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June 15, 2017 | Autor: Sergio Barcellos | Categoria: Arquivos, Diarios Intimos, Diarios Pessoais
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Fevereiro 2012

13 COORDENAÇÃO: Cláudia Faria

Registos e Escritas privadas com História "MCFSUP7JFJSB 1SFTJEFOUF$&)"

Página 2

SUMÁRIO t t t t t t t t t t t t t

Apresentação3 +PÍP)JHJOP'FSSB[6NB7JEBo6N"SRVJWP1SJWBEP4 &QJTUPMPHSBöB$IBSMFT%BSXJOFP"SRVJQÏMBHPEB.BEFJSB8 &NCVTDBEBGBNÓMJB.PEPTEFGB[FSIJTUØSJB9 4PCSFNFNØSJBTRVFEPSNFNOPUFNQP 10 'PUPHSBöBDPNPSFHJTUP)JTUØSJDP 10 6NBIJTUØSJBEFGBNÓMJB 12 &TDSJUBTQPQVMBSFTFNDPOUFYUPTEFNPCJMJEBEF 4ÏD9*9F99  14 "6UJMJ[BÎÍPEF"SRVJWPT'BNJMJBSFT/PSUF"NFSJDBOPT QBSBP&TUVEPEB)JTUØSJBEF.BDBV 4ÏDVMP9*9  24 %VUDI%JBSZ"SDIJWF0"SRVJWPEF%JÈSJPTOB)PMBOEB 27 i5IJOHTHPOFBTUSBZyw"SDIJWBMSFTFBSDIBOEQSJWBUFMJWFT 31 %JÈSJPTF"SRVJWPT 34 /PUBTEFMFJUVSB 37

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Editorial

(Continuação)

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E quando a História se faz de vidas… Cláudia Faria



quase completamente esquecido, tanto mais que dos fracos não reza a história, lá diz o ditado popular. Enfim, cada louco com a sua mania! E aos poucos os documentos relativos à família Phelps foram se acumulando e eu sem saber bem o que fazer com eles. A tipologia era variada: cartas, postais, documentos avulsos, convites, livros de receitas, diários e fotografias. Os espólios familiares tem esta diversidade e por outro lado, apresentam-nos sérios problemas de cronologia já que muitas vezes, há lacunas temporais (curtas ou longas) que dificultam a nossa compreensão assim como e, no caso da correspondencia, em particular, podemos apenas contar com a carta enviada mas não com a resposta, ou vice-versa. Ao longo desta caminhada fui aprendendo a aceitar estas ausências, estas faltas e a construir o percurso da família Phelps, um percurso feito não em linha recta nem no tempo nem no significado. - Porque pensei que seria um percurso linear? Não sei! Haverá algum? A pouco e pouco fui tomando consciencia da importânica deste modo de “fazer história” e sobretudo do quanto me sentia satisfeita por ter feito esta opção. A leitura de bibliografia sobre o assunto e o contacto estabelecido com outros colegas que também se dedicam ao estudo dos ego-documentos ( terminologia holandesa) foram determinantes. Nesta sequência passei a colaborar com a IABA (International Auto/Biography Association) e a possibilidade de contactar com Philipe Lejeune e todo um grupo de trabalho multidisciplinar que tem desenvolvido trabalho no sentido de dar Voz às vozes das gentes comuns, evidenciando que as suas estórias fazem parte da História. Desde sempre que as minorias foram forçadas a se insular. Tem sido assim ao longo dos tempos. Os “grandes” impoêm-se. Porque sim e pronto. - Terá mesmo de ser assim? Por sermos ilhéus temos de ser pequenos e silênciosos? De que matéria é feita a nossa cartografia indentiária? Apenas de continentes? E o mar e as ilhas?

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meu primeiro contacto com arquivos familiares e documentos privados data do início do meu mestrado, altura em que aceitei o desafio de “investigar” a história da família Phelps. Já passaram alguns anos e a verdade é que o caminho está longe de ter chegado ao fim. Niguém me avisou! Alguém sabia que era assim? Ou era mesmo suposto ser um segredo? Que quando se começa a investigar, quando se pega na ponta de um fio, o novelo que surge, além de ser inesperado - e isso confesso atrai-me imenso!! é infinito. Confesso também que ao percorrer os passos desta família que durante o século XIX se fixou no Funchal, tenho igualmente percorrido os passos da minha caminhada. Será o caminho o mesmo? ou apenas paralelo? Ou até, inverso? – adoro andar ao contrário! Seja, qual for a orientação, a verdade é que descobri que gosto de descobrir! Que gosto de pesquizar, de investigar. Sim, de me sentar dias a fio dentro de arquivos e bibliotecas, rodeada de livros e documentos cheios de pó, cheiros, texturas, e de tantos silêncios que desvedam segredos e mistérios. Sim, porque partir em busca de algo, é sempre excitante. Raras vezes se sabe o que se irá encontrar, e pior, se é que se irá encontrar alguma coisa. E é preciso estar atento. Olhos bem abertos. Concentração máxima. Eu diria mais: temos de nos dar ao documento, sem criar expectativas, nem se fiar em máximas e regras básicas disto ou daquilo. Acreditam mesmo que os documentos cumprem (sempre) as regras? Será que cada um de nós também as cumpre (sempre)? Ora ai está. Quando se investiga é preciso munir-se de algumas ferramentas, de algumas noções, sim, obviamente que sim! Mas é preciso muito mais que isso. É preciso deixar-se levar, mas primeiro, é preciso querer-se ir. E ir . Ler vezes sem conta a mesma página, onde por vezes as rasuras e os bibliografos - nossos inimigos declarados! Mas há outros! nos impedem de ter acesso ao que está escrito. Porque sem se poder ler o que está escrito não se pode compreender, nem analisar, nem dissecar, nem fazer história!? A investigação histórica têm-se feito ao longo dos tempos com base nos documentos oficiais, aqueles que são depositados nos arquivos e bibliotecas. Todavia, desde há alguns anos, tem surgido um grupo de académicos que optaram por diversificar as suas fontes, trazendo para discussão, a importância da outra história. A história minusculada. Aquela das gentes comuns cujo papel tem sido

João Higino Ferraz:

Uma Vida – Um Arquivo Privado Filipe dos Santos

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os anos de 2004 a 2005, tivemos a oportunidade de transcrever parte apreciável dos manuscritos provenientes de um arquivo privado pessoal, o de João Higino Ferraz (JHF), director técnico da Fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons. Desta tarefa brotaram dois cartapácios, fonte relevante para o estudo da História da Madeira em finais do século XIX e na primeira metade da centúria seguinte, em áreas temáticas de diversa índole. Os volumes que constituíram o resultado deste empreendimento foram os seguintes: – VIEIRA, Alberto (coord., prefácio e notas), SANTOS, Filipe dos (leitura, transcrição e notas), 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), Funchal, CEHA; – VIEIRA, Alberto (coord., prefácio e notas), SANTOS, Filipe dos (leitura, transcrição e notas), 2005, Açúcar, Melaço, Álcool e Aguardente. Notas e Experiências de João Higino Ferraz (1884-1946), Funchal, CEHA.

O acervo com que nos deparámos pôde ser seccionado em três partes fundamentais: a primeira constituída por nove Copiadores de Cartas; uma segunda por vários volumes a que demos o nome de Livros de Notas; e, por fim, documentação avulsa. A primeira parte, sobre a qual gostaríamos de nos debruçar neste texto, corresponde grosso modo ao primeiro volume citado. Nos nove Copiadores de Cartas1 JHF conservou, em cópia duplicada, muita da correspondência – e não só – por si remetida de 1898 até 1937, com um hiato temporal existente de finais de 1913 a inícios de 1917, e outro, possivelmente, de Janeiro a Outubro de 1919. Os períodos correspondentes a estas lacunas estariam, porven1

Um copiador é um «Livro em que se copiam cartas ou outros documentos» (FARIA, Maria Isabel, PERICÃO, Maria da Graça, s.d., Dicionário do Livro, s.l., Guimarães Editores, designação que vai perfeitamente de encontro às características dos livros transcritos. O modo pelo qual JHF procedia à cópia da informação era simples: entre a folha epistolar a remeter e o fólio do copiador era inserida uma folha de papel químico que permitia o decalque das palavras grafadas. Com excepção dos dois primeiros copiadores, os restantes incluíam já a folha epistolar, que era depois destacada.

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amizade, concepções políticas, sociais e económicas, entre outras2. Neste particular, pretendemos chamar a atenção para a fecundidade de uma fonte deste cariz, pois que permite conhecer aspectos do passado que, de outro modo, não seriam resgatados do esquecimento. Dois exemplos damos apenas, neste breve escrito: o primeiro prende-se com a actividade profissional de JHF; o segundo com a sua vida privada.

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tura, contemplados em dois volumes autónomos que não chegaram até nós. Diga-se que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que, de igual modo, nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Algumas cartas que enviou, sobretudo dactilografadas, delas guardou JHF cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas no final do volume citado; por outro lado, certa documentação exarada nos Copiadores de Cartas não era epistolografia, mas sim relatórios, cálculos, estimativas de produção, de lucros e de despesas, etc. Poderá ficar o leitor com a ideia errada de que estas fontes, no seu conjunto, documentam apenas a função profissional de João Higino Ferraz enquanto industrial do açúcar, da empresa William Hinton & Sons. Com efeito, esta documentação, por esse facto, reveste-se de especial interesse para a história da indústria açucareira na Madeira, nas suas vertentes económica, social, técnica e política. Contudo, não podemos esquecer que estamos na presença de um arquivo particular – certa correspondência, por exemplo, contém, também, informações que ilustram aspectos vários da vida pessoal e familiar de JHF, bem como alusões a condições de vida geral e particular, relações de

I – Tendo sido JHF director técnico da Fábrica do Torreão, torna-se óbvio que a actividade deste complexo industrial era assunto sempre presente nos Copiadores de Cartas. Sem dúvida que assim é. No entanto, JHF fixou ainda informações de relevância acerca de várias fábricas que existiam na Madeira – a Companhia Nova e a Fábrica de S. Filipe, entre outras – e, também, sobre unidades de produção do continente português, da África colonial e de outros espaços geográficos. A este respeito, apercebemo-nos, na sua epistolografia, de uma prática que podemos apelidar, à falta de melhor, de espionagem industrial. Na verdade, a partir de finais da segunda década do século XX, a Fábrica de S. Filipe, do banqueiro Henrique Figueira da Silva, passa a exercer concorrência directa com o Engenho do Torreão. Nesse sentido, toda a informação acerca daquela, obtida de que forma fosse, seria deveras relevante. Em missiva de 03-XI-1919, endereçada a Harry Hinton, seu empregador, JHF descreve a «Fabrica de H. Figueira», «segundo as indicações que t[i]nh[a] podido obter». Logo são arrolados os dispositivos industriais de que teve conhecimento. A partir dos mesmos, tenta JHF deduzir a quantidade e qualidade dos produtos transformados obtidos, comparando-os inclusive com a actividade do estabelecimento industrial onde trabalhava e da Comp.ª Nova3. A 04-XII-1920 reporta a Harry Hinton, acerca do mesmo Engenho de S. Filipe: «Fabrica de H. Figueira: Chegou-lhe mais uma fabrica que comprou nas Canarias… isto é, mais ferro velho. Vou porém dizer-lhe o que pude apurar com relação á montagem e 2 Sobre o seu percurso biográfico (sobretudo quanto ao desempenho de funções profissionais), e os seus ascendentes que tiveram uma intervenção no domínio da indústria dos derivados da cana-de-açúcar, leiam-se as «Notas Autobiográficas de João Higino Ferraz», da autoria do próprio, em três manuscritos avulsos e transcritos em VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), pp. 41-44. 3 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), pp. 211-212.

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suas edeias, ou por outro, do technico espanhol, e os meus calculos.»

[...] Quando se falla a Pinheiro sobre qualquer assumpto que nos interessa, parec[e] que o homem está de boa fé, mas para mim, não sei se devido á esperiencia da vida, considero Penheiro como um Victorino [José dos] S[antos] Nº 2… isto é, joga com pau de dois bicos; Deus é bom… mas o diabo não é mau de todo!...

O objectivo, afinal, após arrolados os mecanismos industriais, era o de que Hinton pudesse «vêr as condições do seu competidor.»4 Em missiva de 17-X-1923, enviada de novo a Harry Hinton, pode ler-se o que se segue: «Alcool de São Filippe: Pela ultima nota que me enviou o Pinheiro, até o dia 10 do corrente, H. F. tem feito 40.000 litros, isto é, d’esde 20 setembro a 10 de outubro fêz 20.350 litros alcool, ou seja 1000 litros por dia. Como combinamos, quando chegar aos 45.000 litros vou vêr o Pinheiro e fazer os calculos [...], mas seria conveniente o Senhor Hinton escrever novamente ao Pinheiro sobre esse assumpto.»5

O referido «Pinheiro», segundo carta de 23-X-1923, seria um indivíduo com responsabilidades na Alfândega, circunstância que permitiria acesso a informação presumivelmente confidencial. Esforços de identificação mais circunspecta deste personagem saíram até o presente gorados. Na mesma carta, JHF verbaliza a suspeita de uma duplicidade de atitude por parte do mencionado «Pinheiro»:

Por conseguinte, Senhor Hinton, cautela e caldo de galinha, nunca fêz mal a doente…»6. II – Algumas passagens demonstram também o quanto esta fonte permite o acesso a informações privilegiadas para o estudo da vida privada e familiar e, inclusive, da assunção e do exercício da paternidade. Em carta de 15-III-1927 a Henrique Tristão Bettencourt Câmara, JHF refere o seu estado de espírito decorrente da doença de uma das suas filhas, Matilde. Leia-se o que diz a missiva: «Meu caro Henrique […] Mathilde, pobre pequena, não está ainda melhor, e o Dr. Pimentel aconselhou hir para o Santo

«Não tenho confiança alguma no Pinheiro!! 4 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 234. 5 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 261.

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VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), pp. 261-262.

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da Serra tomar os ares de altitude. Calcula n’este tempo e longe da minha vista, lá foram Maria Elesa (mãe) e ella para aquella solidão, e aqui ficou eu em cuidados e desgostos, como bem podes calcular. Á poucos dias porém a pobre pequena teve um[a] paralezia na face esquerda e braço ficando com a boca um pouco ao lado e a mão sem poder fazer movimento. No Domingo foi lá vel’as encontrando-a com a boca um pouco melhor, mas a mão ainda sem poder mover com ella; não há nada que não venha aquella pobre filha?! Eu estou perfeitamente desconsolado e apoquentadissimo, calcula. O medico (Dr. Carlos Leite [Monteiro]) diz que não vai ser nada e que tudo voltará ao normal. Deus o primita... O Dr. Pimentel diz que as injeções que lhe estava fazendo de pouco servio, e vejo que por emquanto não sabem do que se trata. Bem pouca vontade tenho para o trabalho, mas que remedio, tenho que trabalhar e cada vêz mais, e ainda por cima de tudo isto, o Senhor [Harry] Hinton deseja que eu já em Junho [vá] com elle á Africa!... Calcula com que vontade não hirei, deixando a pequena assim?!»7.

