Dicotomistas Sacanas, Triângulos Satânicos e Triângulos Fantasmas

June 1, 2017 | Autor: Bruno Ishisaki | Categoria: Estética, Filosofía, Composição Musical, Linguagem
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DICOTOMISTAS

SACANAS,

TRIÂNGULOS SATÂNICOS E TRIÂNGULOS

FANTASMAS Bruno Ishisaki

Bruno Ishisaki é compositor de ruínas, roqueiro de roça e sonólogo de meia tigela.

1. Prelúdio didático

Um ponto. Uma dimensão.

relação a A e a B. Podemos entender A e B pertencentes a um mesmo plano, enquanto C inaugura a profundidade. Todos os pontos estão fundados em uma relação de oposição entre si. Chamarei essa imagem de triângulo satânico.

Figura 1: um ponto.

Dois pontos. Uma linha. Duas dimensões.

Figura 2: dois pontos formando uma linha.

Três pontos. Profundidade. Três dimensões.

Figura 4: um triângulo satânico ornamentado. Recorte a figura e dobre onde indicado; desta vez, dobre a figura para frente. Continue estragando a revista.

A representação geométrica do triângulo satânico não nos traz nada de novo. Não é, por si só, interessante. Mas esse prelúdio didático me servirá para ilustrar a aplicação do triângulo satânico na reconfiguração de dicotomias, perpetuando o Hades no submundo da linguagem, fogo eterno do inferno nos significantes móveis. Figura 3: três pontos. Para criar a sensação de profundidade, recorte as partes indicadas da figura e dobre-a para trás. Não lhe enviaremos uma nova revista.

A palavra satanás significa, em seu sentido original, “opositor” ou “adversário”. Assim, A e B estão situados em uma relação satânica entre si, assim como C em

2. Dicotomia e a situação trans A dicotomia é o pilar fundamental do pensamento dualista. Para o dicotomista, as coisas se dividem em dois. A quantificação da qualidade passa pelo gesto dicotômico, que pensa os continuuns de qualidade a partir de uma perspectiva axial.

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52 Você quer um exemplo. Vejamos uma divisão dicotômica clássica: dia/noite. O movimento de rotação da Terra sobre seu eixo cria diferentes gradações de luz solar, que variam de 0 (ausência total de luz solar direta) a 1 (presença máxima de luminosidade solar). A esses polos determinamos as instâncias de noite e dia. Tais instâncias mantém um nível mínimo de luminosidade ou de escuridão, e o limite que faz do dia, dia, e da noite, noite, é arbitrariamente estabelecido no momento em que a luminosidade ou a escuridão deixa de atingir um nível de intensidade que satisfaça as exigências ontológicas do dicotomista. É nesse momento que o dicotomista pode vivenciar plenamente seu erotismo: no estabelecimento das escalas de gradação entre 0 e 1, o relógio (antes do relógio, o tempo cronológico, ou tempo em função do espaço, ou – anti-Aion) é o consolo ou a vagina de borracha do dicotômico temporal, seu instrumento masturbatório artificial, íntimo e querido. Pouco importa ao dicotomista que dia e noite sejam completamente distintos no nível qualitativo. E não há mesmo qualquer correspondência de qualidade entre o dia e a noite: as cores, cheiros, acontecimentos, sentidos, sensações, recortes e encontros do dia não guardam qualquer relação de paralelismo ou simetria com os da noite para que possamos pensá-los como polos de uma divisão na qualidade. O que há é o estabelecimento de um eixo arbitrário, de uma construção intelectiva cujos componentes são agenciamentos de certos fenômenos calcados em um entendimento

