Diferentes contextos, múltiplos objetos: reflexões acerca do pedido de patrimonialização da Ayahuasca (2010)

June 28, 2017 | Autor: J. Otero dos Santos | Categoria: Patrimonio Cultural, Antropología, Ayahuasca
Share Embed


Descrição do Produto

CONHECIMENTO E CULTURA práticas de transformação no mundo indígena

Edilene Coffaci de Lima Marcela Coelho de Souza ORGANIZADORAS

ATHALAIA GRÁFICA E EDITORA

Brasília 2010

Livro Conhecimento e Cultura.indd 1

26/4/2011 12:20:42

Livro Conhecimento e Cultura.indd 2

26/4/2011 12:20:42

CONHECIMENTO E CULTURA práticas de transformação no mundo indígena

Livro Conhecimento e Cultura.indd 3

26/4/2011 12:20:42

Conselho Editorial Alcida Rita Ramos Julio Cezar Melatti Roque de Barros Laraia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UnB Departamento de Antropologia/ICS Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte ICC Centro – Sobreloja – B1-347 70.910-900 Brasília DF e-mail: [email protected] Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFPR Rua General Carneiro 460 – 6o. andar 80.060-150 Curitiba – PR e-mail: [email protected] Editora: Athalaia Gráfica e Editora Revisão: Laísa Tossin Secretaria: Mariana Souza Silva Projeto Gráfico e Diagramação: Cartaz Criações e Projetos Gráficos Tiragem: 1000 exemplares Esta publicação foi financiada com recursos do projeto PROCAD/CAPES Etnologia indígena e indigenismo: novos desafios teóricos e empíricos

C749

Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena / Edilene Coffaci de Lima, Marcela Coelho de Souza, organizadoras. – Brasília : Athalaia, 2010. 260 p. : il.; 23cm ISBN 978-85-62539-17-6 1. Antropologia social. 2. Cultura. 3. Etnologia. 4. Povos indígenas - Brasil. 5. Patrimônio cultural. I. Lima, Edilene Coffaci de (org.). II. Souza, Marcela Coelho de (org.). CDD 39(81=082)

Livro Conhecimento e Cultura.indd 4

26/4/2011 12:20:42

SUMÁRIO Apresentação Edilene Coffaci de Lima e Marcela S. Coelho de Souza

7

CONHECIMENTO 1. Kampu, kampô, kambô: o uso do sapo-verde entre os Katukina Edilene Coffaci de Lima

17

2. Conselho de Gestão do Patrimônio Genético: hibridismo, tradução e agência compósita Diego Soares

35

3. O sabonete da discórdia: uma controvérsia sobre conhecimentos tradicionais indígenas José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

63

CULTURA 4. A vida material das coisas intangíveis Marcela Stockler Coelho de Souza

97

5. Notas sobre a política ritual kalapalo Antônio Roberto Guerreiro Jr.

119

6. Espaços de homens e conceitos de mulheres: o feminino em escolas kaxinawá (Huni Kuĩ) Paulo Roberto Nunes Ferreira

141

Livro Conhecimento e Cultura.indd 5

26/4/2011 12:20:42

TRANSFORMAÇÃO 7. Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional Laura Pérez Gil

169

8. Beber, brincar: sobre o conhecimento despertado pela embriaguez Nicole Soares Pinto

185

9. “O pessoal da cidade”: o conhecimento do mundo dos brancos como experiência corporal entre os Karajá de Buridina Eduardo Soares Nunes

205

10. Diferentes contextos, múltiplos objetos: reflexões acerca do pedido de patrimonialização da Ayahuasca Júlia Otero dos Santos

229

Sobre os autores

249

Eventos e Publicações

255

Livro Conhecimento e Cultura.indd 6

26/4/2011 12:20:42

APRESENTAÇÃO

Edilene Coffaci de Lima Marcela Coelho de Souza

Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena traz contribuições de alunos e professores dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Paraná, participantes do Projeto de Cooperação Acadêmica “Etnologia Indígena e Indigenismo”, financiado pela CAPES, através do edital PROCAD 2007. Parte dos professores e alunos de ambos os Programas esteve reunida em duas ocasiões. Em Brasília, em 21 de setembro de 2009, quando foi realizado o seminário Dos quatro cantos da Amazônia: conhecimentos indígenas como práticas de transformação. Em Curitiba foi realizado o seminário Entre a cultura e a mercadoria: diálogos em torno dos saberes indígenas, em 27 de abril de 2010. Essas atividades estiveram vinculadas a uma das linhas de pesquisa específicas do convênio, “Patrimônio Imaterial, Propriedade Intelectual e Conhecimentos Tradicionais”. Estas são expressões em torno das quais vêm sendo travados, já vão quase vinte anos, intensos debates: a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU, firmada em 1992, e o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS), de abril de 1994, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC, criada em janeiro de 1995, na sequência do acordo), são talvez os seus marcos principais no plano internacional. Outro eixo importante foram os esforços, que remontam à década de 1980, no âmbito da ONU, da Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), para o que inicialmente se formulou como proteção do folclore, fazendo convergir as preocupações da primeira organização com a proteção do patrimônio cultural e aquelas da segunda com a aplicação dos modelos 7

Livro Conhecimento e Cultura.indd 7

26/4/2011 12:20:42

Apresentação

de direitos de propriedade intelectual aos recursos intelectuais “tradicionais”. Com a década dos Povos Indígenas, lançada pela ONU em 1994 (e renovada dez anos depois), a constituição do Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas e do Foro Permanente de Povos Indígenas (para uma história comentada desses desenvolvimentos, ver Carneiro da Cunha 2009), completa-se o quadro de um movimento global no bojo do qual numerosas nações do planeta foram motivadas a reavaliar as mais diversas reivindicações de direitos sobre todos os tipos de recurso “imaterial” (Hirsch & Strathern 2004:vii), e em particular aquelas reivindicações concernentes à cultura e aos conhecimentos de povos indígenas e populações tradicionais. Nesse movimento, vai-se da cultura dos povos indígenas como patrimônio da humanidade, à essa mesma cultura, primeiro, como patrimônio da nação, e por fim como “propriedade particular” de cada povo (Carneiro da Cunha 2009:327), em um ciclo que pode ser repetidamente reensaiado. Pode-se dizer que esses debates tendem a atravessar dois registros principais: de um lado, o que geralmente se descrevem como “saberes” ou “conhecimentos associados à biodiversidade”; de outro lado, o que se apreendem como “expressões culturais” de povos indígenas e “comunidades tradicionais”. O modelo dos direitos de propriedade intelectual (individuais, privados), referente aos direitos legais que indivíduos ou corporações têm sobre os produtos de sua criatividade, tende a se afirmar no primeiro caso; o modelo do patrimônio cultural (coletivo, público), predomina talvez no segundo. No Brasil, essa bifurcação manifesta-se nas trajetórias paralelas da legislação: de um lado, aquela referente ao acesso aos recursos genéticos, cuja história começa com a promulgação da Medida Provisória 2186-16 de 23 de agosto de 2001, “que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências”; de outro, aquela que trata das políticas destinadas à proteção do “patrimônio imaterial”, iniciando-se com a edição do Decreto 3551, de 4 de agosto de 2001, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. É claro que essas divisas não cessam de ser atravessadas e questionadas, num cruzamento que revela os limites das partições em que se ancoram — natureza/ cultura, individual/coletivo, material/imaterial, inovação/tradição —, sobretudo quando se trata de caracterizar regimes de conhecimento, de criatividade, de constituição de pessoas e de coletivos, que não se pautam por elas. E não se pautam por elas, via de regra, os regimes de conhecimento e criatividade ameríndios, inscritos em universos de práticas e concepções que pouco tem a dever às 8

Livro Conhecimento e Cultura.indd 8

26/4/2011 12:20:42

Edilene Coffaci de Lima e Marcela Coelho de Souza

matrizes culturais que as produziram. Em um mundo em que, frequentemente, encontramos não-humanos (animais, vegetais, etc.) dotados de cultura, indivíduos dividindo-se em partes e multiplicando-se em duplos, coletivos que funcionam como corpos, espíritos dotados de (estranhas) fisiologias e matérias impalpáveis, e em que a criação é no mais das vezes uma operação de troca, extração ou doação entre sujeitos, em lugar da aplicação de um sujeito sobre um objeto, em um tal mundo, entende-se, as formas muito diversas que podem tomar as reivindicações sobre “recursos intelectuais” tendem a evidenciar a insuficiência de nossos próprios recursos intelectuais para reavaliar essas reivindicações. Não obstante, é em boa medida nos termos dessas partições, desses modelos, e desses conceitos, que os povos indígenas são hoje instados a formular, apresentar e negociar seus interesses diante do Estado e demais agências não-indígenas. Registrar os efeitos e as respostas que emergem de um tal apuro, com seus di(tri, quadri-)lemas e as oportunidades decorrentes, é o objetivo dos capítulos reunidos aqui. Parece-nos que, tomados em conjunto, todos atestam a relevância da questão que, como observa Crook (2007:245), tendo sido posta por Barth (2002:2) – “é o conhecimento melhor entendido como uma coisa ou como uma relação?” – atravessa todo o presente debate sobre o conhecimento e a cultura – e suas transformações ameríndias. Transformações tanto mais relevantes quanto formos capazes de tomá-las como verdadeiros recursos intelectuais para pensar novamente, para contrariar nossa persistente tendência a privilegiar o conhecimento sobre os que conhecem, a recair nas armadilhas da “mentalidade proprietária” (Crook 2007:246), e a acreditar, apesar de todos os esforços que somos levados a fazer para sustentar a Natureza por meio da Cultura (como no caso da CBD) ou para reinscrever esta última na primeira (a “diversidade cultural” como um “direito humano”, isto é, “natural”), que os limites dentro dos quais pensamos não estejam sendo continuamente ultrapassados no momento mesmo em que se procura reestabelecê-los (e inversamente). O que é preciso perguntar, para cada situação, é: com que efeitos?

Os artigos A divisão interna do volume e a ordem de apresentação dos textos guardam certa arbitrariedade, e evidentemente ninguém imagina que se possa separar simplesmente conhecimento, cultura e transformação. São justamente as práticas que os imbricam. Da indissociabilidade entre os três termos é que redundam os processos que são aqui explorados a partir de diferentes ângulos – disputas em torno da autoria e autoridade de conhecimentos, da realização de rituais, elaborações e trocas na veiculação de conhecimentos escolares e xamânicos, na 9

Livro Conhecimento e Cultura.indd 9

26/4/2011 12:20:42

Apresentação

elaboração e consumo de alimentos e bebidas, reflexões sobre os processos de produção cultural, entre outras coisas – e de diferentes campos etnográficos. Todos os autores têm em comum o interesse pelas transformações que se dão não apenas entre os povos indígenas, mas, sobretudo, nas concepções sobre o que vêm a ser os conhecimentos e cultura indígenas, compreendendo-os como permanentemente móveis ou transformacionais, resultados de contextos e arranjos históricos transitórios. Na primeira parte, Conhecimento, estão reunidos os artigos de Edilene Coffaci de Lima, de Diego Soares, e o de José Pimenta e Guilherme Moura Fagundes, em co-autoria. Dois deles tratam de grupos indígenas localizados no Acre, os Katukina e os Ashaninka, respectivamente de filiação lingüística pano e aruak. No primeiro artigo, Edilene Coffaci de Lima trata das transformações em curso em torno do kampô, a secreção de uma perereca do mesmo nome, tradicionalmente usada por homens e mulheres katukina como estimulante cinegético e revigorante, e que, na virada deste século, ganhou popularidade nos meios urbanos do país, especialmente entre ayahuasqueiros e consumidores de terapias alternativas e new age. Interessam à autora justamente as repercussões dessa popularização do kampô e os efeitos que produz na concepção que os próprios Katukina fazem dele, convertendo-o em emblema de sua cultura, em movimentos não destituídos de contradições e conflitos. José Pimenta e Guilherme Moura Fagundes discorrem sobre a querela em torno dos conhecimentos ashaninka sobre a palmeira murmuru, repassados a pesquisadores e transformados em sabonete com grande aceitação no mercado. Os autores detalham o itinerário da pesquisa sobre os conhecimentos ashaninka acerca do murmuru, os acordos estabelecidos com os pesquisadores e sócios-proprietários da empresa Tawaya, fabricante do sabonete, e os desentendimentos que deságuam na reivindicação dos Ashaninka em torno do reconhecimento de sua contribuição na pesquisa – o famoso acesso ao conhecimento tradicional – e na repartição dos benefícios em um processo ainda não encerrado. O artigo de Diego Soares, dedica-se ao funcionamento do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável justamente pela regulamentação do acesso aos conhecimentos tradicionais, conforme estabelecido a partir da Convenção da Diversidade Biológia (CDB). Diego Soares aborda etnograficamente o funcionamento do CGEN, colocando em evidência como se formulam as concepções sobre o que vem a ser “conhecimento tradicional” entre técnicos do órgão, cientistas, empresários e representantes das populações tradicionais que têm assento nas reuniões do Conselho. Entre outras cenas, o autor apresenta os percursos sinuosos dos processos de autorização de pesquisas, e das iniciativas de divulgação da legislação, da formatação dos documentos que 10

Livro Conhecimento e Cultura.indd 10

26/4/2011 12:20:42

Edilene Coffaci de Lima e Marcela Coelho de Souza

instruem os processos, das negociações que tem lugar nas variadas instâncias do órgão sobre o que se define como “conhecimento” e o que o faz “tradicional”, ou o que se considera “patrimônio genético”, mostrando como estas categorias, ainda que dependentes de convenções que remetem à lógica do Estado, acabam por designar uma multiplicidade de objetos científicos e culturais continuamente redefinidos no bojo das traduções que fazem cientistas, empresários e povos indígenas e tradicionais. Cultura é o título da segunda parte, na qual estão reunidos os artigos de Marcela Coelho de Souza, Antonio Roberto Guerreiro Junior e Paulo Roberto Nunes Ferreira. O artigo de Marcela Coelho de Souza tem início com uma fala de uma liderança kïsêdjê, que se apresenta como uma crítica da objetificação da cultura: “eu só queria que parassem de desmatar a terra e poluir o rio. Da nossa cultura a gente mesmo pode cuidar”. A autora irá mostrar como os Kïsêdjê, quando demandam projetos de revitalização cultural, fazem isso menos como um esforço de permanecer o mesmo, e mais como uma tentativa para permanentemente se diferenciarem: dos brancos, de outros grupos indígenas – e não devemos esquecer que se está na região do Parque do Xingu – mas sobretudo de si próprios. Com os Kïsêdjê, a autora nos convida a refletir sobre a vida de um conceito constitutivo do próprio empreendimento antropológico: cultura. No segundo artigo, de Antonio Roberto Guerreiro Junior, o contexto etnográfico é ainda o (alto) Xingu, mas a partir dos Kalapalo e a elaboração dos rituais funerários, os Quarup. Interessa ao autor a análise da política enredada no ritual. Nos últimos anos não faltam brancos proeminentes interessados em realizar seus rituais funerários, seus Quarup, e tais demandas têm sido ativamente cobiçada pelos chefes nativos. Para que possam ser atendidas, uma complexa engrenagem sociológica é posta em funcionamento e afeta não apenas a política interétnica– os Kalapalo e os brancos –, mas também a política intertribal, altoxinguana, e a intra-aldeã, os Kalapalo entre si. Seja como for, tais efeitos não são facilmente destacáveis uns dos outros, e o autor irá nos mostrar que nem devem sê-los. Encerrando esta parte, temos o artigo de Paulo Roberto Nunes Ferreira, sobre os processos em curso para tratar da educação escolar entre os Kaxinawá, de língua pano, localizados no Acre. Se em seus primeiros anos a escola kaxi foi pensada como um instrumento necessário aos índios para administrarem suas contas nos seringais ou para organizarem suas próprias cooperativas, é atualmente vista como um meio indispensável para se viver e atualizar a tradição. De uma perspectiva voltada ao exterior, a escola é interiorizada – ou familiarizada, se preferirmos – pelos próprios agentes. Neste percurso, os Kaxi assumem cada dia mais completamente a organização da

11

Livro Conhecimento e Cultura.indd 11

26/4/2011 12:20:42

Apresentação

escola, tornando-se, no Acre, os primeiros “indigenistas indígenas”, como irá desenvolver o autor. Na terceira e última parte, Transformação, estão reunidos os artigos de Laura Pérez Gil, Nicole Soares Pinto, Eduardo Soares Nunes e Júlia Otero dos Santos. O primeiro discute certos aspectos do xamanismo yaminawa (grupo pano do Peru) enquanto participante de um sistema xamânico regional que emerge como um “produto híbrido”, com aportes indígenas diversos mas também não-indígenas, condutor de um diálogo em que a disparidade das premissas não impede o estabelecimento de “conexões inteligíveis”. Se diálogos como estes dependem da capacidade de acesso a pontos de vista outros – da disposição dos Yaminawa em engajar-se com lógicas estranhas à sua, aceitando possibilidades imprevistas em seus próprios repertórios, levando diálogos a suas “últimas consequências”, para além da tradução e da ressignificação, até o “aceitar para si as possibilidades abertas pelo outro” (Pérez Gil, neste volume) –, é também dessa possibilidade que trata o artigo de Nicole Soares Pinto, a propósito da análise da embriaguez alcançada por meio do consumo da chicha entre os Wajuru (Tupi-Tupari) de Rondônia. A embriaguez, mostra-nos a autora, operaria como um meio de acesso a outras perspectivas, um mecanismo de passagem a outros códigos comunicativos sem que se borre a diferença entre esses, sem que se perca de vista, como diz ela, o próprio fato da passagem. Que o riso seja o índice dessa passagem, do vislumbre de um “lá” onde se vê nos parentes animais, nos animais parentes, nos consanguíneos afins e vice-versa, não exclui, e pelo contrário exige mesmo, que este riso deva entretanto também antecipar o retorno ao “aqui” – como em sua fácil conversão no seu oposto, a tristeza e o choro pelos parentes mortos – sob o risco de que a transformação que opera se torne irreversível, e a passagem regrida em uma descontinuidade absoluta. O capítulo de Eduardo Soares Nunes, em um contexto bastante diferente – o dos Karajá de Buridina, aldeia incrustada na cidade de Aruanã (GO) –, caracterizado por uma longa e profunda experimentação indígena dos modos (d)e conhecimento dos brancos, nos devolve a questão da reversibilidade e irreversibilidade dessas transformações sob uma outra forma, a saber, a que ela toma no próprio corpo dos sujeitos. Ou melhor, a que ela toma nos corpos duplos que eles constituem como sítio de um “virar branco” (por meio inclusive de casamentos com brancos) que não é vivido como perda (“cultural”), mas uma trajetória de conhecimento enquanto experiência corporal, trajetória que define a própria história desta aldeia. Por fim, se essas contribuições mantêm os olhos bem firmes, como dizíamos mais atrás ser necessário, naqueles que conhecem (em oposição a privilegiar os seus “conhecimentos”), o capítulo de Júlia Otero dos Santos dedica-se à 12

Livro Conhecimento e Cultura.indd 12

26/4/2011 12:20:42

Edilene Coffaci de Lima e Marcela Coelho de Souza

próxima volta do parafuso. Tendo como objeto o pedido de registro do uso ritual da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil (feito por alguns dos grupos religiosos que a utilizam), a autora mostra como processos desse tipo necessariamente acabam por deslocar os modos de fazer e conhecer dos sujeitos – foco explicitado da política pública em questão (o programa do patrimônio imaterial) – em função de um “objeto” que passa a ocupar o centro da cena: no caso, a beberagem. A estratégia da autora diante disso é desconfiar da ideia de que se trataria de uma mesma coisa a cada vez significada diferentemente, sugerindo em lugar disso pensá-la com um, ou talvez vários, agentes não-humanos, os quais definem, a cada vez, a outros e a si próprios por meio de suas variadas associações.

Referências BARTH, Fredrik. 2002. “An anthropology of knowledge”. Current Anthropology 43(1):1-18. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naify. pp. 311-373. CROOK, Tony. 2007. “Figures twice seen: Riles, the modern knower and forms of knowledge”. In M. Harris (Ed.), Ways of knowing. New approaches in the anthropology of experience and learning. New York/Oxford: Berghahn Books. pp. 245-265. HIRSCH, Eric & STRATHERN, Marilyn. 2004. Transactions and creations: property debates and the stimulus of Melanesia. New York/Oxford: Berghahn Books.

13

Livro Conhecimento e Cultura.indd 13

26/4/2011 12:20:42

Livro Conhecimento e Cultura.indd 14

26/4/2011 12:20:42

I CONHECIMENTO

Livro Conhecimento e Cultura.indd 15

26/4/2011 12:20:43

Livro Conhecimento e Cultura.indd 16

26/4/2011 12:20:43

Kampu, kampô, kambô: o uso do sapo-verde entre os Katukina

Edilene Coffaci de Lima

Os Katukina, falantes de uma língua pano, chamam de kampô o anfíbio Phyllomedusa bicolor e outras espécies do gênero Phyllomedusa, da qual usam a secreção principalmente como um estimulante cinegético, capaz de aguçar os sentidos do caçador e de livrá-lo da desconfortável condição de panema (yupa), uma pessoa azarada na caça. Com igual finalidade, vários outros grupos indígenas moradores do sudoeste amazônico, a maior parte deles da mesma família linguística, fazem uso do kampô, que acabou se difundindo entre os seringueiros que se estabeleceram na região a partir do final do século XIX, e entre os quais as aplicações do kampô são conhecidas como “injeções de sapo”, “vacina do sapo” ou como kambô, na forma como os brancos passaram recentemente a designar essa rã. Para terem mais sorte na caça, índios e seringueiros usam também aplicar a secreção do kampô em seus cachorros. Neste artigo pretendo oferecer uma descrição do uso do kampô pelos Katukina, chamando a atenção para as práticas tradicionais que têm constituídas, e, ao mesmo tempo, refletir sobre as implicações da difusão recente de seu uso entre populações não índias, especialmente no meio urbano. Ao final concluo que, embora de forma não totalmente desprovida de prejuízos, é possível dizer que a demanda urbana pelo kampô acabou por incrementar a demanda dos próprios Katukina, presentemente preocupados em firmarem-se regional e nacionalmente como tradicionais usuários e conhecedores do uso da secreção do sapo-verde. Antes de continuar é preciso dizer que as informações sobre o kampô aqui apresentadas foram recolhidas entre os Katukina1, fazem parte do conhecimento tradicional associado do grupo e, por isso mesmo, não podem ser utilizadas sem a prévia anuência do mesmo. 17

Livro Conhecimento e Cultura.indd 17

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

*** Os Katukina somam hoje uma população de aproximadamente 600 pessoas distribuídas em duas Terras Indígenas, no rio Gregório e no rio Campinas. A TI do rio Gregório foi a primeira a ser demarcada no Acre e, recentemente ampliada, conta com uma extensão de quase 188 mil hectares, que os Katukina dividem com os Yawanawa, grupo indígena que também fala uma língua pano e com o qual têm estabelecida uma longa história de contato e parentesco, dado que uma parte significativa da população yawanawa atual é aparentada a uma mulher katukina que se casou com um antigo chefe político do grupo. Atualmente mora na TI do rio Gregório a menor parte da população katukina, não mais que 70 pessoas. Todas as demais estão estabelecidas na TI do rio Campinas, com 32.624 hectares, que se localiza a cerca de 60 quilômetros de Cruzeiro do Sul – a segunda maior cidade do Acre. A TI do rio Campinas é cortada no sentido leste-oeste pela BR-364, que liga Cruzeiro do Sul a Rio Branco. Na TI do rio Campinas, os Katukina se distribuem em cinco aldeias (Campinas, Martins, Samaúma, Masheya e Bananeira) localizadas às margens da rodovia. Os Katukina, nos primeiros anos da década de 1970, participaram das obras de abertura da rodovia e, após sua conclusão, estabeleceram-se no local onde a maior parte de sua população reside atualmente. De 1972, quando se concluiu a obra de abertura da BR-364, até 2000, todo o tráfego de veículos era feito na estrada terra e, por essa razão, dependia das condições climáticas. O tráfego só era possível nos meses de “verão” – o período de estiagem, que vai de junho a outubro. Nos demais meses do ano, a rodovia era intransitável devido às chuvas que quase diariamente caem na região. A sazonalidade do funcionamento da rodovia garantiu por vários anos certa redução dos impactos da estrada na vida dos Katukina e das demais etnias indígenas localizadas na região. Durante quase três décadas a rodovia funcionou sazonalmente, dadas as interrupções anuais do tráfego de veículos logo que se iniciavam as chuvas. Contudo, no final da década de 1990, este quadro foi completamente alterado, pois iniciaram as obras de asfaltamento da rodovia. Em 1998, teve início o asfaltamento da rodovia nas proximidades de Cruzeiro do Sul. Em 2002 e 2003, as obras de pavimentação avançaram sobre o território katukina e se estenderam até o riozinho da Liberdade. A cada ano as obras de asfaltamento que garantirão a ligação da capital do Acre ao vale do Juruá avançam algumas dezenas de quilômetros. A pavimentação de toda a extensão que separa Cruzeiro do Sul de Rio Branco parece que demandará ainda vários anos. Seja como for, o trajeto que separa Cruzeiro do Sul da capital tem agora vários quilômetros asfaltados, ainda que descontinuamente, o que fez aumentar em muito o tráfego 18

Livro Conhecimento e Cultura.indd 18

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

de veículos nos meses de “verão”. Além disso, a pavimentação da rodovia de Cruzeiro do Sul até o riozinho da Liberdade faz com que, ao menos neste trecho, o tráfego de veículos seja contínuo durante todo o ano, mesmo que de forma reduzida. Os impactos sociais e ambientais do início da pavimentação da rodovia já são evidentes na região. Entre outras coisas que não cabem ser descritas detalhadamente aqui, o aumento do número de veículos transitando na rodovia levou muitas pessoas estranhas para dentro da Terra Indígena, afugentou os animais de caça e comprometeu significativamente a dieta alimentar dos Katukina. O impacto sobre o estoque faunístico da TI do rio Campinas terá repercussões, que abordarei no final, também no uso que os Katukina fazem da secreção do kampô. *** Como veremos adiante, apenas nos últimos anos o kampô ganhou alguma notoriedade. Contudo, em 1925, o padre espiritano Constantin Tastevin havia registrado seu uso entre populações indígenas do alto Juruá: O exército de batráquios é incontável. O mais digno de ser notado é o campon dos Kachinaua. [...] Quando um indígena fica doente, se torna magro, pálido e inchado; quando ele tem azar na caça é porque ele tem no corpo um mau princípio que é preciso expulsar. De madrugada, antes da aurora, estando ainda de jejum, no doente e no azarado produzem-se pequenas cicatrizes no braço ou no ventre com a ponta de um tição vermelho, depois se vacinam com o “leite” de sapo, como dizem. Logo são tomados de náuseas violentas e de diarréia; o mau princípio deixa o seu corpo por todas as saídas: o doente volta a ser grande e gordo e recobra as suas cores, o azarado encontra mais caça do que pode trazer de volta; nenhum animal escapa da sua vista aguda, o seu ouvido percebe os menores barulhos, e a sua arma não erra o alvo. A vívida descrição do padre francês, elaborada a partir de aplicações a que assistiu entre os índios Kulina, adianta que a secreção do kampô é usada, como dito acima, primeiramente como um estimulante cinegético. Voltando aos Katukina, a quantidade de aplicações que costumam fazer varia bastante não só entre eles próprios, como entre eles e os demais grupos indígenas da região. Dos registros existentes sobre o uso do kampô, não há dúvidas de que os Katukina são hoje, de fato, os seus maiores usuários (Souza 2002). Seus vizinhos no rio Gregório, os Yawanawá, parecem ser os mais próximos de igualá-los na utilização da secreção (Pérez Gil 1999). Outros grupos indígenas, como 19

Livro Conhecimento e Cultura.indd 19

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

os Kaxinawá (Aquino e Iglesias 1994) e Marubo (Montagner e Melatti 1985), fazem um uso bem mais moderado do kampô. Os Katukina reconhecem a existência de pelo menos quatro espécies de kampô, mas encontram com mais facilidade, e por isso mesmo fazem uso mais frequente daquela que chamam apenas de kampô ou de awa kampô, que é a Phyllomedusa bicolor. Coletar o kampô não envolve quase nenhuma dificuldade, pois a espécie é relativamente fácil de ser encontrada na beira dos igapós e desloca-se, se for adequado dizer assim, de modo suave e muito lentamente – como se estivesse em câmera lenta. Assim, basta durante a madrugada, próximo do amanhecer, orientar-se pelo som do kampô e pegá-lo. Para coletá-lo, os Katukina não o tocam diretamente, mas recolhem-no quebrando o galho de alguma ramagem e aguardando que ele se segure nela – possivelmente fazem assim porque se o tocarem, ele deve começar a expelir sua secreção. Levado para casa, logo depois de capturado o kampô deve ser amarrado, para que se proceda à retirada da secreção de sua pele. Os Katukina esticam o animal e prendem-no, amarrando cada uma das patas em dois pedaços de pau posicionados na vertical e paralelamente alinhados. Já amarrado, o kampô deve ser irritado, o que se faz normalmente cuspindo sobre ele, para que comece a expelir a sua secreção – claramente um recurso de defesa. Então, raspa-se a pele do animal com uma pequena espátula de madeira. Embora também não envolva qualquer dificuldade, a coleta da secreção do kampô, deve ser feita com delicadeza, para não feri-lo. Esse cuidado tem que ser tomado não só para preservar o espécime que poderá ser coletado outras vezes para ter extraída sua secreção, mas também porque se acredita que algumas cobras – entre elas, a surucucu – se servem da secreção do kampô para produzir o seu próprio veneno.2 Caso o kampô seja machucado durante a coleta da secreção, a pessoa que o machucou passa a correr o risco de ser picada pelas cobras irritadas com o dano causado àquele que lhe oferece a “matéria-prima” para a produção de seu veneno. Encerrada a retirada da secreção3, o kampô é desamarrado e solto na floresta.

A aplicação do kampô Entre os Katukina, o uso em grandes quantidades do kampô é feito exclusivamente pelos jovens; homens mais velhos, mulheres e crianças utilizam-no em dosagens menores. Independentemente da dosagem utilizada, as aplicações de kampô devem ser feitas nas primeiras horas da manhã, ainda com o frescor da noite. Logo ao acordar, após ter jejuado durante toda a noite, a pessoa que receberá a aplicação 20

Livro Conhecimento e Cultura.indd 20

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

deve ingerir uma grande quantidade de caiçuma (bebida de macaxeira, que os Katukina consomem sem deixar fermentar) ou, na falta desta, de água. A aplicação é feita queimando superficialmente a pele com um pedaço de cipó titica e, em seguida, depositando na queimadura (chamada de “ponto”) a secreção do kampô – diluída em água ou saliva para desfazer a cristalização. Para eliminar algum mal-estar físico ou indisposições difusas, as mulheres e homens velhos aplicam na perna, na panturrilha, de dois a cinco “pontos”. Diferentemente, se o objetivo é aguçar os sentidos para empreender uma caçada, um rapaz pode chegar a receber mais de cem “pontos” de kampô – alguns velhos dizem hoje que chegaram a receber trezentos “pontos” quando ainda eram jovens –, que formam uma fileira que se inicia no pulso de um dos braços, percorre o peito até alcançar o umbigo, de onde segue, no lado contrário, até alcançar a extremidade do outro braço. Mesmo que seja corrente a ideia de que essa super-dosagem é a mais indicada para tornar um homem um exímio caçador ou para retirar-lhe a panema (yupa), a prática evidentemente responde a idiossincrasias pessoais. Há um homem que nunca experimentou kampô como estimulante cinegético, o que quer dizer que o usou apenas em doses menores. Ele também nunca caçou e supre sua família com peixes. Há outros homens que fizeram a super-aplicação do kampô uma única vez, logo que iniciaram suas atividades como caçador, ainda jovens. Depois disso, limitaram-se a receber as dosagens menores. Por último, existe um grupo que de tempos em tempos recorre ao kampô para garantir uma performance mais vantajosa na caça, recebendo entre 20 e 100 “pontos”. Nos intervalos entre as aplicações esses homens recebem também as dosagens menores. Os homens que periodicamente recebem aplicações de kampô exibem em seus braços e peito pequenos círculos esbranquiçados, simetricamente alinhados, marcas evidentes das queimaduras feitas para aplicarem a secreção do sapo-verde. A resistência de alguns homens à aplicação da super-dosagem do kampô deve-se creditar, sobretudo, aos efeitos que têm de suportar: por volta do décimo “ponto” a boca fica amarga, uma sensação de calor invade o corpo e os olhos e a boca começam a inchar. Para suspender os efeitos indesejáveis que as aplicações proporcionam, o mais indicado é banhar-se. Cheguei a ver certa vez mais de noventa aplicações no peito e nos braços de um homem, mas ele mesmo admitiu que seria possível dobrar este número se suportasse fazer duas fileiras de aplicações. Ele só havia feito uma – o que, aos olhos de alguns, já era um exagero. Sempre que se faz um grande número de “pontos”, os homens desmaiam por volta do vigésimo e os demais são feitos enquanto eles estão inconscientes. São seus familiares e o próprio aplicador que, um pouco mais tarde, os 21

Livro Conhecimento e Cultura.indd 21

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

acodem, levando-os para banharem-se no igarapé mais próximo, suspendendo assim os efeitos tóxicos da secreção do kampô. Contam os mais velhos que antigamente os homens faziam as queimaduras em seus braços e peitos e tinham o kampô esfregado diretamente sobre elas.4 O efeito era imediato e eles tombavam no chão inconscientes. Acordavam já dentro do igarapé, socorrido por algum parente. O efeito desagradável mais comum promovido pela entrada da secreção do kampô na corrente sanguínea é o vômito. Mesmo a aplicação de poucos “pontos” induz os vômitos, que servem, dizem os Katukina, para eliminar as impurezas que se acumulam no corpo. Justamente para tentar conter ou amenizar os efeitos colaterais é que a aplicação deve ser feita ao alvorecer. Com o sol alto, segundo vários Katukina experimentados no uso da secreção, os efeitos indesejáveis da aplicação são potencializados. Fora do contexto da caça, com maior ou menor frequência, homens e mulheres fazem uso do kampô. Desde muito cedo, entre o primeiro e o segundo ano de vida uma criança começa a receber o kampô, quase sempre por iniciativa dos avós. Nesta idade, a criança recebe apenas um ou dois “pontos”. A partir, aproximadamente, dos seis anos de idade as crianças podem receber de dois a cinco “pontos” nos braços ou nas pernas. Este uso moderado do kampô é feito para aliviar indisposições e “fraquezas” diversas, que tiram o ânimo das pessoas para o desempenho das atividades mais simples, e que os Katukina conceituam como tikish, palavra traduzida como “preguiça”. Ainda que se queira debelar o incômodo físico que tais indisposições causam, o uso do kampô é determinado muito mais pela avaliação moral que se faz do desânimo que proporcionam. A preguiça tem para os Katukina uma significação extremamente negativa. Afinal de contas, o comportamento preguiçoso é, antes de tudo, antissocial. Ao se deixar dominar pela prostração, importa menos o fato de o preguiçoso não cumprir as tarefas que lhe seriam cabíveis do que o fato de que ele não se engajou na teia social que une as pessoas residentes numa mesma localidade. A avaliação sumamente negativa que os Katukina fazem da preguiça foi já identificada em outros grupos de língua pano. Como Erikson (1996) bem observou entre os Matis, “a falta de zelo característica do estado de chekeshek (preguiça) é percebida como uma ausência de reação ao estímulo social, uma resposta negativa ao imperativo social, antes que como um torpor sui generis”. Tanto mais válida essa afirmação se considerarmos que, entre os Katukina, homens e mulheres aplicam o kampô como antídoto antipreguiça, em distintas partes do corpo: os homens aplicam-no nos braços e tronco e as mulheres, nas pernas. A derrubada de grandes árvores para o preparo do roçado exige braços fortes e a rotina quase 22

Livro Conhecimento e Cultura.indd 22

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

diária da colheita e, sobretudo, do transporte da macaxeira (às vezes, também dos filhos) requer força nas pernas.

Os aplicadores de kampô Como estimulante cinegético ou como antídoto antipreguiça, o kampô deve ser aplicado por uma segunda pessoa, por alguém que não padeça do mal que se quer debelar. Assim, não é qualquer homem que pode aplicar o kampô num caçador empanemado, tem de ser um caçador bem-sucedido. Como se o caçador trouxesse inscrito em seu próprio corpo a sua condição, a sua boa sorte, e pudesse transferi-la para outros. Ni’i, filho de um rezador, sempre procurou Kene para “tomar kampô”, preterindo o seu próprio pai, um rezador experiente que, comenta-se, jamais tocou numa espingarda e, portanto, jamais matou qualquer bicho. Do mesmo modo, uma mulher tida como trabalhadeira – que zela por sua casa e pelo terreiro que a cerca, cuida bem dos filhos e sempre tem caiçuma para servir aos visitantes, entre outras coisas – é quem deverá fazer a aplicação do emético numa jovem “preguiçosa”. Existe a possibilidade de autoaplicação, mas é reservada apenas às pessoas mais velhas. Para os Katukina, o kampô está situado em um sistema maior, que vincula a eficácia da substância às qualidades morais do seu aplicador. O elo que se estabelece entre aquele que aplica a substância do kampô, o aplicador, e aquele que a recebe deve ser duradouro e o desejável é que seja definitivo. Assim, de uma perspectiva masculina, um jovem rapaz quando vai receber, como caçador, sua primeira aplicação de kampô deve escolher quem será seu aplicador – como indicado acima, um homem que se destaca nesta atividade, quase sempre de uma geração acima da sua. Caso a aplicação lhe traga boa sorte, voltará a procurar o mesmo aplicador outras vezes, possivelmente por toda a vida. Ainda que não haja uma formalização desta relação – entre aquele que aplica o kampô e aquele que recebe a aplicação –, muitas vezes os homens me falaram dela como se fosse definitiva. Ao contrário, caso a aplicação não traga a boa sorte esperada, o jovem caçador continuará tentando encontrar o seu aplicador ideal, aquele capaz de lhe transferir todas as qualidades cobiçadas para a prática da caça. A escolha do aplicador ideal faz-se pelo teste empírico: o sucesso na caçada logo após a aplicação é que vai indicar o futuro retorno ao mesmo aplicador. Não é raro que um jovem caçador tenha mais de um aplicador de kampô a quem recorrer de tempos em tempos. Não há exatamente especialistas na aplicação da secreção do kampô entre os Katukina. Do que foi exposto acima é evidente que os caçadores mais bem-sucedidos são os mais requisitados como aplicadores e acabam, de fato, sendo reconhecidos também como tal. De todo modo, o conhecimento acerca do kampô 23

Livro Conhecimento e Cultura.indd 23

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

(seus hábitos, comportamento, a técnica de coleta da secreção, da aplicação etc.) é público, não se concentra nas mãos de uns poucos. De certa forma, é possível dizer que os bons caçadores do passado são os aplicadores de kampô do presente e, por sua vez, os atuais caçadores serão no futuro os mais requisitados aplicadores de kampô. Dos atuais aplicadores de kampô que conheci, todos foram unânimes em apontar os seus próprios aplicadores como as pessoas que lhes transmitiram os conhecimentos necessários para aprenderem a fazer a aplicação em outras pessoas.

O Kampô hoje O pouco segredo que se faz do kampô provavelmente explica a difusão de seu uso entre os não-índios – entre os seringueiros ao longo do século passado e entre a população urbana, nacionalmente, no início deste século.5 Nos últimos anos, o uso do kampô ganhou as páginas de vários jornais e revistas de circulação regional e nacional – sendo que outrora as informações sobre a Phyllomedusa sp. estiveram restritas às publicações acadêmicas. Em 2001, uma reportagem publicada numa revista editada pelo governo do Acre, a Outras Palavras, detalhadamente descrevia seu uso entre os índios, particularmente entre os Katukina, e seringueiros (Lopes 2001). Na sequência, em 2002, o uso do kampô foi divulgado em um programa de reportagens de uma grande emissora de televisão nacional. Em 2003, um renomado jornalista carioca (Ventura 2003) publicou um livro sobre Chico Mendes (e sobre o Acre, 15 anos após a morte do líder-seringueiro) em que um dos capítulos sugestivamente intitulava-se “O quente agora é o kambô”, no qual descrevia o uso da secreção do sapo-verde na cidade de Rio Branco. Pode-se dizer que aquele foi mesmo o ano do kampô, pois pelo menos treze matérias sobre ele foram publicadas em jornais de circulação diária na capital do Acre.6 Em abril de 2004, o uso crescente e indiscriminado do kampô para diversas finalidades, tido como uma substância particularmente eficaz na cura de enfermidades para as quais a medicina ocidental não tem tido sucesso em tratar, levou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a proibir a propaganda do kampô, que vinha sendo feita principalmente a partir de um domínio eletrônico registrado na internet. Em 2004 o kampô continuou a ser notícia nos jornais acreanos e em outubro do mesmo ano foi a vez de uma revista de circulação nacional (Bezerra 2004) estampar em sua capa a foto de um kampô nas mãos de um índio katukina. A matéria de capa trazia uma extensa descrição do uso tradicional e dos efeitos da aplicação do kampô entre os índios, e denunciava a biopirataria na Amazônia. Em abril de 2005, o kampô foi notícia em um dos maiores jornais 24

Livro Conhecimento e Cultura.indd 24

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

do país (Lages 2005), mas o foco da matéria agora era outro: tratou-se do uso crescente da secreção do sapo-verde em clínicas de terapias alternativas – frequentadas, segundo a matéria, principalmente por estudantes, profissionais liberais e artistas – da capital paulistana. Com bastante frequência os Katukina apareciam como protagonistas destas reportagens. Da Amazônia à maior metrópole brasileira, o kampô, junto com os Katukina, ganhou fama nos primeiros anos do século XXI. Antes disso, desde a década de 1940, um farmacologista italiano, Vittorio Erspamer, liderava uma equipe de pesquisadores dedicados ao estudo de peles de anfíbios e dos peptídeos que nelas se encontram. Em 1985, Erspamer publicou um estudo sobre as peles das espécies de Phyllomedusa e concluiu que elas eram abundantes em peptídeos, especialmente a pele da Phyllomedusa bicolor apresentava uma elevada concentração de peptídeos ativos. A partir de 1989, multiplicam-se os estudos sobre esses peptídeos e aparecem as primeiras patentes.7 Voltando aos Katukina, em abril de 2003 – ano em que se publicaram pelo menos 13 matérias sobre o kampô em jornais acreanos – os Katukina encaminharam à então Ministra Marina Silva uma carta solicitando que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) coordenasse um estudo sobre o sapo-verde. A ministra acolheu a solicitação e teve início no MMA a elaboração de um projeto de pesquisa envolvendo antropólogos, biólogos moleculares, médicos e herpetólogos, entre outros profissionais. A expectativa, de índios e pesquisadores, era que tais estudos pudessem contribuir para regulamentar o uso do kampô por não-índios e, ao mesmo tempo, assegurar benefícios econômicos para seus usuários tradicionais.8 Dado que outras populações indígenas também usam o kampô, o projeto demandado pelos Katukina ao MMA foi planejado para ser desenvolvido entre eles próprios e entre os Yawanawá e Kaxinawá, abrangendo paulatinamente outros detentores tradicionais dos conhecimentos sobre o sapo-verde.

*** Como não poderia deixar de ser, tamanha divulgação das propriedades, benefícios e vantagens, reais ou imaginárias, das aplicações do kampô entre os não-índios ricocheteou entre os Katukina. Agora havia brancos, muitos deles, interessados em experimentar, usar e comercializar o kampô. No cenário regional, repercussões sociais e políticas desse protagonismo dos Katukina no que diz respeito ao kampô aparecem e afetam as relações interétnicas e também as relações dos Katukina com membros de agências governamentais e não governamentais. Em Rio Branco, em janeiro de 2005, não foram 25

Livro Conhecimento e Cultura.indd 25

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

poucas as vezes que ouvi, de primeira ou segunda mão, que lideranças de outros grupos indígenas estariam contrariadas com os Katukina pelo fato de estarem se firmando, na região e nacionalmente, como os legítimos conhecedores do kampô. Havia, inclusive, a desconfiança (e a previsível insatisfação) de que o MMA desenvolveria o projeto exclusivamente entre eles. Talvez não seja excessivo dizer que furtivamente havia uma crítica ao “monopólio” do kampô pelos Katukina. “Monopólio”, diga-se de passagem, que os Katukina não exercem, visto que o primeiro a aplicar kampô em paulistanos foi um seringueiro, Francisco Gomes, que viveu entre os Katukina na década de 1960, entre os quais aprendeu a fazer uso da secreção da rã. Hoje um de seus filhos faz aplicações em Brasília, mas diz ter clientes em várias capitais brasileiras.9 No mais, além dos Katukina, há índios de outras etnias, também oriundas do Acre – como os Kaxinawá –, aplicando kampô em moradores da cidade de São Paulo. O suposto monopólio katukina é ainda menos exercido no Acre, onde a comercialização da aplicação de kampô tem envolvido menos os índios – que localmente parecem não ter tanto espaço para comercializar a aplicação da secreção – e muito mais os brancos. Além disso, até onde pude saber, os adeptos de religiões ayahuasqueiras, como é o caso do Santo Daime e da União do Vegetal, têm feito amplo uso e divulgação do kampô – dentro e fora do Acre. *** De volta às aldeias, uma das primeiras repercussões que a fama do kampô entre os não-índios acabou promovendo foi justamente em torno da existência de especialistas katukina na aplicação da secreção. Inicialmente alguns jovens foram requisitados para fazerem aplicações em não-índios que os visitavam nas aldeias da TI do rio Campinas ou na cidade de Cruzeiro do Sul, da qual é bastante próxima, e mesmo em lugares mais distantes, como em São Paulo. A concepção katukina de que a secreção do kampô veicula não apenas suas propriedades bioquímicas per se, mas também as qualidades morais daquele que o aplica, não é difícil imaginar, escapou completamente aos usuários não-índios e facilitou a difusão da aplicação. Afinal, qualquer katukina, independentemente de seus atributos morais, tornou-se então habilitado a aplicá-lo, pois passou a ser requisitado para tanto – ao menos entre os não-índios, pois entre os Katukina o regime de aplicação tradicional permanece em vigor. Ao mesmo tempo, a demanda urbana, sobretudo aquela vinda dos grandes centros, pela secreção do sapo verde aproximou o kampô do xamanismo. Uma tentativa, feita em 2003, de levar um velho rezador10 katukina para São Paulo, para aplicar kampô em clientes de uma clínica de terapias alternativas, fracassou, 26

Livro Conhecimento e Cultura.indd 26

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

mas dá uma ideia das transformações que o uso do kampô por não-índios acabou promovendo. Em março de 2005, um katukina, filho do rezador mencionado acima, apresentou uma palestra sobre o kampô no I Encontro Brasileiro de Xamanismo, realizado na cidade de São Paulo. No mês de abril, proferiu a mesma palestra em pelo menos quatro clínicas de terapias alternativas na capital paulistana e também na capital mineira. Após as palestras eram feitas aplicações nos interessados em conhecer o kampô. No material de divulgação das aplicações de kampô em São Paulo, consta que a secreção do sapo-verde atua “sobre a intuição, os sonhos, a terceira visão, o inconsciente e os bloqueios que impedem o fluxo de energia vital”. O vocabulário usado sugere claramente que o kampô passa por um processo de “xamanização” no meio urbano. Entre os Katukina, ao contrário do que ocorre entre outros grupos de língua pano que também usam a secreção do sapo-verde, como é o caso dos Yaminawa11, os especialistas xamânicos não são mais habilitados do que outras pessoas a aplicarem o kampô. Se eventualmente o aplicam, fazem-no muito mais por seus atributos morais, como foi exposto acima, do que por quaisquer credenciais xamânicas que ostentem. O exemplo das transformações recentes no uso da secreção da Phyllomedusa fica ainda mais ilustrativo quando se sabe que o rezador que iria a São Paulo fazer as aplicações é o mesmo homem, sobre o qual escrevi acima, que nunca tomou kampô e, portanto, nunca frequentou a floresta em busca de caça. Voluntária ou involuntariamente a valorização estrangeira do kampô acabou promovendo alguns jovens katukina à condição de especialistas na aplicação da secreção e xamanizando-a. Essas transformações recentes causam certa estranheza aos Katukina, pois, em alguma medida, subvertem a forma tradicional de aplicação. Primeiramente, porque o que chancela um homem a ser um aplicador de kampô é seu desempenho como caçador, não como mero manipulador da secreção do sapo-verde. Igualmente, o que chancela uma mulher como aplicadora é seu bom desempenho nas atividades que são próprias de seu gênero. A elevação de alguns rapazes ao posto de “especialistas em kampô” entre os brancos cria zonas de atritos entre os próprios katukina, pois o kampô passou a ter “valor de mercado”. Em segundo lugar, ainda da perspectiva nativa, causa estranheza que entre os brancos as aplicações de kampô estejam sendo feitas sem o devido jejum noturno e a qualquer hora. Em poucas palavras, de forma distanciada da prática que tem culturalmente constituída. À parte as incongruências e os descompassos entre a forma nativa e a forma neoxamânica de uso da secreção do kampô, a demanda urbana do kampô tem entre os Katukina outras repercussões, possivelmente tão surpreendentes quanto as já descritas.

27

Livro Conhecimento e Cultura.indd 27

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

Uma delas é que o uso do kampô, nos últimos anos, aumentou muitas vezes não só entre os brancos, mas entre os próprios Katukina. Em minhas últimas permanências em campo, muitas pessoas, jovens e adultos, exibiam em seus braços cicatrizes recentes das aplicações. Não que, em anos anteriores, o uso do kampô estivesse em decadência, mas era feito com mais discrição e com maior intervalo entre as aplicações. De certa forma, parece-me bastante possível que a cobiça dos brancos pelo kampô, à parte os problemas político-econômicos que encerra, elevou a autoestima dos Katukina. Agora eles exibem em seus corpos as queimaduras, nas quais foi depositada a secreção do kampô, como quem exibe parte de seu próprio conhecimento. A euforia chegou a ponto de um rapaz de aproximadamente 35 anos, que nunca havia tomado o kampô (o único que conheci), criar coragem e receber algumas aplicações do emético, apesar de seus fortes efeitos colaterais. O rapaz foi o único que conheci que nunca caçou, e nem pretende iniciar-se agora nesta atividade. Ele dispôs-se a receber o kampô para experimentar o bem-estar que as pessoas relatam após a aplicação e que tem tanto atraído os brancos. A curiosidade dos brancos acabou por despertar sua própria curiosidade. Não resta dúvida de que os Katukina elevaram o kampô à condição de “sinal diacrítico” – um marcador vistoso da identidade do grupo. Mais que uma substância capaz de livrar homens e mulheres de condições negativas, como o azar na caça ou indisposições e “fraquezas” diversas (entendidas como “preguiça”), o kampô tem facilitado aos Katukina a afirmação positiva de sua identidade. O aumento do uso do kampô entre os Katukina nos últimos anos torna-se ainda mais surpreendente quando se sabe que coincide com a diminuição da atividade de caça. Se kampô e caça sempre andaram juntos, como agora tomam rumos distintos? Os primeiros anos deste século, nos quais o kampô ganhou notoriedade nacional, coincidem com o início das obras de asfaltamento da BR364 no trecho que separa Rio Branco de Cruzeiro do Sul. A rodovia atravessa por dezoito quilômetros, de leste a oeste, a TI do rio Campinas. Como escrito no início, dos grupos indígenas da região, os Katukina foram seguramente o mais impactados pela pavimentação da rodovia, que teve início no final da década de 1990, e viu decrescer vertiginosamente seu estoque de caça. Hoje os homens se dispõem a receber aplicações de kampô para aliviarem indisposições diversas, para se sentirem vigorosos, não necessariamente para se embrenharem na mata à procura de caça. Foi preciso certa revisão das formas tradicionais do uso do kampô para adequá-las às condições atuais. As aplicações do kampô persistem, porém em menor número – agora, mais condizentes com suas atuais condições ecológicas. Qualquer pessoa admite que nem trezentas aplicações de kampô faria, nos dias de hoje, um homem ser bem-sucedido em suas expedições de caça como 28

Livro Conhecimento e Cultura.indd 28

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

foram outros caçadores em tempos passados. O kampô outrora ajudava-os a obter uma percepção mais fina do ambiente: a ouvir o mínimo ruído de animais deslocando-se na floresta, a farejá-los a distância, a enxergarem-nos camuflados entre arbustos e ramagens, além de permitir uma visão precisa para não errarem a mira de suas armas – como há 80 anos registrou o missionário francês citado no início. Para que tal percepção tão acurada dos mínimos sinais deixados pelos bichos possa, de fato, persistir é preciso antes que eles existam na mata, se eles não existem, há pouco a fazer. A possibilidade de os Katukina continuarem a fazer suas superaplicações de kampô para empreenderem caçadas só se dá na Terra Indígena do rio Gregório, distante de centros urbanos e apenas indiretamente afetada pelas obras de pavimentação da rodovia que corta toda a TI do rio Campinas. Como espero ter deixado claro, a observação anterior não encerra, contudo, qualquer nota pessimista sobre a persistência do uso do kampô entre os Katukina. As atuais condições ecológicas fizeram decrescer o número de “pontos” que cada pessoa se dispõe a receber de uma única vez, visto que os animais de caça rareiam atualmente na TI do rio Campinas. De todo modo, a existência da TI do rio Gregório atualmente assegura não só uma reserva de estoque faunístico, à qual os Katukina de fato recorrem em suas visitas de verão aos parentes, mas também, indiretamente, como uma reserva de uso do kampô como estimulante cinegético. Além disso, não há qualquer dúvida de que a valorização do kampô pelos brancos, moradores de cidades próximas ou de distantes centros urbanos, acabou por incrementar o uso feito pelos próprios Katukina, para não falar de outros grupos indígenas da região.12 O número de “pontos” feitos a cada aplicação decresceu, mas a frequência das aplicações aumentou. Agora os Katukina têm as marcas das aplicações em seus corpos também como “provas” da antiguidade e da continuidade do uso que fazem da secreção do sapo-verde, que querem cada vez mais como seu.

29

Livro Conhecimento e Cultura.indd 29

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

Notas Apresenta-se aqui uma versão ligeiramente modificada do artigo publicado, sob o mesmo título, na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, número 32, 2005, pp. 254-267. O título pretende dar conta tanto das diferentes formas de falar e grafar o nome da Phyllomedusa sp. quanto da diversidade dos usos que, contemporaneamente, se tem feito da sua secreção. A grafia como kampu corresponde ao modo kaxinawá de designar as espécies de Phyllomedusa. Aos Katukina corresponde a grafia kampô, com acento tônico na última sílaba. Nenhum dos dois grupos tem ainda padronizada sua grafia (um trabalho que os grupos indígenas começaram a fazer há pouco tempo com o apoio da Comissão Pró-Índio do Acre), de modo que podem estar grafando diferentemente um mesmo som. No que diz respeito à forma kambô, entendia-a, até pouco tempo atrás, como uma tentativa de aportuguesamento da palavra katukina por parte dos brancos que agora estão usando e divulgando a secreção do sapo-verde. Contudo, o antropólogo Terri Valle de Aquino (com. pessoal, 2005) ouviu de Raimundo Luiz (um velho yawanawá) que kambô seria a forma “antiga” como os Katukina designavam as espécies de Phyllomedusa, a palavra inclusive consta de uma antiga música katukina. Isso faz os fatos ainda mais interessantes, pois, neste caso, os brancos estariam retomando a forma “arcaica” como os Katukina designavam o sapo-verde. Agradeço – evidentemente sem responsabilizá-los pelos erros e imperfeições – a Bia Labate e Terri Valle de Aquino a leitura de uma versão anterior e a disponibilização de informações. 1 Iniciei minha pesquisa com os Katukina, das Terras Indígenas do rio Campinas e do rio Gregório, no Acre, em 1991 e, desde então, passei diversas temporadas em campo. 2 Uma evidência deste consórcio entre o kampô e as cobras peçonhentas seria o fato de que, ao contrário do que fazem com outros anfíbios, as cobras cospem o kampô, ao invés de engoli-lo. 3 Dada a fragilidade da legislação brasileira no que se refere à proteção dos conhecimentos tradicionais – como analisam Azevedo e Moreira (2005) –, optei por omitir detalhes técnicos da coleta da secreção do kampô. O que foi aqui registrado está amplamente difundido em outras publicações. 4 Os Katukina mencionam ainda duas outras formas de uso do kampô. Uma delas incluía aspirar a secreção cristalizada. Trituravam-na e aspiravam, como se fosse rapé –, mas sem misturá-la com tabaco. Os Katukina podiam também ingeri-la. Neste caso, o kampô era colocado dentro de um recipiente com água e agitado. Ele expelia sua secreção dentro d’água. Então era retirado dali e a secreção diluída em água era bebida. Atualmente, as duas formas de uso do kampô, que atendem exclusivamente a fins cinegéticos, foram abandonadas. Velhos katukina ainda vivos dizem que chegaram a cheirar a secreção do kampô, mas não a ingeriram. Esta última forma teria entrado em decadência há mais tempo. Os Yawanawá também usavam cheirar e beber da secreção do kampô, conforme Pérez Gil (1999: 93-4). 5 Para maiores informações sobre o início da difusão do uso do kampô em grandes centros urbanos, ver Lopes (2000) e Lima e Labate (2008). 6 Agradeço ao antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias a gentileza de ter me cedido seu arquivo sobre a presença do kampô na imprensa. 7 Este parágrafo resume de modo bastante breve os estudos farmacológicos feitos sobre as propriedades das peles das espécies do gênero Phyllomedusa e reproduz as informações contidas em Carneiro da Cunha (2005). Uma versão mais detalhada da história das pesquisas bioquímicas sobre a Phyllomedusa bicolor pode ser encontrada em outro artigo da mesma autora, ver Carneiro da Cunha (2009). 8 Faço referência aqui ao Projeto Kampô: integrando o uso tradicional da biodiversidade à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico, organizado pelo Ministério do Meio Ambiente atendendo à demanda de proteção de seus conhecimentos sobre a utilização do kampô encaminhada pelos Katukina. A realização do referido projeto interrompeu-se entre 2007 e 2008, em virtude, entre outras coisas, da falta de acordo com os cientistas. Sobre as repercussões do Projeto Kampô entre os Katukina ver Martins (2006) e Lima (2009). 30

Livro Conhecimento e Cultura.indd 30

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

Conforme consta na matéria intitulada “Cobiçado veneno” publicada no site “O Eco” em 03 de abril de 2005: http://arruda.rits.org.br/ . 10 Os Katukina diferenciam seus especialistas xamânicos: existem aqueles que eles traduzem como rezadores (shoitiya) e pajés (romeya). Para maiores detalhes sobre a atuação de ambos, ver Lima (2000). 11 Os Yaminawá recebem aplicações de kampô das mãos do koshuiti, cf. Calávia (1995). 12 Em 2005, fui informada, em Cruzeiro do Sul, de que outros grupos indígenas da família linguística pano que moram na região, como os Nuquini, os Poyanawá e os Arara, estavam retomando o uso do kampô que haviam abandonado há décadas. 9

31

Livro Conhecimento e Cultura.indd 31

26/4/2011 12:20:43

Kampu, Kampô, Kambô

Referências AQUINO, Terri & Marcelo P. IGLESIAS. 1994. Kaxinawá do rio Jordão. História, território, economia e desenvolvimento sustentado. Rio Branco, Comissão Pró-Índio do Acre. AZEVEDO, Cristina & Teresa MOREIRA. 2005. “A proteção dos conhecimentos tradicionais associados: desafios a enfrentar”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32: 44-61. BEZERRA, José Augusto. 2004. “A ciência do sapo”. Globo Rural, edição 228, outubro. CALÁVIA, Oscar. 1995. O nome e o tempo dos Yaminawá. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de São Paulo. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2005. “Des grenouilles et des hommes”. Télérama hors série, Les Indiens du Brésil, mars 2005, pp. 80-83. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify. pp. 311-373. ERIKSON, Philippe. 1996. La griffe des aïeux. Marquage du corps et démarquages ethniques chez les Matis d’Amazonie. Paris: CNRS/Peeters. LAGES, Amarílis. 2005. “Uso de veneno de rã deixa floresta e ganha adeptos nas metrópoles”. Folha de São Paulo, 12 de abril, página C3. LIMA, Edilene C. 2000. A pedra da serpente. Saber e classificação da natureza entre os katukina. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de São Paulo. LIMA, Edilene C. 2009. “Entre o mercado esotérico e os direitos de propriedade intelectual: o caso kampô”. In: J. Kleba & S. Kishi (orgs.), Dilemas do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais – direito, política e sociedade. Belo Horizonte: Editora Fórum. LIMA, Edilene C. & Beatriz C. LABATE. 2008. “A expansão urbana do kampô: notas etnográficas”. In: B. Labate, S. Goulart & M. Fiore (orgs.), Drogas: perspectivas em ciências humanas. Salvador: EDUFBA. LOPES, Leandro Altheman. 2000. Kambô, a medicina da floresta (experiência narrativa). Trabalho de conclusão de curso (Comunicação Social/Jornalismo e Editoração), ECA/USP. LOPES, Leandro Altheman. 2001. “Herança da Floresta”. Outras Palavras. Rio Branco, No 13. MARTINS, Homero Moro. 2006. Os Katukina e o Kampô: aspectos etnográficos da construção de um projeto de acesso a conhecimentos tradicionais. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília. MONTAGNER MELATTI, Delvair. 1985. O mundo dos espíritos: estudo etnográfico dos ritos de cura Marubo. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de Brasília. 32

Livro Conhecimento e Cultura.indd 32

26/4/2011 12:20:43

Edilene Coffaci de Lima

PÉREZ GIL, Laura. 1999. Pelos caminhos de Yuve: conhecimento, cura e poder no xamanismo yawanawá. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina. SOUZA, Moisés Barbosa et alii. �������������������������������������������� 2002. “Anfíbios”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela & Mauro ALMEIDA. Enciclopédia da Floresta. O alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo, Cia das Letras. pp. 601-614. TASTEVIN, Constantin. 1925. “Le fleuve Muru”. La Geographie., t. XLIII & XLIV:403422 & 14-35. VENTURA, Zuenir. 2003. Chico Mendes. Crime e castigo. São Paulo, Companhia das Letras.

