Diário do Minho - A evocação feminina em Bracara Augusta I

May 28, 2017 | Autor: Rui Morais | Categoria: Roman Religion, Roman Provincial Archaeology, Roman Archaeology
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Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.o 29541 de 28 de março de 2012, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente.

> “Torres da Sé Catedral” – Braga, Março de 2012 [Foto de José Carlos Ferreira]

II

cultura

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Diário do Minho

Viagem

ESTANTE Acabou de me chegar às mãos o livrinho organizado por Filipe Delfim Santos e José António Alves,com o título Escola de Braga: A correspondência com Delfim Santos”.O livro de 142 páginas foi editado pela Aletheia – Associação Cientifica e Cultural e impresso em dezembro de 2011. Quanto à forma, o livro segue o formato habitual deste género de publicações. Uma introdução geral sobre os correspondentes e assuntos referidos da correspondência;a edição da correspondência,onde se descobrem cartas a Delfim Santos remetidas por Diamantino Martins, Severiano Tavares, José Bacelar e Oliveira, Lúcio Craveiro da Silva e Paulo Durão, com as respetivas notas para contextualização do leitor contemporâneo.Acresce ainda à publicação, um posfácio, a bibliografia que reúne tudo o que se tem escrito sobre a Escola de Braga e alguns textos relevantes sobre os jesuítas e a história da ciência em Portugal. Por fim, um anexo com a publicação do texto de Delfim Santos, publicado no Diário Popular, sobre o Congresso Nacional de Filosofia de 1955. Quando se fala de “Escola de Braga” está-se a referir ao que hoje conhecemos melhor por Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa. É a esta instituição que se dá, na história da cultura portuguesa, o nome de Escola de Braga. A tese geral dos organizadores do livro é a de que a Escola de Braga desempenhou um papel relevante no renascimento da Filosofia em Portugal. Apresentam como argumentos: a organização do Congresso Nacional de Filosofia, em 1955, e a tentativa de criação da Sociedade Portuguesa de Filosofia, mas também a organização curricular do ensino da Filosofia diferente do que se praticava nas Universidades estatais da época, as publicações editadas pela Escola e o seu permanente desejo de diálogo com as correntes filosóficas e filósofos contemporâneos nacionais e estrangeiros. A importância da Escola de Braga tem sido,de facto,reconhecida por diferentes historiadores nacionais e, inclusive,mereceu referência na História do Pensamento Filosófico Português coordenada pelo Professor Pedro Calafate. No livro, agora editado, a maior novidade chega-nos da possibilidade de podermos ler, através da pena dos próprios intervenientes no processo, o modo como desenharam muitos dos passos que retrospetivamente se descobrem realmente relevantes para a cultu-

Escola de Braga: A Correspondência com Delfim Santos

Org.:

Filipe Delfim Santos e José António Alves Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 2011, 142 pp.

ra portuguesa. Julgo ser difícil ficar indiferente à leitura das cartas de Severiano Tavares ou à preciosa descrição de José Bacelar e Oliveira do seu encontro com o filósofo alemão Martin Heidegger. A introdução faz uma boa síntese do que, até ao momento, se escreveu sobre a Escola de Braga e apresenta, bem,os principais assuntos abordados na correspondência.Nesse sentido, é uma razoável porta de entrada no livro e que muito beneficiará o leitor na aproximação à correspondência. Contudo, a nosso ver, para o leitor mais informado, perde-se excessivamente em elementos históricos que são do conhecimento geral. Preferiríamos, para a nossa sensibilidade especulativa, no texto introdutório, uma palavra mais vincada de relação entre o passado e o presente da Escola de Braga. A data da correspondência publicada remonta a um tempo da Escola bem diferente do atual. Na altura, a Escola de Braga era dirigida pelos Jesuítas e os seus mestres eram Jesuítas. O autor da introdução preferiu permanecer à sombra do “orgulho”da história. Por fim,ficou ainda por abordar,na Introdução, um tópico importante. A leitura dos textos de Delfim Santos, pelos bracarenses, antes de ser conhecido e apresentado em Braga por Severiano Tavares. O filósofo portuense foi bem acolhido em Braga, mas apenas depois da amizade com Severiano Tavares. Antes, os trabalhos de Delfim Santos não receberam os melhores elogios. O posfácio acaba por ser oportuno e complementar à Introdução, sobretudo, ao focar a importância do Congresso Nacional de Filoso-

