Diferença e repetição em “Capricorn” de George Crumb

July 6, 2017 | Autor: Yuri Behr Kimizuka | Categoria: Systematic Musicology, Musical Analysis
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XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – São Paulo – 2014

Diferença e repetição em “Capricorn” de George Crumb MODALIDADE: COMUNICAÇÃO Yuri Behr Kimizuka– UDESC PPGMus Resumo: Diferença e repetição são dois princípios que regem o processo de engendramento dos elementos musicais. Todavia esse processo ocorre de maneira distinta segundo a perspectiva temporal em que esteja circunscrito. A análise aqui apresentada propõe-se a problematizar a influência do tempo na estruturação da peça nº4 do Makrokosmos v.I de George Crumb, Capricorn. Palavras-chave: Sínteses do tempo. George Crumb. Repetição. Deleuze. Temporal structures in Crumb´s “Capricorn” Abstract: Difference and repetition are two principles that rules the process of engendering the musical elements. However, this process occurs differently depending on the time perspective in which it is circumscribed. The analysis presented here intends to discuss the influence of the time on the structuring the piece Nr. 4 of George Crumb´s Makrokosmos v.1: Capricorn. Keywords: Time synthesis. George Crumb. Repetition. Deleuze.

1. Introdução Makrokosmos, do compositor norte americano George Crumb (1929) é uma obra que compreende seis volumes e foi escrita entre 1972 e 1979, “na tradição dos ciclos de obras para piano como os Prélude de Debussy e o Microkosmos de Bartok”, tal como assevera o próprio compositor. (CRUMB, 1974: p.vii). Trata-se também de uma obra muito conhecida pelo uso de técnicas estendidas, mas muito além disso, Crumb elabora estruturas musicais que se articulam e formam complexos sonoros. Ao abordar analiticamente a peça Capricorn, do Makrokosmos vol. I, coloca-se em questão que o tipo de encadeamento existe entre as estruturas, e, qual a influência da temporalidade nesse processo. Capricorn foi escolhida não sem motivo, mas porque reúne a maior parte dos processos composicionais encontrados no Makrokosmos vol. I, e dessa forma é representativa no estudo dos elementos estruturais. A citação, muito característica da obra de Crumb, não está presente nessa peça. Isso foi também levado em consideração, uma vez que por si só a citação constitui um assunto a parte. Em seu livro Geste – texte – musique, Ivanka Stoianova consagra um capítulo acerca da diferença e repetição em música. Nesse capítulo a autora se serve dos conceitos de Gilles Deleuze para falar sobre o processo dinâmico do enunciado musical. Este processo se manifesta como um “equilíbrio instável” – e por isso dinâmico – dos elementos, e que se

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articula por diferença e repetição. Através dessas ideia é que a análise aqui proposta irá se desenvolver.

2. Diferença e repetição Com as palavras: diferença e repetição, Gilles Deleuze deu título à sua tese de doutorado, no ano de 1968. Este trabalho tornou-se referência no estudo da filosofia, e devido ao seu alcance e profundidade suscitou a compreensão de problemas em diversas áreas do saber. Para Deleuze a tarefa da filosofia é criar conceitos, mas não conceitos fechados à guisa de definições, e sim um conceito como uma forma de abordar um determinado problema. É dessa maneira que a repetição deve ser abordada. “A repetição não é a generalidade” (DELEUZE, 1988: p.11), lê-se na introdução de “Diferença e repetição”. Por generalidade entenda-se agenciar coisas semelhantes sob um mesmo conceito. Quando Deleuze fala de repetição ele se refere à produção da singularidade e do diferente. Na repetição está, por assim dizer, a gênese da diferença – princípio do movimento e portanto da metaestabilidade. Porém para compreender isso é necessário colocar o tempo em perspectiva, o que o filósofo francês denominou de “três sínteses do tempo”. A primeira síntese do tempo é a noção que se tem no senso comum. Passado, presente e futuro; o tempo cronológico. Na segunda síntese o tempo não é linear, não há mais uma ordem contínua, esta é rompida em favor da multiplicidade. Aqui se apresenta uma exclusão do tempo, que introduz a dimensão da subjetividade. Nesta síntese passado, presente e futuro coexistem; isto pode ser comparado ao hors-temp de Xenakis. “A exclusão do fator tempo conduz a duas leis de composição hors-temp: a comutação e a associação.” (XENAKIS, 1981: p.187) Mas é preciso considerar que esta analogia só se aplica enquanto abstração, visto que o tempo é um fluxo contínuo. Por fim Deleuze instaura a sua terceira síntese do tempo: o eterno retorno. É nessa síntese que a repetição gera a diferença. No eterno retorno a produção de uma memória remete ao novo, à diferença. Essa é uma noção de tempo mais difícil de conceber, uma vez que nela a repetição é o futuro. Para entender isso é preciso pensar que toda construção é uma repetição, mas que acontece diacronicamente. Assim, após considerar a repetição no tempo e verificar que essa é também potencialmente a diferença, cabe considerar que também a diferença não se dá de maneira

