Diário do Minho - A evocação feminina em Bracara Augusta II.

May 28, 2017 | Autor: Rui Morais | Categoria: Roman Religion, Roman Provincial Archaeology, Roman Archaeology
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T y c h e Fig. 1

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A evocação feminina em Bracara Augusta Nas últimas décadas, especialmente graças ao projecto integrado do “Salvamento de Bracara Augusta”, a cidade tem sido dada a conhecer. Mas da Dives Bracara, como se lhe refere Ausónio (Ordenação das Cidades Famosas, XIV), muito está por revelar. De segredo em segredo levanta-se o véu. Pouco a pouco, pacientemente, camada após camada, como se de um palimpsesto se tratasse, “percorrem-se” as várias fases do urbanismo, dos vários edifícios que o compunham, e, como dádiva após dádiva, é-nos dada a conhecer a sua escrita, gravada no abundante granito em que a região é rica ou num simples fragmento de cerâmica, aparentemente sem importância. E, por vezes, exuma-se a mais bela peça sem lhe atribuir o sentido último da sua existência. Para nossa surpresa, numa das vitrinas do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa deparámos com dois pequenos bronzes cujo significado tem passado despercebido aos investigadores. Trata-se de um busto feminino em bronze encimado por uma coroa (Fig. 1), e uma coroa de maiores dimensões, que pensamos ter pertencido a uma estatueta similar (Fig. 2). O primeiro bronze foi recuperado na Colina do Alto da Cividade. Representa uma cabeça de Tyche, ou seja, uma personificação da própria cidade. A cabeça está coroada por um diadema com sete torres estilizadas delimitadas por um sulco em ziguezague, que julgamos poder corresponder ao número de portas da cidade. O rosto, ovalado, está levemente inclinado para a direita e para baixo. A expressão do rosto está acentuada pelo tamanho dos olhos, grandes e salientes, com a íris marcada por um ponto, e pela representação das pálpebras acentuada pela incisão das sobrancelhas. Os lábios (pouco perceptíveis) estão entreabertos, vendo-se, em cima e em baixo,

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Rui Morais Arqueólogo e Professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Investigador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra

dois pequenos pontos incisos. O cabelo reparte-se em ondas simétricas, ocultando as orelhas e apanhado no alto da cabeça. Do chinó escapam-se duas longas mechas ondulantes, que se dividem sobre os ombros. Apesar do estado de fragmentação do bronze, vê-se parte de uma túnica de mangas curtas, descaídas, deixando os ombros nus; o fino panejamento permite

Cidade, I.18). Podemos vê-lo representado em diferentes suportes do mundo romano, como, por exemplo, em moedas e relevos escultóricos. Como ilustração das primeiras refira-se um aureus de Octaviano (36 a.C.), onde se representa o templo do Divus Iulius (à data ainda em construção) e um denário de C. Antistio Veto (16 a.C.), com a representação dos quatro objec-

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fazer transparecer o volume dos seios. Na manga conservada vê-se uma série de sulcos dispostos em espinha. Entre o braço esquerdo e o corpo figura um atributo que julgamos poder corresponder a um símbolo ritual que nos parece poder ser interpretado como um lituus. Trata-se de uma espécie de cajado usado pelos áugures, com o qual dividiam a área do céu em regiões para realizar actos divinatórios (CÍCERO, Div. I. 17; LÍVIO, Desde a Fundação da

tos sagrados, símbolos dos principais colégios sacerdotais de Roma (Figs. 3 e 4); como exemplo dos relevos escultóricos, refira-se um altar aos Lari (Fig. 5), em cujo centro se vê a figura de Augusto, representado como áugure com littus (ZANKER 1989: 39, fig. 26; 137, fig. 103; 133, fig. 101). As características acima descritas do bronze de Braga e a forma de representação da boca, com os lábios entreabertos, pressupõe um trabalho realizado no século II.

