Diário de uma busca: os brinquedos-fósseis e o tempo da memória

July 15, 2017 | Autor: A. França Martins | Categoria: History and Memory, Documentary Film
Share Embed


Descrição do Produto



Profa. do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ. Pesquisadora do CNPq. Autora de inúmeros artigos e livros sobre cinema e audiovisual.
"O exílio invisível das crianças", trecho da apresentação de Flavia Castro dentro do Seminário Encontros com o Exílio, organizado pela Biblioteca Nacional e pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, no dia 05/12/2013, na Biblioteca Nacional.
Seminário Encontros com o Exílio.
Seminário Encontros com o Exílio já citado.


Os brinquedos-fósseis e o tempo da memória
Andréa França

"Fiz um filme que se chama Diário de uma busca no qual eu conto a história do meu pai, militante, que saiu do Brasil em 1971 e voltou com a anistia em 1979. No filme, eu volto aos países do exílio que são também os países da minha infância. Ao receber o convite para vir aqui hoje, pensei em falar um pouco do que foi a minha experiência do exílio, como filha, criança e adolescente. Por ter conversado com vários filhos de exilados como eu, acredito que nossas experiências tem muito em comum. (...) Falar das crianças que acompanharam os pais que lutaram contra a ditadura - fora do Brasil - é falar de um exílio invisível, sobre o qual ainda foram colocadas poucas imagens ou palavras. (...) Em 1979, com a anistia, meus pais decidem voltar de um dia para o outro. (...) A volta ao Brasil do pais é mais um exílio para os filhos. A dor do exilio, para mim, é a dor do retorno. E se mistura a ela, a revolta – pois acontece numa idade em que já existe a consciência de que, dessa vez, se trata de uma escolha."
Palavras-chaves: Diário de uma busca; documentário; memória; ditadura; brinquedos
O filme de Flavia Castro, Diário de uma busca (2010), narra em primeira pessoa as tonalidades da complexa experiência subjetiva que é a infância. Momento de alegrias, de descobertas e de relações que se apresentam, anos depois, como matriz de um trabalho de retomada e montagem de imagens, sons e arquivos de origens diversas, um trabalho de memória onde a imagem é um traço visual e sonoro do tempo que gostaria de tocar. Assim como a infância semeia instantes de júbilo, diz o filme, também semeia momentos de dor e as tentativas árduas de sua superação. A materialidade da dor é apresentada através de planos fixos de brinquedos solitários, desprovidos de seus pequenos seres criadores e curiosos, brinquedos cuja paralisia parece exalar os espectros da ruína e da finitude.
O plano fixo do escorrega colorido filmado em um dia chuvoso, em meio aos transeuntes que passam apressados com seus guarda-chuvas cinzas, revela o brinquedo esquecido e confundido com seu entorno, a praça, o encanto da infância rompido por uma história de constantes viagens, uma história íntima que é imediatamente pública e política. Sobre a imagem fixa do escorrega molhado da chuva, a locução em off (cuja voz é da própria Flavia) diz:

"Uma mala aberta sobre a cama, as mãos da minha mãe jogando roupas dentro, meu pai indo e vindo... Faço perguntas, mas não entendo que eles viajem de repente, no dia do aniversário do pai. Ninguém viaja no dia do seu aniversário! O silêncio deles me irrita e revelo então a lista de presentes que ele não ganhará, já que não vai estar conosco. Meu pai sorri, mas não me responde..." (Diário de uma busca).