33

Livro Conhecimento e Cultura.indd 33

26/4/2011 12:20:43

Livro Conhecimento e Cultura.indd 34

26/4/2011 12:20:43

A invenção jurídico-governamental do “Patrimônio Genético” e dos “CTA”: hibridismo, tradução e agência compósita

Diego Soares

Durante o século XX, com a institucionalização da ciência no Brasil, antropólogos, biólogos, farmacêuticos, bioquímicos e botânicos, entre outros, constituíram laços de reciprocidade (negativa ou positiva) com as populações locais da Amazônia. Dentro desse contexto, eles sempre tiveram acesso aos elementos que constituem a territorialidade dos povos indígenas e tradicionais: os seus “recursos naturais” (plantas, animais, paisagens etc.) e os saberes associados ao manejo nativo desses bens.Mais recentemente, com o questionamento das implicações éticas dessas relações, teve início um movimento de reconhecimento dos direitos intelectuais e territoriais das populações locais (levado a diante, inclusive, por muitos desses pesquisadores) que culminou no debate internacional sobre o valor dos “conhecimentos tradicionais associados” para a conservação da biodiversidade, tema que se inseriu numa agenda de debates sobre assuntos correlatos: oestatuto jurídico dos recursos genéticos, a repartição de benefícios e os direitos intelectuais. Esse debate culminou na promulgação da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), em 1992, acordo internacional que instituiu três princípios fundamentais que passaram a servir de referência internacional: a soberania dos Estados-Nações sobre os seus recursos genéticos; o princípio de preservação dos conhecimentos tradicionais associados ao manejo da biodiversidade1; e a repartição de benefícios em caso de acesso. Desde então, os países signatários têm buscado – cada um ao seu tempo e à sua maneira – colocar em prática esses princípios por meio da promulgação de legislações nacionais. A instituição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), em 2001, como a instância governamental responsável simultaneamente pela formulação e aplicação de diretrizes jurídico-governamentais que se referem a 35

Livro Conhecimento e Cultura.indd 35

26/4/2011 12:20:43

Hibridismo, tradução e agência compósita

esse tema2, tem afetado mais ou menos a vida tanto dos pesquisadores como das comunidades indígenas e tradicionais da Amazônia. Apesar do surgimento de redes e grupos de pesquisa voltados para o entendimento dos efeitos da regulamentação na vida dos povos indígenas e as suas formas de agenciamento, existem poucos estudos etnográficos sobre os cientistas e as instituições governamentais responsáveis pela tradução dos princípios da CDB e sua transformação em legislações nacionais. Sabemos muito pouco sobre a prática dos pesquisadores que atuam nos países signatários da CDB (como o Brasil) e a forma como as suas relações com as populações locais foram ou não afetadas3. Sabemos menos ainda sobre como vem ocorrendo a concepção desses dois novos objetos jurídico-governamentais –o “patrimônio genético” e os “conhecimentos tradicionais associados” (CTA) – no cotidiano dos órgãos governamentais. Neste ensaio, pretendo apresentar reflexõesinicias sobre uma etnografia realizada no CGEN, no ano de 2008. Os eventos que antecederam a instituição do CGEN já foram amplamente comentados na literatura especializada e não serão objetos de discussão neste texto4. Da mesma forma, não pretendo avaliar ou discutir se esse órgão deveria ou não existir ou como ele deveria ser, mas apresentar ao leitor uma descrição etnográfica do seu funcionamento e contribuir, desta forma, para um melhor entendimento da maneira como os princípios da CDB vêm sendo traduzidos e aplicados pelo governo brasileiro. Este estudo etnográfico se insere em uma reflexão mais ampla sobre as formas modernas de governamentalidade5. Pretendo descrever os elos mediadores que permitem a transposição do mundo “lá fora” para o mundo interno do Conselho, onde as diretrizes são concebidas e as autorizações concedidas. Veremos aqui que essa transposição envolve um deslocamento de sentidos permeado por práticas de tradução que objetivam a realidade de forma a conformá-la à lógica da governamentalidade, transformando uma multiplicidade de objetos – plantas, extratos, enzimas, saberes e práticas culturais – em objetos jurídico-governamentais: o “patrimônio genético” e os “conhecimentos tradicionais associados”. Nesse processo, como veremos, atuam diversos atores humanos e não-humanos em um movimento de transformação/translação por meio do qual a relação históricaentre pesquisadores brasileiros e comunidades locais vê-se reescrita em documentos que circulam no CGEN. Esse movimento permite que essa instituição possa agir à distância – da mesma forma que as Centrais de Cálculo mencionadas por Latour (2000) – ao fornecer os elementos necessários para a invenção jurídico-governamental da regulamentação e dos objetos que estão sendo regulamentados. Este ensaio foi escrito a partir da proposta de seguir as associações que nos levam de uma localidadepara outras localidades,tempos eagências. Essa atividade 36

Livro Conhecimento e Cultura.indd 36

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

pode tomar a forma de uma redequando a transferência de informações envolve certa parcela de transformação, o que ocorre quando abordamos os elos intermediários– sejam eles humanos ou não humanos – como mediadores. Essa perspectiva está diretamente relacionada a uma determinada forma de pensar o Estado, na qual este não surge como uma “coisa” – um objeto fixo e localizado (em termos institucionais ou geográficos) –, mas como um espaço heterogêneo marcado pelo encontro de técnicas, discursos e práticas que, na maioria das vezes, possuem uma relação tensa entre si. Conforme afirmou Aretxaga (2003), a ilusão mistificadora de um “centro de poder” chamado Estado deve ser descoberta para que as relações de poder e saber que estão na origem do exercício de governo nas sociedades modernas possam ser analisadas a partir de uma abordagem etnográfica. Assim, não estou interessado no Estado enquanto instituição, mas nas problemáticas governamentais que estão para além do Estado e nas formas de governamentalidade que são forjadas por uma rede de atores muito mais ampla e heterogênea (Rose e Miller 1992, 1995). Em um primeiro momento, vou descrever cenas que retratam situações que ocorrem no cotidiano do CGEN, acompanhando o trabalho realizado por uma diversidade de atores em diferentes espaços-tempos: uma reunião do plenário do Conselho; os eventos de divulgação do novo marco regulatório; a participação dos “especialistas” na aplicação e concepção dos instrumentos jurídicos; e a elaboração de um pedido de autorização por um pesquisador-usuário. Apesar das cenas retratarem uma multiplicidade de situações, elas estão interligadas em rede, fornecendo uma visão etnográfica de como a regulamentação vem sendo pensada e aplicada pelo governo brasileiro. Na conclusão, apresentarei uma discussão sobre ontologia que ainda pretendo desenvolver melhor no futuro, o que torna este texto um ponto de partida ainda em aberto.

O Plenário do CGEN Além de conceber as suas diretrizes, o CGEN precisa aplicá-las em casos concretos que são analisados nas plenárias. Essas reuniões costumam ocorrer uma vez por mês, na sede da instituição, em Brasília. Participam dessas reuniões os membros do Conselho6, a equipe técnica do Departamento de Patrimônio Genético e uma pequena plateia composta por pesquisadores, empresários e pessoas interessadas no tema. A nossa história tem início em uma dessas plenárias, mais precisamente, em uma reunião realizada em 2008. Entre os processos que estavam sendo avaliados nessa plenária, encontramos o nosso fio de Ariadne: um pedido de autorização de acesso ao “Patrimônio Genético” e ao “Conhecimento Tradicional Associado” para fins de bioprospecção 37

Livro Conhecimento e Cultura.indd 37

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

requerido por um pesquisador de uma universidade federal da região Norte. Na ocasião, a conselheira-relatora do processo, umapesquisadora da Embrapa, havia preparado a sua relatoria por escrito e fez circular esse documento entre seus colegas. Os membros do plenário também dispunham de um relatório – denominado “Nota Técnica” – resultado da tradução, feita pelo técnico responsável, de quatro pastas gigantescas com mais de duas mil páginas, na qual foi inscrita a tramitação do pedido de autorização. O kit de documentos também acompanhava resoluções, orientações técnicas, decretos, a Medida Provisória e uma cópia da CDB. Os conselheiros já haviam analisado essa documentação e feito algumas anotações. Todas aquelas “Notas”, sejam as suas próprias ou as que foram escritas por terceiros, representavam a sua referência principal para votar e deliberar sobre o pedido de acesso. Afinal, diferente do funcionário do DPG, dos integrantes do Comitê de Avaliação de Processos (CAP) e da Conselheira-Relatora, eles não tiveram acesso ao “processo” e foram obrigados a confiar nas traduções feitas por terceiros para tomar suas decisões. As suas anotações pessoais, por outro lado, faziam parte de mais um movimento de traduçãodos pontos ambíguos de toda aquela documentação. Conforme a apresentação oral da relatora e as notas técnicas e pareceres entregues aos conselheiros, o pedido de autorização era referente a uma pesquisa realizada por pesquisadores das áreas de farmácia, botânica e bioquímica, cujo objetivo principal era a produção de fitoterápicos a partir de plantas medicinais usadas por uma comunidade de ribeirinhos localizada na região do alto rio Amazonas. O projeto previa a realização de um levantamento etnofarmacológico, a coleta das plantas medicinais e a condução de testes farmacológicos em uma rede de laboratórios. O “Termo de Anuência Prévia” e os “Contratos de Repartição de Benefícios” firmados com o representante político da comunidade tinham sido anexados ao “processo” e os pareceres do “Comitê de Avaliação de Processos”, do técnico do DPG e da conselheira-relatora eram favoráveis à concessão da autorização. A votação foi realizada logo após a apresentação do parecer da relatora e o pedido foi aprovado por unanimidade. Aquele era o final de um longo trajeto, no qual diversos elementos humanos e não-humanos atuaram como mediadoresde uma decisão do Conselho, publicada no dia seguinte no Diário Oficial da União, na forma de Deliberação, documento assinado pelo Ministro do Meio Ambiente. Nos dias seguintes, uma autorização seria enviada para o pesquisador requerente. Desta forma, dava-se fim a um longo processo de tramitação do pedido de autorização no DPG: uma longa trajetória de dois anos, tendo em vista que o caso foi considerado “exemplar” por ser o primeiro pedido de autorização de acesso para fins de “bioprospecção” envolvendo “conhecimentos tradicionais 38

Livro Conhecimento e Cultura.indd 38

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

associados”. Conforme me explicou mais tarde uma funcionária do DPG, aquele “caso” tinha sido usado como referência para pensar controvérsias que ainda não haviam atingido um consenso no Conselho. Da mesma forma, os encaminhamentos tomados durante a tramitação desse processo serviram de referência na análise de outros pedidos semelhantes. *** Neste ensaio, busco analisar o CGEN a partir da sua materialidade prática, com ênfase no papel desempenhado pelos documentos e outros objetos que perpassam todas essas redes (plantas, substâncias, enzimas etc.), elementos não-humanos que geralmente são percebidos como simples coadjuvantes. Ao analisar essa cena, que retrata uma reunião do Conselho, percebemos a importância dos textos e documentos na constituição do sujeito-conselheiro: esses materiais fazem parte da performance burocráticaque os constituem enquanto sujeitos de um determinado tipo. Da mesma forma que o homo-economicus existe de fato, mas não como um agente não-histórico e, sim, como o resultado de um processo de configuração8, podemos dizer que os atores governamentais não são entidades abstratas, mas subjetividades construídas em rede. Isso significa que competênciaou capacidade são qualidades adquiridas por meio da incorporação de plug-ins que nos permitem ver e ter uma opinião sobre determinado assunto9. Sem os instrumentos de coleta, processamento, cálculo e inscrição das informações, os atores são incapazes de planejar e decidir sobre fenômenos que estão distantes do lugar onde as suas decisões são tomadas e qualquer ação organizada seria impossível (Callon 2002: 191). Um aspecto importante que caracteriza o papel desempenhado pelos conselheiros e pelos documentos é que eles são, simultaneamente, apenas um elo numa rede mais ampla de coisas e pessoas, como também a expressão da rede em ação, em um tempo-espaço determinado. 7

Oficinas e Eventos de Divulgação da Legislação A plateia, composta por 51 representantes de comunidades tradicionais e indígenas provenientes de 16 estados do Brasil, aguardava em silêncio o início de uma peça de teatro encenada por funcionários do DPG. O palco improvisado no salão principal do Centro de Formação Vicente Canhas, instância do Conselho Indigenista Missionário, não dispunha de qualquer recurso de cenografia, além de quadros retratando eventos históricos do Movimento Indígena. Os atores improvisados também não dispunham de qualquer figurino, apesar de contarem com um diretor especialista em “teatro do oprimido”. 39

Livro Conhecimento e Cultura.indd 39

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

A primeira cena da peça retratou a conversa entre um pesquisador do setor de biotecnologia com um diretor de uma grande multinacional. O empresário, num tom autoritário, mandou seu funcionário ir até a comunidade e percorrer suas florestas em busca de plantas medicinais. O pesquisador aceitou as ordens sem questionamento e se despediu. Na sua saída, o empresário esbravejou que ele precisava ter um retorno imediato dos recursos investidos na expedição científica. A segunda cena retratou o mesmo pesquisador percorrendo florestas imaginárias. Ele procurava por plantas medicinais e chegou a recolher algumas amostras, que foram etiquetadas e armazenadas conforme os procedimentos de coleta botânica, para depois serem transportadas até o seu laboratório. Chegando lá, ele conduziu inúmeros testes de atividade biológica com o auxílio de poderosas máquinas, passou certo tempo tentando evidenciar a composição bioquímica das espécies coletadas, mas sem chegar ao resultado esperado. “Alguns meses depois”, conforme informou o narrador da história, o nosso personagem-pesquisador contou para seu chefeque, infelizmente, nenhuma substância nova havia sido encontrada. O empresário gritou novamente que muito dinheiro tinha sido investido na expedição, explicou ao seu subordinado que a sua empresa não poderia investir milhões em pesquisas sem chegar a qualquer resultado e concluiu dizendo que eles precisavam descobrir algo que pudesse ser traduzido em patentes e produtos. O personagem-pesquisador e seu chefe saíram de cena. Enquanto isso, na comunidade, conforme apresentou o narrador da história, Dona Maria mandou seu filho ir até a casa de Anastácia pedir para ela algum remédio para curar a doença que afligia seu neto. Dois funcionários do DPG entraram em cena. Um deles desempenhava o papel da “Comadre Anastácia”, conhecedora dos remédios do mato, enquanto o outro lhe relatava a doença do sobrinho, pedindo informações sobre plantas que poderiam ser usadas para curar a sua moléstia. Anastácia lhe repassou algumas folhas de uma erva que ela cultivava em seu canteiro de plantas medicinais. Os atores saíram de cena e o narrador anunciou que a mãe do menino preparou um chá com as folhas e em poucos dias ele já estava curado. A cena seguinte teve início com o pesquisador percorrendo trilhas abertas no interior da mata. Em determinado momento, ele percebeu um morador da comunidade mais próxima coletando algumas plantas e se aproximou pedindo informações. Apresentou-se e contou uma longa história sobre o seu trabalho de pesquisa. O outrohomem expressou a sua perplexidade diante daquela linguagem esquisita, colocou as plantas que trazia nas mãos numa sacola, virou as costas e saiu andando sem dar a menor satisfação. O pesquisador insistiu, 40

Livro Conhecimento e Cultura.indd 40

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

explicando que o conhecimento da comunidade era fundamental para encontrar medicamentos que poderiam salvar milhões de vidas. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, o outro homem falou que não sabia que as plantas da floresta tinham “dono” e que estava levando aquela planta para sua esposa, pois um dos seus filhos estava com dor de estômago. O pesquisador insistiu novamente, explicando que a comunidade teria um retorno econômico quando o novo medicamento fosse introduzido no mercado ou, caso ele preferisse, havia uma verba reservada para a compra das plantas e para o pagamento de um “mateiro” que pudesse lhe acompanhar. Um pouco assustado com a situação (será que ele estava fazendo algo errado?), o outro homem se indagava sobre que “conhecimento” era esse que ele tinha e que parecia interessar tanto aquele pesquisador. Os dois homens saíram caminhando pela floresta e a peça acabou com a voz oculta do narrador: “O que você faria numa situação como esta?”. A plateia aplaudiu. A diretora técnica do DPG entrou em cena e abriu a palavra aos participantes. Seguiu-se um breve silêncio. Como ninguém se manifestou, a diretora perguntou se alguém já havia vivenciado uma situação semelhante. O cacique de uma comunidade indígena Kaingang pediu a palavra e explicou que, na sua aldeia, as coisas não funcionavam assim, pois somente os kujá (xamã) são conhecedores dos venh kagta (remédios do mato) e responsáveis por seu uso em rituais e curas. Uma senhora negra, proveniente de uma comunidade quilombola do Maranhão, afirmou que já havia recebido a visita de muitos pesquisadores que pretendiam registrar as plantas conhecidas e usadas na comunidade e finalizou observando que, onde mora, é muito comum o empréstimo de plantas para vizinhos e parentes. Seguiram-se outras falas de participantes indígenas e de comunidades tradicionais, que relataram histórias de pesquisadores que passaram por suas comunidades. Na medida em que as pessoas relatavam suas histórias, ficou evidente que a encenação não havia contemplado a diversidade de situações vivenciadas pelos participantes da oficina. O evento teve continuação à tarde, com a organização de Grupos de Trabalho para discutir e propor modificações na minuta da nova legislação. A diretora técnica do DPG propôs que os grupos fossem organizados aleatoriamente, o que foi explicitamente refutado pelos participantes indígenas. Apesar de reconhecerem as comunidades quilombolas e tradicionais como parceiros importantes na reivindicação de direitos, eles afirmaram que existiam questões mais específicas relacionadas à dinâmica dos saberes indígenas. Os técnicos do DPG ficaram decepcionados, pois defendiam a ideia de que grupos de trabalho mistos seriam mais eficientes na construção de um sistema comum de repartição de benefícios e de condução de anuência prévia em caso de acesso aos “conhecimentos tradicionais associados”. Os participantes indígenas, no entanto, insistiram na ideia 41

Livro Conhecimento e Cultura.indd 41

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

e acabaram se reunindo em separado dos demais. Desta forma, foram formados dois GTs compostos por participantes de comunidades quilombolas e tradicionais e um terceiro composto pelos participantes indígenas. O acompanhamento dos GTs revelou que o chamado processo de “regulamentação” implicava uma série de desentendimentos linguísticos que, naquela ocasião, emergiram, por um lado, na imposição de uma linguagem jurídica de difícil entendimento para os participantes do evento e, por outro, na insistência dos representantes das comunidades em discutir questões mais amplas – as quais, segundo os representantes do governo - “não faziam parte da discussão”. As atividades desenvolvidas durante a oficina foram permeadas por uma luta constante em torno das palavras usadas para descrever as coisas incluídas nessa imensa biblioteca chamada sociobiodiversidade: neste caso, o jogo de nomeação simbólica dos novos objetos concebidos pelo CGEN – o “patrimônio genético” e os “CTA” – apontava para uma pedagogia oculta de difícil entendimento. O mais impressionante, talvez, é que a diferença cultural e linguística foi anulada, durante a oficina, por um “tempo governamental” que exigia dos protagonistas da história a anulação da complexidade da tradução em detrimento da razão de Estado: nada de ontologia, apenas imposições epistemológicas. *** Há milhares de quilômetros dali, uma funcionária do DPG deu início ao seu trabalho de divulgação da legislação de acesso em alguma instituição de ensino e pesquisa do Norte do país. A técnica estava em pânico diante de uma plateia de cientistas que, apesar de a terem convidado para participar do seu congresso, não viam a sua presença no evento com bons olhos. Ela havia preparado uma apresentação em PowerPoint e deu início ao seu trabalho de traduçãode noções jurídicas e governamentais para cientistas que viviam em um mundo povoado por substâncias, enzimas e entidades microscópicas. Não somente a técnica não conhecia todos os pormenores do marco regulatório, motivo pelo qual ela mantinha consigo uma espécie de apostila com dezenas de resoluções e deliberações, como também entendia muito pouco da linguagem dos cientistas. A solução para tanto despreparo profissional de alguém que tinha ingressado há pouco tempo neste mundo de documentos foi seguir religiosamente a história retratada na sua apresentação, composta por uma série de eventos descritos em ordem cronológica: a assinatura da CDB (1992); a discussão legislativa (1993-2001); o evento envolvendo a assinatura de um contrato com a Novartis, multinacional do setor farmacêutico (2001); a edição da MP e a criação do CGEN (2001); e a lenta formulação e reformulação dos dispositivos jurídicos do 42

Livro Conhecimento e Cultura.indd 42

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

Conselho (2001-2008). Essa história já havia sido repetida muitas vezes a ponto de se tornar uma espécie de mito de origem da “regulamentação” e auxiliava-a a traduzir em poucas palavras eventos que ocorreram antes e que, de certa forma, explicavam a sua presença naquele congresso. Assim que finalizou a sua fala, a funcionária teve que responder a uma série de questionamentos sobre a validade da legislação e do próprio Conselho. Ao mesmo tempo em que buscava defender o seu trabalho e a atuação dos seus colegas do DPG, sabia, pessoalmente, das contradições existentes na legislação e compreendia a recepção hostil doscientistas. Enquanto ouvia o relato de pesquisadores sobre situações absurdas vivenciadas por eles na relação com o que chamavam “burocracia governamental”, a funcionária mal conseguia esperar o momento de voltar para Brasília. Afinal, o que ela poderia fazer para responder ou mudar a situação? No seu mundo, que também é o mundo do CGEN, os técnicos deveriam atuar como técnicos, aplicando as diretrizes sem questioná-las. Por outro lado, esses personagens ocultos da máquina estatal continuavam tendo que dar conta de demandas políticas, inquietações e divergências éticas além de sua competência. *** Os eventos descritos na segunda cena retratam uma parte importante do trabalho desenvolvido pelos técnicos do DPG: a divulgação da legislação de acesso nos diferentes setores da sociedade civil que, de alguma forma, foram afetadospelo novo marco regulatório. Esse trabalho é destinado tanto para as comunidades tradicionais e indígenas como para os cientistas e instituições empresariais envolvidas de alguma forma em atividades de acesso ao “patrimônio genético” e/ou aos “CTA”. No caso das comunidades, a divulgação vem sendo feita através de “oficinas de qualificação”, sendo que, entre 2005 e 2008, foram realizadas 37 oficinas em diferentes regiões do Brasil, contando com a participação de cerca de 1500 pessoas, todos eles representantesde comunidades indígenas e tradicionais. No caso dos cientistas, os técnicos do DPG participaram como palestrantes, entre 2003 e 2008, em 219 eventos promovidos por ONGs e instituições de ensino e pesquisa. A realização do trabalho de divulgação da legislaçãotem sido uma ação constante do CGEN desde sua criação, acompanhando o crescimento do número de autorizações concedidas por essa instituição. Isso revela que esse órgão governamental não só depende da “participação” tanto das comunidades quanto dos cientistas para ter eficácia, como também revela que essa participação implica a capacidade do CGEN detraduziros objetos do seu marco regulatório – o “Patrimônio Genético” e 43

Livro Conhecimento e Cultura.indd 43

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

o “CTA” – para um público composto por pessoas que falam outras línguas e vivem em mundos diferentes. Assim, existem três pontos que eu gostaria de observar sobre os eventos descritos nos parágrafos anteriores. O primeiro é que os documentos não são os únicos instrumentos utilizados para objetivar eventos, coisas e pessoas. No caso das oficinas de consulta pública que acompanhei, a peça de teatro ajudou os técnicos do DPG a expressar um evento fictício que, de certa forma, representa uma espécie de mito de origem da regulamentação do acesso: a biopirataria. Apesar de regras e diretrizes serem elaboradas para regulamentar as situações de acesso, elas são concebidas tendo como referência situações hipotéticas. A peça foi construída a partir de uma generalização do que seria a dinâmica de produção e circulação de saberes nas comunidades, tendo como referência um modelo tão abstrato quanto a noção de CTA. A questão é que o processo governamental trabalha com a necessidade de produção de regras e diretrizes universais, o que só é possível com a redução dessa complexidade a partir de convenções usadas na construção de modelos gerais como cronologias e peças de teatro. O segundo ponto que eu gostaria de chamar a atenção é a questão da linguagem. Estamos diante de uma situação em que a diferença linguística se constituino principal obstáculo para a comunicação entre mundos tão distantes e diferenciados. As categorias jurídicas utilizadas na elaboração das leis e diretrizes são de difícil entendimento tanto para os povos indígenas e tradicionais como para os cientistas, o que nos remete, novamente, ao movimento duplo de tradução das noções jurídicaspara as noções nativase vice-versa. Isso nos conduz a uma abordagem ontológica dos fenômenos descritos tanto na legislação como nos espaços-tempos em que os projetos estão sendo conduzidos. O terceiro ponto que eu gostaria de expor é que estamos diante da emergência de um novo contexto histórico com impacto tanto na vida dos cientistas como na vida dos povos indígenas e tradicionais. Trata-se de um evento crítico(Das 1995)permeado pelo surgimento de novos coletivos e pela reformulação da formacomo a relação entre esses povos e os pesquisadores é pensada tanto pelos primeiros como pelos últimos. Não podemos projetar a ideia de que a instituição de formas de repartição de benefícios está ocorrendo em um espaço vazio e sem precedentes, pois isso implicaria desconsiderar a existência de práticas anteriores de reciprocidade (negativa e positiva) entre pesquisadores e populações locais. A questão, portanto, consiste em pensar como esse contexto permite uma reformulação dessas práticas a partir de um processo de assimilação-transformação de regimes de objetivação-subjetivação tanto dos povos indígenas e tradicionais como dos pesquisadores. Este ensaio foi escrito a partir do pressuposto simétrico 44

Livro Conhecimento e Cultura.indd 44

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

que a melhor forma de fazer isso é a partir de uma abordagem etnográfica tanto dos sistemas nativos10 como das instituições responsáveis por conceber e aplicar o novo marco regulatório.

As Câmaras Temáticas e o trabalho de resolução das controvérsias Os procedimentos para o trâmite de solicitações de acesso aos “Conhecimentos Tradicionais Associados” (CTA) e as diretrizes para a obtenção do “Termo de Anuência Prévia” começaram a ser discutidas nas Câmaras Temáticas11 no final do primeiro semestre de 2003. Foi nessa época que a primeira versão das minutas que deram origem à Deliberação e à Resolução que regulamentaram estas questões foi discutida pela primeira vez. Essas questões foram reescritas diversas vezes, tendo como cenário acaloradas discussões entre os participantes das Câmaras e “especialistas” que foram convidados para esclarecer conceitos fundamentais para a elaboração dessas diretrizes. Mas a elaboração desses documentos teve início, ainda em 2002, logo após a publicação da Deliberação do Conselho que deu origem às Câmaras Temáticas instituídas com o objetivo de estabelecer as diretrizes e os procedimentos que deveriam orientar a concessão de autorizações pelo CGEN. Uma dessas reuniões contou com a participação de um antropólogo, que foi convidado a dar uma palestra sobre conhecimentos tradicionais e repartição de benefícios. O evento contou com a presença de seis conselheiros, representantes da sociedade civil organizada, uma “especialista” convidada pelo Ibama e membros do DPG. Após as apresentações iniciais, o palestrante deu início à sua fala apontando para a imensa diversidade sociocultural existente no Brasil e o histórico de desvalorização, por parte da sociedade nacional, dessa diversidade. Por muito tempo, segundo o antropólogo, as sociedades ditas “tradicionais” foram percebidas como um sinal de “atraso” frente ao desenvolvimento tecnológico da civilização ocidental: o desprezo pelos saberes e práticas culturais desses povos acompanhou a valorização da tecnologia e da ciência como um passaporte para o ingresso do Brasil no chamado primeiro mundo. Nesse contexto, falar em termos de repartição de benefícios e anuência prévia seria considerado um absurdo, tendo em vista a mentalidade e as práticas governamentais predominantes na época. O surgimento das ciências sociais, já no final do século XIX, assim como o desenvolvimento desta disciplina, teria contribuído para uma lenta transformação da forma de se pensar e perceber a relação com as chamadas “sociedades primitivas”. Dentro deste contexto, já no final do século XX, teria surgido uma nova versão do antigo romantismo do “bom selvagem”, agora influenciada por noções da ecologia e expressa por meio do pressuposto de que os índios seriam 45

Livro Conhecimento e Cultura.indd 45

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

detentores de modelos de relacionamento harmônico com a natureza. Esse movimento de valorização dos saberes indígenas e tradicionais acompanhou a emergência, no cenário internacional, de noções como “biodiversidade”, “desenvolvimento sustentável” e “CTA”. Foi somente a partir deste novo contexto histórico que o governo brasileiro passou a defender formas de repartição de benefícios com essas populações e seus saberes e práticas ambientais passaram a ser valorizados, pois podiam fornecer subsídios para a transformação das nossas florestas tropicais em um poderoso capital econômico. Por último, o convidado mencionou os impasses que acompanhariam toda e qualquer tentativa de instituição de um sistema de proteção da propriedade intelectual desses povos. Ele explicou que qualquer sistema que viesse a ser colocado em prática pelo governo brasileiro teria que reconhecer a diferença social e culturalcomo ponto de partida, buscando pensar os direitos dessas populações a partir das suas próprias noções de direito e política. Essa afirmação não foi bem recebida pelos advogados presentes na reunião. Afinal, segundo eles, uma característica fundamental do direito ocidental moderno consiste em conceber regras e diretrizes que possam ser aplicadas em todo território nacional, independente das diferenças culturais e para além do direito costumeiro dos povos indígenas e tradicionais. Os próximos meses foram de intensa discussão nas Câmaras Temáticas. Foram convidados especialistas de outras áreas – como direito, economia e ecologia – para auxiliar no esclarecimento de noções complexas que permeavam as discussões em torno de diretrizes a serem inscritas em deliberações e resoluções. Esses documentos seriam utilizados mais tarde por técnicos do DPG, membros do Comitê de Avaliação de Processos e pelos próprios conselheiros para decidir sobre a concessão ou não de autorizações de acesso. Esses documentos foram elaborados por um coletivo diversificado de atores e a partir de um amplo processo de traduçãode conceitos de uma área do conhecimento para outra. Ao mesmo tempo em que eles foram elaborados por homens de carne e osso, a ação de composição também incorporou noções e princípios definidos em outros documentos, utilizados como referência no ato de escritura. Conforme veremos mais adiante, essa circularidade entre documentos e pessoas está na origem do processo de invenção jurídico-governamental do “patrimônio genético” e dos “conhecimentos tradicionais associados”. *** Ao descrever esta cena, gostaria de apontar para o papel desempenhado pelos especialistas nas câmaras temáticas e a sua influência na construção e 46

Livro Conhecimento e Cultura.indd 46

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

reformulação dos objetos jurídico-governamentais formatados no CGEN: o “patrimônio genético” e os “CTA”. Como esses objetos pretendem ser uma tradução de uma multiplicidade de fenômenos científicos, a sua composição envolve uma apropriação governamental de conceitos e noções introduzidos no Conselho pelos especialistas. Ao mesmo tempo, essa influência é mediada pelos técnicos do DPG, que traduzem essas noções a partir da sua aplicação em problemáticas específicas. Conforme relatou a coordenadora das Câmaras Temáticas, são os técnicos que precisam construir uma “ponte” entre as noções expostas pelos especialistas e as problemáticas internas do DPG, pois os cientistas convidados falam a partir das problemáticas de suas disciplinas e utilizam uma linguagem especializada que, em maior ou menor medida, precisa ser traduzida para a linguagem jurídica. Essa mediação entre o conhecimento científico e os saberes e práticas governamentais envolve, necessariamente, certo grau de tradução/transformação de conceitos e problemáticas científicas para o campo governamental. A maior parte das controvérsias e conflitos que perpassam as decisões do CGEN – entre as forças socioambientalistas e desenvolvimentistas – está relacionada a esse processo de tradução e mediação que envolve os usos do discurso científico (ou técnico) para legitimar argumentos políticos.

Comitê de Avaliação de Processos (CAP) Após um tempo frequentando os bastidores do CGEN, fui convidado pelos técnicos do DPG para participar do CAP12como especialista. Ao chegar neste órgão governamental, fui conduzido até uma sala reservada para as reuniões do Comitê, onde outro especialista já estava debruçado sobre um processo com mais de duas mil páginas. Além de uma cópia do volumoso processo, a técnica me entregou alguns documentos que eu deveria utilizar como referência: resoluções, deliberações e cópias do Decreto nº 3.945, que versa sobre a composição e as normas de funcionamento do Conselho, e da Medida Provisória nº 2.186-16. Ela também me passou um formulário com um conjunto de questões que eu deveria preencher, com uma parte reservada para a emissão do meu parecer final. Antes de deixar a sala, a funcionária explicou que esse pedido tinha tramitado no DPG durante dois anos e já estava pronto para ser aprovado no Conselho, deixando comigo uma cópia da sua Nota Técnica, que seria encaminhada posteriormente para a reunião do CGEN junto com os pareceres do Comitê. Comecei a ler o longo processo, composto por uma diversidade de documentos: formulários do DPG; o currículo dos pesquisadores; o projeto de pesquisa; um termo de anuência prévia acompanhado de um relatório explicitando o seu processo de obtenção; contratos de repartição de benefícios firmados entre a 47

Livro Conhecimento e Cultura.indd 47

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

universidade e representantes de uma pequena comunidade tradicional localizada no alto rio Amazonas; uma série de e-mails trocados entre a técnica e o pesquisador proponente; e um laudo antropológico. Em um primeiro momento, fiquei bastante perplexo em ter que decidir baseado naquela documentação. Um pouco sem jeito, comentei com meu colega ao lado que era difícil ter que decidir sobre eventos complexos envolvendo perspectivas tão diferenciadas sobre acontecimentos que ocorreram a milhares de quilômetros de onde estávamos naquele momento. O especialista da área do direito abriu um pequeno sorriso e perguntou se aquela era a primeira vez que eu participava do CAP. Respondi que sim. Ele explicou que aquelas duas mil páginas de documentos era tudo que tínhamos a nossa disposição e, enfim, eu teria que acreditar no que estava escrito ali. Por último, ele mencionou que costumava usar o “bom senso” e a experiência adquirida durante décadas de pesquisa na sua área de conhecimento. Pensei comigo mesmo que o que eu havia apreendido de antropologia me levaria justamente em outra direção: ao campo, onde poderia observar o que estava acontecendo e falar com as pessoas de carne e osso. Continuei navegando o mar de documentos que tinha à minha disposição, tentando reunir subsídios que pudessem me servir de alguma orientação. Quanto mais eu lia, maior era o número de dúvidas que surgiam: será que o representante que assinou o TAP consultou o restante da comunidade? Será que posso considerá-lo um representante legítimo? Em pouco tempo já estava me perguntando sobre a ata de eleição do presidente da comunidade e ensaiei um movimento para escrever essas observações no formulário do DPG, mas logo percebi o absurdo que estava fazendo: afinal, eu estava exigindo um novo documento para atestar a veracidade de outro. Para onde isso me levaria? Confesso que fiquei surpreso quando meu colega do Comitê guardou toda a documentação e se despediu fazendo o seguinte comentário: “meu amigo, o mundo do CGEN é o mundo dos documentos que chegam até ele. Se você não entender isso, vai acabar enlouquecendo”. Naquele dia, deixei o DPG entendendo melhor o funcionamento daquela complexa instituição. Da mesma forma que ocorre em laboratórios de pesquisa, o funcionamento do CGEN é extremamente dependente de instrumentos que permitem deslocar o mundo lá fora de uma forma que ele possa ser analisado à distância, em salas climatizadas de uma repartição pública do Governo Federal. Mas, para que essa tradução ocorra com sucesso, os atores precisam crer na eficácia descritiva dos documentos e não se perguntar – conforme passei a fazer a partir desse momento – sobre o mundo de coisas e pessoas que ficou de fora. *** 48

Livro Conhecimento e Cultura.indd 48

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

Ao mesmo tempo em que os textos e documentosque compõem o processo ou pedido de autorização enviado ao CGEN são o efeito de uma redução da complexidade do real, eles também permitem transportar o mundo lá fora para o espaço onde as diretrizes são pensadas e aplicadas na prática. Esse movimento envolve uma série de ações de tradução-transformação do mundo em móveis imutáveis e combináveis (Latour 1987: 362; 2001: 120; 2005: 223), o que ocorre através da suspensão de todo um contexto que ficou de fora. O chamado processo é, na realidade, uma forma composta por um conjunto heterogêneo de textos que permite que as informações necessárias para a tomada de decisão cheguem até o Conselho e possam ser analisadas pelos diferentes atores que atuam nesse espaço institucional, mas faz isso a partir da exclusão de tudo aquilo que não se enquadra ou é enquadrado. Com isso, informações produzidas em diferentes espaços-tempos se tornam contemporâneas entre si, facilitando a sua recombinação e utilização, mas isso é feito em detrimento de tudo que está aquém ou além dos limites do formulário.

Ingressando com um Pedido de Autorização no CGEN Em um pequeno laboratório de farmacologia de uma universidade localizada na Amazônia Brasileira, no início de 2006, um professor terminou de fornecer as últimas orientações para pesquisadores que conduziam testes de atividade biológica com plantas coletadas em uma comunidade ribeirinha. Após verificar os resultados inscritos numa tabela elaborada a partir dos dados gerados pelo espectrofotômetro, o professor falou para seus alunos o que fazer para melhorar seus resultados e depois foi até a sua sala. Ao chegar lá, ligou seu computador, entrou no site do CGEN e baixou um conjunto de diretrizes institucionais que tinham sido indicadas pela técnica do DPG: formulários, resoluções, deliberações, orientações técnicas e decretos. Ele pensou consigo mesmo que, diante de todo aquele jargão jurídico, o melhor a fazer era procurar logo um advogado. Afinal, ele entendia de bioquímica, sabia manipular enzimas, encontrar novas substâncias, coletar plantas, enfim, todos os conhecimentos necessários para conduzir pesquisas na área de fitoterápicos, mas tinha dificuldade em entender todos aqueles conceitos jurídicos incorporados na legislação. A Universidade em que ele trabalhava, no entanto, não dispunha de uma assessoria jurídica que pudesse traduzir toda aquela papelada e ajudá-lo a entrar com o pedido de autorização. O pesquisador lembrou a época, não muito distante, em que nada disso era necessário, quando a negociação para a coleta de plantas e conhecimentos era feita diretamente com os ribeirinhos. Entretanto, após assistir a um workshop proferido por uma técnica do CGEN, 49

Livro Conhecimento e Cultura.indd 49

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

achou melhor se adaptar à nova legislação. A única solução era estudar toda aquela documentação nas próximas semanas e tentar conduzir ele mesmo os procedimentos burocráticos. O pedido de autorização só foi enviado ao CGEN dois meses depois, após inúmeras reformulações do pedido inicial, processo que ocorreu a partir de uma troca de e-mails com o técnico responsável pela tramitação do “processo” no DPG. O primeiro formulário enviado ao CGEN era referente à pesquisa científica e teve que ser alterado para o formulário para atividades de bioprospecção. O Termo de Anuência Prévia (TAP) também teve que ser refeito tendo em vista as diretrizes da Resolução nº 06. E, para piorar ainda mais a situação, quando ele achava que já estava tudo encaminhado, recebeu um comunicado do DPG avisando que ainda faltavam três coisas importantes: as escrituras dos terrenos onde as coletas seriam realizadas; os dois contratos de repartição de benefícios (um com a União e o outro com a comunidade provedora de CTA); e um laudo antropológico atestando que a anuência prévia foi realizada conforme o que estabelece a legislação. Com as novas requisições apresentadas pelo técnico do DPG, o pedido de autorização do nosso pesquisador foi, aos poucos, transformando-se numa verdadeira epopeia. O primeiro impasse é que as terras ocupadas pela comunidade não eram escrituradas, algo muito comum na Amazônia. Apesar das pessoas viverem lá há quase um século, a sua situação fundiária nunca foi regularizada. Outro problema é que os únicos antropólogos existentes em um raio de mil quilômetros eram aqueles que trabalhavam na própria instituição do pesquisador. As diretrizes do CGEN eram claras sobre esse ponto: o laudo precisava ser realizado por uma instituição independente. Por último, havia a questão dos contratos, afinal, como estabelecer critérios de repartição de benefícios se as atividades de bioprospecção ainda não haviam sido realizadas, pois a coleta das plantas só poderia ocorrer após a autorização do Conselho. Todos esses obstáculos levaram o professor a pedir mais 120 dias de prazo para o DPG. Finalmente, após um mês de procura, o requerente conseguiu uma ONG para realizar o laudo, mas ainda teve que negociar com o CNPq modificações no orçamento enviado para essa instituição. O problema é que o edital não previa a realização de laudos antropológicos e os recursos levaram algumas semanas para serem liberados. Enquanto isso, o professor se dedicou à elaboração dos contratos e tentou resolver o impasse das terras. Em agosto de 2007, o pesquisador teve que pedir um novo prazo para o DPG, pois o Laudo indicou que a anuência não foi realizada segundo as diretrizes do CGEN e uma nova expedição para a comunidade teve que ser programada. A epopeia do nosso pesquisador continuou por mais alguns meses. A situação fundiária das terras onde as plantas seriam coletadas era completamente irregular 50

Livro Conhecimento e Cultura.indd 50

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

e de difícil solução. A situação se agravou bastante quando a declaração do Incra não foi aceita pela técnica do DPG, pois, conforme as diretrizes da resolução do CGEN, esses documentos eram insuficientes para atestar a posse das terras pela comunidade. Essa resposta negativa acabou gerando uma mensagem longa onde ele demonstrou toda a sua indignação e ressentimento pelo que estava acontecendo, afirmando, inclusive, que ele achava um absurdo que um pesquisador de origem “cabocla”, filiado a uma universidade pública brasileira, tivesse tanta dificuldade em realizar pesquisas na sua própria região, enquanto biopiratas cruzavam as fronteiras nacionais carregando consigo todo o nosso “patrimônio genético”. A técnica do DPG respondeu que entendia perfeitamente o seu “desabafo”, mas reiterou que estava apenas seguindo normas estabelecidas pelo Conselho e pediu para que o requerente não levasse as suas afirmativas para o lado pessoal. A solução para o impasse exigiu do pesquisador novos ajustes. Como havia dois membros da comunidade que tinham a escritura de uma pequena parcela do seu sítio, o jeito foi enviar essas escrituras com a observação de que as plantas seriam coletadas apenas nessas áreas. Com essa solução, finalmente, o seu processo, que nessa altura já tinha quase duas mil páginas, foi enviado para o CAP e, depois, para votação no Conselho. *** A última cena descrita neste ensaio expressa de forma clara que todo pedido de autorização envolve um movimento de “enquadramento” do real de maneira a fazer com que se encaixe nos limites impostos pelos formulários, resoluções e decretos emitidos pelo CGEN. Os chamados “usuários” do Conselho compõem o seu pedido de autorização a partir de uma tradução da sua pesquisa a partir dessas diretrizes, adaptando as suas intenções conforme as regras e os procedimentos emitidos por esse órgão, da mesma forma que traduzem seus interesses científicos para concorrer aos editais governamentais. Ao analisar a dinâmica de funcionamento do CGEN, percebemos que esta instituição possui algumas características que a tornam muito parecida com o que poderíamos entender como um “laboratório governamental”, pois os objetos da regulamentação ainda não se encontram estabilizados e os técnicos e conselheiros precisam conceber e executar suas diretrizes simultaneamente. Por outro lado, tem características que o tornam semelhante a uma instituição jurídica, tornando a capacidade de transformação da suas diretrizes, a partir de casos exemplares, tão lenta e comedida quanto os tribunais de justiça. Neste caso, por parte dos usuários, percebemos a emergência de táticas usadas para formatar a multiplicidade do real de maneira a fazê-la cabernas diretrizes 51

Livro Conhecimento e Cultura.indd 51

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

do CGEN: os pesquisadores traduzem seus objetos científicos de forma a transformá-los nos novos objetos inventados no processo de regulamentação. Quando essa formatação não é realizada conforme as convenções jurídicas existentes, surgem controvérsias que projetam luz sobre as chamadas “zonas cinzentas da legislação”: o pedido só é “exemplar” em relação ao marco regulatório vigente. Além de surgir como efeito da tradução das diretrizes realizada pelos usuários, o aspecto paradigmático dos processos é construído exemplarmente durante a sua tramitação no CGEN e a partir das lentes impostas pelo marco regulatório. Assim, o próprio caráter “exemplar” desses processos já é um efeito de um movimento de “enquadramento” que impõe limitações estruturais ao sentido paradigmático que esses eventos podem ter na dinâmica interna do Conselho. Com isso, a capacidade de transformação do CGEN está sempre aquém das expectativas dos diversos atores que percorrem suas redes, pois tudo ali é o resultado de um complexo e infindável movimento de tradução, transposição e negociação. Para entender melhor esse movimento, precisamos compreender a circularidade existente entre uma multiplicidade de documentos e atores humanos que atuam no CGEN.

Complexidades – uma multiplicidade de documentos e atores humanos Existem diversos tipos de documentos que circulam no CGEN. Esses textos se diferenciam no que se refere ao seu formato e à sua função na dinâmica interna desta instituição. Por outro lado, todos desempenham o papel de mediadores em um complexo sistema de relações circulares envolvendo tanto elementos humanos como não-humanos. Para fins de análise neste ensaio, esses textos são apresentados em duas “classes”: o “Processo”, conjunto de documentos associados a um pedido de autorização de acesso, é chamado assim por que contém o conjunto de elementos necessários para decidir sobre a concessão ou não de uma autorização pelo CGEN, além de descrever – em sequência cronológica – o histórico de tramitação do pedido no Conselho13; e o “Marco Regulatório”, conjunto de instrumentos jurídicos utilizados como referência pelos diversos atores do CGEN na análise dos processos e na elaboração das diretrizes14. Esses documentos muitas vezes são percebidos como aspectos secundários ou simples depositórios da agência humana. Por outro lado, quando analisamos a sua circulação e a forma como eles determinam, modificam, reduzem ou ampliam as ações dos usuários, técnicos, conselheiros e especialistas, percebemos que eles fazem a diferença. Assim, gostaria de explorar o argumento de que os documentos que circulam no CGEN possuem agência. Esse pressuposto tem como principal referência os estudos da “teoria ator-rede” que buscam elucidar 52

Livro Conhecimento e Cultura.indd 52

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

o papel desempenhado pelos elementos não-humanos na reprodução do social, buscando perceber em que medida a associação entre elementos humanos e não-humanos permite que as pessoas possam fazer coisas que elas não poderiam fazer de outra forma.15 Busquei descrever aqui situações que evidenciassem a existência de uma multiplicidade de atores que agem neste espaço governamental, mesmo que à distância, incluindo conselheiros, secretários, técnicos, assessores jurídicos, convidados permanentes, especialistas, membros do CAP e “usuários” do CGEN (pesquisadores, empresários e comunidades locais). Cada um desses atores desempenha funções específicas em uma rede de traduções e associações mediada também pelos limites impostos pelos documentos. De qualquer forma, a função desempenhada por cada um deles é diferente, o que nos coloca diante de uma nova complexidade. Devemos compreender que a agência desses atores é limitada pela função que eles exercem e, principalmente, pelo que é declarado no “processo” e pelo que o marco regulatório “diz para fazer”. A ação de todos esses atores humanos é sempre mediada pela ação de outros atores com os quais eles estão associados. Os conselheiros, por exemplo, precisam respeitar as diretrizes vigentes e qualquer ação depende da sua capacidade de negociação com seus colegas, e do que chega até eles em forma de notas técnicas, relatórios e outros documentos. É claro que a prerrogativa de propor novas diretrizes ou alterar instrumentos jurídicos vigentes lhes dá certa margem de manobra, mesmo assim, essas proposições e alterações precisam estar de acordo com princípios norteadores expressos em outros documentos como a CDB, a medida provisória e os decretos. Os especialistas que participam nas Câmaras Temáticas influenciam no movimento de tradução da legislação e do “processo”, mas a sua agência é mediada pela tradução feita pelos técnicos e conselheiros. Já os membros do CAP atuam mais significativamente na tradução do “processo” e parcialmente na deliberação, pois seus pareceres são levados em conta nas decisões tomadas pelos conselheiros. O próprio “usuário” do CGEN atua indiretamente no movimento de tradução realizado pelos membros do CAP e pelos técnicos do DPG ao “enquadrar” seu pedido de autorização conforme o marco regulatório vigente. Desta forma, em órgãos governamentais como o CGEN, a agência humana é o resultado de uma configuração social envolvendo tanto elementos humanos como não-humanos, sendo que a qualidade de cada elemento é relacional, ou seja, se dá a partir da relação que estabelece em uma rede sociotécnica mais ampla. A agência dos humanos reside na sua capacidade de explorar as ambiguidades da linguagem, mas isso só é possível a partir de uma subjetividade construída através e a partirdo uso de elementos não-humanos que precisam 53

Livro Conhecimento e Cultura.indd 53

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

ser recombinados de forma a construir novos artefatos. Todos esses atores exercem suas traduções e deliberações a partir do saber-fazer adquirido durante suas trajetórias. Sem dúvida nenhuma, eles manipulam os artefatos que estão à sua disposição de forma a explorar as brechas existentes na legislação. Mas precisam fazer isso em associação com outros atores humanos e não-humanos e conforme as convenções predominantes na sociedade brasileira, o que torna a sua agência compósita e a sua ação coletiva.

Os objetos híbridos do CGEN: o “Patrimônio Genético” e os “CTA” Em um livro recente, Complexities (2002), organizado por John Law e Annemarie Mol, os autores buscam refletir sobre o fenômeno da complexidade a partir de um questionamento inicial: como lidar com ela sem reduzi-la a modelos simplificadores e, ao mesmo tempo, sem reproduzi-la de forma a originar novas complexidades. O que pretendo fazer aqui, ainda em forma de esboço, é tentar compreender melhor a complexidade do CGEN antes de reduzi-la ou enquadrá-la conforme modelos formulados a partir de outras realidades, buscando, desta forma, construir uma análise que dê conta de uma multiplicidade sem deformá-la por completo. Por isso, fiz uso de cenas etnográficas para descrever os atores humanos e não-humanos sem reduzir demasiadamente a sua multiplicidade, mesmo sabendo a limitação desses instrumentos como formas de descrição das múltiplas experiências vivenciadas em campo. Como qualquer descrição, no entanto, esta também é uma simplificação do real. A questão é se o modelo que tento extrair dela simplifica menos do que outros que vem sendo utilizados até o momento. No caso do CGEN, a etnografia revelou a existência de uma circularidade envolvendo os documentos que compõem o “processo”, o “marco regulatório” e atores humanos que atuam no Conselho, tendo, de um lado, os objetos científicos e, de outro, os objetos jurídico-governamentais, ambos inventados neste processo. Essa invenção envolve uma série de traduções/transformações desempenhadas por elementos não-humanos (os documentos e os objetos científicos neles representados) e os elementos humanos (conselheiros, técnicos, especialistas e usuários), constituindo o que estou denominando aqui de agência compósita. Neste caso, o modelo tradicional do Grande Divisor, que colocaria humanos e não-humanos em instâncias separadas, em que os primeiros teriam poder de agência sobre os segundos, não dá conta das associações que foram descritas neste ensaio. Conforme já mencionou Latour em um livro germinal, Jamais Fomos Modernos (1991), vivemos em uma época de “crise” da modernidade, esse 54

Livro Conhecimento e Cultura.indd 54

26/4/2011 12:20:44

Diego Soares

fenômeno construído a partir da divisão entre humanos e não-humanos, natureza e cultura, política e ciência. A chamada “Constituição Moderna” foi instituída a partir de dois movimentos simultâneos que, para se tornarem produtivos, precisavam manter-se distintos: a produção de híbridos de natureza e cultura; e a criação, por práticas de “purificação”, de duas zonas ontológicas completamente diferentes, uma delas povoada por coisas e objetos e a outra pelos seres humanos. A manutenção desta Constituição tem se tornado cada vez mais difícil, pois a coexistência entre esses dois domínios é tão intensa que dificulta o trabalho de purificação. Neste ensaio, busquei demonstrar que o CGEN é uma instituição que surge desta “crise”, constituindo-se como um espaço localizado entre domínios geralmente mantidos em separado, como o mundo dos cientistas e dos políticos, das coisas e das pessoas, do governo e da sociedade. Desde a publicação do artigo de Star e Griesemer (1989), em que os autores utilizam a noção de “objeto-fronteira” para descrever objetos científicos que habitam diferentes “mundos sociais”, uma série de outros trabalhos tem feito uso dessa noção para entender situações de cooperação científica, instituições onde cientistas e não cientistas são levados a colaborar ou para se referir a artefatos e instituições concebidos ou localizados na fronteiraentre mundos diferentes.16 O “objeto-fronteira” circula entre diferentes domínios do conhecimento, assumindo diferentes significados: ele é flexível o suficiente para se adaptar às necessidades e aos interesses dos diferentes atores que o utilizam, e robusto o suficiente para manter uma identidade comum durante o seu deslocamento. Apesar de algumas transformações da noção, como o conceito de “objeto-intermediário” cunhado por Vink (1999) ou a ampliação da noção para descrever organizações de fronteira (Gustun, 2001), todos esses autores buscam descrever situações etnográficas nas quais objetos que circulam assumem diferentes significados, o que não impede aos diferentes atores de cooperar em torno deles. Todos os estudos mencionados acima partilham o postulado relativista que pressupõe a existência de um único objeto físico que assume diferentes significados conforme circula por diferentes mundos sociais: uma única Natureza e várias culturas. Dessa forma, estas noções reafirmam as fronteiras existentes tanto entre pesquisadores de diferentes disciplinas, como também entre cientistas e nãocientistas. No caso do CGEN, poderíamos utilizar a noção de “objeto-fronteira” para descrever os dois grandes objetosda regulamentação: o “patrimônio genético” e os “CTA”. Poderíamos seguir aqueles autores e afirmar que estes objetos circulam por diferentes mundos sociais e científicos, flexíveis o suficiente para serem traduzidos de forma diferente e fortes para manter certa identidade durante o seu deslocamento. 55

Livro Conhecimento e Cultura.indd 55

26/4/2011 12:20:44

Hibridismo, tradução e agência compósita

Acredito, no entanto, que ao fazer isso, estaríamos perdendo de vista que os objetos gerados no CGEN – o “patrimônio genético” e os “CTA” – não existem fora ou além do processo de tradução que lhes deu origem. Estamos diante de fenômenos híbridos17 que passaram a existir somente após a sua concepção jurídico-governamental, tornando-se, na medida em que circulam no Conselho, objetos diferentes (em certo sentido) e iguais (em outro sentido) à multiplicidade de objetos (científicos, por exemplo) transformados nos processos que lhe deram origem. Não se trata, portanto, de diferentes visões sobre um único objeto, mas de um objeto híbrido que surge no processo de tradução como uma entidade que não existia até então: fenômenos compostos que podem voltar a serem tantos outros objetos científicos (devido à qualidade reversível de toda a tradução) sem deixar de ser uma entidade completamente nova. Essa guinada em direção à ontologia foi inspirada pelo trabalho de Annemarie Mol (1999, 2002), que propõem substituir a noção de diferentes visões sobre um mesmo fenômeno ou objeto pela ideia de que cada uma dessas visões constitui, de fato, objetos diferentes. Segundo Mol, em lugar de uma única realidade universal, estável e anterior às práticas de simbolização, teríamos múltiplas realidades; em vez de múltiplas visões sobre um único objeto, teríamos múltiplos objetos. Nesse sentido, os objetos da regulamentação são entidades com uma ontologia específica: híbridos de natureza e cultura, ciência e governo, um composto de elementos diferentes que coexistem e são atualizados na relação que estabelecem com outros fenômenos. Neste caso, é importante notar que não estamos diante de novas entidades formadas a partir da mistura de coisas diferentes, pois esses híbridos são compostos de elementos heterogêneos coexistentes em sua potencialidade: um devir que pode ser uma ou outra coisa (em potencial), dependendo da relação que estabelecer com outras entidades. Ao mesmo tempo em que o “patrimônio genético” e os “CTA” são invenções feitas a partir de convenções ocidentais permeadas por uma lógica utilitária muito comum às formas de governamentalidade modernas – formuladas como discursos de saber-poder voltados para o controle do território e da circulação de pessoas e coisas – eles também podem ser uma multiplicidade de outros objetos científicos e culturais, dependendo da tradução reversa realizada por cientistas, empresários e povos indígenas e tradicionais. Devido à reversibilidade da tradução, esses objetos guardam em si uma heterogeneidade em potencial de elementos que coexistem sem se anularem: mesmo quando em silêncio, a imanência ontológica destes elementos reflete a sua existência enquanto potencialidade.

