto. De vez em quando, fecha os olhos. A cabeça enche-se de imagens. De vez em quando, adormece e o seu cérebro trata de recuperar essas informações avulsas, reorganizaas num jogo próprio, dá-lhe a ver um mundo desprovido de barreiras e limpo de sentidos obrigatórios. Opera uma criação que volta a olhar, fascinado, para depois, mais tarde, num novo processo de tessitura, recuperar no atelier. Dia 2 Eis a viagem. Porém, já não como os relatos do outro enquanto reflexo de estranheza e semente de inquietação, ou desapreço pela diferença e confirmação do nosso perfeito lugar e olhar sobre o mundo. Também já não como o registo daquele que pratica o tourismo, num confronto cultural bem pensante sobre o socialmente estabelecido como o digno de ver, impossível de contornar, só para exibir um carimbo extra no passaporte, um enfadado “been there, done that”. Eis a viagem que, mantendo do mundo o acto coleccionador, recolector de paisagens e de bocados de si, é criadora, refazedora de mundos, portanto. Nesse processo, o trabalho de Manuel Vilarinho apresenta-se como uma apropriação do espaço contemporâneo, tal como começou a ser visto no final do século XIX. Desta maneira se pode compreender a sua noção de velocidade e o modo como a

passagem do mundo por nós (meio ilusório de referirmos a nossa passagem por ele) altera a nossa percepção do espaço e opera uma sua fragmentada reconstruçãoii. Dia 3 Viajemos brevemente no tempo. A velocidade (“relação entre o espaço percorrido e o tempo de percurso”iii) começou a surgir como preocupação na obra dos artistas, em meados do século XIX, na sequência da instauração da ferrovia. Então, o olhar deixou-se surpreender por um mundo que já não se movia ao ritmo de passos, ou, no mais veloz dos casos, ao do dos cavalos que então serviam de motor. O comboio, andando acima dos 17 km/hora (algo que no início de Oitocentos se antecipava como de extrema periculosidade) criava outras visões do mundo. Outras percepções do espaço. A sensação de estranheza que hoje experimentamos pela rapidez da viagem de avião (transportando-nos em escassas horas para geografias totalmente diferentes das nossas coordenadas habituais), era então aplicada ao comboio, por diminuir drasticamente as distâncias. Então, a locomotiva “deu ao tempo uma nova velocidade. Reduziu praticamente a Inglaterra a um sexto das suas dimensões. Aproximou o campo da cidade.”

iv

Para além disso – e a par de uma transformação

radical da paisagem, com a instalação de carris, traçando e rasgando novas linhas no espaço físico, aplanando, obrigando à construção de pontes e túneis – a locomotiva obrigou os nossos olhos a uma adaptaçãov. Em 1844, Turner, inspirado por tais movimentos, mostrou-nos no seu quadro «Chuva, vapor e velocidade: o Great Western Railway» (Londres, National Gallery) uma paisagem desfeita, nebulosa, em que o desenho (a definição), está ausente, não havendo lugar para o reconhecimento inequívoco do representado. Essa vaga impressão (antes mesmo dos

impressionistas)

reduziu

o

visível

a

uma

percepção

marcada

pela

instantaneidade. Dia 4 Agora, num momento em que a máquina já não se prefigura como sinónimo absoluto de progresso, e como que num regresso a um tempo que aposta na diversidade de experiências temporais, o que corporiza a organização das paisagens de Manuel Vilarinho é o passeio, o lento saborear do visível, embora completado pela fugacidade de quem passa de carro numa estrada e apreende, em