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única. Ao inverter o conceito de repetição é possível aplicar as mesmas regras desse conceito para a diferença, e igualmente nas três sínteses do tempo. A diferença em relação ao outro – princípio negativo – é a primeira abordagem, sendo através dessa que se sabe o que vem a ser o igual. Esta é portanto a diferença que define a identidade. Nesse caso a diferença está relacionada ao conceito de tempo cronológico, no qual tudo se sucede e nada é igual. É o tempo que encadeia os elementos, e é irreversível; nele {ATB} ≠ {BTA}1. Quando o tempo é suprimido, hors-temps, existe a possibilidade de comutação entre os elementos. São casos como o da inversão e retrogradação, por exemplo. Nesses casos a diferença são os próprios materiais, uma vez que {A}≠{B}. Mas esta síntese introduz a comutação através da qual {AB} = {BA}, ou seja a diferença não é mais a ordem, mas do que o material em si. Na terceira leitura da diferença o tempo novamente se faz presente, mas agora é um tempo que reconstrói, pois {ATA} ≠ {ATA} e {BTB} ≠ {BTB}. Este é o tempo complexo, o que altera os elementos. 2. A escuta das estruturas em Capricorn A escuta é tanto a ferramenta que inventa a obra quanto o que direciona a apreensão de um dado fenômeno. Na realidade a escuta é a manifestação individualizada do som, não somente do som como realidade material mas também imaginação: o enunciado musical. Ivanka Stoianova define por énoncé, ou enunciado musical “toda produtividade sonora manifesta ou imaginada.” (STOIANOVA, 1978: p.10). E é através da escuta das estruturas que se pretende estabelecer a análise, mas que se reporta não somente ao que Stoianova chama de nível do énoncé-phénomène – a partir da partitura e sua escuta – mas também no niveau-matrice, que trata do engendramento e estrutura do enunciado musical. Antes de colocar o enunciado musical em relação às estruturas, ou sínteses do tempo, é preciso ter em mente que nenhum dos níveis: énoncé-phénomène, ou niveaumatrice, pertence a qualquer síntese do tempo especificamente, ou por bem dizer, pertence a todas as sínteses. Na realidade o tempo é o agente modificador, é ele que coloca os elementos em perspectiva, em metaestabilidade. Se alguma coisa se movimenta através do processo de diferença e repetição, é no tempo que este processo acontece. O entendimento desse processo

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de “equilíbrio instável” do qual fala Stoianova só é possível mediante a compreensão do tempo como meio e articulador. 3. A macroestrutura em Capricorn Basta olhar para a partitura de Capricorn para perceber que ela nos diz algo mais que as informações sobre o som em si. O nome da peça: 4. Crucifixus [SYMBOL] Capricorn já implica na ideia de um duplo signo: o zodiacal e o visual. Não é necessário ser cristão ou astrólogo para estar ciente deste simbolismo, estes são de conhecimento geral. De modo semelhante aqueles que nunca estudaram semiótica sabem que estes são símbolos, no sentido de que dependem de um intérprete que saiba o seu significado. E para não deixar dúvida Crumb escreve no título.

Figura 1: Crucifixus [SYMBOL] Capricorn (parte A – na horizontal ao lado esquerdo; parte B – na horizontal ao lado direito; parte C – na vertical de baixo para cima.)