Em epístola de 02-IX-1927, dirigida a Avelino Cabral (em Angola), relata de novo as suas agruras pela maleita da filha. «Infelizmente chego aqui para têr o grande desgosto de encontrar a minha pobre Mathilde (filha) perdida para mim e para o mundo..! Podes calcular como deve estar o meu espirito e quanto sofro por vêr minha filha a padecer tanto. Sô visto se pode acreditar! Tenho nuites que nem eu nem minha mulher podemos dormir. A pobre filha, coitada, padece tanto... e agora por fim vem-lhe uma chaga nas costas por estar sempre deitada (9 mezes!!), era o que lhe faltava. Estava já no Funchal por indicações dos medicos, isto é, tem andado em bolandas, ella que mal se podia mecher... Desculpa-me o mal escrito e redegido, mas deves comprender o meu estado. Cheguei bem, de saude e gordo, mas em pouco tempo isto modará.»8

do de espirito, depois da morte da minha querida Filha.»9

A 11-IV-1928 voltava a ter por interlocutor Avelino Cabral. «Meu Caro Avelino Recebi varias cartas tuas acompanhando as notas das analyses, e desculparaes não ter respondido a ellas a seu tempo, mas não calculas quanto tenho andando aborrecido com estas malditas questões saccharinas, e deves comprender que isso me interessa tanto como ao Senhor [Harry] Hinton, ou talvez mais... Depois da perda de minha pobre filha estou de tal forma nervoso que tudo me isalta e me aborrece»10.

Pouco tempo depois, possivelmente em Outubro do mesmo ano – 1927 –, Matilde falece, como se constata em missiva de 02-X-1927 endereçada ao mesmo Avelino Cabral. «Meu caro Avelino Sô agora te respondo á tua carta de 23 de outubro, mas desculparaes esta minha falta, não sô pelos afazeres depois da minha chegada de Lisboa, como pelo meu esta7 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 304. 8 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (1898-1937), p. 306.

VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), p. 316. 10 VIEIRA, SANTOS, 2005, João Higino Ferraz. Copiadores de Cartas (18981937), pp. 322-323. 9

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Epistolografia: Charles Darwin e o Arquipélago da Madeira Nélio Pão



esde o século XVII, a troca de epistolografia entre naturalistas desempenhou um papel de extrema relevância na permuta e discussão de ideias, e também na divulgação das investigações e descobertas científicas, tendo contribuído para o avanço das ciências naturais. Com o desenvolvimento da imprensa, a correspondência científica pessoal providenciou as bases para o aparecimento de publicações de jornais de cariz científico, como, por exemplo, as Philosophical Transactions da Royal Society of London1. As cartas que são produto desta escrita científica fornecem uma imagem mais completa do desenvolvimento do pensamento científico e dos seus criadores. Charles Darwin – o mais importante naturalista do século XIX pela sua teoria sobre a evolução das espécies – teve, nesta forma de comunicação, a base para a troca de conhecimento e para o debate, criando uma rede internacional de contactos com outros curiosos e investigadores das ciências naturais da época. Do seu riquíssimo espólio epistolar, fazem parte inúmeras missivas com referências à Madeira e à sua riqueza 1 HOLLAND, Julian, 2005, «Book Reviews», in Prometheus, vol. 23, n.º 3, pp. 356-263.

natural2. Exemplo dessa correspondência são as cartas trocadas com, Richard Thomas Lowe e Thomas Vernon Wollaston3, onde estes discutem a flora e fauna do arquipélago. Aquando da sua viagem às ilhas Galápagos em 1831, e partindo do porto de Plymouth na Grã-Bretanha, Darwin tinha como primeira escala a ilha da Madeira. As adversas condições atmosféricas encontradas, no dia 04-I-1832, pela embarcação Beagle nos mares da Madeira, fizeram com que não fosse possível atracar no porto do Funchal4. Este facto não impediu que Darwin, no seu livro A Origem das Espécies, fizesse, por várias vezes, referência ao arquipélago da Madeira e à sua riqueza natural. Este conhecimento da ilha advém, sobretudo, da troca de correspondência com naturalistas que estiveram na Madeira, como os acima mencionados. 2

No sítio da internet “http://www.darwinproject.ac.uk“, podemos encontrar inúmeras cartas, escritas por e para Charles Darwin, com referências ao Arquipélago da Madeira. 3 Richard Thomas Lowe e Thomas Vernon Wollaston – Naturalistas ingleses que estiveram na Madeira, tendo realizado inúmeros trabalhos relativos à história natural do arquipélago. 4 S. A., 2011, HMS Beagle Voyage, [disponível na Internet via WWW. URL: http://www.sil.si.edu/digitalcollections/usexex/learn/Philbrick.htm] Arquivo acedido em 13-I-2012.

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A epistolografia de Charles Darwin é, sem dúvida, um importante recurso para o conhecimento das relações científicas existentes entre este naturalista e algumas das personalidades que conheceram a Madeira durante o século XIX. O seu estudo ajudaria a deslindar, de forma mais concreta e pormenorizada, a forma como Darwin teve acesso à informação sobre o nosso arquipélago, informação que se mostrou relevante na concepção da sua obra A Origem das Espécies, e correspondente teoria. A concluir, podemos dizer que a abordagem à correspondência emanada dos e recebida pelos muitos naturalistas que nos visitaram desde o século XVIII será indispensável para o conhecimento da história da ciência neste espaço insular. Imagem: Fonte: The New York Times, [disponível na Internet via WWW. URL: www.nytimes.com/2007/05/20/weekinreview/20word.html] Arquivo acedido em 13-I-2012.

Em busca da família

Modos de fazer história



ndava à procura de respostas para as perguntas sobre a minha família. Contactei pessoas ( que não conhecia) na Madeira, visitei bibliotecas que desconhecia existirem, descobri livros antigos e fotografias e cartas. A história é muito mais do que documentos oficiais, mais do que certidões de nascimento e de morte, embora esta documentação seja útil – uma vez que aponta datas exatas e permite a identificação de pessoas e de nomes. Mas, contactar pessoas é a melhor maneira de se saber da nossa família. O meu avô morreu quando eu tinha 7 anos de idade. Nunca o conheci senão através do pouco Português que falava e do seu jardim cultivado. À medida que fui crescendo, perguntava quem tinha sido o meu avô e como tinha sido a sua vida. Perguntei ao meu pai e ele respondeu que se chamava José Abreu. Soube que tinha fugido da Madeira aos doze anos com destino à África do Sul. Não sabia nem ler nem escrever. Quando morreu, não deixou nem correspondência, nem livro de apontamentos, nem sequer um diário. Na minha primeira viagem à Madeira, fui ao vale dos Melões , na Porta Nova, em Campanário. Tentei encontrar as pessoas mais velhas. Travei conhecimento com José Bernardo de Abreu, de 90 anos. Quando era rapaz, lembrava-se de ter ido ao casamento dos meus avós, em Outubro de 1905. Lembrava-se dos nomes deles. Lembrava-se dos

Don Silva

nomes dos irmãos e irmãs do meu avô. Vi muitas fotografias e retratos dos meus avós, dele, tirados em 1925 e dela, em 1955. As histórias antigas da família foram-me dizendo acerca dos meus avôs. Fui juntando estes relatos para saber dele e usava-os para colocar questões. Ele tinha vivido em Minas Gerais e na Guiana Holandesa. Depois, viajou até aos campos dourados do Condado de Alameda, na Califórnia. Finalmente, ouviu falar de Milford, em New Hampshire, local onde existiam fábricas de curtume e minas de granito. Na Madeira, já tinha trabalhado como curtidor. Em Milford, existiam 17 minas e o meu avô começou, primeiro, por partir pedra e, depois, tornou-se cantoneiro. Em 1922, adquiriu a cidadania americana. Encontrei o certificado no meio dos papéis do meu pai. A melhor maneira de se saber da nossa família é contactando pessoas que ainda se lembrem deles, encontrando fotografias antigas dos velhos álbuns de família, ouvindo histórias acerca deles. Procurem cartões, postais, cartas, notas e diários. A partir daí, a aventura irá começar, uma história feita de surpresas acerca de uma família que nunca conheceu, uma história feita de cultura e estilo de vida madeirense que espera por ser revelada, uma nova forma de entender e fazer história de família e história de vida.

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Um exemplo desta troca de correspondência, é a carta enviada por T. V. Wollaston, datada de Fevereiro de 1856, em que este refere ter enviado, além da epístola, um volume contendo vários especímenes faunísticos da Madeira. Dos exemplares enviados destacamos a alusão a um recipiente contendo rãs, as quais, segundo Wollaston, haviam sido introduzidas na ilha há menos de 50 anos, provavelmente vindas das Canárias ou da Inglaterra. Fazia também parte desse volume uma enguia pertencente a R. T. Lowe, e que este, gentilmente, enviava a Darwin. Numa outra carta, esta de 19-IX-1854, e escrita por Richard Thomas Lowe, podemos encontrar a descrição de algumas características da fauna malacológica, apresentando o número de espécies existentes e extintas, tanto na ilha da Madeira como na ilha do Porto Santo. Ainda nesta carta, encontramos o agradecimento pelo envio de cópias de duas publicações de 1851 (Living Cirripedia e Fossil Cirripedia) por Charles Darwin.

Sobre memórias que dormem no tempo registo Histórico Graça Alves

O que escondem os arquivos pessoais [normalmente desorganizados] dos poetas? O que estará guardado dentro dos sacos que o José António Gonçalves deixou sem ter tido vida [ou paciência] para arrumar? O que esconderão as agendas que Horácio Bento de Gouveia não deitava fora? O que terão as gavetas dos armários de Margarida Silva ou os papéis de Maria Aurora? O que estará escrito nos diários secretos de artistas, de cientistas, de políticos, da gente comum que compõe esta terra? Trabalhar sobre este tipo de documentos privados torna-se, assim, um ato quase sagrado, de entrada num mundo-próprio, íntimo, que permite decompor os tempos das pessoas: o tempo de casa, o tempo do trabalho, o tempo da criação. Este efeito de verdade – que não significa conhecer a Verdade – permite perceber muito daquilo que não conhecemos, porque travestido pela forma como foi registada e sentida, o que aponta caminhos novos para a descoberta do que somos: uma porta aberta para o mar. E o mar é o mundo donde vêm as cartas que não se consegue deitar fora. E as cartas são conversas entre ausentes e salvam as saudades nas palavras e nos silêncios. E os silêncios são os instantes plasmados pelas fotografias dos álbuns e dos envelopes amarelecidos pelos anos. Ter acesso ao mundo dos arquivos privados e familiares de gente de quem apenas] se conhece a vida mostrada significa poder perceber razões, opções, caminhos seguidos, atitudes. Um modo de saber, portanto; uma forma de salvar os testemunhos que compõem o teatro da vida, das relações , das sociabilidades, da materialização da intimidade, da escrita do eu e do testemunho dos ausentes feito de palavras e caligrafias, de retratos e de postais, dos recados que se deixou sobre a mesa e que alteraram o curso das coisas. O corpo da História precisa desses sussurros da vida real para ter alma. E essa alma precisa de ser respeitada, preservada, partilhada. Preservar esses arquivos é preservar as memórias. E é com elas que se faz a verdade. Porque a História também é feita das histórias daqueles que, de algum modo, mudaram o mundo.

Fotojornalista



fotografia surgiu na primeira metade do séc. XIX e desde então tem sido aperfeiçoada nos seus processos de criação, que passaram de uma caixa escura até o sistema binário, conhecido hoje como sistema digital. Com a evolução tecnológica e o surgimento da fotografia digital e por consequência a diminuição de custos, nunca se viu fotografar tanto onde todos os dias e em diversas situações, especialmente nas festivas, vêem-se pessoas com máquinas fotográficas fazendo registos de vários e determinados momentos. Parece comum e ao mesmo tempo importante registar tais factos, sejam eles os ditos rituais de passagem, os encontros ou reencontros, o trabalho ou o lazer. A fotografia tornou-se uma forma de provar e reviver aquele determinado momento ali registado... Mas será que se dá a devida importância a essas imagens, especialmente quando se pensa nelas como um registo de imagem para o futuro, especialmente para as outras gerações? Pois pensar a fotografia no seu íntimo é pensar na possibilidade de ter uma memória física, palpável e incontestável de um determinado momento vivido, principalmente quando se vive esse momento em família, tendo em conta o acto de fotografar, hoje é possível notar, que houve um crescimento substancial do acesso aos mais diversos tipos de equipamentos fotográficos, especialmente os que possuem máquinas fotográficas digitais, como exemplo os telemóveis de hoje em dia que possuem câmeras fotográficas com imensa qualidade, os tablets, e até os computadores portáteis, mas não se sabe ao certo qual o destino, arquivamento ou se há impressão desses registos digitais, dando importância a eles para o futuro. A fotografia é uma forma de obter registos que servem como fonte documental, procuramos encarar a fotografia como um documento rico em informações e significados, que nos coloca directo com um momento, uma personagem ou uma época. Fotografar é uma maneira de ver o passado, é uma forma de expressão, onde o “congelamento” de uma momento e o seu espaço físico inserido na

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á histórias que se escrevem em letra minúscula e se esquecem em gavetas e em caixas como se não tivessem importância, como se não contribuíssem para contar a História - agora maiusculada – de um tempo, de uma família, de um lugar.

Octávio Passos

MADEIRA GENEALOGY [pistas de um sítio na net] Graça Alves



uem é quem? Donde veio? Que relações estabeleceu? Que ligações manteve? Que história(s) protagonizou? Este é o caminho de Madeira Genealogy, um ponto de encontro, um sítio-casa onde se pode percorrer o tempo, onde se pode encontrar as pontas perdidas das meadas que constituem os nomes, as famílias, os percursos, onde se pode descobrir aquilo que, um dia - por razões que a vida guardou – se escondeu. O Arquipélago da Madeira é, assim, um espaço privilegiado para estas aventuras. Daqui se parte levando a ilha nos documentos. Daqui se estendem apelidos ilhéus ao mundo. Ali se encontram respostas para a nossa curiosidade. Ali se procuram razões para sermos quem somos. Este blogue/site passa pelas ilhas. Pretende ser um ponto de encontro para quem se quer encontrar, reforçar laços

familiares, continuar enraizado neste chão de mar e basalto. Partiu de um interesse pessoal e cresceu, desafiando a teia que a investigação foi tecendo, encontrando gente com voz de passado, descobrindo papéis, parando nos lugares de parar para descobrir novas redes, novas possibilidades, outros encontros e desencontros. Ao sítio, chegam pedidos e saudades do mundo inteiro. Dali se partem para novas pesquisas feitas apenas pelo prazer das descobertas ou por esta necessidade insular de ser continente. A história é feita destas linhas que o destino borda. Fica aberta esta porta: http://madeiragenealogy. com/.