56

Livro Conhecimento e Cultura.indd 56

26/4/2011 12:20:45

Diego Soares

Notas 1. O artigo 8 da CDB também recomenda que os signatários incentivem a “aplicação” dos conhecimentos tradicionais na utilização sustentável da biodiversidade, pontuando que isso deve ser feito com “a aprovação e a participação dos detentores desses conhecimentos”. 2. O CGEN foi instituído pela Medida Provisória nº 2.186-16, editada pelo Governo Federal, em agosto de 2001. Essa MP regulamenta as diretrizes constitucionais e os princípios enunciados na CDB, dispondo sobre o acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados. 3. Durante a minha pesquisa de doutorado, realizei uma etnografia de redes sociotécnicas formadas em torno de três pesquisas cujo “acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais associados” foi autorizado pelo CGEN. 4. Para saber mais detalhes, ver: Santos (2003); Carneiro da Cunha e Almeida (2001); Bensusan (2003); e Santilli (2004). 5. Uso a noção de “governamentalidade” conforme concebida por Michel Foucault (2005, 2008, 2008b) e aplicada em uma série de estudos mais recentes (Rose e Miller, 1992, 2008; Barry e Rose, 1996). 6. O CGEN é composto por representantes de Ministérios, instituições de pesquisa e entidades do Governo Federal que possuem alguma relação com o tema da Medida Provisória. Também participam na categoria de “convidados permanentes” (sem direito a voto), representantes da sociedade civil, como a Associação Brasileira de Empresas de Biotecnologia, a Associação Brasileira de ONGs e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia. Para ver a lista completa dos membros do CGEN, acessar: http://www.mma.gov.br/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrut ura=85&idConteudo=8792 7. Inspirando-me no trabalho de Anni Dugdale (1999: 113-133) sobre um comitê formado na Austrália para assessorar o governo em questões relacionadas a políticas de saúde pública. 8. Para ver mais sobre o homo economicus, como resultado de um processo de configuração, ver Callon (1999). 9. Conforme Latour (2005: 210-216), plug-ins são dispositivos (tecnologias cognitivas) que fornecem ao sujeito a competência necessária para se posicionar sobre determinado assunto. 10. Estou me referindo tanto aos povos tradicionais e indígenas como aos pesquisadores e empresários. 11. As Câmaras Temáticas foram instituídas em 2002, por deliberação do CGEN, tendo como objetivo discutir, elaborar e reformular diretrizes sobre temas específicos relacionados à Medida Provisória nº 2.186/2001 e ao Regimento Interno do Conselho. Existem quatro Câmaras Temáticas, abrangendo os seguintes temas: Conhecimento Tradicional Associado; Repartição de Benefícios; Procedimentos Administrativos; e Patrimônio Genético. Essas Câmaras são compostas por conselheiros, técnicos do DPG e “especialistas” convidados para debater conceitos e termos técnicos presentes na legislação. 12. O Comitê de Avaliação de Processos (CAP) foi instituído com o objetivo de assessorar o CGEN na análise dos processos de autorização enviados a este órgão. O CAP é composto por “especialistas” convidados pelo DPG conforme o tema de pesquisa abordado no pedido de autorização, mudando conforme o processo em análise. 13. O “Processo” inclui o projeto de pesquisa, currículos dos pesquisadores, termos de anuência prévia, contratos de repartição de benefícios, laudo antropológico, pareceres do DPG e do CAP, relatórios, publicações científicas, ofícios e comunicações. 14. O “Marco Regulatório” é composto, em linhas gerais, pelos seguintes documentos: CDB, declarações e acordos internacionais sobre propriedade intelectual e direitos das populações indígenas, legislação nacional (decretos, medidas provisórias, artigos da constituição brasileira de 1988); orientações técnicas, resoluções, deliberações e autorizações emitidas pelo próprio CGEN. 57

Livro Conhecimento e Cultura.indd 57

26/4/2011 12:20:45

Hibridismo, tradução e agência compósita

15. Para ver outros contextos empíricos nas quais a relação entre atores humanos e documentos é objeto de uma análise antropológica, ver Annelise Riles (1998), Yael Navaro-Yashin (2007) e Mariza Peirano (2009). 16. Ver: Henderson, 1991; Harvey e Chrisman, 1998; Wilson e Herndl, 2007; Swan et al., 2007; Meyer, 2009. Uma revisão bibliográfica completa dos diferentes usos da noção de “objeto-fronteira” pode ser encontrada em Trompette e Vinck (2009). 17. A noção de híbrido tem sua origem no latim – hibrida – e significa coisas que são heterogêneas na sua origem e composição. O híbrido é uma unidade heterogênea, ou seja, composta por partes que não se misturam. Sobre os diferentes usos que tem sido feito dessa noção na biologia e nas ciências sociais, ver Stross (1999); na Actor-Network-Theory, ver Callon e Law (1995).

58

Livro Conhecimento e Cultura.indd 58

26/4/2011 12:20:45

Diego Soares

Referências ARETXAGA, Begoña. 2003. “Maddening States”. Annual Review of Anthropology, 32:393-410. BARRY, Andrew, Thomas OSBORNE & Nikolas S. ROSE. 1996. Foucault and Political Reason: liberalism, neo-liberalism and rationalities of government. Chicago: The University of Chicago Press. BENSUNSAN, Nurit. 2003. “Breve Histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil”. In: A. Lima e N. Bensunsan (orgs.), Quem cala consente?Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: ��� Instituto Socioambiental (Série Documentos do ISA, nº 08). CALLON, Michel. 2002. «Writing and (Re)writing Devices as Tools for Managing Complexity». In: J. Law&A. Mol (eds.), Complexities: social studies of knowledge Practices. Durham & London: Duke University Press. ______. 1999. “Actor-network theory: the market test”. In: J. Law & J. Hassard (eds.), Actor Network and After.Oxford: Blackwell Publishing. CALLON, Michel & John LAW. 1995. “Agency and the hybrid Collectif ”. South Atlantic Quarterly, 94:481-507. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela& Mauro B. ALMEIDA. 2001. “Populações Tradicionais e Conservação Ambiental”. In: J. P. R. Capobianco (org.), Biodiversidade Amazônica: Avaliação e Ações prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios. São Paulo: Estação Liberdade e Instituto Socioambiental, 184-193. DAS, Veena. 1995. Critical Events: an anthropological perspective on contemporary India. New Delhi: Oxford University Press. DUGDALE, Anni. 1999. “Materiality: juggling sameness and difference”. In: J. Law & J. Hassard (eds.), Actor Network and After.Oxford: Blackwell Publishing. FOUCAULT, Michel. 2008. Segurança, Território, População:curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes. ______. 2008b. Nascimento da Biopolítica:curso no Collège de France (1978-1979).São Paulo: Martins Fontes. ______. 2005. Em defesa da sociedade:Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. GUSTON, David H. 2001. “Boundary Organizations in Environmental Policy and Science: an introduction”. Science, Technology and Human Values, 26(4):399-408. HARVEY, Francis& Nicholas CHRISMAN. 1998. “Boundary objects and the social construction of GIStechnology”. Environment and Planning A, 30:1683-1694. HENDERSON, Kathryn. 1991. “Flexible Sketches and Inflexible Data Bases: Visual Communication, Conscription Devices, and Boundary Objects in Design En59

Livro Conhecimento e Cultura.indd 59

26/4/2011 12:20:45

Hibridismo, tradução e agência compósita

gineering”. Science, Technology and Human Values,16(4):448-473. LATOUR, Bruno. 2005. Reassembling the Social:an introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford Universit Press. ______. 2001. A esperança de Pandora:ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru, SP: EDUSC. ______. [1991] 1994. Jamais Fomos Modernos:ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34. ______. [1987] 2000. Ciência em Ação:como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed. UNESP. LAW, John. & Annemarie MOL. 2002 (Ed.). Complexities: social studies of knowledge practices. Durham: Duke University Press. MEYER, Morgan. 2009. “Objet-frontière ou Projet-frontière? Construction, (non-)utilisation et politique d’une banque de données”. Revue d’anthropologie des connaissance, 3(1):127-148. MOL, Annemarie. 2002. The Body Multiple:ontology on medical practice. Durham: Duke University Press. ______. 1999. “Ontological Politics. A word and some questions”. In: J. Law & J. Hassard (eds.), Actor Network and After. Oxford: Blackwell Publishing. NAVARO-YASHIN, Yael. 2007. “Make-believe papers, legal forms and the counterfeit”. SAGE Publications, 7:79-98. PEIRANO, Mariza. 2009. O Paradoxo dos Documentos de Identidade. Série Antropologia, Vol. 426. Brasília: DAN/UNB. RILES, Annelise. 1998. “Infinity within the Brackets”. American Ethnologist, 25(3):378-398. ROSE, Nikolas &Peter MILLER. 1992. “Political Power beyond the State: Problematics of Government”. The British Journal of Sociology, 43(2):173-205. ______. 1995. “Political Thought and the Limits of Orthodoxy: a response to Curtis”. The British Journal of Sociology, 46(4):590-597. ______. 2008. Governing the Present: Administering Economic, Social and Personal Life. Cambridge: Political Press. SANTILLI, Juliana. 2003. “Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: novos avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção”. In: N. Bensusan (org.), Quem cala consente? Subsídio para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 53-74. SANTOS, Laymert G. 2003. Politizar as novas tecnologias - O impacto sócio-técnico da informação digital e genética.São Paulo: Editora 34. STAR, Susan L. & James R. GRIESEMER. 1989. “Institutional Ecology, “translation” 60

Livro Conhecimento e Cultura.indd 60

26/4/2011 12:20:45

Diego Soares

and Boundary Objects: amateurs and professional in Berkley’s Museum of Vertebrate Zoology”. Social Studies of Science, 19(3):387-420. STROSS, Brian. 1999. “The Hybrid Metaphor: from biology to culture”. The Journal of American Folklore, 112(445):254-267. SWAN, Jacky, Mike BRESNEN, Sue NEWELL, & Maxine ROBERTSON. 2007. “The Object of Knowledge: the role of objects in biomedical innovation”. Human Relations, 60(12):1809-1837. TROMPETTE, Pascale. & Dominique. VINK. 2009. “Revisiting the notion of Boundary Object”.Revue d’anthropologie des connaissance, 3(1):3-25. VINK, Dominique. 2009. “De l’objet intermédiaire à l’objet-frontière. Vers la prise em compte du travail d’équipement”. Revue d’anthropologie des connaissance, 3(1):51-72. ______. 1999. “Les Objets intermediaires dans les reseaux de cooperation scientifique: contribution a la prise en compte des objets dans les dynamiques sociales”. Revue française de sociologie, 40(2):385-414. WILSON, Greg & Carl G. HERNDL. 2007. “Boundary Objects as Rhetorical Exigence: knowledge mapping and interdisciplinary cooperation at the Los Alamos National Laboratory”. Journal of Business and Technical Communication, 21(2):129-154.

61

Livro Conhecimento e Cultura.indd 61

26/4/2011 12:20:45

Livro Conhecimento e Cultura.indd 62

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia: uma controvérsia sobre conhecimentos tradicionais indígenas

José Pimenta Guilherme Fagundes de Moura

Da procura por drogas do sertão aos empreendimentos da biotecnologia contemporânea, a biodiversidade amazônica vem sendo sistematicamente explorada pelo capital e pela ciência ocidental. A busca constante por produtos extraídos da floresta levou ao desenvolvimento de importantes inovações, mas sempre deixou à margem deste processo os povos indígenas, cujos saberes tradicionais e técnicas de manejo são as principais promotoras da biodiversidade da região (Balée 1992). Apesar de cinco séculos de cobiça frenética e da pilhagem sistemática dos recursos naturais e dos conhecimentos nativos a eles associados, os povos indígenas da Amazônia ainda possuem saberes relacionados a inúmeras espécies desconhecidas pela ciência. No início do século XXI, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais continuam despertando o interesse das indústrias de inovação biotecnológica e são muitas vezes acessados ou utilizados sem a observância da legislação vigente ou sem o consentimento prévio e informado dos povos detentores desses conhecimentos. É, no sentido mais amplo, o que se entende hoje pelo termo “biopirataria”. Entre outras conquistas, a afirmação dos povos indígenas na cena política nacional e internacional levou à assimilação gradual da problemática dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade nos fóruns de negociação da Organização das Nações Unidas (ONU). Procurando estabelecer relações mais simétricas com o mundo ocidental, os índios desejam que seus saberes sejam reconhecidos e querem ser considerados como atores plenos nas pesquisas que usem seus conhecimentos tradicionais realizadas em seus territórios. 63

Livro Conhecimento e Cultura.indd 63

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

No Brasil, os dispositivos jurídicos que procuram proteger os conhecimentos tradicionais indígenas ainda são genéricos e precários. Limitam-se, essencialmente, à Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) e a uma Medida Provisória. Produzida no âmbito das Nações Unidas, a CDB, de 1992, inaugurou um novo marco jurídico para a proteção dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais sobre seus saberes relativos à biodiversidade. Pela primeira vez, reconheceu a importância dos conhecimentos e práticas desses grupos na preservação e conservação do meio ambiente.1 A convenção foi ratificada pelo Brasil, em 1994, e suas diretrizes definidas pela Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao conhecimento tradicional associado. Embora importante, este aparato jurídico ainda padece de muitas insuficiências e necessita ser aprimorado para possibilitar uma garantia efetiva dos direitos dos povos indígenas. Existe, por exemplo, uma série de dificuldades conceituais e legais. Noções como “conhecimento tradicional”, “direitos coletivos”, ou “biopirataria” são categorias relativamente recentes e ainda problemáticas. Nos últimos anos, vários autores procuraram refletir sobre esses termos e se dedicam à análise de seus aspectos jurídicos e antropológicos.2 Este artigo não pretende discutir essas questões. Optamos por expor o caso etnográfico da concepção, produção e comercialização de um sabonete à base de gordura de murmuru (palmeira amazônica) que os índios Ashaninka3 do rio Amônia consideram resultado de um acesso indevido aos seus conhecimentos tradicionais. Se a Amazônia se apresenta como um reservatório quase inesgotável para a indústria farmacológica, ela também é, às vezes, percebida como uma “mina de ouro” para as empresas do setor de cosméticos, sempre em busca de produtos inovadores para um mercado em grande expansão. No Alto Juruá, o coco de murmuru se transformou em um problemático sabonete, atualmente objeto de disputa judicial entre os índios Ashaninka, representados pelo Ministério Público Federal (MPF), e as empresas Tawaya, Chemyunion e Natura Cosméticos. O destino da ação judicial continua incerto. Este artigo procura relatar a história desse sabonete e do conflito que gerou sua comercialização, explicando as razões pelas quais os Ashaninka do rio Amônia acionaram a justiça brasileira para reivindicar direitos que consideram legítimos. Buscaremos apresentar as diferentes versões dessa controvérsia analisando alguns documentos do processo judicial que constituem o principal solo etnográfico deste trabalho.4 O texto está organizado em quatro partes. Inicialmente, procuramos expor o significado mitológico do murmuru para os Ashaninka do rio Amônia, assim como os usos que eles fazem dessa espécie de palmeira. Em seguida, apresentamos a história de uma pesquisa realizada pelos Ashaninka em seu território no 64

Livro Conhecimento e Cultura.indd 64

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

início dos anos 1990 e o processo de desenvolvimento e comercialização pela empresa Tawaya do sabonete de murmuru. Segundo os índios, o sabonete é produto direto dessa pesquisa que usou seus conhecimentos tradicionais. Na terceira parte, analisamos os conflitos que envolvem a Associação Ashaninka do rio Amônia, ou Apiwtxa, e a Tawaya, procurando trazer as versões das duas principais partes envolvidas na disputa. Por fim, apresentamos a situação atual investigando alguns documentos do processo judicial, mostrando a complexidade do conflito, as conexões entre a pesquisa e a produção do sabonete de murmuru que, além de ser comercializado pela Tawaya, também, passou a sê-lo pelas empresas Chemyunion e Natura.

Os Ashaninka e o murmuru: mito e usos de uma palmeira Murmuru (ou murumuru) é o nome popular dado à palmeira Astrocaryum ssp. Essa espécie cresce na região amazônica em touceiras que atingem de 3 a 6 metros de altura com caules de 20 cm a 25 cm de diâmetro, possui em média de 10 a 15 folhas, cada uma com aproximadamente 4 metros de comprimento, e produz cerca de quatro cachos por ano. Cada um deles fornece uma média de 300 frutos. A ocorrência dessa palmeira pode variar de 10 a 100 plantas por hectare. Duas espécies de murmuru são encontradas no Acre: a Astrocaryum faranae e a Astrocaryrum ulei, sendo que a primeira parece só existir na região do vale do Juruá (PNUD 2000; Sousa 2004 apud Schettino 2007:33-34). Para os Ashaninka do rio Amônia, no entanto, o murmuru está longe de ser apenas uma espécie vegetal.5 Principal componente de um sabonete objeto de controvérsia jurídica, o murmuru está inicialmente presente na mitologia ashaninka. Como outras populações indígenas da Amazônia, os Ashaninka rio Amônia concebem o que o mundo ocidental chama de “natureza” como o resultado de uma série de transformações que ocorreram nos tempos míticos e que transformaram alguns humanos em não-humanos. Assim, como outros fatos importantes dos primórdios da humanidade e da criação do mundo, a aparição do na terra tem uma explicação mítica para eles. O “mito do murmuru”, que resumimos a seguir, faz parte do rico repertório mitológico, repassado oralmente pelos mais velhos para as novas gerações. Para os Ashaninka, o mundo terrestre é obra de Pawa, o Deus-Criador, cuja materialização mais explícita é o sol, considerado por eles como a manifestação do brilho de sua coroa. Após criar o mundo e os Ashaninka, primeiros humanos, Pawa subiu ao céu, deixando alguns de seus filhos encarregados de finalizar a Criação e aperfeiçoar o mundo terrestre para atender às necessidades dos 65

Livro Conhecimento e Cultura.indd 65

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

homens. Para dar prosseguimento à sua obra, Pawa outorgou poderes sobrenaturais a seus filhos deixados na terra. Com tais poderes, esses demiurgos ashaninka, chamados genericamente tasorentsi, continuaram a obra do Deus-Criador, dando ao mundo terrestre seu aspecto atual. Nos primórdios da Humanidade, não existiam animais, nem árvores, foram os tasorentsi que transformaram alguns ashaninka em animais, plantas, rios, lagos, montanhas e completaram a Criação. Segundo o índio Shomõtse, Nawiriri era um desses tasorentsi, filhos de Pawa, que transformou várias pessoas em vegetais e animais, entre elas, o murmuru.6 O mito conta que um dia, Nawiriri foi passear carregando seu netinho nas costas. Durante o passeio, alguns ashaninka se apresentavam com uma aparência física fora do comum e atraíam a curiosidade da criança que perguntava ao avô: “Txarini [vovô], o que é isso?”. O avô respondia às perguntas transformando esses humanos em árvores ou animais conforme sua aparência física e justificava essas transformações. Ao longo do passeio, Nawiriri e seu neto se depararam com um ashaninka que, ao contrário dos outros, tinha uma profusa barba que deixava crescer. Ao encontrar esse humano de aparência tão diferente, o menino surpreso perguntou novamente ao avô o que era aquilo. Nawiriri questionou o ashaninka barbudo sobre as razões pelas quais ele usava barba. Como resposta, ouviu que era simplesmente por gosto pessoal. Nawiriri considerou que o uso da barba não era um modo adequado para os Ashaninka e acrescentou que, a partir daquele momento, transformaria eternamente aquele humano em murmuru para servir os Ashaninka que passariam a fazer grande uso de seu novo corpo, alimentando-se, por exemplo, de seu cérebro (coco).7 Assim, para os Ashaninka, o murmuru não é apenas um vegetal, mas um de seus antepassados transformado nessa espécie de palmeira pelo tasorentsi Nawiriri. Os espinhos do murmuru são a materialização da barba desse antigo ashaninka, e o coco da palmeira é considerado seu cérebro. A espécie não é sempre apreciada pelos índios. Dizem, por exemplo, que os espinhos do murmuru são perigosos ou que pode ser uma verdadeira praga que invade os roçados ou dificulta as saídas na floresta. No entanto, como antigo ashaninka, transformado em vegetal para o bem dos humanos, o murmuru, como muitos animais e vegetais, carrega um sentido especial para os índios. Foi criado para servir os humanos e exige respeito e cuidados. Assim, os Ashaninka dizem que o murmuru “possui espírito” e que deve ser tratado com respeito. Não temos informações de prescrições relativas à coleta do murmuru, como existem, por exemplo, em abundância, em relação à caça. No entanto, os Ashaninka do rio Amônia afirmam que se deve sempre evitar “estragar o murmuru” e coletá-lo de “forma direita”, ou seja, sem exageros e aproveitando-o ao máximo.8 66

Livro Conhecimento e Cultura.indd 66

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Se a preocupação indígena com o que chamaríamos de “manejo do murmuru” já está presente na mitologia, o conhecimento de sua ecologia também é extremamente acurado e baseado na observação minuciosa de seu ciclo de vida. Os Ashaninka sabem, por exemplo, quais animais se alimentam da palmeira, seu tempo de germinação, as etapas de seu desenvolvimento, as pragas que a afetam etc. A riqueza desse saber nativo possibilita-lhes um sofisticado uso da palmeira.9 Assim, os Ashaninka aproveitam toda a árvore, ou seja, o tronco, a palha e o coco. Possuem um extenso leque de usos dessas diferentes partes da palmeira e de outros seres que com ela interage. Sementes, brotos, tronco, palmito, frutos, folhas, larvas e lagartas hospedeiras têm usos tradicionais que servem para diferentes fins: construção, alimentação, medicina, artesanato e cosmético. Na ocasião da perícia realizada para o MPF, Schettino (2007) fez um levantamento detalhado dos usos do murmuru entre os Ashaninka do rio Amônia. Retomaremos, a seguir, algumas das informações contidas em seu relatório. Por ser robusto e durável, o tronco do murmuru é geralmente usado na construção e na reforma das casas, principalmente, como pilares e esteios. Também hospeda vários tipos de larvas muito apreciadas na culinária nativa e que podem ser consumidas assadas ou cruas. A maior e mais saborosa é chamada imowo na língua indígena e tem, aproximadamente, 5 cm de comprimento. As larvas também dão aos Ashaninka o óleo de murmuru. Quando assadas, por exemplo, em folha de bananeira ou de sororoca, produzem um óleo (também referido como “manteiga”) que, além de alimentar, pode ser utilizado para fins cosméticos ou medicinais. O óleo da larva imowo pode servir como emoliente para o urucum, usado principalmente em pinturas faciais, e também para lavar e limpar a pele de pequenas feridas ou irritações. É utilizado com frequência contra a caspa, por exemplo. Outro tipo de larva, chamado pachori, menor que o imowo, esfregada nos dentes, contribui para a conservação dos mesmos.10 O tchouitz é um terceiro tipo de larva de cor branca que se hospeda no coco do murmuru e que é usada para limpar os ouvidos. A larva é colocada no ouvido por alguns minutos e procede à sua limpeza, provocando algumas cócegas.11 As folhas do murmuru são utilizadas, principalmente, na fabricação de diferentes tipos de abanos e cestos. Segundo os Ashaninka, abrigam duas espécies de lagartas chamadas rompa e shõpa que também são utilizadas como alimento e produzem um óleo que pode ser usado no tratamento de feridas e para minimizar a coceira. O coco do murmuru, além de servir de alimento consumido cozido ou assado, também produz óleo ou gordura. Como no caso das larvas, esse óleo serve para fins medicinais e estéticos: cicatrizante de feridas, calmante da coceira, 67

Livro Conhecimento e Cultura.indd 67

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

loção contra a caspa, hidratante para a pele etc.12 O fruto maduro também é usado para a confecção de colares. Assim, além de usarem o murmuru para diferentes usos alimentares (larvas, lagartos e coco), os Ashaninka do rio Amônia também conferem tradicionalmente a seu óleo, obtido de diversas formas, uma série de propriedades com finalidades cosméticas e medicinais. O óleo do murmuru é utilizado pelos índios como um tipo de sabonete, inclusive, com propriedades medicinais: bom para a pele e para os cabelos, capaz de cicatrizar feridas, combater a caspa etc. Algumas das propriedades do murmuru foram comprovadas por análises laboratoriais decorrentes de uma pesquisa realizada na Terra Indígena do Rio Amônia na década de 1990. Essa pesquisa está na origem da controvérsia judicial em torno do sabonete de murmuru.

Da pesquisa à comercialização do sabonete Buscando alternativas à exploração predatória de madeira que devastou parte de seu território na década de 1980, os Ashaninka do rio Amônia procuraram, a partir de 1992, atividades econômicas ambientalmente sustentáveis e capazes de assegurar uma renda para a comunidade adquirir os bens industriais dos quais foi se tornando dependente. No contexto do indigenismo contemporâneo, marcado pela interface crescente com o ambientalismo, criaram a associação indígena Apiwtxa e, como várias outras populações indígenas da Amazônia, entraram progressivamente no “mercado de projetos” (Albert 2000), pautando seus discursos etnopolíticos no paradigma do “desenvolvimento sustentável”.13 O conflito em torno do murmuru nasceu nesse momento de transição da história recente dos Ashaninka do rio Amônia e é um desdobramento de um dos primeiros projetos implementados por eles. Tem sua origem em 1992, quando houve uma parceria entre a associação ashaninka e o Centro de Pesquisa Indígena (CPI) para o desenvolvimento de um projeto que buscava viabilizar o aproveitamento sustentável dos recursos naturais da Terra Indígena Kampa do rio Amônia. Hoje extinto, o CPI era uma extensão do Núcleo de Cultura Indígena (NCI), ONG criada em 1985 e dirigida pelo líder indígena Aílton Krenak. Após participar ativamente da consolidação dos direitos indígenas na Constituição de 1988, o NCI iniciou um processo de discussão com várias lideranças indígenas para desenvolver programas de pesquisa na área ambiental em diferentes regiões do Brasil. O CPI foi fundado em 1989 para viabilizar esses programas que buscavam aproveitar de forma sustentável os recursos naturais das terras indígenas, oferecer alternativas econômicas às comunidades e capacitar técnicos nativos 68

Livro Conhecimento e Cultura.indd 68

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

para a execução dos projetos. Com o apoio de instituições e organizações internacionais, o CPI formou jovens de diferentes grupos étnicos e criou condições para a implementação de vários projetos de “desenvolvimento sustentável”: viveiros de plantas nativas, criação em cativeiro de espécies de peixes, manejo de animais silvestres etc. A partir de uma base de apoio instalada em um sítio próximo à cidade de Goiânia, os projetos pilotos do CPI beneficiaram um conjunto de áreas indígenas da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica. No contexto da “Aliança dos Povos da Floresta”, que também teve Aílton Krenak como um de seus principais articuladores e desempenhou um papel importante para garantir os direitos territoriais de índios e seringueiros na região do Alto Juruá (Pimenta 2007), o CPI criou uma representação na cidade de Cruzeiro do Sul e implementou alguns projetos com as populações indígenas da região.14 A parceria entre os Ashaninka e o CPI nasceu nesse contexto da “Aliança dos Povos da Floresta” e da amizade crescente entre Francisco, Moisés e Benki Piyãko, principais lideranças da associação Apiwtxa, e Aílton Krenak. Os líderes ashaninka visitaram o sítio do CPI em Goiás e ficaram entusiasmados com o que viram. Os projetos de pesquisa da ONG apontavam para resultados promissores e geravam grandes expectativas a médio e longo prazo. Os Ashaninka perceberam que a rica biodiversidade de seu território e os conhecimentos à ela associados ofereciam um potencial enorme que, com apoio técnico adequado, poderia levar ao desenvolvimento de produtos e seu aproveitamento no mercado, oferecendo alternativas econômicas sustentáveis para a comunidade indígena. Assim, a ideia de uma parceria entre o CPI e a Apiwtxa para realizar um levantamento de espécies nativas da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia com potencial econômico, tendo como meta o desenvolvimento de produtos para o mercado, foi ganhando forma. O primeiro passo era encontrar um técnico habilitado e disposto a trabalhar com os índios para operacionalizá-la. Por intermediário da antropóloga Margarete Mendes, que pouco antes fizera sua pesquisa de mestrado com os Ashaninka e que vinha apoiando a comunidade indígena15, Moisés Piyãko, na época presidente da Apiwtxa, conheceu Fábio Fernandes Dias que concluía seus estudos de graduação em física na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde desenvolvia pesquisas sobre tecnologias para extração de óleos de plantas. Fábio Dias aceitou o desafio de trabalhar com os Ashaninka. Moisés Piyãko o apresentou a Aílton Krenak e, com o apoio do técnico, a Apiwtxa e o CPI elaboraram um projeto. O Programa de Pesquisa e Aproveitamento de Recursos Naturais Renováveis, às vezes, referido como Programa (ou Projeto) de Óleos Essenciais, começou em julho de 1992 e durou até dezembro de 1995. A partir de 1993, passou a 69

Livro Conhecimento e Cultura.indd 69

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

integrar um programa maior desenvolvido pelo CPI na região do Alto Juruá que terminou em 1996 e contou com financiamentos oriundos, principalmente, da Chancelaria da Áustria.16 O projeto se inseria no ciclo anual das atividades da comunidade indígena e contribuía com a recuperação de áreas degradadas dentro do território, restabelecendo sua integridade ecológica e garantindo as condições de (re)produção sociocultural dentro da pauta ashaninka do “desenvolvimento sustentável”. O Programa de Pesquisa e Aproveitamento de Recursos Naturais Renováveis explorou o potencial econômico de óleos, essências e sementes de dezenas de espécies nativas da Terra Indígena Kampa do rio Amônia. Contratado pelo CPI para desenvolver esse projeto de pesquisa junto aos índios, Fábio Dias passou várias temporadas na Terra Indígena Kampa do rio Amônia, somando um total de cerca de um ano de pesquisa de campo. Para acompanhar o trabalho, um grupo de jovens ashaninka, escolhido pela comunidade, atuou como “mateiro” do projeto e foi treinado pelo técnico em alguns procedimentos básicos da pesquisa: identificação botânica, processos de coleta, extração e processamento das essências etc. Esse pequeno grupo coletava amostras vegetais e fornecia informações sistemáticas a respeito das mesmas antes de encaminhá-las ao consultor que realizava testes preliminares. Fazia também parte do projeto o estabelecimento de parcerias com laboratórios, centros universitários de pesquisa e empresas. Assim, amostras de espécies e de seus componentes, preparadas pelo consultor, foram enviadas para análises laboratoriais com o objetivo de identificar possíveis usos comerciais. Os contatos prévios de Fábio Fernandes Dias com a Unicamp fizeram com que essa universidade, por meio de algumas de suas unidades, como a Faculdade de Engenharia e Alimentos, o Instituto de Química e a Faculdade de Engenharia Agrícola, se tornasse um parceiro privilegiado do projeto. No total, mais de cinquenta espécies, entre óleos, folhas, polpas, castanhas e outros foram pesquisados e catalogados durante os três anos e meio do Programa de Pesquisa e Aproveitamento de Recursos Naturais Renováveis. Os potenciais econômicos de cada espécie foram estudados, levando-se em consideração a percentagem de óleo produzida, sua qualidade e o potencial comercial das diversas essências. Entre dezenas de espécies pesquisadas, a palmeira murmuru começou a se destacar pelo potencial que apresentava para o mercado de cosméticos. Em outubro de 1996, após o término do convênio entre a Apiwtxa e o CPI, dando prosseguimento à pesquisa iniciada em 1992 com os Ashaninka do rio Amônia e interessado em viabilizar comercialmente alguns resultados, Fábio Dias se associou à antropóloga Margarete Mendes e fundou a empresa Tawaya em Cruzeiro do Sul.17 A empresa foi criada com o objetivo de produzir óleos e 70

Livro Conhecimento e Cultura.indd 70

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

gorduras a partir de produtos extrativistas da região e sabonetes destinados ao mercado de cosméticos. Além da unidade de produção, a fábrica conta com um pequeno laboratório de pesquisa. A partir de 1999, a empresa iniciou lentamente sua produção com óleo de buriti e gordura de murmuru para a indústria do setor cosmético. No mesmo ano, a Tawaya fez a primeira grande compra do coco de seus fornecedores.18 No final de 2000, as primeiras amostras do sabonete de murmuru já tinham sido produzidas. Em 2004, a empresa obteve finalmente o registro do produto na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e começou a comercialização do sabonete no início de 2005. Para a Tawaya, a venda de sabonetes à base de murmuru era apenas o primeiro passo de um empreendimento comercial maior, cujo objetivo final era, de modo geral, a produção e comercialização de cosméticos, utilizando essências e óleos de várias espécies nativas da Amazônia. Assim, também conseguiu autorização da Anvisa para fabricar e pôr no mercado outros produtos à base de óleos de açaí, buriti, andiroba e patoá. Em sua propaganda comercial, a Tawaya se apresenta como uma empresa especializada na fabricação de cosméticos naturais obtidos a partir do extrativismo de frutos da floresta amazônica e pioneira na fabricação do sabonete de murmuru que constitui seu principal produto. Composto apenas de gordura de murmuru, hidróxido de sódio, água e flagrância, esse sabonete não tem conservantes, nem corantes. Apresentado como um produto 100% natural, é fabricado com oito essências diferentes: hortelã, cravo, canela, limão, herbáceo, floral, cidreira, erva-doce. A partir de 2006, a produção foi incrementada com o lançamento de uma linha de sabonetes líquidos. A empresa afirma que “todas as fórmulas, processos e equipamentos foram desenvolvidos pela própria Tawaya com a finalidade de adaptar o método tradicional de fabricação de sabonetes à realidade industrial”. O sabonete de murmuru é vendido em lojas especializadas e em algumas redes de comércio. Também pode ser adquiridos pela internet, inclusive em sítios do exterior19, e é encontrado em alguns hotéis. A Tawaya afirma ser uma empresa ecologicamente correta e socialmente justa com as populações locais. Tem como princípio: “a certeza da importância de preservar a Amazônia, sua gente, seus conhecimentos e sua biodiversidade”. Atua ao longo do rio Juruá e seus afluentes, desde o município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, até Eirunepé, no Amazonas. Compra diretamente o murmuru de produtores cadastrados, sem intermediários e com pagamento à vista. Em 2004, contava com a participação de mais de 700 extrativistas cadastrados. No mesmo ano, tinha 32 funcionários fixos, mais 20 temporários, e fabricava cerca de 50 mil sabonetes por mês. Segundo um responsável comercial 71

Livro Conhecimento e Cultura.indd 71

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

da empresa, a previsão era dobrar o número de fornecedores e funcionários a curto prazo para aumentar a produção.20 Com a venda do sabonete de murmuru, uma série de dificuldades surgiu e as relações entre a associação ashaninka e a Tawaya começaram a se deteriorar, abalando a confiança que vinha sendo construída nos últimos anos entre Fábio Dias e Margarete Mendes, de um lado, e as lideranças indígenas, de outro. O processo de comercialização do sabonete foi realizado sem consulta aos Ashaninka e sem sua participação. Referências aos índios ou à pesquisa realizada em seu território na primeira metade da década de 1990 não aparecem nas propagandas comerciais da empresa. Assim, os Ashaninka consideram que a Tawaya se apropriou indevidamente de seus conhecimentos tradicionais para produzir o sabonete de murmuru.

O conflito da associação ashaninka com a empresa Tawaya O conflito entre a Apiwtxa e a Tawaya é complexo. Remete à problemática do acesso aos conhecimentos tradicionais indígenas e à sua precária regulamentação jurídica. Antes de analisarmos mais detalhadamente alguns aspectos dessa disputa, apresentamos as posições das duas principais partes envolvidas em torno dos pontos mais salientes da controvérsia. O tema mais visível da disputa concerne à questão da repartição dos benefícios advindos do processo de comercialização do sabonete de murmuru, mas a querela é mais geral e diz respeito ao papel da Apiwtxa na definição da política e das orientações da empresa. Começamos por relatar a versão indígena. Os Ashaninka consideram que o sabonete é resultado direto da pesquisa iniciada em 1992 com o convênio Apiwtxa/CPI. Essa empreitada envolveu toda a comunidade indígena e se beneficiou copiosamente da mão de obra nativa e, sobretudo, dos saberes tradicionais dos Ashaninka. Pessoas adultas indicaram ao técnico contratado os usos de uma grande variedade de plantas da terra indígena. Disponibilizaram seus conhecimentos tradicionais relacionados a dezenas de espécies de folhas, frutas e sementes. Foram enfatizadas pesquisas com plantas usadas na alimentação, corantes, medicamentos tradicionais, óleos essenciais e castanhas, cujas propriedades foram comprovadas por análises laboratoriais. Do ponto de vista indígena, o intuito do Programa de Pesquisa e Aproveitamento de Recursos Naturais Renováveis era “tornar científicos” alguns conhecimentos que os índios possuíam da floresta, na esperança de que sua sabedoria a respeito do meio ambiente pudesse levar ao desenvolvimento de produtos para o mercado, oferecendo alternativas econômicas capazes de gerar renda suficiente para suprir as demandas da comunidade em bens manufaturados. 72

Livro Conhecimento e Cultura.indd 72

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Na perspectiva dos índios, a posição do técnico foi de mero fornecedor de tecnologia e eficácia científica para os conhecimentos tradicionais indígenas. As lideranças da Apiwtxa afirmam que participaram amplamente das discussões sobre a criação da empresa Tawaya com Fábio Dias e Margarete Mendes. Segundo os índios, durante a pesquisa anterior, o murmuru tinha revelado o melhor potencial econômico para o mercado de cosmético e nas discussões sobre a criação da empresa teriam decidido priorizar a produção de um sabonete à base de murmuru; um produto original para esse mercado. Os Ashaninka venderiam o coco de murmuru à Tawaya que, a partir de sua gordura, produziria o sabonete. Como a produção indígena de murmuru era insuficiente para satisfazer plenamente a atividade comercial da empresa, teriam concordado em incentivar outras populações do Alto Juruá (seringueiros, ribeirinhos, pequenos agricultores e outros povos indígenas) a também fornecer a matéria-prima à Tawaya. Apesar de não terem investido capital financeiro na empresa, os Ashaninka entendem que investiram seu “capital cultural” e que este foi fundamental para viabilizar a produção e comercialização do sabonete de murmuru. Assim, os índios gostam de lembrar o papel essencial desempenhado pela comunidade em todo o processo, desde a pesquisa, na qual Fábio Dias era apenas um pesquisador contratado por uma ONG para desenvolver um projeto a serviço da comunidade, até a criação da empresa e a produção do sabonete. Por essas razões, na opinião dos índios, as fronteiras que separavam a Tawaya da Apiwtxa, no momento de sua criação, não eram bem definidas e os interesses da empresa se confundiam com os da associação. Os Ashaninka se viam como empreendedores indígenas e esperavam que a Tawaya fosse um instrumento que pudesse contribuir para a concretização de um objetivo político maior: promover iniciativas de “desenvolvimento sustentável” não apenas para a Terra Indígena Kampa do rio Amônia, mas também, para toda a bacia do Alto Juruá. Justamente por isso, sempre concordaram em ampliar os benefícios do projeto para outras populações da região e nunca foram contrários à participação de comunidades de pequenos agricultores, seringueiros, ribeirinhos ou outras populações indígenas como fornecedoras de murmuru à empresa.21 Nessa perspectiva, consideram que a Tawaya é fruto do trabalho conjunto de Fábio Dias, Margarete Mendes e da comunidade ashaninka e querem que a Apiwtxa, como representante dos interesses indígenas, seja considerada como uma parceira plena, com participação nos resultados econômicos e na política da empresa e não apenas tratada como mera fornecedora de matéria-prima. Os Ashaninka do rio Amônia acusam Fábio Dias de ter se apropriado dos resultados dessa pesquisa e tomado decisões por conta própria, esquecendo seus engajamentos com a Apiwtxa. A distância entre a associação indígena e a Tawaya 73

Livro Conhecimento e Cultura.indd 73

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

aumentou com o início da comercialização do sabonete. Sentindo que a comunidade indígena estava sendo prejudicada e posta à margem desse processo, as lideranças ashaninka procuraram Fábio Dias para formalizar um acordo que garantisse, por escrito, aquilo que, segundo elas, vinha sendo acertado informalmente durante anos. A repartição dos benefícios advindos da produção do sabonete tornou-se um dos pontos mais salientes do conflito. Os índios consideram que têm direito a uma participação nos lucros oriundos da venda desse e de outros eventuais produtos derivados da pesquisa. Segundo as lideranças da Apiwtxa, até iniciar a fase de comercialização, Fábio Dias teria reconhecido a contribuição da comunidade indígena. Nas discussões que antecederam a criação da empresa, Moisés Piyãko alega inclusive que, como presidente da associação ashaninka, assinou um documento que afirmava que a empresa teria a configuração de um consórcio tripartite, seus benefícios sendo divididos entre os três sócios da seguinte forma: 50% para Fábio Dias, 25% para Margarete Mendes e 25% para a Apiwtxa. Moisés, no entanto, confiando na lealdade de seus aliados na época, não teria solicitado cópia desse documento.22 Na aldeia indígena, a expectativa de um retorno econômico com a venda do sabonete sempre foi grande. Os Ashaninka afirmam ter depositado muita confiança na pesquisa de óleos e essências florestais e acreditado na parceria com Fábio e Margarete. Além de ajudar as famílias na compra de bens industrializados, viam o recurso financeiro advindo da comercialização do sabonete de murmuru como uma possibilidade para realizar futuros investimentos em novas pesquisas, com outras espécies vegetais, aumentando a probabilidade de criar outros produtos. As esperanças deram lugar a uma imensa frustração e a um profundo sentimento de injustiça. Além da questão complexa da repartição dos benefícios da comercialização, existem outros pontos de divergência entre a Apiwtxa e a Tawaya. Destacamos aqui apenas dois. Os Ashaninka também consideram que o silêncio sobre o manejo do murmuru é uma questão problemática. Passaram a criticar a estratégia comercial da Tawaya que começou a comprar o coco de murmuru de fornecedores individuais em vez de associações de produtores, como anteriormente planejado. Longe de ser irrelevante, essa escolha preocupa os índios na medida em que põe em risco todo o projeto político da Apiwtxa para promover a sustentabilidade da região do Alto Juruá. Os Ashaninka consideram que uma empresa que faz da conservação ambiental um argumento de venda precisa discutir um plano de manejo de longo prazo para a coleta de murmuru com os seus fornecedores e que esse plano só tem reais possibilidades de ser respeitado trabalhando com associações credenciadas para a coleta e não com fornecedores individuais. 74

Livro Conhecimento e Cultura.indd 74

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Outro ponto da disputa entre a Apiwtxa e a Tawaya diz respeito ao uso do próprio nome da empresa. A palavra tawaya designa, na língua ashaninka, o igarapé Amoninha, um afluente do rio Amônia, na desembocadura do qual foi realizada a maior parte da pesquisa com as espécies florestais entre 1992 e 1995. Na ausência de um entendimento sobre os rumos da empresa, os índios afirmam que esse nome também faz parte de seu patrimônio cultural e que não autorizaram seu uso. Na perspectiva nativa, a marca Tawaya não deveria aparecer nos produtos da empresa que deveria mudar de nome. Fábio Dias e Margarete Mendes relatam a história do sabonete de murmuru de modo bem diferente. Durante entrevista concedida ao antropólogo José Pimenta no final de 2000, antes do acirramento do conflito, Fábio Dias já se mostrava irritado com as cobranças repetitivas das lideranças indígenas. Segundo ele, o levantamento de produtos feito no âmbito do projeto CPI/Apiwtxa excluía, intencionalmente, pesquisas sobre plantas tradicionais e outros conhecimentos específicos dos Ashaninka, justamente, para evitar no futuro questões de patentes ou de direitos autorais. Fábio Dias alega que as informações levantadas com a comunidade indígena poderiam ter sido obtidas com qualquer outra comunidade, indígena ou não, do Alto Juruá e até mesmo de outras regiões amazônicas. Para ele, a pesquisa foi realizada com a participação da comunidade, mas não envolveu nenhum tipo de conhecimento exclusivamente ashaninka, portanto, a Apiwtxa não tem motivos para reivindicar direitos autorais sobre o sabonete. Segundo Fábio Dias, as propriedades do murmuru são de domínio público, estão descritas na literatura cientifica há décadas, principalmente, na obra de Celestino Pesce (1985), publicada pela primeira vez em 1941. Fábio Dias e Margarete Mendes reconhecem que, em razão da proximidade que tinham com as lideranças da Apiwtxa, ocorreram muitas conversas informais sobre vários assuntos, mas negam que a ideia de produzir um sabonete à base de murmuru tenha sido dos índios. Garantem que não fizeram nada de desonesto com a comunidade. Descartam ter havido qualquer discussão sobre uma participação da Apiwtxa na gestão, na política ou nos benefícios da empresa. Em depoimento prestado à Procuradoria da República no Acre, Fábio Dias afirmou ainda que, na época da pesquisa, os Ashaninka não usavam o murmuru para fins cosméticos, nem utilizavam seu óleo ou essência. Segundo ele, os índios apenas o ajudaram na localização das árvores, sem indicar seu uso (Schettino 2007:18-19). Advogando, assim, não haver nada de exclusivo no sabonete de murmuru e nenhum benefício a repartir com os Ashaninka, Fábio Dias e Margarete Mendes consideram que as cobranças das lideranças da Apiwtxa não têm qualquer legitimidade. Tais acusações só teriam contribuído para atrasar o licenciamento ambiental da empresa, difamando-a em praça pública por suspeita de biopirataria. 75

Livro Conhecimento e Cultura.indd 75

26/4/2011 12:20:45

O sabonete da discórdia

Em relação ao uso do nome Tawaya, no início de 2000, Fábio Dias chegou a considerar a possibilidade de renomear sua empresa. Todavia, descartou rapidamente essa hipótese, alegando já ter feito muitos investimentos com esse nome e, inclusive, contratado uma empresa para registrá-lo como marca. Considera que o nome Tawaya não faz vender nem mais nem menos sabonetes e que não há impedimento legal em nomear uma empresa com uma palavra indígena. Até o início dos anos 2000, ambas as partes buscaram chegar a um compromisso amigável, mas não houve acordo. Nos últimos anos, a distância entre as posições da Apiwtxa e dos representantes da Tawaya aumentou e o diálogo foi rompido. Enquanto o pesquisador/empresário alega que o conhecimento a respeito do murmuru é de domínio público, com informações publicadas desde o início de década de 1940, os Ashaninka continuam reivindicando direitos sobre a comercialização de um produto que eles consideram oriundo do uso indevido de seus conhecimentos tradicionais. Após várias reuniões de negociação sem acordo, frente à recusa de Fábio Dias e de Margarete Mendes em reconhecer a participação dos índios no processo de desenvolvimento do sabonete e à complexidade da legislação sobre o uso dos conhecimentos tradicionais, as lideranças ashaninkas levaram a disputa à esfera judicial. Sentindo-se extorquidos e violados em seus direitos, os representantes da Apiwtxa procuraram o Ministério Público Federal que, no uso de suas atribuições, deu início, em agosto de 2007, a uma Ação Civil Pública contra a Tawaya e duas outras empresas por uso indevido dos conhecimentos tradicionais da comunidade indígena.

A ação do Ministério Público Federal: o imbróglio jurídico No banco dos réus, a Tawaya foi acompanhada pela Chemyunion Química Ltda e pela Natura Cosméticos. Essas três empresas são acusadas pelo MPF de registrar, entre 2001 e 2006, dezenove produtos, à base de gordura de murmuru, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), e de solicitar cinco patentes (Schettino 2007:47). Nenhum desses registros e pedidos de patentes faz referência aos Ashaninka, embora todos sejam posteriores ao término da pesquisa da Apiwtxa com o CPI. Sozinha, a empresa Chemyunion Química Ltda registrou três pedidos de patentes no INPI, respectivamente sob os números PI 0106625-0, PI 0303405-4 e PI 0503239-3. O primeiro desses pedidos data do dia 8 de outubro de 2001. No processo judicial, a Chemyunion afirma que a Tawaya é uma de suas duas fornecedoras de gordura de murmuru. Diz possuir oito produtos à base de gordura de murmuru, cujo desenvolvimento foi realizado a partir de referências bibliográficas sobre a palmeira. Cita o livro do Celestino Pesce de 1941, também citado por 76

Livro Conhecimento e Cultura.indd 76

26/4/2011 12:20:45

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Fábio Dias, e outra fonte bibliográfica menor de 1991. Em 14 de maio de 2003, Fábio Fernandes Dias também depositou seu pedido de patente do sabonete do murmuru sob o nº PI 0301420-7. Por fim, em ofício à Procuradoria da República do Acre, datado de 18 de janeiro de 2007, a empresa de cosméticos Natura, que passou a comercializar produtos à base de murmuru para a sua linha Ekos, informou que registrou na Anvisa, entre 19 de agosto de 2003 e 04 de junho de 2006, 11 produtos à base da gordura dessa palmeira. Também alega ter usado dados da literatura científica para desenvolver esses produtos e que ingressou, junto ao INPI, com um pedido de patente da manteiga do murmuru sob o número PI 0503875-8 (Schettino 2009:4). Por essas razões, a ação do MPF, com base na Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) e na Medida Provisória nº 2.186/2001, inclui, além do empresário Fábio Fernandes Dias, proprietário da Tawaya, o INPI, a empresa Chemyunion Química Ltda e a Natura, todos envolvidos com pedidos de patentes e registros de marcas relacionados ao uso comercial do murmuru. Na ação, o procurador da República José Lucas Perroni Kalil solicita a inversão do ônus da prova quanto à obtenção do conhecimento para as supostas invenções e marcas. Para o MPF, Fábio Dias, a Chemyunion Química Ltda e a Natura devem ser condenados à indenização de 50% do lucro total obtido nos anos de exploração até o momento e pelos próximos cinco anos, a contar da data de trânsito em julgado da decisão final. Essa seria a maneira de possibilitar a equânime distribuição dos benefícios quanto à exploração de produtos com murmuru. Outra exigência do MPF envolve o INPI, acusado de negligência por desconsiderar o acesso aos conhecimentos tradicionais e a subsequente distribuição equânime de benefícios para os pedidos de patente ou registro deles originados. Por fim, o MPF propõe que Fábio Dias, a Chemyunion Química e a Natura Cosméticos sejam condenados a indenizar por danos morais à sociedade brasileira e à comunidade indígena, com valor a ser estabelecido pelo juiz Jair Fagundes da 3ª Vara da Justiça Federal no Acre. Propõe que esse valor seja revertido de modo equânime entre a associação Apiwtxa e o Fundo Federal de Direitos Difusos.23 A ação do MPF se baseia em farta documentação que busca resgatar o protagonismo ashaninka na pesquisa realizada na Terra Indígena Kampa do rio Amônia e mostrar as ligações dessa pesquisa com o sabonete de murmuru. Em 2007, a perícia realizada pelo antropólogo do MPF Marco Paulo Schettino mostra, com riqueza de detalhes, que houve acesso aos conhecimentos tradicionais dos Ashaninka. Na conclusão de seu relatório, datado de 13 de julho de 2007, o autor afirma claramente:

77

Livro Conhecimento e Cultura.indd 77

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

A partir dos dados coletados em campo, da análise dos documentos levantados no Inquérito Civil Público e da etnografia recente a respeito dos Ashaninka que habitam a bacia do rio Amônia no Estado do Acre, constatamos que houve acesso a recursos genéticos e a conhecimentos tradicionais dessa comunidade Ashaninka. (Schettino 2007:48) Uma série de outros documentos integra o volumoso processo judicial que tramita na Justiça Federal do Acre e apontam na mesma direção. Apesar de uma legislação ainda embrionária, o MPF dispõe de uma grande quantidade de informações para sustentar sua ação. Sem entrar nos pormenores do “dossiê murmuru”, procuramos, a seguir, apontar alguns desses documentos que constam no referido processo e que evidenciam claramente as ligações entre a pesquisa realizada entre 1992 e 1995 na terra indígena e o desenvolvimento comercial do sabonete de murmuru pelas três empresas acusadas. Alguns dessas informações foram produzidas pelos próprios réus da ação. Diferentes documentos do processo judicial atestam que a pesquisa desenvolvida na Terra Indígena Kampa do rio Amônia foi uma iniciativa dos Ashaninka, representados pelas lideranças da associação Apiwtxa. Os índios foram os promotores e protagonistas da pesquisa e buscaram o apoio do CPI para concretizá-la. A ida de Fabio Dias para o Alto Juruá decorreu de sua inserção como técnico no Projeto Apiwtxa/CPI em 1992. Ele próprio sempre reconheceu esse fato. Os termos para o desenvolvimento dessa pesquisa foram formalizados por meio de um “convênio de colaboração” celebrado entre a Apiwtxa, representada na época pelo seu presidente Francisco Piyãko, e o NCI/CPI dirigido por Aílton Krenak. O convênio orientava a implementação do projeto e definiu que cabia ao CPI e à Apiwtxa contratar o técnico necessário à execução da pesquisa, bem como coordenar e supervisionar suas ações em campo. A associação ashaninka comprometia-se a garantir o acesso do técnico à terra indígena, encarregava-se de recebê-lo, hospedá-lo e orientar seus trabalhos. É interessante notar que o convênio de colaboração já apresentava uma preocupação com uma eventual apropriação indevida dos resultados do projeto. Após a exposição dos objetivos da pesquisa e das responsabilidades respectivas das partes, numa seção intitulada “Da propriedade e uso das informações”, o documento estabeleceu claramente a propriedade e o uso das informações decorrentes da pesquisa nos seguintes termos: Os resultados deste Projeto de Estudo e Pesquisa, incluindo os relatórios, testes, mapas, fotos, a bibliografia, assim como todos os informes escritos e gravados, são de propriedade do Centro de Pesquisa Indígena e Associação Ashaninka do rio Amônia (Apiwtxa), que 78

Livro Conhecimento e Cultura.indd 78

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

juntos decidirão seu uso e aproveitamento. Durante a aplicação deste Projeto de Estudo e Pesquisa toda a divulgação de publicação de informações originados deste Estudo e Pesquisa deverá ser objeto de consulta entre as partes. O Centro de Pesquisa Indígena e Associação Ashaninka do rio Amônia (Apiwtxa) deverão cooperar entre si na proteção e defesa destes acordos especialmente nos casos que envolvem interesses e opções particulares de técnicos e pesquisadores envolvidos nesta cooperação. Em seus itens 4.7, 4.8, 4.9 e 4.10, o acordo de cooperação entre a Apiwtxa e o NCI/CPI também especificava que: 4.7) O CPI e a Apiwtxa comprometem-se a não requerer individualmente patente de nenhum tipo em relação a produtos, processos, marcas e informações geradas durante a vigência deste acordo e como consequência dele. 4.8) Caso sejam descobertos produtos com propriedades biológicas importantes como consequência de amostras e informações geradas a partir deste acordo, o CPI e a Apiwtxa comprometem-se a se informarem imediatamente a esse respeito, mesmo após o período de vigência deste acordo, quando isto for de seu conhecimento. 4.9) O conjunto de informações gerado como consequência deste acordo poderá ser usado livremente, respeitados os itens 4.7 e 4.8 deste documento e a citação de todos os colaboradores em publicações, exposição ou outra forma de divulgação. 4.10) O CPI e a Apiwtxa comprometem-se a desenvolver produtos em associação, caso isso ocorra em decorrência direta ou indireta deste acordo. Será firmado novo acordo, antes que se inicie este processo e como condição para que ocorra. Neste novo acordo deverá constar: a) Direitos de cada uma das partes envolvidas, particularmente dos signatários dos documentos relacionados no item 4.4 [cita os acordos da CPI com diferentes instituições, inclusive com o Laboratório de Óleos da Unicamp], em relação a produtos, processos e marcas. b) Participação de cada uma das partes envolvidas nos rendimentos obtidos a partir da comercialização destes produtos, de patentes, processos e marcas, seja diretamente ou através de concessões a terceiros.