brevíssimos instantes, as informações visuais que sobressaem da massa da paisagem natural. Por isso, nestas peças, desenho e pintura nutrem-se no acto de passear. No processo, o espaço é visto e construído na e pela memória, através de um olhar que pensa e se erige sobre uma plataforma cultural, pictórica, a recupera e refaz, de acordo com uma lógica interna, própria. Poderíamos agora perguntar: viver o tempo de um modo mais lento implica uma completa memória dos locais e dos eventos? Nada indica que sim. Poderá eventualmente tornar mais impressivas as recordações. Dotá-las de mais completas recolhas dos sentidos: odores específicos de locais visitados, cores, contornos, o frio ou o calor dos dias, ou das noites, até a vaga memória de algum sonho. Mas recuperar o mundo por inteiro, não. Regressemos ao visível. Também já é quase um lugar comum dizê-lo: só vemos o que estamos preparados para ver. O processo é, assim, logo à partida, como que hierarquizado. Não só porque não olhamos para tudo com a mesma atenção (embora possamos, como Walser, recolher do mundo, com igual interesse, o muito alto e o muito baixo), como porque também (e sobretudo) a nossa memória não mantém intactos todos os sinais, realizando as suas próprias sínteses. Como menciona Nelson Goodman, “(…) a feitura de um mundo a partir de outro envolve habitualmente alguma eliminação e preenchimento extensos — excisão real de algum material velho e fornecimento de algum material novo. A nossa capacidade para não ver é virtualmente ilimitada, e aquilo que assimilamos consiste habitualmente em fragmentos significativos e pistas que precisam de completação massiva.” vi Além do mais, como já referimos, estes trabalhos não resultam todos de um tempo lento, mas igualmente de momentos mais rápidos. Da impressão de brevidade que os recolhe e guarda na memória (note-se a citação dos sinais de trânsito: mais do que apontamentos gráficos, destacados da paisagem, eles podem também indiciar simbólicas orientações para rotas interiores), talvez a lentidão maior (a par de alguns passeios dados ao ritmo mais casual dos passos) seja a da sua reconversão em imagens. E do nosso demorado passear por dentro dessas obras tão pouco directas, tão íntimas e pessoais, nas quais acabamos por nos sentir envolvidos, antecipados, igualados à figura feminina que, de dentro da obra, a observa (ver “Passeio Lento em Viagem Rápida, I e II”).

Dia 5 Imediatamente reconhecível nas datas que representam os vários anos de trabalho sobre os quais os nossos olhos agora pousam, o tempo é por isso um elemento fundamental neste percurso. Entre 1995 e 2004, os passeios realizados foram construídos de espaços, andamentos e afectos. Em viagens que percorrem traçados nos mapas, cortando a paisagem ou subindo e descendo em interiores de edifícios. Como um comboio que viaja num espaço interior, o elevador toma igualmente posição, em viagem vertical (o meu próprio processo de reconstrução enquanto espectadora — no qual misturo as minhas memórias com as que leio nas obras — não deixa de me recordar um livro de Enrique Vila-Matas, que tem como título precisamente essas palavras), num encurtar do tempo e do esforço para irmos e virmos de casa, para irmos ao encontro de alguém, para nos despedirmos. Neste duplo, triplo, labiríntico processo, há o mundo e ainda aquele que o vê e recria e, depois, cada um de nós que à nossa maneira o vemos, ficcionando de moto próprio. Para além disso, no plano plástico, o labirinto tem as suas regras, construindo-se e dando-se a ler na duplicidade de trabalho do traço. Assim, oscila entre linhas muito finas, nervosas e rápidas, que parecem inscrever rasuras ou cicatrizes na narrativa, e que pertencem ao universo do desenho. Ao mesmo tempo, avança com outras razões,

evidentemente

pictóricas.

Linhas

largas,

também

estruturadoras,

metamorfoseiam-se já em mancha, diluindo-se em cinzas e brancos ou adentrandose pela noite. Por isso, os trabalhos desta exposição misturam os campos de referência, aparentemente confundindo desenho e pintura, nas constantes sobreposições de linha e mancha, e na presença da cor que, progressivamente, toma corpo nas séries. Adensando sentidos e mistérios. Mais uma vez, é quem conta a história que instaura os tons e os ritmos dos processos narrativos. Mais veloz no desenho (tanto na abordagem como na estrutura compositiva), mais moroso na pintura (onde as questões formais, nomeadamente da figuração, têm uma abordagem diferenciada). Por isso, a aparente (con)fusão dos dois campos, é facilmente negada logo na matriz do pensamento, no raciocínio plástico que os gera, nos modos de criar mundos que patenteia. Além disso, olhando de perto, verificamos claramente que a ocupação do espaço, a respiração dessa pele que é o suporte, contribui para o carácter de autonomia que estes desenhos encerram.