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N.º 639

CULTURA

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fia de 1955. Filipe Santos sublinha, no posfácio, o burburinho que a organização do Congresso, logo pelos jesuítas (!), provocou em alguns intelectuais do tempo.A notícia da carta de Eduardo Lourenço a Delfim Santos, de que o autor dá conta, sobre o Congresso que estava a ser organizado em Braga, é desse burburinho um exemplo interessante. Hoje a Companhia de Jesus, em Portugal, parece um pouco adormecida e, por isso, não levanta grandes problemas,mas nem sempre foi assim na história. O livro de José Eduardo Franco O mito dos jesuítas trata muito bem do assunto. A Companhia de Jesus, fruto da capacidade de influência que teve sobre a cultura e dirigentes nacionais, sempre levantou, em Portugal, muitas resistências e reticências. O receio do poder que a ordem de Inácio exercia na corte e nos ambientes intelectuais foi o principal motivo para o Marquês de Pombal muito se empenhar na expulsão dos jesuítas de Portugal. O mito dos jesuítas, com a sua carga negativa, tem estado presente na sociedade portuguesa desde Pombal. Hoje adormecido porque a ordem também estará mais adormecida em relação a tempo áureos passados. No entanto, sempre que os jesuítas se movimentam de modo mais acutilante esse mito parece despertar. Foi o que aconteceu em 1955 e, certamente, a razão de ser da carta do jovem Eduardo Lourenço. O posfácio informa que, acerca do Congresso, Eduardo Lourenço escreveu o seguinte a Delfim Santos: “Trata-se da Contrarreforma em todo o esplendor possível em 1955, trata-se de arregimentar o pensamento nacional sob uma cor única.” (p. 127). Mas,como disse,a Companhia de Jesus parece ter perdido capacidade de influência. Talvez, por isso, se compreenda que o Eduardo Lourenço da carta a Delfim Santos não se tenha importado de ser o mesmo, na assinatura, do prefácio à edição comemorativa, em 2003,dos 100 anos da revista Brotéria. Concluindo.Damos as boas vindas ao livro Escola de Braga: A correspondência com Delfim Santos pelas novidades históricas que nos oferece, por nos permitir a aproximação à subjectividade de várias personalidades que contribuíram,com o seu trabalho, para o enriquecimento da Cultura Portuguesa. ❐ Mourão Jorge (Sociedade Portuguesa de Filosofia”)

Procuro agora a curva do teu braço, O toque de magia dessa pele... É nele que esqueço o meu cansaço E embalo o sonho fugidio e breve. Teu rosto tem a cor dos meus anseios E teus olhos afastam os meus medos. A voz que me responde é como o mar Beijando a branca areia e os rochedos. E eu sei que em ti sempre me encontro Na hora de ser e de viver. Em ti, por ti, recrio a minha alma, Eterna, na esperança de te ter. Cândida Esteves Soares (Inédito. Março de 2012)

Sou Afogo-me num mar de nada Num nada de mar; Gasto os meus dias no vazio No vazio dos meus dias; Ganho sentidos perdidos Na perdição das palavras; Ganho metas inexistentes Na inexistência de metas; Sou tudo e também sou nada, Sou o nada sem o todo Ou o todo sem o nada. Sou uma parte do todo Ou o todo na sua parte; Sou a inquietação da razão Ou a razão da inquietação.

Fátima Nascimento (Inédito. Março de 2012)

Pulso Desde aquele impulso Dirigido a ti Preso o meu olhar Desde que te vi Desejei querer-te Com vontade forte Permitir somente Deixar-te na morte. Amo porque quero! Amo com vontade! Emprego ao amar Minha liberdade! Vou querer-te bem Dar força ao querer Querer-te com força Sem desfalecer. Quero ter a força Para defender De qualquer impulso Este meu querer! Isabel Vasco Costa (Inédito. Março de 2012)

Envio de trabalhos para publicação neste suplemento: Diário do Minho / Secção Cultural Rua de S.ta Margarida, 4 - 4710-306 Braga; Fax: 253609469. E-mail: [email protected]

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cultura

III

Seis inéditos do poeta timorense

David Lima As marés da tua ausência

Só contigo

Pudesse eu, um dia, te ofertar um extenso lençol azul de mar, duma ilha que brilha sempre ao sol, e seria, meu amor – só podia ser –, deste meigo mar do meu Timor.

Só contigo, de mãos dadas, sei voar; eu sou a nuvem e o vento, tu és o labirinto azul do céu e do mar...

Aqui, neste imenso mar, até os rios da distância vêm, dolentes, desaguar…

Mas só contigo, de mãos dadas, sei sonhar!

E as marés da tua ausência e as ondas da saudade e da emoção me enchem, até transbordar, as margens do coração.

Só a sonhar

Praia do Cristo-Rei Um dia, quando me for de Timor, meu coração por cá há de ficar; mas comigo levarei, no olhar, a praia do Cristo-Rei e a placidez e a calma de todo este mar em redor, que me preenche a alma e me faz sonhar com tua ternura e amor.

Dizer Timor Dizer Timor, devagar, tem um sabor quente e doce de mangas, quiçá papaias, e o prazer azul de muito mar e ociosas praias. Dizer Timor, (ou – duas sílabas mais – Timor-leste, que assim é que é), tem um travo verde-agreste a montanhas e arrozais e aromas de café. Dizer Timor tem a leveza da simplicidade, a cor genuína de gente sorridente e o gosto natural da amizade.

Dir-te-ia poemas de amor, como digo estas praias de Timor e o azul suave deste mar ou mil paisagens verdes de encantar... Mas ou me faltam as palavras certas ou o estro arguto dos poetas, e, sem ti, nem sei bem como rimar! E sendo tu, assim, quase divina, sequer me favorece a minha sina: ter tudo o que quiser... só a sonhar.

Conjugo o verbo amar Conjugo no pensamento o verbo amar, que o amor é um dever que estamos sempre a dever e querer voar com o vento é sonhar. Ó flores de Abril, como o tempo passa, como tudo muda; não será o amor uma palavra aguda? Tudo é presente, infinito e nada,* mas isso eu não digo à minha namorada, pois ela é uma deusa, um anjo, uma fada... O amor é um dever, que devemos sempre; querer voar com o vento é sonhar... Conjugo no pensamento o verbo amar! * Dois versos do “gu feng número nove”, de Li Bai (Dantu, Tokmuk, China, 701-762).

Fontanário de S. Paio de Vila Verde

Este mar parece-me maior e mais terno e manso e mais intenso quando em ti penso.

Presumo que o destino me escolheu para ser teu, mas tu, distraída com a vida, obrigas-me a duvidar...