79

Livro Conhecimento e Cultura.indd 79

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

O contrato de trabalho de Fábio F. Dias com o CPI também estipulava claramente que os frutos da pesquisa caberiam ao patrocinador do projeto e não ao pesquisador. Assim, em sua cláusula 4, o contrato de trabalho assegurava: Os resultados de análise de amostras e informações sobre produtos, gerados durante a pesquisa, particularmente aquelas a respeito de suas utilizações, obtidos junto a populações tradicionais ou via análise laboratorial, fica à inteira disposição do Centro de Pesquisa Indígena. Caso essas informações sejam consideradas confidenciais, sua utilização, mesmo pelo pesquisador contratado, ficará a critério do Centro de Pesquisa Indígena. (...) No caso de publicações utilizando estas informações, deverá ser citado o Centro de Pesquisa Indígena como patrocinador da pesquisa. O convênio assinado entre a Apiwtxa e o CPI, o contrato de trabalho de Fábio Fernandes Dias e outros documentos do processo atestam que o lugar reservado ao técnico foi o de fornecer a tecnologia capaz de potencializar os conhecimentos indígenas sobre seus recursos naturais, dotando-os de eficácia e valor comercial de modo a gerar um retorno econômico para a comunidade. O próprio pesquisador reconheceu que a sua posição dentro do projeto de pesquisa era a de um “assessor técnico”. Outros documentos reunidos no processo de ação civil pública sustentam a posição do MPF e não deixam dúvidas sobre as conexões entre a pesquisa desenvolvida pela Apiwtxa e o CPI, entre 1992 e 1995, e o desenvolvimento posterior de produtos cosméticos à base de gordura de murmuru pela Tawaya, Chemyunion e Natura. Cabe notar que alguns desses documentos mencionam explicitamente o uso de conhecimentos tradicionais ashaninka nas pesquisas. Entre 1993 e 1996, as atividades do CPI no Alto Juruá, entre eles o Programa de Pesquisa e Aproveitamento de Recursos Naturais Renováveis desenvolvido na Terra Indígena Kampa do rio Amônia, passaram a ter financiamento da Embaixada da Áustria à qual o NCI apresentou relatórios semestrais entre 1994 e 1996. No total, seis relatórios descreveram as atividades realizadas em cada subprograma e prestaram contas da aplicação dos recursos recebidos. Esses documentos informam o desenrolar da pesquisa entre os Ashaninka do rio Amônia e nos dão informações preciosas. Vejamos alguns trechos desses relatórios. No Iro. Relatório de Implementação dos Projetos Pilotos do Centro de Pesquisa Indígena, datado de julho de 1994, já consta a informação do acesso a recursos genéticos e a conhecimentos tradicionais ashaninka: 80

Livro Conhecimento e Cultura.indd 80

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Na primeira fase do trabalho, de setembro de 1992 a maio de 1993, priorizou-se como principal atividade em campo a coleta de diversas amostras de produtos da floresta e informações sobre suas formas de extração. Esta atividade envolveu uma equipe de cinco jovens Ashaninka, membros da comunidade local, que acompanhou todo o trabalho de perto transmitindo informações de conhecimento tradicional sobre as plantas e assimilando os principais procedimentos técnicos envolvidos. (...) Essas atividades, além do caráter científico de pesquisa e estudo de viabilidade econômica, têm um componente cultural muito importante: o envolvimento de pessoas indígenas da comunidade, principalmente os mais jovens, no conhecimento de seu território em atividades de localização e monitoramento das plantas e no conhecimento tradicional de identificação e uso dessas espécies nativas (....) Através da Faculdade de Engenharia de Alimentos [da Unicamp] iniciou-se a análise das amostras de óleo de copaíba e outros óleos não essenciais e gorduras. Algumas amostras já tiveram a fase de análise concluída, como no caso da copaíba, revelando, para a surpresa dos técnicos, aspectos que diferenciam os óleos dessas espécies do Amônia de outras até hoje analisadas. (ênfases nossas)24 O terceiro relatório reafirma a particularidade dos produtos coletados na Terra Indígena Kampa do rio Amônia e seu potencial comercial: O Centro de Pesquisa Indígena, através do pesquisador Fábio Dias, vem trabalhando na elaboração de textos explicativos sobre produtos que vêm sendo pesquisados dentro do Programa de Recursos Naturais, desde outubro de 1993. Estes produtos têm uma característica singular, pois nunca foram comercializados ou utilizados industrialmente. As informações compiladas em campo, em levantamentos bibliográficos e laboratórios, contidas nestes textos explicativos, indicarão as potencialidades e formas de aproveitamento desses produtos, do ponto de vista econômico, social, tecnológico e ecológico. Portanto, esses textos poderão servir de base e referência para empresas e para a própria comunidade envolvida no processo, no sentido do aproveitamento econômico desses produtos. (ênfases nossas) O quarto relatório, referente ao período de julho a dezembro de 1995, refere-se explicitamente ao murmuru, destacando seu potencial comercial. Informa 81

Livro Conhecimento e Cultura.indd 81

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

ainda que o Laboratório de Óleos da Unicamp, já naquele ano, a partir da análise de amostras coletadas na Terra Indígena Kampa do rio Amônia, indicava o aproveitamento do óleo de murmuru para a indústria de cosméticos: Dos 50 produtos coletados e analisados desde 1993, o CPI e a comunidade decidiram concentrar os esforços em quatro produtos que apresentam maior facilidade na coleta, processamento e conservação e que também tiveram boas respostas nas análises iniciais indicando possibilidades de uso comercial para a indústria de artefatos e cosméticos. Os produtos escolhidos para uma segunda fase de estudos são: castanha do cocão – Attalea tessmanii Burret (utilizada como “madeira” na confecção de artefatos e artesanato), óleo de murmuru (fruto de uma palmeira), gordura de tubesta e polpa de feruta-sabão – os três com possibilidade de uso na indústria de cosméticos. Nesta segunda fase, novas amostras serão coletadas e processadas pelos laboratórios da Unicamp para definição do processamento e armazenamento enquanto a empresa Floramazon (com a qual o CPI firmou convênio de cooperação) busca compradores para os produtos junto à indústria de cosméticos. (ênfases nossas) O quinto relatório, enviado à Embaixada da Áustria em julho de 1996, informa o encerramento das atividades do programa e o término do vínculo contratual do técnico Fábio Dias com o NDI/CPI. Informa ainda que cabe à comunidade decidir sobre o melhor momento para firmar contratos comerciais com empresas para explorar os produtos florestais analisados. O CPI coloca-se à disposição dos Ashaninka para prestar assessoria em caso de necessidade. Por fim, o sexto e último relatório, datado de dezembro de 1996, informa que os representantes da Apiwtxa e o técnico Fábio Dias decidiram dar prosseguimento aos trabalhos de forma independente do CPI, assumindo a responsabilidade pelo futuro do projeto.25 Os relatórios enviados pelo CPI à Embaixada da Áustria não são os únicos documentos que mencionam explicitamente o uso de conhecimentos tradicionais dos Ashaninka durante a pesquisa. Um artigo escrito por Margarete Mendes, com a participação de Fábio Dias e Francisco Piyãko, também é bastante esclarecedor. O texto foi publicado em 2000 na série Povos Indígenas no Brasil do Instituto Socioambiental. Naquele momento, as relações entre os pesquisadores e a comunidade indígena ainda não tinham se esfacelado e ainda havia possibilidade das partes chegarem a um acordo, o que explicaria a parceria. Nesse texto, a antropóloga afirma que o sabonete de murmuru foi “criado a partir das gorduras vegetais extrativistas produzidas pela Tawaya e de essências 82

Livro Conhecimento e Cultura.indd 82

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

exclusivas dos Ashaninka” (Mendes 2000:573 – ênfase nossa). Também confirma que a empresa Tawaya surgiu como “consequência de um processo de pesquisa e levantamento de produtos florestais, levada a cabo pelos Ashaninka em parceria com a ONG Núcleo de Cultura Indígena, (sediada em São Paulo), no período 1992 a 1995” (ibid.). Para o MPF, todos esses documentos comprovam que o uso comercial do murmuru para a indústria cosmética, no caso da Tawaya, está intimamente ligado ao programa de pesquisa desenvolvido com os Ashaninka do rio Amônia entre 1992 e 1995 no qual Fábio Dias trabalhou como técnico contratado por uma ONG. Também deixam claro que as pesquisas utilizaram conhecimentos tradicionais indígenas e focalizaram-se em produtos “singulares”, “diferenciados”, “exclusivos” ou “nunca antes comercializados”. Em depoimento à Procuradoria da República do Acre, Fábio Dias informou que foi o Laboratório de Óleos e Gorduras da Unicamp que lhe indicou a possibilidade do aproveitamento da gordura de murmuru para a produção de sabonetes, deixando entender que o processo de criação do sabonete seria uma iniciativa individual. Na realidade, as informações dos relatórios do NCI/CPI mostram que foi em função do projeto de pesquisa que esse e outros laboratórios foram acionados com o objetivo de indicar possíveis usos comerciais dos recursos naturais pesquisados na Terra Indígena Kampa do rio Amônia. Lembramos que fazia parte do projeto o envio de amostras vegetais para diferentes instituições, entre elas, a Unicamp, para análise laboratorial a fim de definir o potencial econômico de cada espécie. Portanto, as informações produzidas pelo laboratório da Unicamp são consequência direta da pesquisa protagonizada pelos Ashaninka. Embora possamos identificar uma ligação direta entre a Tawaya e o Programa de Pesquisa e Aproveitamento de Recursos Naturais Renováveis, o que pode ser dito sobre a Chemyunion e a Natura que também foram incluídas na ação civil pública? O que liga essas duas empresas à pesquisa realizada pelos Ashaninka do rio Amônia? Os advogados da Chemyunion tentaram excluí-la do processo alegando que a empresa não tem qualquer relação com a comunidade ashaninka. Apesar de não existir uma ligação direta, essa empresa acabou sendo incorporada à ação do MPF em razão de suas relações com Fábio Dias e com um cientista da Unicamp. Em sua defesa, ela afirma que conheceu Fábio Dias por volta de 2001, quando ele passou a lhe fornecer remessas constantes de óleo e gordura de murmuru. O contato da Chemyunion com Fábio Dias teria sido intermediado pelo Prof. Daniel Barrera-Arellano, na época chefe da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Segundo essa empresa, a sugestão de emprego do óleo do murmuru como emoliente para hidratação de pele e cabelos teria vinda do 83

Livro Conhecimento e Cultura.indd 83

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

próprio Prof. Daniel Barrera-Arellano. Foi justamente esse pesquisador que assinou os Laudos de Análise Físico-Química de Óleos Extraídos e Amêndoas e Sementes, solicitados pelo Centro de Pesquisa Indígena (CPI) e elaborados pelo Laboratório de Óleos e Gorduras (FEA/Unicamp), em 1994, ou seja, dois anos após o início da pesquisa de Fábio Dias junto aos Ashaninka. Além disso, Fábio Dias, assim como várias pessoas que trabalhavam para a Chemyunion, foram alunos do Prof. Barrera-Arellano.26 A alegação da Natura, por sua vez, chama a atenção para a controvérsia dos chamados “conhecimentos difusos” e a complexidade de definição jurídica do “conhecimento tradicional.” Seu argumento de defesa se apoia nas nebulosidades da legislação vigente no que tange aos conhecimentos simultaneamente compartilhados por mais de uma comunidade ou de um povo indígena. Os advogados da empresa defendem que o murmuru não foi (e não é) coletado apenas no território ashaninka, mas também em outras comunidades da região, de tal forma que, ao indenizar os indígenas por um “conhecimento difuso”, abrir-se-iam brechas na jurisprudência para que outras comunidades (neste ou em outros casos) acionem o mesmo dispositivo jurídico. A empresa nega não apenas ter alguma relação com os Ashaninka, como também qualquer envolvimento no caso, uma vez que nunca esteve na terra indígena e que sua “descoberta científica” teria se apoiado exclusivamente em estudos internos, realizados por pesquisadores da Natura Inovação e Tecnologia de Produtos LTDA, a partir da literatura científica disponível. Como principal fonte de informação, a empresa cita um artigo de Barrera-Arellano e Mambrin, publicado em 1997, sobre óleos de várias espécies de palmeiras da Amazônia brasileira, entre elas e murmuru. Além de condensar os resultados de obras e estudos anteriores, esse artigo também informa a presença, em grande quantidade, de ácidos graxos saturados na castanha de murmuru (Barrera-Arellano e Mambrin1997), o que comprovaria sua ação emoliente. Segundo os advogados da Natura, essas informações foram suficientes para subsidiar o processo criativo dos cientistas da empresa. Coincidência ou não, como no caso da Chemyunion, encontramos novamente o elo de ligação entre a Natura e os Ashaninka na pessoa do Prof. Barrera-Arellano da Unicamp que analisou as amostras oriundas da Terra Indígena Kampa do rio Amônia. Assim, Fábio Dias e os outros réus afirmam recorrentemente que o uso do murmuru na indústria cosmética não deve nada aos Ashaninka, sendo um produto exclusivo de pesquisas laboratoriais, cujos principais resultados estão disponíveis na literatura especializada. O livro de Celestino Pesce (1985) é a referência básica. Originalmente publicado em 1941, essa obra apresenta descrições botânicas, taxonômicas e físico-químicas de plantas com elevadas 84

Livro Conhecimento e Cultura.indd 84

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

concentrações de óleos e gorduras, entre elas o murmuru. Informa a presença, em grande quantidade, de ácidos graxos saturados na castanha da palmeira. Posteriormente, as informações sobre os princípios ativos do murmuru foram confirmadas e complementadas pelo artigo de Barrera-Arellano e Mambrin, publicado em espanhol, em 1997, no volume 48 da revista Grasas y Aceites com o titulo: “Caracterización de aceites de frutos de palmeras en la région amazônica del Brasil”.27 A literatura científica comprovaria a ação emoliente do murmuru, o que possibilitaria, segundo as empresas, o uso dessa espécie na indústria cosmética. Ficam, no entanto, algumas perguntas sem respostas. Se a composição química do murmuru é conhecida desde a década de 1940 e a presença de ácidos graxos saturados na castanha dessa palmeira é uma informação científica suficiente para produzir um sabonete, por que a indústria cosmética só começou a produzir um sabonete à base de murmuru e solicitar patentes desses inventos no início do século XXI, mais de 60 anos após a publicação do livro de Pesce? Qual é a real importância do artigo de Barrera-Arellano e Mambrin para a invenção do sabonete? Em que medida essa publicação foi essencial para a indústria cosmética? E, principalmente, o que ela deve aos Ashaninka, já que existem evidências de que a “matéria-prima” (amostras, informações etc.) que alimentou as pesquisas do Prof. Barrera-Arellano era proveniente da Terra Indígena Kampa do rio Amônia. Em síntese, para as empresas, os princípios ativos do murmuru, por terem sido processados e, posteriormente, analisados em laboratório (e não na terra indígena), são descobertas da ciência, o que lhes permite advogar pela titularidade da invenção. Com essa afirmação, elas estabelecem uma divisão da produção científica entre a pesquisa realizada em campo (in situ) e o trabalho em laboratório (ex situ). Como mostrou Ramos, o manuseio de espécies em seu habitat (in situ) e o posterior processamento genético de amostras em laboratórios (ex situ) transforma esses recursos naturais em bens manufaturados que passam a ser objeto de propriedade da ciência, dispensando referências à situação que os originou e tornando-se “citações fora do contexto” (Ramos 2004:11). Na perspectiva de Fábio Dias, por exemplo, a produção do fato científico encontra-se alheia à sua vivência na aldeia, o que excluiria, entre outros, as coletas de plantas acompanhadas pelos jovens indígenas, bem como as inúmeras entrevistas realizadas com os mais velhos. Visto dessa maneira, esse conhecimento apresenta-se purificado da vivência do trabalho de campo originário, redefinido e depurado, ao seu modo, no “perímetro do laboratório” (Latour 2000; 2001).

85

Livro Conhecimento e Cultura.indd 85

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

Considerações finais Baseado na Medida Provisória de 2001, o MPF ressalta que não é somente o acesso direto ao conhecimento tradicional que dá ensejo à partilha dos resultados econômicos, mas também o acesso indireto. Dessa forma, considera que os resultados das análises laboratoriais realizadas pelo Laboratório de Óleos da Unicamp, a pedido do CPI quando da realização da pesquisa junto aos Ashaninka, serviram como base para as conclusões do Prof. Dr. Daniel BarreraArellano e foram disponibilizados por ele e por Fábio Dias, e apropriados também pela Chemyunion e pela Natura, sem o conhecimento e o consentimento dos índios, contrariando contratos e acordos preestabelecidos.28 É importante frisar que os Ashaninka do rio Amônia não se opõem a partilhar seus conhecimentos e também nunca reivindicaram possuir uma sabedoria exclusiva sobre o murmuru e suas propriedades. Essa palmeira é usada por populações ribeirinhas da Amazônia e, provavelmente, embora não tenhamos informações a esse respeito, por outras populações indígenas da região. Assim, o uso do murmuru é bastante disseminado e pode ser considerado um “conhecimento difuso”. As propriedades de seu óleo também foram registradas há mais de meio século na literatura científica. No entanto, para os Ashaninka, existe uma ligação direta entre a pesquisa realizada na primeira metade da década de 1990 na Terra Indígena Kampa do rio Amônia e o aproveitamento do óleo da castanha de murmuru na indústria cosmética com a comercialização do contestado sabonete. Considerando que os índios foram os empreendedores da pesquisa, o MPF também alega que, em termos jurídicos, a questão problemática do acesso indevido aos conhecimentos tradicionais desse povo indígena, embora importante, é somente uma das dimensões do litígio. Desconsiderando-se a problemática do “conhecimento tradicional” e sua precária definição e regulamentação na legislação, levando-se em consideração apenas o processo produtivo, a Lei nº 9.279/96, que regula os direitos relativos à propriedade industrial, já garantiria por si só aos Ashaninka, como empreendedores, direito à titularidade das patentes solicitadas pelas empresas. Ao lutar por seus direitos, os Ashaninka querem que seja reconhecido seu protagonismo no processo criativo que iniciou com a pesquisa que empreenderam em seu território e que usou seus conhecimentos sobre o meio ambiente. No momento em que redigimos este artigo, o imbróglio jurídico em torno do sabonete de murmuru continuava. A audiência realizada no dia 17 de fevereiro de 2009, na 3ª Vara da Justiça Federal no Acre, com a presença dos líderes da Apiwtxa, dos advogados da Natura, da Chemyunion, e de Fábio Fernandes Dias, 86

Livro Conhecimento e Cultura.indd 86

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

terminou sem acordo entre as partes. O juiz chegou a propor que as contrapartidas das empresas que requereram as patentes fossem transformadas em bens materiais: barcos, motores fluviais etc. Os Ashaninka e o procurador recusaram a proposta. Em seu depoimento, Moisés Piyãko reafirmou a posição da Apiwtxa e procurou mostrar ao juiz que não estavam mendigando ou buscando uma simples indenização financeira, mas que se tratava de uma luta pela conquista e pelo reconhecimento público de um direito legítimo e juridicamente embasado (Schettino 2009). Lembramos, ainda, que o murmuru não foi a única espécie pesquisada durante a parceria Apiwtxa/CPI. Como vimos, essa pesquisa levantou informações e catalogou dezenas de espécies vegetais com potencial econômico. Os Ashaninka solicitaram que todos os dados sobre o mapeamento etnobotânico oriundos dessa pesquisa, que estão atualmente em posse do pesquisador Fábio Dias, também sejam restituídos à comunidade indígena. A luta dos Ashaninka do rio Amônia e a controvérsia gerada pela comercialização do sabonete de murmuru não constituem um caso isolado. A afirmação dos povos indígenas na cena política nacional e internacional nas duas últimas décadas tem sido acompanhada por crescentes reivindicações dessas populações contra o patenteamento de seus conhecimentos coletivos ou o uso indevido de seu patrimônio genético. Embora seja um importante instrumento, a legislação atual baseada na Convenção sobre a Diversidade Biológica e na Medida Provisória n° 2.186-16/2001 constitui uma proposta genérica e muitas vezes desconectada da complexa realidade social. Muitas questões ainda necessitam uma reflexão mais aprofundada. Por exemplo, como definir a noção de “conhecimento tradicional”? Como garantir direitos coletivos num regime jurídico baseado na propriedade individual? Essas são apenas algumas das principais questões desse complexo campo. Enquanto isso, a indústria de biotecnologia multiplica suas pesquisas. A partir de informações mínimas obtidas junto às populações indígenas ou tradicionais, a ciência ocidental estabelece linhas prospectivas direcionadas e obtém resultados exitosos, pois, nessas informações mínimas, muitas vezes já se tem um dado fundamental que leva a resultados finais inéditos. Assim, informações vindas de povos indígenas continuam levando a inventos industriais e ao registro de patentes no sistema ocidental de propriedade intelectual que desconhece a figura jurídica de “direitos coletivos”. Os índios permanecem excluídos dos frutos desse processo ou, na melhor das hipóteses, recebem migalhas de lucros bilionários. A controvérsia em torno do sabonete de murmuru é um dos vários exemplos envolvendo acesso aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, uma

87

Livro Conhecimento e Cultura.indd 87

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

problemática cada vez mais presente nas relações interétnicas no início do século XXI (Ávila 2005). De modo crescente, a biotecnologia aparece como uma nova fronteira de exploração que atinge esses povos, transformando seus conhecimentos tradicionais e até seu patrimônio genético em mercadoria (Ramos 2006). Além do murmuru, outros casos tiveram repercussões na mídia nacional nos últimos anos. Podemos citar rapidamente e sem pretensão à exaustividade a utilização de amostras de sangue dos Yanomami e dos Karitiana de Rondônia (Tierney 2000; Vander Velden 2004), o uso do kampô dos Katukina (Lima 2005; Martins 2006) ou de plantas medicinais dos Krahô e Wapichana para o desenvolvimento de produtos farmacológicos (Ávila 2004; 2006). Muitas vezes descritos pela imprensa e pelos próprios índios como exemplos de biopirataria, muitos desses casos apresentam grande complexidade antropológica e jurídica. Se a luta contra a biopirataria constitui um dos raros campos em que os interesses indígenas e nacionais convergem (Ramos 2006; Ávila 2005), a questão não diz apenas respeito à cobiça estrangeira sobre a biodiversidade amazônica. O sabonete de murmuru, por exemplo, é apresentado pelos Ashaninka e pelo MPF como um caso de biopirataria envolvendo empresas e instituições públicas nacionais. Privilegiando relatar a complexidade de um caso etnográfico, não nos cabe proferir um juízo que depende de apreciação jurídica além do nosso alcance. Buscamos simplesmente resgatar a história da produção e comercialização desse sabonete, principalmente a partir da visão dos índios, apoiada pelo MPF, mas também procurando apresentar as posições das empresas envolvidas. Contra as tentativas purificadoras da ciência, essa história nos levou a mapear caminhos sinuosos e relações embaralhadas que apontam para uma ligação, direta ou indireta segundo os casos, entre os Ashaninka do Amônia e o sabonete de murmuru. Qual é afinal o lugar desse povo indígena no processo inventivo que levou à produção do sabonete de murmuru? Estariam os Ashaninka condenados a desempenhar eternamente o papel de “informantes” de pesquisadores, vendo seus conhecimentos apenas considerados como “matéria-prima” da ciência ocidental?

88

Livro Conhecimento e Cultura.indd 88

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Notas Guilherme F. de Moura desenvolveu em 2009, sob a orientação do professor José Pimenta, do Departamento de Antropologia da UnB, uma Pesquisa de Iniciação Cientifica (PIC) sobre a controvérsia aqui tratada. Agradecemos a Alcida Rita Ramos e Marco Paulo Schettino pelos comentários feitos a uma versão anterior do texto. Os autores são obviamente os únicos responsáveis por seu conteúdo. Dedicamos este artigo à memória do amigo Thiago Antônio Machado de Ávila, cujas etnografias pioneiras sobre a apropriação dos conhecimentos tradicionais indígenas pela sociedade ocidental continuarão a inspirar a antropologia brasileira. 1 Os direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais passaram a ser resguardados por dois artigos da CBD. O artigo 8j prevê a salvaguarda dos direitos de propriedade intelectual coletiva indígena ou tradicional, com a aprovação da comunidade e com uma futura repartição equitativa dos benefícios adquiridos com a comercialização de produtos derivados do conhecimento tradicional. Já o artigo 10c sensibiliza para que o incentivo à utilização costumeira dos recursos biológicos se dê em coerência com as práticas tradicionais e culturais de cada povo (Santilli 2005). 2 Ver, por exemplo, Antunes (2002), Santilli (2005), Belfort (2006) e Carneiro da Cunha (2009). 3 Os Ashaninka integram o conjunto etnolinguístico dos Arawak subandinos e, em termos populacionais, são um dos principais povos indígenas das terras baixas. A grande maioria vive na Amazônia peruana. Os Ashaninka do rio Amônia habitam a Terra Indígena Kampa do rio Amônia na região do Alto Juruá, Estado do Acre. Nesse território, vivem cerca de 450 pessoas, concentradas na aldeia Apiwtxa e nos seus arredores. A palavra apiwtxa pode ser traduzida para o português como “todos juntos” ou “todos unidos” e também é o nome da associação indígena local. 4 Nesse quesito, além da própria peça jurídica da Justiça Federal (Processo nº 2007.30.00.0002117-3), também as notas técnicas e, sobretudo, o laudo pericial do analista em antropologia Marco Paulo Schettino foram de fundamental importância para a confecção deste trabalho. 5 As informações a seguir sobre o significado e usos do murmuru entre os Ashaninka do rio Amônia são intencionalmente genéricas e incompletas. Os recentes envolvimentos da associação Apiwtxa nas instâncias jurídicas solicitando, por exemplo, a quebra de patentes de produtos que consideram oriundos de seus conhecimentos tradicionais fortaleceram o ethos reservado dos Ashaninka; um povo muito cauteloso para falar de aspectos relacionados ao xamanismo, à mitologia e à medicina tradicional. O receio de disseminar seus conhecimentos se acentuou nos últimos anos com o surgimento da real possibilidade de uma apropriação indevida do que eles consideram parte de seu patrimônio cultural. Por outro lado, os Ashaninka também entenderam que a defesa de seus direitos na Justiça passava, obrigatoriamente, pela necessidade de explicar e demonstrar para os brancos as razões pelas quais eles consideram que o sabonete produzido à base de gordura de murmuru é uma apropriação indevida de seus conhecimentos tradicionais. As informações que retomamos aqui tornaram-se públicas com o Processo Judicial nº 2007.30.00.002117-3, atualmente em tramitação na Justiça Federal. 6 O “mito do murmuru” foi recolhido pela primeira vez pelo antropólogo José Pimenta em janeiro de 2007. Foi contado em língua ashaninka pelo índio Shomõtse, o morador mais idoso da aldeia Apiwtxa que afirmou ter ouvido o relato de seu avô. Em maio de 2007, durante sua viagem a campo para realização da perícia para o MPF, o antropólogo Marco Paulo Schettino recolheu uma versão semelhante desse mito (Schettino 2007:32). Em ambas as ocasiões, a tradução para o português foi feita por Moisés Piyãko. 7 A analogia com a barba deve-se às características próprias do tronco do murmuru que, diferentemente de outras palmeiras, apresenta placas justapostas recobertas de longos espinhos pretos. Os Ashaninka consideram o uso da barba um costume inadequado e socialmente reprovado. Sinônimo de sujeira, de falta de cuidado, a pilosidade do rosto é também uma característica do

89

Livro Conhecimento e Cultura.indd 89

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

branco e se opõe, por exemplo, à beleza dos desenhos faciais indígenas feitos com urucum. Os homens ashaninka que possuem uma pilosidade maior arrancam sistematicamente os pelos do rosto. 8 A mesma ética rege a caça (Pimenta 2005). 9 O murmuru é apenas um exemplo da complexidade da concepção ashaninka do “meio ambiente” e da riqueza dos conhecimentos nativos a ele associado. O livro de Lenaertz (2004) oferece uma excelente ideia dessa complexidade e riqueza. 10 Essas larvas não são exclusivas do murmuru. Segundo os Ashaninka, o pachori, por exemplo, também é encontrado na casca da mandioca e no mamão. 11 Segundo Schettino (2007:38), que testemunhou o uso do tchouitz para esse fim, o método é motivo de muita diversão quando usado em público. 12 O óleo também pode ser obtido pela mastigação da castanha do murmuru até se obter uma pasta oleosa que será, em seguida, passada no corpo. 13 Sobre a trajetória dos Ashaninka no mercado de projetos sustentáveis, ver Pimenta (2005; 2007; 2010). 14 Além da parceria com a Apiwtxa, podemos mencionar, por exemplo, um projeto do CTI com os Ashaninka e Kaxinawá do rio Breu para o manejo da caça. 15 A antropóloga Margarete Mendes defendeu sua dissertação de Mestrado em Antropologia na Unicamp. Sua pesquisa etnográfica versa sobre o ritual do piyarentsi e constitui o primeiro trabalho acadêmico realizado com os Ashaninka no Brasil (Mendes1991). Como antropóloga, no final da década de 1980 e início da década de 1990, Mendes teve uma atuação muito importante na defesa dos direitos dos Ashaninka do rio Amônia. Apesar de divergências posteriores em torno do sabonete de murmuru, os índios nunca deixaram de reconhecer o valor do apoio da antropóloga, principalmente, na luta pela demarcação de seu território, reconhecido pela Funai em 1992. 16 Além do projeto com os Ashaninka, o programa do CPI na região do Alto Juruá contava com dois outros projetos: um de incentivo à produção de couro vegetal, desenvolvido com os índios Yawanawá do rio Gregório, Kaxinawá do rio Jordão e com os seringueiros da Reserva Extrativista do Alto; o outro, de monitoramento da fauna implementado com os Ashaninka e Kaxinawá do rio Breu. 17 Segundo os índios, inicialmente, pensou-se na instalação da fábrica no município de Marechal Thaumaturgo, situado na boca do rio Amônia e mais próximo da terra indígena, mas a pequena cidade não oferecia infraestrutura adequada. O investimento financeiro foi essencialmente de Fábio Dias. Não temos informações sobre a existência de aporte financeiro da antropóloga no empreendimento. A empresa foi oficialmente registrada com o nome Fábio F. Dias ME, tendo como nome fantasia Tawaya sabonetes. Usaremos aqui esse nome fantasia por ser muito mais conhecido. 18 Essa foi a primeira e única vez que os Ashaninka venderam a castanha de murmuru para Tawaya. 19 No sítio francês , por exemplo, o sabonete de murmuru é vendido a € 5,50 e a versão líquida a € 4,85. (página acessada em 27 de julho de 2010). 20 As informações sobre a Tawaya contidas nestes três últimos parágrafos resultam de pesquisas na internet, principalmente de um vídeo de propaganda da própria empresa que pode ser consultado no sítio mencionado na nota anterior. Embora o sítio esteja em francês, o vídeo, de um pouco mais de sete minutos, tem áudio em português e apresenta um pouco da história e da atuação da empresa. Cabe frisar que, no decorrer do ano de 2010, o sítio da Tawaya deixou de apresentar informações sobre a empresa. Após um longo período indisponível, o endereço http://www. tawaya.com.br passou a informar a seus clientes e fornecedores que a Tawaya tinha encerrado suas atividades de fabricação de sabonetes e óleos em 30 de abril de 2009 (página consultada em 5 de dezembro de 2010). No entanto, a comercialização de sabonetes continuou. Além do sítio francês acima mencionado, sabonetes de murmuru da Tawaya continuavam sendo vendidos, por exemplo, na loja de Fábio F. Dias, no Mercado Municipal de Cruzeiro do Sul, no final de novembro de 2010, ao preço de R$ 2,50 cada. 90

Livro Conhecimento e Cultura.indd 90

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

Essa estratégia política maior em defesa de um amplo programa de desenvolvimento regional sustentável já estava presente na parceria entre o CPI e a Apiwtxa, cujo objetivo geral era, a partir da pesquisa realizada na Terra Indígena Kampa do rio Amônia, ampliar seus resultados para beneficiar outras populações da bacia do Juruá. Essa característica tem sido uma constante na política interétnica da Apiwtxa nos últimos vinte anos. Os Ashaninka entendem que uma solução duradora para garantir a sustentabilidade de seu território passa, obrigatoriamente, pela oferta de alternativas econômicas sustentáveis para seus vizinhos (Pimenta 2007; 2010). 22 A existência desse documento permanece um mistério. A informação de um acordo escrito regulamentando a repartição dos benefícios foi categoricamente refutada por Fábio Dias e Margarete Mendes em entrevista ao antropólogo José Pimenta em 2000 e, posteriormente, em juizado. Alegam que a Apiwtxa nunca teve nenhum tipo de direito legal sobre os benefícios da empresa. Por sua vez, Moisés Piyãko garante ter assinado um documento que definia as modalidades da criação da empresa, mas fornece informações imprecisas sobre os termos exatos desse documento, o que não deve ser surpreendente considerando que o mesmo, principalmente na época, era precariamente alfabetizado e pouco familiarizado com a burocracia estatal. 23 Criado pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos. 24 Os primeiros relatórios apontam o óleo de copaíba como um produto com potencial comercial importante. No entanto, essa opção será rapidamente abandonada porque os Ashaninka não conseguiram desenvolver um método capaz de extrair o óleo sem a derrubada das árvores. 25 Na realidade, a parceria efetiva entre a Apiwtxa e o CPI já estava concluída em dezembro de 1995. A etapa seguinte foi a criação da Tawaya, fundada em 31 de outubro de 2006. 26 Entre esses alunos, estão Márcio Polezel, um dos sócios da Chemyunion, e Cecília Nogueira, Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa. 27 A revista Grasas y Aceites é uma publicação do Instituto da La Grasa de Sevilha – Espanha, que desenvolve pesquisas na área de biotecnologia com plantas oleaginosas. Para mais informações, ver: http://grasasyaceites.revistas.csic.es/index.php/grasasyaceites e http://www.ig.csic.es/ pre.html. 28 Tanto a Chemyunion como a Natura também são acusadas de acessar o patrimônio biológico brasileiro sem autorização do órgão competente e sem o pagamento de qualquer quantia aos titulares desse patrimônio (a coletividade difusa de cidadãos brasileiros). 21

91

Livro Conhecimento e Cultura.indd 91

26/4/2011 12:20:46

O sabonete da discórdia

Referências ALBERT, Bruce. 2000. “Associações Indígenas e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia brasileira”. In: C. A. Ricardo (org.), Povos Indígenas no Brasil 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental. pp. 197-207. ANTUNES, Paulo B. 2002. Diversidade biológica e conhecimento tradicional associado. Rio de Janeiro: Lúmem Júris. ÁVILA, Thiago. 2004. “Não é do jeito que eles quer, é do jeito que nós quer”: Os Krahô e a Biodiversidade. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília. _______. 2005. “Biotecnologia e povos indígenas: imagens globocêntricas em cenários interétnicos do século XXI”. Pós - Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 5: 29-60. ________. 2006. “Biopirataria e os Wapichana: etnografia sobre a bioprospecção e o acesso aos recursos genéticos na Amazônia brasileira”. Revista de Estudos e Pesquisas, 3(1/2): 225-260. BALÉE, Wiliam. 1992. “People of the fallow: A historical ecology of foraging in Lowland South America”. In: K. Redford & C. Padoch. Conservation of Neotropical Forests: Working from tradicional resource use. New York: Columbia University Press. pp. 35-57. BARRERA-ARELLANO, Daniel & MAMBRIM M.C.T. 1997. “Caracterización de aceites de frutos de palmeras de la región amazónica del Brasil”. Grasas y Aceites, 48:154-15. BELFORT, Lucia Fernanda I. 2006. A Proteção dos Conhecimentos Tradicionais dos Povos Indígenas em face da Convenção Sobre a Diversidade Biológica. Dissertação de Mestrado em Direito, Universidade de Brasília. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas e outros ensaios. Cosac e Naify: São Paulo. pp. 311-373. LATOUR, Bruno. 2000. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed. UNESP. ________. 2001. A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru (SP): Edusc. LENAERTS, Marc. 2004. Anthropologie des indiens Ashéninka d´Amazonie. Nos soeurs Manioc et l´étranger Jaguar. Paris: L´Harmattan. LIMA, Edilene C. 2005. “Kampu, kampo, kambô: o uso do sapo-verde entre os Katukina”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32:255-267. MARTINS, Homero. 2006. Os Katukina e o Kampô: Aspectos Etnográficos da Construção de um Projeto de Acesso a Conhecimentos Tradicionais. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília. 92

Livro Conhecimento e Cultura.indd 92

26/4/2011 12:20:46

José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

MENDES, Margarete K.. 1991. Etnografia preliminar dos Ashaninka da Amazônia brasileira. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Estadual de Campinas. _______. 2000. Os Ashaninka do rio Amônia no rumo da sustentabilidade. In: C. A. Ricardo (org.), Povos Indígenas no Brasil 1996/2000. São Paulo: Instituto Socioambiental. pp. 571-578. _________. 2002. “Classificação dos animais do Alto Juruá pelos Ashaninka. In: M. Carneiro da Cunha & M. B. de Almeida (orgs.), Enciclopédia da Floresta: o Alto Juruá. Práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras. pp. 445-452. JUSTIÇA FEDERAL. 2007. Processo nº 2007.30.00.0002117-3, acesso indevido a conhecimento tradicional do Povo Ashaninka, mimeo. PESCE, Celestino [1941]1985. Oil Palms and Other Oilseeds of the Amazon. Michigan: Dennis V. Johnson. PIMENTA, José. 2002. “Índio não é todo igual”: a construção ashaninka da história e da política interétnica. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de Brasília. _________. 2005. ”Desenvolvimento Sustentável e Povos Indígenas: os paradoxos de um exemplo amazônico”. Anuário Antropológico, 2002/2003:115-150. _________. 2007. “Indigenismo e ambientalismo na Amazônia Ocidental: A propósito dos Ashaninka do rio Amônia”. Revista de Antropologia, 50:633-681. _________. 2010. “O caminho da sustentabilidade entre os Ashaninka do rio Amônia – Alto Juruá (AC). In: C. Inglês de Sousa; F. de Almeida; A. C. de Souza Lima & M. H. Ortolan Matos (orgs.), Povos indígenas: projetos e desenvolvimento II. Rio de Janeiro: Paralelo 15:97-111. RAMOS, Alcida R. 2004. “Os Yanomami no Coração das Trevas”. Série Antropológica, DAN: UnB. ________. 2006. “The Commodification of the Indian”. In: D. Posey & M. Balide (eds.), Human Impacts on Amazônia: the role of tradicional ecological knowledge in conservation and development. New York: Columbia University Press. pp. 248-272. SANTILLI, Juliana. 2005. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis. SCHETTINO, Marco Paulo. 2007. Investigação do acesso a conhecimentos tradicionais da etnia Ashaninka: o caso do murmuru. Laudo Pericial Antropológico nº 69. Ministério Público Federal. mimeo. ___________. 2009. Processo nº 2007.30.00.0002117-3, acesso indevido a conhecimento tradicional do Povo Ashaninka. Relatório nº 17. Ministério Público Federal. mimeo. TIERNEY, Patrick. 2000. Darkness in El Dorado: How Scientists and Journalists Devastated the Amazon. W.W. Norton Company: New York and London. VANDER VELDEN, Felipe. 2004. Por onde o sangue circula: os Karitiana e a intervenção biomédica. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade de Campinas. 93

Livro Conhecimento e Cultura.indd 93

26/4/2011 12:20:46

Livro Conhecimento e Cultura.indd 94

26/4/2011 12:20:46

II CULTURA

Livro Conhecimento e Cultura.indd 95

26/4/2011 12:20:47

Livro Conhecimento e Cultura.indd 96

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

Marcela S. Coelho de Souza

Prólogo Uma certa inquietação instalou-se entre os antropólogos quando nossos ditos “informantes” começaram a usar a palavra “cultura” – fosse na forma de empréstimo, fosse utilizando-se de engenhosas traduções – quase tão frequentemente quanto nós mesmos (talvez eles fossem virar antropólogos, se estes são definíveis como pessoas que usam a palavra “cultura” com fé ou esperança, como sugeriu Roy Wagner). Tínhamos então gasto algum tempo e esforço reconhecendo o caráter fluido, dinâmico, não-essencial, da cultura, combatendo sua “reificação”, e o modo como os nativos estavam (estão) falando de “suas culturas” não apenas como algo a que pertenciam, mas como uma coisa que pertencia a eles, parecia ir contra todo aquele trabalho duro. E agora? A questão não é, claro, quem está certo, antropólogo ou nativo, de outrora ou mais (pós-)modernos. Manuela Carneiro da Cunha (2009) nos propõe um meio de enfrentar o problema que pretende nos liberar desse infrutífero dilema: refiro-me à distinção entre cultura com e sem aspas. Mas me parece que esta distinção se presta a uma leitura que eu gostaria de evitar – nos levando, por exemplo, a imaginar que em um texto como o que se segue eu poderia sempre distinguir uma coisa da outra por meio dessa convenção. Pode ser, por outro lado, que meu incômodo venha apenas de minha incompetência em fazê-lo – mas vou apostar que dessa incompetência eu possa apreender a sutileza do que nos vem dizer a autora. O pretexto deste texto é um comentário kĩsêdjê1 que articula explicitamente os temas da cultura e da terra, como objetos de direitos e/ou políticas por meio 97

Livro Conhecimento e Cultura.indd 97

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

das quais relacionam-se índios e brancos na região do Parque Indígena do Xingu. Meu horizonte são os deslizamentos entre, de um lado, os usos que os Kĩsêdjê, no contexto de suas correntes experiências com projetos de proteção cultural e territorial, fazem da noção de cultura (e de sua propriedade), os significados que lhe atribuem, e, de outro, o lugar dessas (mesmas?) noções no contexto de meu projeto de descrição e análise antropológica dessas experiências. O comentário indígena é breve. Depois de ouvir pacientemente minhas explicações sobre as políticas públicas e privadas voltadas pra a revitalização da cultura e para a proteção do chamado “patrimônio imaterial” (que iam do Programa do Patrimônio Imaterial do IPHAN e dos Pontos de Cultura do MinC aos editais da Petrobrás e congêneres), uma liderança kĩsêdjê respondeu-me pensativa e sobriamente (expressando-se em português): “eu só queria que parassem de desmatar a terra e poluir o rio. Da nossa cultura a gente mesmo pode cuidar”. Estávamos em 2006 – a reação hoje talvez fosse um pouco diferente. Grande parte das comunidades indígenas no Brasil está envolvida, de um modo ou de outro, com projetos relacionados à “revitalização”, “documentação”, ou “proteção” de suas culturas, e os Kĩsêdjê, como veremos, não são exceção. Como já disse, todo esse entusiasmo nativo em torno da cultura não tem deixado de causar inquietações diversas entre os antropólogos – esta que vos fala incluída: com os riscos de “reificação”, “abstração”, “objetificação”, “essencialização”, com os perigos da “mercantilização”, “privatização” ou “comercialização” que tratar a cultura indígena em termos da linguagem das políticas patrimoniais, de um lado, e dos instrumentos da propriedade intelectual, de outro, encerram. Nesse contexto, confesso que meu primeiro reflexo foi escutar a reação de meu amigo como expressando uma reconfortante recusa em separar a cultura da vida, aquilo que essas políticas e instrumentos objetificam como “expressões culturais”, das relações sociais particulares que a circulação (a partilha, a transmissão, a troca, a exibição) desses “objetos” cria, sustenta e expressa. Pude então evocar seu comentário, em um simpósio do Canadian Conservation Institute em 2007, para lembrar o quanto os chamados patrimônio imaterial e conhecimentos tradicionais indígenas dependem desse tecido de relações particulares, que conecta os mais variados gêneros de pessoas existentes no cosmos, e constitui aquilo que os Kĩsêdjê chamam “nossa terra”. Deixem essa terra em paz, diria meu amigo, e nos viramos para viver como Kĩsêdjê, isto é, como pessoas definidas pelas relações que construímos por meio isso que vocês chamam cultura (Coelho de Souza 2008). Assim interpretada, eu dizia então, a reação do líder kĩsêdjê poderia ser tomada como um comentário indígena de uma questão que desde há muito preocupa antropólogos: a questão da contextualização. Era a essa contextualização 98

Livro Conhecimento e Cultura.indd 98

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

– da cultura na terra – que aludia o título conservado aqui, aliando-se o texto anterior aos justos protestos, de índios ou antropólogos, contra os riscos e a impertinência em rasgar o tecido da vida nativa, separando o que reconhecemos como conhecimentos e manifestações culturais da integralidade das relações que ligam as pessoas entre si e, desta feita, à “terra” em que vivem (p.ex., Daes 1997; Barsh 1999). Ainda acho que a reação de meu interlocutor possa ser tomada como um tal comentário – apenas é preciso um pouco mais de trabalho para compreendê-lo, acompanhando os deslizamentos que opera entre o que é contexto e o que é matéria de quê, afinal. Pois se o conteúdo do comentário parece exprimir uma exigência de re-contextualização, ele também procura recriar seu próprio contexto, fazendo parte de um esforço dos Kĩsêdjê para intervir no campo das relações que constituem o Parque Indígena do Xingu, redefinindo justamente o que conta para eles como cultura – em relação ao que conta como cultura não apenas para os brancos, mas também para outros índios, seus vizinhos. Os correntes projetos de revitalização cultural em curso entre os Kĩsêdjê são assim tão voltados para “dentro” (para eles mesmos) e/ou para “fora” (para os brancos), quanto são voltados para a gestão das relações sociais “intertribais” nas quais estão imersos há quase 200 anos. São voltados também, e desta maneira, para a “terra”. A cultura foi sempre uma dimensão importante das relações sociais no Xingu – uma área, afinal, de “aculturação intertribal” (Schaden 1965). A presente redefinição dessas relações em que se empenham os Kĩsêdjê é interessante porque ao mesmo tempo assume e subverte os idiomas da cultura propostos tanto por seus vizinhos, quanto pelos brancos – que não são os mesmos idiomas... Focalizar esse esforço pareceu-me um bom caminho para reposicionar o empreendimento antropológico diante de um conceito que costumamos ver como de nossa autoria mas que, à parte não o ser integralmente, adquiriu uma vida própria na esfera pública que obviamente escapa de todo a nosso controle. Na contramão de reivindicar direitos autorais sobre ele, sem nenhuma intenção de distinguir usos de abusos, pretendo apenas etnografar algumas de suas torções, com a intenção de obter uma posição mais propícia para considerar a noção de “cultura com aspas” proposta por Manuela Carneiro da Cunha.

Guerra também é cultura Os Kĩsêdjê são o único povo de língua jê que participa (de maneira instável, periférica e complexa) do conjunto multiétnico e plurilíngüe constituído por povos aruak, karib, tupi, e pelos Trumai (língua isolada) que ocupam a região dos formadores do rio Xingu, a assim chamada “sociedade alto-xinguana”. A 99

Livro Conhecimento e Cultura.indd 99

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

criação do Parque, para cujo interior foram atraídos por Claudio Villas-Boas logo após o contato em 1959, transformou o quadro das relações oscilantes de aliança e conflito que mantinham com os alto-xinguanos – sem obviamente eliminar sua ambivalência. Esse processo tem paralelos com o que experimentaram outros povos vizinhos, igualmente rotulados “intrusivos” e/ou “marginais” na literatura, como os Ikpeng (Txikão), Yudjá (Juruna), Kawaiete (Kayabi) e Metyktire (Kayapó). A distinção entre os xinguanos e esses outros se expressa hoje numa polarização entre os povos “do Alto” (gravitando em torno do antigo Posto Leonardo) e os “do Baixo e Médio” (gravitando em torno dos antigos Postos Pavuru e Diauarum)2 que têm dimensões administrativas e políticas importantes, refletindo-se em diferentes alianças e parcerias externas no que se refere à assistência à saúde, educação, projetos socioambientais e etc., bem como nas relações com o órgão indigenista. Essa polarização, entretanto, não conforma blocos monolíticos: há fraturas internas e a fronteira entre “Alto” e “MédioBaixo” pode ser atravessada, sob um ou outro dos aspectos mencionados, por esta ou aquela comunidade. Essa polarização corresponde, de modo geral, a diferentes estilos de interação com os brancos, que se enraizam na história e no ethos de cada povo. De um lado, os alto-xinguanos estenderam a esses sua típica política de “cooptação ritual”, de envolvimento de potenciais inimigos em uma rede de trocas cerimoniais, apoiada na exuberância da cultura xinguana – de suas festas, de sua ornamentação corporal, de sua cultura material etc. A própria auto-apresentação dos alto-xinguanos como povos pacíficos, que haviam substituído a guerra pelo ritual intertribal, propiciou a construção, da qual também participaram os agentes não-indígenas da criação do Parque (dos Villas-Boas aos antropólogos), de uma imagem específica dessas sociedades que veio a circular ela própria como provavelmente o principal “bem simbólico” dasa trocas cerimoniais que caracterizam as relações dos alto-xinguanos com os brancos – um exemplo eloquente sendo o célebre Quarup (ver Guerreiro Jr, neste volume). As estratégias dos demais povos acomodados no PIX, por outro lado, foram mais diferenciadas entre si, ainda que tivessem todas de partir dessa carência básica: comparados aos alto-xinguanos, faltava-lhes decididamente, aos olhos dos brancos, cultura. No caso dos Kĩsêdjê, a situação agravava-se na medida em que boa parte de sua cultura – sobretudo aquela parte que se podia ver – era de origem alto-xinguana. Os primeiros observadores deixaram testemunhos pessimistas: Harald Schultz (1961) descreve uma mistura de culturas (materiais) jê e xinguana; Amadeu Lanna (1968:36) os viu como uma sociedade em ruínas. As influências xinguanas estavam em toda parte: no plano da tecnologia, da cultura material, da cozinha; na ornamentação corporal e na fabricação dos corpos; no repertório 100

Livro Conhecimento e Cultura.indd 100

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

musical e cerimonial. As transformações mais evidentes concentravam-se na esfera feminina (o que se ligava, pelo menos parcialmente, à captura de mulheres dos povos dos formadores): é o caso da tecnologia e modos de aproveitamento da mandioca, mas sobretudo da ornamentação corporal das mulheres, que assumiram também práticas e cerimoniais xinguanos, como os longos períodos de reclusão para as moças e festas como a do Yamurikuma. Ainda que o aprofundamento da “xinguanização” tenha acabado por acarretar transformações mais visíveis também na esfera masculina (corte de cabelo, o abandono dos batoques labiais, o estilo das perfurações auriculares, e a própria forma da reclusão pubertária), os Kĩsêdjê retiveram uma parte importante do repertório cerimonial e musical e os grupos onomásticos masculinos associados, a que atribuem um valor e sentido claramente diferenciados do que conferem às festas e músicas alto-xinguanas (para tudo isso, ver Seeger 1980, 1984, 2004). Tampouco foram abandonados os valores guerreiros que lhes eram característicos, tendo os Kĩsêdjê entretanto substituído o enfrentamento armado literal por uma guerra “metafórica”. Os Kĩsêdjê, como coletivo, interagem com os brancos primordialmente na chave da inimizade,3 e isso se expressa nos contextos mais diversos: em suas interações particulares com vizinhos (e invasores) em seu território; em arenas públicas, com ou sem presença de outros povos, quando se defrontam com autoridades e agentes do Estado; nas relações face-a-face com visitantes ou mesmo, em certas circunstâncias, com velhos aliados... Mencionemos as viagens de fiscalização que fazem ao longo do Suiá-Miçú (e afluentes), cuja bacia habitam desde o fim do séc. XIX mas que ficou, em sua maior parte, fora dos limites do PIX bem como da sua atual Terra Indígena Wawi: pintados como para a guerra, com bordunas e arcos, os membros dessas expedições enfrentam invasões, pesca predatória, e outras atividades poluidoras e destrutivas (como operações de dragagem) com apreensões de materiais e equipamentos, eventualmente queima de instalações e retenção dos responsáveis. Em ocasiões públicas de negociação e/ou protesto com autoridades locais ou federais, comparecem como grupos de guerreiros, devidamente paramentados e armados, entoando cantos de guerra no caminho das reuniões: exemplos espetaculares, envolvendo outros povos do Parque, em que os Kĩsêdjê faziam como que o papel de “forças armadas simbólicas” dos índios do Xingu, foram os protestos contra a construção da PCH do Paranatinga em 2004, o movimento que culminou em 2008 com uma manifestação no Ministério da Saúde em Brasília pela saída da FUNASA da saúde indígena, e a resposta em Canarana contra a apreensão pelo IBAMA de artesanato plumário em 2010. (Este último evento foi filmado por eles, e o documentário inclui um debate no fórum de Canarana com o juiz a propósito de quem, afinal, seria o “dono” das terras onde hoje cresce a 101

Livro Conhecimento e Cultura.indd 101

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

cidade, em que os Kĩsêdjê defendem vigorosamente o direito de porte de suas armas tradicionais – suas imponentes bordunas – como “parte de sua cultura”). Esse estilo guerreiro se manifesta mesmo ali onde a aliança, e não o confronto, está em jogo: o discurso dirigido a ou sobre o branco aliado é frequentemente marcado pela afirmação de que esta aliança é uma pausa, ou uma exceção, uma concessão quase, no que se compreende e afirma como uma relação global de potencial hostilidade. Assim, a primeira frase que o cacique Kujusi me dirigiu na primeira vez que conversamos a sós, em um quarto de hospital em Washington, DC, onde ele se tratava de uma pneumonia, foi: “você tem de saber que eu não gosto de brancos”. Quando ele conta a história do longo envolvimento do antropólogo Anthony Seeger com seu povo, desde os anos 1970 – e creio que não há branco que seja visto pelos Kĩsêdjê como mais aliado que ele – sempre começa enfatizando que sua primeira reação à solicitação, feita por Claudio Villas-Boas, de autorização para que este viesse fazer sua pesquisa foi de recusa. O mesmo se aplica à colaboração com o Instituto Socioambiental, parceiro dos Kĩsêdjê em uma variedade de projetos. Todas as narrativas sobre a chegada de parceiros não-indígenas se iniciam com “no início, não gostava/não confiava em Fulano”, “não queria Sicrano aqui”. Como disse, isso me inclui. Essa postura tem uma dimensão suplementar que é preciso enfatizar. As duas diplomacias, associadas a diferentes constituições políticas (formas de organização coletiva, de chefia e etc.), propõem distintos modelos de relação com os brancos. Para ilustrá-lo por meio de uma anedota, tomem-se as atitudes contrastivas dos Kĩsêdjê e das lideranças alto-xinguanas diante do então governador Blairo Maggi chamado a Canarana (em novembro de 2004) para discutir o caso da PCH do Paranatinga perante cerca de cerca de duzentos índios (entre eles 60 guerreiros kĩsêdjê). Enquanto os chefes alto-xinguanos dirigiam-se ao governador e à primeira-dama como “pai” e “mãe” dos índios, isso provocava a absoluta estupefação dos Kĩsêdjê, que podem muito bem se ver adotando (capturando) brancos, mas jamais como adotados, envolvidos em uma relação de dependência em que eles seriam o “animal de estimação”. (Escapam-lhes, certamente, as sutilezas estratégicas da diplomacia xinguana). Isso parece ter relação com os termos do comentário de meu interlocutor kĩsêdjê: de um lado, a ênfase sobre os temas da “terra” e “ambiente”: de outro, sua reivindicação de autonomia: “da nossa cultura a gente mesmo pode cuidar”. São óbvias e conhecidas as ameaças que pairam sobre a saúde ambiental da bacia do Xingu: desmatamento, degradação das nascentes, avanço da soja até os limites do Parque, projetos hidrelétricos (de Belo Monte às famigeradas PCHs que se quer construir em praticamente todo curso d’água disponível), nada disso precisa ser relembrado aqui. Nesse contexto, os Kĩsêdjê preferem 102

Livro Conhecimento e Cultura.indd 102

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

operar diretamente no campo de conflito entre seus interesses e os dos brancos, em registro abertamente político, proferindo um discurso explícito de recusa da cultura tal como definida pelos alto-xinguanos – como ritual em que a luta (esportiva) e a música/dança substituem a guerra – enquanto o terreno privilegiado de interação com os brancos. É inegável que os Kĩsêdjê lançam mão de sua cultura para construir uma “imagem” que aumenta a eficácia de sua atuação política – “à moda Kayapó”, descrita por Turner (1991). Mas há muito mais que a mera seleção e manipulação de um diacrítico (seu “ethos guerreiro”) aqui: afirmar explicitamente que guerra também é cultura, se fala sem dúvida a um imaginário sobre o índio, o faz para subverter os termos em que este imaginário procura acomodar a hoje celebrada diversidade cultural. Nesse contexto, a resposta de meu amigo toma a palavra cultura, ironicamente, na referência que ela costuma ter quando se fala de Xingu – a beleza das músicas, da dança, dos corpos pintados e decorados, a riqueza do artesanato, a sabedoria dos mitos, o mistério do xamanismo – para convertê-la, de objeto transacionável na interface com não-índios, em um “assunto interno” subordinado à questão da autodeterminação político-territorial. Mas se isso é assim, como entender o crescente entusiasmo kĩsêdjê com os assuntos de cultura?

Nossa cultura No primeiro fim de ano que passei entre os Kĩsêdjê (de 2006 para 2007), Natal e Ano Novo foram comemorados como festas de branco: aparelho de som montado na casa-dos-homens, toda iluminada e enfeitada com balões coloridos, e um forró que durou até quase o amanhecer. Festas desse tipo eram feitas no Rikô, aldeia no interior do PIX em que os Kĩsêdjê viveram até o ano de 2001, quando começou a mudança para o Ngôjhwêrê (depois da homologação em 1998 da Terra Indígena Wawi); eram tradicionais também no Posto Diauarum, que eles costumavam frequentar. Quatro anos depois, no Natal de 2010, estava em andamento o Amtô Ngere, a Festa do Rato, um ritual de nominação que consiste na cerimônia mais importante para os Kĩsêdjê hoje (Seeger 2004[1987]). As preparações para o Amtô incluem ensaios diários, no fim da tarde, entre outras atividades, relacionadas sobretudo à confecção das máscaras. Entremeadas a estas, os Kĩsêdjê dançaram festas xinguanas, como a festa do Beija-flor (Djuntxi) e a das mulheres (Yamuricumã); cantaram músicas próprias (do repertório do Kahran Ngere, um ritual de iniciação caído em desuso); fizeram, algumas tardes, “brincadeira de Kayapó”. Tudo isso às vezes se misturava: enquanto alguns cantavam o Djuntxi (de casa em casa), outros ficavam no centro, ensaiando seus cantos individuais 103

Livro Conhecimento e Cultura.indd 103

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

para o Amtô. Na noite do Reveillon, dançamos o Djuntxi de madrugada, mas o Natal passou em branco. Nenhum elemento não-indígena foi incorporado a essas comemorações. A mudança não foi súbita; nos anos anteriores, fórmulas mistas foram experimentadas, com os elementos exógenos sendo tentativamente misturados a “festas indígenas” – no caso, festas de origem xinguana, em especial o Djuntxi, cujos cantos noturnos, envolvendo homens e mulheres, são especialmente propícios a comemorações estendendo-se madrugada adentro, e estão entre os preferidos dos Kĩsêdjê. Temia-se que a supressão pura e simples das comemorações tivesse um efeito negativo sobre a moral da comunidade: os organizadores das festas de fim de ano – a associação indígena – preocupavam-se com o esvaziamento da aldeia no período, com os jovens deslocando-se para a cidade (Canarana) ou para o Diauarum para participar das festividades. Tentou-se restringir o forró, determinando-lhe um horário limite e controlando o volume do som (além do banimento das bebidas alcoólicas), mas nem seus adeptos, nem seus críticos, ficaram satisfeitos. Como me disse uma amiga (esposa do filho mais velho do chefe), não sem ironia: “quando éramos índios puros, fazíamos um forró danado, mas agora que estamos virando brancos...”. A evolução das festas de fim de ano corresponde ao que chamei em outro lugar, inapropriadamente, de um “fundamentalismo cultural” crescente entre os Kĩsêdjê, manifesto em uma série de ações depurativas no sentido de manter o caráter “jê” (em oposição a xinguano) e “indígena” da sua “cultura”. O expurgo de empréstimos linguísticos é um exemplo: pública ou privadamente, em reuniões no ngá (casa-dos-homens) ou em torno do fogo de cozinha pela manhã, vejo desde 2005 as pessoas sendo corrigidas quando referem-se aos brancos como karaí ou caraíba (palavras adotadas dos yudjá ou dos xinguanos) em lugar de kupëkátxi; ao arroz como awatxij (do yudjá), e não põjsy; a galinhas como karakarako (do kamayurá?) e não sákkhrãjsy; a esteiras, como tawapi (do kamayurá), e não kwâk sykasyry; etc. É raro hoje escutar alguém empregar as formas não kĩsêdjê, pelo menos publicamente.4 Um outro exemplo seria a decisão recente, tomada em uma oficina pedagógica em meados deste ano, de conduzir toda a educação escolar, que vai até a quarta série, em língua kĩsêdjê. Além disso tudo, os Kĩsêdjê estão hoje engajados em uma série de projetos que se poderia caracterizar como de “revitalização cultural”. Há um projeto apoiado pelo PDPI que envolve a realização e documentação da cerimônia completa da corrida de toras (Ngrwa Rêni), que não fazem há mais de cinquenta anos. Há um outro, apoiado pelo Museu do Índio, dirigido para a documentação linguística. Juntamente com a produtora de vídeo tocada por rapazes formados pelo Vídeo nas Aldeias, esses projetos 104

Livro Conhecimento e Cultura.indd 104

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

animam o recém-criado Centro para Pesquisa da Cultura Kĩsêdjê, que conta com dez pesquisadores nativos empenhados, entre outras coisas, em transcrever (no computador, usando o Transcriber) gravações de Tony Seeger (e minhas). Todos esses movimentos, entretanto, ainda que alinhavados em um mesmo discurso sobre importância de conservar a cultura kĩsêdjê, teriam de ser analisados em seus desdobramentos particulares. Pois enquanto se inscrevem, de fato, em uma tendência geral de afirmação da distintividade dessa cultura, estão longe de poder ser completamente explicados por ela. Primeiro, porque essa distintividade é seletiva, parcial e contextual; segundo, porque não me parece que a única motivação dessa diferenciação seja a afirmação de uma “identidade”. Quanto ao primeiro ponto, parte importante da vida ritual continua girando em torno das festas xinguanas. Isso é algo que não poderei desenvolver aqui, mas o fato é que essas festas xinguanas são muito mais que meramente recreativas para os Kĩsêdjê. Elas implicam relações complexas e delicadas entre os humanos, e com os espíritos a elas relacionados – e elas são eficazes. São em várias ocasiões realizadas para/por indivíduos que adoeceram por influência desses espíritos, e que ao patrociná-las tornam-se “donos” dessas festas (isso geralmente envolve o diagnóstico por parte de um xamã alto-xinguano, o que vi acontecer algumas vezes nos últimos cinco anos). De qualquer modo, não devem ser feitas “à toa”: quando o líder dos jovens, recentemente, dirigiu-se aos homens no círculo noturno dizendo que os rapazes queriam fazer um Tawarawanã, foi-lhe respondido que seria preciso retribuir com alguma atividade o dono da festa (todas essas festas xinguanas, Tawarawanã, Djuntxi, Yamurikumã, tem donos kĩsêdjê): decidiu-se que seria refeita a cumieira de sua casa, pelo que ele pagaria os jovens com o patrocínio da festa. De fato, nesse sentido, a cultura kĩsêdjê é um “amálgama” de elementos jê e alto-xinguanos, e assumido por eles, não-problematicamente, como tal. Isso resulta do caráter seletivo e parcial do movimento que constitui essa cultura enquanto “aculturação”, movimento modelado na própria mitologia – um relato de como, por meio da adoção de recursos e saberes de outros povos e seres, “os Suyá se tornaram eles mesmos verdadeiros seres humanos. Nada foi pré-estabelecido por um herói cultural; tudo foi adotado porque era ‘bom’ ou ‘bonito’” (Seeger 1980:169; cf. Coelho de Souza 2010). Do ponto de vista kĩsêdjê, essa aculturação não é um processo terminado ou terminável, nem irreversível. Por isso, assim como a adoção de elementos da cultura xinguana dependeu de uma apreciação de sua “beleza” ou utilidade, o renascimento cultural em curso continua obedecendo à mesma lógica seletiva e parcial – eis porque “fundamentalismo” é uma péssima palavra para descrevê-lo. 105

Livro Conhecimento e Cultura.indd 105

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

Mas não se trata certamente de um amálgama indiferenciado, como fica evidente no contexto do discurso e dos esforços depurativos mencionados, dos projetos de revitalização e documentação (que portam exclusivamente sobre os elementos “originalmente” jê), ou das transações com não-índios envolvendo elementos culturais – como no caso, que discuti alhures (Coelho de Souza 2010), de um contrato sobre padrões gráficos firmado com a Grendene. Se o que é “Kĩsêdjê” e o que é “de outros” é ativamente distinguido nesses contextos, alguns deles (mas não todos) “interétnicos”, estaríamos então – para passar ao segundo ponto – diante de um limite dessa noção de cultura como “aculturação” (auto-transformação, alteração), e da emergência de uma percepção da cultura como dispositivo identitário? Esse é um ponto que não posso desenvolver aqui, mas minha percepção é de que não necessariamente (ou não exclusivamente). O revivalismo kĩsêdjê é um esforço de fato consciente, mas eles não me parecem, em todas essas iniciativas, mais preocupados com o diferenciar-se de seus vizinhos (ou dos brancos) do que com o diferenciar-se de si mesmos. “Quando éramos índios puros”, como diz a nora do chefe, referindo-se ao tempo em que eram Kĩsêdjê xinguanizados… A “pureza” aqui é relativa à cultura dos brancos: “purinhos” é como qualificam, com admiração e alguma nostalgia, os povos que vêem nos filmes, sem roupas, com ornamentos tradicionais, em aldeias e casas desprovidas de panelas, construções e outros objetos industrializados.5 Se hoje ela diz que estão “virando brancos”, é por causa das experiências diversas de envolvimento com os conhecimentos, a comida, as roupas e máquinas, e tantos outros objetos (e hábitos) que obtém na relação conosco. Esse envolvimento é ativamente procurado, como um meio de auto-transformação que não comporta em tese nenhuma contradição com o renascimento da “antiga” cultura Kĩsêdjê (pré-xinguana) – pelo contrário. Como o conhecimento do branco, o acesso a esse outro conhecimento (a cultura antiga) é também um meio de auto-transformação. Uma Renascença, em que o interesse indígena não é certamente “permanecer o mesmo” (e voltar ao passado muito menos). Se eles querem sem dúvida preservar algo, não é uma cultura, mas é a integralidade de suas relações “sociais” (intra e extra-humanos), e para isso é preciso continuar se transformando (diferenciando) – como parte de seu esforço para “desestabilizar o convencional” (Wagner 2010:144), não para conformar-se a ele. Diante de uma xinguanização que se apresentava já – que se dava – como “convenção”, virar branco (no sentido de apropriar-se de seus conhecimentos e instrumentos) e virar Kĩsêdjê fazem parte de um mesmo movimento. Um movimento cheio de riscos, como sempre, riscos que estão sempre a sublinhar. Pois não se trata de que desejem “virar brancos”. Evitá-lo é, pelo contrário, uma preocupação central, pelo menos de suas lideranças.6 Mas é importante 106

Livro Conhecimento e Cultura.indd 106

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

compreender que o foco dos esforços assim como dos receios indígenas não está na oposição entre conservação e transformação, tradição e inovação: o risco não é transformar-se, mas transformar-se completa e definitivamente – isto é, dar fim à transformação.