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mudou com a fotografia, e isso não há como negar. Gerou uma situação dúbia, em que muito do que era transmitido apenas oralmente para depois ser registado, deixou de fazer sentido, ao mesmo tempo que tornou obsoleta algumas formas de registo, a fotografia tornou a “leitura” mais clara, visto que a imagem nestes casos funciona sempre como um acréscimo, uma grande referencia informacional. A fotografia não é a realidade histórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos, símbolos representações, dimensões ocultas, perspectivas, A primeira fotografia reconhecida é uma imagem produzida em 1826 pelo francês induções, códigos e cores que cabe a Joseph Nicéphore Niépce, numa placa de estanho coberta com um derivado de petróleo fotossensível chamado Betume da Judéia. Foi produzida com uma câmera, nós descodificar os ícones, e torná-los sendo exigidas cerca de oito horas de exposição à luz solar.Dessa experiência, re- legíveis o mais que pudermos identifisulta, a que é considerada hoje, a primeira fotografia da história - “Point deVue du car, tornando como testemunhos que Gras”. A imagem captada foi da janela do sotão da sua casa de campo, em Saint- subsidiam a nossa versão do passado -Loup-de-Varennes. e do presente. Uma imagem pode armazenar subjectividade de um realismo virtual dá-nos mais tarde tantos elementos da memoria individual como coou mais cedo uma forma directa de comunicar e informar lectiva. É uma referencia fortíssima no acompadeixando sempre o tal registo histórico, onde na sua visu- nhamento do desenvolvimento dos lugares. Como alização a única coisa que difere de pessoa para pessoa e registar uma imagem num suporte é algo muito rea interpretação que cada uma irá fazer aquele momento cente, nota-se o surgimento de uma grande dúvida, registado. no futuro a história será mais valorizada devido ao Todo o estudo que é feito com incidência na Historia, ser registo histórico em fotografias?

Entre S. Vicente (Madeira) e S. Paulo (Brasil)

Uma história de família Gonçalo Mendes



Olhando para a história do mundo desse tempo, estava a chegar ao fim uma era a que Eric Hobsbawm chamou “A era das revoluções”: no campo social e político, a revolução francesa e as suas consequências mais diretas em toda a Europa e Américas, e, no plano económico, a revolução industrial, que, já então, se assumia como clara vencedora nesse duelo de titãs entre a política e a economia.

mais tarde se acrescentaria Jesus, no entanto, continuaria solteira. Temos assim que Sérvulo Gonçalves é fruto de uma eventual relação ilícita. E se podemos imaginar os problemas que, à época, Maria Rosa teve que enfrentar, o que fica registado é que Sérvulo Gonçalves seguiu as pisadas libertárias da mãe. Daí, talvez, podermos inferir que os ventos que mudavam a Europa e o mundo em meados do século XIX varriam também, ainda que ao de leve, a sociedade tradicional, hierarquizada e conservadora do norte da ilha.

Só assim podemos compreender que Sérvulo contraia o seu primeiro casamento, Podemos até pensar no ano de 1885, que Maria Rosa, mãe de antes de compleSérvulo, minha tetravó tar 40 anos, com paterna, nada tem a ver Maria de Sousa com essas coisas, “enAbreu, de 49 anos fiada” como estava na de idade, também pacatez verde e límpida natural de São Vidos vales de São Vicente. cente, filha de AnQue, com toda a certeza, tónio de Abreu de estaria alheia ao turbiVicência Maria de lhão que assolava a EuSousa. E, o mais ropa. Como poderia? As Imigrantes europeus posando para a fotografia no pátio central da Hospe- sur pre endente, notícias corriam tão de- daria dos Imigrantes de São Paulo, cerca de 1890. Fonte: Fundação Patri- que no assento de vagar, os costumes eram mônio da Energia de São Paulo - Memorial do Imigrante casamento, sejam rígidos, a liberdade era legitimados os uma miragem e o papel seus quatro filhos. das mulheres estava reservado às lidas da cama e da casa. Sérvulo, nascido em 1874, Manuel, em 1877, Maria Por razões que, para já, desconhecemos, Maria Rosa, da Conceição, minha bisavó, em 1878, e Eulália, em não sabemos com que idade, estabeleceu-se em São Vicen- 1883. te, vinda da freguesia dos Canhas, concelho da Ponta do Sol. Embora documentos posteriores ao nascimento de Sérvulo digam ser ela natural de São Vicente.

O que levaria um casal a só contrair o matrimónio e, segundo os cânones da época, a «deixar de viver em pecado», só depois de ter quatro filhos?

No refúgio do vale sãovicentino encontrou o amor que gerou o meu trisavô Sérvulo, tendo-o baptizado no dia 14 de Dezembro de 1845. Os primeiros documentos de Sérvulo indicam que ele era filho de pai incógnito, mistério que só é desvendado muito mais tarde, em alguns documentos constantes no seu passaporte que o identificam como sendo filho de Vicente Gonçalves. Maria Rosa, a que

A explicação parece simples à luz do passaporte de 1885 que os leva para o Brasil. Isto é, Sérvulo e Maria casaram a 15 de Janeiro de 1885 e, no mês seguinte, é-lhes concedido o passaporte para viajarem, com os filhos para o Brasil. O passaporte, um conjunto de folhas de papel

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ma aurea de encanto e mistério rodeia um dos meus trisavós paternos, Sérvulo Gonçalves, figura de referência e nome recorrente nas conversas familiares com o meu pai octogenário. Sérvulo Gonçalves, nasceu em São Vicente, Madeira, no sítio das Feiteiras, no ano longínquo de 1845.

13 Cópia do registo original da passagem de Sérvulo Gonçalves e da sua família aquando da segunda viagem para o Brasil, em 1892.

selado, com cópia dos assentos de casamento, e baptizados de toda a família, identifica Sérvulo Gonçalves como um homem medindo 1,65 m, de rosto comprido, olhos castanhos, cabelo direito, boca regular, cor natural e barba preta. Maria, por seu lado, media 1,48 m, rosto comprido, olhos pretos, cabelo direito, boca e cor naturais.

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depois no Brasil. De concreto, sabemos que Maria regressou à Madeira onde contraiu matrimónio no

Dos 4 filhos, apenas dois dos rapazes estão referenciados. Sérvulo media já 1,16m, rosto comprido, olhos pretos, cabelo castanho e boca regular e cor natural, enquanto Manuel, media 1,10 m, rosto redondo, olhos pretos, cabelo louro, boca regular e cor natural.

Francisco Gonçalves Delgado, nascido na freguesia

Maria, então com 5 anos e Eulália, com 2, não têm as suas caraterísticas discriminadas.

internet, onde se destaca o sítio do “Memorial do -

Não sabemos exactamente em que dia foi efectuada a viagem. Mas sabemos que foram pagos 126 mil reis, para toda a família, na 3ª classe de um navio que os levaria, do Funchal até ao Rio de Janeiro, tendo depois seguido para estado de São Paulo, onde se estabeleceram (de acordo com um testemunho oral do seu bisneto Amadeu). Sete anos depois, noutro passaporte, emitido em 1892, Sérvulo Gonçalves volta a embarcar com destino a São Paulo. Desta vez já casado com a sua segunda mulher, Teresa Luísa de Jesus, filha de Vicente Gomes de Medeiros e de Luísa Rosa, também naturais de São Vicente. A família emigrante viajou a bordo do vapor Aquitaine, desembarcando no porto de Santos, de onde seguiu para S. Paulo. Nesta cidade, o

para os seus destinos, regra geral terrenos que deviam cultivar durante pelo menos cinco anos para poderem tomar

Esta pesquisa, utilizou como principais fontes

identidades individuais e coletivas, constituindo-se ções no Brasil”. pedaria do Imigrante, que nos enviou dois docuSérvulo Gonçalves e da sua família naquele espaço,

Ligações com interesse:

Madeira Genealogy.com ( ) g

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) Arquivo Regional da Madeira ( )

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Escritas populares em contextos de mobilidade (Sécs. XIX e XX)

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Henrique Rodrigues

Colaborador do CEHA Investigador do CETRAD-UTAD/APHVIN-GEHVID



s escritas populares, também identificadas por “escritas ordinárias” ou de gente comum, têm como denominador a grande variedade de textos, emergindo de atores sociais oriundos de classes baixa e/ou média-baixa. Aqui incluem-se barbeiros, pedreiros, carpinteiros, donas de casa, costureiras, lavradores, proprietários, negociantes além de outros atividades. Neste quadro têm lugar todos os não profissionais da escrita, pessoas que entraram no mundo das letras por razões pessoais, familiares, afetivas e, muitas vezes, devido aos problemas decorrentes do afastamento do lar ou das pessoas com quem desejavam sustentar relações comunicacionais. Perante este perfil, se é variadíssimo o conjunto de emissores não é menor a riqueza do conteúdo de tais escritos. No leque da tipologia estão cartas da emigração, cartas de amor, cartas e aerogramas da guerra colonial, livros de memórias, livros de viagens, diários da juventude, diários da guerra, cadernos escolares, livros de fiados (mercearias, taberneiros, padeiros, barbeiros e outras atividades que permitiam o pagamento tardio de bens ou serviços) e,

além de muitos outros tipos como livros de contas, copiadores da correspondência emitida, também as pequenas mensagens em bilhete-postal integram as escritas populares. Neste campo alargado de textos estão os estilos, as formas e os conteúdos mais variados que podem usar-se para a história da cultura letrada. Mas, quase sempre se conjuga a escrita com a oralidade, pois muitos destes emissores são portadores de uma cultura letrada pobre, visível na estrutura dos textos, sintaxe, ortografia, escrita irregular sem alinhamento, traço revelador de insegurança, entre outros aspetos que os colocam nas franjas da alfabetização. Neste quadro entram as cartas da emigração e os arquivos familiares de emigrantes que representam um segmento das Escritas Populares e Arquivos Familiares, assim como copiadores de correspondência. Na verdade, a emergência esta escrita teve gran-

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Importa sublinhar que, desde a Idade Média, os espaços de educação e escolarização para o ensino das primeiras letras tinham lugar em escolas catedrais, escolas capitulares, escolas monásticas, escolas conventuais, escolas palacianas, escolas municipais, escolas paroquiais, escolas domésticas e outras dependentes das instituições religiosas. Destaca-se aqui o papel dos jesuítas com intervenção assinalável no sistema de escolarização até meados do século XVIII (expulsos de Portugal a 3 de Setembro de 1759). Tendo sido desmantelado o parque escolar inaciano, o que não significa que tenha deixado de haver escolarização pois os centros religiosos eram por natureza polos educativos e as famílias, as paróquias e outras infraestruturas de apoio à leitura e escrita não abandonaram o processo de ensino. À Igreja, até ao terceiro quartel de setecentos, coube o maior e mais dinâmico papel da preparação para aquisição de competências de ler e escrever. Todavia, foi-se radicando a ideia de que competia ao Estado a responsabilidade pela ilustração dos súbditos. Com a expulsão dos jesuítas estavam criadas as condições para o nascimento de um sis-

tema de ensino estatal, a expensas do erário público e a cargo do Reino, recorrendo a um imposto próprio, o subsídio literário. Mesmo assim, foi necessário esperar-se 13 anos pela publicação da carta de lei de 6 de Novembro de 1772. Nesta data foi criado o ensino estatal com cobertura alargada e entregue à responsabilidade de um corpo docente laico. Porque nos situamos na centúria de oitocentos e no contexto de uma área específica, o distrito de Viana do Castelo, onde temos centrado a nossa investigação sobre a problemática das escritas, damos nota da existência de dois parque educativos a funcionar nesta região, num modelo de complementaridade, quando a procura de centros de alfabetização era elevada, devido à necessidade de preparação de jovens que seguiam rumo ao Brasil. Deste quadro resulta, para 1859/60, um total de 176 escolas das primeiras letras em atividade, entre as quais havia 121 de “ensino livre”, ou seja existiam 2,2 escolas privadas por cada professor pago pelo erário público. À medida que as localidades eram contempladas com escolas oficiais, os mestres particulares desapareciam, a considerar a existência de 258 sítios de acesso à escolarização. No trânsito da centúria (1900), havia apenas 94 docentes custeados pelos pais dos alunos, sendo o rácio de 0,6 escolas privadas por cada pública. A evolução escolar referida ajuda a esclarecer as dinâmicas de alfabetização e de circulação de escritas. Com esta cobertura, a cultura e prática da escrita começava a massificar-se, chegava aos de baixo, impulsionando o acesso da alfabetização às classes populares. Mas, voltando de novo às correspondências, as cartas exibem a marca de grafias reveladoras de escolarizações formais e informais. A aprendizagem da leitura e da escrita oralizada, com letras e ortografias desprovidas de um exercício constante e de conhecimento aprofundado do ABC, por um lado, e aprendizagem de ler, escrever e contar, por outro lado, denotada na caligrafia e outros requisitos, patenteiam outras competências escolares evidenciadas nas formas de grafar letras esmeradas e nos usos dos suportes, a carta. Os de escrita oralizada comunicam com um estilo pouco cuidado, com carateres de tamanho irregular, a ocupação dos espaços desordenada e ausência de margens, tudo revelando ausência de conhecimentos e práticas do escrito. Outros aspetos como os títulos e texto comprimidos em parte do suporte, a falta de sequência das folhas, a dificuldade em manter as letras dentro dos espaços

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de expressão e dinâmica a partir da mobilidade oitocentista (maioritariamente patrícios embarcados para o Brasil), pois a vontade de manter pontes afetivas, usando papel e tinta, desencadeou o reforço das ligações familiares e respondeu à necessidade de construir elos permanentes (ao ritmo dos vapores e das viagens de amigos e conhecidos a Portugal). Aqui encontramos emissores e recetores para quem a correspondência exigia acesso às práticas do uso da pluma e da leitura, pressupondo a existência de quadros de instrução e alfabetização e capacidades para produção e descodificação de textos. Na ausência destas competências, os analfabetos recorriam ao apoio de familiares, colegas de trabalho, amigos ou mesmo profissionais do ato, escrivães que se cobravam pelas capacidades de que eram detentores, autênticos mercenários da comunicação ao serviço de quem estava envolvido nas dinâmicas de afastamento do ambiente familiar, quem embarcou e quem permaneceu no lar, pais, filhos, maridos, esposas e demais parentes, além de amigos, colegas e conterrâneos. Perante este quadro, o crédito social destas competências ganhava um valor acrescido, face ao serviço de quem prestava tal apoio para manutenção de correntes comunicacionais de papel e relativamente aos leitores que descodificavam as letras endereçadas da outra margem do Atlântico. Neste contexto, o processo educativo foi uma prioridade no atinente à escolarização, necessidade sentida e reclamada pelos povos desde meados de oitocentos e mesmo apoiada por mecenas que contribuíram para a construção de casas de ensino, depois regressados à terra de origem e jubilados com o estatuto de “brasileiros”.