O ano é 1971. Ano que os pais de Flavia fogem do Brasil em direção ao Chile, pois Celso Gay de Castro, seu pai, deveria se apresentar ao DOPS na semana seguinte. Diário de uma busca narra o período da ditadura civil-militar no Brasil sob a ótica de uma documentarista, filha de ex-militantes, que se volta para si mesma, que se debruça sobre os anos de sua infância vivida na clandestinidade, atenta às suas sensações, afetos, dúvidas, temores, fantasias. A observação do mundo histórico e a observação do eu, pretérito e presente, se fundem e essa mistura tensiona os limites entre o objetivo e o subjetivo, o que está dentro e o que está fora, o espaço doméstico e o espaço público, favorecendo ainda a indeterminação entre diretor e personagem, autenticidade e encenação, experiência e representação, ficção e documentário. Se essa indeterminação tem operado, mais amplamente, em uma série de dispositivos comunicacionais e audiovisuais contemporâneos, o filme de Flavia Castro contudo tensiona as interpretações totalizantes e o pensamento da imagem como mera ilustração de uma realidade preexistente.
Além de Diário de uma busca, filmes como Uma longa viagem (Lucia Murat, 2011), Elena (Petra Costa, 2013), Memória Para Uso Diário (Beth Formaggini, 2007), Utopia e barbárie (Silvio Tendler, 2009), Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009), Mariguella (Isa Grinspun Ferraz, 2011), O dia que durou 21 anos (Camilo Tavares, 2012), Em busca de Iara (Flavio Frederico, 2013), Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013) revelam, em meio às suas diferenças expressivas e estéticas, o momento atual do Brasil onde se engendra, lentamente, a reivindicação pela memória dos vinte e um anos de ditadura, com a punição de crimes e de torturadores, com a abertura de arquivos secretos, com a restituição da verdade em torno dos desaparecidos.
Mas não é só isso. Esses filmes explicitam também que a prática cinematográfica documental vem passando por profundas transformações. Ao invés de filmar outros corpos, outros gestos, outras visões de mundo, ao invés de filmar o "outro" e se manter à distância do universo filmado, alicerces da tradição do documentário, esses filmes registram o que é íntimo e próximo aos cineastas - mesmo que, em muitos casos, essa intimidade se mostre opaca e estranha. São obras em que os diretores estão presentes na imagem, imprimindo na mesma uma dimensão que pode ser confessional, autobiográfica, ensaística, de diário íntimo, de testemunho, onde importa o processo de investigar o presente e suas relações com a memória de personagens e testemunhas, a sobrevivência do passado no presente através de uma reconstituição subjetiva e pessoal da História.
É claro que tais imagens "pessoais" se misturam e implicam muitos riscos - de narcisismo, de exibicionismo, da pose -, mas expressam também transformações mais amplas na relação entre as esferas pública e privada na sociedade contemporânea, onde a intimidade e a vida ordinária são permanentemente convocadas à performance de si mesmas, espetacularizadas.
Diário de uma busca é um relato pessoal da infância nos países de exílio. Se o motivo da realização do documentário parece ser, ao menos inicialmente, a busca pela elucidação e pelo esclarecimento da morte misteriosa de Celso Gay de Castro, pai da documentarista, à medida que o filme avança o motivo se desloca e passa a se relacionar também a aspectos da experiência pessoal e da subjetividade da própria realizadora. Como se certas imagens, reiteradas, dissessem que "é preciso parar diante do tempo [da imagem] (...)" para despertar suas virtualidades adormecidas (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 13).

***

"Não podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade". Infância em Berlim, Walter Benjamin.