Reflexividade (com agradecimentos a Amir Geiger)7 A distinção proposta por Manuela Carneiro da Cunha é aquela entre “cultura” tal como emerge do processo de organização e maximização de diferenças culturais em um contexto interétnico, e a cultura como remetendo a “esquemas coerentes internalizados que organizam a percepção e ação das pessoas e garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais” (2009:313). “Cultura”, entre aspas, situar-se-ia assim nesse nível em que “sociedades como um todo”, “grupos étnicos”, constituem-se em unidades ou elementos de uma estrutura interétnica – em contraste com as culturas (sem aspas) enquanto contextos organizados segundo uma lógica interna operando sobre unidades ou elementos que fazem parte de um todo. “Cultura”, nesse sentido, pertenceria a uma metalinguagem, constituindo uma “noção reflexiva que de certo modo fala de si mesma” (Carneiro da Cunha 2009:356). Essa distinção é parenta de várias outras formulações que chamam atenção para a emergência de um “sistema mundial de Cultura” ou “Cultura de culturas” (Sahlins 1997) e de uma noção de tradição “valorizada e explícita” ao lado de uma “não-manifesta, implícita” (Strathern 1998:118). Ela é certamente útil, como argumenta Carneiro da Cunha, para pensar dilemas que emergem no debate sobre patrimônio cultural e direitos de propriedade intelectual em relação a sociedades indígenas: a contradição, por exemplo, envolvida nas propostas para proteger esses conhecimentos tradicionais em termos de direitos coletivos quando sabemos que as coisas não são bem assim – quando sabemos que os conhecimentos indígenas podem ser internamente sujeitos a sistemas de “direitos” concernentes à “propriedade” (se esta é a palavra), acesso e transmissão muito mais complexos, específicos e restritivos. O fato de que atores indígenas transitem eles mesmos entre ambas as posições mostra que a contradição é praticamente resolvida, possibilidade que se baseia no fato de que as duas esferas dependem de distintos princípios de inteligibilidade, de que suas lógicas interna não coincidem: entre uma e outra há uma passagem de nível ou domínio (entre linguagem e metalinguagem) (Carneiro da Cunha 2009:357-8).8 Essa passagem é, no entanto, constantemente atravessada – e essa me parece ser a lição principal de Carneiro da Cunha: a de que falar de cultura com aspas não significa perpetuar uma dualidade entre cultura para dentro e cultura para 107

Livro Conhecimento e Cultura.indd 107

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

fora, mas chamar a atenção para o fato de que a cultura se enuncia, sempre, imediatamente, entre o dentro e o fora. Isto tem relação com aquele paradoxo para o qual nos chamou atenção Roy Wagner, e constitutivo da antropologia, criado pelo esforço em “imaginar uma cultura para pessoas que não a concebem para si mesmas” (Wagner 2010:62). Vimos que a este paradoxo hoje se soma ou sobrepõe um segundo, gerado pelo fato de que todos parecem agora ocupados no exercício de tal imaginação ¾ enfatizando muitas vezes as propriedades que para os antropológos se tornaram anátema: fronteiras, permanência, pureza, fixidez… A distinção proposta é um instrumento poderoso para enfrentar esse novo paradoxo: contanto que não se a leia de um certo modo, a saber, como uma forma de reprimi-lo, em lugar de habitá-lo. O que estou querendo evitar é o uso da distinção para instalar o que poderíamos chamar uma espécie de “cordão de isolamento": tomar a “cultura” como uma (mera) “retórica”, um fenômeno apenas da ordem da identificação étnica, um diacrítico mais ou menos vazio de sentido que não afeta e tampouco é lá muito afetado pela cultura “sem aspas”. Isso salvaria a noção “heraclitiana” de cultura dos antropólogos das deformações “platônicas” (Carneiro da Cunha 2009[1994]:259) – a reificação, objetificação, etc. – a que seria submetida na arena interétnica. Poderíamos então empregar as aspas para falar dessa cultura objetificada quando aparece no discurso nativo, justificando o uso de ideia tão fora de moda em termos dos desafios que eles enfrentam em tal arena. Enquanto isso, ficaríamos autorizadas a continuar usando a cultura – literal, sem as aspas – para teorizar sobre este outro objeto que sabemos independente de tais considerações. Em outras palavras, estaríamos livres para continuar a usar cultura, sem aspas, para levar adiante nossas próprias objetificações. Teríamos assim duas coisas chamadas cultura: a primeira, algo que cresce lá no mundo, esperando pela colheita antropológica; a outra, um efeito sobre o discurso (e cultura) nativos de nossa própria (antiga) noção de cultura, um efeito que colocamos entre aspas para evitar contaminar o conceito “científico”. Não é nessa direção que nos aponta Carneiro da Cunha, que afinal está justamente se perguntando: “como é possível operar simultaneamente sob a égide da ‘cultura’ e da cultura e quais são as consequências dessa situação problemática? O que acontece quando a “cultura” contamina e é contaminada por aquilo de que fala, isto é, a cultura?” (2009:356). O que ela quer pensar é como “essas ordens embutidas uma na outra se afetam mutuamente a ponto de não poderem ser pensadas em separado” (:362 – ênfase minha); para o que ela nos chama atenção é para a reflexividade não como tomada de consciência de algo que estava lá, mas como produtora de “efeitos dinâmicos tanto sobre aquilo que ela reflete – cultura, no caso – como sobre as próprias metacategorias, como ‘cultura’” (:363). 108

Livro Conhecimento e Cultura.indd 108

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

Se há risco de engano sobre isso, ele talvez resida na ambiguidade que Carneiro da Cunha deixa pairar sobre a noção de “contexto interétnico”. Façamos um pequeno desvio. Na nota introdutória de seu capítulo, a autora se refere a um artigo de Terence Turner (1991) em que ele tematiza a tomada de consciência pelos Kayapó da significância política de sua cultura. Antes, diz ele, os Kayapó viam o que chamamos cultura enquanto o modo prototipicamente humano de se viver, um corpo de saberes e modos de fazer criados e passados adiante por ancestrais míticos e heróis culturais. Eles não tinham noção de que este corpo de instituições e ideias fossem as produções de atores sociais como eles mesmos, ou de que servissem propósitos sociais específicos, como a reprodução de famílias, grupos domésticos e pessoas. Eles não tinham, em suma, noção alguma de que seu conjunto de costumes, práticas rituais, valores sociais e instituições constituísse uma “cultura” no sentido antropológico, nem qualquer ideia do papel reflexivo daquela cultura na reprodução de sua sociedade e de suas identidades sociais (Turner 1991:294 – tradução minha). Essa falta de uma “consciência social apropriada a sua situação histórica enquanto parte de um contexto interétnico” (:294) teria sido radicalmente modificada pela experiência do contato, nos quadros da qual, ao invés de se verem como protótipos da humanidade, os Kayapó agora “se vêem como um grupo étnico, partilhando sua etnicidade mais ou menos em pé de igualdade com outros grupos indígenas em seu confronto comum com a sociedade nacional” (:296). A nova visão, diz Turner, não substituiu a anterior, mas “coexiste com ela em por assim dizer um nível diferente, especificamente focada na interface entre os Kayapó e a sociedade brasileira” (:298). Volto a Turner assim detidamente porque, para além da convergência que reconhece Carneiro da Cunha, enxergo aqui uma divergência significativa. A formulação de Turner depende de uma descontinuidade fundamental entre duas formas de consciência social, que resulta por sua vez da descontinuidade entre a sociedade kayapó como totalidade autocontida e a percepção de uma nova totalidade, constituída pelo contexto interétnico (aqui, a inserção na sociedade nacional). Note-se que, embora convivam, essas duas formas de consciência não são simétricas: uma delas detém de fato a verdade e razão da outra, e a “engloba”. Deixados entre si (se alguma vez o foram), os Kayapó continuariam pensando que sua cultura é “dada” (autorada por seres míticos) e “roubada” (adquirida de outros povos), em suma exógena, quando “na verdade” trata-se de uma construção humana, “produção de atores sociais como eles mesmos etc.”, um produto 109

Livro Conhecimento e Cultura.indd 109

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

de autoria coletiva e endógena. A cultura sem aspas de Turner é uma “cultura em si”, inconsciente de si mesma, e o movimento de reflexão aqui equivale a “refletir” [no sentido de espelhar] uma concepção de cultura que tem bem outros autores…9 Carneiro da Cunha, por outro lado, insiste que a lógica interétnica não é específica da situação “de contato”. Ela corresponde apenas a uma aplicação, em nova escala, de uma mesma lógica geral de organização e ênfase de diferenças culturais. Ela não equaciona, ao contrário de Turner, reflexividade e a forma específica que esta toma quando se dá sob a égide da categoria cultura em um sistema interétnico determinado – o sistema colonial. Ela parece estar dizendo, pelo contrário, que essa forma específica, essa reificação em que consistiria a “cultura”, deve ser compreendida como um caso particular do fenômeno da reflexividade como inscrita em quaisquer processos de diferenciação social, como ela deixa claro ao afirmar que a idéia da articulação interétnica seria “uma continuação natural da teoria lévi-straussiana do totemismo e da organização de diferenças” (Carneiro da Cunha 2009:356).10 A ênfase sobre essa continuidade não deve entretanto obscurecer um ponto importante: o fato de que a presença de uma noção de cultura como ordem coletiva e endógena que diz respeito à identidade (à etnicidade) – contrastiva ou essencial, pouco importa – parecer ser sim específica da “situação de contato” (pelo menos no caso ameríndio). A lógica interétnica como uma lógica de organização das diferenças em função da identidade articula-se a uma certa noção de “cultura” que nada nos autoriza – como Carneiro da Cunha mostra em várias passagens – a atribuir aos índios, ou a supor operativa nos processos de “aculturação intertribal” (como os que constituíram a sociedade xinguana). Não é de qualquer reflexividade que estamos falando aqui. A emergência dessa lógica específica do “contato” foi descrita por Bruce Albert como um “deslocamento de perspectiva pelo qual [a] reflexividade cultural se inverte, tornando-se de objetivação/revisão para ‘fora’ do próprio sistema de valores como ‘cultura’ no diálogo com a sociedade envolvente” (Albert 2002:14). A reflexividade cultural se inverte… Pois, justamente, essa “objetivação/revisão para fora” que constitui a cultura como “um patrimônio coletivo e partilhado”, como algo homogeneizado e “democraticamente […] estendido a todos”, consiste na objetificação de uma objetificação anterior. A “cultura sem aspas” – qualquer que seja a definição que adotemos11 – é ela mesma uma objetificação: antropológica, em grande parte, algo que tivemos de inventar para conferir sentido a nossa experiência do modo com outras pessoas conduzem suas vidas, como Roy Wagner mostrou faz certo tempo. Ela também pertence a um “contexto interétnico”: ela, é claro, também depende de princípios de 110

Livro Conhecimento e Cultura.indd 110

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

inteligibilidade que não são indígenas… A evocação da cultura seria assim, sempre, por definição “meta”, no sentido de mobilizar princípios de inteligibilidade situados em um sistema “diferente”. A vida indígena supõe, é evidente, seus próprios modos de objetificação e reflexividade, mas estes seriam provavelmente melhor descritos por outros nomes, sendo muito distintos, em termos de seus pressupostos fundamentais, daqueles que carrega consigo a noção de cultura, em sua versão antropológica como nas várias versões em que é acionada em nossa vida sociopolítica presente – baseiam-se em diferentes modos de criatividade, diferentes maneiras de constituir objetos e sujeitos, que podem não depender da articulação entre produção e identidade que informa nosso senso de cultura – podem focalizar a predação e a alteridade (alteração), por exemplo. Essa articulação – em sua íntima conexão com a questão dos “direitos intelectuais” que suscita a reflexão de Carneiro da Cunha – foi recentemente sumarizada de maneira conveniente por James Leach (2004) na noção de um modo de criatividade que ele batiza “apropriativo”. Este seria baseado em uma (re) combinação de elementos retirados de muitas fontes, envolvendo uma inovação cuja “origem” depende da abstração da vontade, da agência ou propósito em relação à matéria física. Inovação e agência assim abstraídos compõem uma noção de criatividade (moldada, em última instância, na criatividade divina) como força transcendente situada em um intelecto separado do mundo. Nesse modo de criatividade, os objetos criados que atestam a atividade do “intelecto” assim como do “trabalho” humanos devem ser compreendidos como “propriedade” de seus criadores, pois são como que suas próprias extensões. E é em termos desse modo que, vista como criação coletiva, a cultura como conjunto ou acúmulo de ideias, práticas e instituições, ou “símbolos e significados” etc. – uma generalização da ideia de Cultura como refinamento e civilização (Wagner 2010:53ss) que conserva, entretanto, a mesma separação fundante entre criador e criatura, pessoas e coisas, sujeito (divindade ou intelecto) e objeto (natureza ou artefato) – essa cultura pode então aparecer como algo que o coletivo que a criou “tem” – e como um signo identitário. Nesse registro, mesmo a cultura como “esquema coerente internalizado que organiza a percepção e ação das pessoas e permite algum grau de comunicação em grupos sociais”, que obviamente não se reduz (para os que vivem nela) a sistema ou signo, acaba por aparecer exatamente como tal para os antropólogos (que objetificam, inventam, nesses termos, a vida e a socialidade alheias). Wagner mostrou como o etnógrafo, confrontado com o “choque cultural” da experiência de campo, precisa assumir “que o nativo está fazendo o que ele está fazendo – a saber, ‘cultura’. E assim, como um modo de entender os sujeitos que estuda, o pesquisador é obrigado a inventar a cultura para eles, como algo plausível de ser 111

Livro Conhecimento e Cultura.indd 111

26/4/2011 12:20:47

A vida material das coisas intangíveis

feita” (Wagner 2010:61). Ele chama atenção para o fato de que essa invenção é ao mesmo tempo controlada pela ideia ou imagem de cultura sustentada pelo antropólogo (a cultura como produção, refinamento ou mesmo civilização), e consiste em uma extensão dessa imagem que, todavia, continuamente, a relativiza. É para tal relativização – operando seja sobre a objetificação em que consiste a cultura “sem aspas” (inventada, neste sentido wagneriano, pelo antropólogo), seja sobre os modos indígenas de reflexividade que se busca apreender por meio deste conceito (isto é, sobre os modos de reflexividade que preferi não rotular de cultura), seja ainda sobre a “cultura” objetificada indigenamente na arena inter-étnica – que Carneiro da Cunha me parece estar apontando quando fala do looping effect da reflexividade, mostrando como esta produz efeitos dinâmicos tanto sobre aquilo sobre o que se reflete quanto sobre as metacategorias por meio das quais se o faz. É nestes efeitos que, creio, ela está interessada. É para chamar atenção para eles que ela escreve as aspas (não para purificar nossos usos da palavra cultura). De modo que, se há algo que se possa chamar cultura “sem aspas”, isto não é nada que estivesse ali antes do encontro entre o antropólogo (por exemplo) e o nativo; trata-se (antes) de um efeito deste encontro (sobre o antropólogo, por exemplo). Uma vez que a reflexividade indígena pode tomar formas muito diferentes daquela que chamamos cultura, e porque essas formas não podem não deixar suas marcas sobre essa metacategoria “importada”, nunca podemos estar certos de saber de antemão o que os índios querem dizer quando dizem “cultura”. Quando usam nossa palavra – ou alguma tradução engenhosa dela – eles estão produzindo um objeto que significa sua relação conosco, mas trata-se ainda da produção deles: o que eles devem estar fazendo – eles não têm alternativa – não é objetificar sua cultura (sem aspas) por meio de nosso conceito, mas sua relação conosco por meio dos conceitos deles – quero dizer, por meio de sua própria compreensão do que constitui criatividade, agência, subjetividade… Os Kĩsêdjê traduzem cultura por anhingkratá, uma forma reflexiva do célebre kukradjá kayapó.12 Usam frequentemente, mas nunca entre si, o vocábulo em português cultura. Não estou certa de que, quando o fazem, estejam declarando a intradutibilidade do termo (como sugere Carneiro da Cunha [2009:369]); creio que sua intenção é precisamente inversa a da Igreja (peruana) quando proibia a versão para as línguas nativas dos conceitos cristãos (:id.). Não se trata de garantir que o registro não-indígena seja mantido: pelo contrário, creio que o que eles estão fazendo é tornar mais difícil saber quem está ditando o sentido (:id.) do nosso conceito quando pretende se aplicar à experiência deles. É por isso, suspeito, que não há aspas no mundo que possam “resolver” as contradições entre entendimentos indígenas e não-indígenas nas disputas sobre 112

Livro Conhecimento e Cultura.indd 112

26/4/2011 12:20:47

Marcela Coelho de Souza

propriedade cultural e intelectual. Em certos casos, elas acabarão sendo produtivas; em outros, não. Este é o destino de todas as equivocações envolvidas em “falsos amigos” conceituais como cultura: “enquanto os propósitos podem ser similares, as premissas decididamente não o são” (Viveiros de Castro 2004). Aos antropólogos resta talvez acompanhar os equívocos envolvidos no debate corrente sobre a cultura (com nativos, advogados, legisladores, gestores, formuladores de políticas públicas etc.), para que não se percam de vista as diferenças que o alimentam. Resta talvez esse esforço contínuo para manter os equívocos sob algum “controle” – uma arte difícil, uma diplomacia na qual Manuela Carneiro da Cunha tem poucos iguais.

Epílogo: a terra intangível Vou concluir voltando ao comentário de meu amigo kĩsêdjê: ao que acontece com a cultura quando ele a coloca entre aspas. Tentei mostrar que o contexto dessa operação compreendia um esforço de redefinição do que devia contar como cultura no quadro das complexas relações políticas que fazem o Parque do Xingu, como parte de um movimento para redefinir este próprio contexto. Guerra também é cultura, por exemplo. Por outro lado, festas, cantos, ornamentos, artefatos não cultura como finalidade, algo a ser “produzido” e “acumulado” por si mesmos, mas existem (“naturalmente”) como expressão e meio de relações que, estas sim, são foco de investimento das ações, realizando-se na integridade da “terra”, da vida dos lugares enquanto redes de implicação mútua entre pessoas humanas e não-humanas (Coelho de Souza s/d) – redes que a atividade cultural dos brancos, aliás, tende a destruir. Carneiro da Cunha sugeriu de passagem que “quanto menos uma sociedade concebe direitos privados sobre a terra, mais desenvolve direitos sobre ‘bens imateriais’, exemplificados em particular pelo conhecimento” (2009:357). Numa conferência recente, Marilyn Strathern (2009) utilizou-se da analogia da propriedade intelectual para imaginar regimes (melanésios) em que a terra é pensada não como riqueza tangível, mas como contraparte intangível do corpo coletivo que a anima. Evidência das relações que fazem esses coletivos, a terra cria pessoas e tudo o mais como suas extensões. Se pudermos estender para a Amazônia algo desta analogia entre terra e recurso intangível, então a correlação apontada por Carneiro da Cunha não significaria que nessas sociedades não existam direitos sobre a terra, mas que os direitos em questão são direitos sobre “bens imateriais”: tratam-se de direitos sobre o potencial criativo da terra (dos lugares) enquanto evidência das relações entre pessoas que pertencem a ela. 113

Livro Conhecimento e Cultura.indd 113

26/4/2011 12:20:48

A vida material das coisas intangíveis

Como “riqueza intangível”, a terra não consistiria, no comentário de meu amigo, na dimensão material (aludida em meu título) de uma “cultura imaterial” que as políticas que eu lhe expunha querem proteger. Ele não está expressando uma posição “materialista”, uma espécie de defesa indígena do primado da infraestrutura, por mais natural que se nos ofereça tal leitura. Há afinal poucas coisas que consideraríamos tão inverossímil qualificar de “imateriais” quanto a “terra” – poucas coisas tão concretas (o chão onde pisamos), poucas riquezas tão tangíveis. Mas não deve ser difícil, por um lado, mostrar que a emergência dessa “terra” como epítome do bem material e da riqueza “imóvel” depende de um movimento radical de abstração, e dos instrumentos e procedimentos muito específicos de mensuração, delimitação e apropriação que o viabilizam. Por outro, quando os Kĩsêdjê falam em “nossa terra”, não é a essa terra abstrata, objeto de direitos de propriedade – sejam aliás privados ou coletivos, pouco importa – que estão se referindo. Hwyka, “terra”, é uma palavra que os Kĩsêdjê empregam para se referir ao solo, aos diferentes tipos de solo com suas variadas propriedades agrícolas, p.ex. (hwyka tyky, “terra preta”, hwyka kambrêkê, “terra vermelha”, etc.), ou ao solo como chão (hwyka mã é uma expressão que significa “para baixo”). Não me lembro de escutar a palavra qualificada por um possessivo: wa patá (“nossos lugares” ou “nossas aldeias”), wa nhõ pá (“nosso mato”), wa nhõ ngô (“nosso rio/água”), é como se referem aos lugares que consideram “seus”. O conjunto desses lugares é o que os Kĩsêdjê consideram “nossa terra”: não a terra em abstrato, mas paisagens e lugares determinados, constituídos pela interatividade de seus habitantes e “donos”, pessoas das mais diferentes magnitudes e naturezas: indivíduos, famílias, toda uma comunidade aldeã, animais, espíritos.13 Um recurso intangível, poder-se-ia dizer: pois o que é tangível são as criações dessa terra, pessoas ou objetos específicos como formas ou expressões de sua criatividade. O que vocês chamam “cultura”, parecem-me afirmar os Kĩsêdjê (cantos, padrões gráficos, aparatos técnicos, tecnologias, saberes, bem como corpos ou alimentos fabricados de uma certa maneira, e etc.) é apenas a materialização desse recurso intangível, dessa força criativa que para nós é a “terra” – com aspas.14 Não terei dado uma volta muito grande para dizer a mesma coisa que eu disse, afinal, para os museólogos canadenses? Ou melhor dizendo, não terei complicado excessivamente um comentário que, mal-entendido como referindo-se à base material (territorial e ambiental) da cultura, permanece muito mais compreensível, e portanto eficaz (politicamente)? No caso da terra como da cultura, o que se ganha com tal complicação? Não tenho muita certeza, mas seja como for espero que essa volta tenha servido para ilustrar as torções e os desvios necessários para acompanhar a vida dos conceitos, e assim enriquecer um pouco mais a nossa imaginação. 114

Livro Conhecimento e Cultura.indd 114

26/4/2011 12:20:48

Marcela Coelho de Souza

Notas Este artigo origina-se de comunicação apresentada em uma mesa dedicada às “Experiências das Américas” no simpósio Preserving Aboriginal Heritage: Technical and Tradicional Approaches, (Ottawa, Canadian Conservation Institute, 2007) (Coelho de Souza 2008). Daquele trabalho, restaram aqui apenas a primeira parte do título e a anedota introdutória — objeto então de uma interpretação da qual o restante deste texto consiste em uma extensão corrigida. Esta extensão incorpora também comentários em um workshop dedicado à questão “If changing regimes of intellectual property rights affect the way our informants talk about ‘culture’, how does all this affect the way we theorize and study culture”, na VI Conferência da Society for the Anthropology of Lowland South America (SALSA), em janeiro de 2010. A pesquisa junto aos Kïsêdjê foi desenvolvida com o apoio, em 2004-2005, do Programa Pronex (CNPq/FAPESP) no âmbito do projeto coletivo Transformações Indígenas: os regimes de subjetivação ameríndia a prova da história e do Núcleo Transformações Indígenas (MN/UFRJ e UFSC) e, em 2006, da Wenner-Gren Foundation, por meio de uma Post-Doctoral Research Grant. A partir de 2007, vem sendo sustentada pela FINATEC/UnB e (como subprojeto integrante do projeto Effects of Intellectual and Cultural Rights Protection on Traditional People and Traditional Knowledge. Case Studies in Brazil) pela Ford Foundation. 1 Os Kĩsêdjê (também conhecidos como Suyá) são um povo Jê setentrional que vive na bacia do rio Suiá-Miçú, afluente do Xingu, em terra indígena adjacente ao Parque Indígena do Xingu, MT. São conhecidos na antropologia por meio dos trabalhos de Anthony Seeger (p.ex., 1981, 1987). 2 Com a reestruturação da FUNAI em 2010, os Postos foram convertidos em Coordenações Técnicas Locais, subordinadas a uma Coordenação Regional que corresponde à antiga Administração Regional responsável pelo Parque. Os Kĩsêdjê, anteriormente ligados ao Diauarum e considerados como parte do “Baixo”, dispõem agora de uma coordenação local própria, correspondendo ao anterior Posto Indígena Wawi, que fora criado em 2007. Embora ocupem uma Terra Indígena formalmente separada (a TIW, homologada em 1998) adjacente ao PIX, estão subordinados à mesma coordenação regional do Parque – cuja direção aliás no momento ocupam – e tendem a formar um novo bloco mais ou menos independente, o “Leste”. 3 Como coletivo; e que inimizade não seja entendida aqui como agressividade no trato interpessoal, registro em que se destacam por uma atitude respeitosa e amigável, apreciada por todos que com eles interagem. 4 Outro exemplo eloquente refere-se à produção e consumo do caxiri, costume adotado dos Yujdá, que segundo relatos era frequente no Rikô. Embora continue apreciado por algumas pessoas, o caxiri foi, por decisão coletiva, suprimido das ocasiões públicas – notadamente, das festas e comemorações acima mencionadas – em razão, diz-se, das brigas e tensões provocadas por seu consumo. A decisão enquadra-se em todo um esforço dos Kĩsêdjê para controlar o consumo de bebidas alcóolicas, que se intensificou com o trânsito crescente entre aldeias e cidades (Canarana e Querência) nos últimos anos, mas o idioma do costume – a referência ao caráter alienígena da bebida alcóolica, cachaça ou caxiri – é também um componente do discurso sobre a questão. 5 Com por exemplo os Zo’é vistos no filme, que muito apreciam, A Arca dos Zo’é (Video nas Aldeias, 1993). 6 Um aspecto importante aqui sendo sua política matrimonial e demográfica, que enfatiza o crescimento populacional e rejeita uniões com não-índios (outras etnias, sobretudo xinguanas, são aceitas) 7 Que obviamente não tem nenhuma responsabilidade sobre o que se segue, a não ser pela não pequena proeza de ter me ajudado a formular melhor o que provavelmente não entendi (nem do que ele me disse, nem do que disse Carneiro da Cunha). 8 “Minha conclusão era de que contradição podia ser resolvida observando-se que quando consideramos direitos costumeiros estamos nos movendo no campo das culturas (sem aspas), ao

115

Livro Conhecimento e Cultura.indd 115

26/4/2011 12:20:48

A vida material das coisas intangíveis

passo que quando consideramos as propostas legais alternativas e bem-intencionadas estamos no campo das “culturas”. Decorre que dois argumentos podem ser simultaneamente verdadeiros: i) existem direitos intelectuais em muitas sociedades tradicionais: isso diz respeito à cultura; ii) existe um projeto político que considera a possibilidade de colocar o conhecimento tradicional em domínio público (payant): isso diz respeito à “cultura”. O que pode parecer um jogo de palavras e uma contradição é na verdade uma consequência da reflexividade que mencionei.” (Carneiro da Cunha 2009:357-8). 9 Ressalto que talvez fosse possível ler Turner mais generosamente – e de maneira mais interessante –, mas daria um certo trabalho, e o ponto aqui é menos fazer justiça a ele que sublinhar a originalidade do que penso estar dizendo Carneiro da Cunha. Ademais, a clareza inimitável da linguagem de Turner faz do seu texto um alvo irresistível… 10 Uma formulação que tem uma história no pensamento de Carneiro da Cunha, na maneira como ela se autocriticou de uma primeira concepção, em seus próprios termos, “utilitarista” e “funcionalista” da etnicidade (2009[1977]:232). Retraçar essa história, tal como se pode segui-la em outros textos reunidos agora no mesmo volume (2009[1977], 2009[1979], 2009[1994], 2009) não é o objetivo deste capítulo, mas vale sublinhar como a reflexividade e o “efeito de looping” levam-nos além da “organização de diferenças”, na direção, digamos, de sua proliferação. 11 A definição literária a que recorre Carneiro da Cunha, “um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por caminhos secretos e explícitos com os arranjos práticos de uma sociedade” (Trilling apud Carneiro da Cunha 2009:357) é sem dúvida bastante ampla e pouco compromedora. Mas pertence à mesma família das várias outras. 12 O termo designa conhecimentos que se referem a códigos de comportamento, ao cerimonial, à mitologia e etc., e materizalizam-se em cantos (de cura e proteção), remédios, ornamentos; pode ser usado com sentido singular ou plural, e remete ao mesmo tempo a partes integradas de um todo e ao próprio todo, como quando empregado para designar um “modo de vida” ou para traduzir a palavra “cultura”. Para a noção de kukràdjà entre os Mebêngokre (Kayapó), ver principalmente Lea 1986, Fisher 1991, Turner 1991, Gordon 2006; cf. também Coelho de Souza 2006, e demais referências lá incluídas. 13 Depois de ter escrito isso, conversando com dirigentes da associação indígena, nos demos conta de que as pessoas vêm empregando a expressão wa nhõ hwyka para dizer “nossa terra” no contexto das reivindições fundiárias, para se referir sobretudo à Terra Indígena Wawi (demarcada, cujos limites estão em processo de revisão). Foi consenso que se trata de uma expressão nova – tão nova quanto a “terra em abstrato” a que ele corresponde é para eles. 14 Pois já não se trata aqui de matéria bruta que possa pertencer ao sujeito humano, mas da vida a que ele pertence.

116

Livro Conhecimento e Cultura.indd 116

26/4/2011 12:20:48

Marcela Coelho de Souza

Referências BARSH, Russel L. 1999. “How do you patent a landscape? The perils of dichotomizing cultural and intellectual property”. International Journal of Cultural Property, 8(1):14-47. DAES, Erica-Irene. 1997. Protection of the Heritage of Indigenous Peoples, Vol. E.97.XIV.3. Geneva: United Nations, Ofice of the High Comission for Human Rights. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009[1977]. “Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em Lagos no século XIX”. In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naify. pp. 223-233. ______. 2009[1979]. “Etnicidade: da cultura residual mas irredutível”. In Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naify. pp. 235-244. ______. 2009[1994]. “O futuro da questão indígena”. In Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naify. pp. 259-274. ______. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naify. Pp. 311-373. COELHO DE SOUZA, Marcela S. 2006. “As propriedades da cultura no Brasil Central indígena”. Revista do Patrimônio, 32 [Número especial: Patrimônio imaterial e biodiversidade]:316-335. ______. 2008. “The material life of intangible things: three experiences from Brazil”. In: Canadian Conservation Institute, Preserving Aboriginal Heritage: Technical and Traditional Approaches. Ottawa: Canadian Conservation Institute. ______. 2009. Três nomes para um sítio só: a vida dos lugares entre os Kisêdjê. Comunicação apresentada no IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (Painel Convidado VII: Classificar: objectos, sujeitos, acções). Lisboa, 9-11 de setembro de 2009. ______. 2010. A pintura esquecida e o desenho roubado: troca, contrato e criatividade entre os Kisêdjê. Comunicação apresentada na 27a. Reunião Brasileira de Antropologia. Belém, 1-4 de agosto de 2010. FISHER, William. 1991. Dualism and its discontents: social process and village fissioning among the Xicrin-Kayapó of Central Brazil. Ph.D. Thesis, Cornell University. GORDON, César. 2006. Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os Xikrin-Mebêngôkre. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora da Unesp/ISA/NUTI. LANNA, Amadeu Duarte. 1968. “Aspectos econômicos da organização social dos Suyá”. Revista de Antropologia 15/16:35-68. LEA, Vanessa R. 1986. Nomes e nekrets Kayapó: uma concepção de riqueza. Tese de Doutorado em Antropologia, Museu Nacional/UFRJ. LEACH, James. 2004. “Modes of creativity”. In: E. Hirsch & M. Strathern (eds.). Transactions and creations: property debates and the stimulus of Melanesia. New York:

117

Livro Conhecimento e Cultura.indd 117

26/4/2011 12:20:48

A vida material das coisas intangíveis

Berghahn Books. pp. 151-176. SAHLINS, Marshall. 1997. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção” (Partes I e II). Mana. Estudos de Antropologia Social, 3(1 e 2):41-75; 103-150. SCHADEN, Egon. 1965. “Aculturação Indígena”. Revista de Antropologia, 13:65-102. SCHULTZ, Harald. 1961. “Informações etnográficas sobre os índios Suya”. Revista do Museu Paulista NS, 13:325-332. SEEGER, Anthony. 1980. “A identidade étnica como processo: os índios suyá e as sociedades do Alto Xingu”. Anuário Antropológico, 78:156-175. _______. 1981. Nature and society in Central Brazil: the Suyá Indians of Mato Grosso. Cambridge, MS: Harvard University Press. _______. 1984. “Identidade Suyá”. Anuário Antropológico 82:194-199. _______. 2004[1987]. Why Suyá Sing: a musical anthropology of an Amazonian people. Urbana & Chicago: University of Illinois Press. STRATHERN, Marilyn. 1998. “Novas formas econômicas: um relato das terras altas da Papua-Nova Guiné”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 4(1):109-139. _______. 2009. Land as intellectual property. Conferência apresentada na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 20/10/2009. TURNER, Terence. 1991. “Representing, resisting, rethinking. Historical transformations of Kayapo culture and anthropological counsciousness”. In: G.W. Stocking (ed.), Colonial Situations: Essays on the Contextualization of Ethnographic Knowledge. Madison: University of Wisconsin Press. WAGNER, Roy. 2010[1981]. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2004. “Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation”. Tipití, 2(2):3-23.

118

Livro Conhecimento e Cultura.indd 118

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização: notas sobre chefes e caraíbas na política Kalapalo (Alto Xingu, MT)

Antônio Guerreiro Jr.

O problema do Xingu é o feitiço. Os feiticeiros estão matando nossas lideranças para que aconteçam festas e os kagaiha kuẽgü1 tragam dólares. (fala de um ex-membro do Conselho Local de Saúde) Os Kalapalo são um dos dez povos que vivem na região do Alto Xingu, um complexo multiétnico e plurilíngue intensamente articulado por casamentos, comércio e rituais (cf., por exemplo, Basso 1973; Franchetto 1986, 2000; Gregor 2001; Heckenberger & Franchetto 2001; Menezes Bastos 2001)���������������� . A ocupação nativa da área remonta aos séculos VIII-IX d.C., mas o sistema tal como ficou conhecido a partir dos primeiros relatos escritos sobre a região (Steinen 1940, 1942)������������������������������������������������������������������������ parece existir desde o século XVIII ����������������������������������� (Heckenberger 2005)���������������� . Os rituais regionais são uma das mais importantes formas de socialidade que costuram este complexo, sendo considerados pelos próprios índios como uma das principais marcas da condição de “gente verdadeiramente xinguana” (ou simplesmente “gente”; kuge, em kalapalo). Pode-se pensar que estes rituais funcionam como uma verdadeira “língua franca” da região, que viabiliza a comunicação entre povos que não necessariamente se compreendem linguisticamente (Menezes Bastos 1983; Menget 1993), e eles podem ser divididos em duas grandes categorias: as “festas para espíritos” e as “festas para pessoas importantes”. As primeiras tendem a se restringir ao grupo local,2 estão ligadas a processos de adoecimento e cura, ao xamanismo, e variam razoavelmente de grupo a grupo �������������������������������� (Barcelos Neto 2008)������������ . Já as festas para pessoas importantes são essencialmente regionais, exigem no mínimo a participação de três grupos3 e gravitam em torno do ciclo de vida dos nobres.4 119

Livro Conhecimento e Cultura.indd 119

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização

Especificamente estes eventos é que são os focos das relações pacíficas formalizadas entre os alto-xinguanos, e operam como momentos importantes de produção da socialidade: é só quando um nobre tem suas orelhas furadas que outros meninos também podem passar pelo mesmo processo; somente na ocasião do ritual mortuário (Quarup) de um nobre é que outros mortos podem ser “homenageados” (isto é, lembrados e terem suas almas definitivamente encaminhadas para a aldeia dos mortos); é nestes eventos que jovens de ambos os sexos saem da reclusão pubertária e se realizam casamentos; são nas lutas que ocorrem ao final dos rituais que os kindoto (os mestres da luta esportiva xinguana, kindene) exibem sua força e beleza, e quando alguns são apresentados como futuros chefes; é nos rituais regionais que nomes se tornam “belos” (famosos, tuhutinhü), ganham valor e boa parte da memória genealógica é produzida (Guerreiro Júnior 2010) e articulada a uma história coletiva (Franchetto 1993, 2000). O ciclo de vida de qualquer mulher ou homem alto-xinguano é indissociável do ciclo de vida dos nobres, que criam, nos rituais regionais, as condições para que os processos de fabricação de pessoas, tão centrais para os xinguanos e outros ameríndios (Viveiros de Castro 1977; Seeger et al. 1979)��������������������������������� , se completem e recomecem – sempre com a participação de estrangeiros. De todos estes rituais, o Quarup5 (o grande rito pós-funerário realizado em memória de chefes e nobres falecidos; egitsü, em kalapalo) foi e tem sido um dos mais importantes meios de consolidaçãodo sistema interétnico pacífico6 da região (sobretudo após a aproximação das aldeias no começo da década de 1960). Marcado como uma exclusividade7 da nobreza e tendo como ápice a ritualização da violência por meio dos confrontos de huka-huka8 (kindene), o Quarup é considerado um marco mitológico da diferenciação dos alto-xinguanos em relação a seus vizinhos belicosos e, junto com outros rituais regionais patrocinados pelos nobres, a condição para a reprodução desta distinção, como bem colocado na célebre frase de um interlocutor de Thomas Gregor (1990:113): “nós não fazemos guerra; nós temos festas para os chefes para as quais todas as aldeias vêm. Nós cantamos, dançamos, trocamos e lutamos”. Desde a intensificação do contato com a sociedade envolvente na década de 1940, os rituais também se transformaram em uma espécie de língua franca entre xinguanos e não-índios, pois se tornaram uma forma peculiar de relacionamento com os caraíba (expressão pan-xinguana para “não-indígena”; kagaiha, em Kalapalo). Os irmãos Villas Boas rapidamente perceberam como as relações pacíficas entre os grupos do Alto Xingu estavam ligadas à participação nos rituais, e começaram a incentivar a sua expansão, sua realização em um espaço imaginado pelos brancos como “neutro” (o Posto Leonardo)9 e a inclusão de grupos que até então não faziam parte do complexo ritual, no intuito de consolidar o 120

Livro Conhecimento e Cultura.indd 120

26/4/2011 12:20:48

Antônio Guerreiro Jr.

regime de paz que viabilizaria a criação do PIX (Menezes Bastos 1992). Povos belicosos que não participavam plenamente do complexo ritual xinguano passaram a ser convidados para as festas, como os Kisêdjê10 e Ikpeng, na expectativa de que a sua inclusão efetiva no sistema ritual suprimisse a possibilidade de eventuais guerras. Os Trumai, que antes do contato aparentemente só participavam do Jawari,11 durante certo tempo também passaram a frequentar o Quarup a pedido dos Villas Boas, e o chefe Trumai, na época, chegou a ser um dos cantores do Quarup de Leonardo Villas Boas, realizado em meados dos anos 1960. Foi neste contexto que o ritual mortuário dos nobres, a festa que idealmente reúne o maior número possível de aldeias, foi tomando proporções que talvez nunca tenha tido antes do contato.12 Quando as aldeias eram ainda mais distantes, a pax xinguana não garantia viagens livres de ataques de inimigos, o deslocamento era longo e penoso, e um Quarup dificilmente reunia – segundo contam os Kalapalo – mais do que duas ou três aldeias convidadas. Com a aproximação das aldeias e a criação do PIX nos anos 1960, a situação mudou muito, e convidar todas as aldeias alto-xinguanas se tornou indispensável (pois deixar de fazer um convite é considerado muito pouco polido). Este evento também se tornou uma grande ocasião para receber jornalistas, políticos, fotógrafos, pesquisadores e personalidades variadas, que naquela época passaram a divulgar uma imagem do PIX intimamente ligada à imagem dos povos do Alto Xingu (deixando de lado a imagem dos povos mais “guerreiros” do Parque e, inclusive, amenizando a relevância da violência desencadeada entre os próprios alto-xinguanos pelas acusações de feitiçaria). Os rituais começaram a funcionar como um meio de atrair a atenção da sociedade nacional e personalidades internacionais para o Parque e seus habitantes, que passaram por um complexo processo, pelo qual esses últimos, com sua refinada estética ritual e o pacifismo correlato, foram transformados no “cartão postal” da indianidade brasileira e meio de promoção de um novo modelo de indigenismo no Brasil.13 Os não-índios foram rapidamente incorporados à lógica dos rituais da nobreza, e o Quarup se tornou um evento bastante propício para a reafirmação de antigas alianças com os caraíbas, nos quais não-índios importantes para a história do PIX receberam, após a sua morte, a mesma homenagem que a própria nobreza xinguana (como foi o caso de Leonardo, Cláudio e Orlando Villas Boas, e do sertanista Apoena Meireles). Mas estes eventos apresentaram, desde então, outra possibilidade, que vem sendo fartamente explorada: a de continuamente atrair atenção sobre os povos do PIX e criar novas alianças com os kagaiha. O caso do Quarup realizado para o jornalista e empresário Roberto Marinho pelos Kamayurá em conjunto com os Yawalapíti, em 2004, é um excelente exemplo. Segundo Sapaim, um importante xamã kamayurá que vive entre os Yawalapíti, 121

Livro Conhecimento e Cultura.indd 121

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização

os espíritos teriam lhe pedido em sonho que fizessem uma homenagem a Roberto Marinho (falecido em 2003), ao que o atual chefe kamayurá, Kotóki, e o “cacique geral do Xingu”14, Aritana Yawalapíti, acederam, afirmando que a Rede Globo havia sido fundamental para que os índios do Xingu pudessem ser nacional e internacionalmente conhecidos (Funai ����������������������������������������������� 2004)����������������������������������� . Foi uma ocasião marcada pela presença de inúmeras autoridades, dentre elas o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que firmou compromissos de cooperação entre o governo Lula e os povos do Alto Xingu, amplamente divulgados pela mídia (cf., por exemplo, O Globo, 2004). Seja para reconhecer os grandes aliados, seja para atrair pessoas importantes e criar novas alianças, em diversos momentos o Quarup já mostrou e continua mostrando que tem o potencial de funcionar como meio de comunicação e relacionamento pacífico não só entre os alto-xinguanos, mas também entre eles e os não-índios. Neste processo, o que era para cada povo egitsü, kaumai, torïp, foi se tornando, paulatinamente, Quarup: uma dobradiça entre o mundo dos brancos e a política (ritual) indígena. Estes processos de atração dos brancos pelos rituais, criando momentos de negociação e possibilidades de construção de alianças, têm sido uma importante fonte de recursos para os Kalapalo.15 Por meio de seus convidados eles obtêm pagamentos em dinheiro, negociam presentes caros (já conseguiram um caminhão, dois motores de popa, geradores e placas solares, por exemplo), apoio das prefeituras regionais para projetos de agricultura e transporte, e criam as condições para que os brancos que frequentam suas festas se sintam à vontade para voltar à aldeia quando quiserem: seja para passear, fazer suas pesquisas, fotografar, filmar etc. Mas os brancos sempre precisam ser levados à aldeia em momentos nos quais as atividades coletivas estão aceleradas: deve haver sempre alguém responsável por “trazer os kagaiha” (um chefe, idealmente, responsável pelos convites) para as festividades organizadas por um dono (oto), um patrocinador (que no caso do Quarup é sempre um chefe ou nobre). De qualquer maneira, a relação destes agentes com o coletivo e com os não-índios e seus recursos pode ser uma grande fonte de complicações, pois a política local é largamente marcada por disputas entre os chefes, que quando patrocinam rituais regionais sempre almejam realizar grandes eventos que lhe renderão fama e – conceito muito importante para pensar a chefia xinguana – “beleza”. Nos últimos anos os Kalapalo andaram às voltas com a possibilidade de realizar um Quarup em homenagem ao falecido presidente Tancredo Neves, trazendo à tona questões relativas à política imbricada no sistema ritual. Aparentemente, parentes do ex-presidente teriam pedido esta homenagem aos Kalapalo já há algum tempo, em 2006.16 Naquele ano, aconteceu um Quarup na aldeia kalapalo Aiha,17 mas parece que, por falta de tempo e pelo fato de uma emissora de TV 122

Livro Conhecimento e Cultura.indd 122

26/4/2011 12:20:48

Antônio Guerreiro Jr.

britânica estar filmando um reality show durante o evento, a homenagem não pôde acontecer. Em 2007 os Kalapalo não fizeram nenhum Quarup, e em 2008 os planos foram frustrados porque eles não conseguiram entrar em acordo com os interessados sobre os pagamentos e a compra de recursos para a festa (principalmente combustível e algodão fiado). No final daquele ano, porém, parecia estar tudo arranjado para que a homenagem ocorresse em 2009, durante um Quarup que seria realizado em outra aldeia kalapalo (a maior depois de Aiha) em homenagem ao falecido neto (ainda bebê) de um dos chefes daquela aldeia.18 Havia muitos rumores sobre esta festa, e os Kalapalo estavam maravilhados com a quantidade de pessoas importantes que participariam do evento, com o dinheiro e os presentes que receberiam, e com a fama que o dono do ritual ganharia em todo o Alto Xingu. Segundo um kalapalo que comentou o assunto comigo, “Os Kalapalo vão ficar muito mais famosos do que os Yawalapíti, vai ter muito mais autoridades que no Quarup do Orlando Villas Boas. Orlando era cacique pequeno, este que nós vamos homenagear é que era cacique de verdade, porque era um presidente do Brasil!”. Fama, grandeza e beleza são elementos centrais da política alto-xinguana. Um chefe é considerado “grande” quando é amplamente visto como bom e generoso pelos seus coaldeões (“seu pessoal” ou suas “crianças”), e fica ainda “maior” quando seu nome se torna famoso, amplamente conhecido entre os estrangeiros (índios e kagaiha). Mais ainda, quem é homenageado em um Quarup também contribui para sua própria grandeza (seu nome será lembrado durante muitas gerações; os Kalapalo se lembram de grandes chefes cuja genealogia poderia remontar ao século XIX) e para a fama dos patrocinadores (como fica claro na fala acima). Homenagear um grande chefe, ou uma grande autoridade, é um elemento importante do processo de produção dos chefes-patrocinadores vivos. Neste caso, a equiparação entre as autoridades e os grandes chefes faz com que a sua atração para um Quarup, a incorporação dos brancos no ritual, tenha efeitos diretos sobre a política nativa. Patrocinar um grande ritual é uma grande fonte de fama, e se o ritual for considerado um sucesso (tiver bons cantores, dançarinos animados, muitos espectadores e muita comida e bebida), o chefe-patrocinador será muito bem visto entre os demais, assim como sua aldeia, e o objetivo do ritual é plenamente cumprido – produzir beleza e grandeza. O Quarup daquela aldeia aconteceu, mas sem a homenagem ao ex-presidente, pois a entrada de não-índios no Xingu havia sido vetada para evitar uma possível epidemia de gripe tipo A, causada pelo vírus H1N1. Contudo, a possibilidade de que a homenagem acontecesse fez com que a organização deste ritual se tornasse palco de disputas envolvendo os chefes das duas maiores aldeias kalapalo e outra pequena aldeia, fundada na virada de 2007 para 123

Livro Conhecimento e Cultura.indd 123

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização

2008. Antes de mais nada, é preciso entender o contexto político da segunda maior aldeia kalapalo. Na época, ela contava com dois chefes principais, e o “primeiro cacique” (forma pela qual os Kalapalo se referem ao chefe principal de uma aldeia) ocupava também a posição de “dono do branco” (kagaiha oto, o responsável por intermediar o contato – abordarei este tipo de agente com mais detalhes adiante) e vinha sendo constantemente acusado de se apropriar do dinheiro destinado para a comunidade. Ele também já não residia mais em tempo integral na aldeia como se espera de um chefe importante, e, do ponto de vista de algumas pessoas, o exercício da chefia tradicional havia se tornado inviável para ele. Nesse contexto seu irmão mais novo começou a ascender, e muitos rumores começaram a circular a respeito deste fato. Já em 2007, vinham me dizendo que lá estava “uma confusão”, pois o “terceiro cacique” estaria assumindo a posição de “primeiro” e fazendo seu irmão descer na hierarquia. Este tipo de coisa é sempre motivo de discussões e preocupações, pois os Kalapalo definitivamente não gostam da ideia de que uma aldeia tenha mais de um anetü muito importante. Sempre há vários anetaõ em cada aldeia, mas apenas um pode ser o “primeiro”, caso contrário as disputas e “mentiras” podem correr soltas e fazer a aldeia se dividir. O chefe em ascensão do qual falei é que se tornaria o dono do Quarup de 2009, o que é um importante índice de chefia. Apresentar-se como chefe-dono de egitsü é colocar-se no lugar dos chefes do passado, cujas relações recuam ao passado mítico. Nos discursos cerimoniais de recepção de mensageiros, o chefe diz, em tom autoderrogatório, que eles não mais “ressuscitam seus chefes do passado”, o que é interpretado por algumas pessoas como sendo uma forma poética de dizer que os chefes vivos não mais substituem os chefes mortos com total dignidade – mas que é, de fato, uma forma de afirmar a posição de descendente de importantes chefes. O fato de este chefe fazer questão de realizar a festa em sua aldeia, e não em Aiha, foi um ponto importantíssimo das disputas. A grande maioria dos Quarup kalapalo acontece em Aiha, considerada a principal aldeia kalapalo, e até então apenas um ou dois Quarup kalapalo haviam ocorrido fora (segundo me disseram em Aiha). É muito importante para um grupo alto-xinguano ter seus nobres enterrados em sua própria aldeia, pois eles se tornarão chefes na aldeia dos mortos e o patrocínio da festa confere muito prestígio aos patrocinadores. Por exemplo, em 2009 os Kalapalo e Matipu se envolveram em uma breve querela por causa do local de enterro e realização do Quarup do filho de um grande chefe kalapalo das décadas de 1940 e 1950, que vivia entre os Yawalapíti. Os Kalapalo souberam de sua morte e já planejavam buscar seu corpo para enterrá-lo e fazer um 124

Livro Conhecimento e Cultura.indd 124

26/4/2011 12:20:48

Antônio Guerreiro Jr.

Quarup para ele; qual não foi sua surpresa ao saberem que os Matipu haviam ido aos Yawalapíti e reclamado o corpo (pois a avó materna do morto era Matipu). Os Kalapalo ficaram muito incomodados com o acontecido, e consideraram isso uma grande ofensa. Os moradores de Aiha estavam absolutamente inconformados com a realização de uma festa de tal magnitude em uma aldeia considerada “periférica”. Realizando um Quarup de forma autônoma, o chefe em ascensão não só dava um passo importante para legitimar sua posição como afirmava a total independência ritual de sua aldeia – e Aiha às vezes é considerada como a “mãe” das demais, que são pensadas como seus “ramos de mandioca”, evidenciando certa tendência à hierarquização das relações regionais. Ela também é chamada de iho, palavra que significa “poste onde se amarra uma rede”, “chefe”, “protetor”, e as relações entre aldeias de um mesmo povo são sempre descritas tomando uma delas como iho, “aldeia principal”. Ainda que em grande medida toda aldeia seja autônoma, elas dependem umas das outras para os rituais, e a situação kalapalo atual evidencia como um sistema de aldeias “satélites” é latente (uma situação possivelmente mais comum no passado)19. Permitir que outra aldeia realizasse um ritual de tamanha grandeza seria reconhecer sua total autonomia ritual em relação à Aiha – o que atualiza uma tensão entre duas grandes parentelas que vemos desde a etnografia de Basso (1973), já que a aldeia em questão resulta da saída de parte de uma destas parentelas. Ser autônoma é deixar de depender de Aiha para se lembrar de seus mortos, um processo fundamental para a reprodução da socialidade regional, o que do ponto de vista dos chefes de Aiha é uma grande ascensão dos descendentes de um antigo chefe cujos parentes foram acusados de feitiçaria – que de focos de acusações passam a grandes chefes legítimos em disputa com a aldeia “mãe” por convidados indígenas e não-indígenas. Muitos dos argumentos contrários à festa evocados em público pelos moradores de Aiha se referiam à distância daquela aldeia, que poderia dificultar ou impedir a viagem dos convidados indígenas, ao seu tamanho (é uma aldeia pequena, que em 2007 não tinha 100 pessoas, contra quase 300 em Aiha), e à sua “falta de beleza” (do ponto de vista de alguns). Mas, em particular, não foram poucas as vezes que ouvi queixas de jovens ou lideranças mais velhas de Aiha sobre os chefes da outra aldeia não quererem dividir “seus caraíbas” com Aiha. Com isso as pessoas queriam dizer que Aiha não receberia os dividendos da relação com estas pessoas: compra de artesanato, presentes e pagamentos pela estadia na aldeia, alianças para possíveis projetos, ajuda no patrocínio de festas no futuro. As pessoas em geral afirmavam veementemente que não iriam, de forma alguma, comparecer ao ritual – o que constitui uma grande desfeita, e o 125

Livro Conhecimento e Cultura.indd 125

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização

chefe principal de Aiha deu início a uma verdadeira campanha para convencer os chefes de outros povos a não irem na festa caso ela não fosse feita em Aiha. Ao mesmo tempo, o chefe de uma aldeia criada recentemente participou duplamente da disputa, se posicionando contra Aiha (de onde havia sido expulso) e a favor do “primeiro cacique” da aldeia que enfrentava problemas (seu primo cruzado e aliado político). Ele se posicionou contra Aiha a fim de levar seus aliados caraíbas exclusivamente para a outra aldeia, no intuito de não “dividi-los” com Aiha e contribuir para o prestígio de seu primo. Como ele mesmo me disse, em certa ocasião, “Eu não vou levar meus amigos lá pro Kalapalo [leia-se Aiha] não. Eu consegui tudo pra eles, professor, antropólogo, caminhão, trator, barco, motor, mas eles não gostaram, não sei porque. Eles me expulsaram. Tem que fazer o Quarup lá na aldeia do meu primo”. Um jovem de Aiha me disse algo no mesmo sentido: “Aquele homem não quer que a festa seja no Kalapalo. Ele quer fazer a festa naquela aldeia porque ele só quer levar os amigos dele pra lá”. O local de realização do ritual e os aliados não-índios que o acompanhariam se tornaram grande objeto de disputa, envolvendo o faccionalismo entre os chefes, as possibilidades de distribuição de aliados e seus recursos e o prestígio regional das aldeias. As possibilidades de aliança com autoridades e seus benefícios potenciais (tanto materiais quanto políticos e simbólicos) colocaram em jogo a hierarquia entre os chefes da aldeia anfitriã e entre as próprias aldeias, revelando que por trás do ritual, que muitas vezes pode ser lido na chave da “exaltação dos sentimentos coletivos”, há complexas redes de alianças e conflitos (Harrison 1992).

Os brancos também precisam de um dono Barcelos Neto (2003, 2008) conta uma história interessante sobre os Wauja (um grupo aruak alto-xinguano). Um homem que era o responsável pelas relações formais com os brancos na aldeia Piyulaga (seu “dono dos brancos”) ficou muito doente, e se tornou dono de vários apapaatai (palavra wauja para “espíritos”; itseke, em karib). Algum tempo depois, a Funai manifestou o interesse em adquirir uma grande quantidade de máscaras rituais dos Wauja para serem vendidas em sua loja de artesanato indígena. Para os Wauja, as máscaras não poderiam ser feitas “à toa”, pois fazer uma máscara não é “representar” um apapaatai, mas sim torná-lo presente – e fazê-lo sem alimentá-lo e alegrá-lo é certamente muito perigoso.20 Por isso alguém deveria patrocinar um ritual para o qual as máscaras seriam devidamente fabricadas, enfeitadas, alimentadas e alegradas, e só depois vendidas para a loja da Funai. 126

Livro Conhecimento e Cultura.indd 126

26/4/2011 12:20:48

Antônio Guerreiro Jr.