É preciso considerar que o compositor, mesmo que de maneira subliminar, traz à tona esta relação de conteúdo simbólico, mas o que se apresenta neste trabalho é uma análise da relação das estruturas com as sínteses do tempo, e que se expressa também de maneira visual através de um símbolo. Quando da execução musical dessa peça o pianista se vê “convidado” a uma determinada experiência temporal, isto é, a ler a pauta escrita horizontalmente e depois virar a partitura para ler a pauta que está escrita verticalmente. Isso também é um marcador do tempo

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cronológico, pois o intérprete é assim forçado a reconhecer um antes e um depois. Visualmente isso é claro. Mas até que ponto isso está presente no enunciado musical? George Crumb esquematizou essa forma tanto visualmente quanto auditivamente. No exato ponto em que há a mudança da estrutura horizontal para a estrutura vertical, o compositor solicita ao pianista que grite2 a palavra Christe!, ao mesmo tempo em que a disposição das notas escritas obriga o músico a abrir os braços, que lembra os braços abertos na cruz.

Figura 2: Dois tricordes espacialmente separados de modo que o pianista estenda os braços ao tocar, e a palavra “Christe!” que deve se dita.

Dessa forma, ao ouvir a palavra Christe! o ouvinte percebe que algo mudou. No caso de uma performance, mesmo que o público não possua o recurso visual da partitura, ao ver os braços do pianista lateralmente estendidos não resta dúvida. Portanto é possível perceber que há duas grandes partes divididas por um elemento que dispara a mudança. Após este elemento o que se segue é um enunciado completamente contrastante. 4. A escuta das estruturas em Capricorn Ao olhar a parte vertical da partitura pode-se perceber que ela está dividida também em duas partes, às quais Crumb denominou respectivamente de A e B.

Figura 3: Partes A e B (horizontal)

Essas partes contém um tipo de estrutura simétrica que se articula nas duas primeiras sínteses do tempo. Em primeiro lugar cronologicamente, pois são percebidas num tempo contínuo, no qual os eventos seguem aos outros, um tempo que segue em frente e não volta. Mas também é possível notar que B é a inversão de A, no sentido de que em B a

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sequência de tríades que estava na mão direita passa a figurar na mão esquerda. Nesse caso trata-se de uma repetição conceitual, de um tempo contínuo no qual não há presente, passado ou futuro. Os eventos não se sucedem, A pertence a um passado em relação a B, mas a um passado que se dá cronologicamente, mas já segunda síntese do tempo A é simultâneo a B, nesse caso é A que se repete em B. Isso porque A e B estão sendo vistos como resultados da aplicação de um princípio composicional. O material de que essas partes, A e B, são compostas já foi anteriormente usado por Crumb na peça de nº1 do Makrokosmos I. Trata-se de um material triádico não funcional, que consiste de sequência cromática de tríades descendentes na mão esquerda e ascendente na mão direita, ambas paralelas em intervalo de trítono. Fá menor

Mi menor

Ré# menor

Ré menor

Dó# Menor

Dó menor

Si menor

Si menor

Sib menor

Lá menor

Sol# menor

Sol menor

Fá# menor

Fá menor

Figura 3: Tabela sequência de tríades

Essa mesma estrutura da parte A será repetida na parte B da partitura, mas não sem antes passar por outra outro material, que de maneira contrastante interrompe a lógica anterior.

Figura 4: Material contrastante entre A e B coleções

Essa estrutura é formada por um conjunto que contém um intervalo de segunda maior e terça maior, ou (0,2,6). Concomitantemente a esse material há também um trinado em harmônicos, que para ser realizado necessita que o pianista pressione as cordas do piano com os dedos de uma mão enquanto aciona com a outra as teclas; técnica estendida.

Toda essa

estrutura que contém a técnica estendida e o conjunto (0,2,6) constitui uma diferença em relação ao material anterior, uma diferença negativa. Dessa forma é possível constatar que a parte horizontal da partitura é formada por dois materiais distintos e suas repetições. A parte vertical, que Crumb denomina como C, apresenta um material completamente novo. Este se inicia com o já mencionado grito “Christe”, que se soma a uma sobreposição de dois conjuntos formados por duas segundas menores, (0,1,2), cuja resultante é (0,1,2,3,4,5), ou seja, a metade de uma escala cromática.