Flávia Castro segue, no filme, o caminho das cartas deixadas pelo pai, do seu próprio diário, dos espaços vividos em países diversos, das lembranças de parentes e companheiros de militância política de seus pais, de fotografias da família e arquivos de jornais. A diretora escava cartas, documentos, fichas criminais, reportagens da imprensa, relatos de jornalistas e policiais à procura de indícios que ocupem o vazio deixado pela versão oficial da morte de seu pai. Jornalista, militante político, guerrilheiro que lutou e foi perseguido pela ditadura civil-militar, o pai teria se suicidado após uma tentativa de assalto frustrada na noite que entrou armado na casa de um cidadão alemão (supostamente, ex-oficial nazista), na cidade de Porto Alegre, pouco depois da decretação da anistia.
Retomar essa investigação encerrada, com desfecho e elucidação duvidosos, constitui apenas um dos fios narrativos da trama do filme que envolve memórias, afetos e ambivalentes sentimentos familiares. A morte violenta do pai havia apagado as lembranças de uma convivência familiar sob constantes mudanças de endereço, de uma infância de poucos amigos. Flávia, ora acompanhada da mãe, ora acompanhada dos irmãos João Paulo Castro, o Joca, e Maria, percorre cidades, ruas, casas, no Chile, na Argentina, na França, no Brasil, procurando identificar lugares esquecidos e encontrar vestígios de uma infância vivida no exílio. Nessa jornada, leva consigo as raras fotografias daquele tempo em uma tentativa de reter algo que se esvai, que passa irreversivelmente. As cores intensas das frutas apodrecendo no chão, os lençóis brancos pendurados no varal, os parques despovoados e tristes, os brinquedos congelados pelo tempo, ganham todos uma dimensão afetiva, como se cada um fosse depositário de uma história íntima, portador de rastros de uma infância errante e perdida.
Há uma primeira infância colorida e cheia de aromas. Há também uma segunda, cinza e triste. Da primeira, no Brasil ainda antes do AI5, surge a imagem da paisagem bucólica, da árvore carregada de flamboyant, da casa alegre dos avós, sempre cheia de amigos, risadas e sonhos. Da segunda, surge a infância no exílio e sombria. Em 1971, Flávia com então cinco anos segue com o irmão rumo ao Chile, aonde os pais, militantes do Partido Operário Comunista (P.O.C.), se refugiam para escapar da prisão no Brasil. Os anos seguintes traduzem-se em constantes fugas, vida instável e perguntas não respondidas. "Por que alguém [o pai] tem que viajar justamente no seu aniversário?"; "Por que ela [Flavia] não pode falar o nome do pai, só o codinome?"; "Por que ela e o irmão não podem ir à escola como outras crianças?"; "Por que, dentro da escola, não podem responder à pergunta da professora sobre a profissão dos pais?".
Retornar aos lugares de memória é aqui retornar à casa do não-sentido, percorrer objetos que faltam em seu lugar, sentir uma ausência presente porque é em função desses objetos que tudo passa, que tudo se passa, que não se fica imune e que não se é mais o mesmo. O filme solicita que Flávia retorne à casa vazia, à casa dos parques e dos brinquedos sem anima. Ao colocar o próprio corpo em cena e em busca - da verdade sobre a morte do pai? Da verdade sobre a experiência do exílio? Da verdade sobre o ponto cego da infância? -, a cineasta só pode vaguear, anotar lembranças, prescrutar fotografias, descrever lugares, reler antigas cartas do pai, procurar em cada criança filmada o rosto, os movimentos e o corpo que um dia foi o seu.
São os brinquedos sem anima, anômalos, que pontuam o filme como um refrão. Dessemelhantes a si, deslocados de si mesmos, o escorrega colorido na praça, a cadeira de balanço vermelha, a bicicleta encostada na parede, a mesa de totó, os soldadinhos de plástico na janela, ocupam na imagem um lugar sem ocupante, um lugar onde eles (os brinquedos) não estão nunca onde o procuramos e, inversamente, nunca os encontramos onde estão. Como se tais imagens, filmadas em planos fixos, retirassem do brinquedo seus afetos e memórias para devolver ao espectador a artificialidade crua de sua materialidade.