Como o seu dono dos brancos havia se tornado dono de muitos apapaatai e estava mediando as relações com a loja, ele patrocinou um enorme ritual do qual participaram mais de 30 apapaatai (um evento consideravelmente raro), cujas máscaras foram vendidas à Funai. Tendo se tornado dono de tantos espíritos, isto fez com que várias pessoas se mobilizassem para plantar roças e fazer objetos para (ele e) seus apapaatai, e o patrocínio deste grande ritual lhe rendeu um prestígio enorme e uma rápida ascensão ao “primeiro lugar” da chefia wauja. O seu caso é exemplar para pensarmos possíveis entradas dos brancos na economia de prestígio alto-xinguana, pois a condição de chefe daquele homem foi ampliada por sua incorporação de apapaataie dos kagaiha, que ao mesmo tempo viabilizaram o patrocínio de um grande ritual, renderam um bom dinheiro à aldeia e fizeram do dono dos brancos um grande chefe. Assim como os itseke e seus rituais “enobrecem” seus donos, como bem mostra Barcelos Neto, algo semelhante pode acontecer com os kagaiha e seus objetos – que são eles mesmos uma variedade de itseke. Há elementos tanto na mitologia quanto no discurso cotidiano que enfatizam essa condição dos kagaiha. Em suas primeiras aparições, eles eram vistos exatamente como itseke, já que o que faziam era tido como um análogo dos raptos de almas e doenças causadas por estes seres: quando os kagaiha apareciam era para sequestrar e matar, e algumas pessoas desaparecidas que se acreditava terem se tornado itseke hoje são vistas como vítimas dos sequestros dos kagaiha. Na história de Saganafa, um jovem Kalapalo roubado pelos kagaiha (segundo se pode especular, por uma bandeira de Antônio Pires de Campos em meados do século XVIII)21, o Avô-dos-Brancos é descrito como um itseke canibal e um assassino cruel que produz objetos de metal a partir de sangue coagulado. Em uma versão do mito de origem da humanidade xinguana, o ancestral dos brancos nasce de uma irmã da mãe dos gêmeos Sol e Lua, que engravidou de uma flecha, e é ele mesmo um itseke assim como seus primos paralelos: este é Kagahina, ou Carabina, o matador. Por sua violência típica, a capacidade de transformar sangue coagulado em metal originada de seus ancestrais e seu duplo potencial destrutivo-criativo, diz-se que os kagaiha são pessoas dotadas de itseketu, o mesmo conjunto de capacidades de agressão e transformação/criação que caracteriza os seres não-humanos. Há cerca de um ano, um homem nahukuá que se tornou xamã tem como seus itseke auxiliares o Facão, a Espingarda, a Lima, o Anzol, entre outros.22 Atualmente, com a progressiva aquisição de tecnologia pelos índios, os Kalapalo têm afirmando constantemente esta identidade dos kagaiha e seus objetos com os itseke, para eles claramente manifesta nas curiosas capacidades dos computadores, MP10 Players, softwares de edição de vídeo. Assim, mesmo sendo 127

Livro Conhecimento e Cultura.indd 127

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização

visivelmente gente, kuge23, os kagaiha não deixam de ser itseke – o que não é problema algum para o pensamento kalapalo, já que os itseke também são, do ponto de vista deles mesmos, gente. O problema desta situação é que, como os Kalapalo inevitavelmente veem os kagaiha como gente, criam-se os mesmos problemas de quando um humano encontra um itseke: o humano tende a transformar-se em espírito. Este processo não só deve ser interrompido pelo xamanismo como deve ser revertido, através da familiarização do itseke por meio de um ritual patrocinado pelo ex-doente, o que também é uma forma de “humanização” do ser perigoso. Pois agora é o itseke que se torna “um pouquinho gente”, comendo, bebendo, dançando e se alegrando com(o) os humanos, e passa a ser considerado “filho” do ex-doente, ao mesmo tempo dono do itseke e seu ritual.24 Na relação com os itseke-kagaiha, os Kalapalo tanto correm o risco de “virar brancos”, como de fato temem estar virando,25 quanto os brancos podem ser “amansados” e familiarizados pelos índios, assim como eles fazem com os itseke. Análogos dos itseke, os kagaiha também precisam ser “cuidados”, “familiarizados”, e por isso precisam de um dono. No Alto Xingu praticamente se institucionalizou a existência de certos chefes cujo papel é “cuidar dos brancos”. Geralmente são homens que têm ascendência nobre para utilizarem o título de “chefe”, mas que normalmente não são os primogênitos dos grandes anetaõ, ou herdaram a chefia pela via materna26 e, eventualmente, nunca foram preparados27 para este cargo. Entretanto, estas pessoas apresentam o diferencial de falarem um português acima da média dos mais velhos (dos quais alguns sequer entendem português) e terem experiências mais duradouras de relacionamentos com os brancos, seja trabalhando para eles em fazendas, na cidade ou tendo feito boas relações em viagens, encontros com autoridades em eventos, reuniões etc. Estes chefes dedicam boa parte de suas vidas a criar e manter relações com não-índios e a trazê-las para a aldeia, procurando tornar coletivamente valiosas suas relações com os kagaiha, que podem render ao grupo aliados políticos e fontes de recursos materiais sob a forma de dinheiro, objetos valiosos e suporte fora da aldeia. Fazer viagens frequentes às cidades, conversar com conhecidos ou pessoas potencialmente interessantes, oferecer presentes, hospitalidade, fazer grandes amigos, trazer estes amigos para a aldeia e, finalmente, procurar contrapartidas para o grupo (como pessoas dispostas a assessorar projetos, dar aulas na escola indígena, se comprometer a comprar grandes quantidades de “artesanato”, ou então pagar em dinheiro pela estadia), é o seu trabalho. Desde a chegada dos irmãos Villas Boas à região, agentes desse tipo têm sido intencionalmente preparados, por índios e brancos, para desempenharem papéis de mediação. Veja-se, por exemplo, a política de Orlando Villas Boas, que 128

Livro Conhecimento e Cultura.indd 128

26/4/2011 12:20:48

Antônio Guerreiro Jr.

levava filhos jovens de chefes importantes para passarem temporadas junto a ele (dentro e fora do Parque) aprendendo a entender os costumes dos brancos, seus interesses e formas de negociar. Enquanto os primogênitos dos grandes chefes continuaram sendo preparados por estes para aprenderem os conhecimentos que são suas prerrogativas e assumirem suas responsabilidades rituais, seus filhos mais novos foram progressivamente ocupando o papel de mediadores com o mundo caraíba, o que também passou a lhes render prestígio e novas possibilidades de inserção na economia política local. Esta figura do “dono dos brancos” é importantíssima para os Kalapalo de Aiha, pois foi por meio dele que fizeram a maioria das alianças que mantêm atualmente e os contatos por meio dos quais obtiveram a maior parte do dinheiro que entrou na conta de sua associação (Associação Aulukumã) nos últimos anos. Em um momento no qual algumas associações de outros povos do Alto Xingu estão desenvolvendo projetos com os quais têm conseguido suprir uma série de necessidades, os Kalapalo de Aiha têm mantido uma política de obtenção de recursos muito centrada na figura do kagaiha oto e seus aliados pessoais. De fato, A.28, o chefe que até o final de 2007 desempenhava este papel fora também o escolhido para presidir a Associação Aulukumã, o que em parte fez com que as atividades desta associação ficassem muito atreladas às atividades deste chefe. A associação passou a funcionar mais como uma espécie de conta conjunta da aldeia cuja renda vinha exclusivamente dos contatos pessoais deste homem, o que lhe valeu uma trajetória ambígua marcada pela aquisição de muito prestígio seguida de um período de fortes desconfianças, que levaram à sua expulsão em meio a um crescente clima de feitiçaria. Muitas pessoas eram levadas por A. à aldeia, e para manter sua rede de relações ele fazia frequentemente um percurso entre Aiha e várias cidades brasileiras: Canarana, Cuiabá, Brasília, Uberlândia, São Carlos, São Paulo, Salvador, Fortaleza. O circuito era sempre o mesmo, e tinha como objetivo, praticamente todas as vezes, apenas fazer visitas aos seus “amigos”29 – para que os Kalapalo pudessem receber os kagaiha na aldeia era preciso que eles também pudessem ser recebidos na cidade, e A. mantinha esta rede de visitas ativa o tempo todo, sem a qual não lhe parecia possível exercer sua função de “cuidar do branco”. Este processo começou a criar vários problemas em Aiha, primeiro com W., o dono da aldeia (ete oto). A. mantinha boas relações de troca com seus amigos kagaiha, que frequentemente lhe davam presentes, dinheiro, passagens de ônibus – o que ele retribuía com convites para passarem temporadas em Aiha. Mas, chegando lá, estes amigos geralmente ficavam hospedados na casa do dono da aldeia, que esperava presentes caros também para si, o que nem sempre acontecia, já que estas pessoas já estavam dedicando presentes a A. Muitos dos presentes 129

Livro Conhecimento e Cultura.indd 129

26/4/2011 12:20:48

Assimetria e coletivização

que estes visitantes levavam “para a comunidade” eram então apropriados por W., que como dono da aldeia se sentida no direito de receber presentes dos visitantes. A. ganhou muito prestígio por todos os kagaiha que ele conseguiu (que compravam artesanato, organizavam excursões para a cidade, pagavam pela estadia, por fotos, apresentações), o que deixava W. muito incomodado e era o foco das conversas sobre as diferenças entre estes dois chefes. A situação ficou mais complicada quando começaram a correr rumores de que o dinheiro da associação estaria acabando por causa das viagens de A. Algumas pessoas argumentavam que ele estaria fazendo estas viagens em proveito próprio, que estava se beneficiando sozinho da rede de amigos que ele mantinha ativa com dinheiro da associação.Ele, entretanto, se explicava dizendo que este era o trabalho dele, que ele não poderia ir à cidade atrás de amigos ou em reuniões sem usar o barco da aldeia, o motor, a gasolina. E queixavam-se justamente disso: que parecia que ele tinha se tornado o dono do barco. A. acabou sendo expulso de Aiha no final de 2007. Enquanto circulavam os rumores de que A. estava se aproveitando da presidência da associação para ficar viajando, outro homem (M.) vinha se preparando para se tornar anetü (especificamente, um kagaiha oto) e havia um curioso “clima de feitiçaria” em Aiha mesmo sem ninguém estar doente ou ter morrido (toda noite alguém ouvia apitos de feiticeiros, via vultos atrás das casas ou na região da lagoa, trancava as portas e os homens saiam armados à noite para fazer “rondas” – um clima que eu só vi novamente em 2009, quando uma acusação de fato estava em curso). No final de 2007, depois que A. foi expulso, M. começou a tentar percorrer exatamente o mesmo circuito de cidades que seu predecessor, no intuito de manter as relações com os aliados de Aiha. É impossível dizer se a expulsão de A. tem ou não algo a ver com o clima de feitiçaria que se desenvolvia num crescendo, pois os Kalapalo o expulsaram alegando que estava se aproveitando da associação. Mas é significativo que os rumores sobre enriquecimento e falta de generosidade tenham sido acompanhados de um clima de feitiçaria iminente, pois a ganância e o egoísmo são justamente duas das principais características de um feiticeiro. No ano seguinte, não houve nenhuma acusação de feitiçaria dentro de Aiha, mas é curioso que um enorme clima de feitiçaria e os rumores sobre A. tenham aparecido juntos e 2007 tenha terminado com sua expulsão. A noção de “cuidar”, junto com a forma pela qual os Kalapalo se referem a “seus caraíba” é importante para entender os conflitos em jogo. Os não-índios com os quais eles mantêm alianças mais ou menos duradouras são chamados de “Kalapalo kagaihagü”, sendo –gü um sufixo de posse (Franchetto ��������������������������� 1986)���������� , significando, literalmente, “caraíba dos Kalapalo”. Poderíamos nos perguntar: seriam 130

Livro Conhecimento e Cultura.indd 130

26/4/2011 12:20:48

Antônio Guerreiro Jr.

estes não-índios, de alguma maneira, “possuídos” pelos Kalapalo enquanto grupo ou pelos chefes responsáveis pela criação de alianças com eles? De fato, esta é uma falsa questão, diante da forma como chefes e grupos estão relacionados no pensamento kalapalo. A produção da unidade, do coletivo, passa necessariamente pela agência de um anetü – no caso do Quarup, pela agência do chefe/dono da festa, em outros casos, pelo “dono dos brancos”. Os Kalapalo só se relacionam enquanto grupo – seja com outros índios no ritual, seja com os brancos – por meio de seus chefes, que ao se colocarem na posição daqueles que “cuidam de seu pessoal” entram em uma relação assimétrica que faz com que o grupo só exista mediante sua ação e apresentação públicas. Ao menos temporariamente, os chefes/donos encarnam o grupo, são o próprio coletivo personificado. Lima (2005) identifica uma forma de coletivização semelhante entre os Yudjá, segundo a qual não há uma dicotomia estrita entre pessoa e grupo, tampouco uma ideia reificada de grupo. O que existe é uma forma social que “envolve a ação coletiva em ação pessoal, torna equivalente a ação pessoal e a de um grupo” (Lima 2005:97). Não existe um grupo sem uma pessoa que opere como agente coletivizador, que desempenhe o que a autora chama de “função-Eu”, que nesta situação se coloca em uma relação assimétrica com “seu pessoal” (a expressão é a mesma entre os Yudjá e Kalapalo) e aparece como aquele capaz de agir e ser o grupo ao mesmo tempo. É importante notar que não se trata de uma relação de representação, mas de um fenômeno de natureza diversa. Pois a ideia de representação supõe que aquilo que é representado exista independentemente de seu representante, enquanto a forma social em jogo entre os Yudjá, Kalapalo e outros ameríndios faz com que um grupo só exista por meio do chefe ou dono (cf. também Fausto 2008)������������������������������������������������������� . A assimetria entre estes tipos de agentes e o coletivo se dá no fato do segundo só existir por meio dos primeiros: só uma pessoa consegue assumir a posição de sujeito da relação, e neste movimento o grupo se confunde com o próprio sujeito que age e personifica a coletividade. O questionamento a respeito da eficácia ou legitimidade de um chefe só se torna possível quando, por alguma razão, ele não consegue mais ser o grupo (isto é, construir legitimamente a sua assimetria em relação aos demais). Nestas condições, necessariamente outro chefe chama para a si a responsabilidade (e o privilégio, pois a condição de chefe é dotada de grande valor) de ser o grupo. A condição de construção desta assimetria é a ampla distribuição de alimentos rituais, entre os Kalapalo, ou cauim, entre os Yudjá. No caso dos recursos oriundos do contato, trata-se de sua coletivização: a obtenção de objetos de uso comum, de dinheiro que será revertido a favor de toda a aldeia, ou devidamente distribuído pelas redes de parentesco e afinidade. Quando um chefe não consegue realizar plenamente estas formas de distribuição, nada mais sustenta a assimetria entre ele e seu “pessoal”: eles vão procurar outra pessoa que possa “cuidar deles”. O 131

Livro Conhecimento e Cultura.indd 131

26/4/2011 12:20:49

O sabonete da discórdia

chefe deixa, então, de ser o grupo, e a circulação de riquezas e relações com os brancos podem se tornar mais um elemento nas disputas entre os chefes. *** Aconteceu uma situação desse tipo relacionada à distribuição dos recursos recebidos por Aiha como pagamento por um reality show filmado por uma rede britânica de televisão, um caso interessante para pensarmos sobre como a assimetria entre chefes/donos e pessoas comuns pode incidir sobre os circuitos de dádivas. Em 2006, Aiha recebeu esta equipe que filmaria um reality show durante o egitsü por uma soma considerável em dinheiro mais alguns presentes, e o destino destes pagamentos foi objeto de uma acalorada discussão entre 2006 e 2007. Idealmente, os acordos dos Kalapalo com agentes dispostos a pagar grandes quantias em dinheiro para assistirem às festas são firmados pela Associação Aulukumã. O dinheiro proveniente dos pagamentos é depositado na conta bancária da associação e previsto para ser utilizado na aquisição ou reparo de bens de uso comum – como foi o caso da compra de um trator e uma carroceria para este. Objetos valiosos, como motores de popa, placas solares e geradores de energia elétrica também costumam ser prometidos como parte dos pagamentos “para a comunidade”. Entretanto, entre a alocação dos recursos para a associação e sua efetiva distribuição pelas redes internas, há uma distância considerável – não havendo um coletivo a priori (o que os discursos indigenistas imaginam como sendo “a comunidade”), independentemente da “função-Eu” desempenhada pelos chefes e donos, estes chefes-donos podem reivindicar para si os pagamentos (idealmente) destinados “à comunidade”. Além do pagamento em dinheiro, os Kalapalo também pediram um gerador caríssimo que a produção havia levado. Depois de muita negociação, a equipe concordou em deixar o gerador como parte do pagamento desde que ele fosse alocado no posto de saúde local, pois era um “pagamento para a comunidade”. Entretanto, imediatamente após a filmagem, o dono da festa (um jovem anetü, pai de um menino morto que havia sido o homenageado principal do egitsü) reivindicou o gerador para si. Um gerador capaz de produzir energia para uma equipe de filmagem passou a ser utilizado para ligar uma TV e um aparelho de DVD durante cerca de uma hora no começo da noite – isto certamente não foi bem visto pelos demais, mas foi considerado legítimo em alguma medida. No ano seguinte, os Kalapalo conseguiram comprar um trator e uma carreta, sobrando ainda algum dinheiro. Naquela ocasião, o dono do egitsü de 2006 também reivindicou, no centro da aldeia, que o trator, a carroceria e o dinheiro restante eram seus de direito, e não “da comunidade”. 132

Livro Conhecimento e Cultura.indd 132

26/4/2011 12:20:49

Antônio Guerreiro Jr.

O dono argumentava que estas coisas eram devidas a ele porque seriam pagamento por todo o peixe pescado e pelo mingau preparado para a festa, sem os quais o egitsü não teria acontecido (e, logo, não haveria filmagem, nem “amigos” dispostos a pagar por um ritual pobre).O chefe principal argumentou, junto com outros homens, que o que ele dizia não fazia sentido, pois o peixe e o mingau que ele fornecera já haviam sido pagos: com dança e música, e, portanto, o pagamento pelo egitsü deveria ser revertido em favor “da comunidade”. Por causa desta situação o rapaz se envolveu em um conflito com o chefe principal, que era absolutamente contrário a essa apropriação do pagamento, e isso determinou que ele e sua família saíssem de Aiha. De fato, ele já estava planejando se mudar para uma nova aldeia desde antes do egitsü, em função de conflitos envolvendo ele e sua parentela próxima – e certamente estes recursos seriam úteis para ele. Mas o que importa aqui não são as possíveis motivações do dono do egitsü, e sim a linguagem na qual os seus interesses foram traduzidos e considerados: seus interesses assumiram a forma de exigência de pagamento por seu trabalho como dono do ritual. Isto é, que o pagamento da equipe de TV fosse “para a comunidade” não era de modo algum uma coisa óbvia, pois pareceu a este homem possível exigir que de fato o pagamento era devido a ele. E não só argumentou como em parte a própria aldeia concordou, pois, mesmo negando a concessão do caminhão e da carreta, optaram por tirar da conta da associação parte do dinheiro que havia sobrado e dar a ele como pagamento, indicando claramente que havia alguma legitimidade na sua exigência. A reação do chefe principal talvez possa ser pensada de duas maneiras. À primeira vista, poder-se-ia pensar que o dono da aldeia invocou o conceito de “comunidade” porque estaria se referindo exatamente a uma ideia de “coletivo igualitário”, a qual por alguma razão defenderia. Contudo, isso significaria supor que o chefe estaria preterindo o modo nativo de coletivização em favor de um “modelo exógeno” de coletivo (oriundo de certo imaginário a respeito dos povos indígenas amplamente difundido em meios indigenistas). Na fala do chefe, o que vemos é, de fato, tal discurso. Mas não estaria também sua posição de chefe principal, dono da aldeia, ameaçada por um jovem chefe que reclamava para si todos os pagamentos feitos aos Kalapalo? Quando este jovem exigia estes pagamentos, ele estava tentando ocupar o lugar do grupo: os pagamentos foram feitos aos Kalapalo em sentido abstrato, mas dado que aquele coletivo só existia no ritual por causa de sua ação como chefe patrocinador, foi possível para ele usar, com alguma legitimidade, um argumento do gênero “os Kalapalo sou eu”. Como ficaria o chefe principal nesta condição? Reduzido à posição de “ajudante”, “companheiro” ou “camarada”, o que certamente lhe pareceu absurdo. Exigindo que o pagamento fosse revertido para “a comunidade”, o chefe 133

Livro Conhecimento e Cultura.indd 133

26/4/2011 12:20:49

Assimetria e coletivização

principal pôde continuar em seu lugar, na posição de ser a pessoa responsável por personificar o coletivo kalapalo. Um chefe pode obter esta posição distribuindo comida e objetos, ou pagamentos – a lógica de produção de assimetria pela dádiva é a mesma, e o conflito entre os dois chefes pelos pagamentos assume as feições típicas do faccionalismo xinguano.

Assimetria e coletivização Segundo Simon Harrison (1992:236), os rituais, suas condições de execução e o desempenho de certos papéis são sempre elaborados tendo em vista relações que existem fora do contexto ritual. Modificar um papel no ritual, ou incluir novos participantes, criar novas relações, serão sempre objetos de disputa pelas categorias de agentes que fazem os rituais, mas cujas relações estão referenciadas em outros contextos. Ou, na formulação de Tambiah (1985), o que este autor chama de inner frame do ritual, seu esquema simbólico de execução, é uma reutilização de elementos situados no outer frame, seu contexto de significação e para onde sua eficácia é dirigida. Se levarmos a sério que é preciso pensar os rituais como eventos cujas funções simbólicas e pragmáticas são indissociáveis, que ao mesmo tempo se fundamentam e repercutem fora do ritual, somos levados a pensar que a inclusão dos kagaiha em certos rituais como espectadores (e, num certo sentido, como consumidores/devedores) também pode ser uma forma de incluí-los na política local que é simultaneamente pressuposta e (contra)produzida nos rituais. Pelos casos discutidos acima, vemos que não há uma situação “dual” composta pela interação dos kagaiha com “o ritual”, imaginado como um objeto passível de ser simplesmente visto, mas uma incorporação dos não-índios e seus recursos nos esquemas internos de organização do ritual, indissociáveis da economia política de prestígio alto-xinguana. Não há uma separação entre o ritual e aqueles que (supostamente) “apenas o assistem”, pois estes são trazidos para dentro de sua lógica e são postos a serviço das máquinas de produção indígenas: produção de grandes chefes e produção de coletivos. Tendo isto em conta, vê-se que não se trata simplesmente de produzir “festas bonitas para o branco ver”, isto é, produzir uma objetivação (estética) da socialidade indígena sem efeitos sobre os índios ou os brancos. Não seria possível imaginar semelhante movimento no mundo ameríndio, nem em lugar algum. Aqui, agora, como em outros lugares e tempos (Gell 1998), toda objetificação é ao mesmo tempo índice e causa de relações entre sujeitos ���������������������������������������������������� (Lagrou 2007; Barcelos Neto 2008:34)���������������� : toda objetificação exibe, de alguma maneira, as relações que a produziram enquanto cria ou 134

Livro Conhecimento e Cultura.indd 134

26/4/2011 12:20:49

Antônio Guerreiro Jr.

afeta outras relações (pois só se objetifica algo a fim de exibi-lo ou oferecê-lo para alguém cujas relações se deseja afetar). Entre os Kalapalo, os donos de rituais e os nobres (e, no caso dos rituais regionais, estas duas categorias se sobrepõem – seus donos sempre são nobres) são centrais tanto para os processos de produzir coletivos como sujeitos (isto é, coletivos-sujeitos da perspectiva de outros xinguanos que participam dos rituais como convidados), quanto de produzir rituais como “cultura” (ou rituais como um certo tipo de objeto de consumo para os brancos). Mais do que a objetivação temporária de uma ideia abstrata de “cultura indígena”, os rituais alto-xinguanos podem aparecer como uma forma de estender aos não-índios os modos kalapalo de se relacionar com o estrangeiro e, ao mesmo tempo, de produzir pessoas e coletivos tipicamente xinguanos por meio destas relações – mas não sem suas repercussões no sistema nativo. É impossível separar os rituais regionais da política, seja no sentido de “política nativa”, seja no sentido de “política cultural” – no contexto da preparação, execução e exibição do ritual, as duas são inseparáveis. Os não-índios podem entrar fundo no sistema de pagamentos dos rituais, como no caso do reality show, ou mais indiretamente no exercício da função de “dono dos brancos”, ou até mesmo colocando em jogo a relação centro-periferia no sistema regional. Em qualquer um desses casos, os não-índios se tornaram parte do duplo processo de produção de coletivos e, sua condição e contrapartida, de produção de nobres, homens eminentes, “caciques grandes”.

135

Livro Conhecimento e Cultura.indd 135

26/4/2011 12:20:49

Assimetria e coletivização

Notas Expressão em karib alto-xinguano para não-índios de outros países. Algumas, às vezes, podem ter fases interaldeias. 3 Este me parece um ponto importante, mas que, por alguma razão, não é desenvolvido nas etnografias disponíveis. Os rituais regionais (à exceção do uluki, a festa de trocas) constroem uma relação de oposição e competição entre pelo menos dois coletivos: um coletivo de anfitriões oposto a um coletivo (ou mais) de convidados (hagito). Contudo, o coletivo dos anfitriões é sempre constituído pelo principal povo anfitrião (o grupo dos patrocinadores da festa) mais no mínimo um povo aliado (e no máximo dois). O ritual xinguano apresenta um curioso exemplo de como uma relação a dois é sempre um caso particular de relação a três (cf. Lévi-Strauss 2003), cuja análise deve ter algum rendimento para a compreensão dos processos de coletivização em jogo, além de instigar a comparação dos fatos xinguanos com alguns que foram o centro das discussões sobre dualismo e ritual no Brasil Central (Maybury-Lewis 1979). 4 No Alto Xingu, há uma categoria de pessoas que podem herdar o título de chefe (anetü) ou chefa (itankgo). Apenas alguns dentre os que têm ascendência para isto recebem efetivamente esse título, mas como os demais também são pensados como pessoas diferenciadas (“pessoas bonitas”), utilizo o termo “nobres” para me referir a todos. 5 O termo Quarup é a transformação para o português da palavra kamayurá kwaryp, tornada famosa no contexto do contato. Quando me referir a este ritual da forma como é realizado pelos Kalapalo, utilizarei egitsü, reservando Quarup para designar a forma genérica assumida por este ritual no contato com os não-índios. 6 É importante notar que o “pacifismo alto-xinguano” não exclui tensões e conflitos, sendo o tempo todo posto em cheque pelas acusações de feitiçaria, que geram cisões, expulsões e, às vezes, execuções (mais frequentes no passado, tendo sido reduzidas por influência da administração do PIX). 7 Não chefes também podem ser homenageados no Quarup junto com o(s) morto(s) principal(is) (sempre nobres), mas eles não são o foco da cerimônia nem são considerados seus “donos”. 8 Este nome foi dado pelos não-índios à luta em função do barulho da respiração dos lutadores. O som é uma imitação do esturro da onça. 9 Pólo administrativo da região sul do PIX e centro de atendimento à saúde indígena. Como o Posto não pertence a nenhum grupo, os brancos o imaginam como um lugar politicamente neutro. Contudo, o espaço do Posto foi sendo paulatinamente controlado por pessoas e grupos específicos, em função de suas relações de proximidade geográfica e política com o Posto e os irmãos Villas Boas (ver Viveiros de Castro 1977 para uma descrição da relação dos Yawalapíti com o Posto Leonardo, por exemplo). Hoje, este é um espaço considerado extremamente perigoso pelos índios, um lugar cheio de feitiços (cf. Novo 2008, 2009), e que, como tudo no Alto Xingu, também tem seus “donos”, com os quais é preciso negociar. Há notícias de várias festas realizadas no Posto, e os Kalapalo dizem que só começaram a convidar alguns povos (como os Aweti, por exemplo) para seus rituais após a aproximação das aldeias e a realização de festas maiores. Contudo, uma festa que nunca deve ter acontecido no Posto é o próprio Quarup. 10 Pelo menos desde a segunda metade do século XIX, os Kisêdjê costumavam participar de alguns rituais regionais, como o jogo de dardos (jawari). Essa participação sempre foi, entretanto, algo intermitente (comunicação pessoal de Marcela Coelho de Souza). 11 O jogo de dardos entre primos cruzados, também realizado em homenagem a um nobre falecido. Ele é mais conhecido como Jawari, seu nome kamayurá, e entre os kalapalo esta festa leva o mesmo nome das flechas especiais utilizadas na competição, hagaka. Os Trumai são tradicionalmente considerados como os responsáveis por sua introdução no Alto Xingu. 12 A menos, claro, que ele já fosse realizado no “período galáctico” (entre 1250-1650 d.C, cf. 1 2

136

Livro Conhecimento e Cultura.indd 136

26/4/2011 12:20:49

Antônio Guerreiro Jr.

Heckenberger 2005:71, 124-133) da ocupação do Alto Xingu, quando várias aldeias gravitavam em torno de aldeias maiores e ritualmente mais importantes (ou mesmo de lugares sagrados/centros rituais não habitados, como parece ter sido o caso do sítio kuikuro Heulugihütü [:90-93]). 13 De fato, um modelo de indigenismo bastante particular, que nunca se tornou, efetivamente, modelo para outros povos e regiões. 14 Desde muito jovem Aritana foi preparado por seu pai e por Orlando Villas Boas para se tornar o principal intermediário entre os povos do Alto Xingu (que ele representaria como uma única “sociedade”) e o mundo dos brancos. Ele de fato assumiu esta posição e por isso é chamado de “cacique geral”, mas isto não implica que ele tenha qualquer autoridade sobre outras aldeias ou prerrogativas sobre outros chefes, não tendo nada a ver com um “paramount chief ” ou algo do gênero. 15 Um povo de língua karib do Alto Xingu, com os quais trabalho desde 2005 e atualmente realizo minha pesquisa de doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (Guerreiro Júnior 2010). 16 Isto foi o que me disse um homem kalapalo que estava em Brasília mediando as relações com os interessados, que também não me deu nomes. Certamente de seu ponto de vista só um parente poderia desejar a homenagem, mas quem efetivamente estava programando a festa eu não saberia dizer – só imaginar. 17 A maior aldeia Kalapalo, considerada por muitos como sendo a “principal” (isto é, a aldeia para a qual deveriam se dirigir os mensageiros de outros povos e onde todos os rituais regionais deveriam ser realizados – o que acaba não acontecendo na prática). 18 Ainda, um dos homens responsáveis por mediar as negociações com a família do homenageado estava diretamente interessado na possibilidade de obter ajuda dos parentes do ex-presidente para o processo de demarcação do território de um antigo grupo karib próximo dos Kalapalo, os Angaguhütü (os Naruvüte ou Anaravuto da literatura). 19 As pesquisas etnoarqueológicas de Heckenberger (2005:68-112) sugerem que no período de 1250 – 1700 d.C. encontravam-se no Alto Xingu grandes aldeias e centros rituais em torno dos quais se organizavam, no geral segundo os pontos cardeais, aldeias menores, ligadas entre si e aos centros por grandes estradas. Este momento da história xinguana foi chamado de “período galáctico”, referência à tendência de hierarquização das relações entre centros político-rituais mais importantes e “grupos satélites”. 20 Os Kalapalo, por sua vez, parecem fazê-las sem muita parcimônia. 21 Esta é uma história complexa. Pires de Campos não esteve nem no Culuene, nem no Sete de Setembro (território tradicional dos Kalapalo), mas no rio das Mortes. Contudo, talvez os ancestrais dos Kalapalo tenham passado por aquela região, pois há uma coincidência impressionante entre a narrativa kalapalo e a história documental. Os Kalapalo dizem que seriam atacados por um homem chamado Pai-Pegü, acompanhado de índios; Pires de Campos contava com a companhia de índios Bororo que o chamavam de Paí-Pero (Franchetto 1998:345). 22 Que seus espíritos auxiliares sejam quase todos ferramentas perigosas também não deve ser à toa, mas esta seria outra discussão. 23 Utilizado aqui no seu sentido mais abrangente, pois no limite todo ser com forma humana é kuge. 24 Barcelos Neto afirma que entre os Wauja uma coisa é ser dono de um apapaatai e outra coisa é ser dono da festa para aquele espírito específico. Não encontrei semelhante distinção entre os Kalapalo, entre os quais o patrocínio de um ritual é indispensável para que o ex-doente assuma a condição de dono de itseke. 25 Esta é uma preocupação explícita de muitos velhos e jovens, que frequentemente incide sobre o corpo (a redução dos períodos de reclusão, os novos cortes de cabelo, o uso de roupas e acessórios industrializados) e os conhecimentos e práticas rituais. É sobre estes dois pontos também que incidem as formas de resistência, por meio das quais os jovens vêm progressivamente

137

Livro Conhecimento e Cultura.indd 137

26/4/2011 12:20:49

Assimetria e coletivização

se interessando em retomar o uso de enfeites “tradicionais” no dia a dia e registrar, de todas as formas possíveis, suas festas, cantos e músicas. 26 Uma forma considerada “menos legítima” de transmissão da chefia. Contudo, isso não significa que não haja grandes chefes que herdaram o cargo de suas mães. Pelo contrário, as principais mulheres nobres kalapalo parecem apresentar uma tendência à hipogamia, o que faz com que seus filhos homens herdem o status de seus avôs maternos, grandes chefes, geralmente podendo requisitar o título de forma bastante legítima. É o caso de dois chefes em Aiha hoje, o atual “segundo cacique” e o jovem que foi escolhido para assumir a posição de chefe principal. 27 Isto é, que podem não ter passado por uma reclusão ideal e aprendido os conhecimentos associados à chefia (dos quais, um dos principais são os discursos cerimoniais). A relativa “falta de preparo” (para a chefia tradicional) de alguns herdeiros deste tipo não se deve somente à falta de um pai chefe, pois a maioria das itankgo tem total conhecimento dos atributos dos chefes homens e, muitas vezes, jovens anetaõ são preparados por seus MF e/ou MB. 28 Para tentar preservar a identidade das pessoas, utilizarei as iniciais de seus nomes menos conhecidos. 29 O amigo (ato) é aquele com quem se troca muito, como se faz com os afins, mas também é aquele de quem não se tem vergonha, como os parentes verdadeiros, podendo ser pensado como uma categoria intermediária entre ambos. Troca-se muito, como entre afins, mas com pessoas cujas relações são totalmente livres e desprovidas de vergonha.

138

Livro Conhecimento e Cultura.indd 138

26/4/2011 12:20:49

Antônio Guerreiro Jr.

Referências BARCELOS NETO, Aristóteles. 2003. “Festas para um ‘nobre’: ritual e (re)produção sociopolítica no Alto Xingu”. Estudios Latino Americanos, 23:63-90. ______. 2008. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: EDUSP/FAPESP. BASSO, Ellen. B. 1973. The Kalapalo Indians of Central Brazil. New York: Holt, Rimehart and Wineton Inc. FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, 14(2):329-366. FRANCHETTO, Bruna. 1986. Falar Kuikuro: Estudo etnolingüístico de um grupo karib do Alto Xingu. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. ______. 1993. “A Celebração da História nos Discursos Cerimoniais Kuikuro (Alto-Xingu)”. In: E. Viveiros de Castro & M. Carneiro da Cunha (orgs.), Amazônia: etnologia e história indígena. São Paulo: EDUSP/FAPESP. pp. 95-116. ______. 1998. “ ‘O aparecimento dos caraíba’: Para uma história kuikuro e alto-xinguana”. In: M. Carneiro da Cunha, M. (org.), História dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESP/Companhia das Letras/SMC. ______. 2000. “Rencontres rituelles dans le Haut-Xingu: la parole du chef ”. In: A. Monod-Becquelin & P. Erikson (eds.), Les rituels du dialogue. Promenades ethnolinguistiques en terres amérindiennes. Nanterre: Société d´ethnologie. pp. 481509. FUNAI. 2004. Índios do Xingu fazem Kuarup para Dr. Roberto Marinho. http://www. funai.gov.br/ultimas/noticias/2_semestre_2004/Agosto/un0617_001.htm. Acesso em: 16 de junho de 2010. GELL, Alfred. 1998. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Claredon Press. GREGOR, Thomas. 1990. “Uneasy peace: Intertribal Relations in Brazil’s Upper Xingu”. In: J. Haas (ed.), The Anthropology of War. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 105-124. ______. 2001. “Casamento, aliança e paz intertribal”. In: B. Franchetto & M.J. Heckenberger (orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. pp. 175-192. GUERREIRO JÚNIOR, Antônio. R. 2010. Egitsü: ritual e política no Alto Xingu (MT). Projeto de Pesquisa, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. HARRISON, Simon. 1992. “Ritual as intellectual property”. Man, 27(2):224-244. HECKENBERGER, Michael. J. 2005. The Ecology of Power: Culture, Place, and Personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. New York: Routledge. HECKENBERGER, Michael J. & Bruna FRANCHETTO. 2001. “Introdução: História e cultura xinguana”. In: B. Franchetto & M.J. Heckenberger (orgs.), Os povos 139

Livro Conhecimento e Cultura.indd 139

26/4/2011 12:20:49

Assimetria e coletivização

do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. pp. 7-18. LAGROU, Elsje. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica. Rio de Janeiro: Toobooks Editora. LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes. LIMA, Tânia S. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo/ Rio de Janeiro: ISA/Editora Unesp/NuTI. MAYBURY-LEWIS, David. (ed.). 1979. Dialectical Societies: the Gê and Bororo of Central Brazil. Cambridge: Harvard University Pressed. MENEZES BASTOS, Rafael J. 1983. “Sistemas Políticos, de Comunicação e Articulação Social no Alto Xingu”. Anuário Antropológico, 81:43-58. ______. 1992. “Exegeses Yawalapiti e Kamayura sobre a criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia, 30:391-426. ______. 2001. “Ritual, História e Política no Alto Xingu: Observações a partir dos Kamayurá e do Estudo da Festa da Jaguatirica (Jawari)”. In: B. Franchetto & M.J. Heckenberger (orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. pp. 335-357. MENGET, Patrick. 1993. “Les frontières de la chefferie: Remarques sur le système politique du haut Xingu (Brésil)”. L’Homme, 33(2/4):59-76. NOVO, Marina P. 2008. Os Agentes Indígenas de Saúde do Alto Xingu. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. ______. 2009. “Saúde e Interculturalidade: a participação dos Agentes Indígenas de Saúde/AISs do Alto Xingu”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCar, 1(1):122-147. O GLOBO. 2004. “Bastos promete demarcar terras indígenas até 2006”. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=32028. Acesso em: 15/06/2010. SEEGER, Anthony, Roberto DAMATTA & Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. 1979. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, 32. STEINEN, Karl von den. 1940. Entre os aborígenes do Brasil Central. São Paulo: Departamento de Cultura. ______. 1942. Brasil Central: expedição em 1884 para a exploração do rio Xingú. São Paulo: Companhia Editora Nacional. TAMBIAH, Stanley J. 1985. “A performative approach to ritual”. In: S.J. Tambiah, S. J., Culture, thought and social action. Cambridge: Harvard University Press. pp. 123-166. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1977. Indivíduo e Sociedade no Alto Xingu: os Yawalapíti. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro. 140

Livro Conhecimento e Cultura.indd 140

26/4/2011 12:20:49

Espaços de homens e conceitos de mulheres: ~ o desenho em escolas kaxinawá (Huni Kui)

Paulo Roberto Nunes Ferreira

Considerações iniciais: intercursos de gêneros e agências Neste artigo trarei um excerto de reflexões compostas ao longo de sete anos de atuação indigenista entre os Kaxinawá, bem como desdobramentos de minha dissertação de mestrado1 (2010). Nosso cenário se constitui da etnografia de extratos da ação destes índios durante oficinas e cursos de formação de professores em algumas de suas aldeias e em cidades acreanas, nos quais o tema central era a construção de propostas pedagógicas2 para escolas kaxinawá. Será dedicada atenção à criação e ao refinamento da interlocução indígena com agentes do Estado, cujo campo privilegiado é o da educação escolar. Começaremos indagando se o exterior é mesmo o espaço por excelência do exercício da agência masculina e o interior, o do ser feminino, em sociedades indígenas como os Kaxinawá.3 Duas kaxinawólogas, de maneira especial, chamam atenção para esta questão. Els Lagrou há mais de duas décadas desenvolve estudos junto aos kaxinawá, com ênfase no rio Purus, Brasil. Cecilia McCallum, cujo primeiro trabalho de campo se deu em 1983, realizou pesquisas no Brasil e Peru. Seu trabalho de campo entre os Kaxinawá “brasileiros” se deu no rio Jordão e no Purus, sendo que neste último rio, à montante, estão os kaxinawá “peruanos”, no rio Curanja. Todavia, há uma distinção crucial entre as duas antropólogas. A primeira delas nos leva a compreender, por sua profícua reflexão acerca do desenho verdadeiro (kene kuĩ), que este é um conhecimento por excelência das mulheres e, a elas transmitido por Yube (jiboia). Os homens não realizam desenhos verdadeiros. Para eles, reservou-se a produção de imagens que é alcançada pela ingestão 141

Livro Conhecimento e Cultura.indd 141

26/4/2011 12:20:49

Espaços de homens e conceitos de mulheres

da ayahuasca, cujo preparo foi-lhes também ensinado pela jiboia. A ayahuasca conduz aquele que bebe a mundos de alteridade e potencialidade. Sendo que sua ingestão, apesar de crescente entre as mulheres, é ainda um domínio masculino, posto que são incomuns, para não dizer inexistentes, casos de mulheres Kaxinawá que administram a cocção da ayahuasca ou mesmo partem em expedição à floresta para a coleta de seus ingredientes. Lagrou (1998, 2007) nos faz visualizar uma tensão, não apenas entre homens e mulheres, mas entre saberes que integram gêneros e uma geografia distinta. Ademais, nos informa que o desenho é desejado intensamente pelos homens desde os tempos míticos (Lagrou 2007:195). Conhecimentos femininos somados a desejos masculinos nos conduzem ao intercurso entre estes dois gêneros, portanto, a pontos de congruência entre ambos. McCallum (1996, 1998, 2001), para o trato deste tema escolhe a noção de capacidades específicas ou de agência femininas e masculinas. Para ela, os conhecimentos associam-se tanto ao gênero, quanto à relação que mantém com o exterior ou interior da aldeia. A produção do socius reside na equação entre homens, mulheres, interior e exterior. Este é produzido por capacidades femininas e masculinas. As masculinas referem-se à predação e à troca, portanto, ao exterior. As femininas versam sobre o “fazer consumir”, assim, ao interior. Nestes termos, teoricamente, homens e mulheres “tomam seus lugares” numa geografia sociológica. O lado de dentro estaria para as mulheres, assim como, o lado de fora para os homens.4 Associadas, essas antropólogas geraram a este ensaio as seguintes questões: como se dá a articulação entre os gêneros, seus saberes, suas agências, suas capacidades específicas e seus espaços de atuação, frente ao contato com a sociedade nacional que é cada vez mais vigoroso? Estariam mesmo os Kaxinawá diante da reconfiguração de suas habilidades específicas e intercursos de aprendizagem? Se, já na saída, assentíssemos plenamente a pergunta de abertura deste ensaio e endossássemos esta geografia de agências calcadas no gênero, na qual estariam fixamente marcadas as capacidades femininas e masculinas, bem como os espaços onde homens e mulheres atuariam socialmente, as escolas indígenas, alhures classificadas como instituições exteriores a esses índios,5 seriam, de maneira indelével, um espaço masculino. No entanto, em que estas se constituiriam ao reconsiderarmos tal geografia à luz do entrelaçamento de saberes de primazia dos homens e das mulheres? Nesse sentido, do novo e propício espaço para exercício da agência masculina, as escolas transporiam os homens e, muito além da paisagem reconfigurada pela presença do prédio escolar no interior das aldeias, em seus pátios, ao lado das casas e, por vezes, próximas às cozinhas femininas, elas se transformariam em espaços para a agência da mulher? 142

Livro Conhecimento e Cultura.indd 142

26/4/2011 12:20:49

Paulo Roberto Nunes Ferreira

Tomarei relatos de professores indígenas acerca da complexa questão das relações entre gênero, linhas de transmissão de conhecimento e escolarização em aldeias. O leitor não se deparará com descrições baseadas em uma etnografia de comunidades, mas no assessoramento multilocalizado à educação escolar indígena no Acre. Partindo da indagação: como um docente kaxinawá do sexo masculino transmitirá a um discente do sexo feminino conhecimentos ou habilidades pertinentes ao âmbito das mulheres?, abordaremos a escola enquanto espaço no qual agências e saberes das esferas de homens e mulheres se intercruzam, para então delinear uma tensão capaz de fazer emergir sua fluida geografia. Como nos faz lembrar McCallum (2010:90), o gênero tem centralidade entre os povos indígenas das terras baixas sul-americanas, porém não é central nas etnografias desses mesmos povos, sobretudo, quando se trata da educação escolar, ainda que o interesse pelo tema tenha crescido significativamente nos últimos 20 anos. Este dado torna o desafio do presente ensaio ainda mais complexo e delicado. Isto nos inspira, tanto a buscar novas formas de tratar temas já abordados em consagradas etnografias sobre os Kaxinawá, tais como: o parentesco e suas tipologias, sistemas onomásticos, gerações alternadas, metades exogâmicas, organização social ou o desenho, bem como alçar outros elementos de análise. Se o gênero é subvisualizado6 em etnografias que tratam da educação escolar, aqui será um elemento estruturante para versar sobre uma epistemologia Kaxinawá de conhecimento. A falta de ressonância do tema não se dá por ser este menos importante, no entanto, merece maiores investimentos, que podem aplicar-se em duas direções distintas, a saber, num tipo de etnografia de comunidade, ou em contextos indigenistas. Nossa ênfase nasce de uma inovação Kaxinawá para a educação escolar indígena no Acre. Tal novidade fora criada em oficinas nas aldeias das quais participaram: professores e professoras, agentes de saúde, agentes agroflorestais, xamãs, mestras em tecelagem e pintura, jovens rapazes e moças, homens e mulheres de variadas faixas etárias e funções. Destacam-se as reflexões de cinco professores kaxinawá, sendo três deles do rio Jordão: Tadeu Mateus, Vitor Pereira e José Mateus Itsairu. O primeiro é um dos jovens de maior influência em sua terra indígena. O segundo é atual Secretário de Cultura Indígena da prefeitura municipal de Jordão. O terceiro foi técnico indigenista da Secretaria de Estado de Educação do Acre (SEE/AC) e hoje preside a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC). O quarto professor vem da Terra Indígena Ashaninka-Kaxinawá do rio Breu, e chama-se João Carlos da Silva Júnior. Por fim, temos questões apontadas em uma palestra realizada por José Benedito Ferreira, professor da Terra Indígena Praia do Carapanã, ex-técnico indigenista da SEE/AC e atual liderança geral dessa área. 143

Livro Conhecimento e Cultura.indd 143

26/4/2011 12:20:49

Espaços de homens e conceitos de mulheres

Indigenismos da7 educação escolar no Acre Esta sessão fornecerá ao leitor um conciso quadro de práticas indigenistas da educação escolar que convivem no Acre. Importa-nos, como primeiro passo desta reflexão acerca das perguntas que conformam o núcleo deste ensaio, apontar três distinções fundamentais que são contextualizadas pelos períodos históricos em que se efetuaram. O primeiro deles, exercido pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC), precursora em ações de educação escolar diferenciada, que ofereceu o seu primeiro curso de formação de professores em 1983, tinha o comunitarismo8 (Calavia et alii 2006:22) como mote, conjugando a criação e o assessoramento de cooperativas indígenas em substituição ao sistema de aviamento dos seringais, alicerçados na hierarquia formada pelo patrão seringalista, o gerente do seringal e os fregueses – os seringueiros.9 No seringalismo, o aviamento era um de seus alicerces. Optamos por tratar o seringal nos termos de Esteves (2008:91) e denotá-lo como “sistema seringal”, cujas características marcantes eram a imobilização da força de trabalho e a criação de uma rede de devedores à montante e credores à jusante (Carneiro da Cunha 1998:10), desde os seringais às margens dos rios até a Europa. Índios ou brancos tornavam-se cativos do patrão branco pela dívida, fato que ganhava contornos dramáticos pelo não domínio de cálculos matemáticos e da língua portuguesa.10 Irremediavelmente na crise desencadeada após a II Guerra Mundial, o “sistema seringal” teve seu colapso na década de 1970 com a inauguração de uma forma de exploração fundada no uso predatório da terra e não na exploração das árvores de seringa. Após a derrocada do “sistema seringal”, somada à chegada de uma nova frente econômica via agropecuária, agregada à luta indígena pela demarcação de suas terras, desenhava-se um quadro de disputas fundiárias no Estado. A alternativa pró-indígena do período foi a criação de cooperativas assessoradas pelo indigenismo nascente das décadas de 1970-1980. De acordo com Terri Vale de Aquino, antropólogo, idealizador da alternativa mencionada e indigenista pioneiro no Acre: (...) criei esse movimento de cooperativas indígenas, que começou no Jordão e que depois se espalhou para todas as terras indígenas do Alto Juruá. Foi como um modelo. Começamos em 1976, em 1980 os Kaxi ainda não tinham demarcado a sua terra no sentido físico, mas no sentido social já, pois já tinham retirado todos os brancos de suas terras, todos os patrões. (...) O que eu quero te dizer Txai é que esse trabalho com cooperativas indígenas, não no sentido econômico, mas no sentido político, criava uma alternativa aos barracões para os índios lutarem pelas suas terras. (...) E sabe, tudo isso, num contexto nacional de 144

Livro Conhecimento e Cultura.indd 144

26/4/2011 12:20:49

Paulo Roberto Nunes Ferreira

luta pela emancipação dos índios, criação das organizações não governamentais de apoio aos índios (...). Foi assim, o apoio das cooperativas. Os primeiros cursos eram basicamente do Jordão e do Humaitá e vinham também alguns de outras áreas. Isso é porque eles queriam não só ser professores, mas também ajudar na contabilidade das cooperativas. Então de certa forma o movimento de educação indígena estava ligado a esse movimento político das cooperativas. (Entrevista, 2008) As cooperativas, alternativa política e econômica, continuariam aviando os fregueses, entretanto, não mais por meio dos barracões, entreposto de endividamento do seringueiro (indígena ou branco). Elas seriam administradas e gerenciadas pelos índios. Este relato serve-nos para informar que as escolas indígenas no Acre nascem com o intuito de prover os índios de conhecimentos em língua portuguesa e matemática, para que eles gerenciassem autonomamente suas cooperativas, então recém-criadas. Não obstante, tal como revelou Terri Aquino, fazer cálculos matemáticos e ler em língua portuguesa teriam um alto valor político frente ao contato com os brancos, donos ou ex-donos de seringais. As cooperativas foram o ato seminal para a elaboração da primeira forma de indigenismo pró-índio no Acre. O apoio da CPI/AC à demarcação das terras indígenas e a posterior invenção da educação escolar indígena são a consequência da criação das cooperativas. As principais formas de atuação deste indigenismo cristalizaram-se e caracterizaram-se por: i) reuniões com os índios nas aldeias; ii) assessoria de profissionais não indígenas, especialmente do centro-sul do Brasil, aos professores índios em cada uma de suas respectivas escolas; iii) reunião dos indígenas na cidade para assistirem a cursos de formação de professores; iv) reunião para discussão de temas referentes às políticas públicas; v) apoio à criação, ao fortalecimento de organizações indígenas e a financiamentos de pequenas atividades. O “comunitarismo” nascido com a luta pela terra e liberdade para os índios em face aos sistemas de exploração fundiários e de recursos naturais desenhados no Acre, seja com o seringal ou com a agropecuária, desloca-se para a educação escolar. Desde seu advento no Acre em 1983, até a segunda metade da década de 1990, pode-se afirmar que as escolas nas aldeias detinham uma grande preocupação: ensinar língua portuguesa e matemática, que é efeito do período em que os indígenas foram cativos dos patrões seringalistas. Todavia, na década de 1990, sobretudo, a partir da segunda metade e, especialmente estimulado por indigenistas da educação escolar filiados a CPI/AC, que já em 1992, incorporou a valorização cultural como “tema de formação”, apresentou a cultura enquanto elemento integrante do currículo escolar. 145

Livro Conhecimento e Cultura.indd 145

26/4/2011 12:20:49

Espaços de homens e conceitos de mulheres

O cenário em que se dá a passagem de conhecimentos de brancos ao mergulho em conhecimentos indígenas pode ser compreendido como “movimento pró-cultura”, descrito por Weber (2004), em relação aos Kaxinawá do rio Humaitá. No entanto, tal como se compreende neste ensaio, a “valorização da cultura” se tornou o apanágio das ações de atendimento às escolas, quando o vocabulário majoritário se funda na procura de um “currículo indígena”. Todavia, tal como Werber (2004) nos permite compreender, ensinar a cultura na escola tornou-se importante meio de acesso dos jovens a conhecimentos dantes relegados ao ostracismo em face dos anos de contato com o seringalismo. O ideário que se configurou foi o de uma escola indígena na qual todos potencialmente aprendessem tudo e, desta forma, a cultura acabaria, 20 anos mais tarde, se tornando uma espécie de disciplina ministrada por professores homens a discentes meninas. Assim, esta ideia de cultura no currículo da escola, abarcaria os desenhos (âmbito feminino), como mais um dos conhecimentos possíveis de aprendizagem escolar. O segundo indigenismo pró-indígena em questão é de natureza oficial e circunscreve-se à Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação (SEE/CEEI). Ele nasce a partir da ascensão da frente popular acreana em 1999, num mandato petista, cujo slogan tornou-o Governo da Floresta. Tal governo inspirou-se francamente no modelo comunitarista criado pela CPI/AC, adotando preceitos idênticos, ao menos até o ano de 2004, quando inaugurou a primeira oficina pedagógica, que contou no rio Jordão com ampla participação aldeã. Há um dado de admirável repercussão, que é o nascimento no interior do Governo da Floresta, do que é chamado de indigenismo indígena – neste caso, um indigenismo praticado não apenas pelos kaxinawá, entretanto, por eles potencializado, com a convocação de reuniões intra e interaldeãs, bem como com a Coordenação de Educação Escolar Indígena (CEEI) para a inserção de indígenas nos quadros técnicos da Secretaria de Estado de Educação (SEE). Em conjunto e em termos de gradiente, do comunitarismo não governamental ao indigenismo indígena, teremos uma noção tripartite das ações referentes às escolas indígenas no Acre, que é fundada pela CPI/AC, implementada 20 anos mais tarde como uma prática estatal e, finalmente, recriada pelos os índios no interior do estado. Do ponto de vista governamental, as ações subdividem-se em quatro grupos: reforma e construção de escolas, elaboração de materiais didáticos específicos e diferenciados, elaboração de propostas pedagógicas e formação de professores. No que tange às ações não governamentais, a diferença reside no fato de que não é de sua alçada a construção de escolas. Já, no que se refere ao indigenismo praticado pelos indígenas, aí habita a grande distinção, pois eles são 146

Livro Conhecimento e Cultura.indd 146

26/4/2011 12:20:49

Paulo Roberto Nunes Ferreira

responsáveis por uma política de contato e interlucução entre ONGs, o Estado e as aldeias. Eis que a grande inovação é retirar das mãos estrangeiras (brancos), a constituição desta política. Estamos diante do indigenismo da educação escolar. Sigamos deste ponto e focalizemos a agência e suas capacidades de interação. Assim perceberemos que na ideologia Kaxinawá de contato, seres humanos ou não-humanos, categorias, conceitos ou classificações serão traduzíveis em termos de conhecimento, especialmente se partirmos da escola.