A lenda do fontanário Mil novecentos e trinta de manhã de um belo dia muito povo assistiu à partida do juiz que atormentado lá ia, triste, sangrando de dor, pois lhe fugira p’ró céu o seu grande e puro amor. Logo após a meia noite desse fatídico dia, era a gente que falava que da água que caía no tanque do fontanário um nome misterioso, baixinho pronunciava, como estivesse a chamar e na aragem se perdia! Decorridos muitos anos numa tarde de verão a gente presenciou o regresso do juiz, já velho, de voz dolente e que aturdido ficou, pois era daquela fonte que vinha a voz que ele ouvia nos longes donde voltou.

Era a voz da sua amada que baixinho o chamava e ternamente dizia que não era sede de água mas outra sede sentia a mesma que em sua face em afagos ternos, meigos em tempos ela apagara a sua sede de beijos! Logo ali ele ditou perene e grave sentença: quem desta água beber, vilaverdense ou de fora, tenha a vida que tiver, viva a vida que viver, sempre esta terra há-de amar e se tiver que partir, é proibido morrer sem um dia cá voltar!

António Morais (Inédito. Vila Verde, 2012)

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Lucretia Fida

IV

Diário do Minho

A evocação feminina em Bracara Augusta

*

I Por

Rui Morais Arqueólogo e Professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Investigador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra

Uma das mais importantes inscrições romanas encontradas na cidade foi dedicada à deusa Ísis por uma sacerdotisa do culto imperial, chamada Lucretia Fida. Esta inscrição, feita num bloco prismático alongado e datada do século II, está embutida numa parede exterior da Sé Catedral, na rua Nossa Senhora do Leite. Eis a sua leitura: “Consagrado a Ísis Augusta. Lucretia Fida, sacerdotisa perpétua de Roma e de Augusto, do Conventus Bracaraugustano, dá [este monumento].” A referência a esta inscrição aparece já em autores eruditos, como no caso de Jerónimo Contador de Argote (1732-34) que, enquadrado no espírito iluminista do século XVIII, procedeu à mais ampla tentativa de reconstituição da história da cidade romana, a partir dos testemunhos arqueológicos e do recurso às fontes escritas. Segundo o erudito, “este templo [Ísis] era circular e situado onde hoje é o templo da Sé, sendo a praça fronteira o logar do mercado ou feira publica...”. Mais tarde, Bernardino José de Senna Freitas refere no tomo I das suas Memorias de Braga... (1890, 18) que “no tempo do Arcebispo D. Fr. Agostinho de Castro, quando se fazia a galeria do paço archiepiscopal, se encontrou junto da Sé um grande capitel da ordem corinthia, composto de quatro capiteis, que indicavam cobrir egual numero de columnas juntas, e que talvez estivessem na parte central do templo, sustentando quatro arcos diversos...”. A estarem correctas, estas indicações são extremamente curiosas, pois, na verdade, a existência de templos de planta circular

Inscrição dedicada a Ísis por Lucretia Fida, sacerdotisa do culto imperial. está bem documentada no mundo romano. Os autores latinos referiam-se a estes edifícios como aedes, templum ou tholus, sendo que este último poderia ter sido usado para outras funções, nomeadamente para salas de refeição ou lugares de mercado. Como sabemos, Ísis era uma deusa Egípcia, protectora dos mercados e da abundância, pelo que se conclui que o mercado romano se encontraria muito perto deste local. E, na verdade, segundo o erudito, aí também se teria encontrado uma inscrição alusiva ao genio do mercado: “Da família Flavia Vrbica se acha outra Memoria notavel em Braga, a qual se encontrou ha pouco tempo na parede do Cruzeiro da Sé, da parte do Evangelho, aonde agora está a Capella de Nossa Senhora das Angustias. Manoel Fernando, Mestre Pedreiro da obra, a levou para sua casa, onde a conserva. Do seu feitio se vê foy base de estatua, e diz a Inscrição assim: GENIO/MACELLI/FLAVIVS/VRBICIO/EX VOTO/POSVIT/SACRVM”.

Nesta notícia faz-se referência ao mestre pedreiro Manuel Fernandes da Silva que nos inícios do século XVIII foi responsável pelo desenho e alteração das Capelas do transepto. A inscrição fazia parte de um pedestal de estátua, possivelmente encimada pela representação de um genio na qualidade de espírito protector do edifício. Sabemos ainda quem foi o benemérito responsável, Flavius Urbicio, a quem certamente o Senado, consciente do valor desta doação, teria autorizado a sua oferta e colocação em espaço público. Mas mais significativo que o pedestal de estátua é a já referida inscrição dedicada por Lucretia Fida, a Ísis Augusta. Trata-se, até à data, da única sacerdotisa documentada no Noroeste peninsular. É interessante que nesta inscrição, à semelhança de outros casos conhecidos na Citerior, o culto ao imperador esteja associado à deusa Roma. Desde a República, esta deusa foi convertida numa personificação do Estado, mas será com Augusto que assume maior protagonismo passando a estar associada ao imperador governante