Foto 1 – Passaporte de Flávia Castro em Diário de uma Busca

O ferro colorido do escorrega na praça em um dia chuvoso é simplesmente o ferro, metal duro e resistente, e não material de um objeto de interação, de criação, de invenção de mundos. É como se o escorrega – lugar de imaginários, ficções, crenças e linguagens lúdicas – só pudesse gerar não-sentido, arrancado que foi, bruscamente, do mundo da fantasia e do faz-de-conta. Essa criança que se escondia para chorar, rememora Flavia Castro, tinha um desejo permanente de desaparecer para renascer como criança qualquer, criança que brinca de casinha, que pode ir à escola normalmente, que não precisa ficar sempre atenta ao entorno. No entanto, descobre Flávia, essa criança que ela e o irmão foram um dia não passava de um "estorvo" para seus pais, como revela sua mãe, anos depois, para a filha-cineasta.
Todo um processo de esfacelamento da experiência do brincar, de ser criança, que pode ser experimentado nos planos fixos e de longa duração das praças e parques, dos jardins inertes, dos galhos de árvores retesadas. É justamente a montagem que vai possibilitar a abertura de um relato pessoal da infância para uma experiência coletiva, para a reescrita de uma história vivida pela geração de filhos de militantes políticos que enfrentaram diretamente a repressão. Não é o caso aqui de retomar todo esse extenso debate, mas apenas lembrar que além desse conjunto de produções audiovisuais no Brasil, há sobretudo na Argentina e no Chile um amplo leque de filmes documentais e ficcionais que exploram a história política desses países por um viés explicitamente subjetivo, a partir da intimidade, assim como existe também uma vasta e heterogênea fortuna crítica dedicada a essa produção (SARLO, 2007; AMADO, 2009; APREA, 2010).
No filme de Flavia, é na montagem que as cartas escritas pelo pai para a família, lidas pela realizadora e sobretudo por Joca, transformam-se em palavras espectrais que vagueiam errantes por entre rostos amigos, paisagens, ruas e tempos. Mais do que isso, a montagem permite que o pai surja nas cartas não apenas como algo íntimo ou privado, mas como um experimentar-se que deve ser exteriorizado. Em uma carta escrita para sua namorada, Ana, quando residia em Paris em meados dos anos 1970, ele diz:
"... a opção pela revolução é um elemento determinante nas coisas que faço, de maneira estrutural. Não que me considere um super militante e que todos os meus atos sejam um reflexo da minha consciência bolchevique. O fato é que há muito tempo minha preocupação principal se refere a um projeto revolucionário. Também não quero dizer que todo meu tempo eu dedico ao trabalho político, já que boa parte dele dedico a nada. Depois de quase dois anos em Paris, consumindo-me num trabalho na gráfica, em reuniões e mais reuniões de todos os tipos, estava com uma produtividade política absolutamente insatisfatória, buscando um outro tipo de vida (...)".

Sua auto-análise crítica, romântica e muitas vezes melancólica produz a sensação de que, na verdade, somos nós, espectadores, "o destinatário" desse mundo urgente, guiado por fortes convicções, propósitos e códigos de conduta. Suas cartas para a família permitem resgatar as sensibilidades de uma época e de um grupo social que apostou tudo na militância política. São cartas que traduzem sentimentos, maneiras de falar, agir, ocupações e ações de um tempo onde a juventude revolucionária compartilhava praticamente o mesmo projeto de vida: através da luta armada, derrubar o regime militar e, ainda, revolucionar os costumes, os valores, as relações sociais e afetivas que deveriam ser mais igualitárias.
A montagem da leitura das cartas, do diário e das lembranças de Flavia – dos brinquedos, dos lugares e das brincadeiras possíveis - nos oferece uma imagem do tempo desejosa de pensar a criança construída na cineasta, a infância forjada no adulto, pensar que tempo é este em que a criança habita.
Se a montagem nos oferece uma outra imagem do tempo, ou "consciência do tempo" para Michel Poivert (2007, s/n), fazendo explodir a narrativa da história e a disposição das coisas, no filme de Flavia Castro, a montagem explode com a história quando faz dos brinquedos vazios, das árvores do quintal, dos muros das casas, dos lençóis no varal e das cartas do pai, imagens-vestígios do exílio e de espaços da infância que não puderam ser explorados, brincados, vividos. São os corpos da cineasta, da sua mãe e dos irmãos que, como imagens-vestígios, entram em cena para "performar o passado" de pedra, enrijecido pelo tempo (POIVERT).
O filme evidencia assim o caráter lacunar e transformador da memória que narra não o que viveu, isto é, "um estoque pré-formado de imagens, sons e referências", mas histórias, sobrevivências e sensações de uma época, "uma espécie de nuvem que acompanha e acolhe o real" (REZENDE, 2013, p. 88). A partir de uma jornada pessoal, Diário de uma busca produz imagens raras de uma história silenciada e esquecida, das dores e das faltas experimentadas por brasileiros que foram obrigados a viver exilados, longe de pessoas amadas, proibidos de estabelecer laços de afetos com quem estava ao redor. São memórias de um "exílio invisível", como destaca Flavia Castro, memórias impedidas de tantas infâncias que ganham imagens, palavras, cores e formas.
Se o filme nos faz ver o quão carregadas e prenhes são essas memórias impedidas, talvez seja porque permite que se experimente "o vestígio de hábitos perdidos", ou ainda, porque faz ver na "mistura com a poeira de nossas moradas demolidas o segredo que o faz [o esquecimento] sobreviver" (BENJAMIN, 1987, p.105, grifo nosso).
É verdade que a infância no exílio, além da tristeza e de uma certa melancolia evocadas pelos brinquedos petrificados, fósseis, tem também outros componentes que são narrados em off pela voz suave da diretora. Trata-se da capacidade de adaptação, de estabelecer novas relações, a vida meio selvagem e em bando, a alegria com pequenas coisas (como perceber no sobrenome "Castro" a possibilidade de se fazer passar pela sobrinha de Fidel Castro na escola...). Se a experiência do exílio na infância não é simplesmente perda ou abandono do que ficou para trás é porque, ainda assim, trata-se de uma infância com sensações próprias à qualquer infância, com seus temores, sonhos, pesadelos e descobertas. Uma experiência que para ser retomada, anos depois, precisa de um tempo e de um olhar que lhes são próprios, singulares, por meio dos quais a realizadora escolhe e tece suas imagens e sons, deslocando-se pelos labirintos desses lugares outrora habitados.
As esquinas, as ruas, as escolas, as praças, os quintais, os recantos e os esconderijos da casa, as formigas no solo, o lençol branco pendurado no varal - a remeter ao dia em que um lençol foi estendido no meio da sala para que dois guerrilheiros pudessem trocar informações, cada um de um lado do pano, sem se (re)conhecerem, estimulando em Flavia, criança, a decisão de transitar pelos dois lados do "muro" de modo a favorecer e facilitar o diálogo em curso - são imagens em meio às quais se exterioriza a condição mesma de ser criança, um ser vulnerável, sensível, potente e capaz, apesar de tudo. Depois do golpe militar no Chile, lembra Flávia,