espacial do tempo, mensuráveis numa correspondência arbitrária com números em escala, em detrimento de outros fenômenos, tais como os da cor, do cheiro etc. Tudo bem, isso não é mal. Nos serve bem: todos esses caminhos da dicotomia analítica, labirintos e argumentos que passam pela apologia ao pensamento positivista cientificista, pelos formalismos, fetiches analíticos, tudo isso tem um lugar no mundo. Graças a eles inventamos os aparelhos, brinquedos, coisas eletrônicas e máquinas das quais não abrimos mão. Escrevo esse texto em uma delas, também me delicio no fetiche. A questão é que as dicotomias, em vez de serem pensadas como a divisão de algo em duas partes, podem ser concebidas como a construção de uma polaridade a partir da oposição de dois conceitos sem paridade ou simetria qualitativa. Assim, a dicotomia não seria uma divisão, e sim uma junção de elementos heterogêneos1. O eixo estabelecido em uma dicotomia não é uma linha que se traça naturalmente entre A e B, e sim uma linha que se constrói, que não existia antes de colocarmos A e B em uma relação satânica. Assim, a dicotomia dia/noite passa a habitar o mesmo mundo da dicotomia laranja/florianópolis. O jogo do dicotomista sacana não é o da divisão, e sim o da criação de situações trans: o que há no ponto 0.5 da dicotomia laranja/florianópolis? Atreva-se a responder e você estará em um território cuja jurisdição é da arte. 1 Ver “Da Comunicação dos Acontecimentos” em Lógica do Sentido, de Gilles Deleuze.

3. A dicotomia laranja/florianópolis e os dicotomistas sacanas Não falarei da dicotomia laranja/florianópolis. Falarei das dicotomias que habitam o mesmo mundo que o dela, que são simplesmente todas as dicotomias possíveis. Conteste-me somente se você achar duas coisas que possuem paridade ou simetria na qualidade. É uma armadilha: uma qualidade não é igual ou oposta à outra2. O atributo básico da qualidade é a diferença, que ela encarna em relação a qualquer outra coisa. Mas não quero dizer, com isso, que o dicotomista deva abdicar de seu papel no nosso teatro, ou que ele deixe de existir. Apenas sugiro que os dicotomistas deixem de ser ingênuos em seus jogos de juízo, e passem a ser dicotomistas sacanas. A dicotomia, como modalidade de categorização, é um ato analítico-reducionista – e quem precisa que se estabeleça uma escala entre azul e vermelho quando as cores estão aí, infinitas na qualidade, para serem vistas? O quão ridículo é dar nomes às cores? Violeta bala de uva... violeta vinícola... violeta hematoma... O dicotomista sacana é aquele que se interessa menos pela análise e mais pela produção de mundos trans. Percebemos claramente a necessidade de um esforço intelectual ou imaginativo na produção de eixos quando nos deparamos com dico2 Pois “se existisse o igual, seria tão chato”... (coloque no Google: “As Antenas dos Prédios São Bonitas”).

tomias como as que se seguem: livro/baguete, churros/vidraça, ambar/além-mar, homus/carniça... A mesma arbitrariedade da qual nos servimos para construir relações satânicas entre as dicotomias anteriores está presente nas seguintes: claro/escuro, tudo/ nada, vazio/cheio, vida/morte. Confrontamos qualidades sem relação de simetria (tampouco de oposição entre si – afinal, o que “vida” tem a ver com “morte”?) e forçamos conexões entre elas; sobre essas conexões, construímos nosso playcenter lógico da linguagem. Por que algumas conexões são tidas como aceitáveis e outras não? Não existe nada, nada de errado com a dicotomia laranja/florianópolis.

4. “Equação para você respeitar este texto, leitor amante da técnica” ou “o botão dos estados trans” Contemplai a seguinte equação: DA,B = aDA+[1-a]DB na qual: DA,B = estado trans a = fator de interpolação, valor na escala-eixo entre 0 e 1 DA = valor de A DB = valor de B Figura 5: equação colocada aqui de maneira gratuita, que não facilitará o entendimento de nada em relação ao que vem a seguir, mas que tem a ver com o texto.