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e simbolizando uma forma de união entre o Estado e o Princeps. Num primeiro momento, esta associação foi fomentada através de altares nas capitais conventuais, como no caso de Lucus Augusti, consagrado por um legatus Caesaris, e de Bracara Augusta, dedicado pela Gallaecia. Mais tarde, procede-se à designação de sacerdotes Romae et Augusti, que passam a ficar responsáveis pelos altares nas capitais conventuais e desempenham um papel idêntico à dos sacerdotes que serviam a ara do santuário federal das Três Gálias. A eleição de Lucretia Fida para o cargo de sacerdotisa teria requerido óptimas relações sociais e suficiente poder económico ou, no limite, ser casada com um sacerdos do conventus Bracaraugustanus. Como não podia participar na vida política, Lucretia, financiou a construção de um pequeno templo circular em honra daquela deusa oriental. Com este acto benemérito fez uso de parte do seu património em favor dos interesses da família, actuando como qualquer membro masculino pertencente às elites municipais. Realce-se aqui que, de entre todos os tipos de obras públicas custeadas por beneméritos hispânicos, foram as construções sagradas as que receberam a maior atenção. Tal preferência pode ser explicada por factores morais e ideológicos. As doações de edifícios ou espaços sagrados destinavam-se a assegurar às cidades a benevolência divina, assim como a paz e prosperidade dos seus habitantes. Estes espaços podiam ser de diversos tipos. Em Bracara Augusta temos o conhecido santuário rupestre da Fonte do Ídolo, uma fonte sagrada dedicada a divindades. Este santuário “redescoberto” no século XVI, foi

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cultura

V

Ísis [cujo culto é aqui representada num papiro] era uma deusa egípcia, protectora dos mercados e da abundância, pelo que se conclui que o mercado romano se encontraria muito perto do local onde hoje está a Sé deBraga

também dado a conhecer por Jerónimo Contador de Argote e, posteriormente, motivo de atenção de vários eruditos e investigadores que o descreveram, desenharam e interpretaram. De entre as várias interpretações avança-

Gravura do santuário da Fonte do Ídolo publicada por J. Contador de Argote

das para a “leitura” do conjunto das inscrições e das esculturas, são mais credíveis as propostas que sugerem que neste santuário se celebrava o culto a duas divindades tópicas vinculadas a uma fonte: a escultura com toga que segura uma cornucópia corresponderá à deusa Nabia e o busto esculpido no nicho ao deus Tongus Nabiagus. O que podemos inferir da sua posição fora dos limites da área urbana de Bracara Augusta, numa das saídas da via XVII, que a ligava a Astorga, por Chaves, é que se tratava de um santuário “ad portam”, situado portanto numa das entradas da cidade. Mas voltando a Lucretia. A perpetuidade do cargo concedida ao finalizar o exercício anual do sacerdócio implicou a manutenção da dignidade sacerdotal e dos privilégios que proporcionava o seu desempenho. Como noutras cidades, esta honra vitalícia foi decretada pelo ordo, talvez como título honorífico, e implicou a manutenção das actividades religiosas. Os cargos sacerdotais não pressupunham nenhuma vocação a quem os ocupasse. Simplesmente se exigia serem capazes de repetir rituais e os executar. A existência de um templo dedicado a Ísis revela que, à semelhança de outras cidades do Ocidente do Império, também em Bracara Augusta se professou este culto de origem oriental. Este culto desenvolvia-se em paralelo à religião “oficial”, bastante menos espiritualizada e foi um dos que mais se difundiu em todo o

Ocidente romano, especialmente graças aos viajantes, com especial destaque para os militares, comerciantes e marinheiros, que mandavam construir santuários aos seus deuses. Como em Bracara Augusta, a maior parte das inscrições dedicadas a esta deusa foram feitas por mulheres. Desde a sua introdução até ao triunfo do cristianismo, este culto deve ter sido um dos mais importantes da cidade. Podemos imaginar que a presença deste culto teria implicado a ocorrência de várias procissões ao longo do ano, segundo rituais complicados em que os penitentes entoavam hinos nas ruas e realizavam actos de piedade e mortificação despertando o interesse dos seus habitantes. Mas também era uma religião de meditação silenciosa, de adoração contemplativa dos devotos perante o rosto sagrado da deusa, quando a sua imagem era transportada nas procissões. O seu culto devia despertar uma atracção direc ta e poderosa sobre as mulheres da cidade. Ísis orientava a conduta das mulheres, impunha-lhes penitências e um período de castidade ritual (através de ritos de purificação e rituais de castidade que duravam dez dias), mas também as agraciava revelando-lhes a sua dignidade e poder. Tanto as mulheres respeitáveis como as prostituas se identificavam neste culto, encontrando satisfação social e gratificação sexual. Esta deusa recrutava numerosas devotas entre as meretrices

VI

cultura

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Desabrochei Por André Araújo

Cerimónia em honra de Ísis, proveniente de Herculaneum (Nápoles, Museu Nacional) porque a “Boa Mãe”, é misericordiosa para as infelizes e promete-lhes redenção. O acto benemérito de Lucretia Fida, destinava-se a perdurar na memória colectiva da comunidade e a legitimar as aspirações dos seus descendentes, pois essa memória cívica seria aproveitada pelos membros das famílias de notáveis para obter apoio popular em comícios eleitorais que anualmente se celebravam na cidade. Lucretia é uma prova clara do impacto provocado pelas mulheres na cidade e um exemplo dos diferentes caminhos para a proeminência pública. Como parte integrante das elites da cidade, Lucrecia é ainda um bom exemplo da integração conseguida por algumas mulheres hispânicas para controlar a vida pública das comunidades, neste caso pelo desempenho de um sacerdócio, situação pouco frequente na Península e, como referimos, caso único em todo o Noroeste Peninsular. ❐

BIBLIOGRAFIA

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* Parte deste texto foi publicano na revista Forum (2010, 121-133) em homenagem a Francisco Sande Lemos, Homem singular, lutador incansável pela preservação desta cidade bimilenar e que a ela dedicou parte da sua vida de investigador.