a gente se refugiou rapidamente na Embaixada da Argentina. A experiência na Embaixada, dentro da sucessão de países, é um capítulo à parte porque foram três meses vivendo numa casa imensa, que parecia um palácio, com um jardim incrível, e mais outras setecentas pessoas... Apesar da gente não poder sair dali foi certamente um dos momentos em que me senti mais livre. Quando penso na minha infância, apesar dos tiros, do risco, do medo (...), acho esse um dos momentos mais alegres (...). Isso se explica pela convivência intensa com crianças de toda América Latina que não só tinham experiências parecidas, mas que estavam ali como eu, esperando num lugar que não é um país e que é provisório para todos.
Durante os meses de permanência na Embaixada da Argentina, a experiência do exílio parece oscilar entre o desalento das dúvidas e o encanto do encontro com outros pequenos seres cujas vidas se assemelham na instabilidade das circunstâncias e na indeterminação sobre o futuro.
Em um belo artigo, a pesquisadora Laura U. Marks analisa filmes que desvendam memórias de objetos. Trata-se de imagens que mostram um objeto irredutivelmente material que evoca memórias coletivas. São objetos-imagens que condensam o tempo e que, desvendados, permitem que o espectador possa expandi-los no tempo; objetos-imagens cujos passados incomensuráveis são o produto não apenas de uma história pessoal mas também de desterritorialização cultural. Marks, fundamentada em Walter Benjamin e Gilles Deleuze, analisa filmes que tomam as coisas por suas imagens, apresentando-as "em toda a sua estranheza tipo-fóssil" (MARKS, 2010, p.310), de modo que reconectá-las com seu passado pode eventualmente neutralizar seu poder perturbador. Tais imagens de objetos juntam histórias e memórias que estão perdidas ou encobertas no movimento desterritorializante do exílio. Assim é que certas obras teriam a potência de escavar nos objetos as camadas discursivas e afetivas que tomam neles forma material, "os traumas mal-resolvidos que neles estão incrustados e a história de interações materiais que eles codificam" (p. 313).
Imagens portanto que teriam o poder de contar as histórias dos lugares onde estiveram, objetos que uma pessoa incorpora parcialmente no processo de reorganização da subjetividade, brinquedos que a realizadora recupera na sua mudez a fim de (nos) incitar a memória da infância mesmo sem trazê-la de volta completamente. As formigas, as frutas na terra, o escorrega no parque, a mesa de totó, os soldadinhos são, dentro dessa perspectiva, brinquedos-fósseis que ganham sentido e luminosidade, na medida mesma em que o passado traumático do exílio que evocam não acabou. Objetos tipo-pedra, eles aparecem no documentário como testemunhas silenciosas da história, testemunhas de um tempo que é passado e presente, carregando consigo relações sociais, afetivas, desterritorializações forçadas e histórias esquecidas.
Para mim, o exílio sempre foi em relação ao ultimo país onde laços se criaram, ou seja, o país do qual "fugíamos". E acho que isso, o fato do Brasil não ser a única referência, de às vezes nem ser ele o país de origem, diferencia drasticamente o exílio das crianças da experiência de exílio dos adultos, para quem, o país que se deixou é o Brasil e os outros são apenas passagens...
Objetos tipo-fóssil, as imagens dos brinquedos são vestígios do que falta, do que foi enterrado, do que uma vez existiu e que se tornou pedra. Ainda assim, tais imagens são capazes de destravar toneladas de memórias silenciadas. Se como coloca Jean Marie-Gagnebin, a imposição do esquecimento se dá como "um gesto forçado de apagar e de ignorar, de fazer como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida do passado" (2010, p.170), para o militante que sofreu a tortura e/ou aquele que teve que fugir de seu país, ou seja, os adultos, o esquecimento se torna uma estratégia de sobrevivência, a maneira possível de expurgar a memória da dor e da humilhação. Diferentemente da experiência dos filhos, o esquecimento dos pais parece se tornar um dos modos possíveis de apagar "a memória do golpe quase mortal que sofreu seu desejo" - de mudança social, política, cultural (ROLNIK, 1989, p.165).