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54 Essa equação tem o poder de descrever um modo de acesso aos mundos trans fomentados pelos dicotomistas sacanas. Mas o descreve de maneira bastante leviana, dentro de uma perspectiva numérica, não sendo uma ferramenta efetiva para a compreensão dos assuntos que norteiam este texto. Pense nessa equação como o botão que dispara a bomba. O botão, apesar de dispará-la, pouco tem a dizer a respeito da bomba ou dos que dela são vítimas.

5. Manipulação de dicotomias A estratégia básica de reconfiguração de qualquer dicotomia depende da capacidade que o manipulador tem de evidenciar a ausência de paridade simétrica entre os dois polos constituintes da mesma. Assim, o manipulador (nessa etapa, também um desconstrutor) deve negar todas as relações arbitrárias sobre as quais foi possível traçar uma reta entre A e B, sabendo apontar a arbitrariedade do traçado com precisão, opondo-se simultaneamente a ambos os pontos. Neste caso, o manipulador assume uma posição satânica em relação tanto a A quanto a B, posicionando-se no ponto C de um triângulo satânico. Nesta seção, trabalharei a desconstrução e posterior destruição de uma dicotomia (música popular/música erudita), e a transmutação em triângulos satânicos de outras duas (opressor/oprimido e arte/artesanato), todas elas escolhidas dentre aquelas que tenho encontrado por aí nas minhas andanças pelas labaredas da linguagem-inferno.

5.1 desconstrução #1: música popular/música erudita Acostumamos a pensar dentro dessa dicotomia. Fala-se em arte popular e arte erudita. “Tom Jobim é um compositor popular. Villa-Lobos é um compositor erudito”. Pink Floyd? Música popular. Stravinsky? Música erudita. “Qual é a diferença entre popular e erudito”? Essa é uma pergunta que se faz frequentemente, e as respostas nunca são satisfatórias. Alguns ressaltam as diferenças no conteúdo, outros as questões do contexto sócio-econômico; os músicos tecnocratas utilizam métodos analíticos para valorizar o erudito em detrimento do popular, enquanto os músicos ginastas denunciam a falta de intuição do erudito para valorizar o terreno em que supostamente atuam. Há também aqueles que denunciam a música popular como instrumento de alienação, enquanto outros apontam a música erudita como campo minado da cultura burguesa. O que é popular? É aquilo que é do povo. Bach era povo, assim como Beethoven, Schumann, Pergolesi, Mozart, Tião Carreiro, Nelson Cavaquinho, John Lennon e Stockhausen. E erudição, ou seja, acúmulo de cultura, é algo intrínseco à qualquer produção; há acúmulo de cultura tanto em Tristão e Isolda, de Wagner, quanto em um funk carioca da Valesca Popozuda. Opor popular ao erudito significa construir uma conexão forçada entre situações qualitativamente diferentes, já que “povo” não se opõe a “acúmulo de cultura”. A quem essa oposição interessaria, afinal? Por que não reconhecemos, enfim, a

erudição e o popular em todos os objetos culturais? Porque quando essa “erudição”, esse acúmulo, faz-se sobre um terreno cultural marginalizado, seja ele proveniente das favelas, das periferias, da cultura de massas ou de qualquer outra esfera reconhecida como indesejável, ele gera obras dotadas de uma representatividade que ameaça o domínio cultural das elites; nesse caso, é imperativo que as elites não reconheçam essas manifestações como culturais. A dicotomia popular/erudito existe por um desejo de elitismo, por uma validação de exclusividade estabelecida a partir de um juízo. Essa dicotomia serve aos cagadores de regras, críticos, reacionários e incapazes. Indivíduos fracos fazem coletivamente uso da dominação imposta por essa dicotomia como meio de contrabalancear suas debilidades, de se colocarem como agentes fortes da cultura. O eixo, a linha que liga A a B, nessa dicotomia, inaugura um plano chamado elitismo; nessa linha, o ponto A, correspondente ao popular, é igual a 0 (marginal), e B, correspondente à erudição, é igual a 1 (pertencente à elite); 0,5 corresponde a uma situação que usufrui de certos privilégios, mas que não faz parte da elite integralmente, ou seja, a classe média. Não nos enganemos mais. Não tenho a intenção de construir um triângulo satânico a partir dessa dicotomia, considerando o quão desinteressante seria trabalhar sobre a égide do elitismo; não quero reconfigurar seus termos A e B, não são material apropriado para desenvolvimentos; além disso, me causa asco a perspectiva de seu manuseio. Deixo essa