Prof. Doutor Rui Morais O Prof. Doutor Rui Morais, autor deste artigo sobre “Lucretia Fida”,é professor com agregação da Universidade do Minho, Presidente do Conselho Pedagógico e Vice-Presidente do Instituto de Ciências Sociais, além de outros cargos. Segundo a Prof.ª Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, merece especial referência a carreira académica deste arqueólogo radicado em Braga, dada a variedade da formação recebida. Efectivamente, cada um dos quatro anos cursados na licenciatura em História e Arqueologia decorreu numa Universidade diferente: frequentou o 1.º ano na Universidade do Minho, o 2.º na de Atenas, o 3.º na de Pisa, e o 4.º na de Coimbra. Foi discípulo do Professor Doutor Jorge de Alarcão, que foi orientador da sua tese de Mestrado, em 1998, sobre As ânforas de Carvalheiras. Em 2005, novamente na Universidade do Minho, defendeu a tese de Doutoramento, sobre Autarcia e Comércio em Bracara Augusta, a qual veio a ser também editada em inglês numa série oxoniense dos British Archaeo-

logical Reports. De outras publicações da especialidade foi coordenador tanto em Inglaterra (The Western Roman Atlantic Façade, 2010), como em Espanha (Ânforas romanas de Lugo, 2011). Às lucernas romanas tem igualmente dedicado a

sua atenção. Grande parte da sua obra (que já conta quinze livros e cerca de uma centena de artigos, muitos dos quais publicados em Espanha) é consagrada ao estudo de Bracara Augusta. Além da obra já acima mencionada nesta área, refira-se ainda a colaboração no Catálogo do Museu D. Diogo de Sousa (2008), Cerâmicas de produção local de Bracara Augusta (2009, com Manuela Delgado) e, sobretudo, Bracara Augusta (edição da Câmara Municipal de Braga, 2010). Como arqueólogo, a ele se deve também, entre outras descobertas em Braga, a da data do teatro romano e a localização do anfiteatro romano, e ainda a de um pequeno busto de bronze, que tudo indica que seja uma reprodução da Tyche bracarense, semelhante à de Antioquia, por Eutíquides. Duas das suas obras mais recentes (foram editadas em 2011) são os volumes A Colecção de Vasos Gregos do Museu da Farmácia e A Colecção de Lucernas Romanas do Museu de Évora, ambos editados pela “Classica Instrumenta”. ❐

Desabrochei as palavras, os sentimentos e o meu coração. Tive o trabalho de abrir a minha boca e largar as minhas palavras para que alguém as pudesse ouvir. Estou triste, falta-me a flor que desabrochei para dizer estas palavras, para que uma outra flor as pudesse ouvir. Revirei o mundo à procura dessa mesma flor, mas acabei encalhado num mar sem mim. O meu barco afogou-se, a minha flor morreu. Quis dar estas palavras a alguém, mas ninguém as quis ouvir. Guardei as melhores para que alguém mais especial as ouvisse lá do fundo do meu coração. Tentei ter outra flor e desabrochá-la, mas faltam-me as sementes para a fazer nascer. Quis então procurar uma nova maneira de dar estas palavras. Então gritei. Berrei infinitamente para que alguém me ouvisse. E eis que surge a hora em que alguém ouviu. Alguém me ouviu, com um grande sentimento, a felicidade. Era tão grande este belo sentimento que até duvidei. Por isso guardei-me. Voltei a pôr estas palavras dentro da minha caixa, lá na barraca do meu íntimo. Mas errei. Errei de tal forma que as minhas flores fecharam e as minhas palavras desapareceram. Fiquei sem saber por onde ir. Derramei lágrimas e fiz nascer o desgosto. Lutei e perdi, voltei a lutar e voltei a perder. Agora tenho medo de construir novas palavras para que alguém as possa ler. O meu coração bate tão agressivamente que até fere a minha alma, sempre que divulgo algo. Ninguém me escuta e me lê. Escrever e sentir não é errado, mas sentir e fazer sentir é um pecado literário. Quero desabrochar as minhas palavras para alguém, mas foram tantas as críticas que só metaforicamente consigo dizer o que sinto. Tenho várias palavras, que formam frases e constituem textos. Esses textos foram o fruto das minhas flores belas. Vou desabrochar e procurar alguém que me ouça. Irei lutar contra este medo. Vou gritar para que alguém me escute. Vou escrever infinitamente para que alguém possa ler, mas acima de tudo irei ser forte e levar a cabo algo que eu quero. Todos os dias guardarei para mim palavras que podem formar frases e textos para mais tarde fazer desabrochar corações e almas de muitas pessoas. Só tenho dois sentimentos: felicidade e tristeza. São várias as vezes em que a tristeza reina no meu íntimo e eu tenho que tirar do meu sótão a felicidade e fazê-la crescer. Vou desabrochar e fazer reinar a felicidade, porque eu sou forte e tenho palavras fortes e haverá alguém que, com o seu coração, vai senti-las... ❐