Foto 2 – Os soldadinhos, em Diário de uma Busca

Em Diário de uma busca, as imagens fixas de objetos da infância e a narração suave e delicada de Flavia Castro parecem documentar as desterritorializações e as relações afetivas e sociais que os brinquedos carregam com eles. A presença discreta mas reiterada dos planos dos brinquedos, embora pareça dizer que não há muito o que olhar neles, lembra que tais objetos mudos foram efetivamente expostos àqueles eventos, sugere que de algum modo os brinquedos "fotografaram" aqueles acontecimentos.
As circunstâncias da morte de Celso Gay de Castro foram de fato atípicas. Ex-guerrilheiro anistiado, ele não conseguiu se integrar ao contexto social e político brasileiro após o retorno do exílio. A volta ao Brasil dos exilados significou, como ele mesmo escreveu em uma de suas cartas, uma espécie de aniquilamento do projeto coletivo das esquerdas, a dissolução do princípio de uma autonomia econômica e política nas regiões da América Latina, a derrota completa da lógica que contemplaria os interesses nacionais e a justiça social. Sua exaltação em torno do movimento operário proveniente de São Paulo, nesse sentido, foi breve. O filme de Flavia Castro sugere assim que a morte de Celso foi sobretudo resultado de uma desilusão com a "transição democrática" que começava a se constituir no país, um profundo desencanto com um tipo de transição negociada sob a liderança de forças representativas da então recente ordem ditatorial.