O segundo bronze foi recolhido sem contexto e igualmente na Colina da Cividade. Corresponde, como referimos, a uma coroa, tendo-se apenas conservado cinco das ondulações que compunham a peça. As representações de entidades tutelares no mundo helenístico e romano O motivo da coroa presente nestes dois bronzes de Bracara Augusta é particularmente interessante. Este tipo de representação era já conhecido do mundo helénico, em particular como recompensa honorária nos jogos atléticos (PÍNDARO, Odes Olímpicas IV.36; PLÍNIO, História Natural XV. 39). No mundo romano esta representação foi, todavia, redefinida. Grande é a variedade de usos, utilizando-se diversos materiais, cada uma com um significado diferente e apropriada a uma finalidade particular. No caso presente dos dois bronzes de Braga estamos perante coroas honoríficas, integráveis nas designadas corona muralis. Sobre as origens deste tipo de coroa dão-nos conta AULIO GÉLIO (Noites Áticas V.6) e TITO LÍVIO (Desde a Fundação da Cidade XXVI. 48), quando referem que esta era usada para ofertar ao primeiro homem que escalasse uma muralha de uma cidade sitiada ou fortaleza inimiga, e colocasse nelas um estandarte próprio. A coroa era realizada em ouro e decorada com umas pequenas torres, recordando a proeza de quem a ostentasse. Tratava-se ainda de uma das mais altas condecorações militares, apenas atribuída depois de acurada investigação (TITO LÍVIO l. c.; SUETÓNIO, Vida de Augusto 25). É também atributo obrigatório da deusa Cibele ou Fortuna (LUCRÉCIO, Sobre a Natureza das Coisas II, 607, 610; OVÍDIO, Fastos IV.219), sendo

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frequente associar-se à coroa uma torre e os torreões de uma cidade. Neste caso, trata-se de uma nítida inspiração a partir de exemplares helenísticos de escultura que representavam esta deusa, como aquela cópia romana (Museu do Vaticano) alusiva à cidade de Antioquia (Fig. 6). Trata-se de uma obra atribuída a Eutíquides de Sikyon (aluno de Lisipo), que a teria esculpido em bronze depois de 300-290 a.C.. Está representada sentada numa rocha, com um pé repousando no ombro de um jovem a nadar abaixo dela e que personifica o rio Orontes. O antebraço direito está restaurado. A cabeça, ainda que antiga, é de outra estátua. Possui uma coroa de torres que representa as muralhas urbanas e na mão um molho de espigas, símbolo da abundância. As direcções contrastantes das pregas, cabeça, tronco e braços dão animação a uma posição relativamente calma da Tyche. Deste período conhecem-se também representações em moedas com figuras femininas torreadas, alusivas a deusas e a entidades tutelares das cidades. Na Península, é já bem conhecida a cabeça esculpida de Tycke ou Fortuna encontrada em 1972 na cidade de Itálica (Fig. 7). Corresponde a uma cabeça colossal da deusa com diadema e uma torre cilíndrica datada do século II, atribuída a uma das melhores oficinas de escultura daquela cidade (CORZO SÁNCHEZ 1999: 582). Na Península, as imagens de

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Tyche, como personificações das cidades, estão maioritariamente documentadas em termas ou nas suas proximidades. O exemplar encontrado em Itálica foi recuperado nos jardins perimetrais das termas menores ou “de los Palacios” (CORZO SÁNCHEZ 1999: 582); outra imagem de Tyche, datada do segundo quartel do século II (Fig. 8), foi recuperada perto de Tarragona, numas termas da uilla de “Els Munts”, Altafulla (KOPPEL 1993: 222 e 233, fig. 2; 1999: 345). Conhece-se ainda uma cabeça de Tyche de grandes proporções (Fig. 9) em Mértola (Beja), recuperada nas escavações da Igreja da Misericórdia daquela cidade (SOUZA 1990: 9, fig. 1-2; INVENTÁRIO... 1995: 54-55), uma estatueta acéfala (Fig. 10) representada segundo o modelo helenístico, proveniente da Quinta das Antas (Tavira) (FABIÃO 2006: 45), e (com algumas dúvidas) um fragmento marmóreo (não ilustrado) recuperado em Chãos Salgados (Miróbriga?), em depósito no Museu Municipal de Santiago do Cacém (BARATA 1997: 20-21; QUARESMA 2003: 14). A estes exemplares deve agora acrescentar-se os dois bronzes recolhidos na Colina do Alto da Cividade, nas proximidades das termas romanas da cidade. Considerações finais Conhece-se agora a face da cidade. Da sacralidade fundacional da cidade já não restam dúvidas. Está pois sancionada a