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Isso é muito significativo pois ao mesmo tempo que divide em dois a escala cromática também divide a peça em horizontal e vertical. Há, nesse caso, duas instâncias do tempo, o que possibilita esse mecanismo de diferença e repetição. A primeira é o tempo cronológico no qual nada se repete, visto que o que passou não volta. E o segunda, o tempo estático que possibilita observar os elementos num instante que não passa, e por esse motivo a estrutura se repete na memória do observador. É um tempo que admite os eventos paralelos e múltiplos. Há ainda a terceira síntese do tempo, aquele que trata do eterno retorno. Este é um tempo que se reconstrói, e a estrutura temporal da pauta vertical de Capricorn se insere nesse categoria. O procedimento composicional dessa última seção da peça é a permutação da coleção sonora (0,2,6) em uma escala de tons inteiros. Aparentemente pode parecer que o surgimento de uma escala de tons inteiros seja um tipo de princípio negativo, diferença em relação ao outro. Embora também o seja quando analisada na primeira síntese do tempo. Mas ocorre que esta escala de tons inteiros já havia sido conceitualmente apresentada, nas partes A e B. As duas coleções sonoras (0,2,6) apresentadas após a primeira sequência de tríades, respectivamente, são compostas das seguintes notas: (Fá, Sol, Si) e (Lá, Si, Ré#). Ao reunir as duas coleções obtém-se o seguinte resultado: (Ré#, Fá, Sol, Lá, Si). Ou (0,2,4,6,8). Adiante, após a segunda sequência de tríades, existem novamente duas coleções (0,2,6), que reunidas a exemplo do caso anterior formam: (Dó#, Ré#, Fá, Sol, Lá). O conjunto de todas essas notas é a escala de tons inteiros. Nessa parte o tempo em perspectiva é aquele que gera o novo, o eterno retorno, a repetição da diferença. Nessa síntese trata-se do tempo que se reconstrói, não da memória que reconstitui o passado, mas da memória que constrói o futuro. As estrutura nessa última parte é composta pela intercalação de coleções (0,2,6) de modo a sobrepor fragmentos da escala de tons inteiros em suas duas transposições. Na mão esquerda o conjunto (0,2,6) compreende as notas Mi, Sib e Ré, e na mão direita a mesma coleção é formada pelas notas Lá, Si e Ré#.

Figura 5: Parte C (vertical)

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A outra coleção sonora que completa o enunciado musical desta parte é derivado de (0,1,2), e é formado pelas notas Sib, Si, Do e Dó # (0,1,2,3), esta coleção é na realidade um fragmento da escala cromática (0,1,2,3,4) introduzida no início parte C. Este material cromático apresenta-se simultaneamente em díades (Sib, Si e Dó, Dó#), que se intercalam com o conjunto (0,2,6) – Sib, Ré, Mi – de maneira vertical, isto é, à maneira de acordes. Aqui essa estrutura é articulada pela repetição complexa que acontece num tempo que se reconstrói, a terceira síntese do tempo. Resta ainda falar das pausas segmentares, que são de uso muito recorrente em todo o Makrokosmos. Trata-se de um tipo de pausa em que o compositor especifica uma duração aproximada em segundos, e que se destina a segmentar determinados elementos. Evidentemente, devido à especificação em segundos, trata-se de um tempo cronológico. Este tipo de recurso leva a escuta adiante, ao mesmo tempo em que produz uma suspensão temporal, em termos perceptivos. Em outros exemplos deste ciclo de composições para piano essas pausas possuem outras implicações, mas nesse caso específico atua como diferença negativa. 5. Considerações finais A abordagem aqui apresentada do processo de articulação das estruturas de enunciados musicais, frente às sínteses do tempos, permite mostrar como os elementos se relacionam. Através dessa perspectiva analítica, observou-se que as relações de diferença e repetição entre os elementos está presente não somente no engendramento entre as partes, mas também no processo de derivação de interna dos materiais. Referências: CRUMB, George. Makrokosmos Vol.1. New York: C. F. Peters, 1974. DELEUZE, Gilles. Difference et repetition, Paris: PUF, 1968. trad. port. Roberto Machado e Luiz Orlandi, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1988. FORTE, Allen. The stucture of atonal music. London: Yale University Press, 1973. STOIANOVA, Ivanka. Geste-texte-musique. Paris: Union génerale d´éditions, 1978. XENAKIS, Iannis. Musiques Formelles. Paris: Stock, 1981. Notas

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Cf. Notação de Xenakis (XENAKIS, 1981: p.187) no qual T significa a presença do tempo. Original em inglês shout, literalmente: grito.

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