Diário do Minho

Igreja de Professor primário, fervoroso católico e homem com espírito de iniciativa e capacidade de risco, Jerónimo Portilho imaginou e articulou os fundamentos da Confraria de Santa Cruz [Braga], que dedicaria especial devoção aos Passos do Senhor. Depois de aprovada, começou a Confraria por se instalar na Capela do Espírito Santo, da bela igreja barroca de S. João Marcos, eixo do hospital do mesmo nome, restaurado no século XVIII, mas de primitiva edificação quinhentista. Crescia em número, actividades e importância a Confraria, de tal forma que Jerónimo Portilho lançou nova iniciativa – construir uma igreja para a associação mais tarde honrada com o título de Irmandade Real. E com esmolas dos confrades e a ajuda do arcebispo de Braga, erguer-se-ia a igreja de Santa Cruz, que marca o início do período barroco bracarense cuja qualidade, abundância e personalidade iriam influenciar o carácter urbano e a monumentalidade da capital minhota. Apesar de ser a primeira em tempo, a igreja de Santa Cruz ocupa também lugar primacial quanto a beleza, o que, entre tantos brilhantes exemplos, significa muito. Detinha então a Coroa portuguesa o rei espanhol Filipe IV – a edificação da primeira fase da igreja foi feita entre 1625 e 1653 – e era arcebispo de Braga D. Afonso Furtado Mendonça, um alentejano de forte personalidade, doutorado em Coimbra e que foi Deão da Sé de Lisboa, Reitor da Universidade, membro do Conselho de Estado, presidente da Mesa da Consciência e Ordens, bispo da Guarda e de Coimbra; transferido em 1618 para Braga, seria seu arcebispo, e mais tarde arcebispo de Lisboa e Governador do Reino. É provável que o programa do projecto da igreja fosse do Arcebispo Primaz e, pelo menos, o final da construção parece ter sido da autoria do mestre Francisco Vaz, que concebeu e realizou uma verdadeira obra de arte arquitectural neste Terreiro dos Remédios, próximo do Hospital de S. João Marcos. O estilo barroco ensaiava então os primeiros tímidos voos em Portugal onde o maneirismo dominava e persistiria. Durante todo o século XVII a aceitação do barroco foi lenta entre nós e só na centúria seguinte se afirmaria, alcançando elevado valor estético, sobressaindo especialmente o seu decorativismo arquitectónico, e na escultura de talha, e no azulejo, e em outras artes como o mobiliário, a ourivesaria, a cerâmica, nas quais os artistas portugueses souberam realizar obras-primas de invulgar personalidade. Durante largo tempo, a arte barroca sofreu pelo mundo maus tratos da crítica iluminista e neoclássica, e ainda por preconceitos que a consideravam fruto e imagem absolutista e clerical. Generalizou-se o depreciativo julgamento de barroco como uma variedade de feio, de extravagante, de teatralidade emocio-

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VII

Santa Cruz Por

Júlio Gil *

A igreja de Santa Cruz (situada no Largo Carlos Amarante – Braga) é um dos “centros” geográficos das cerimónias da Semana Santa. É no seu“adro”,aliás, que ocorre o “Encontro” entre Jesus e a Virgem Maria na Procissão do Domingo de Ramos, e onde é pregado o ancestral “Sermão do Encontro”. Para que os leitores possam admirar também a componente artística deste templo, publicamos hoje um texto do Arq.º Júlio Gil que, certamente, ajudará a “compreender” melhor a riqueza patrimonial deste templo do século XVII.

Igreja de Santa Cruz – Braga (foto de José Carlos Ferreira)

nal, exibição do irracional e do inútil, negação do ideal de beleza como unidade orgânica e como ponderação – repugnante mesmo quando se lhe admitia possuir conteúdos positivos, como faz Benedetto Croce ao designar o barroco “forma di brutto estetico”. A partir dos finais do século passado, começou a olhar-se a Idade Barroca sob novos prismas, a estudar-se melhor e mais profundamente, a descobrir-se como ideia de arte realmente livre, que a aproxima do nosso tempo. Talvez vindo da palavra portuguesa barroco, que significa “pérola dourada lisa” – nas Beiras dá-se também este nome a penedos de forma irregular... –, este termo merece hoje consideração muito mais justa que a anterior, pois define um período de grande riqueza criadora, não só por toda a Europa, e apliada, para além da arquitectura, às outras artes plásticas, e à literatura, e à música, naturalmente com características diversas, conforme as regiões, as influências e interfusões com sensaibilidade e expressões locais. No seu dinamismo dramático, o barroco foi uma reação aos ideais clássicos renascentistas e aos esforços de originalidade do maneirismo, como que uma necessária humanização da arte depois de tanto intelectualismo. Dino Formaggio diz: “... e assim se coloca como a voz e o guia da alma dos povos, a

revelação potente dos seus desejos e dos seus significados e, a um tempo, como o ímpeto da comoção que, com popular violência, abate e exalta, mostra os caminhos da condenação e da redenção que levam o homem a tomar consciência de si mesmo e da própria vida, e aí a ‘realizar virtuosamente’. Tal é e desejou ser, no seu mais alto ideal, o Barroco. Isto não é só um ideal de Arte, mas também um ideal de Vida.” A igreja de Santa Cruz ergueu-se neste período inicial, em que o barroco acrescentava nova linguagem decorativa a esquemas estruturais maneiristas. No entanto, a frontaria só foi terminada numa época de já bem amadurecido barroco – as torres foram erguidas em 1694, a decoração da frontaria em 1737. Entre as duas torres sineiras, de belo desenho, a fachada é esbelta, de feliz composição dividida em dois pórticos sobrepostos e um terceiro sector dominado pelo frontão ricamente esculturado. O pórtico do nível térreo, de estilo dórico, quatro colunas adossadas e com caneluras, enquadra as três portas do templo; entre as vergas e o entablamento, três cartelas emolduram inscrições e são seguidas por outras três, acima da cornija e separadas por pedestais de quatro pilastras que constituem um pórtico-cego, de formas e propor-