importância sagrada do solo da vetusta Braga. Também esta, à semelhança de Roma, foi motivo de rituais sagrados que lhe proporcionaram uma importância cada vez maior. Relembremos assim Ausónio, na sua Ordenação das Cidades Famosas (XIV), referindo-se a ela como Dives Bracara, orgulhosa, portanto, da sua riqueza. Edificantes ainda são as palavras de Tito Lívio (Desde a Fundação da Cidade, I.8.4-6), quando tencionou expor a origem do povo romano e da fundação de Roma, cidade berço de todo o império. Diz aquele historiador o seguinte: “Entretanto, a cidade crescia, ocupando com as suas muralhas uma extensão cada vez maior, já mais na expectativa de vir a acolher futuras multidões do que os habitantes que então possuía. Em seguida, para não deixar vazia uma cidade tão grande e para atrair uma população numerosa, [Rómulo] valeu-se da velha táctica dos fundadores de cidades, que consistia em reunir à sua volta uma grande multidão de pessoas de origem obscura e humilde, fingindo que a terra tinha feito brotar para si uma nova raça. E no sítio onde existe agora uma cercadura, na encosta situada entre os dois bosques sagrados, criou um lugar de Asilo. Aí se veio a refugiar, oriunda das povoações vizinhas, uma turba de todo o tipo, constituída por uma amálgama indistinta de homens livres e de escravos, ansiosos por novas oportunidades. E foi este o primeiro reforço da grandeza então iniciada.”

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(Tradução inédita de Delfim Leão). Bracara Augusta, à semelhança de Roma, teria certamente proporcionado às populações que habitavam a região condições favoráveis, levando-as a abandonar os locais de residência para aderir a um novo projecto, num local sagrado e agraciado com o nome do Imperador. Resta-nos, de momento, contemplar a brônzea face da cidade, a da vetusta Bracara, protectora de todos os lares, que tranquilamente zelava pela ordem estabelecida por Augusto. ❐

Romana”. In Hispania. El legado de Roma. Zaragoza, pp. 338-349. QUARESMA, J. C. (2003) – “Terra Sigillata álica num Centro de Consumo: Chãos Salgados, Santiago do Cacém (Miróbriga?)”. Trabalhosde Arqueologia. Lisboa: IPA. 30. SOUZA, V. (1990) – Corpus Signorum Imperii Romani. Corpus der Skulpturen der Römisch en Welt. Coimbra. ZANKER, P. (1989) – Augusto e il Potere delle Immagini. Torino.

Edições, comentários e traduções

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Bibliografia BARATA, M. F. (1997) – “Ruínas de Miróbriga”. In Santiago de Cacém: da arqueologia à história. Pelo caminho das pedras. Santiago do Cacém: Museu Municipal de Santiago de Cacém, pp. 19-21. CORZO SÁNCHEZ, R. (1999) – “Catalogo de Piezas”. In Hispania. El legado de Roma, p. 582, n.º 135. FABIÃO, C. (2006) – A Herança Romana em Portugal. CTT Correios. KOPPEL, E. M. (1993) – “La Escultura del En torno de Tarraco: las villae”. In NOGALES BASARRATE, Trinidad (coord.). Actas de la I Reunión sobre Escultura Romana en Hispania. Mérida, pp. 221-238. KOPPEL, E. M. (1999) – “La Escultura Ideal

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ÁULIO GÉLIO MARACHE, Réne (1978) – Aulu-Gelle. Les Nuits Attiques. Paris. Tome II. Livres V-X. AUSÓNIO EVELYN-WHITE (1951) – Ausonius. Cambridge. (2 vols.). LUCRÉCIO ERNOUT, A. (1948) – Lucrèce. De la Nature. Paris. Tome Premier. PÍNDARO PUECH, Aimé (1949) – Pindare. Olympiques. Paris. Tomo I. PLÍNIO-O-ANTIGO ANDRÉ, J. (1960) – Pline L’ Ancien. Paris. Livre XV. SUETÓNIO AILLUOD, H. (1931) – Suétone. Vies des Douze Césars (César-Auguste). Paris. Tome I. TITO LÍVIO BAYET, Jean e BAILLET, Gaston (1944) – Tite-Live. Histoire Romaine. Paris. Tome I. Livre I. JAL, Paul (1991) – Tite-Live. Histoire Romaine. Paris. Tome XVI. Livre XXVI.