tarefa para aqueles escultores da moral, que se deleitam em esculpir na merda. Portanto, declaro-a, para os fins a que me proponho, destruída.

5.2 descontrução #2: opressor/ oprimido O opressor é aquele que usufrui uma posição de dominação em relação ao oprimido. A linha que liga A a B nessa dicotomia chama-se poder, sendo o ponto A corresponde ao oprimido, igual a 0, e o ponto B correspondente ao opressor, igual a 1. Pensa-se, comumente, o opressor como sendo forte, enquanto o oprimido é fraco. O valor 0,5 corresponderia a uma situação na qual se é o opressor e o oprimido ao mesmo tempo, em igual medida, tal como um supervisor assalariado de uma multinacional, que tem acima dele gerentes e diretores, e, abaixo, diversos funcionários em posições subalternas. Entretanto, opressor e oprimido não possuem qualquer tipo de paridade qualitativa. A ausência de poder deveria provocar naquele que dela sofre situações com intensidade zero, vinculadas aos campos nos quais o poder atua. E, superficialmente, é isso o que parece acontecer: poder=0 equivale a zero possibilidades de prazer, alimentação, conforto e ação sobre o mundo. Entretanto, o que poder=0 causa ao oprimido nada tem a ver com vazio ou ausência. O indivíduo que se situa na posição zero da linha “poder” experimenta sofrimento, fome, miséria e desgraça – sensações com alto nível de intensidade, poderosas, em nada relacionadas com vazio ou

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56 ausência, pois a fome preenche o homem da mesma forma que outros tipos de sofrimentos decorrentes da opressão. Já os que usufruem de poder=1 experimentariam as condições possíveis para satisfazer seus desejos no mundo. Então, poderíamos pensar que indivíduos nessa situação alcançam formas de plenitude; porém, o que vemos são seres com sentidos embotados e percepção anestesiada. Muitos optam por caminhos totalitários, pois o que lhes resta de experiência na intensidade tem mais a ver com o acúmulo de poder do que com a satisfação de desejos. O opressor não é forte. O oprimido não é fraco. É justamente o contrário: o oprimido é forte, porque experimenta na carne as intensidades da miséria, enquanto o opressor é fraco, embotado nas distrações dos sentidos que normalizam as intensidades; o opressor, sabendo-se fraco, faz uso do poder para estabelecer a dominação sobre o oprimido. O poder é a ferramenta que permite ao fraco sobrepujar-se sobre o forte. Não há qualquer paridade, equivalência ou simetria entre a miséria e o embotamento.

5.3 desconstrução #2: arte3/ artesanato Arte e artesanato produzem objetos estéticos. Enquanto os objetos de arte existem por si só, os objetos de artesanato apresentam alguma faceta utilitária. O ob3 A palavra “arte” está propositalmente escrita em letras minúsculas.