***

Podemos recuar na história do cinema documental brasileiro e ver que essa dimensão subjetiva explicitada não é nova. Cabra Marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984) também mostra um diretor transformado em protagonista de um processo de busca pessoal, um diretor que interage com personagens e situações como sujeito interessado, expondo como a macro história pôde afetar a vida de uma família anônima de camponeses a ponto de desintegrá-la, como a macro história pôde afetar igualmente a vida do próprio diretor, obrigado a suspender as filmagens, devido ao Golpe militar em 1964, para retomar o projeto do filme muitos anos depois, com o processo de abertura. Se, em muitos momentos de Cabra Marcado, a narração é feita em primeira pessoa é porque somente Coutinho poderia voltar ao interior do Nordeste para filmar e reencontrar os camponeses que dirigiu dezessete anos antes. E ele retorna, não apenas como documentarista buscando resgatar uma história perdida, mas como cineasta cuja experiência de filmagem havia sido compartilhada por um grupo de pessoas anônimo, recusado pela história oficial e pela mídia (LINS, 2004, p.32).
Um ano antes, em 1983, Eduardo Escorel realizaria Chico Antonio – o herói com caráter em que também seria protagonista de um processo de busca, sem saber ao certo os resultados a que chegaria. O encontro vivido pelo então jovem Escorel com o renomado coquista Chico Antônio, personagem eternizado por Mario de Andrade no livro Turista Aprendiz, só foi possível porque havia um filme sendo feito, um filme onde o realizador precisava viver a história desses encontros, entre ele mesmo e o já idoso cantor de coco e também entre o afamado poeta e o cantor, cinquenta anos antes. Viver o encontro como personagem presente na imagem, para poder contá-la em seguida, como cineasta.
Escorel vai até o local onde Mário de Andrade e Chico Antonio se conheceram, no final da década de 1920 no Rio Grande do Norte, e encontra um senhor de mais de oitenta anos com alguma energia e memória suficiente para escavar camadas de tempo esquecidas do encontro com o poeta. Entre as cantorias com o ganzá e a narração de trechos de Turista Aprendiz, o filme de Escorel restitui as imagens e os sons à memória - musical, literária e afetiva - do encontro que finalmente trouxe a equipe até o município de Pedro Velho (RN).
Se, em ambos os filmes, Cabra Marcado e Chico Antonio, há a presença privilegiada do "outro de classe" (BERNARDET, 2003), há igualmente um deslocamento formal e de abordagem - do tradicional procedimento da entrevista, tão caro ao documentário social e crítico das décadas anteriores -, um desvio que explicita o processo de reconstrução e de reinvenção da memória, a reflexividade como traço dessas lacunas do tempo, o trabalho de recuperação lenta de um passado esquecido, em retalhos, onde o cineasta-personagem protagoniza uma procura.
Trata-se de um trabalho de recuperação porque tais filmes mostram que as imagens estão condenadas desde sempre a fazer a mediação entre o que foi e o que será, mostrando que as passagens entre os diferentes tempos se fazem por redes de afeto, de gestos, de movimentos, de falas, de motivos visuais que se repetem na imagem. Em Diário de uma busca, a mudez e a solidão dos brinquedos são motivos visuais que revelam camadas e substratos de uma memória soterrada pelo exílio invisível dos filhos, motivos visuais que evocam a experiência daqueles que carregam consigo histórias e imagens em meio às quais viveram a infância. E cresceram.

REFERÊNCIAS:
AMADO, Ana. La imagen justa: cine argentino y política (1980-2007). Buenos Aires: Colihue, 2009.
APREA, Gustavo. "El ciclo de los documentales sobre la izquierda revolucionaria peronista como testimonio y la discusión sobre la memoria social". In: Teorías y prácticas audiovisuales: actas del primer Congreso Internacional de la Asociacion Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (coord. MOGUILLANSKY, M. y MOLFETTA, A.). Buenos Aires: Teseo, 2010.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant les temps. Paris: Les Editions de Minuit, 2003.
GAGNEBIN, Jean-Marie. O preço de uma reconciliação extorquida. In: TELLES, E. e SAFATLE, V. (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.
LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
MARKS, Laura U. "A memória das coisas". In et al. Cinema, globalização e interculturalidade (orgs. FRANÇA, A. e LOPES, D.). Chapecó: ed. Argos, 2010.
POIVERT, Michel. L'Événement comme expérience: les images comme acteurs de l'histoire. Paris: Hazan, Jeu de Paume, 2007.
REZENDE, Luiz Augusto. Microfísica do documentário. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora Sulina, 1989.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia. das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.