ções jónicas, de entablamento interrompido por óculo com larga molduração, participante num jogo de pequenas janelas que discretamente iluminam as escadas da Torre e o Coro, jogo onde também se integram os relógios, cuja ornamentação foi trabalho do mestre pedreiro Francisco Álvares. A fachada lateral divide-se em painéis brancos rasgados por altos janelões em duas linhas de diferentes alinhamentos – sóbria geometria, maior realce à fachada. Três fortes arcos torais apoiam a abóbada de berço sobre a alta nave, no amplo interior ornado de esplendorosa talha. Francisco Machado, de Landim, foi o entalhador dos seis altares laterais e a talha do Coro é do escultor António Marques – obras da época de D. João V. Azulejaria e pinturas dos séculos XVII e XVIII dão particular interesse à sacristia, assim como um magnífico arcaz seiscentista. Porém, as maiores preciosidades decorativas encontram-se na obra de talha do grande escultor Frei José de Santo António Vilaça, que desenhou a impressionante capela-mor, ganhando também um concurso para um novo retábulo, em que participaram artistas de Lisboa, Porto e Guimarães. Frei José Vilaça já realizara o anterior aquando da ampliação da capela-mor de que a Irmandade de Santa Cruz o encarregara, mas, depois de terminado, decidiu-se levantar outro por motivos estéticos e técnicos, que fosse “mais leve nas suas formas e menos dispendioso para dourar”. O bracarense Frei José Vilaça recebera forte influência do arquitecto-escultor André Soares da Silva, de quem, aliás, a igreja de Santa Cruz guarda a primeira obra documentada – um trabalho gráfico, a iluminura do frontispício dos Estatutos da Irmandade do Bom Jesus e Sant’Ana. Frei José Vilaça desenhou e executou algumas das melhores obras barrocas do Norte, notavelmente estudadas por Robert Smith, que se encontram disseminadas por vários monumentos. Neste igreja de Santa Cruz, além do referido retábulo, também as seis sanefas e os caixilhos das janelas, dois relicários, credências e portadas da capela-mor constituem admiráveis provas do talento imaginativo do mongeartista do beneditino Mosteiro de Tibães, agraciado com a capa de irmão da Irmandade de Santa Cruz, o que muito o honrou. ❐

* Júlio Coelho da Silva Gil nasceu em Lisboa a 24 de abril de 1924 e faleceu a 11 de abril de 2004. Foi um prestigiado ilustrador, cartonista, caricaturista, arquitecto, pintor e escritor. Para além de outras obras editadas, de que se destaca a série “Chico” (que relata as aventuras de um jovem pugilista), em colaboração com os fotógrafos Augusto Cabrita e Nuno Calvet, escreveu uma série de álbums sobre arquitectura portuguesa, entre as quais figura a obra “As mais belas igrejas de Portugal”,publicada em 1988 pela Editorial Verbo (e reeditada em 2006 pela Edimpresa Editora).

VIII

cultura

28DEMARÇODE2012

o l u c é s o d Ícones Por

Fernando Pinheiro (Escritor)

Quando estava a terminar a instrução primária, em 1958, lembro-me de ter sido envolvido na emulação política que então se viveu por causa das eleições para a presidência da República, e recordo-me também de ter tomado o partido do Humberto Delgado só por ele ser, na minha ingénua visão, o chefe dos aviões. Já no Liceu Sá de Miranda, em plena frequência do Curso Complementar, soube da morte misteriosa de Humberto Delgado, e da sua secretária brasileira, pois correram boatos na cidade que o davam morto ora às mãos dos comunistas ora à mãos da PIDE. Devido à censura que imperava no país, nunca foi possível apurar a verdade até ao 25 de Abril de 1974. Graças à liberdade então alcançada, foram publicados numerosos trabalhos sobre a veracidade do crime perpetrado pelo aparelho repressivo da ditadura salazarista. A PIDE tinha morto Humberto Delgado e Arajaryr Campos com recurso a um crime a todos os títulos hediondo. O assassinato do “General Sem Medo”, conforme ficou para a história, por vontade do povo, nem sequer foi um acto isolado. A PIDE já tinha um longo cadastro na esfera da repressão, mormente a cometida na tenebrosa prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, onde sucumbiram no período de 36/51, trinta e sete oposicionistas, e que o regime conotava, demagogicamente, com o Partido Comunista Português. A eliminação de Humberto Delgado, porém, abalou o regime, provocou uma onda de escândalo à escala mundial, mercê da forma como foi gizada e executada, pois a PIDE foi a Espanha matar um adversário político, que sete anos antes tinha disputado o cargo de Presidente da República. E, no entanto, Humberto Delgado tinha servido a pátria com exemplar brilhantismo e abnegação, e havia sido promovido a general da aviação portuguesa com apenas 47 anos de idade. Ao longo da sua preenchida carreira, esteve nos Estados Unidos da América, como chefe da Missão Militar, onde de resto viria a ser agraciado pelo governo norte-americano com o grau de oficial da Legião de Mérito, chefiou delegações nacionais junto da Nato, foi nomeado Director-Geral da Aeronáutica Civil e criou os Transportes Aéreos Portugueses (TAP), lançando uma carreira Lisboa – Madrid, em