jeto de arte opõe-se, enquanto “ser de sensações”, ao objeto de artesanato, “bonito e útil”. A linha que conecta os pontos dessa polarização chama-se utilidade. Assim, quanto mais útil é um objeto estético, mais próximo ele está de 1: ele tenderá ao artesanato; da mesma forma, quanto mais inútil é um objeto estético, mais próximo ele estará de 0, sendo, então, um objeto que tende para o artístico. O quão útil é um quadro do Grito da Independência em um museu? Se pensarmos o objeto útil como aquele que cumpre uma função, o quadro do museu passa a ser útil, pois o museu possui uma funcionalidade na cultura: a de estabelecer e firmar os monumentos da história. O mesmo vale para muitas formas de arte conceitual, que “visam” fomentar o debate, o desconforto, a reflexão, o dialógo etc. Essas formas de arte sempre “visam”, “têm o objetivo de”, “ensejam”, “buscam”... Os museus, bibliotecas, salas de concerto, teatros e galerias parecem existir para nos fazer crer que a arte precisa servir para algo. Eles sinalizam um objetivo único, um estatuto simples: a preservação. A arte, para garantir seu território, ou finge-se de útil ou cria as próprias demandas para a sua função, fazendo-se necessária; de todo modo, a arte não quer se ver efêmera, buscando a todo custo o status de monumento. Do mesmo modo: o quão útil é uma miniatura de borboleta feita com arame por um andarilho na praia de Ponta Negra, em Natal? Que funcionalidade eu poderia atribuir a esse objeto? Uma vez que ele me foi dado (vendido), eu o coloquei

no bolso e o perdi. Aquele objeto não me agradou, eu o comprei apenas como forma de contribuir com o artesão. A efemeridade da duração daquele objeto sequer deu a ele a chance de se mostrar útil. O objeto do artesão de Natal estava condenado, desde o seu nascimento, a ser descartado em virtude de uma ausência de ressonância com aquele que veio a possuí-lo. Aquele objeto, em sua faceta estética-utilitária, nunca existiu. Não há paridade qualitativa entre arte e artesanato, pois as aspirações dos objetos artísticos diferem em qualidade das aspirações dos objetos artesanais: os objetos artísticos buscam desesperadamente tornarem-se monumentos, enquanto os artesanais lutam para existir; o artesanato agarra-se desesperadamente à sua faceta utilitária para não ser descartado, enquanto o objeto artístico se posiciona em uma relação passivo-agressiva com o mundo: esnoba-o para se fazer valer, mas deseja desesperadamente ser acolhido e territorializado pela cultura.

6. Reconfiguração das dicotomias e elaboração de triângulos satânicos Declarei a dicotomia popular/erudito destruída. Isso significa que não farei uso dessa dicotomia, pois construir um triângulo a partir dela significaria preservar a linha de elitismo que conecta os dois polos. Uma vez que a paridade forçada que os conecta já foi evidenciada e, mais importante, repudiada, os polos permanecem desconstruídos.

O mesmo não pode ser dito das dicotomias opressor/oprimido e arte/artesanato. Manterei as linhas que conectam os polos dessas duas dicotomias e estabelecerei o ponto C, que se oporá a A, B e à linha que conecta esses pontos.

6.1 Triângulo satânico da potência Apontei, anteriormente, que a linha que conecta opressor e oprimido chama-se poder, e que o nível de poder define a condição de um indivíduo como oprimido ou opressor. Dentro desse esquema, fala-se em empoderamento das minorias: as minorias, supostamente, seriam agrupamentos de indivíduos oprimidos (portanto, fracos, dentro da linha de pensamento do senso comum) que, unidos em uma coletividade (que os tornaria fortes), lutam por uma redistribuição de poder que garanta ao grupo uma maior capacidade de ação sobre suas próprias vidas. A história nos apresenta inúmeros exemplos do que resulta, quando lograda, essa redistribuição de poder. O poder estratifica e faz perder o devir; a opressão é um atributo ontológico do poder; isso pode ser ilustrado pelas inúmeras revoluções e reconfigurações conquistadas por grupos minoritários que, ao alcançar o poder, tornaram-se novos opressores para novas minorias. A libertação do oprimido não precisa ser feita a partir da linha do poder. Há uma outra linha que, em vez de conectar o oprimido em seu processo de libertação à condição de opressor, pode liberar seu devir e neutralizar as intensidades de miséria que

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58 experimenta. Essa mesma linha liberta o opressor (o opressor também é um cativo) de seu embotamento. É a linha da potência, e conecta-se a A e a B por meio de um ponto C, formando um triângulo satânico e inaugurando a dimensão da potência.