Dia 6 Depois há que voltar a falar no fragmento. Patente na narrativa, ele é acentuado pelo desdobrar dos episódios em séries que citam uma continuidade de experiências e memórias. O ritmo aparentemente desordenado e assimétrico destas peças inscreve-se na mesma lógica de contaminação das linguagens e do tecido narrativo. Por isso mesmo, é nessa assimetria que a composição respira. A geometrização serve deste jeito um processo organizativo do pensamento, disciplinador e animador da composição, como se pode encontrar na série “Direcção: Quarto F”, na qual se torna particularmente notório o difícil trabalho de recriação do visível. Mais fugaz neste conjunto, o registo onírico, muito frequente em obras anteriores, onde se exercia maioritariamente pela alteração de escalas – árvores apequenadas pela presença gigantesca de elementos geométricos, que fechavam o espaço, tornando-o perturbador – apenas espreita na peça “Em Fuga”. Aí, as linhas curvas, de natureza mais hesitante, trabalham em conjunto com as metamorfoses da cor, e acentuam um universo orgânico, visceral. Talvez a recordar que nem tudo passa pelo crivo da razão. Dia 7 Antes do termo do dia e da viagem, não podemos deixar de recordar, novamente, que aquele que olha faz também parte do mundo, elemento da paisagem, do visível e recriável. A leitura das obras, como aqui se experimentou, resulta sempre e só de um aglomerado de impressões e recordações, de contextos e circunstâncias daquele que lê. Também neste texto, como referiu Manuel Vilarinho na sua carta, se procura apenas que o resultado dessa viagem não seja, no traçado destas outras linhas, um todo contraditório. Tal como o pintor, igualmente a que agora olha e sobre essas impressões elabora, ficará feliz se o resultado for apenas um pouco incoerente. Em jeito de conclusão, irei socorrer-me de um amigo comum, que me foi apresentado, há meses, por Manuel Vilarinho. Trata-se de Robert Walser. Diz ele: “Limitei-me aqui, mais uma vez, a fazer apenas uma breve descrição; deveria, na verdade, ter feito mais do que isso.”vii Em nota, ao longo da elaboração deste texto, tinha escrito para mim mesma que podia ser esta a frase para o terminar. Assim

será. Com um breve P.S.: a todos os que por aqui passarem, o meu desejo de muitas e boas viagens.

i

Texto do catálogo da exposição Manuel Vilarinho. 20 desenhos e 4 pinturas. Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, 2006. ISBN: 978-972-8794-33-0. ii “As imagens da arte são constituídas de elementos seleccionados, não arbitrariamente, mas segundo regras estabelecidas por indivíduos cujo poder ou modo particular de acção, é o de serem capazes de fabricar, não duplicações de uma realidade qualquer, mas entidades racionais sem nenhuma relação de identidade com objectos naturais existentes e, pelo contrário, dotadas de certas qualidades orgânicas que as transformam em objectos de imaginário, complexos, estruturados e capazes de fixar a nossa atenção.” In Francastel, Pierre, Imagem, visão e imaginação. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 30. iii In Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, volume VI, p. 3676. iv In Ramirez, Juan Antonio, Medios de masas y historia del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 1992, p. 52, citando Samuel Smiles The Life of George Stevenson, 1903, p. vii. v Em Novembro de 1830, o matemático e ornitólogo inglês Edward Stanley, em artigo publicado na revista «Blackwood’s Magazine», escrevia a propósito da locomotiva: “En el rápido movimiento de estas máquinas existe una ilusión óptica digna de notarse. De hecho, un espectador que las vea acercarse cuando van a la máxima velocidad, no puede libertarse de la idea de que, más que moverse, aumentan de tamaño. No sé encontrar una mejor explicación sino refiriéndome al agrandamiento de los objetos en una fantasmagoría. (...)” (citado em Ramirez, op.cit., p. 54). Como sublinha Ramirez, “En realidad, lo que Stanley pretendía denunciar era la nueva relación de tiempo-percepción que la velocidad y la estabilidad del movimiento de la locomotora obligaban a alterar súbitamente: la distancia focal debía moverse ahora al mismo ritmo que la máquina, y la contemplación de los objetos vistos desde la ventanilla debía ser instantánea. El hábito de percibir «a primera vista», de un modo «impresionista», se refleja en la pintura tradicional de obras únicas, y tiene en las imágenes de consumo masivo una adecuada correspondencia. Ya no era posible ni deseable «leer» los cuadros y dibujos com la delectación y minuciosidad con que se hacía en el pasado: la multiplicación iconográfica, hasta el momento presente, irá acompañada por una disminución paulatina del tiempo perceptivo que cada espectadortipo necesita en su contemplación.” In Ramirez, op.cit., p. 54. vi In Goodman, Nelson, Modos de Fazer Mundos. Porto: Edições Asa, 1995, p. 51-52. vii In Walser, Robert, A Rosa. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2004, p. 36.

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