Uns e outros exibem marcas sociais diferenciadas. Os de cima, em geral, tinham capacidades para custear um perceptor, um calígrafo; os de baixo, os populares sem tais recursos, por vezes autodidatas, apresentam um quadro de percursos múltiplos, usam um discurso espontâneo, parecendo fruto do improviso e denotando falta de estrutura lógica na comunicação, como se fosse oriunda de um caos de auto aprendizagem, um exercício de escrita forçada pelo compromisso de manutenção de laços com o lar, a mulher e os filhos que estavam afastados longos meses sem conhecimento do que ocorria na terra de origem. Houve situações em que o emigrante embarcou na qualidade de analfabeto e aprendeu a escrever, motivado pela necessidade de alimentar os elos de tinta com a família. Assim se distinguem as marcas próprias de quem acedeu a modelos de escolarização e alfabetização diferenciados. O acesso em massa ao uso do escrito encontra o melhor estímulo na mobilidade transatlântica dos séculos XIX e XX, associado ao processo de instrução de oitocentos. Mas também se observa a participação de iletrados neste universo, especialmente o género feminino que recebia correspondências dos maridos, pais e filhos emigrados, recorrendo à leitura em voz alta e aos préstimos de um intermediário para se comunicar. A Grande Guerra foi a um outro momento de explosão de mensagens em papel, período em que o bilhete-postal encontrou condições para a difusão das escritas breves, circuladas a descoberto.

pela emigração e pela guerra, ao contrário do que se podia supor. Milhares de peças podem ser estudadas entre as que se conservaram em arquivos familiares que conhecemos em Viana do castelo e as que foram integradas nos processos de aquisição de licenças de viagem desde 1850 a 1950. Aqui também podemos salientar a existência de múltiplas formas, sujeitos e momentos de comunicação com que se combatiam silêncios, superavam distâncias, dava-se um sinal de vida, assumiam-se responsabilidades domésticas, perpetuavam-se ligações, testemunhava-se a existência, reforçavam-se laços familiares, curava-se a doença da saudade e até se solicitava serviços e favores de parentes, amigos e conhecidos. A escrita de oitocentos foi impulsionada pela mobilidade intercontinental e decorreu da necessidade e compromisso de manter laços familiares, sustentada pelo progressivo acesso aos códigos de comunicação. As peças de maior relevo aqui apresentadas são as cartas endereçadas por emigrantes, quase sempre os maridos que se correspondiam com os de casa, cartas que serviram para fazer prova em como os cônjuges desejavam reunir o lar na outra margem. Mas, outros exemplos correspondem a casos de indivíduos que pretenderam registar a própria memória, fazendo-o com recurso a copiadores, livros de fiados, arquivando a própria vida, questão de que nos ocuparemos noutro momento. Selecionamos alguns exemplos de correspondências saídas da mão de escolarizados e de outros que escreveram com muito esforço físico e mental, emigrantes semi-analfabetos, que partiram sem saberem escrever, a quem a separação proporcionou a aprendizagem autodidata de escrita. Também deixamos uma mostra das escritas breves nos princípios do século XX, bilhetes-postais da Madeira, enviados por turistas para amigos e familiares.

A fronteira entre letrados e analfabetos não exibe a linha dicotómica do sim e do não. A separação é feita por uma franja alargada ao semi-analfabetismo. A escrita e a leitura não era uma prática exclusiva dos ilustrados, pois muitos não dominando as formas da escrita foram capazes de criar elos de papel e tinta, as amarras entre pessoas separadas por dois continentes, Europa e América. Não há grandes diferenças entre os atores da correspondência motivada Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha t Email: [email protected]

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alinhados, a forma de pontuar e separar palavras resulta da ausência de uma aprendizagem escolarizada são marcas expressas por quem detinha dificuldades em cumprir as normas epistolares e escrevia cartas oralizadas com muito esforço físico e mental, por vezes desenhando as letras para formar palavras. Mas, quem tinha beneficiado de um processo educativo estruturado na arte de ler, escrever e contar, raramente deixa de cumprir as fórmulas de invocação, abertura, o conteúdo bem assinalado e a saudação, respeitando o espaço e os momentos apropriados, tal como o recurso ao Post-scriptum ou N.B. Em síntese, estes mantêm o aparato formal com uma escrita caligráfica, elegância da arte de bem escrever de traço firme, por vezes com discurso muito elaborado e verborreico, respeitando regras e optando por servir-se de várias folhas para a mensagem.

Documento nº 1

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Carta dobrada e lacrada (circulada sem sobrescrito) endereçada por António José da Silva Pereira Viana à esposa, «Ilmª Senhora D. Maria Vitória de Amorim Pereira, pelo paquete para Portugal, cidade de Viana do Castelo». Batida com vários carimbos, apresenta o número 150 a óleo, indicador do preço do transporte (?). O reconhecimento da assinatura foi datado a 7 de Fevereiro de 1861. Fonte: Arquivo do Governo Civil de Viana do Castelo, processo do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de 1861.

Transcrição (1)

Rio de Janeiro, 1860, Agosto, 7. Carta de António José da Silva Pereira Viana à esposa, Maria Vitória de Amorim Pereira, de Viana do Castelo, para que embarque para sua companhia. Fonte: Arquivo do Governo Civil de Viana do Castelo (AGC) Peça inserida no processo do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de 1861. «Minha querida esposa do coração: Rio de Janeiro, 7 de Agosto de 1860 Cá recebi a tua carta da qual muito estimei por saber da tua saúde, pois a minha fica boa, Deus [seja] louvado. Cá vejo o que me mandas dizer a respeito desse grande ladrão do Padre (?). Isso não é nada. Não te aflijas com isso, que eu também não. Deixa vender quem quiser, pois nós estamos todos vivos para o ensinar, ou a quem o comprar, pois falei com o doutor Soares, filho do Melchior de Darque que mataram em Alvarães, e ele me disse que não me importasse 1 Desdobramos as abreviaturas e atualizamos a ortografia baseados no atual acordo ortográfico

com isso, pois logo que foi contradito o anúncio foi o melhor passo que tu deste, pois como eu estou seguro com a compra e os papeis prontos e reconhecidos pelo tabelião e com testemunhas estou muito descansado, pois ele está enganado [por]que o velho está perto de 80 anos háde se ver com que necessidade ele vende, pois que alugasse a casa, que lhe dava que comer e não metesse um ladrão dentro. Pois o que te digo é que te vás aprontando para na outra viagem do Constante te vires embora dessa infame canalha. Pois logo que chegue o patacho eu vou a bordo para falar com o capitão e também te heide mandar o dinheiro para o que te for preciso. Descansa o coração. Adeus, teu até à vista. [Folha 1v] Deste teu esposo do coração António José da Silva Pereira Viana» (2) 2

Segue-se o reconhecimento da assinatura.

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Documento nº 2

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Carta dobrada e lacrada (circulada sem sobrescrito) endereçada por António José da Silva Pereira Viana à esposa. Esta carta, como a anterior, faz parte do mesmo processo de passaporte coletivo em nome de Maria Felizarda Soutinho de 38 anos, tendo ambas seguido para junto dos maridos. Fonte: AGC., processo do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de 1861. Transcrição

Rio de Janeiro, 1860, Setembro, 8. Carta de António José da Silva Pereira Viana à esposa, Maria Vitória de Amorim Pereira, para que vá para sua companhia (1). Fonte: AGC, Processo do passaporte número 354, emitido em 8 de Fevereiro de 1861. Rio, 8 de Setembro de 1860. Minha querida esposa do meu coração: Dou-te lágrimas, dou-te suspiros, dou-te rosas e botões, dou-te todas as floridas (sic) e em eternos corações unidos a um só faz mais que milhões. Fico todo de saudades. Sou teu esposo até à morte. Espera resposta para o outro paquete que te direi tudo.

ainda não falei com o capitão do Constante porque eu não pude ir lá, mas falei com o filho do João Neves que vem a piloto, mas não lhe disse nada, nem quero que o digas. Pergunta-lhe, quando chegar, por mim e vê o que te diz, para tu o saberes e se te disser mal lhe diz pois: eu vou para o Brasil que o meu homem me manda ir. Adeus, até à vista. Sou [folha 2] teu esposo do coração. Pois tu vem. Podes vir, senão para o Verão. Pois escreve pelo paquete ou antes que o barco que se já vier para aqui tu podes vir, mas eu quero primeiro mandar-te o dinheiro para vieres debaixo de ordem. Aqui não se precisa de capas (?), é tudo em cabelo e bandeletes (sic), tudo com luxo Adeus até à vista. António José da Silva Pereira.(2)

E recebi a tua encomenda de que a entreguei. E não escrevi para os senhores Vianas de cujo estimavam muito por tu mandares. Não digas quando vens a ninguém porque [folha 1v] eu hei-de escrever a João do Cais para tu vires recomendada e 1 () Carta que apresenta, na margem superior esquerda uma ilustração com um ramo de rosas coloridas. Como a anterior foi reconhecida a assinatura em 7 de Fevereiro de 1861.

2 () O reconhecimento da assinatura ficou registado na folha 2v.

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Documento nº 3

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Rio de Janeiro 1890, Junho, 14. Carta de João Gonçalves enviada à esposa, Maria Domingues, de Merufe, Monção, para que vá para sua companhia. AGC. Processo do passaporte número 429 datado de 27 de Agosto de 1890.

Maria Domingues: Fazenda do Doutor Anio (1), estação de Corubatai, 14 de Junho. Minha querida esposa, com muito gosto e prazer e alegria lancei a mão na pena para saber da tua perfeita e feliz saúde, pois a minha ao fazer esta fica sem novidade alguma. Maria, aqui aceitei homens que viera (sic) e já estão no meu serviço e me contaram que tua e minha 1 () A carta, escrita com muitas dificuldades, foi iniciada na folha 1v e mantém a folha 2 sem nada escrito, além de um coração desenhado na margem superior entre o fim da segunda linha e o topo da página, onde se pode ler: meu eterno coração dá-me a tua mão.

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mãe te tinha[m] dado muitas pancadas por causa do dinheiro e que tu tinhas vontade de vir para esta terra. Eu preciso muito de ti, que estou pagando a duas mulheres 1000 [réis] cada dia e se tu a possas ganhar precisas vir antes do que dar. O dinheiro pede ao tio António Branco que cá (?) por enquanto não se pode mandar pelo câmbio.[folha 1] (2) Enquanto alguns homens quererem vir para esta terra, queiram vir para esta terra, (sic) eu tenho muito serviço e gamali (?) já de começo 4000 mil (sic) réis para fazer caminhos e peço-te resposta. Se quiseres vir antes de que eu mande dinheiro, o tio António Branco que faça o favor de arranjar que eu para Setembro é que eu tenho ideia de mandar 100.000 mil (sic) réis fortes.

abraço e meu eterno coração e tua mão direita muito apertada. João Gonçalves. [Folha 1v] Aceita muitas recomendações. De todos as mesmas recomendações (3), João Gonçalves.

Com isto não te enfado mais, dá-me muitas lembranças ao tio António Branco e ao tio Vitorino e a toda a nossa família que nos pertence de parte a parte e muito abraço para tuas manas e um apertado abraço para tua mãe. E as minhas para contigo só à vista são sem fim. Aceita um apertado 2

O texto continua na página que seria o início da carta, por isso registada com numeração [folha 1] e tem a indicar o número 2 no canto superior esquerdo.

3 () Segue-se uma abreviatura que supomos querer dizer: adeus, 16 de Junho e assina novamente, seguindo-se um selo fiscal devidamente inutilizado.

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Documento nº 4

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Transcrição

Descrição

José d’Oliveira envia postal ao amigo e conterrâneo David Lemos

Exmo Sr. David Lemos

Postal a preto e branco identificado por “Funchal S.S. Briton ” tem em primeiro plano um paquete na baía do Funchal. Reverso com três carimbos: um em Alquerubim a 15 de Março de 1919 e outro apenas tem batida uma parte por extração do selo.

Aveiro

Fonte: Arquivo particular de Manuela Vaz Velho (MVV). Base de dados, recolha e reprodução fotográfica do autor do texto.

(Via Lisboa) Alquerubim S. Vicente, 18/2/19 Meu bom amigo. Até aqui, chegamos sem novidade. Partiremos, amanhã 19, às 2 h, para a Praia. Sem mais, peço me recomende á Elvira e o meu amigo um saudoso abraço do amigo grato José d’Oliveira

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Documento nº 5

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Descrição

O postal a cores, escrito por José d’Oliveira envia postal ao amigo e conterrâneo Manuel Dias Aydos, faz parte de um fundo privado. Identificado por Madeira, view of the Town, apresenta um pormenor da baía do Funchal. No reverso tem três carimbos, um deles foi batido parcialmente. Observa-se a marca do selo que foi extraído por colecionador incauto; outro carimbo fé de S. Vicente e um outro da Madeira. A mensagem é simples e com ela pretende dar a conhecer o sítio visitado Fonte: MVV. Base de dados, recolha e reprodução fotográfica do autor do texto.

Transcrição

Sr. Manoel Dias Aires (via Lisboa) Aveiro Alquerubim

S. Vicente, 18-2-919 Amigo Manuel. Chegamos hoje a S. Vicente, tendo tido uma boa viagem. Já deves ter recebido um postal que te escrevi da Madeira. Sem mais, um abraço do teu amigo José d’ Oliveira.

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Documento nº 6 Descrição

Fonte: MVV. Base de dados, recolha e reprodução fotográfica do autor do texto. Transcrição

Ex.ª Srª D. Eulália Figueiredo Dias Aydos Aveiro, Alquerubim Minha querida mãe, Escrevo da Madeira ao contrário do que pensava. Vamos bem. Que belo é isto. É um perfeito jardim. Muitos beijos comum abraço da sua filha muito amiga, Eunice.

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Paisagem da Madeira. Pormenor de quintal com latada carregada de uvas. Postal dirigido por Eunice Aydos à mãe, datado no frontispício a 4 de Janeiro de 1914 (data de expedição?) e carimbado em Aveiro (no Continente) a 13 do mesmo mês. Postal circulado com selo do qual há vestígios da extração, com batido parcial.