Figura 6: triângulo satânico da potência.

A dinâmica entre poder e potência é: a potência é tudo aquilo o que o indivíduo pode ser ou fazer, e é subtraída pelo poder. A potência é pluralizante, multiplicadora, abundante, enquanto o poder é territorial, subtrativo, restritivo e castrador. O oprimido deseja espaço para exercer potência, e é o poder o mecanismo que subtrai dele tal possibilidade. Por desejar a potência, o oprimido é um recipiente de força; é, portanto, forte. O opressor é um refém do poder, temendo a sua perda a todo instante. Por isso, ele molda sua existência de acordo com os meios com que pode realizar a manutenção do poder; nesse sentido, ele é tão prisioneiro quanto o oprimido. Quando o poder e alguma forma de riqueza associam-se, o opressor sofre um embotamento das inten-

sidades, e o custo que lhe é exigido para a experiência intensa geralmente é muito alto. O opressor deseja a potência, mas a teme –vivenciá-la implicaria em abrir mão dos mecanismos de poder que moldam sua existência; isso faz do opressor alguém que foge da potência, fugindo também da força, constituindo, portanto, um ser fraco. Desse triângulo, infere-se que as minorias precisariam buscar não um empoderamento de si, mas sim um desempoderamento das maiorias. Esse desempoderamento não libertaria somente o oprimido, também o faria em relação ao opressor, que poderia experimentar condições para exercer sua própria potência e transmutar-se em um ser forte. O desempoderamento é abundante, pois não oprime; a perda de poder não é opressão. Só há ganho no desempoderamento; só há multiplicidade e liberdade na potência.

6.2 Triângulo satânico da diferença

A dicotomia arte/artesanato pode ser oposta à um ponto C que inaugura o plano da diferença nas duas práticas. Nesse caso, arte e artesanato podem se relacionar por meio de um parâmetro distinto do da utilidade. Entendo a arte como a criação que foca na diferença. O objeto de arte pretende-se único em seu recorte conceitual; assim, ele relaciona-se com a noção de identidade,e servindo-se dela como um substrato para o diferente que está por vir; nesse caso, o objeto de arte apresenta, em sua gênese, a desterritorialização como força motriz principal.

Enquanto isso, o objeto artesanal apresenta a diferença como componente residual; ou seja, o artesanato tem como intuito a reprodução de um modelo. A obtenção de um objeto rigorosamente igual a outro é inalcançável; tudo aquilo que não repete o modelo (ou seja, as diferenças, sejam acidentais, de erro ou vindas da inviabilidade técnica) incorpora a diferença no objeto artesanal. Apesar da presença da diferença no artesanato, ele é sumariamente um componente territorial. As linhas da diferença que conectam arte e artesanato poderiam também, em relação inversa, ser as da identidade. A escolha pela diferença se dá pelo caráter positivo e abundante dessa, em oposição à identidade e seu domínio dos bons objetos, cuja função castradora provoca, naquele que dela faz uso, as condições depressivas típicas dos idealistas.

truídos. Na reconfiguração, o triângulo satânico anterior passa a existir como molde para uma nova organização de recortes conceituais. Um novo triângulo surge, enquanto o triângulo inicial passa a ocupar a posição de um triângulo fantasma.

Figura 8: configuração espacial aproximada de um triângulo fantasma.