José Manuel Mendes anuncia a criação da “Casa do Escritor”

O presidente da Associação Portuguesa de Escritores (APE) alertou recentemente para o facto de haver cada vez mais os associados em dificuldades devido à crise económica que o país atravessa e revelou que vai ser criada uma Casa do Escritor para os apoiar. José Manuel Mendes (na foto) falava numa conferência de imprensa realizada na sede da APE, em Lisboa, para

anunciar o nome do vencedor deste ano do Prémio Vila Literária da entidade, no valor de 25 mil euros, patrocinado pela Caixa Geral de Depósitos – galardão que foi atribuído, por unanimidade, a João Rui de Sousa, poeta e ensaísta de 84 anos, nascido em Lisboa. “Os escritores vivem dias difíceis, como vive o país, como vive a maioria dos portugueses, e aumentaram os pedidos de ajuda”, comentou o escritor bracarense José Manuel Mendes, presidente da APE. O responsável por esta entidade, fundada em 1973 e que conta atualmente com 750 associados, referiu que têm surgido “cada vez mais casos de escritores a viver em dificuldades”.“Além de todos os constrangimentos iguais aos dos outros portugueses, no caso dos escritores há as dificuldades no acesso à edição. Há um número vasto de autores que não consegue publicar”,indicou. De acordo com o presidente da direção da APE, a entidade “está a alargar uma rede de benefícios sociais para todos os sócios e sobretudo os que estão a viver em precariedade”.“Além disso, queremos criar em breve uma Casa do Escritor como forma de expressão plena de solidariedade”, salientou.

Para José Manuel Mendes, “as obras literárias são um acervo insubstituível que integra o património imaterial da nossa cultura e é preciso pensar e salvaguardar o seu futuro”. Defendeu ainda a criação de novas formas de apoio à edição e aos escritores portugueses. Sobre a obra do poeta João Rui de Sousa, distinguido com o prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores/ Caixa Geral de Depósitos 2012, no valor de 25 mil euros (e que é atribuído de dois em dois anos a escritores de ficção, poesia e ensaio), José Manuel Mendes salientou que os membros do júri justificaram a escolha do poeta, de 84 anos, “por estar entre os maiores da literatura portuguesa do presente, com uma vasta e reconhecida obra na poesia e no ensaio”.“Entre todos os que poderiam ser candidatos, João Rui de Sousa foi aquele que preenchia os requisitos essenciais”, salientou José Manuel Mendes. Para o presidente da APE, a poesia de João Rui de Sousa “é uma experiência de singularidade” e “revela grande pujança das instâncias verbais, depuramento formal e pluralidade temática”. José Manuel Mendes explicou ainda que o prémio já foi anual, mas tem sofrido

intermitências, tendo sido atribuído de dois em dois anos: “Esperemos que este galardão, que só é possível com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos, volte à periodicidade anual”. Atribuído este ano à área da poesia, no próximo ano será a vez do ensaio, indicou a organização. Poeta e ensaísta, João Rui de Sousa nasceu em 1928. Licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, a partir de 1982 e até à aposentação, em 1993, trabalhou como investigador na área de espólios literários da Biblioteca Nacional. “Circulação” (1960) foi a sua primeira obra editada na área da poesia, e, mais recentemente, “Lavra e Pousio” (2005) e “Quarteto para as próximas chuvas” (2008), e no ensaio, destaca-se a obra “Fernando Pessoa - Empregado de Escritório” (2009). O Prémio Vida Literária APE/CGD é entregue numa cerimónia que conta com a presença do Presidente da República. Este galardão já distinguiu, entre outros, José Saramago, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Vítor Aguiar e Silva.❐ P. B.

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