A Utilização de Arquivos Familiares Norte-Americanos para o Estudo da História de Macau (Século XIX) Rogério Miguel Puga



omo é sabido, as tradições norte-americana de doação e de manutenção de arquivos são bem diferentes das portuguesas. Um pouco por todos os Estados Unidos da América, são doados a instituições públicas como as Sociedades Históricas espólios de três ou quatro gerações de uma mesma família e de outros núcleos familiares próximos, material que fica disponível para consulta e fácil reprodução, o que se explica não apenas através de razões económicas (o mecenato generalizado), mas também pelo facto de se tratar de um país relativamente jovem (1776), e de ter, até certo ponto, uma relação diferente com as suas fontes históricas, também essas mais jovens que, por exemplo, as portuguesas. Basta recordar a fundação de bibliotecas, de centros de investigação e de fundações por cada presidente americano cessante, instituições dedicadas ao estudo dos mandatos desses mesmos ex-chefes de Estado. As referidas doações de acervos familiares servem também o propósito de enriquecer a comunidade através da história (local), bem como o papel e a imagem pública das famílias doadoras, como, por exemplo, as família Butler-Laing (espólio na Historical Society de Nova Iorque), Kinsman [Peabody Essex Museum (PEM), Salem], e Sword (Historical Society da Pensilvânia, Filadélfia). Os espólios familiares encontram-se depositados em instituições nas zonas de residência e de influência dessas famílias, bem como na Library of Congress. As Historical Societies americanas funcionam simultaneamente como bibliotecas, arquivos documentais, centros de investigação/publicação e como museus, dedicando-se ao estudo da história local e regional, pois recebem, desde a sua instituição, espólios e arquivos familiares por razões que se tornam óbvias face ao que já afirmámos. A Massachusetts Historical Society, fundada em 1791, é a primeira dos EUA e surge com o objectivo de preservar a herança histórica nacional, sobretudo as fontes documentais. Essas instituições têm aliás um papel activo na transformação da historiografia norte-americana através quer da manutenção, catalogação de documentos e de artefactos, quer do estudo da história local e nacional e da atribuição de

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CETAPS, FCSH-Universidade Nova de Lisboa bolsas, ente outras iniciativas. A Sociedade Histórica de Nova Iorque é fundada em 1804, e a da Pensilvânia 20 anos depois, ainda com enfoques muito locais ou regionais. Aliás, a primeira história de cariz nacional(ista) norte-americana, em dez volumes, surge apenas em 1834, quando a History of the United States of America from Discovery of the Continent, de George Bancroft, se torna a primeira tentativa de apresentar o passado como um esforço nacional e não apenas do ponto de vista de um estado ou de uma região. Já as origens do PEM remontam a 1799, ano da fundação da East India Marine Society de Salem, que surge para albergar as inúmeras curiosidades que os comerciantes da cidade trazem de viagens a paragens longínquas. Se antes da segunda década do século XIX a Mulher raramente viaja sem ser por motivos de saúde, para acompanhar familiares do sexo masculino em negócios ou em viagens de lazer, esse mesmo século é conhecido como o século em que as mulheres começam a fazê-lo também sozinhas, sobretudo depois do aparecimento do barco a vapor. Os arquivos familiares norte-americanos reflectem essa realidade, como podemos ver através dos diários íntimos e das missivas de viajantes norte-americanas, acompanhando a sua viagem desde os EUA até ao Sul da China, mais propriamente a Macau. Entre essas viajantes pioneiras encontram-se diaristas como Harriet Low (1829-1833), Rebecca Kinsman (18431847), Caroline Hyde Butler Laing (1837), Lucy Cleveland (1929) e Mary Parry Sword (1841-1845), que visitaram Macau nas datas apresentadas e aí residiram, umas temporariamente, outras durante anos, enquanto os maridos e tios subiam até às feitorias estrangeiras de Cantão, espaço interdito às mulheres ocidentais onde os comerciantes passavam o Outono e o Inverno a tratar dos negócios que os haviam trazido à China. Impossibilitadas de entrar na China continental, as viajantes norte-americanas permane-

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Longe dos familiares masculinos e da sua terra natal, as mulheres de mercadores norte-americanos residem em Macau, onde registam, nos seus diários e missivas, inúmeros pormenores do quotidiano macaense de forma detalhada; daí que esses textos de carácter pessoal enviados para os EUA em forma de carta sejam actualmente fontes históricas indispensáveis para a o estudo da história de Macau. Os diários encontram-se espalhados um pouco por todos os EUA, sobretudo em espólios e arquivos pessoais doados a sociedades históricas e a instituições locais por vezes com ligações às famílias. A maioria dessas mulheres é oriunda da costa leste dos EUA, onde a escrita de diários faz, desde cedo, parte da vivência religiosa dos protestantes, que, não se confessando, utilizam a escrita (devocional) como exame de consciência, ou auto-exame, e como forma de se sentirem mais próximos de Deus. Esses textos são também uma forma de registar novas experiências em terras longínquas e exóticas como Macau, preservando assim factos e episódios que a memória humana facilmente esquece durante viagens em que o volume da informação a apreender (e plasmar) é amplo e diversificado. No caso dos referidos diários epistolares, a ideia é também partilhar

com os familiares o dia-a-dia durante a viagem e a estada. A própria escrita auxilia a reflectir sobre o dia que acaba e que a diarista agora revê ao passar à escrita, seleccionando episódios e pensamentos que são dignos de ser registados e os que devem ser esquecidos, por vezes num processo algo terapêutico. Os diários são úteis para recriar o passado, não apenas no que diz respeito aos grandes acontecimentos e personagens históricas, mas também relativamente aos valores, aos costumes, ao background social das autoras e sobretudo aos gostos, gestos e pequenos detalhes relegados para segundo plano ou esquecidos nas fontes consideradas mais ‘oficiais’, pois o diário é, como sabemos, um texto de cariz autobiográfico, embora difira da autobiografia, pois esta funciona como retrospectiva de toda uma vida e o primeiro é redigido ao longo da vida, contendo apenas o que o autor decide registar, de uma forma relativamente espontânea sobre a sua vida e os seus pensamentos, normalmente sem grandes comentários retrospectivos, ou seja, o diarista selecciona, nem que inconscientemente, a informação que grafa ou plasma na sua narrativa íntima. Os referidos diários, quer os totalmente íntimos, quer os que se destinavam a ser lidos pelos familiares das diaristas, são doados pelos descendestes principalmente a sociedades históricas e a museus relacionados com o comércio com a China, como o PEM, onde, muitas vezes, já se encontram documentos ou espólios de outros familiares, ficando assim a história e a genealogia da família associadas a uma instituição específica, que vai enriquecendo a sua colecção gradualmente. Essas fontes são repositórios de informação essencial para o historiador, instrumentos terapêuticos para psicólogos, fonte de dados sobre estruturas sociais e sobre interacção social para sociólogos, e textos literários para críticos literários, assumindo-se, portanto, como um território privilegiado para os estudos interdisciplinares. O texto íntimo veicula valores coevos e trivialidades que são hoje dados importantes para o historiador, por exemplo a forma de educar crianças, os divertimentos sociais como as danças, o quotidiano de mercadores e das suas mulheres e filhas, a alimentação, os passeios, e as relações multiculturais em espaços de fronteira como Macau, entre outros elementos e pormenores culturais ausentes noutros tipos de fontes. Comparar conteúdos de diferentes arquivos, nomeadamente diários e cartas, possibilita-nos fazer leituras diferentes de uma mesma rea-

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cem em Macau, enclave com características coloniais que se torna assim um espaço feminino quase por excelência. Uma parte do espólio da família Kinsman, nomeadamente o diário de Rebecca Kinsman, depositado na Phillips Library do PEM, que nos revela uma realidade interessante no que diz respeito às relações de género e à divisão do trabalho na comunidade de língua inglesa no Sul da China oitocentista. Para além dos momentos recreativos e de descanso solitário quando o enclave luso-chinês fica ‘deserto’ devido à viagem da comunidade masculina para as feitorias, Rebecca vê-se forçada a escrever para Cantão quase diariamente devido a assuntos comerciais. Aliás, a autora afirma que passa a ser a única representante da firma Wetmore & Co. em Macau, tratando de todos os assuntos comerciais, actividade que, a par do trabalho doméstico, a faz esquecer a solidão. As lides diárias de Kinsman vão sendo enumeradas, e as missivas descrevem o quotidiano feminino na cidade administrada pelos portugueses, enquanto Nathaniel se encontra em Cantão, provando que a divisão sexual do trabalho no seio da comunidade estrangeira de Macau não é tão tradicional quanto poderíamos pensar. A representação do género adquire, portanto, ao longo da(s) narrativa(s) uma presença constante, levando-nos a reinterpretar o estatuto passivo do sexo feminino no ambiente ‘colonial’ do enclave periférico oitocentista, oferecendo as missivas de Rebecca Kinsman uma imagem diferente da estereotipada visão da simples dona de casa, ocupada com as lides domésticas e com a educação dos filhos.

lares luso-chineses, as ruas, os edifícios de prestígio e os espaços públicos, os encontros sociais e festas, as práticas religiosas das três comunidades, ou seja, o catolicismo lusófono, o protestantismo anglófono e a religião tradicional chinesa, bem como, de uma forma minuciosa, o quotidiano das senhoras anglófonas, desde manhã à noite. Torna-se também claro que inúmeros viajantes ocidentais utilizam Macau como ‘câmara de descompressão’ antes de entrarem na China e para se familiarizarem com a cultura e a língua chinesas.

Embora Macau seja referida amiúde como uma cidade cosmopolita e multicultural, os diários norte-americanos existentes nos referidos arquivos regionais revelam, por exemplo, que não eram apenas as comunidades lusa e chinesa que não interagiam entre si, mas também as comunidades anglófonas se isolavam em Macau das comunidades portuguesa e chinesa, por motivos religiosos, culturais e devido à barreira linguística; os portugueses de Macau não falam inglês, os anglófonos não dominam a língua portuguesa e contactam com os empregados e parceiros comerciais chineses através do Chinese Pidgin English (CPE) através de expressões e termos como “long time no see”, “no can do” e “savvy”, entre outros que entram na língua inglesa, mas que surgem no eixo Macau-Cantão a partir do século XVIII. Os autores de relatos de viagem oitocentistas e as diaristas utilizam termos em CPE nos seus escritos e a conversar entre si, e é dessa forma que tais termos e expressões entram mais tarde na língua inglesa, pois os mercadores abastados e influentes nos meios sociais das cidades de onde são oriundos continuam a utilizar essas expressões quando regressam a casa e são imitados por social climbers e pela restante população nos EUA e na Grã-Bretanha.

A maioria das diaristas norte-americanas nunca imaginou que os seus textos privados ou familiares seriam utilizados para estudar a história do quotidiano de Macau, mas estes são efectivamente fontes tão ou mais ricas que as portuguesas, chinesas e inglesas no que diz respeito ao quotidiano da urbe luso-chinesa na primeira metade do século XIX, e são muito mais que documentos de cariz local ou regional. Se tais fontes não existissem actualmente, seria impossível ‘recuperarmos’ muitos dos cenários e práticas do dia-a-dia macaense do século XIX. A informação disponível nesses arquivos familiares e registada pelas diaristas flâneurs complementa assim os dados que o investigador português encontra, por exemplo, no Arquivo Histórico Ultramarino, e é mais rica em termos de detalhes e práticas quotidianas do que as fontes diarísticas europeias em termos de quantidade e qualidade de informação no que diz, portanto, respeito à história cultural de Macau. Sendo o enclave um local relativamente ‘cosmopolita’ desde a sua fundação portuguesa por volta de 1557, a sua caleidoscópica história só poderá ser feita a partir de arquivos em vários países, da Suécia aos EUA, e através dessas fontes estrangeiras o investigador português encontra e revela (razões para certos) silêncios e mistérios na documentação portuguesa. A flânerie feminina revela assim uma Macau diferente da das fontes masculinas, quase sempre redigidas por homens de negócios. Tal como Penélope no Mediterrâneo, essas mulheres norte-americanas esperam pelos maridos e tecem os seus textos nas fraldas do Mar da China, na periferia do mundo chinês e do império luso, remetendo esses espólios familiares para a história nacional americana, para a história de Macau, do império português e dos próprios arquivos familiares, formando assim um rede palimpséstica de intertextos e narrativas em torno do comércio ocidental com a China.

Os temas, as observações e até preocupações de mães de família e donas de casa num mesmo espaço ao longo da primeira metade do século XIX repetem-se nos sucessivos diários e missivas, desde os de Harriet Low, de Caroline Butler, aos de Mary Sword. Temos assim descrições pormenorizadas dos lares e dos empregados como o comprador, dos longos passeios até à Igreja da Penha ou às Portas do Cerco, dos portugueses e dos chineses que as autoras quase só observam na rua, e com quem pouco privam, bem como da má-língua que caracteriza a reduzida comunidade anglófona pautada pelo ethos protestante. São ainda descritos o início da colónia britânica de Hong Kong, as especificidades e manobras dos negócios masculinos, os edifícios e as embarcações de Macau, as mulheres chinesas de pés enfaixados, as festividades lusas e sínicas, ambas difíceis de descodificar pelas autoras protestantes, os

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lidade. O olhar feminino que esses arquivos familiares escondem dá-nos ainda a conhecer as vivências quotidianas da Macau oitocentista, nas suas mais variadas dimensões: a religiosa, a artística, a doméstica, a política, a comercial e a recreativa. Essas missivas revelam ainda alguns temas e problemáticas associadas à Escrita de Viagens, a saber: a alteridade e o encontro/confronto com o Outro, a viagem e o festim dos sentidos, o Outro longínquo e o Outro europeu, no caso os portugueses católicos em Macau, quase tão exóticos e incompreensíveis para os norte-americanos como os chineses nas suas procissões.

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Dutch Diary Archive

O Arquivo de Diários na Holanda

Monica Soeting





Anne then started to rewrite her diary with an eye on possible publication, until all the inhabitants of the Achterhuis (including the Frank family, another family

“ontem à noite” escreveu Anne no seu diário, no dia 29 de Março, “ o ministro Bolkestein anunciou na Radio Orange ( uma emissora de rádio ilegal dirigida pelos exilados do Governo Holandês) que, depois da guerra, os diários e a correspondência seriam recolhidos. Claro que todos se lançaram sobre o meu diário. Como seria interessante se eu pudesse publicar um romance sobre o Achterhuis, que, pelo

he most famous diary of The Netherlands is arguably the most famous diary of the world: the diary of Anne Frank, the Dutch girl who went into hiding with her family during the Second World War, to avoid deportation to a concentration camp. Anne had received her diary as a birthday present for her thirteenth birthday on June 12th 1942, and took it with her when she, her parents, and her older sister Margot took refuge in a hidden set of rooms – the ‘Achterhuis’ - in the back of her father’s office on one of the Amsterdam canals. On March 28th 1944, Anne learned that the Dutch government in exile in London planned to collect diaries once the war would be over and store them as historical documents. ‘Yesterday night,’ Anne wrote in her diary on March 29th 1944, ‘minister Bolkestein announced on Radio Orange [an illegal radio sender managed by the exiled Dutch government] that after the war their diaries and letters about the war will be collected. Of course, everybody made a run for my diary immediately. Imagine how interesting it would be if I would publish a novel about the Achterhuis; judging by its title, people would think it a detective novel.’

diário mais conhecido na Holanda é igualmente o diário mais famoso em todo o mundo: o diário de Anne Frank, a adolescente holandesa que, durante a Segunda Guerra Mundial, se escondeu com a família, tentando evitar os campos de concentração. Anne tinha recebido o diário como prenda do seu 13º aniversário, a 12 de Junho de 1942 e levou-o com ela, quando, conjuntamente com os seus pais e a sua irmã mais velha, Margot, se escondeu numas divisões, nos fundos do escritório do pai ,perto de um dos muitos canais de Amesterdão – o Achterhuis. No dia 28 de Março de 1944, Anne soube que o governo holandês exilado em Londres, planeava recolher todos os diários escritos durante o período da guerra e guardá-los como documentos históricos.