Oficinas pedagógicas: momentos de pensar com o parente Os cursos de formação, bem como o primeiro programa de formação específico para professores indígenas iniciaram-se no Acre, como vimos, sob os auspícios e por iniciativa da CPI/AC, em 1983. Até 2010, foram realizadas 27 etapas orientadas pela CPI/AC e 10 etapas pela Secretaria de Educação. Ademais, se informa que no Acre, a CPI/AC e a Coordenação de Educação Escolar Indígena (CEEI) são as instituições que desenvolvem atividades de formação docente em nível de magistério para essas populações. A Secretaria de Educação realizou seu primeiro curso em 2000. Este foi acompanhado pela equipe da CPI/AC, que naquela oportunidade prestou serviços de consultoria à CEEI. A partir de então o Governo da Floresta assumiu o modelo de formação elaborado pela CPI/AC, desde a década de 1980, cuja reformulação inicia-se em 2005. Ambos os programas comportavam um procedimento que ocorria em duas fases. Numa delas, todos os professores inclusos nas etapas de formação reuniam-se em um núcleo urbano, escolhido a critério das instituições formadoras, e durante 30 a 45 dias,11 ministrava-se aos professores indígenas conhecimentos acerca de Matemática, Língua Portuguesa, História, Geografia, Pedagogia Indígena, Língua Indígena, Antropologia, Sociologia, Artes, Educação Física e Ciências. Outra fase era a assessoria pedagógica. Nesta, assessores brancos deslocavam-se às aldeias dos professores indígenas a fim de sanar dúvidas acerca de sua docência, acompanhavam suas aulas, mas especialmente tratavam de esclarecer o que é educação escolar diferenciada.12 Este modelo de assessoria pedagógica perdurou na CEEI até o ano de 2004, quando pela primeira vez foi realizada, sob seus cuidados, uma oficina em terra indígena. Há diferenças marcantes entre uma assessoria pedagógica e uma oficina. No primeiro caso, professores são acompanhados individualmente, aldeia por aldeia de uma mesma terra indígena onde há escolas. Já nas oficinas, os professores reúnem-se com outros parentes, em geral, numa aldeia capaz de suprir parte das necessidades alimentares do grupo que lá se hospedará durante o período. Das 147

Livro Conhecimento e Cultura.indd 147

26/4/2011 12:20:49

Espaços de homens e conceitos de mulheres

oficinas, participam aqueles que os índios no Acre costumam chamar de “responsabilidades”. São estes: agentes agroflorestais, agentes de saúde, mulheres artesãs, parteiras, anciãs e anciãos, xamãs, professores, lideranças, membros de associações, bem como uma pequena fração de alunos jovens adultos, em geral, alunos da escola da aldeia onde é instalada a oficina. As oficinas, indubitavelmente, conformaram os marcos fundamentais da tradução de conceitos huni kuĩ apresentados ao gestor oficial das escolas. Nas oficinas há o favorecimento da produção coletiva de pensamento. Diversos parentes, das duas metades e gerações alternadas, homens e mulheres, com variadas funções e saberes acumulados ao longo da vida, trocam possibilidades de compreensão acerca dos processos de escolarização com os quais se deparam. Eis que pensar coletivamente ou produzir pensamentos coletivamente, traduz-se por: habiatibũxinã. Por outro lado, nas assessorias pedagógicas, mesmo que se busque sanar as dúvidas do docente, há um tipo de produção de pensamento que não se realiza no contato com o parente na aldeia e, neste sentido, torna-se individualizada; esta forma de pensar traduz-se por: Ẽ xinãbesti,13 ou seja, “Eu sozinho estou pensando”. Dentre as oficinas pedagógicas de que participamos, este ensaio destacará duas, que compõem dois ciclos destes eventos, transcorridos entre os anos de 2005 a 2007. A primeira delas chamou-se nixpu pima (nosso batismo)14 e a segunda yurã xinã pewakĩ (pessoa que pensa e age firmemente). Não obstante, ressalte-se que os efeitos dessas oficinas somente podem ser percebidos pelo prisma do indigenismo realizado pelos Kaxinawá, que ao serem incorporados aos quadros funcionais da CEEI, como técnicos em educação escolar indígena, rearticulam as formas de interação entre o exterior oficial da política de educação escolar e o interior das aldeias, lugar de reverberação das ações escolares. A incorporação de índios na condição de técnicos implicou a perda da autoridade dos assessores brancos de escolas indígenas, ou seja, os indigenistas da educação escolar não mais deteriam a razão indígena das escolas, outra faceta da dominação intercultural nas florestas acreanas. Observe-se que não se trata da razão da escola indígena, pois este será um desafio pertinente aos próprios Kaxinawá. A sessão seguinte apresentará reflexões de dois professores que se tornaram técnicos pedagógicos indígenas ou indígenas indigenistas do povo Kaxinawá. Partindo de seus pontos de vistas, perceberemos as tensões que decorrem do que talvez seja a ruptura da linha de transmissão de conhecimentos femininos, face uma escola em que a docência é executada majoritariamente por homens e mais, da reconfiguração do contato entre índios e brancos no campo da educação escolar. 148

Livro Conhecimento e Cultura.indd 148

26/4/2011 12:20:49

Paulo Roberto Nunes Ferreira

“Como você enxergou isso?” ou “uma questão para nós resolvermos!” João Carlos da Silva Júnior ou Iskubu, em sua língua, é um jovem adulto Kaxinawá de 26 anos, que há oito participa de cursos de formação de professores indígenas. Seu pai foi um dos primeiros professores, ingressando em cursos de formação oferecidos pela CPI/AC, ainda em meados da década de 1980. Há dois anos, Iskubu foi escolhido por sua comunidade para se tornar um indígena indigenista. Ele assessora quatro escolas de seu povo no rio Breu. Com frequência, trocamos informações e mensagens eletrônicas. Sua aldeia, Jacobina, participa da Rede Povos da Floresta, um movimento que visa a aliança de povos tradicionais em defesa do meio ambiente, tendo na internet uma ferramenta de comunicação na floresta – da qual nos utilizamos intensamente. Foi nesse contexto, inusitado para mim, porém tratado com desenvoltura por Iskubu, que principiamos abordar uma problemática recentemente notada em escolas Kaxinawá, cuja pergunta central, ainda sem resposta, é: como poderia um homem ensinar às meninas conhecimentos femininos e distanciados dos contextos não escolares específicos de aprendizagem constituídos na infância? A esta indagação devemos acrescentar o dado de que o número de discentes meninas é crescente, enquanto o de docentes mulheres é restrito. Era o segundo contato que fazíamos acerca deste mesmo tema. Retomamos nosso status on line e perguntei se ele havia pensado acerca do que examinávamos dias atrás. “Sim”, respondeu, e imediatamente escreveu: “Quero saber se alguém te falou sobre, a respeito ou você pensou nisso?” Num primeiro momento não me ative da real incidência de sua questão, insisti que deveríamos retomar do tema inicial de nossa conversa, mas ele redarguiu: “Primeiro me responda!” Diante do posicionamento de Iskubu, escrevi: Não, ninguém falou. Faz muito tempo que eu já acompanho as escolas, conheço os professores, converso com os professores e, então, observei. Só que nas aulas eu usava outro exemplo para falar disso. Eu dizia para vocês: “se você não é um bom caçador, como poderá ensinar ao filho do seu cunhado a caçar e, ainda mais, na escola?” Lembra? Então, era a partir disso. Sua insistência em saber como havia percebido esta problemática, torna-se então significativa, pois parecia uma condição sem a qual nossa conversa não prosseguiria. Iskubu: já tenho oito anos que estou trabalhando na escola e como você, conheço essa realidade, portanto, diante disso já parei para pensar sobre esse caso e observo que esse é um mundo de organização 149

Livro Conhecimento e Cultura.indd 149

26/4/2011 12:20:49

Espaços de homens e conceitos de mulheres

nova para nós huni kuĩ. Mas, nem tanto por isso vamos embaralhar a nossa cabeça. Para isso se movimentar tem uma forma que precisamos refletir sobre o caso Escrevi que concordava com ele e acrescentei: “eu concordo com você, mas como será esse movimento?” Iskubu: portanto, é como estou falando, tem jeito para se trabalhar entre homens e mulheres, só que temos que organizar essa ideia. Partindo deste ponto, do “jeito de trabalhar entre homens e mulheres”, perguntei: “Mas vejamos, você não é uma aĩbukeneya,15 certo? Se você não é uma aĩbukeneya, como é que você vai ensinar as meninas a fazer o kene?” “Positivo”, respondeu Iskubu, que seguiu: “sobre isso vejo que estamos começando a traçar essa política de organização do aprendizado fora e dentro da escola.” Pedi para que ele explicasse que política seria esta à qual fazia referência, mas antes o indaguei: “No começo da escola o nawã kene era só dos homens. Hoje as mulheres estão querendo esse nawã kene. Antes o kene kuĩ era só das mulheres, mas hoje os homens estão querendo esse kene kuĩ, como é que isso fica, em termos de conhecimento?” Iskubu: São essas coisas que eu mencionei da política, exatamente dessa organização. Precisamos trabalhar isso forte na comunidade e entender essa nossa identidade real para que com isso consigamos fortificar cada vez mais essa nossa realidade que um dia éramos e que queremos chegar no tempo atual. “Como vocês vão fazer isso?”, perguntei. Iskubu: Isso são coisas que nós huni kuĩ temos que pensar profundo e refletir bem. Este professor trouxe à tona novos elementos que remetem ao contato com os brancos e à produção de conhecimento. Ele estabeleceu limites para a incursão do indigenista branco da educação escolar, pois afirma que há coisas cujos próprios huni kuĩ deverão pensar e refletir profundamente. Esta passagem difere exponencialmente do relato colhido por Weber (2004:69), junto a um professor Kaxinawá do rio Humaitá, no qual o indigenismo pensou antes dele acerca da revitalização cultural: Na CPI, através da CPI que a gente ‘tá aprendendo a cantar mariri que isso é uma força que toda vida nós somos donos, mas não interessava 150

Livro Conhecimento e Cultura.indd 150

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

nisso, né. A gente viu que além de ser nosso valor, através disso a gente tem um conhecimento e começa a pensar, né que isto é verdade mesmo, né (...). Então isso foi uma coisa muito importante que a CPI ‘tá trazendo desde o começo. Começou a pensar antes de nós, pensou antes de nós pensar (...). (Professor Ceará) Iskubu manteve-se firme em sua perspectiva: “na reta do como fazer isso cabe a nós mesmos começar a discutir sobre e ir definindo. É claro, isso com força da aliança dos movimentos indígenas e indigenista.” E prosseguiu: Entendo que você é uma pessoa que “está sempre de pé” tentando nos ajudar também. Você pode e deve participar dessa discussão, assim como nós estamos trabalhando até hoje. Como você sabe o HuniKuĩ é um dos povos que são mais “cultural”, portanto a gente não se esqueceu da nossa vivência, só e apenas outros conhecimento tem nos interferido na maneira de nossa realidade do dia a dia. Mas falo: continuamos praticando os nossos conhecimentos, aqueles que ainda estão recuperando aqui e que não foram esquecidos. Não obstante, ele nos diz que a inserção indígena conquistada, representada aqui pela atuação como indigenistas marca uma mudança radical desenhada não apenas pela escolha em “ficar ou não de pé” com um Outro, porém, é o estabelecimento de percursos autônomos, pois “na reta do como fazer”, caberá a eles a discussão, bem como a definição deste caminho. Estabelecer limites para inserção do indigenismo dos brancos não significa excluir as possibilidades de interlocução, mas exercer suas capacidades interativas, cujo contato gira em torno da troca (McCallum 2002:393). “Ficar de pé”, neste caso, é a articulação de campos de agenciamento e novas alianças. Aqui se fundam intercursos relacionais. Para compreendermos com a devida consequência o tema da incorporação de indígenas nos quadros de técnicos da SEE, Bendito Ferreira, ex-técnico e atual professor e liderança geral da terra indígena Praia do Carapanã, no rio Tarauacá nos disse: Bem, para nós, olhando como um HuniKuĩ, foi um pouco assim, como se tivéssemos avançado um pouco nessa questão da educação. Pensar como um técnico, como a SEE fala ou pensar como um assessor como a CPI fala, para mim, para os povos indígenas, para quem estava assumindo essa responsabilidade foi mais um trabalho para a comunidade, mas para a própria comunidade assumir essa responsabilidade. Olhar com os seus próprios olhos. (...) Hoje a gente traça essa política junto com a SEE, junto com a CPI, junto com as organizações ou que 151

Livro Conhecimento e Cultura.indd 151

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

representam a organização indígena, com muito mais tranquilidade, porque a gente traz o problema e leva a solução. A gente mesmo pode fazer isso. (Benedito Ferreira. Palestra. Cruzeiro do Sul/AC, 2009) Este fato, para Benedito ou Iskubu, sem dúvida iguala o jogo. Eles simetrizam-se aos assessores da CPI/AC ou aos técnicos da CEEI, enfim, aos indigenistas brancos, que “faziam antes” dos índios. (...) porque antes, qualquer problema tinha que ter o assessor, tinha que ter a Secretaria, tinha que ter a assessoria (...). Eu acho que equilibrou! Hoje nós temos trabalhado em conjunto! Hoje, como índio-indigenista, nós temos trabalhado nessa situação. Nós temos trabalhado com a questão do nosso povo e a questão da Secretaria de Educação de como a gente pode dar um equilíbrio no nosso conhecimento. (Benedito Ferreira. Palestra. Cruzeiro do Sul/AC, 2009) Isto se deve à perspectiva de se “equilibrar o conhecimento”, como afirmou Benedito Ferreira. Dito de outra maneira, significa a possibilidade de se construir percursos autônomos para suas escolas. Outra importante consequência etnográfica da entrevista de Iskubu e da palestra de Benedito foi revelar como a recriação da dominação intercultural que outrora se fazia via economia seringalista deu-se, atualizada, via o indigenismo da educação escolar, no qual a abnegação indigenista e as ações “pró-índio” detinham as razões indígenas das escolas e restringiam os campos de agenciamento Kaxinawá.16

Fazendo figuras, refazendo o gênero e desfazendo um bloco Passemos às oficinas do biênio 2005-2007, citadas anteriormente, e acompanhemos o desejo masculino por saberes das mulheres expresso por Vitor Pereira, ex-professor e atual Coordenador de Cultura Indígena no município de Jordão/AC. Além de Vitor, teremos José Mateus Itsairu, àquela altura, técnico da CEEI, que, em 2010, presidia a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) que nos fez compreender importantes elementos do complexo de aprendizagem Kaxinawá. Em 2005 estávamos num ciclo de oficinas que se inauguraria na aldeia Bela Vista, chamado de Nixpu Pima. O centro da oficina se constituiu a partir de um poema escrito por Norberto Sales, professor huni kuĩ do rio Jordão e técnico indigenista deste povo, que, no ano de 1997, tratou de “remendar” o horizonte da floresta com a copa de suas árvores, num mundo cujo céu surge unido à 152

Livro Conhecimento e Cultura.indd 152

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

153

Livro Conhecimento e Cultura.indd 153

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

terra, configurando a noção de continuidade e não separação. Inspirada pela poesia de Norberto Sales, a CEEI pensava ser “a remenda entre o céu e a terra”, a metáfora-chave para superar dicotomias entre conhecimentos apreendidos em comunidade e aqueles aprendidos em contexto escolar. Assim, o acréscimo do adjetivo indígena à expressão educação escolar, resolveria a problemática que se anunciava cada vez mais complexa. Um dos participantes da oficina, José Mateus Itsairu, propôs, por meio de uma figura, elucidar a problemática da educação escolar indígena, com o que ele chamou de “ideia”. Esta figura circularia, até 2007, todas as terras indígenas habitadas por kaxinawás no Acre, inclusive no próprio rio Jordão, algo que ocorreu no ano seguinte. Deste ponto depreenderemos algumas questões oriundas da relação entre humanos, não-humanos, gênero, conhecimento e escola. Em 2006, os comentários acerca da figura de José Mateus e dos desenhos das mulheres foram liderados por ele mesmo e seu primo, Vitor Pereira. Comecemos com Vitor: Os desenhos mostram a nossa realidade, o nosso conhecimento que os velhos e as velhas começaram a entender. O kene não é só as mulheres que conhecem, dá pra todos os homens, todas as crianças estar refletindo, desenhando no papel para que eles tenham ideias, vejam um caminho para onde chegar e conhecer, porque todos têm que ficar livre para entender aquilo que a gente está fazendo. O desenho da jiboia está mostrando para a gente ter ideia, pensar, refletir (...). (Vitor Pereira, Oficina Yurã Xinã Pewakĩ, 2006) E com José Mateus: O desenho foi feito de minha própria imaginação, de meus sonhos, de meus conhecimentos. (...) O desenho é um caminhamento pra se chegar a conhecer. O desenho é importante, o velho e a escola. Qual é a diferença entre nós e o nawa? Aí foi muita discussão, muita experiência, isso foi o significado da escola do mestebu [anciãos]. Então essa é uma coisa importante, que esse desenho está se propagando, está se contribuindo pra várias terras indígenas, pra vários povos conhecer. Esse desenho é para o próprio professor entender o que significa, o que nós estamos tratando, o que nós estamos precisando. É jiboia que, igualmente está se relacionado com os velhos, como o Txanu falou: a jiboia ensina aos velhos, os velhos aprendem e depois os velhos 154

Livro Conhecimento e Cultura.indd 154

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

ensinam para os novatos. Jovens, com velhos, com mulheres. É como o Renato citou com todos esses yuxibu [espíritos fortes]. Eles estão junto de nós e nós estamos junto com eles. (José Mateus Itsairu, Oficina Yurã Xinã Pewakĩ, 2006) A partir de Vitor Pereira e José Mateus, depreendemos que a inversão ritual de gênero entre homens e mulheres, tratada por Lagrou (2006, 2007), se dá também no contexto da escola, e faz uma das agências femininas, o desenho, ser de todos, porém não como um saber especializado. Sua potência é parte do cenário no qual existe intenso contato com a sociedade nacional, somado às interpretações huni kuĩ para o desenho que implicam em conferir identidade a um corpo e possibilitar caminhos, sejam estes os dos sonhos, os das sessões de ayahuasca ou da morte. Vitor fornece uma equação na qual associa o conhecimento do desenho à produção de ideias e caminhos. No que tange inversão de agências ou saberes, parece-me bem mais ampla e manifesta do que se imaginaria, pois não reside apenas no exercício do rito, tampouco serve exclusivamente como possibilidade conceitual de conhecer a alteridade. Hoje, tal inversão, por meio de um saber escolarizado, pode reconstruir a relação entre os gêneros. A escola, estruturalmente figurada por José Mateus, problematiza a alteridade e a identidade, o gênero e as linhas de transmissão de conhecimento. Chegamos a um momento delicado de nosso ensaio. Devemos diferenciar desenho e figura, duas expressões com sentidos similares em língua portuguesa, mas que em hãtxa kuĩ, nos remetem a significados e relações sociais que, apesar de se complementarem em variados contextos, de guardarem identidade, ocupam um campo semântico distinto. Para tal esclarecimento, vamos recorrer a um encontro ocorrido em 2009 com José Mateus e seu irmão Tadeu Mateus. Ambos participaram das oficinas relatadas e, nesta oportunidade, prestaram-nos fundamentais esclarecimentos sobre aquilo que Lagrou (2007:85) denominou “trilogia da percepção”,17 composta pelos conceitos de desenho (kene kuĩ), figura (dami) e imagem (yuxĩ). Tadeu e José apontariam uma diferença cujo índice não é a forma e não habita o campo do olhar; observemos que o desenho de José foi mostrado através da tela de um computador. Em primeiro lugar, Tadeu retoma o desenho nos dizendo: “Lembra do desenho do Itsairu? Olha aqui, se o desenho está na jiboia ou na rede, então ele será chamado de kene, mas no papel, será dami.” E continua a explicar: Olha, esse desenho aqui eu disse para ti que era dami, porque ele foi feito pelo homem. Ele foi feito pelo professor. Ele pensou e desenhou, então nós chamamos de dami. Em modo geral, nós chamamos dami. 155

Livro Conhecimento e Cultura.indd 155

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

Qualquer figura em geral, nós chamamos de dami. Isso desenhado é dami. No curso de formação o desenho é dami. Quer dizer, quem fez esse desenho? Quem fez esse desenho foi Itsairu. Itsairu fez esse desenho. Isso é o que nós chamamos de dami. Tadeu é enfático ao nos dizer, que se é do homem o desenho, fruto de sua agência e criatividade, portanto, diante de nossos olhos estará um dami (figura). José Mateus acrescenta: Eu chamei de yuxĩ porque no momento as pessoas usam as duas palavras. Por exemplo, se a pessoa tem alguma foto guardada e outra quer ver, então diz: ‘mĩ yuxĩ uĩmawe’ (Me mostra a tua foto ou imagem). Mas, também pode falar: ‘mĩ dami uĩmawe’. Yuxĩ ou dami! Mas, yuxĩ é imagem e dami é a foto. Só que os dois têm o mesmo significado. Esse aqui tanto é yuxĩ, quanto é dami. Olha, ele foi fotografado, foi um desenho que você está apresentando pela tela do computador. Mas, yuxĩ é porque quer dizer, aqui tem o yuxĩ da jiboia, o yuxĩ do velho, que está representando. E tem a rede também que também foi feito pelos espíritos. Tadeu tende a discordar do irmão: Olha, Paulo, eu acho que a resposta é assim. Esse desenho nós chamamos de dami. Mas, esse desenho que nós tiramos foto, nós chamamos de dami yuxĩ. Entendeu? Já pegou a imagem do desenho, porque é yuxĩ, como o filme das pessoas, ou seja, você já tirou da imagem da pessoa e pode chamar de Mĩ yuxĩ. Agora o dami que é o desenho,[mas] você não pode chamar o filme das pessoas de dami. José Mateus retomou a fala de Tadeu, parecendo buscar um caminho alternativo de explicitação ao nosso debate: Isso sempre foi assim, mas ninguém fala muito isso. Isso você só ouve mais dos velhos e das velhas. Os mais jovens falam fotorã. E nessa escola, eu pensei mais foi no contato da comunidade com a escola. E a gente com isso já quer mostrar um exemplo, um produto de um trabalho da escola diferenciada. Através desse desenho, envolve tudo. Traz professor, traz a ciência e traz a relação da natureza com os humanos. A ciência aqui é tudo! Os velhos é a ciência, a jiboia é a ciência, a 156

Livro Conhecimento e Cultura.indd 156

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

Professor Napoleão Bardales, adquirindo ayahuasca na aldeia Novo Lugar, para levar à oficina pedagógica que ocorreria na aldeia Nova Fronteira. Rio Purus, 2010.

Aldeia Nova Fronteira, rio Purus. Preparação de alunos da escola para um katxanawa. Oficina pedagógica, 2010.

escola é a ciência, o kene é uma ciência. Então é por isso que eu falei, é o ponto em que você vai aprender e fazer. Trazer à tona um debate sobre conhecimento, gênero e escola que visualizasse a geografia das agências e os saberes de homens e mulheres kaxinawás, defronte as escolas que se proliferam nas terras indígenas, necessitaria mais que uma refinada paráfrase. Não se tratava de uma nova leitura dos escritos, mas de uma nova audição sobre a fala dos índios. Outros dados necessariamente deveriam ser escutados pelo antropólogo. Tratar o kene kuĩ (desenho) enquanto um domínio privilegiadamente feminino não seria uma novidade. Escrever que esse tipo de desenho desvela questões acerca da identidade, tanto quanto da

157

Livro Conhecimento e Cultura.indd 157

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

alteridade entre os Kaxinawá, também não. Tampouco, seria lícito reproduzir a consequente perspectiva de que numa “mulher verdadeira” devem residir os conhecimentos sobre como fazer kene ou abordar a escola entre os Kaxinawá como uma “escola própria”. (Weber 2004) Portanto, qual seria então o resultado desta nova audição? Em resposta, inicialmente, reconsideremos a passagem de Lagrou (2007:71) que toma as mulheres como detentoras do conhecimento para se fazer desenhos (kene kuĩ) e os homens para produzir imagens (dami). Esta equação ressoa na perspectiva de Tadeu, sobretudo no aspecto de que homens produzem dami. Ao considerarmos que são os homens os responsáveis pela preparação da ayahuasca na aldeia, que a ingestão desta bebida permite o acesso ao mundo dos yuxĩ,18 da potencialidade, da alteridade, que é mundo também dos yuxibu. Pode-se dizer que os homens detêm o conhecimento de produzir imagens. Ademais, nessas imagens os corpos dos seres e dos objetos são recobertos por desenhos das mulheres, o kene kuĩ. A capacidade de produzir imagens ou desenhos, de homens e mulheres, foram adquiridas no tempo mítico junto à jiboia. Este é o estado inicial estruturante da geografia de conhecimentos masculinos e femininos, respectivamente. Este panorama primevo é reconfigurado pela escola, mas, a partir de que? Se adotarmos como parâmetro a escola indígena e as compreensões de Tadeu Mateus e José Mateus, em seus exercícios de diferenciação da figura (dami) e do desenho (kene), veremos que o desenho é uma ciência. Ao ser uma ciência e, deste ponto de vista, algo a ser compreendido, conhecido, torna-se alvo de exegese. Uma figura, “uma representação”, como nos diria José, apenas será objeto de análise, se ela carregar yuxĩ (força vital, imagem), em outras palavras, ou numa linguagem antropológica, agência. Ao que parece, o desenho, por princípio tem agência; uma figura, nem sempre. A agência da figura existirá em contextos em que ela se constitui numa ideia, como a de José. A figura de uma anta ou de um queixada será apenas uma figura, sem ideia a ser explicitada, sem tornar sensível ou inteligível, uma dada relação social. O segundo ciclo de oficinas abordado, no qual se originaram tais reflexões, chamou-se Yurã Xinã Pewakĩ. Ele ocorreu entre os anos de 2006 e 2007. Seu vigor foi produzido em face da proposição de José Benedito Ferreira, que percebendo argutamente o novo contexto do indigenismo acreano, no qual a autonomia é potencializada pelos próprios nativos e não por estrangeiros brancos, apontou a obsolescência da educação escolar indígena proposta neste estado, dispondo-se a renová-la em virtude de uma educação escolar huni kuĩ, cuja incidência é desconstruir o bloco pano-arawa-aruak,19 sob o qual foi erigido tanto o programa de formação de professores da CPI/AC, quanto o da CEEI. 158

Livro Conhecimento e Cultura.indd 158

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

Uma potente consequência das reflexões de Bendito sobre a educação escolar indígena vem à tona da seguinte maneira: “Mas, depois nós começamos a discutir a educação escolar indígena diferenciada, mas que diferença que a gente tinha dessa educação?” Afinal, Benedito estava a questionar o inquestionável! Ao considerar que a escola indígena é alicerçada na noção de diferenças étnicas ou mais amplamente, sociedade nacional versus sociedades indígenas, ele direciona seus questionamentos não à distinção com os brancos, mas na direção do bloco pano-arawa-aruak. Benedito recria os pólos de análise e constituição de cursos de formação de professores indígenas.

Considerações finais As escolas, atualizadas em novos cenários, distanciaram-se dos objetivos de administrar cooperativas ou livrar-se do julgo de patrões seringalistas. José Benedito Ferreira, José Mateus Itsairu, Vitor Pereira, Iskubu, Tadeu Mateus ou mesmo Norberto Sales, um dos mais experientes professores indígenas do Acre, além da docência ou lideranças de seus povos, atuaram intensamente na construção do que parece ser uma resposta indelével de um novo momento. Hoje suas intenções aliam-se ao movimento pró-cultura descrito por Weber (2004), antropóloga e indigenista que tratou do processo de escolarização entre os Kaxinawá do rio Humaitá. Um de seus argumentos mais interessantes para este artigo, é que a “escola própria” serve aos Kaxinawá como espaço para reaprender a tradição. Esta conclusão poderia ser estendida a diversos outros rios ocupados por esse povo. A questão final não se refere à escola entre os Kaxinawá enquanto um veículo privilegiado de aprendizagem sobre o exterior. Este não é mais o caso. A pergunta deste artigo versou acerca de relações de gênero no espaço em que se aprenderá acerca do desenho, embebido até o momento, pela noção de conhecimentos da cultura ou da tradição. Ao passo que o desenho se torna algo a ser ensinado na escola e, este é um conhecimento emanado privilegiadamente do corpo feminino, sendo a mulher, a representante da porção mais interior da aldeia, inserir o desenho enquanto um conteúdo curricular poderia criar uma nova economia e política para a transmissão deste conhecimento.20 Considerar esses desenhos como a linguagem estruturante da vida Kaxinawá (Lagrou 2007:537), bem como marcas da distintividade destes em face de outros índios do Acre e dos brancos, fornece-nos a interpretação de que eles conformam não apenas a verdadeira mulher, mas a verdadeira pessoa. As linhas de transmissão deste conhecimento, que se transversaliza ao converter-se em conteúdo escolar, espalham-se para além das mãos femininas, pois tanto estarão em corpos masculinos, bem como 159

Livro Conhecimento e Cultura.indd 159

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

nas escolas, espaço majoritariamente do homem. Majoritário, entretanto, apenas no campo professoral, visto que, ao compararmos números coletados em um levantamento preliminar junto aos professores indígenas Kaxinawá em 2010, veremos um equilíbrio entre alunos e alunas, sendo 50,7% de homens, e 49,3% de meninas. A escola já não é mais, pois, um espaço masculino. As mulheres estão a socializá-la por meio do desenho impresso nos homens e na transformação desta arte em conhecimento, em ciência. Os homens reivindicam o kene kuĩ, como possibilidade de compreensão, conceito, identidade e instrumento de contato com o exterior. No entanto, apenas é possível conceber a escola indígena entre os Kaxinawá enquanto um espaço para a convergência de agências, se esta for pensada na perspectiva de Benedito, ou seja: uma escola huni kuĩ. Ela se torna um espaço privilegiado no qual o grupo se esforça em “produzir socialidade”, no sentido de que capacidades femininas e masculinas se congreguem ao fornecer novos eixos para sua filosofia moral, fundada no viver bem e juntos com os parentes próximos, em que mulheres reconfiguram os corpos dos homens, neles desenhando; homens professores solicitam das mestras em desenhos (aĩbukeneya) que lhes ensinem este saber e, por fim, homens, mulheres, alunos e alunas desdobram em livros específicos de seu povo, tais conhecimentos. Historicamente, as escolas nas aldeias preocuparam-se com as aulas em língua portuguesa e matemática ou com a revitalização cultural. Neste sentido, o desenho na escola gera outros debates que incidem sobre produção da vida cotidiana, bem como no contato com seres de variadas naturezas; do ancião à jiboia, da mulher ao homem, do professor ao livro. O menos importante é saber se a escola foi construída próxima às cozinhas das mulheres ou nos pátios da aldeia. O desenho é o encontro intelectual entre homens e mulheres nas escolas do povo Kaxinawá que, ditas por Benedito Ferreira, são Huni Kuĩ.

160

Livro Conhecimento e Cultura.indd 160

26/4/2011 12:20:50

Notas 1 Nos últimos sete anos atuei como indigenista da educação escolar entre os Kaxinawá, vinculado à Coordenação de Educação Escolar Indígena (CEEI) da Secretaria de Educação do Acre (SEE/AC). Visitei todas as terras indígenas deste povo. Participei junto com eles de oficinas pedagógicas para construção das propostas das escolas de suas aldeias. No PPGAS/ UFPR, em 2010, defendi a dissertação de mestrado intitulada “Na ‘remenda do céu com a terra’: escolas diferenciadas não são Huni Kuĩ”, sob orientação da professora Laura Pérez Gil. 2 Consiste nas propostas de formação escolar do aluno de uma dada escola indígena ou de várias escolas de uma mesma terra indígena. 3 Eles se autodenominam Huni Kuĩ (gente verdadeira), falam uma língua que se chama hãtxa kuĩ (língua verdadeira), da família linguística pano e ocupam no Acre as margens dos rios Murú, Humaitá, Tarauacá, Jordão, Juruá, Breu e Envira, além das margens da rodovia BR-364. No Brasil, são aproximadamente 5.800, sendo que no Peru, à montante, seguindo pelo rio Purus, encontraremos mais 1.400 pessoas. 4 Ver McCallum 2001:48. 5 Uma delicada etnografia acerca dos Kaxinawá do rio Humaitá e a escola, em 2004, intitulada Escola Kaxi História, cultura e aprendizado escolar entre os Kaxinawá do rio Humaitá (Acre), apontou que esta já não seria uma instituição “alienígena”, estrangeira ou de branco na aldeia. Ela nos leva a compreender, sem inflexão, que a escola está inserida no cotidiano Kaxinawá, pois “é parte integrante do cotidiano da aldeia e a sua frequência é percebida quase como obrigatória para as crianças e os jovens.” (Weber, 2004:99). 6 Tal subvisualização refere-se ao fato de não ser o gênero o tema central das pesquisas, mesmo que este não seja de todo ausente. Todavia, Weber (2004, 2006), Lagrou (1991, 1998, 2002, 2007), Kensinger (1995) e Deshayes & Keifenheim (2003) abordaram esta questão que, embora não fosse o fulcro de suas análises, renderam à antropologia e à etnologia junto aos Kaxinawá, importantes debates. Cecilia McCallum (2010) é quem nos chama atenção para este dado. 7 Utilizar a preposição “da” em vez de “na”, para o título desta sessão, busca informar ao leitor que há variadas práticas indigenistas ou formas de atendimentos para estas populações indígenas. Poderíamos abordar estas práticas do atendimento a saúde, à demarcação de terras, à autossustentação dos povos indígenas ou à escola. Todavia, estes atendimentos apresentam distinções tais, que seria inadequado agrupá-los como subáreas de uma política indigenista. Isto, tal como se percebe, apesar de grandes esforços não foi consolidado no Acre, onde no âmbito governamental, quatro áreas apresentam ações indigenistas: educação, saúde, assistência agroflorestal e cultura. Há, de fato, inúmeras ações de setores governamentais e não governamentais de caráter pró-indígena, que visam autonomia e respeito à diversidade étnica. No entanto, considerar que existam ações sistemicamente articuladas e integradas no atendimento às populações indígenas é algo a se alcançar. Portanto, o Indigenismo da Educação Escolar é um dos variados indigenismos que convivem no Acre, e não uma categoria deste tipo de atendimento. 8 “O modelo coletivo do conhecimento, promovido por jovens líderes afinados com o ideário comunitarista do indigenismo acreano, não conseguiu englobar outro modelo, com linhas próprias de transmissão e gestão de saberes singulares, que não se dão a qualquer um nem de qualquer jeito. Como pôr à disposição de todos um conhecimento adquirido, a tanto custo, através dos processos seletivos de iniciação xamânica?” (Calavia et al., 2006:22 ) Este argumento é producente para o contexto em questão, pois tal “igualitarismo” inicialmente se dá com a criação de cooperativas indígenas, se estende e configura os argumentos centrais de uma oficina em educação escolar, na qual a todos é possível saber, opinar e construir sentido acerca dos temas tratados, independente do gênero, idade, nome ou metade matrimonial a qual pertencem os participantes. 9 O período no qual se desenha o indigenismo comunitarista é pós-correrias, em contextos em que os Kaxinawá já se encontravam integrados às atividades do seringal, mesmo que em um momento de crise deste sistema, entre as décadas de 1970 e 1980. 10 O aviamento no seringal consistia na venda antecipada de mercadorias variadas, desde itens manufaturados até alimentícios, ao seringueiro (freguês) para que este efetuasse a qui-

Livro Conhecimento e Cultura.indd 161

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

tação de seus débitos com a futura produção de borracha. Todavia, os fregueses, analfabetos em sua ampla maioria, eram imobilizados no seringal em face dos cômputos de sua produção, que segundo cálculos do seringalista em regra eram inferiores aos valores devidos. Este, claro é um caso extremo de imobilização de mão de obra, no entanto, a trajetória Kaxinawá diante do seringal apresenta um matiz. O início da empresa extrativista no Acre é marcado por “correrias” contra os índios. Movimentos expedicionários de matança indígena promovida por caucheiros peruanos ou seringalistas brasileiros. Iglesias (2008:239), no entanto apresenta-nos um exemplo etnográfico no qual os Kaxinawá, num mesmo período histórico e num mesmo rio, assumem diante de seus interlocutores brancos, uma dupla posição: “No alto rio Envira, região onde à época o caucho era o principal produto explorado e a arregimentação de peruanos era iniciativa comum para a composição de freguesias pouco duradouras, alguns patrões passaram a vislumbrar a mão de obra dos indígenas como alternativa para desenvolver atividades agrícolas e complementares à produção gomífera. A maioria dos patrões, contudo, ainda concebia os índios como obstáculo a ser removido de suas propriedades e das cercanias, de forma a garantir a ‘segurança’ de seus trabalhadores e a viabilizar a produção de caucho”. 11 Registre-se que, de acordo com a CPI/AC, na década de 1980 existiram cursos que duravam três meses. 12 Uma variação deste tipo de assessoria ocorre em 2005, quando a CPI/AC, a SEE/CEI e a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), protagonista do evento, realizaram uma oficina de sensibilização acerca da Educação Escolar Indígena, ocorrida na Terra Indígena Praia do Carapanã. Seu objetivo foi esclarecer à aldeia, tanto quanto aos professores indígenas, o que seria e como poderia se efetuar a educação escolar indígena. 13 Estas traduções foram fornecidas por professores do rio Breu, a saber: Raimundo Adalto Paulo (Tuĩ), Floriano Kaxinawá Viana (Tene), Remilde Henrique Kaxinawá (Shane), Odair Sales Sereno (Busẽ), Edigar da Silva Sereno (Siã), João Carlos da Silva Júnior (Iskubu) 14 A tradução mais corrente entre os Kaxinawá é “nosso batismo”. Lagrou (2007:503) argumenta que: “o ritual se torna uma síntese eloquente da ontologia Kaxinawá.” Anos antes, em 1998, a mesma autora recolhe uma explicação nativa producente para este artigo, pois enfatiza a autonomia intelectual da pessoa a ser batizada. “Batiza-se uma criança”, explica Edivaldo, “porque ela já tem seus próprios pensamentos” (Lagrou 1998:264). 15 Literalmente, traduz-se por “mulher que tem os desenhos”. A expressão revela que tal mulher detém os conhecimentos das técnicas para elaborar e reproduzir os desenhos verdadeiros (kene kuĩ) sejam estes aplicados em superfícies de objetos ou em pessoas, tramados na cestaria, na tecelagem ou nas pulseiras de miçangas. 16 Com isto, afirma-se apenas o quão potente os índios transformaram sua atuação no interior do estado. Não obstante, é preciso constatar o fato de que a CPI/AC contribui significativamente com os povos indígenas acreanos, no sentido de fomentar processos de autonomia, iniciados com a criação das cooperativas. Ratifica-se, entretanto, a capacidade indígena de criar contextos de trocas e fundação de novas alianças. 17 Sobre a trilogia da percepção Kaxinawá, ver Lagrou 2007:85. 18 Lagrou (2007:285) “Ao ingerir este cipó os humanos adquirem a capacidade para visitar esta realidade oculta, um mundo de imagens yuxin oposto ao mundo terrestre dos corpos. Ayahuasca produz imagens móveis e uma pulsação constante de formas, um mundo de pura potencialidade de alteridade e alteração. Estas imagens do ‘outro-mundo’ são caracterizadas pela presença do desenho cobrindo os corpos, utensílios e casas dos yuxibu do céu, da água e da floresta.” 19 O primeiro curso de formação de professores indígenas no Acre foi realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) reunindo no ano de 1983 um conjunto de professores de três famílias linguísticas, a saber: pano, arawa e aruak. Este formato perdura, tanto na CPI/ AC, quanto na CEEI nos últimos 27 anos, variando apenas com a criação de espaços específicos para os módulos que abordam as línguas indígenas. Até o momento, foram realizadas 27 etapas de cursos de formação orientadas pela CPI/AC e dez etapas pela Secretaria de Educação. Ao reivindicar um curso específico, os Kaxinawá abalam este formato indigenista. 20 Ver McCallum 2001:41-63. A autora tratará de questões acerca da construção do gênero na infância entre os Kaxinawá, dos espaços de exercício das agências masculinas e femininas, de aprendizagem e socialidade. Seu argumento central é que há na divisão entre os gêneros, espaços nos quais as habilidades e capacidades masculinas ou femininas ocorrem, por excelên162

Livro Conhecimento e Cultura.indd 162

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

cia. Todavia, a mesma autora (2010:87-104), nove anos mais tarde, tratará dados etnográficos de fins da década de 1980 colhidos no Acre, junto aos Kaxinawá do rio Jordão e rio Purus, para refletir sobre a relação das mulheres, frente à escola e à aquisição da escrita ocidental.

163

Livro Conhecimento e Cultura.indd 163

26/4/2011 12:20:50

Espaços de homens e conceitos de mulheres

Referências AQUINO, Terri V. 1977. Kaxinawá: de seringueiro caboclo a peão acreano. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília. CALAVIA SÁEZ, Oscar, Miguel CARID NAVEIRA & Laura PÉREZ GIL. 2003. “O saber é estranho e amargo. Sociologia e mitologia do conhecimento entre os Yaminawá”. Campos. Revista de Antropologia Social, 4:9-28. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1998. “Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução”. Mana, 4(1):7-22. COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE. 1997. Antologia da floresta: literatura selecionada e ilustrada pelos professores indígenas do Acre. Rio de Janeiro: Multiletra. DESCOLA, Philippe. 1998. “Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia”. Mana, 4(1):23-45. ERIKSON, Philippe. 1993. “Une nébuleuse compacte: le macro-ensemble pano”. L’Homme, 33(126):45-58. ESTEVES, Benedita Maria G. 2008. “O Seringal e a Constituição Social do Seringueiro”. In: D.P. Neves & A. de M. Silva (orgs.), Processos de Construção e Reconstrução do Campesinato no Brasil: Formas Tuteladas de Condição Camponesa. São Paulo: UNESP. pp 91-112. IGLESIAS, Marcelo M. P. 2008. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá. Tese de Doutorado em Antropologia, Museu Nacional/ UFRJ. LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawá, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks. ______ . 1998. Caminhos, duplos e corpos: uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinawá. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade de São Paulo. ______ . 2006. “Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawá”. Revista de Antropologia, 49(1):55-90. ______ . 1991. Uma etnografia da cultura Kaxinawá. Entre a Cobra e o Inca. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina. KENSINGER, Kenneth M. 1995. How real people ought to live. The Cashinahua of eastern Peru. Waverland Press, Inc. PÉREZ GIL, Laura. 2003. “Corporalidade, ética e identidade em dois grupos pano”. Ilha - Revista de Antropologia, 5(1):23-45. McCALLUM, Cecilia. 2010. “Escrito no corpo: gênero, educação e socialidade na Amazônia numa perspectiva Kaxinawá”. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, 33:87-104. ______ . 2001. Gender and Sociality in Amazonia: How Real People are made. New York: Oxford. 164

Livro Conhecimento e Cultura.indd 164

26/4/2011 12:20:50

Paulo Roberto Nunes Ferreira

______ . 1998. “Alteridade e sociabilidade kaxinauá: Perspectivas de uma antropologia da vida diária”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13(38):127-136. WEBER, Ingrid. 2004. Escola Kaxi História, cultura e aprendizado escolar entre os Kaxinawá do rio Humaitá (Acre). Dissertação de Mestrado em Antropologia, Museu Nacional/UFRJ.

http://www.redepovosdafloresta.org.br/gerExi.aspx?kwd=1

165

Livro Conhecimento e Cultura.indd 165

26/4/2011 12:20:50

Livro Conhecimento e Cultura.indd 166

26/4/2011 12:20:50

III TRANSFORMAÇÃO

Livro Conhecimento e Cultura.indd 167

26/4/2011 12:20:51

Livro Conhecimento e Cultura.indd 168

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional

Laura Pérez Gil

O contexto Embora morem numa pequena aldeia que, raramente, supera os 100 habitantes, o universo social dos Yaminawa1 (Pano) estabelecidos no Mapuya é amplo e diverso, não apenas em termos sociocosmológicos – como acontece em outras sociedades ameríndias, o cosmo yaminawa é povoado por uma diversidade de seres –, mas também em termos sociopolíticos. A região geográfica pela qual transitam abrange a área oriental do sistema hidrográfico formado pelos rios Urubamba e Ucayali, estando limitada no extremo norte pela cidade de Pucallpa e no extremo Sul por Sepahua. Contudo, mesmo que eventualmente viajem até essas cidades, o centro que tem maior importância na configuração do mundo social Yaminawa é Atalaya, que fica a meio caminho entre ambas, justamente na confluência dos rios Urubamba e Ucayali. No território próximo de Atalaya, existem Comunidades Nativas (CN)2 demarcadas em benefício de grupos Ashaninka, Piro, e Amahuaca. Os dois primeiros pertencem à família linguística Arawaken quanto o terceiro é um grupo pano, da mesma forma que os Yaminawa. A essas categorias étnicas se juntam outras à medida que se sobe o Urubamba ou descemos o Ucayali. No rumo de Pucallpa, a primeira metade do caminho é território Ashaninka, mas à medida que se progride aumenta, até se tornar dominante, o número de comunidades Shipibo-Conibo; na direção de Sepahua, prevalecem, principalmente, as etnias arawak – Yine, Manchineri e Ashaninka –, embora estejam também presentes, de forma menos numerosa, os Amahuaca e algumas famílias yaminawa procedentes do Purus e atualmente muito associadas, por meio da convivência e dos casamentos, aosYora. 169

Livro Conhecimento e Cultura.indd 169

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

O entorno mais imediato da comunidade indígena a que aqui nos referimos está conformado pelos rios Inuya – que desemboca no Urumbamba – e seu afluente, o Mapuya. Nessa região, além da CN de Raya, localizada no Mapuya e ocupada pelos Yaminawa, existem também CN samahuaca e ashaninka. É importante, de qualquer forma, considerar os Yaminawa do Mapuya como parte de um conjunto maior no qual se incluem também as comunidades yaminawa que existem na cabeceira do Juruá, próxima da fronteira entre Brasil e Peru. As famílias radicadas no Mapuya e as das comunidades do Juruá estão estreitamente conectadas por relações de parentesco, e mantêm um contacto permanente, seja por meio de visitas, seja por meio do rádio que costuma operar duas vezes por dia. A fratura geográfica entre o grupo do Mapuya e os que se instalaram no Juruá é recente e, pelo que sabemos, não é consequência de um conflito, mas, basicamente, de discrepâncias sobre a forma de entender como deveriam ser as relações com o homem branco. O panorama sucintamente esboçado aqui coloca em evidência uma realidade cultural e sociologicamente diversa, marcada pela interação continuada entre os grupos que a conformam. Não se deve pensar, entretanto, que tanto essa diversidade quanto essas interações constituam novidade. Seja por meio dos conflitos bélicos, seja por meio de atividades mais pacíficas, como os diferentes tipos de intercâmbios, os grupos que ocupam a região do baixo Urubamba e do alto Ucayali têm participado em redes de relações que não apenas os integravam entre si, mas os conectavam também com a região andina, desde antes da chegada dos europeus (Camino 1977; Santos Granero 1992; Zarzar 1983). Evidentemente, o processo de colonização e ocupação do território amazônico por parte destes últimos introduziu novos elementos e transformações que contribuíram para tornar o quadro mais complexo. Ao conjunto de populações indígenas existentes na região, se agregaram, além dos colonizadores de ascendência ibérica, os chamados “serranos” – pessoas procedentes da região andina, tanto índios quanto mestiços –, assim como alguns indivíduos procedentes do Brasil. Se aguça, desta forma, o caráter de crisol da Amazônia peruana, o qual se reflete na prevalência do “mestiço” como categoria social. Dado esse contexto, propor uma etnografia dos Yaminawa do Mapuya – ou de qualquer outro grupo indígena da região – sem atender às relações com a sociedade envolvente, implica renunciar a usar como elementos de análise aspectos que são constituintes da realidade yaminawa. Ainda, devemos considerar – e a sintética descrição feita nos parágrafos anteriores tem o propósito de salientar esse aspecto – que a “sociedade envolvente” não pode ser reduzida a uma categoria do tipo “o homem branco”. O panorama social yaminawa não se limita a uma distinção yaminawa/homem branco: campa, amahuacas, brasileiros, mestiços, serranos, chamas, 170

Livro Conhecimento e Cultura.indd 170

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

viracochas etc., para mencionar algumas, são todas elas categorias usadas pelos Yaminawa para se referir a diferentes tipos de pessoa que fazem parte desse marco social amplo. Quando me refiro à sociedade regional estou fazendo alusão a esse sistema social complexo e heterogêneo. Os contextos de interação dos Yaminawa com essa sociedade regional são variados e se referem aos mais diversos aspectos de suas vidas: a economia, os casamentos, a língua, os objetos, a alimentação. Os Yaminawa demonstram uma atitude ambígua em relação a esse mundo no qual foram inseridos a partir da ocorrência do contato permanente,3 oscilando entre o fascínio e uma crítica de caráter moral a determinados aspectos que, segundo eles, o caracterizam. Mesmo que a noção de “mestiço” constitua um dos elementos centrais desse marco social, as fronteiras entre as diferentes categorias que conformam a sociedade regional ucayalina são concebidas por parte dos Yaminawa de uma forma menos rígida do que pode parecer ou do que nós mesmos podemos pensar. A distinção entre o indígena e o não indígena, ou melhor, a associação entre o não indígena e a civilização não é tão direta como aparenta ser à primeira vista. Muitos dos elementos que foram incorporados nesse contexto, e que os Yaminawa associam explicitamente ao processo “civilizatório”, foram adotados de outros povos indígenas e pouco têm a ver com os “brancos”: a prática de consumir grandes quantidades de caiçuma em contextos festivos; o cultivo extensivo da mandioca; o uso de canoas como principal meio de deslocamento; a prática de fiar algodão para tecer redes; o uso das plantas piri-piri.4 Não vou me estender sobre esses pontos que tratei em detalhe em outros trabalhos (Pérez Gil 2009).

Xamanismo regional É neste contexto marcado pelo hibridismo, pela labilidade das fronteiras, um tanto ilusórias, entre o indígena e o não indígena, que devem ser entendidas as práticas e teorias yaminawa ligadas a qualquer processo de doença e cura. Isto é assim porque opera, como pano de fundo, um sistema xamânico abrangente, ele mesmo produto de um hibridismo histórico que teve nas missões católicas dos séculos passados seu primeiro crisol (Gow 1994:156, 2001).Como nota Gow, apesar da heterogeneidade cultural dessa região amazônica, a prática xamânica revela-se de uma uniformidade notável. Contradizendo a perspectiva segundo a qual o xamanismo baseado no consumo de ayahuasca é próprio das tradições indígenas e estaria ligado diretamente e sem solução de continuidade ao período pré-colombiano, Gow – num esforço por entender as afirmações dos Piro e Ashaninka de que as formas contemporâneas de uso da ayahuasca vieram das cidades rio abaixo – sustenta que essas práticas, que hoje podem se encontrar 171

Livro Conhecimento e Cultura.indd 171

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

não apenas entre indígenas, mas também entre a população mestiça, se desenvolveram em contextos urbanos. Segundo o autor, os sistemas rituais de cura baseados no uso de ayahuasca seriam, antes, produto dos processos coloniais, tendo como marcos principais, em primeira instância, as missões onde diversos grupos indígenas foram coagidos a se agrupar e a conviver, e em segundo lugar, o boom da borracha. Considero a proposta de Gow não apenas instigante, mas também plausível. Alguns dados que coletei entre os Yaminawa parecem aludir à coexistência de duas matrizes xamânicas, cada uma das quais estaria caracterizada, entre outras coisas, pela associação de um conjunto distintivo de elementos: a onça, o tabaco, as práticas de sucção, o poder xamânico materializado em objetos que entram e saem dos corpos, de um lado; a sucuri, a ayahuasca, o canto como elemento central da prática ritual, de outro. Embora seja arriscado fazer, a esse respeito, qualquer afirmação, algumas informações indicam que a primeira dessas matrizes seria mais antiga e que a ela se sobrepôs a segunda (Pérez Gil 2006). Esse tipo de informação não apenas é convergente com a análise de Gow – no sentido de que o uso ritual da ayahuasca, tal e como se dá hoje, pode ter uma origem mais híbrida e recente do que se pensa –, mas, além disso, nos vacina contra a tentação de caracterizar o “tradicional” como “estático”. De qualquer forma, e sem querer me embrenhar em discussões sobre origens, a proposta de Gow nos interessa aqui para refletir sobre aquilo que chamo de xamanismo regional. Sendo ciente de que se trata de um conceito problemático – e ainda “em desenvolvimento” –, com ele me refiro ao sistema presente na região do baixo Urubamba e alto Ucayali, constituído por uma série de ideias e práticas que têm certo grau de homogeneidade. São partilhados conceitos como ícaro, daño ou brujo5; várias categorias de doenças; usos de determinados tipos de plantas, como as já mencionadas piri-piri, entre outras coisas. Se caracteriza também pela circulação de saberes, poderes, práticas, pacientes, curadores etc. que gera um complexo sistema de redes de intercâmbio em vários âmbitos.6 Em função de seu contato permanente com a sociedade envolvente ter acontecido apenas em data recente, os Yaminawa se mantiveram à margem – relativamente, pelo menos – do desenvolvimento desse xamanismo regional ao longo dos séculos passados. Hoje ele constitui, entretanto, um de seus principais canais de interação com o universo sociológico e cosmológico no qual se encontram inseridos. De fato, o que orienta este trabalho é a ideia de que o xamanismo regional se tornou um ponto de referência e de interlocução privilegiada na interação dos Yaminawa com a sociedade envolvente. 172

Livro Conhecimento e Cultura.indd 172

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

Esse diálogo acontece por várias vias e em diversas circunstâncias. Num plano analítico, porque na realidade estão intimamente relacionados, podemos diferenciar dois aspectos. O primeiro se refere aos processos de aproximação de significados e de tradução de conceitos. Em outro momento, analisei com certo detalhe a forma como os Yaminawa usam algumas categorias nosológicas presentes de forma generalizada entre a população regional, tais como cutipado e malo-aire7, a qual implica uma aproximação a categorias próprias que, sem ser equivalentes, compartilham pontos em comum. Nesse processo de tradução acontece um deslizamento de significados graças ao qual a comunicação é possível (Pérez Gil 2008). O mesmo tipo de deslizamento semântico é verificável, por exemplo, a respeito de conceitos que designam diferentes tipos de poder xamânico e as pessoas que os detêm. O segundo aspecto, ao qual vou me referir especificamente no presente trabalho, é à utilização por parte dos Yaminawa dos recursos xamânicos e terapêuticos presentes no contexto regional. Vale mencionar aqui que, diferentemente do caso brasileiro, não existe no Peru uma política de saúde específica para as populações indígenas. A biomedicina – representada por farmácias, postos de saúde, hospitais etc. – constitui mais uma opção no campo terapêutico dos Yaminawa, e, certamente, não é a mais usada. De um lado, o emprego de medicamentos alopáticos – cujo uso, mesmo que significativo, é muito menor do que a utilização de terapias baseadas na manipulação de plantas ou de práticas xamânicas – ocorre dentro de uma lógica, seja própria ou aprendida, que difere da biomédica. De outro, mesmo que a procura por tratamento seja uma das principais explicações que os Yaminawa do Mapuya dão para suas escassas viagens à cidade, raramente vi alguém recorrendo aos postos de saúde ou hospitais. O “doutor” que eles alegavam estar procurando em cada caso era algum curandeiro ou xamã, mestiço ou indígena. Contudo, a incorporação do xamanismo regional no campo terapêutico yaminawa não remete exclusivamente à sua potencialidade como elemento de comunicação; o papel que ele passa a deter no seio desse campo diz respeito, principalmente, a determinadas características sociológicas do sistema xamânico yaminawa. Em outras palavras, se o uso que os Yaminawa fazem das redes do xamanismo regional nos fala das possibilidades e facilidades conceituais que este oferece como meio de interação e integração comum exterior que os fascina, constitui, simultaneamente, um mecanismo propício para contornar dificuldades derivadas da própria dinâmica sociológica yaminawa, que se manifestam, particularmente, nos processos xamânicos de agressão e cura. Sobre estes pontos discorreremos a partir de dois estudos de caso.