7.1 Polos do novo triângulo satânico da potência: dominação/ devir



Figura 7: triângulo satânico da diferença

7. Triângulo fantasma Neste tópico irei reconfigurar os polos dicotômicos anteriormente descons-

Pensando a potência como fator regulador de uma nova reconfiguração dos polos do poder, temos de um lado a dominação (correspondente à potência=0) e o devir (correspondente à potência=1). A dominação corresponde a uma ausência total de potência, seja da parte de quem

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60 oprime ou de quem é oprimido. O poder só permite um tipo de movimento: o do acúmulo dentro de um sistema fechado, que aprisiona tanto quem o detém quanto quem dele se abstém. Na dominação, tanto opressor quanto oprimido são meras peças de engrenagem, seres cujos fluxos de desejo estão em cheque constante por parte das forças de castração dos bons objetos sistêmicos. Enquanto isso, o devir é a liberdade proveniente da ausência total de aparatos de castração. O devir representa uma ruptura tanto com a identidade quanto com uma noção de ser imutável; ou seja, o devir é a destruição do uno de Parmênides. No devir, o indivíduo experimenta o infinito do Aion. Sendo a condição de liberdade total, o devir é incongruente com o poder.

Figura 9: redução tridimensional do triângulo fantasma e novo triângulo satânico da potência com polos reconfigurados.

7.2 Polos do novo triângulo satânico da diferença: Arte/Cultura4 Do mesmo modo, arte e artesanato, conectados no triângulo satânico da utilidade, passam, no plano da diferença, a conter componentes que os transmutam em Arte e Cultura. A arte dos museus pouco tem a ver com a Arte da diferença. A Arte, sendo focada na diferença, passa a ser um agente desterritorializante, carregando atributos desestabilizadores. Nesse sentido, há sempre, na Arte, algum traço de destruição. A Arte não abole radicalmente os modelos e formas preexistentes; ela faz uso desses modelos como envoltórios e interfaces para esconder suas máquinas de guerra, tal como o equipamento eletrônico que esconde seus circuitos em seu layout externo e funcional. Mas, ao contrário dos equipamentos eletrônicos utilitários, a Arte em sua instância desterritorial não é funcional. Os circuitos da Arte, escondidos sob seus envoltórios das formas, não contêm nada além de explosivos, bombas, gases venenosos, viroses e radiação. A Cultura, por outro lado, é tudo aquilo que o homem acumula e territorializa. O museu, a sala de concerto, a biblioteca, o conservatório e a sala de teatro têm tudo a ver com a Cultura e muito pouco a ver com Arte. A Cultura institui produções que se baseiam no modelo, sendo a diferença um resíduo advindo da impossibilidade de articular o igual na matéria. Quando essa dife4 Arte e Cultura estão propositalmente escritas com maiúsculas.

rença passa de resíduo indesejável para um fim em si, em uma produção, inicia-se uma transmutação artesão-artista; do mesmo modo, quando em um processo criativo, na Arte, a busca de uma identidade passa a ser um fim em si, temos uma transmutação artista-artesão em andamento.

um fundamento para as cópias, e sendo a diferença, na Arte, uma força motriz, e, na Cultura, um resíduo, inferimos que não existe Arte e Cultura puras. O que existe é o devir-artista, o devir-artesão e os estados transicionais. Pois o que é Arte em um instante, no instante seguinte é territorializado e transformado em Cultura. Nesse sentido, a Arte pura, se existisse, só poderia sê-la efêmera e sem substrato. E a Cultura, na hipótese de se livrar do componente residual da diferença, só é pura no Ideal. Desse último apontamento, um comentário: note a íntima relação existente entre idealismo, estados totalitários e cultura. Três pontos. Mais um triângulo possível.

8. Conclusão

Figura 10: triângulo fantasma e novo triângulo satânico da diferença com polos reconfigurados.

Sendo a identidade, na Arte, um substrato ou envoltório, e, na Cultura,

Mas está tarde. É chegada a hora de encerrar este texto. Ao contrário do que é habitual em textos que seguem o molde introdução, desenvolvimento e conclusão, (no qual escreve-se qualquer coisa na conclusão, ou resume-se o texto todo para redundar), encerro este texto anunciando o seu fim, do mesmo modo que fiz anteriormente, quando declarei a dicotomia popular/erudito destruída. Assim: Este texto está concluído.

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