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título, decerto julgarão tratar-se de um policial.

of three, and a single man) were betrayed, arrested by the German police, and deported to Auschwitz in August 1944. The only person in this group to survive the concentration camps and to return to Amsterdam was Anne’s father, who decided to slightly edit his daughter’s diary (kept for him by one of his secretaries) and after consultation with various people – amongst whom Cissy van Marxveldt, Anne’s favourite Dutch author - to publish it in June 1947. Despite Anne’s intention of having her story being published as a novel, Het Achterhuis was almost immediately received not only as a document about the war, but also as a symbol of the fate of the Jewish Dutch people. Even though the original diary was given by Otto Frank to the National Institute of War Documentation (RIOD), as a part of their vast collection of war diaries, Anne’s diary still holds a special place in the ranks of these documents. Whether this is right or wrong has been the subject of many debates. The fact is that it has taken scholars and non scholars alike a while to recognize the historical potential of all other diaries in the RIOD collection. When soon after the establishment of the RIOD in 1945 the first diaries, memoirs, and letters arrived, they were read and catalogued by RIOD employees who sometimes deemed one sort of diary more important than another. ‘Written by a labourer,’ one of them famously scribbled in the margin of one of the memoirs, ‘this doesn’t contain anything worth reading.’ It took the Seventies’ interest in the history of ‘common’ people to read all war diaries, and all other diaries for that matter, as a form of micro history. Since then, even though the diary of Anne Frank still holds a special place in Dutch history, the scholarly and non scholarly interest in ‘ego documents’ – a term dubbed by the Dutch historian Jacques Presser in the mid fifties – has taken a huge flight in The Netherlands. In 1983, Dutch historian Rudolf Dekker started to make an inventory of all

Apesar da intenção inicial de Anne em publicar um romance, Het Achterhuis acabou por ser recebido como um documento da guerra e sobretudo como um símbolo do destino do povo judeu holandês. Apesar do documento original ter sido oferecido por Otto Frank ao Instituto Nacional de Documentação de Guerra ( RIOD), integrando a vasta coleção de diários de guerra, o diário de Anne assume preponderância entre os demais. Saber se isto está ou não certo, tem sido a matéria sobre a qual muito me tenho debatido. A verdade é que tem levado algum tempo para que, quer os académicos, quer os não académicos, reconheçam o potencial histórico de todos os diários que pertencem à coleção do RIOD. Assim que os primeiros diários, memórias e cartas chegaram, em 1945, estes foram lidos e catalogados por empregados da instituição que, por vezes, davam mais importância a um do que a outro: lido por um funcionário, que numa das margens escreveu, “ não contém nada de interessante”. Foi preciso chegar aos anos Setenta para que o interesse pela história das pessoas comuns fizesse com que se lesse diários de guerra, e todos os outros tipos de diários, entendendo-os como uma forma de micro história. Desde então, e apesar do diário de Anne Frank deter ainda uma posição charneira no seio da História Holandesa, tanto os académicos como o público em geral têm demonstrado interesse pelos “ego documentos” – um conceito datado de meados dos anos cinquenta, do historiador holandês Jacques Presser – que foi decisivo na Holanda. Em 1983, o historiador holandês, Rudolf Dekker começou a inventariar todos os ego documentos que se encontravam nos arquivos do país, desde a Idade Média até ao início do século XX. A partir daí, o site -

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Anne recomeçou a escrever o seu diário, tendo em vista uma eventual publicação, até que todos os residentes do Achterhuis, ( incluindo a família Frank, outra família composto por três pessoas, e um homem solteiro) foram traídos e presos pela policia Alemã e deportados para Auschwitz, em Agosto de 1944. A única pessoa do grupo que sobreviveu ao campo de concentração e regressou a Amesterdão foi o pai de Anne, que decidiu editar o diário da filha ( guardado por um dos seus funcionários) e, depois de consultar várias pessoas – entre as quais Cissy van Marxveldt, o autor holandês preferido de Anne – publicou-o, em Junho de 1947.

Taken these developments, you would think that the Netherlands, like Germany, France, and Italy, would boast a general Diary Archive, as a place where people can bring and store their unpublished diaries, memoirs, and letters and save them for posterity. Well, they do, but only recently so. After an inspiring visit to the German Diary Archive in Emmendingen in 2010, Mirjam Nieboer and I set out to find the Dutch equivalent. What we found were special collections like the aforementioned diary collection of the RIOD (now named NIOD) and that of the IISG, the International Institute of Social History in Amsterdam – but not an archive that stores any ego document, irrespective of the time it was written, the position of its author or its contents. We therefore did the next best thing: we founded it ourselves. Now founding an archive is one thing, but establishing it is another. Having said that, we have found that things went more smoothly than we had expected, up to a point. After establishing a website and publishing an article in a national newspaper, we were invited to tell about our plans on national radio. This led to several people contacting us and offering us their diaries or those of their relatives. Within several months, we had collected a small, but substantial collection of unpublished diaries, memoires, and letters dating from the beginning of the 20th century until the beginning of the 21st. We looked for, and found, people to form a board of trustees for our newly funded organization, and were offered, and accepted, the help of a young historian, who had done research for the NIOD during her studies. We learned how to clean the documents and how to put them in the right kind of boxes. We developed a mode of describing and cataloguing the documents, and started to contact possible readers to help us with all this.

ments-1814.html , supervisionado pelo próprio e por Arianne Baggernman, dispõe de uma lista com vários diários e respectivo conteúdo, começando com a biografia de Desiderius Erasmus, escrita entre 1523 e 1524. Desde os anos oitenta, tanto Derrek como Baggerman têm conduzido uma investigação exaustiva, mas não são os únicos. A investigação baseada em diários, memórias e cartas levada a cabo por historiadores como Barbara Henkes, Lotte van de Pol, entre outros, fez com que o número de livros lidos sobre o assunto tanto por investigadores como pelo público em geral, tenha aumentado consideravelmente. Na sequência de tudo isto, poderá pensar-se que na Holanda, tal como sucede na Alemanha, na França e em Itália, o Arquivo geral receba diários privados e não publicados, memórias e correspondência, guardando-os para a posteridade. Bem, na verdade, fazem-no, mas só há bem pouco tempo. Depois de uma visita inspiradora ao Arquivo de diários em Emmendigen, na Alemanha, em 2010, Mirjam Nieboer e eu fomos em busca de uma instituição equivalente no nosso país. O que encontrámos foi coleções albergadas em instituições tais como a RIOD e o IISG – mas não um arquivo que guardasse os documentos privados, independentemente da época em que tinham sido escritos, a posição do autor ou o seu conteúdo. Em seguida, fizemos o que tinha de ser feito: fundámos nós uma instituição. Mas fundar um arquivo e estabelecer um arquivo são duas coisas bem diferentes. Posto isto, verificámos que o processo decorre de modo muito mais lento do que desejaríamos. Depois de ter sido criado um site e de ter sido publicado um artigo num jornal nacional, fomos convidadas para um programa de rádio, no sentido de partilharmos os nossos planos. Fomos contactadas por várias pessoas que nos ofereceram os diários dos seus familiares. Em poucos meses, tínhamos em mãos uma pequena mas substancial coleção de diários não publicados, memórias e cartas datadas desde o início do século XX até ao princípio desde século. Procurámos e encontrámos pessoas para fazerem parte desta instituição e pudemos contar com a ajudar de uma jovem historiadora que tinha feito formação no NIOD. Aprendemos a limpar os documentos e a guardá-los em caixas apropriadas. Desenvolvemos um modelo de descrição e catalogação dos ditos documentos e iniciámos o contacto com possíveis leitores para nos ajudarem neste processo. Havia, apenas um senão: não tínha-

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ego documents present in Dutch archives, from the Middle Ages until the beginning of the 20th century. Since then, the website of the Dutch Center for Egodocuments and History, under supervision of Rudolf Dekker and Arianne Baggerman (http://www.egodocument.net/egodocument/ egodocuments-1814.html), lists a huge range of diaries and their contents, starting with the autobiography of Desiderius Erasmus written between 1523 and 1524. Since the eighties, both Dekker and Baggerman have extensively researched Dutch ego documents and published about their findings, thus adding valuable knowledge about the cultural and historical meaning of these documents. They have not been the only Dutch scholars to do so. Research based on diaries, memoirs, and letters, conducted by historians like Barbara Henkes, Lotte van de Pol, and many others, has led to books read intensively not only by their fellow scholars, but by a broad general public as well.

There was just one snag: we did not have a place to store our collection.

We had to wait a while, but when their answer arrived we were overwhelmed by the very positive feedback: we were invited to come and talk with some of the Institute’s representatives that same week. A few days later we had secured ourselves a place in the archives of the Institute. Our next step was to complete the cataloguing and start a campaign to advertise the Diary Archive in order to secure more diaries. Busy schedules however threatened to delay the process. Then again, help was offered at exactly the right time. One of my former history students at the Utrecht University contacted her to ask if he could possibly do an internship at the Diary Archive, focusing on PR and access by a general public. And that is where we find ourselves at this point: this spring, we will move our collection to the archives of the Meertens Institute, while Jan van Asch, our intern, is making preparations for a meeting with future readers, who will describe and catalogue the diaries using a sophisticated computer programme, and setting up a workable pr plan. Once all that is done, we will be able to offer our collection for research projects and organize public meetings, just like the Diary Archive in Germany, France, and Italy do. We also look forward to establishing contact with Diary Archives in other countries, exchanging experience and organizing international meetings. What we could do with is, not surprisingly, enough money to sustain the archive and organize public events. These coming months, we will therefore also concentrate on trying to find funding. Not the best of times admittedly, but with all our positive experiences so far, we are determined to stay optimistic.

Tal como já o havia feito o fundador do Arquivo de Emmendigen, fomos à procura de um presidente de Câmara que estivesse disposto a acolher um arquivo nacional de diários, quiçá aumentando o interesse pela sua cidade no futuro. Não encontrámos nenhum. Acabámos por contactar o Professor Doutor August den Hollander, professsor de Vu na Universidade de Amesterdão. Generosamente, ofereceu-se para acolher a nossa coleção no arquivo da biblioteca da Universidade mas apenas por um período de dois anos. Recomendou que contactássemos o Instituto Meertens, um Centro de Investigação fundado em 1926, dedicado ao estudo da língua e cultura holandesa e que alberga uma vasta e conhecida coleção de documentos na capital holandesa. Endereçámos-lhe uma carta. Depois de algum tempo de espera, as boas notícias chegaram: fomos convidadas para uma reunião nessa mesma semana. Alguns dias depois, o local para colocar os nossos documentos estava finalmente assegurado. O próximo passo era terminar a catalogação e dar início a uma campanha de publicidade. No entanto, a nossa agenda carregada impôs-se e o processo demorava muito tempo. Uma vez mais, a ajuda chegou na hora certa. Um antigo aluno meu contactou-me, no sentido de fazer um estágio. Foi imediatamente contratado. E assim estamos neste momento: na próxima primavera, a nossa coleção irá ser trasladada para o Instituto Meertens, enquanto Jan van Asch, o nosso estagiário, se prepara para reunir com futuros leitores, que ajudarão a catalogar e descrever os documentos, utilizando um sofisticado programa de computador. Assim que este processo esteja concluído, estaremos prontos para disponibilizar a coleção para investigação e para organizar encontros, tal como acontece com os Arquivos de diários na Alemanha, na França e em Itália. É ainda nosso propósito estabelecer contactos e parcerias com outras instituições em outros países, trocando e partilhando experiências e promovendo conferencias internacionais. No momento, não temos é dinheiro para o poder fazer. Nos próximos meses, iremos concentrar-nos em arranjar fundos. Não é, com certeza, a melhor altura, mas com a toda a nossa experiência anterior, estamos mesmo determinadas a nos mantermos optimistas.

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Like the founder of the Emmendingen Archive, we set out to find a mayor who would like to host a national diary archive, thus giving his or her town an extra boost of interest. When we found none, we approached Prof. Dr. August den Hollander, Head Curator at the VU University in Amsterdam. Professor Den Hollander generously offered to house the Dutch Diary Archive at the VU University Library, but could do so only for a period of two years. He recommended we contact the Meertens Institute, a research institute founded in 1926, which studies the diversity of language and culture in the Netherlands, and houses a vast and well known archive in Amsterdam. So we wrote a letter to the Meertens Institute, asking if they were interested to host our small, but growing collection of ego documents.

mos um lugar adequado para os guardar.

“Things gone astray…” Deitar coisas fora … Archival research and investigação em arquivos e histórias de vida private lives Marlene Kadar

hen we think of archives, we usually think about large buildings with regulations and professional staff who sort, protect and distribute collections of unpublished documents and accounts for researchers to read, think about and interpret. Certainly anyone who has read Derrida’s Archive Fever: a Freudian Impression (Chicago: u of Chicago P, 1998) assumes that the archive is global and illuminating on many levels, but in its essence it speaks to us about life writing in its most poignant position, as death writing as my colleague Ian Balfour used to jest ten years ago. (Now death writing is more commonplace as an autobiographical genre.) Derrida uses Freudian concepts to argue that the archive is the seat of writings that yearn toward that moment of death and dying that we all approach and think about, whether with resolve or panic, or some other emotion or faith altogether. Part of the archive writ large is the family’s “private” archive, a collection that is no less subject to these drives and may in fact be more revealing of the subject herself, and of those aspects of humanity that we do not always want to reveal when we are alive, or when our relatives are alive. For example: how afraid we are to approach the end of life; how afraid we are to know who we really are; how afraid we are to die alone or forgotten; how afraid that we do not know from whence we come. A dear friend—let’s call him Teleky—a poet and a scholar, talked to me today about a collection of letters his mother and grandmother had saved for a few generations, letters exchanged between his great grandfather (back in Hungary) and the grandfather’s daughters (now in Cleveland) who had left for “Amerika” in search of another sister, newly married and reportedly dejected away from home. The young women were to bring the lost soul back to the homeland. Ironically, the daughters never returned to the homeland themselves, and it seems almost in exchange for the bad deal dealt their father, they saved the correspondence that was the evidence of their non-return, the evidence of the death of their parents, the death of their homeland such as it was. With a melancholic beauty, Teleky gestured toward a kind of muted address to these letters, an address that would include showing them to the world



uando se pensa em arquivos, regra geral, pensamos em grande edifícios com regulamentações e profissionais que protegem e distribuem coleções de documentos inéditos e relatos para investigadores lerem, refletirem e interpretarem. Os que leram a obra de Derrida Archive Fever: a Freudian Impression (Chicago: u of Chicago P, 1998) pressupõem que o arquivo é global e esclarecedor em muitos casos mas, na sua essência, fala-nos acerca da escrita da vida na sua forma mais acutilante, tal como a escrita da morte, nas palavras da minha colega Ian Balfour, ditas há dez anos em jeito de brincadeira. (atualmente a escrita da morte e dos que estão a morrer surge incluída a escrita autobiográfica). Derrida utiliza os conceitos Freudianos para assegurar que o arquivo é um conjunto de documentos escritos que anseiam o momento da morte que de todos nós se aproxima e sobre o qual todos nós pensamos, seja com determinação ou pânico, com ou sem emoção. Uma parte da documentação de arquivo são os arquivos familiares e privados, uma coleção não menos subjugada a estes factores tanto quanto mais reveladora, em si mesma, dos aspetos da humanidade que nem sempre queremos revelar quando estamos vivos, ou quando os nossos parentes ainda estão vivos. Por exemplo: até que ponto temos medo de nos debruçar sobre o fim da vida; até que ponto temos medo de saber quem somos; até que ponto temos medo de morrer sós, sem ninguém, e esquecidos; até que ponto temos medo de não saber de onde viemos. Um dia, um amigo chegado – vamos chamá-lo Teleky – um poeta e um académico, falou-me de um conjunto de cartas que a mãe e a avó tinham guardado, ao longo de algumas gerações, cartas trocadas entre o bisavô (na Hungria) e os seus filhos (agora em Cleveland) que tinham partido para a “Amerika” à procura de uma irmã, recém casada e que sabiam estar com uma depressão. As raparigas queriam encontrá-la e trazê-la de volta para casa.