Diário do Minho

Humberto Delgado – o general que estava “pronto a morrer pela liberdade” 1945; e também as carreiras para Angola e e feridos. Quando o candidato se preparaMoçambique em 46. va para seguir para a sede da candidatura, Em 1958 aceitou ser o candidato da Opo- sita na avenida da Liberdade, a cavalaria da sição Democrática às eleições para a presi- GNR, sob a ameaça de armas brancas e de dência da República, cujo anúncio foi feito fogo, obrigou o seu automóvel a seguir em no dia 10 de Maio, no café Chave d’Ouro, sentido inverso, pelas ruas das fábricas e dos onde, instado pelo correspondente da estaleiros até Moscavide, impedindo que o agência France-Presse, o jornalista Lindorfe general fosse vitoriado pelo povo de Lisboa. Pinto Basto, sobre o destino que daria a Ficou sequestrado na sua própria casa até ao Salazar, caso ganhasdia seguinte, guarse as eleições, profedado por três agenriu a resposta que tes da PIDE. sobressaltou o país: Tomadas as devi“Obviamente demidas distâncias, o que to-o!” Durante a camaconteceu em Lispanha, sempre rasboa, aconteceu em treada pela PIDE, o Braga, onde o genegeneral incendiou o ral Humberto Delgapaís, com um discurdo foi impedido de so virado para a insfazer um comício, tauração da demoprevisto para 1 de cracia em Portugal, Junho, pela simples para a educação, parazão de que a GNR ra o desenvolvimene o Exército cercato e para a justiça soram o hotel Astória, cial, pelo que o povo em Coimbra, onde o rapidamente se idengeneral estava hostificou com semepedado. Nessa meslhante ideário, a ponma unidade hoteleito de uma multidão, ra recebeu uma orcalculada em 200 mil dem escrita, assinapessoas, o ter espeda pelo comandanrado, no dia 14 de te da 2.ª Região MiMonumento a Humberto Delgado Maio, na Baixa do Porlitar, a proibir a sua existente em Villa Nueva del Fresno to. O povo, simples e deslocação à cidade (Província de Badajoz, Espanha), anónimo, tinha endos Arcebispos. Tal localidade contrado o seu hecomo na capital, tamonde o “General Sem Medo” foi assassinado. rói! E o seu resgate. bém em Braga a enorAbismado com a reme multidão foi disceção do povo do Norte ao candidato da persada com violentas cargas policiais, de oposição, o governo, liderado pelo ministro que resultaram muitos feridos (35 deram da Defesa, Santos Costa, decidiu boicotar o entrada no Hospital de S. Marcos), logo comício de Lisboa, de 16 de Maio. E não só que esta começou a gritar o nome do candispersou com cargas policiais a enorme didato independente:“Delgado! Delgado! multidão que aguardava o Humberto Del- Delgado!” gado na avenida Infante D. Henrique, San- A proibição foi tomada por não desejar o ta Apolónia, e noutras ruas adjacentes, Governo “de qualquer forma possa ser precomo permitiu o acesso à gare de um gru- judicada a grande Procissão Nacional que, po organizado de legionários, com o pro- neste momento, se realiza em honra de pósito de fazer uma contra-manifestação. Nossa Senhora do Sameiro.” A decisão do De nada lhes valeu gritar “Salazar! Salazar! regime é tanto mais incompreensível Salazar!”, porque a mole humana formada quanto se sabe que o próprio arcebispo de pelos populares rapidamente anulou esse Braga, na altura D. António Bento Martins frustre boicote. Logo aí se deram graves es- Júnior, tinha informado os serviços da cancaramuças, de que resultaram vários presos didatura de que não via inconveniente na

realização do comício, porque à hora a que ele se daria já a grande peregrinação ao Sameiro estava terminada. Nos tumultos acabaram envolvidos muitos peregrinos, que tomavam as camionetas ou regressavam ordeiramente às suas casas. Tudo o que veio a seguir já é do conhecimento público: prisões discricionárias de democratas bracarenses; eleições fraudulentas (a vitória de Américo Tomás foi anunciada antes das urnas encerrarem); asilo político de Humberto Delgado no Brasil. Mesmo longe, o general não desiste de lutar pelo derrube da ditadura, envolvendose em golpes como o do sequestro do paquete Santa Maria, a revolta de Beja, a clandestinidade em Argel, até à sua traiçoeira morte em 1965. Uma morte a todos os títulos horrível. Segundo os médicos forenses espanhóis, que autopsiaram o cadáver do general, a vítima “sofreu várias contusões na cabeça, por contusão cerebral e fractura da base do crânio”. Tudo aponta para que os seus carrascos o tenham morto a golpes de coronha ou de barra de ferro ou madeira. O “General Sem Medo” foi atraído a uma cilada, por quatro pides, que o mataram de forma bárbara, num crime só possível num qualquer recôndito país do Terceiro Mundo incivilizado e crapuloso! E isto aconteceu em Portugal há somente 47 anos! Já a sua secretária, Arajaryr, parece ter sido estrangulada. Quer gostássemos quer não do estilo exuberante do general Humberto Delgado, temos de convir que ele tinha o direito de lutar pela liberdade e de colocar Portugal no seio do mundo desenvolvido das democracias ocidentais, e que ele conhecia profundamente, em funções das numerosas missões que desempenhou na Europa, nos Estados da América e Canadá. Conforme tinha dito e assegurado aos seus familiares e apaniguados “estava pronto a morrer pela liberdade”, o que veio a acontecer de forma execrável. Um adversário político merece todo o respeito, todavia, o Estado Novo não esteve à altura da grandeza de um homem como o “General Sem Medo”. Ele foi o fautor do maior levantamento popular de que há memória no Portugal contemporâneo. Saibamos honrar o seu precioso legado cívico.❐ Obra consultada: Humberto Delgado – Biografia do General Sem Medo, de Frederico Delgado Rosa, Esfera dos Livros, Lisboa, 2008.

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