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by publishing them. With his own pen, however, Teleky would give the letters peace, a resting place, the word he used being more polite or more professional—“a context,” he said. As the Canadian-Hungarian poet, Richard Teleky, writes in the plaintiff poem, Plainsong, death approaches as each day of life passes: Find a space in your heart for the thought like a gift overdue. Reap and sow, the sun warns us, at end’s end your death’s you. Richard Teleky, The Hermit in Acadia: poems. Holstein, ON: Exile, Editions, 2011; 79.

If we are to follow the poetic justice in this verse, we might more easily anticipate that private archives, uncatalogued archival collections passed from one generation to another, family letters and the like can provide a therapeutic crutch on which to balance family lore and its inevitable difficult memories. We have to admit that the relationships between documents is often mysterious, enigmatic, unexplained or explainable, and yet assumed to be “of the blood” (although this assumption, too, can be overturned with probing archival research that unveils family secrets, clandestine sexual adventures, or religious and political secrets that question a received truth). Why descendents feel the need, often the deep longing to read and interpret the lack that Freud speaks so often about is a question without an answer, and yet a question always worth asking. Terry Eagleton closes one of his pensive invectives against the death drive this way: “it is only because we carry death in our bones that we are able to keep on living” (The Meaning of Life. Oxford: Oxford UP, 2007, 160). Would you allow me to take these bones into a metaphor of context, a place of be-longing, where life’s longings interpenetrate with death’s desire? In other words, can we see Teleky’s letters, for example, as the skeleton for the story that exists out there but can never in its totality be told? There is always something missing, always a lack in remembering family stories and yet more of a desperation to know when blood is at stake, or when the continuity of life is threatened and its roots are desired to be known. It almost sounds mystical or irregular but in fact it is normal, vernacular, that words are used in a present, discovered in another present, interpreted in yet another so that the private lives of ordinary persons are sensible to the ancestors and to the forbearers. Indeed so desperate is the desire that hundreds of websites have opened

Tal como escreve o poeta Húngaro-Canadiano, Richard Teleky, num poema de lamento, intitulado Plainsong, a morte aproxima-se a cada dia da vida: Procura no teu coração um espaço para a ideia De que a vida acabou, aprende a passar a noite Como um presente tardio. Collher e semear, o sol Avisa-nos, que no fim de tudo a tua morte és tu! Richard Tekely, The Hermit in Acadia: poems. Hosltein, ON:Exile, Editions, 2011, 79.

Se seguirmos a poética deste verso com justiça, mais facilmente entendemos que os arquivos privados, as coleções não catalogadas que passam de geração em geração, as cartas familiares permitem uma espécie de terapêutica, através da qual se equilibra a tradição familiar e as inevitáveis dificuldades da memória. Temos de admitir que a relação entre os documentos é, frequentemente, misteriosa, enigmática, inexplicável ou explanada, e, no entanto, assumem ser “ do sangue” (embora esta assunção, também, possa ser anulada através de investigação arquivística que desvenda segredos familiares, aventuras sexuais clandestinas, ou segredos religiosos ou políticos que questionam a verdade recebida). Porque é que os descendentes sentem a necessidade, e muitas vezes um profundo desejo de ler e interpretar a ausência de que Freud fala frequentemente? Esta é uma pergunta que continua sem resposta. Terry Eagleton termina as suas inventivas contemplações contra a propensão para a morte deste modo: “ é apenas porque carregamos a morte no nosso corpo, que conseguimos nos manter vivos” ( THe Meaning of life. Oxford: Oxford UP, 2007, 160) Autorizam-me a pegar neste corpo e torná-lo

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that life’s over, learn to carry the night

Ironicamente, as filhas nunca regressaram à Hungria, e parece que, em troca do contrato que haviam estabelecido com o pai, guardaram a correspondência que, por um lado, ilustra o facto de não terem regressado, e por outro, comprova a morte dos pais, a morte da sua terra natal, por outras palavras. Teleky, graciosamente melancólico, parecia querer endereçar estas cartas a algum destinatário final, um recetor que possibilitasse a sua publicação. Desde modo, e pelo seu próprio punho, Teleky pretendia dar paz a estas cartas, dar-lhes um local de descanso, sendo que utilizou a palavra – contexto – mais profissional e formal.

Contemporary life writing theorists and memoirists desire to address this lack, this missing part of the greater story and in doing so, try to also pay homage to neglected peoples and their communities. Like Teleky, life writing theorists long to find “all lost things and names, whatever they may be: things gone astray, mislaid, squandred, wasted” (Carolyn Steedman, Research Methods for English Studies 16; see alsoDust: The Archive and Cultural History (Encounters)). For better or worse, the part that is “left out” changes, but it never goes away.

numa metáfora, um lugar de pertença, onde os anseios da vida se confundem com os desejos da morte? Por outras palavras, podemos entender as cartas de Teleky, por exemplo, como o esqueleto de uma história que existe algures mas que nunca irá ser totalmente contada? Há sempre qualquer coisa que escapa, sempre uma falha na memória da história das famílias, e no entanto, mais do que um desespero para se saber, quando falamos de laços de sangue, ou quando a continuidade da vida é ameaçada e se deseja saber a razão. Até parece que é mística ou irregular, mas na realidade é normal, vernacular, que as palavras sejam usadas no presente, descobertas num outro presente, interpretadas ainda de outro modo, para que a vida privada de pessoais normais seja importante para os antepassados e para os sucessores. Na verdade, o desejo de se saber é tanto que centenas de websites oferecem ferramentas, no sentido de se preservar arquivos familiares, para a conservação do documento no qual as palavras foram escritas e salvaguardas, quer em arquivos privados quer em arquivos públicos. Mas, por muito que se tente, nunca podemos arquivar tudo. Paul Ricouer lembra-nos no seu livro Memory, History, Forgetting (trans. Kathleen Blamey and David Pellauers, Chicago and London: U of ChicagoP, 2004; ele traduz a afirmação de Pierre Nora’s – “ os arquivos, por muito que não se queira, deixam sempre alguma coisa de fora”. ( 169) Atualmente, os teóricos da escrita da vida e os memorialistas gostam de abordar esta lacuna, esta parte da história que falta, e ao fazê-lo, tentam homenagear as pessoas esquecidas e as comunidades negligenciadas. Tal como Teleky, os teóricos das escritas de vidas procuram encontrar “ todos os nomes esquecidos, todas as coisas esquecidas, sejam elas quais forem: aquilo que é deitado fora, que é extraviado / esquartejado e perdido” ( Carolyn Steedman, Research Methods for English Studies 16; see also Dust: the Archive and Cultural History ( Encounters) . Mas, em todo o caso, a parte que fica “de fora” altera-se, mas nunca desaparece.

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declaring this family archive is here, another there; other websites offer tools for the preservation of family archives, the conservation of the paper on which words are written and thus saved in an archive, either public or private. But try as we might, we can never archive everything. Paul Ricoeur reminds of this in Memory, History, Forgetting (trans. Kathleen Blamey and David Pellauer; Chicago and London: U of Chicago P, 2004); he translates Pierre Nora’s “exclamation”—“Archive as much as you like: something will always be left out” (169).

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Diários e Arquivos Sérgio Barcelos



ão me recordo exatamente quando ou qual foi o primeiro diário que li. Leitor voraz, em um dado momento da vida lia indiscriminadamente tudo o que me chegava às mãos. Tempos depois, encontrei-me pesquisador de diários, ou melhor dizendo, um leitor obsessivo de diários movido por uma curiosidade não menos obsessiva em relação às circunstâncias nas quais os diários foram escritos, em como foram lidos ou não, em como foram, em determinado momento, considerados importantes ou não. E a questão da importância do diário estava lá, sempre, pairando sobre as leituras, nas entrelinhas dos artigos escritos e lidos sobre diários, inserida nas conversas com interlocutores os mais variados. De muitos ouvi: “Diários são tediosos. Nada acontece.” Todas as vezes em que ouvia tal comentário, era obrigado a concordar e a discordar do meu interlocutor. O registro cotidiano de insignificâncias é uma característica recorrente do diário. Entretanto, se o registro diário reflete a vida de um indivíduo, como pode

uma vida ser completamente tediosa e, ainda assim, merecer registro escrito sob a forma de diário? Um crítico mordaz da escrita diarística, Maurice Blanchot, resumiu assim o valor do diário: Há no diário como que uma feliz compensação de uma dupla nulidade. Quem não faz nada na vida, escreve que não faz nada e pronto, é como se houvesse feito alguma coisa. Quem se deixa desviar da escrita pelas futilidades de seu dia, recorre a esses nadas para contá-los, denunciá-los ou se comprazer e, pronto, mais um dia cheio... Finalmente, portanto, não se viveu nada, nem se escreveu, duplo fracasso a partir do qual o diário encontra sua tensão e sua gravidade. (Blanchot apud Lejeune, 2008, 266) A dúvida sobre o valor do diário também é compartilhada pelos próprios diaristas. Não sem razão, Roland Barthes se pergunta: “qual o valor daquilo que se escreve?”. Não é raro diaristas duvidarem do

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razão predominante para a preservação dos escritos em arquivos. No Brasil, um proeminente crítico literário, Sergio Milliet, relega diários e autobiografias a um papel secundário e externo ao literário: Os diários, e também as autobiografias, valem como documentos na medida em que se afastam da literatura; são fontes possíveis de literatura mas não podem ser literatura, sob pena de falharem ao seu próprio fim. Pois assim como um sociólogo interpreta dados coligidos por terceiros, pesquisadores e esteticistas, alheios às suas preocupações e doutrinas, assim também o escritor tem que valer-se de informações objetivas para realizar sua obra durável. Interpretando dados relativos à sua existência própria, o escritor deturpa-lhes o significado humano pela superestimação do herói, do mesmo modo por que o sociólogo que recolhe pessoalmente as informações necessárias à defesa de uma tese preconcebida subestima os elementos contrários a ela. (MILLIET 1981, 161) Em sua opinião, contudo, o diário não está de todo desprovido de serventia. Um “diário de ideias” seria um instrumento ideal, pois nele, escrever-se-iam os embriões de doutrinas a desenvolver-se, preservar-se-iam do esquecimento pequenos insights que se mostrarão mais complexos e pertinentes num contexto posterior, mais madura a consciência daquele que pensou e anotou. Para ele, o diário também é um local privilegiado para a crítica (literária): nesse refúgio, o crítico pode explicitar suas sensações e opiniões sem medo de ferir suscetibilidades. A forma como Milliet entende o valor da escrita diarística é paradoxal, pois, ele reconhece o valor documental que tais escritos apresentam, mas acusa um desequilíbrio entre os valores humanos e literários. Entende, assim, diários como documentos, como textos tributários e jamais textos cuja importância se encontra na própria informalidade que exibem. Entretanto, o

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valor de seus escritos. Quanto mais pessoais, quanto mais voltados para a subjetividade da pessoa, menos interesse teriam para um leitor. No caso de Barthes, fica óbvio que sua posição de escritor e teórico de literatura punha o texto e sua publicação sempre como um movimento irremediável e, dessa forma, a dúvida sobre o valor de seu próprio diário é constante. Um outro crítico, dessa vez não diarista, Allain Girard denuncia a interioridade predominante no diário como aquilo que irá diminuir o valor do diário enquanto um texto que possa comportar uma perspectiva mais abrangente de mundo e de pensamento: A ênfase é posta pelo autor sobre sua própria pessoa. Mesmo se ele evoca eventos exteriores, mesmo se ele se anima a propósito do encontro de uma outra pessoa, ou de uma conversa, ou de toda circunstância que põe em evidência o outro, não é o evento, nem o outro, neles mesmos, quem interessa ao redator, mas somente sua ressonância, ou ainda, sua refração em sua consciência. Nem os outros, nem a sociedade, nem o mundo têm para ele existência própria. O objeto não tem realidade enquanto tal. Não é mais do que uma ocasião que desperta o sujeito para a vida. Dito de outra forma, a interioridade é ali dominante (...). (Girard, 1960, 4). O veredito de Girard não se sustenta quando confrontado com a rotina da leitura e do estudo de diários pessoais. A interioridade, ao contrário do que ele argumenta, não compromete necessariamente uma perspectiva mais abrangente do diário, incluindo em seu bojo fatos e eventos ocorridos fora do âmbito da vida do diarista. Quando um diário é preservado, comumente se justifica essa preservação por conta de algum valor extrínseco ao diário. Umas de minhas grandes preocupações acerca dos diários pessoais (ou em relação ao tipo de valor a eles atribuído), tinha a ver com a compreensão do diário como um documento para uma historiografia qualquer. Ou como registro da produção artística ou literária, política ou militar, de personalidades públicas. Ou, ainda, sobre o valor do diário sempre ser atribuído a uma intenção ou projeto ulteriores. O diário em si, pelo que contém de significante ou não, não parecia ser a

Para ele, é necessário sempre considerar a “história” mesma dos arquivos pessoais, pois eles são também objetos de disputas, cortes e censuras. Refletindo sobre o diário de Bernardina, em especial, Castro conclui que suas anotações foram guardadas por causa do valor documental que têm. Conclui, ainda, que ao diário não foi atribuído valor histórico por instituições de pesquisa, mas esse valor já estava ligado ao diário em si, pela forma como foi preservado pela família, juntamente com outros documentos que posteriormente vieram a integrar o arquivo documental que compõe o Museu Benjamin Constant. Nesse arquivo, estão preservados dois dos cinco cadernos que compunham o diário de Bernardina. Coincidentemente, os cadernos preservados cobrem os períodos imediatamente anterior e posterior ao 15 de Novembro. Os três restantes se perderam no tempo, certamente porque não foram considerados importantes o bastante para serem preservados. Entretanto, a valor dos dois existentes somente foi descoberto mais de um século depois. Esse fato somente corrobora a certeza de que o valor do diário e dos arquivos pessoais, ainda que não óbvio, merece tempo e dedicação para ser descoberto. E por isso, mais do que nunca, preservá-los se torna essencial. Referencias Barthes, R. “Deliberação” In O rumor da língua. SP: Editora Brasiliense, 1988 Castro, C. “O diário de Bernardina”. In GOMES, Angela de Castro (org.). Escritas de si, escritas da historia. RJ: Editora FGV, 2004. Girard, A. Le jornal intime. Paris: Presses Universitaires de France, 1986 Lejeune, P. O pacto autobiográfico – De Rousseau a Internet. BH: Editora UFMG, 2008 Milliet, S. Diário critico de Sergio Milliet. Vols. 1 e 2. SP: Ed. Martins, 1981.

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valor documental é, ou deveria ser, o aspecto mais genuíno das escritas diarísticas. Não no sentido de terem valor “enquanto documento”, mas por documentarem, através dos registros, o percurso de uma vida. Um caso especifico ilustra com perfeição o valor de um diário pessoal no qual registros cotidianos e domésticos se tornam valiosos para a compreensão de um processo mais amplo. O diário de Bernardina Constant de Magalhães Serejo, filha de Benjamin Constant, um dos fundadores da República no Brasil, não se compromete a oferecer uma visão política ou a relatar objetivamente os eventos que culminaram na proclamação da República. O que seu diário revela, através de um ponto de vista doméstico, é o cotidiano da vida familiar, seus hábitos de leitura, sua condição de saúde e de seus parentes mais próximos, entre outros assuntos. Apesar de estar inserido no contexto das “insignificâncias” diárias da vida familiar, o que pode ser recuperado sob outro prisma e atribuir valor de documento histórico ao diário de Bernardina é o registro, ainda que ingênuo, dos movimentos de seu pai, nos meses que antecederam ao aludido de golpe republicano, em 15 de novembro de 1889. É através de suas informações que se pode mapear as ações de Benjamin Constant e avaliar sua real participação no processo histórico que culminou no referido golpe. O entrecruzamento dos registros acríticos de Bernardina com outras fontes históricas foi objeto de estudo de Celso Castro. Em relação aos passos de Benjamin Constant durante os meses que antecederam o golpe republicano, Castro aponta exemplos expressivos, como um incidente envolvendo jovens oficiais republicanos, considerado hoje um estopim da crise final do Império, que os faz acorrerem a Benjamin Constant em busca de orientação. Esse envolvimento é também a evidência do processo de radicalização política de Benjamin. Castro revela que o conhecimento desse fato, através do diário de Bernardina e ainda não explorado pela historiografia convencional do período, permitiu-lhe chegar a uma interpretação diferente da até então registrada. Outro exemplo mencionado no artigo, um tanto pitoresco, refere-se a uma assembleia ocorrida no Clube Militar, na noite do dia 9 de novembro de 1889. Ao retornar a casa após a assembleia, Benjamin Constant a encontra vazia. Sua mulher e filhas estavam na beira do cais admirando as luzes e a movimentação dos convidados em torno do (último) Baile da Ilha Fiscal. Benjamin vai encontrá-las e lá permanece, juntos, admirando a movimentação. Duas semanas mais tarde, conforme anotações do diário de Bernardina, estariam preparando suas roupas de gala para, como convidados de honra, participarem da festa organizada pelo novo governo republicano. Por fim, Castro alerta para a problemática do recorte e das interpretações de dados contidos em diários pessoais.

Odeta Pereira

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Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa - Documentação é uma obra com a coordenação geral de José Eduardo Franco e direcção de Annabela Rita e Fernando Cristovão e é constituída por 3 tomos relativos ao espaço geográfico da Costa Ocidental de África e Ilhas Atlânticas (Tomo I, 1235 pp., 6116 documentos, com coordenação científica de Arnaldo do Espírito Santo e Manuel Saturino Gomes); Oriente (Tomo II, 977 pp., 4977 documentos, com coordenação científica de João Francisco Marques e José Carlos Lopes de Miranda); Brasil (Tomo III, 754 pp., 2748 documentos, com coordenação científica de Luís Machado de Abreu e José Carlos de Miranda). Integrado na coleção Arquivos Secretos e da Esfera do Caos Editores, com o Depósito Legal 328036/11 e ISBN: 978-989-680-032-1, esta obra com uma 1ª edição de Junho de 2011, apresenta-se como um instrumento de trabalho fundamental para todos aqueles que realizam investigação no período da expansão portuguesa. Esta dimensão de mistério que envolve estes arquivos da Santa Sé conforme indica o título da obra, ganhou mais densidade e atenção através do livro de Dan Brown: o seu muito lido e debatido Código Da Vinci. O Arquivo Secreto do Vaticano constitui um registo imenso de memória das relações do cristianismo com a história da humanidade em diferentes épocas. Segundo os autores, o estudo competente, sistemático e rigoroso das coleções documentais ali depositadas é a melhor forma de revelar a utilidade da sua riqueza informativa e contribuir para desmitificar os seus alegados segredos. A expansão constituiu a primeira globalização do conhecimento do mundo, das trocas comerciais, culturais e religiosas e foi acompanhada pela criação daquilo que se pode designar como o primeiro banco de dados global, onde as instituições religiosas da Igreja Católica tiveram um papel fundamental nesse processo de indexação de conhecimento. Se num primeiro momento os arquivos eram itinerantes com a sua subsequente degradação e saques, a Santa Sé, como outros Estados, procurou preservar e guardar os documentos relevantes para a sua história. O mesmo podemos dizer de bispados, paróquias e monarcas de diversos reinos europeus que guardavam e preservavam

NOTA DE LEITURA

O Arquivo Secreto do Vaticano, Expansão Portuguesa - Documentação

para a posteridade a documentação emanada das suas chancelarias. Durante longo tempo, o Arquivo Secreto do Vaticano conservou-se resguardado, como a sua designação evidencia, num local secreto, inacessível para a maioria dos homens. Era o arquivo do Sumo Pontífice, estava sob a sua jurisdição e só com a sua prévia autorização se acedia a este. Tal alterou-se em 1881, quando o Papa Leão XIII (1878-1903) facultou aos estudiosos o acesso a alguns fundos. Esta liberalização não foi total e imediata, mas foi efectuada de uma forma progressiva. O vocábulo «secreto» persistiu no entanto na designação do arquivo desde a sua fundação por se referir ao arquivo privado do Sumo Pontífice, ao qual somente o Papa tinha acesso e jurisdição, estando vedado aos demais, exceptuando-se o responsável pela sua gestão. Apesar de a documentação ser conhecida e ter estado na base de alguns estudos, não existia, até ao momento, um catálogo ou um guia da documentação relevante para a história de Portugal e dos territórios descobertos pelos portugueses. A maioria da documentação sumariada encontra-se em português, mas pelo seu número destaca-se também a italiana e a redigida em latim, a língua oficial da Igreja Católica.

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O Arquivo dispõe de duas salas de leitura frequentadas por numerosos estudiosos e académicos de diversas proveniências. Para os auxiliar, existe uma sala de índices, onde os investigadores têm o primeiro contato com o arquivo, bem como as primeiras informações sobre o acervo documental à sua disposição. Os utilizadores podem, também, usufruir de uma biblioteca especializada onde poderão consultar obras de referência. Dispõe, ainda, de um laboratório de preservação, de restauro e de encadernação, um laboratório de restauro e estudo de selos, um laboratório de fotografia e de reprodução digital, um centro de tratamento de dados e um laboratório de informática. Em anexo ao arquivo está sediada a prestigiada Escola Vaticana de Paleografia e de Diplomática, fundada por Leão XIII em 1884.

ISBN: 978-972-8263-74-4

VÁRIOS AUTORES

Escritas das mobilidades Centro de Estudos de História do Atlântico Alberto Vieira



sta obra enquadra-se no renovado interesse pelo estudo das mobilidades, com especial atenção às migrações, guerras e exílios, numa perspetiva diferente – não contraditória mas completar – desviando-se o foco de uma perspetiva macro para nos centrarmos numa visão mais íntima, mais dialogante, mais próxima da mobilidade humana. REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA

Fazendo um pouco de história, podemos dizer que o interesse pela escrita privada de gente comum tem como uma das suas primeiras referências o estudo dos sociólogos William Thomas e Florian Znaniecki, realizado nos anos 20. Mais tarde, já na década de 60, esta abordagem intensificou-se, não apenas no exclusivo âmbito da História mas igualmente na área das Ciências Sociais, onde estudos multidisciplinares e abordagens metodológicas mais

abrangentes conduziram a uma valorização dos testemunhos escritos pessoais e íntimos. O presente volume é composto por cinco partes: Escritas privadas e familiares; escritas da Emigração; Identidades e Escrita nas Mobilidades; Escritas de Guerra e Exílio e Escritas de Viagem. Vários especialistas dos mais diversos cantos do mundo, desde a Europa à América Latina e até mesmo Austrália, num total de 38, deram o seu contributo. O CEHA , consciente da importância destas fontes e das novas abordagens que elas permitem, decidiu, com esta publicação dar um passo em frente, fomentando, por um lado, a partilha entre especialistas, mas acima de tudo a divulgação, não apenas no seio da comunidade cientifica mas também junto do público em geral, do valor deste tipo de documentação para o aprofundamento do conhecimento Histórico e de todo o conhecimento em geral.

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Atualmente, o acervo documental do Arquivo Secreto do Vaticano ocupa cerca de 85 km lineares de estantes agrupados em mais de 630 fundos documentais. Mas este imenso acervo continua a aumentar anualmente com a incorporação de documentação provinda das diversas Nunciaturas espalhadas pelos quatro cantos do mundo, das Secretarias de Estado e das diversas Congregações. Esta realidade reflete o mundo onde a Igreja se insere e os dias

que correm onde se assiste a uma verdadeira «explosão documental». O documento mais antigo no Arquivo data do século VIII.

NOTA DE LEITURA

O presente catálogo procura identificar e sumariar a documentação selecionada de acordo com a temática definida e organizada à luz de um critério geográfico da proveniência da documentação das dioceses ultramarinas. O investigador deverá compreender a temática, os assuntos abordados no documento sem ter a necessidade de consultar o original. Com o presente catálogo pretende-se que, no futuro, os investigadores não tenham de consultar todos os documentos destes fundos em busca das informações que lhes interessam. Poder-se-á, assim, somente consultar os que efetivamente interessam e nenhum outro.

NOTA DE LEITURA 39

A memoir in letters of the Phelps and Crompton families in the 19th and 20th centuries Penelope Forrest (born Phelps)

Cláudia Faria



quando pelo correio nos chegam às mãos valiosos tesouros?! Quase nem há palavras. Há muito que aguardava a chegada deste envelope, que sabia me ter sido enviado da África do Sul, do outro lado do mundo, portanto. Mas de um mundo que, de algum modo, é também parte do meu mundo. Haverá assim tantos mundos? O mundo não é uno? Mas vamos ao que interessa. A preciosidade que chegou dentro do envelope… que, mal abri , tive de suster a respiração como que para ver, para olhar com olhos de ver (e até a respiração poderia perturbar este momento, que eu queria perpetuar e guardar) . E fiquei por alguns momentos, olhando a capa ( de excelente qualidade, cor térrea e onde além de uma fotografia de uma linda senhora ( que eu identifiquei de imediato) apresentava uma série de cartas, notas, envelopes numa caligrafia oitocentista que me é muito familiar) . E o que eu tinha nas mãos era muito mais que um simples livro … era um sonho … um sonho maior que o Mundo. Era a materialização de uma vontade de recolher, juntar e tratar todo um conjunto de documentos familiares que se tinham acumulado ao longo dos tempos e, que tal como a própria autora explica, lhe vieram “parar às mãos” após o falecimento do pai. E assim se iniciou a caminhada de transcrever cerca de 200 cartas, através das quais a história da família Phelps, ao longo de três gerações, se desvenda.

O livro está dividido em 8 capítulos. O primeiro dedicado à geração que viveu na Ilha da Madeira, iniciando esta saga em 1784 e terminando em 1862 e os seguintes cuja localização geográfica muda para a Africa do Sul termina em 1978. O leitor é igualmente presenteado com algumas fotografias, assim como árvores genealógicas que permitem uma melhor compreensão dos ramos familiares que se foram constituindo e que ajudam igualmente a melhor compreender situações e pessoais referidas nas ditas cartas. Não sendo possível contar esta história de modo linear, a autora alerta exactamente para o facto de se ter deparado com lacunas tanto temporais como outras que, por vezes, tornaram este montar de puzzle , se por um lado, aliciante, por outro lado, difícil e até mesmo extenuante. Porém, ao longo de 236 páginas, Mrs Forrest, partilha connosco aventuras e desventuras de uma saga familiar. William Phelps e Elisabeth Elisabeth, no seguimento do seu casamento em 1783, partiram de Gravesand e rumaram para a Ilha da Madeira onde chegaram no ano seguinte. Durante vários anos, o nome desta família ligada à exportação do vinho da Madeira fez parte da elite estrangeira que ,durante o século XIX, dominava o Funchal.

Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha t Email: [email protected]

NOTA DE LEITURA 40

Um dos seus filhos, Joseph Phelps, tornou-se efetivamente figura destacada não apenas como comerciante mas também como promotor de várias atividades culturais, sociais e até mesmo filantrópicas, das quais destacamos a Escola Lancasteriana. Harriet Phelps, ao contrair matrimónio com John Lake Crompton ( que tinha vindo para a ilha por motivos de doença) em 1854, dá inicio a esta história familiar que se irá sediar-se em Natal, aonde chegaram em 1857. A partir daqui, as ligações com a Madeira tornam-se parte apenas da memória. Os Phelps haviam regressado a Londres. No entanto, e através destas cartas, levaram a ilha na bagagem de mão. As referências à Madeira serão recorrentes ao longo destas missivas. As saudades são assim. Ficam. Ficam. E guardam-se. Guardam-se. E partilham-se. A troca de correspondência entre os Phelps também servia para mitigar esta saudade mas não só. Através dela tomamos nota dos noivados e casamentos, dos nascimentos, das doenças e das mortes. Das viagens. Dos negócios. Dos grandes acontecimentos. Revelam-se segredos. Dão-se conselhos. E fala-se do tempo. Da chuva, do vento e do frio de Londres. Do sol e do calor do Funchal. E do outro tempo. O que corre e que nos leva a vida. Aquele que todos percorremos, faça chuva ou faça sol, para um destino em

parte nenhuma. E escreve-se desabafos profundos, por vezes melancólicos, por vezes introspectivos e intimistas, reveladores de profunda análise pessoais. E também se escrevem futilidades e anedotas, porque o tempo de uma vida também guarda espaço para elas. Numa linguagem simples e objectiva e através de pequenas entradas esclarecedoras, que antecedem cada carta, a autora facilita o trabalho do leitor e assim constrói um fio condutor entre as epistolas e entre as vidas que aqui são desvendadas. E nas entrelinhas, os silêncios, de quando em vez, fazem sentir a sua voz! É só querer ler!

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