173

Livro Conhecimento e Cultura.indd 173

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

Doenças que vêm de dentro e curas que vêm de fora Em uma ocasião, Xamoko, um Yaminawa de Raya, me contou sobre a doença que tinha afligido seu pai, Manate. Segundo Xamoko, foram seus próprios parentes (paisanos) os que provocaram a doença por meio do feitiço. Sentia dor na cabeça, no peito, nas pernas. Primeiro, seus três irmãos, sob os efeitos da ayahuasca, entoaram as rezas de cura (kuxuai), uma das principais técnicas de cura xamânica yaminawa. Manate deitava numa rede no meio deles enquanto entoavam os kuxuiti. Curavam-no também com disa8, mas não conseguiam fazê-lo sarar. Foi a Atalaya, e lá recebeu injeções, mas não sarava. Ante a ineficácia dos medicamentos recebidos em Atalaya, ele se transladou a Paititi, a aldeia situada no Huacapistea, onde, naquele momento, viviam vários de seus parentes, e onde o Instituto Linguístico de Verão (SIL) tinha se instalado para desenvolver seu trabalho de proselitismo junto aos Yaminawa. Em Paititi, um missionário lhe deu mais injeções. Ele sarou levemente, mas pouco depois voltou a adoecer. Seu primo lhe disse que tinha chegado um “médico” procedente de Sheshea9 que sabia curar. “Me leva lá, eu vou pagar”. Quando Manate chegou à aldeia do curandeiro, que era ashaninka, este o convidou a beber caiçuma: – Amigo,vem tomar caiçuma Mas ele estava doente. – Ele está chegando aqui doente? O que ele é de você? – Ele é meu primo. – Ah, tá, o que ele tem? Quem fez feitiço para ele? Explicaram-lhe o que tinha acontecido. – Você pode curá-lo? – Sim. – Ele vai te pagar. – O que ele tem? – Minha cabeça dói, eu não consigo ver, sinto como se estivesse bêbado, eu não posso levantar a cabeça. O homem – continuou explicando Xamoko – começou a curá-lo. Primeiro, com vegetais, “tirava” tudo, aliviava a dor do corpo com vegetais, mas a dor de cabeça não ia embora, não podia sará-lo. “Eu vou tomar ayahuasca”. Tomava ayahuasca e assoprava. “Teu próprio parente te fez feitiço, amigo, você vai morrer. Eu vou tomar ayahuasca bem, vou te assoprar”. Na manhã seguinte, explicou a Manate: – Um viracocha10 e um yaminawa te fizeram feitiço. – Ah, tá, você pode me curar? – Sim, eu vou te curar, você me deu duas colchas. O curandeiro extraiu um embrulho de arame e pregos: 174

Livro Conhecimento e Cultura.indd 174

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

– Olha, amigo, com isso aí é que queriam te matar, quase te mata, por pouco não entrou no teu olho, estava faltando apenas um quarto para teu olho arrebentar. Agora, você não vai comer anta, porquinho, jundiá, jaboti. Você vai comer apenas piaba, mingau de banana e mandioca. Depois de um mês, seu próprio “dono” – o dono da cura, aquele que a realizou e quem, portanto, orienta todas as ações do paciente em relação a ela – o convidou para tomar caiçuma. O convite para tomar caiçuma é um teste: a caiçuma, enquanto bebida alcoólica, aguça os sintomas do paciente, por isso, no início da narrativa, ele não a aceitou. Manate tomou caiçuma sob a orientação do curador e não sentiu nada estranho. Após dois meses, o curandeiro o assoprou novamente para ver como estava. Tomou ayahuasca e tirou chumbo do seu corpo: – Teus próprios parentes te fizeram feitiço. Segundo Xamoko, sua mãe viu o chumbo bem desenhado. A referência ao desenho do chumbo remete de um lado ao fato de ser um objeto patogênico, e de outro a ser um objeto de origem yaminawa. Finalmente, o curandeiro deu por finalizado o tratamento. Manate estava curado, e já podia tomar qualquer uma das substâncias que afetam a cabeça (ayahuasca, tabaco, álcool) e cujo consumo a doença tinha inviabilizado. O curandeiro afirmou ainda que tinha sido o primo de Manate o propiciador do feitiço. Ao saber disso, o irmão de Manate queria se vingar, mas o próprio Manate o desencorajou, dizendo que aquele homem já tinha morrido e que ele não era uma pessoa ruim para andar fazendo feitiço aos parentes do seu agressor. O significado sociológico dessa narrativa apenas pode ser plenamente compreendido levando em conta algumas das características do sistema xamânico yaminawa. Em primeiro lugar, e, contrariamente ao que é descrito nas etnografias sobre outras sociedades ameríndias, as acusações de agressões xamânicas se dão dentro do próprio grupo, ou seja, entre pessoas que têm alguma relação de parentesco, em ocasiões próximas. Esta circunstância se torna ainda mais dramática se considerarmos que os grupos yaminawa são relativamente pequenos: o conjunto das famílias que reconhecem laços de parentesco entre si e que conformam o grupo sociologicamente significativo raramente supera 500 pessoas, que, ainda, se encontram espalhadas em aldeias ou grupos habitacionais distantes. Em ocasiões, as acusações podem ser dirigidas a indivíduos que não são yaminawa, mas, nesses casos, proporcionalmente menos frequentes, existe uma relação de parentesco por afinidade: homens – embora o xamanismo não seja exclusivo do gênero masculino, são principalmente os homens que o praticam – que se casaram com mulheres yaminawa podem se tornar alvos das acusações, especialmente se lhes é reconhecida potência xamânica significativa. De qualquer forma, a tendência endógena11 das agressões xamânicas se reflete 175

Livro Conhecimento e Cultura.indd 175

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

no fato de que, mesmo estando as acusações dirigidas a pessoas de fora, elas pertencem sempre a grupos que, da mesma forma que os Yaminawa, fazem parte do conjunto denominado por Townsley de Pano do Sudeste e que configuram um complexo social e cultural amplo marcado por uma dinâmica sociopolítica de fissão e fusão, apresentando uma notável homogeneidade cultural e linguística (Townsley, 1994:244). Além disso, em todos os casos que me foram narrados em que o acusado era alguém de fora, existia algum tipo de relação entre vítima e agressor que foi construída no passado, ou seja, a relação tinha uma história de longa data. O caráter interno das acusações está diretamente ligado às razões que explicam, conforme a perspectiva nativa, as agressões xamânicas: segundo a maior parte das narrativas sobre esse tipo de agressões que coletei entre os Yaminawa, o ato foi motivado por uma conduta mesquinha por parte da vítima, ou seja, por uma atitude que nega e desqualifica a relação entre parentes. É importante considerar ademais que a prática xamânica não é, e era menos ainda algumas décadas atrás, exclusiva de especialistas; a iniciação aos conhecimentos e atividades xamânicas fazia parte do processo de se tornar adulto, de forma que era empreendida pelos jovens de forma geral, embora nem todos atingissem o mesmo grau de saber e potência. Nesse sentido, qualquer um podia ser, potencialmente, um agressor, embora as suspeitas recaíssem naqueles a quem se atribuía mais poder. Outra característica que remete à natureza interna dos processos de agressão/ acusação é a forma de identificação do culpável. Esta não se dá através da ingestão de substâncias xamânicas – embora essa possibilidade não seja negada –, senão que é a própria vítima quem, no momento de morrer e estando acordado, vê com clareza (“clarito”), afirmam os Yaminawa, o agressor no momento em que coletava os refugos usados para efetuar a agressão. Essa forma de identificação apenas é viável num sistema em que agressor e agredido se conhecem pessoalmente, ou seja, onde a distância social entre eles é curta. De fato, no caso que nos ocupa, o agressor procura ocultar o rosto ou pegar os refugos de costas para evitar ser identificado posteriormente. É como se fosse feita uma foto instantânea no ato que evidencia claramente sua culpabilidade. Finalmente, existe outro aspecto desse sistema xamânico que vale a pena destacar. Os Yaminawa afirmam rotundamente que apenas a pessoa que realizou a agressão, seu “dono”, pode revertê-la. Outra pessoa diferente pode realizar uma cura, mas apenas conseguiria adiar o falecimento da vítima, e não desfazer o feitiço. Esta lógica, acerca da qual os Yaminawa são categóricos e que se reflete de forma sistemática nas suas narrativas sobre casos de doenças ou mortes causadas por feitiçaria, apenas faz sentido num sistema endógeno: a) agressores e agredidos não apenas se conhecem, senão que, ainda, estão ligados por relações de 176

Livro Conhecimento e Cultura.indd 176

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

parentes coefetivas: b) as razões da agressão remetem à forma como as relações entre parentes são concebidas: c) a resolução do feitiço passa, necessariamente, pela resolução prévia do conflito que a gerou, na medida em que a vítima deve recorrer a seu agressor para atingir a cura. No caso descrito acima, é introduzida uma variante: o curador é externo, no caso, um ashaninka. Esse fato parece criar uma brecha no sistema: mesmo que a agressão tenha também uma procedência interna, surge a possibilidade de neutralizá-la de fora. Não se trata de um caso único. Outro exemplo, agora o de uma mulher que estava com problemas de saúde durante nossa estadia na aldeia, ilustra esse tipo de alteração dos princípios que regem o sistema uma vez se abra a possibilidade de recorrer aos serviços de xamãs externos ao grupo: Dessa vez, quando eu adoeci, quase morro. Isso aí foi o que tirou (o pai do meu genro). Ele me disse: “Quando você era nova, alguém do teu próprio grupo te mandou feitiço [te hizo daño]”. O pai do meu genro me extraiu um xubu [vasilha de barro usada para realizar os feitiços] muito pequeno. Essa vez, quando eu estava em Atalaya, eu quase morri, mas já sarei. Eu poderia ter morrido, se eu estivesse por aqui. Primeiro, tive diarréia com vômito. Levaram-me ao hospital, mas no hospital não puderam me fazer sarar. Colocaram-me soro, mas não melhorei. É melhor me levar lá. Meu genro me levou a seu pai. Eu sentei, estava como num sonho, eu estava olhando como bêbada, com meu marido, com minha filha. “Olha, mãe, olha o que te fizeram quando você era nova, quando você era da idade de tua filha. Ele tirou. Pessoas do teu próprio grupo. Ele tirou um xubu pequeninho. Felizmente, você não morreu, pouquinho te fez (mal). Se teu espírito tivesse ido embora, faria tempo que você teria morrido”, me disse (minha filha). “Hoje, já tirei, mas, quando você voltar, você vem me ver, falta ainda um pouco para tirar”, me disse (o pai do meu genro). Por isso, quando Tonoma acabar de fazer a canoa, eu vou lá de novo. Ele não me cobra, porque é o pai do meu genro. [...] Com tabaco, ele me assoprou, quando tirou, não tomou ayahuasca. P: Ele te disse quem te fez mal? Lá, antes, alguém me fez mal em Breu. Do meu próprio grupo (mis paisanos). Não me disse o nome de ninguém. “Do teu grupo, com certeza tua família, quem foi que te fez isso?”. Eu vi o xubu desse tamanho, pequenininho, eu o vi bem pintadinho. Mas ainda falta tirar um pouco. 177

Livro Conhecimento e Cultura.indd 177

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

“Lá, você vai adoecer de novo”. Eu vim aqui de novo, quase morro, aquele dia que eu te pedi remédios. Eu não podia caminhar. Eu me assustei. Por isso, eu tenho que voltar. P: Por que te fizeram mal? Muito me odiava. Um homem que me queria, ele pegou [refugos] de mim e entregou para seu pai. Felizmente, não matou meu espírito, pouco [mal me fez], me disse o pai do meu genro. A cada festa de caiçuma, eu queria morrer, eu olhava, parecia tonta, dessa forma eu fui a Atalaya. [...] chamava-se Wanaiyapa. Era meu primo. Ele pegou coisas minhas porque me queria e eu não o queria. Ele pegou (coisas minhas) e entregou a seu pai. Ele pegou meu cabelo, qualquer coisa: a cana que chupei, minha urina, ele pegou. Felizmente, ele não matou minha alma. [...] Eu o vi, eu o vi com clareza. Se a possibilidade de sarar se abre ante Txixëya é porque ela recorre a um curador não yaminawa, no caso um mestiço. É notável o fato de ela afirmar ter visto seu agressor, o que, segundo a maior parte dos depoimentos, só acontece quando a pessoa vai morrer; essa distorção talvez só seja possível na medida em que é alguém de fora quem realiza a cura. Inversamente, encontramos que as poucas narrativas em que o agressor é um não-yaminawa, o feitiço torna-se passível de neutralização por um curador yaminawa sem necessidade de se recorrer a seu autor. O sistema xamânico yaminawa, no que concerne particularmente às agressões, apresenta certas particularidades que o diferenciam do que é descrito em relação a outros grupos indígenas. Em geral, para outras sociedades ameríndias, as acusações de feitiçaria são descritas como sendo projetadas para o exterior, sendo responsabilizados outros grupos locais (Albert 1985; Buchillet 1990; Crocker 1985:237; Illius 1992; Orobitg Canal 1998:94; Pollock 1992; Shepard 1999:155)��������������������������������������������������������� , ou pessoas em situação marginal que, eventualmente, podem chegar a ser executadas (Gray 1997:111; Seeger 1981:87). Embora não seja possível fazer generalizações, já que a diversidade entre as diferentes populações das terras baixas da América do Sul, também a este respeito, é notável, se pode verificar na bibliografia uma associação entre distância sociopolítica e agressão xamânica, sendo que a possibilidade de receber um ataque letal aparece, ou pelo menos se incrementa notavelmente, quando se transpassam os limites das redes de parentesco. 178

Livro Conhecimento e Cultura.indd 178

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

De alguma forma, essa situação se inverte entre os Yaminawa. A agressão xamânica procede de um âmbito próximo, ocorre nas distâncias curtas onde as relações entre as pessoas adquirem uma densidade social e emocional maior. A abertura e ampliação do mundo social yaminawa, por meio de sua inserção na sociedade regional, implicou simultaneamente o acesso não apenas a outros agentes terapêuticos, mas também a outras lógicas que, elas sim, concebem a possibilidade de um curador neutralizar e reverter a agressão feita por outro homem. Poder-se-ia argumentar que, nos casos acima relatados, a capacidade atribuída aos xamãs não-yaminawa de retirar um feitiço derivaria de eles deterem um poder maior, já que é comum na Amazônia a estreita associação entre alteridade e potência xamânica (Chaumeil �������������������������������������������� 1999)����������������������������� . Entretanto, no discurso yaminawa o maior poder xamânico não é atribuído a agentes exteriores, mas a certas personagens específicas das gerações imediatamente anteriores às atuais: os xamãs mais poderosos são localizados entre os antepassados, dos quais ainda se tem memória. Afinal de contas, se no dizer dos Yaminawa, onde se manifesta principalmente o poder xamânico é no ato de agressão, e este parece vir sistematicamente do interior, não é de estranhar que os mais conceituados e admirados xamãs pertençam ao âmbito interno. Portanto, a habilidade demonstrada por xamãs não-yaminawa para curar pessoas atingidas pelo feitiço dos parentes não deriva da atribuição de um poder comparativamente superior. O que as narrativas anteriormente apresentadas estariam evidenciando não seria tanto um processo de resignificação de elementos externos à luz da lógica própria – isso também acontece, por exemplo, quando se incorporam elementos do homem branco nos cantos xamânicos (Townsley 1988:152-153) –, como tem sido reportado em várias etnografias (por exemplo, Brown 1988; Greene 1998), mas a capacidade dos Yaminawa de interagir com lógicas outras diferentes da própria; de aceitar possibilidades que, a princípio, não estão previstas, ou pelo menos não são dominantes, no próprio sistema. O diálogo – se for possível definir assim, pelo menos neste âmbito, a interação com a sociedade envolvente – é levado aqui até suas últimas consequências: não é feito unicamente um esforço de compreensão e de tradução, mas de aceitar para si as possibilidades abertas pelo outro. Poderíamos dizer que essa abertura à alteridade – a proverbial abertura ameríndia ao exterior – é também, neste caso, uma abertura à cura. Townsley, que fez trabalho de campo entre os Yaminawa na década de 1980 e estava especialmente preocupado com os processos de transformação nessa sociedade desencadeados com o contato, observa que, diferentemente de outros âmbitos da cultura yaminawa, o xamanismo conheceu nesse contexto um momento de florescimento e não de decadência como uma teoria da aculturação poderia esperar, e o autor atribuiu essa pujança ao fato de serem os xamãs aqueles 179

Livro Conhecimento e Cultura.indd 179

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

que desenvolvem a capacidade de estabelecer ligações com o exterior (Townsley 1988:151)��������������������������������������������������������������������� . Poderíamos dizer que esse sucesso não se deve à mera aptidão do xamanismo para estabelecer relações com o exterior; sua produtividade em termos sociológicos e cosmológicos deriva, me parece, da sua capacidade para se inserir num diálogo inteligível. É possível dimensionar melhor a particularidade do xamanismo como material condutor desse diálogo se levarmos em conta que, em outros contextos, diferentemente, a possibilidade de aceitar a lógica dos não indígenas esbarra em muros aparentemente infranqueáveis. A ética que governa o ato de dar – que se poderia resumir no imperativo de “dar o que é solicitado” – me parece um dos exemplos mais claros, e se encontra no âmago da principal crítica moral dos Yaminawa aos não indígenas a que fiz alusão no início do artigo. Contudo, que seja o xamanismo esse âmbito privilegiado de conexões inteligíveis não deve surpreender se considerarmos que se trata de um produto híbrido no qual as culturas indígenas fizeram o aporte fundamental.

180

Livro Conhecimento e Cultura.indd 180

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

Notas Uma versão preliminar do presente texto foi apresentada no Painel coordenado por Esther Jean Langdon e Maria Manuel Quintela no IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia. Agradeço a Jean Langdon por seus comentários, que aproveitei para revisar o texto e apresentá-lo novamente em um dos encontros organizados no marco do projeto PROCAD DAN/UNB–DEAN/ UFPR. Agradeço também aos participantes desse encontro por seus comentários, e a Marcela Coelho de Souza pela leitura cuidadosa do texto e por suas sugestões. 1 Os dados nos quais se baseia o presente texto são fruto do trabalho de campo desenvolvido, junto com Miguel Carid Naveira, em várias etapas entre 2000 e 2001, e posteriormente em 2003, principalmente na aldeia yaminawa de Raya, localizada na cabeceira do rio Mapuya (Departamento de Ucayali, Amazônia peruana). Ver Pérez Gil 2006 e Carid Naveira 2007. 2 Comunidad Nativa (CN) é a figura jurídica, instaurada pela Ley de Comunidades Nativas de 1974, que designa os territórios demarcados pelo governo peruano a favor das populações indígenas e que corresponde, grosso modo, ao conceito de Terra Indígena no Brasil. Sobre a legislação e o processo de demarcação de CNs na Amazônia peruana, ver Gray 1998. 3 Embora houvesse tentativas de estabelecer contato permanente em vários momentos ao longo do século XX, tanto por parte dos Yaminawa como por parte de brancos e mestiços, elas foram infrutíferas, de forma que os Yaminawa se mantiveram desconectados da sociedade regional até o início da década de 1960 (Pérez Gil 2009). 4 Esse termo se refere a um conjunto de plantas da família Cyperaceae amplamente utilizadas por mestiços e vários grupos indígenas da Amazônia peruana e equatoriana para finalidades de tipo terapêutico, preventivo, afrodisíaco e propiciatório, principalmente (Tournon, Caúper Pinedo e Urquia Odicio 1998)���������������������������������������������������������������������������������� . Embora sejam usadas de forma generalizada tanto por grupos mestiços quanto indígenas, os Yaminawa associam os piri-piri aos Ashaninka, dado que, segundo explicam, eles foram os primeiros a lhes ensinar seu uso. 5 Trata-se de termos usados de forma generalizada na Amazônia peruana. Os ícaros são rezas cantadas usadas por xamãs e curandeiros; daño é uma categoria usada para se referir às doenças causadas por feitiçaria; por sua vez, brujo é um termo usado para denominar pessoas de grande poder xamânico, e que poderia se traduzir por “xamã” ou “pajé”. 6 Entre os autores que têm tratado aspectos daquilo que chamo xamanismo regional, podemos citar Luna (1986, 1992) e Chaumeil (1988a, 1988b, 2000). 7 Cutipado é um termo de origem quíchua que designa certos tipos de doenças ou mal-estares atribuídos ao ataque do espírito de algum animal, árvore ou objeto. Diferentemente, o malo-aire é causado pelo espírito de um morto. Em ambos os casos, tratam-se de doenças que afligem, principalmente, as crianças. 8 Disa é uma categoria que se refere a um conjunto muito amplo de plantas medicinais usadas tradicional e corriqueiramente entre os Yaminawa e que, por algumas especificidades (lugar onde são coletadas, formas de aplicação, linhas de transmissão de conhecimento, dietas exigidas) se diferenciam de outras categorias de plantas medicinais, incorporadas especialmente a partir do contato, como são, por exemplo, os piri-piri. Sobre as diferentes categorias de plantas usadas em contextos de agressão e de cura, ver (Carid Naveira & Pérez Gil 2002) 9 O Sheshea é um afluente do meio Ucayali cuja cabeceira converge com a do Huacapistea, onde estava situada a aldeia de Paititi na época. As quatro comunidades estabelecidas no Sheshea são Ashaninka, e existe provavelmente um tráfego entre as aldeias Ashaninka desse rio e as do Huacapistea. 10 Termo quíchua que faz referência aos “brancos”. 11 Cabe destacar que, entre os Yaminawa, predomina de forma muito marcada uma endogamia matrimonial: a preferência é por casar com alguém de dentro do grupo ou de algum grupo cultural e linguisticamente próximo. Paralelamente, a atividade guerreira, que tinha no rapto de mulheres uma das suas principais motivações, ocorria apenas com grupos próximos em termos culturais e linguísticos. Não registramos, por exemplo, nenhum caso de uma mulher raptada que não fosse falante de línguas pano muito similares ao yaminawa. 181

Livro Conhecimento e Cultura.indd 181

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

Referências ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la maladie, système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). Doctorat (Thèse), Nanterre, Laboratoire d’ethnologie et de sociologie comparative, Université de Paris X. BROWN, Michael. 1988. “Shamanism and its discontents”. Medical Anthropology Quarterly, 2(2):102. BUCHILLET, Dominique. 1990. “Los poderes del hablar. Terapia y agresión chamánica entre los indios Desana del Vaupés brasilero”. In: E. Basso & J. Sherzer (eds.), Las culturas nativas a través de su discurso. Quito: Abya-Yala. pp. 319354. CAMINO, Alejandro. 1977. “Trueque, correrías e intercambios entre los Quechuas andinos y los Piro y Machiguenga de la Montaña peruana”. Amazonía peruana, I(2):123-140. CARID NAVEIRA, Miguel Alfredo. 2007. Yama yama: os sons da memória. Afetos e parentesco entre os Yaminahua. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina. CARID NAVEIRA, Miguel Alfredo & Laura PÉREZ GIL. 2002. “Informe antropológico sobre los Yaminawa del río Mapuya (Alto Ucayali, Perú)”. Ateliers, hors série:161-187. CROCKER, Christopher. 1985. Vital Souls: Bororo Cosmology, Natural Symbolism, and Shamanism. Tucson: University of Arizona Press. CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1988a. “Le Huambisa défenseur. La figure de l’indien dans le chamanisme populaire (région d’ Iquitos, Pérou)”. Recherches amérindiennes au Québec, XVIII(2-3):115-126. ______. 1988b. “Réseaux chamaniques contemporaines et relations interethniques dans le haut Amazone (Pérou)”. In: C.E. Pinzón, R. Suárez & G. Garay (eds.), Otra América en construcción. Amsterdam: 46 ICA. ______. 1999. “El Otro Salvaje: chamanismo y alteridad”. Amazonía peruana, 26:7-30. ______. 2000. “Introduction: chasse aux idoles et philosophie du contact”. In: D. Aigle, B. Brac de la Perrière e J-P. Chaumeil (eds.), La politique des esprits. Nanterre: Société d’ethnologie. pp. 151-164. GOW, Peter. 1994. “River People: Shamanism and History in Western Amazonia”. In: N. Thomas e C. Humphrey (eds.), Shamanism, History & the State. Ann Arbor: University of Michigan Press. pp. 99-113. ______. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford/New York: Oxford University Press. GRAY, Andrew. 1997. The Last Shaman.Change in an Amazonian Community. Oxford: Berghahn Books. 182

Livro Conhecimento e Cultura.indd 182

26/4/2011 12:20:51

Laura Pérez Gil

______. 1998. “Demarcando desarrollo”. In: P.G. Hierro, S. Hvalkof & A. Gray (eds.), Liberación y derechos territoriales en Ucayali - Perú, Documento IWGIA, 24. Copenhague: IWGIA. GREENE, Sharon. 1998. “The shaman’s needle: development, shamanic agency, and intermedicality in Aguaruna Lands, Peru”. American Ethnologist, 25(4):634658. ILLIUS, Bruno. 1992. “The concept of nihue among the Shipibo-Conibo of eastern Peru”, In: E.J. Langdon & G. Baer (eds.). Portals of Power. Shamanism in South America. Albuquerque: University of New Mexico Press. LUNA, Luis Eduardo. 1986. Vegetalismo. Shamanism among the Mestizo Population of the Peruvian Amazon. Stockholm Studies in Comparative Religion, 27. Stockholm: Almqvist & Wiksell International. ______. 1992. “Ícaros: Magic Melodies among de Mestizo Shamans of the Peruvian Amazon”. In: E.J. Langdon & G. Baer (eds.), Portals of Power. Shamanism in South America. Albuquerque: University of New Mexico Press. pp. 231-253. OROBITG CANAL, Gemma. 1998. Les Pumé et leurs rêves. Amsterdam: Éd. des Archives Contemporaines. PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses Yaminawa: Xamanismo y socialidade na Amazônia Peruana. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina. ______. 2008. “As Teorias Yaminawa  sobre Saúde e Doença no Contexto do Diálogo Intercultural”. Trabalho apresentado em II Seminário de Etnologia e Indigenismo: O Campo da Saúde Indígena no Brasil em perspectiva. ______. 2009. “Perspectivas indígenas sobre los mestizos: el caso Yaminawa (Amazonia peruana)”. Trabalho apresentado na VIII Reunión de Antropología del Mercosur. POLLOCK, Donald. 1992. “Culina shamanism. Gender, Power and Knowledge”. In: E.J. Langdon & G. Baer (eds.), Portals of Power. Shamanism in South America. Albuquerque: University of New Mexico Press. pp. 25-40. SANTOS GRANERO, Fernando. 1992. Etnohistoria de la Alta Amazonia (Siglos XVXVIII). Colección 500 años, 46. Quito: Abya-yala. SEEGER, Anthony. 1981. Nature and society in central Brasil. Cambridge: Harvard University Press. SHEPARD, Glenn H. 1999. Pharmacognosy and the Senses in Two Amazonian Societies. PhD Thesis in Medical Anthropology, University of California at Berkeley. TOURNON, Jacques, Caúper Pinedo, Samuel & Urquia Odicio, Rafael. 1998. “Los ‘piri-piri’, plantas paradójicas de la Amazonia”. Anthropologica, 16:215-240. TOWNSLEY, Graham. 1988. Ideas of order and patterns of change in Yaminahua society. PhD. Thesis, Cambridge University.

183

Livro Conhecimento e Cultura.indd 183

26/4/2011 12:20:51

Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino

______. 1994. “Los Yaminahua”. In: F.S. Granero & F. Barclay (eds.), Guía Etnográfica de la Alta Amazonía, vol. 2. Quito: FLACSO/IFEA. ZARZAR, Alonso. 1983. “Intercambio con el enemigo; etnohistoria de las relaciones intertribales en el Bajo Urubamba y Alto Ucayali”, In: A. Zarzar & L. Román (eds.), Relaciones intertribales en el Bajo Urubamba y Alto Ucayali. Lima: CIPA. pp. 11-86.

184

Livro Conhecimento e Cultura.indd 184

26/4/2011 12:20:51

Beber e brincar: notas sobre o conhecimento despertado pela embriaguez

Nicole Soares Pinto

Vê-se aparecer uma função por assim dizer catártica do mito: ele libera em sua narrativa uma paixão dos índios, a obsessão secreta de rir daquilo que se teme. Ele desvaloriza no plano da linguagem aquilo que não seria possível na realidade e, revelando no riso um equivalente da morte, ensina-nos que, entre os índios, o ridículo mata. (Clastres, De que riem os índios?) Uma breve descrição das chichadas A chicha, tuerô na língua Wajuru, ou tuerô jati, quer dizer, chicha braba, azeda, fermentada, é feita atualmente em sua quantidade majoritária de macaxeira, mas conta-se que no passado se fazia muita chicha de milho, de cará e de amendoim.1 Não é que essas não sejam mais produzidas; de fato, em algumas casas, elas têm mesmo um valor muito especial: são chichas que remetem ao passado na maloca. Seu consumo, no entanto, mesmo que fermentadas, é muito mais doméstico que o da chicha de macaxeira, esta sim dando ensejo a grandes reuniões. A chicha de macaxeira fermentada é consumida coletivamente em duas ocasiões: ou como pagamento de um trabalho coletivo para um grupo doméstico (abertura, coivara, plantação ou limpeza de roças, limpeza dos caminhos e terreiros, colocação do telhado) ou oferecida em festas: aniversários (dos mais jovens), casamentos, datas comemorativas (Natal, Ano Novo etc.) sem que necessariamente aqueles que a consomem tenham trabalhado para o grupo doméstico que a produziu. Quanto maior for o grau de fermentação mais pessoas se reunirão ao redor da chicha; quanto menor, mais doméstico será o seu consumo. O ideal é que todas as chichas produzidas fiquem brabas e o “círculo” de consumo vai 185

Livro Conhecimento e Cultura.indd 185

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

aumentando na medida em que aumenta seu teor alcoólico. As mulheres trabalham intensamente em sua produção: não é incomum que uma família beba chicha fermentada de duas a três vezes por semana, ou que ofereça uma chichada neste mesmo período de tempo. Também é recorrente que casas diversas estejam oferecendo chicha num mesmo dia. Na aldeia Ricardo Franco,2 a proximidade das casas permite a todos verem ou saberem em qual casa as mulheres estão produzindo a chicha (moendo, carregando água etc.). Ali, cada casa tem o seu terreiro, e é ele que delimita o espaço de convivência da família. Ele marca uma descontinuidade entre o mato que cresce ao redor e a casa. As casas, dispostas em fileiras que acompanham o curso do rio, desde sua margem, são bastante próximas umas das outras. Mas a proximidade é maior entre casas de uma mesma fileira (em menos de dez passos pode-se chegar à porta ao lado), do que entre casas de fileiras diferentes. Estas fileiras de casas, dispostas num eixo horizontal, dispõem também caminhos horizontais, “plenamente transitáveis”. São caminhos públicos mais largos. Transitar por ali é um meio seguro de a pessoa tornar visível seu deslocamento. Entre uma fileira e outra, entretanto, existem espaços cujo mato cresce em torno dos caminhos. Um eixo vertical, entre fileiras de casas, dispõe os caminhos que as pessoas utilizam para irem até o rio ou saírem para a mata e a roça (distantes dali), os que elas andam para se visitarem, e os que elas não andam para se evitarem – caminhos mais privados, pois passam por dentre os terreiros das casas. Quiçá a frase que eu mais escutei tenha sido “tem chicha lá no fulano”. E embora o oferecimento de uma chichada seja algo de amplo conhecimento dos moradores da aldeia, bem como o grau de fermentação da chicha, ainda assim, ninguém iria à casa que a oferece se, na manhã do dia em que será bebida, o marido da produtora não vá de casa em casa convidando os participantes. Convidase para beber na casa do grupo doméstico que a produziu, e as pessoas se deslocam até o local. Uma exceção importante à etiqueta de não se comparecer onde não se foi convidado, conforme pude notar, se dá nas chichadas oferecidas no Chapéu de Palha que fica entre as casas Djeoromitxi e onde se bebe normalmente as chichas produzidas nestas casas. Ali, grandes festas acontecem e é comum que muitos cheguem, vindo de chichadas realizadas em suas casas ou em outras. Cocho é o nome dado ao recipiente de madeira talhada suspenso sobre forquilhas onde a chicha é fermentada e armazenada. É dele que as pessoas irão se servir. Não é incomum que galões de plástico de todos os tamanhos também sejam usados para isso. Nestes casos, referem-se aos galões de acordo com sua capacidade de armazenamento: “lá em casa tem um cocho e mais dois 100 litros, cheinhos de chicha para [a gente] secar”, por exemplo, é um modo de convidar alguém para ir beber chicha na casa daquele que anuncia suas reservas. E 186

Livro Conhecimento e Cultura.indd 186

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

ninguém as anuncia para alguém com quem não pretenda beber junto. A chicha, assim, não roda a aldeia senão quando é levada à casa dos velhos que têm dificuldades para andar. Uma casa com um cocho cheio de chicha fermentada é mesmo um ponto “fixo” de referência, uma espécie de centro, e são as pessoas que devem se deslocar até ele. O ponto de referência se mantém pelo menos até que a chicha acabe, quando é a vez de outro tornar-se saliente neste sentido. As chichadas oferecidas como pagamento de trabalho coletivo ou numa festa comemorativa são promovidas seja por homens, seja por mulheres, no primeiro caso; e pelo grupo doméstico como um todo, sem a divisão por gênero, no segundo. Assim, na organização do trabalho, se este envolverá só homens (como derrubada de mata, colocação de telhado, limpeza dos caminhos e terreiros) diz-se que a chicha é dos homens, se é um trabalho que envolva as mulheres (mais comumente limpeza de roça e plantação de manivas) diz-se que a chicha é das mulheres. Neste último caso, é a dona da chicha que irá à casa das outras mulheres para convidá-las. Tanto homens quanto mulheres, sejam eles jovens recém-casados ou pessoas mais “maduras” (aqueles que já são avós ou bisavós, mas que não são tão velhos que não trabalhem mais) podem organizar um trabalho coletivo. Desta forma, há uma grande circulação da função de organizador e trabalhador, produtor e consumidor, em que a chicha aparece como uma espécie de dádiva por meio da qual as pessoas se comunicam e se encontram, cada vez ocupando uma posição diferente. Fica claro, porém, que nesta circulação por assim dizer simétrica da função de organizador, são os homens mais velhos os que tendem a desempenhar mais facilmente esta função. Quanto mais filhas solteiras um homem tiver para auxiliar sua esposa na preparação da bebida, quanto mais genros ou filhos com quem possa contar para o trabalho ele puder reunir, mais apto estará a ocupar tal posição, pois um cocho de chicha sempre cheio tem o poder de reunir muitas pessoas para o trabalho. O desenrolar das duas ocasiões em que se bebe chicha com muitas pessoas, como pagamento de trabalho coletivo ou numa festa comemorativa, têm elementos comuns e outros díspares. Seja numa festa, seja numa chichada para trabalho de homens ou mulheres, é a elas que normalmente cabe o serviço da chicha, e da preparação e distribuição de alimentos. Enquanto numa festa não pode faltar a dança, as chichadas feitas por conta do trabalho não necessariamente evoluem para isso. Na ocasião de trabalho, é comum que as pessoas cheguem bem cedo, tomem um pouco da chicha e sigam o organizador até o local do trabalho, onde ele dará as instruções. Voltam normalmente antes de o sol estar a pino, e prosseguem bebendo chicha pela tarde e, às vezes, à noite. As festas se iniciam um pouco mais tarde, quase sempre no crepúsculo, e o ideal é que prossigam noite adentro, até quase o amanhecer. 187

Livro Conhecimento e Cultura.indd 187

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

Nas duas ocasiões, é oferecida comida pelo grupo doméstico onde a chicha foi produzida. No primeiro caso, entretanto, só come quem trabalhou; no segundo, a todos os convidados é oferecido o alimento. Por sua vez, quando o alimento é visto como pagamento de um trabalho, o mais comum é que se ofereça peixe (pescado pelo(s) filho(s) homens daqueles que organizaram, mas moqueado pelas mulheres da casa), acompanhado de macaxeira cozida. Nesta ocasião, os trabalhadores se servem, comem com as mãos todos de um mesmo prato, deixado ao chão (normalmente no centro onde estão reunidos). Se não há trabalho envolvido, somente as velhas e as mulheres com filhos bastante pequenos eu vi comerem nestas ocasiões, enquanto as outras permanecem unicamente bebendo chicha. Se é um trabalho organizado pelas mulheres, ocasião mais rara, a situação se inverte. Mas mesmo assim homens com filhos pequenos não se alimentam. Na ocasião da festa, o ideal é que se tenha carne de porco, ou tracajá/zé prego, ou tartaruga (carne de boi também, mas isso só se a ocasião for muito especial, como no fim do ano), e seja acompanhada por arroz ou macarrão. As pessoas são servidas em pratos e talheres individuais pelas mulheres do grupo doméstico que está oferecendo a festa. Elas devem cuidar para que a quantidade de comida dê para todos, para que os convidados bebam a sua chicha em fartos goles, fiquem assim satisfeitos e não “saiam por aí falando mal”. Nessas festas, as pessoas aparecem com suas melhores roupas, os homens vestem suas camisas e as mulheres a saia e a blusa mais nova que tiverem. Depois que são convidados, o que normalmente é feito pelo marido ou por um filho homem daquela que coordenou a produção de chicha na sua casa, os casais vão juntos com seus filhos pequenos à casa onde está sendo oferecida a bebida. Chegado ao terreiro da casa, onde de praxe se bebe chicha, invariavelmente deve-se proferir um cumprimento, o que depende da hora do dia: diz-se “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Imediatamente o casal se separa: a esposa junta-se às outras mulheres e o esposo aos outros homens já presentes. Ninguém se senta antes que o dono da chicha lhe dirija a palavra, e esta de fato é a sua primeira frase para aqueles que chegaram: “senta, fulano!”. Se não lhe for oferecida uma cuiada de chicha logo depois, este é certamente um bom motivo, talvez o principal, para que não permaneça no local. Oferecida a primeira cuiada, continua-se a beber: outro bom motivo para permanecer no local até que o cocho tenha “secado”. Assim que isso acontece, deve-se proceder imediatamente à saída, uma regra de etiqueta muitas vezes apontada a mim e que parece ter o objetivo de evitar brigas. Enquanto se toma chicha estão todos alegres e risonhos, quando não se tem mais a bebida este estado de ânimo pode imediatamente se inverter. Na saída, normalmente feita pelo 188

Livro Conhecimento e Cultura.indd 188

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

casal, cada um dirige-se ao(s) dono(s) da casa dizendo “já vou”, ao que este responde “está bom”. Vai-se para outro local onde se está oferecendo chicha – e todos sabem onde – ou, caso se esteja bêbado demais, segue-se direto para sua própria casa.3 Durante as chichadas, as pessoas comumente se dispõem/sentam em círculo. O cocho ou os galões que armazenam a chicha não ficam ao centro, mas encostados numa parede ou algo que o valha, interceptando este círculo e não raramente dividindo-o em uma parte feminina e outra masculina. A distribuição, a partir dos recipientes, é feita pelos donos da casa ou por seus filhos, mais comumente as filhas mulheres, mas pode acontecer que um filho homem também sirva os convidados. Reserva-se uma cuia (ou caneca) para pegar a chicha no cocho e depois despejá-la na outra que será entregue. É incomum que alguém peça abertamente para ser servido; as pessoas chegam, sentam (depois de instados a fazê-lo) e esperam a primeira cuiada. Em cada rodada, ou assim que o “cocho é aberto”, aquele que está encarregado de servir os demais deve primeiro servir-se de uma cuiada para depois passar a servir os outros presentes. Em grandes chichadas, é comum que a dona da casa entregue uma cabaça grande4 e duas cuias para os velhos que ali estão. Esses velhos, então, servem aqueles que estão ao seu redor, observando a etiqueta de se servirem primeiro para depois servirem os outros. Aquele que está servindo a chicha observa a disposição daqueles que estão sentados e os serve um em seguida do outro, até que a embriaguez vá subindo de nível e uma ordem não se faça mais necessária. Na primeira cuiada, a quantidade de chicha servida é sempre maior e é de bom tom que se tome num gole só. A etiqueta não estará completa se depois desse belo gole não se franzir o cenho soltando uma espécie de grito, numa demonstração de que a chicha está boa, quer dizer, azeda, ou seja, embriagante. É bonito que se faça isso depois de beber a primeira cuiada num gole só, mas fica feio se o movimento de secar a cuia de uma vez se repetir em demasia. Deve-se saber beber. Seguindo com o manual de etiquetas, é necessário dizer que de maneira alguma se recusa uma cuiada oferecida. Caso não se queira beber vai-se embora ou nem se comparece ao local. “Secar o cocho”, ou seja, beber toda a quantidade de chicha disponível parece ser uma obrigação moral para os que ali estão. E isso implica, não raramente, beber coletivamente (20 ou 30 pessoas) mais de 300 litros de cerveja de macaxeira (nas festas maiores que ocorriam no Chapéu de Palha essa quantidade podia dobrar). Aqueles já embriagados ou de “barriga muito cheia”, mas que desejam continuar a beber, normalmente induzem o vômito para que consigam prosseguir em sua empresa. Não é comum que se vomite no mesmo local onde as pessoas estão bebendo, por certo é mais adequado que se faça isso um pouco mais afastado. Franz Caspar (1953) já registrara o vômito 189

Livro Conhecimento e Cultura.indd 189

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

coletivo entre os Tupari nas ocasiões de suas festas regadas à bebida fermentada. Nas festas em que participei, raramente pude presenciar mais de dois homens vomitando um ao lado do outro, mas quando isso aconteceu percebi que se tinha reservado um local específico para tal, mais ou menos longe dos olhos daqueles que estavam se divertindo na festa. Enquanto numa festa não pode faltar a dança (ao som frenético dos forrós da região Norte do Brasil, entrecortados pelo som compassado das músicas makurap, entoadas por velhos bêbados), as chichadas feitas por conta do trabalho não necessariamente evoluem para isso. O momento da dança é aquele onde a efusividade é maior. Dança-se ao molde regional, em casal, e à mulher cabe esperar que o homem venha tirá-la para dançar. Jamais se recusa o pedido de dança de um homem, pois seria uma afronta demasiado séria e motivo de tristeza para aquele que teve seu pedido rejeitado. Ainda que marido e esposa dancem eventualmente juntos, a graça maior está na troca dos casais. Da fala inicial um pouco recatada e talvez até tímida, não sobrou nada. Depois de muita dança observam-se as jovens mães com seus filhos no colo quase caindo, o olhar perdido. Mulheres podem estar com o olhar marejado, lembrando de seus parentes mortos, sentindo saudades. Outros falam demasiado alto, e riem, riem, riem. As velhas também gritam com seus netos, ou dão muita risada com suas cunhadas. Os velhos ao chão, deitados, dormindo. Também as crianças dançam em meio aos casais. Já não existe mais ordem na disposição das pessoas e na distribuição da chicha e o cocho é visitado por quem quer beber. Formam-se grupinhos ao redor do terreiro central, cada um conversando coisas diferentes, ou simplesmente bebendo e olhando os outros dançarem. As mulheres já saem muito mais juntas para atender a necessidade de urinar. Os jovens vêm e vão, se escondem no escuro para namorar. Neste estágio, é difícil que alguém chame a atenção de outros por alguma coisa. Não existe mais uma conversa “pública”, nem uma atuação “pública”. Cada um está compenetrado em dançar e beber, beber e dançar. Ou lembrar sozinho de alguém distante. “Nicole está bêbada?” Era invariavelmente o modo como as pessoas se aproximavam de mim. Ou, pelo reverso, “estou muito bêbada(o), Nicole”. Assim se começa a “conversar” neste estágio da festa. Uma ou duas perguntas posteriores, risadas e, caso esteja um ouvido disponível, longas lamentações ou causos. Embriagado, um homem lamentava-se pela morte do filho e me contava que seu pai, falecido xamã, queria “levá-lo” (para o céu), mas acabou levando seu irmão, falecido há não muito tempo. Era embriagado também que ele me contava ter medo de morrer logo, pois achava que era isso o que iria acontecer. Também esse foi o tema da primeira conversa que eu tive com sua esposa: entre cuiadas de chicha ela me contou que seu filho morrera há pouco. Não raro, 190

Livro Conhecimento e Cultura.indd 190

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

nas chichadas, uma de minhas interlocutoras vinha me dizer sobre seu desejo de ir embora comigo, pois a morte de seu filho, que estava pra “completar ano”, ainda a deixava demasiado triste. Ela não aguentava lavar roupa no mesmo porto em que ele tinha falecido, era “assim estar vendo ele”. Outras meninas também manifestavam sua vontade de se distanciar dali, vinham me perguntar se acaso eu não poderia levá-las para minha cidade. Uma recém-viúva, depois que soube que meu pai era separado de minha mãe, perguntou-me se eu não poderia levá-la comigo, pois assim ela poderia casar com ele. Disse-me que quer mesmo um marido eré (branco), pois ela não gosta de comer a mesma coisa todo dia. “Eu gosto de tudo variado. Eu quero um marido eré. Eu gosto mesmo é de comer mortadela!” *** O que está em jogo na vontade de se distanciar, de viver na cidade ou na pressuposição antecipada da morte? Escreve Lima (2005: 354) que o sentido que a embriaguez assume no sistema yudjá poder fazer-nos entender muito sobre a “descontinuidade máxima” proposta por Lévi-Strauss na análise dos venenos nas Mitológicas. A definição do autor se refere a algo “como uma união” de duas categorias “que determina sua disjunção, já que uma diz respeito à quantidade contínua e a outra, à quantidade discreta” (Lévi-Strauss 1991:267 apud Lima 2005:354). Para Lima, neste auxílio recorre-se com maior precisão ao conceito de ritual,“que situa a este para além da socialidade doméstica, ou, [...], para um além da vida que é ao mesmo tempo menos real do que esta e potencialmente relacionado ao ponto de vista de Outrem” (Lima 2005:354-5). Como entender o sentido do que se estende para além da vida e que traz, na letra indígena, o signo indelével do “brincar”? O que dizem os Wajuru e seus povos vizinhos, em suas brincadeiras, sobre a possibilidade de se ocupar uma posição outra? Até onde entendo, as chichadas apresentam-se como um microcosmo da dinâmica social na T.I. Rio Guaporé. Tal microcosmo, entretanto, não apresenta um caráter de modelo da vida cotidiana e caracterizada pela socialidade doméstica, mas, em sentido oposto, esclarece a própria possibilidade desta última ao enfrentá-la, desafia e rivaliza seus sentidos. Ao mesmo tempo, não se distingue dela por uma temporalidade de amplo espectro temporal, como seria o caso dos grandes ciclos sazonais ou dos ritos marcados por sua aguda extraordinariedade. Teríamos, neste sentido, espaços rituais produzidos ininterruptamente e em velocidade vertiginosa, onde vertem sentidos que se esboçam em contraposição à socialidade doméstica e à sua geometria social cotidiana. Detenhamo-nos um pouco sobre esta última. Por meio da ideia de fluxo de “sangue” paterno são 191

Livro Conhecimento e Cultura.indd 191

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

operados aqui recortes no campo do parentesco, estabelecendo uma geometria vertical discriminadora de relações agnáticas e uterinas. O modo agnático de recrutamento grupal se impõe na composição da socialidade doméstica: o espaço dos consanguíneos de mesmo grupo, de um ponto de vista masculino, e da afinidade de grupo, do ponto de vista feminino. Os afluentes da margem direita do médio rio Guaporé abrigaram, durante tempos imemoriais, grupos indígenas Tupi-Tupari e de língua isolada Jaboti. Sempre mencionados em conjunto seja pela historiografia, seja pela etnologia, tais grupos ora foram definidos como parte de uma área cultural (Galvão 1960), ora como um complexo cultural (Maldi 1991). O consumo de chicha fermentada em cerimônias, segundo Maldi, merece uma atenção especial: aliada e justaposta aos casamentos interétnicos, configura-se como principal meio de integração entre esses grupos. Adverte Maldi que sua importância só pode ser devidamente observada quando iluminada pela segmentação territorial virilocal, proporcionada pela definição e nominação grupal em linha paterna: a existência do que a autora nomeia de “subgrupos” para cada povo, territorialmente definidos e nominados, cuja origem remonta às épocas míticas. As disposições do momento atual chamam atenção por suas continuidades e rupturas com o tempo passado esboçado por Maldi. No passado, com a existência de subgrupos territorializados claramente definidos, isto é, separados, distanciados, a distância entre as malocas (como são referidas as habitações do tempo antigo) era percorrida pela disposição de beber a chicha de parentes outros produzida no âmbito desses segmentos territoriais: para encontrar os outros grupos indígenas com vistas à troca de mulheres, artefatos, e festejar tal encontro com muita chicha e música, e por vezes, com a guerra entre povos vizinhos. Atualmente o adensamento espacial das relações próprio do alocamento de grupos diversos em uma mesma terra indígena,5 produz uma espacialidade em que a unidade de produção da chicha é a casa, mas cuja composição territorial, por meio da proximidade das casas de irmãos e de suas famílias extensas (definidas pela virilocalidade do casamento entre grupos étnicos distintos), condensa as linhas agnáticas definidoras do pertencimento grupal (aquele que indica os parentes próprios e que projeta os cônjuges possíveis para fora dele). Caso em que a existência de subgrupos é inoperante para maioria dos povos ali residentes, sendo a única exceção mais vistosa o caso dos Makurap, que são, talvez por conta disso, aqueles que podem se casar com cônjuges de subgrupos Makurap distintos e também mais facilmente, no caso dos homens, reunir genros ao seu redor. As habitações atuais são casas, construídas ao molde regional, onde habita a família conjugal, ou o casal com seus filhos e filhas solteiros e os filhos recém-casados que trouxeram a esposa para junto de seu grupo doméstico. Até 192

Livro Conhecimento e Cultura.indd 192

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

que o novo casal construa sua casa contiguamente à casa do pai do marido. Na sociabilidade doméstica (caracterizada pela partilha de alimentos, carinho e cuidados entre parentes de casas diversas e contíguas), os homens não convivem com seus genros/sogros ou cunhados. Ao mesmo tempo, supõem-se a afinidade de mesmo sexo para o ponto de vista feminino (o que é acionado pelas mulheres na produção da bebida fermentada, onde a sogra/mãe orienta os trabalhos de sua nora e filha). Os homens de mesmo grupo habitam casas contíguas e as mulheres estão em contiguidade com mulheres de outros grupos. Assim, mesmo com a proximidade das casas é possível visualizar “setores residenciais” distinguidos pela composição grupal/étnica. A separação das tribos é concebida como um movimento primordial, empreendido sobre a terra pela primeira humanidade, depois que a morte passou a existir. A multiplicidade de povos/coletivos (“subgrupos”) encobertos pelos etnônimos, assim como a possibilidade de enunciação desses, é produzida por distinções (linguísticas e territoriais) concebidas como primordiais. Tais distinções são ancoradas nas narrativas de estrutura mitológica que versam sobre o começo dos tempos. O registro mitológico Wajuru, com temas bastante similares aos compartilhados por diversos povos vizinhos, aciona e suporta tais diferenças: depois que os humanos, descobertos pelos irmãos demiurgos, saíram de debaixo da terra, dois eventos, que podem ou não serem descritos conjuntamente por um narrador, marcam as descontinuidades sociológicas. O primeiro, quando todos estavam sentados, o irmão mais novo, aquele mais teimoso, começou a falar diversas línguas e foi ensinando a cada um uma língua diferente, inclusive a língua dos brancos – localizados no início dos tempos. Passou-se então uma grande confusão e desentendimento entre eles. O segundo evento deu-se depois que este irmão (o mais novo) pensou na morte e ela começou a existir. A emergência da morte marca o momento em que as pessoas começam a andar sobre a terra, orientadas pelos irmãos descobridores. A partir daí cada grupo ficou em um determinado lugar, todos se territorializaram. Desde então essas pessoas não mais se misturaram, formaram tribos. Os movimentos primordiais marcam uma distância que é lembrada como aquela que existia nos tempos da maloca. Neste tempo, diz-se, as tribos se visitavam para tomar chicha, quando tinham a oportunidade de ver seus parentes outros. Ao passo que hoje estão eles todos misturados. Lembram ainda que na maloca todas as mulheres faziam a chicha juntas. Assim, como as visitas se davam entre malocas, era a chicha produzida pela totalidade das mulheres do local o que fazia a mediação entre os assentamentos. No contexto atual, a chicha é produzida nas casas, e são as pessoas das outras casas que se deslocam até a casa de alguém, o que já é a antecipação de uma distância (sociológica) a ser percorrida. 193

Livro Conhecimento e Cultura.indd 193

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

Para isso, porém, é necessário que antes o homem da casa rode a aldeia convidando seus parentes para tal. São eles então que se deslocam de uma casa para outra, que são concebidas como local dos homens, cujos filhos são do mesmo grupo que ele. Nesse deslocamento, porém, eles irão até os outros homens, convidando-os. Usam principalmente se apoiar nas relações de parentesco outras (tal como se fazia no tempo da maloca), aquelas estabelecidas por intermédio de sua mãe ou de uma ascendente feminina. Chamarão seus manos, forma de tratamento que é, sobretudo, utilizada entre irmãos classificatórios de grupos distintos6 e que tem, na chichada, o principal palco para se manifestarem. Passemos então aos modos de socialidade (in)vertidos pela bebida fermentada. Riso e embriaguez É, pois, na socialidade encenada nas chichadas que o mundo apresenta seus semitons, seus matizes e suas colorações, desfazendo ou suspendendo certas linhas discretas próprias à socialidade doméstica. Por meio da chicha diferentes pessoas entram em comunicação, os domínios horizontalizam-se, “afinizam-se”. Regados pela cerveja, os intervalos, como que embriagados, são colocados sob suspeita, sejam aqueles engendrados pelas conexões de sangue, sejam os próprios intervalos de definição do humano. De um lado, se nos perguntarmos “do que é feita a chicha?” seremos conduzidos a noções de humanidade e personitude que se estendem para além da divisão ontológica moderna entre natureza e cultura enquanto domínios estanques e incomunicáveis. Isto porque a macaxeira é fruto de uma série de transformações a partir do corpo de um ser mitológico. Assim, reciprocamente, plantar maniva pode ser traduzido como “enterrar gente”, afirmações que somente podem ser “ditas” se acompanhadas de uma boa risada.7 Antecipações que pretendo descrever. *** A socialidade doméstica, do ponto de vista masculino, é marcada pela consanguinidade agnática, e pelas “fronteiras” territoriais/étnicas, superpostas e vinculadas a ela. É igualmente verdadeiro que a socialidade doméstica caracteriza-se pela (co)afinidade de mesmo sexo do ponto de vista feminino, onde as mulheres se comunicam por meio dos homens com mulheres pertencentes a outros grupos. Por uma certa multiplicidade interna ao corpo masculino, produzido pela memória dos casamentos passados (os homens, ao contrário das mulheres, quando questionados por suas escolhas matrimoniais, dizem serem formados por diversos “sangues” e incluem neste cálculo as relações ascendentes uterinas) 194

Livro Conhecimento e Cultura.indd 194

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

e pelo modo de recrutamento agnático dos povos, aos homens cabe um domínio organizado primordialmente sobre um eixo vertical. Enquanto que às mulheres, por se espalharem, “como as raízes de batatas”, são os pontos de comunicação num plano horizontal, sem solução de continuidade, mas fluindo entre os segmentos territoriais. Elas apresentam uma geometria variável, diversa daquela composta pelos homens, que tendem a se aglutinar, condensando as linhas de composição. Regadas pela chicha fermentada, estas categorizações próprias ao campo doméstico sofrem certa desestabilização. Nas chichadas, às mulheres cabe clarificar as condições da existência masculina: é por meio delas que os homens se comunicam, seja pelo parentesco uterino, os parentes outros (manos), seja pelas relações de afinidade de mesmo sexo. É somente nas chichadas que este parentesco outro (uterino) emerge como a dobradiça capaz de comunicar os diferentes povos, mas tão somente para remoldá-los. Lembro-me de um dia em que meu anfitrião havia se preparado para ir caçar, mas não pôde recusar o convite de seu mano, um homem Djeoromitxi muito mais velho que ele, cuja esposa durante a chichada lembrava a todo o tempo serem eles manos entre si. Assim também são esses manos que bebem próximos um do outro, estão de fato juntos numa chichada. É também por meio da socialidade proporcionada pela cerveja que a afinidade masculina de mesmo sexo tem o seu lugar. Foram nestas ocasiões que vi os homens se relacionando publicamente com seus afins, referindo-se a eles como sogros ou cunhados (em português). Ao passo que as relações consanguíneas de mesmo sexo, do ponto de vista feminino, caem numa espécie de limbo, podendo ser reclassificadas segundo relações de afinidade engendradas seja por Ego ou por uma descendente sua: na chichada, o parentesco consanguíneo pode ser abordado pela afinidade de mesmo sexo do ponto de vista feminino, embora o contrário não aconteça. É também nas chichadas, pelo encontro com os parentes próprios com quem não convivem na socialidade doméstica, que elas têm a possibilidade de expressar suas relações agnáticas de uma maneira respeitosa. Diferentemente das relações de afinidade que são expressas quase sempre em português, seja por mulheres ou por homens, nestes casos, as mulheres costumam se utilizar do termo de parentesco na língua materna. Ao mesmo tempo, uma mulher tem a possibilidade de brincar (zombar, se a categoria etária permitir) com um consanguíneo agnático seu, pertencente, portanto, ao mesmo grupo que ela. Tal brincadeira pode mesmo extrapolar qualquer limite respeitoso. Numa chichada, uma mulher Wajuru “brincava” com um homem de seu mesmo grupo étnico, dizendo que “ele era onça, sovinava sua comida, comendo sozinho. Comia muito, gostava de cabeça de porco e por isso estava gordo demais!” Ele escutava em silêncio as 195

Livro Conhecimento e Cultura.indd 195

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

provocações de sua filha classificatória (que, no entanto, era já avó, assim como ele), realçadas pelas risadas de todos os presentes. Estaria ela tratando seu consanguíneo agnático como um virá (cônjuge preferencial)?8 Mas até que ponto essa intrusão da afinidade na consanguinidade pode ser levada a cabo sem que a outra parte se machuque? Existem modos particularmente bons de comportamento nestas ocasiões. Não recusar as cuiadas é bastante importante, mas saber beber, ficar bêbado sem que com isso se “aperreie” os outros, é um dos modos perseguidos de boa sociabilidade. Da mesma forma, dançar é “brincar”. A brincadeira (entre conversas e danças) é mesmo o modo relacional das chichadas, seja porque é ali que os virás/oguaikup (companheiros) têm a oportunidade de expressar sua proximidade, suas relações, seja porque as atitudes entre certos parentes encontram neste contexto uma espécie de relaxamento. As metáforas sexuais abundam nos contextos das chichadas e são parte das brincadeiras que podem ocorrer entre certos parentes. Isto porque, julgo, são principalmente as relações de afinidade de sexo oposto que estão em jogo numa chichada: “Não é você irmão do meu marido? Não é você meu marido?” Gritava uma mulher a um cunhado seu (irmão classificatório de seu marido), enquanto tentava arrastar o bêbado para dançar com ela. A brincadeira que envolve a dança com troca de casais talvez performe as possibilidades anteriormente abertas, mas que não foram atualizadas e “excluídas” pela afinidade efetiva. Foi também numa chichada que pude ouvir apreciações públicas sobre a distintividade Wajuru vindas de uma mulher Tupari cujo marido é Wajuru (ao contrário daquelas somente “segredadas” para mim quando estávamos sozinhas). Depois de ouvir um homem Wajuru dizendo que estava cansado de sua mulher e que iria colocá-la para fora de casa, ela afirmava em alto e bom som que o pensamento de Wajuru é mesmo aquele que diz que “o dono da casa é o homem”, que a casa é do homem e não da mulher. Depois das risadas de todos, aquele se calou. Na casa de seu sogro, Jemanoi Djeoromitxi, Albertina Wajuru dizia em voz alta para Quati Wajuru que sua esposa, por não ter o marido em casa, teria “comido uma cobra e por isso estava grávida”. Quati havia passado um longo período trabalhando na Bolívia e no mesmo dia em que voltou sua esposa fora picada no caminho do porto. Às risadas de todos os presentes, Quati respondia fazendo brincadeiras com Albertina de igual teor sexual. Eu estranhei este tipo de brincadeira entre os dois, pois, em linha agnática, os genitores de ambos (Neruirí e Casimiro) são considerados irmãos e isso os transforma em irmãos classificatórios. Na casa do pai de Albertina, nunca vi igual tratamento entre os dois, na verdade, nunca os vi dirigindo-se a palavra. Ao passo que as irmãs de Albertina não casadas tratam Quati por mano, observando o respeito e comedimento que 196

Livro Conhecimento e Cultura.indd 196

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

esse tratamento supõe, bem como o oferecimento constante de chicha e comida. Mas Quati, filho de Paulina Makurap e Casimiro Wajuru foi “criado no poder” do segundo marido de sua mãe, Brito Djeoromitxi. Segundo Paulina, toda a “família se respeita” e por isso também “respeitam Quati como parente”. Este aparentamento que tem o respeito como base de relação, também foi a mim descrito como “contratar” parente. Brito é irmão classificatório (MZS) do marido de Albertina e, neste sentido, naquela chichada “não era” ela irmã (FBD) de Quati, mas esposa do irmão (naquela ocasião filho do dono da chichada) do pai dele (FMZSW), sua afim (do ponto de vista do grupo), portanto. Neste sentido, eles podem “brincar”. Na mesma ocasião, Paulina me explicou que Rita Arikapo, que estava oferecendo a chicha, ela chamava de sogra, em português, por ser Rita irmã da mãe de Brito, seu marido (HMZ). Rita sorria ao ouvir tais explicações, pois também é mãe classificatória (MZ) de Paulina, filha de Esperança Arikapo. Mas esta, por ter sido “criada no poder” dos Wajuru, só tem sua identidade Arikapo ressaltada por aqueles mais próximos que sabem das histórias dos tempos antigos ou pelos próprios antigos que viveram nesses tempos: a mãe de Esperança, Arikapo brava, quando grávida foi até a aldeia Wajuru parir. Depois disso partiu, deixando sua filha, que foi amamentada pela mãe de Antônio Côco Wajuru. Paulina deve, igualmente, atender às redes de relações de parentesco forjadas na amamentação. Mas ela também não deixou, em diversos momentos, de me ressaltar a origem Arikapo de sua mãe e sua rede de parentesco. Mesmo assim, não parece que, nas chichadas, fossem tais relações que estivessem em jogo, e sim suas relações de afinidade. Depois disso, conversando com Rita, Paulina atrapalhou-se no modo de se referir às relações de parentesco entre seu marido e a nora que os dois compartilham. Dizendo que a nora de Brito já havia partido, logo se corrigiu: “nora, sobrinha, sei lá”. Sua pretensa “confusão” elucida mesmo a labilidade que certas categorias encontram no contexto das chichadas: a “arte das relações” que é preciso levar a cabo em tais ocasiões. No mesmo sentido, não era senão bebendo juntos que eu podia presenciar as brincadeiras entre dois virás, um sendo Wajuru e o outro Djeoromitxi, que podem chegar mesmo até a exaltação, mas que está, a todo tempo, ancorada no lastro desta relação de profunda amizade. Na casa do primeiro, o segundo, num tom muito grave, disse abertamente a mim que os índios devem saber respeitar a chicha, não deixando a cuia no chão. De fato estranhei tal asserção, pois já tinha visto muitas pessoas deixarem sua cuia no chão, descansando o braço. No entanto, pude perceber que era exatamente o sogro do anfitrião quem estava apoiando sua cuia no chão e que, após aquela asserção, se retirou do local, bastante descontente. Tudo se passou como se, por intermédio de seu companheiro, o dono 197

Livro Conhecimento e Cultura.indd 197

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

da casa tivesse ofendido duramente o velho, exatamente seu sogro. Também foi numa chichada a única vez que ouvi alguém chamar a outro de panema. Um homem Wajuru se referia ao marido da filha de sua sobrinha (BDDH) que também é seu sobrinho (FBDS), tratando-o como se fosse seu virá. A brincadeira exige uma habilidade social e impõe ela mesma seus limites. Do contrário, fica difícil que essas relações não causem angústia ou raiva, numa parte ou na outra. Isso porque, se essa habilidade no encontro não for bem medida pode ser que acabe por acarretar a tristeza dos parentes dos outros: quando se está bêbado, “no poder” da chicha, afins podem não só se encontrar, mas levar suas rivalidades às ultimas consequências. As inimizades suscitadas pelo “poder” da chicha, se podem, algumas vezes, ser esquecidas, por certo também podem se avivar A chicha propõe tanto caminhos de convivência quanto de evitação, constrói e destrói, no mesmo golpe, relações e pessoas. A quantidade discreta (as tribos de antigamente, ou os povos atuais) pressupostos pela “decisão” em linha paterna, sofre uma interferência daquela linha materna invisível, porque “se espalha”, verte entre uma cuiada e outra. Não menos que os intervalos da natureza e da cultura, um se entrosando no outro. São nas chichadas que os intervalos da comunidade humana são postos sob suspeita.9 Assim como bebem os vivos, noutros lugares (no céu ou debaixo d’água) bebem também os mortos, bebem outros, humanos, pois isto o atesta sua predileção pela chicha. Foi numa chichada em que comíamos a carne de um boi que acabara de ser abatido que uma mulher me chamou a atenção para o sentimento de luto das vacas que nos olhavam ininterruptamente. Estavam tristes por seu parente morto, choravam a mãe, os irmãos, o pai daquele que acabara de morrer. Não foi senão durante uma chichada para trabalho que eu pude ouvir, em contraste com a pouca verbalização que impera sobre os alimentos vindos da mata ou do rio, que os homens iriam comer suas primas assadinhas, se referindo à piranha moqueada que lhes era oferecida pela dona da casa. É porque se está bebendo que se pode referir ao pai classificatório por onça, assim como chamar um peixe por prima. *** “É preciso”, diz Sztutman (2008) sobre o desafio de viver num mundo animado onde experimentar a perspectiva de Outrem pode ser tornar algo irreversível, “aplicar modelos de reversibilidade para evitar o irreversível absoluto, a descontinuidade absoluta imposta pelo tempo” (Sztutman 2008: 243). Não seria isso que nas chichadas as pessoas estão fazendo? “Saindo de si”, experimentando a convivência com outros, diferentes. Mas cujo encontro também traz em si 198

Livro Conhecimento e Cultura.indd 198

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

riscos que, de toda maneira, devem ser controlados, para não serem levados a um paroxismo irreversível. Não é senão experimentando outras perspectivas relacionais, vendo nos parentes animais, nos animais os parentes, no consanguíneo um afim, que está se aplicando a reversibilidade, desfazendo aquela descontinuidade absoluta. Os efeitos embriagantes da chicha elucidam o vislumbre de mundos outros, diferentes sistemas semióticos e sua reversibilidade.10 Uma dupla articulação, quiçá evocativa da desterritorialização de termos heterogêneos colocados numa nova relação (comunicação), aquela que Wagner (1978) propõe para a metáfora The non-conventional relation introduces a new symbolization simultaneously with a “new” referent into one expression, and the symbolization and its referent are identical. We might say that a metaphor or other tropic usage assimilates symbol and referent into one expression, that a metaphor is a symbol that stands for itself- it is self-contained. Thus the symbolic effect of tropic usage in two ways: it assimilates that which it “symbolizes” within a distinct, unitary expression (collapsing the distinction between symbol and symbolized), and it differentiates that expression from other expressions (rather than articulating it with them). (Wagner 1978:25) O riso característico da embriaguez “diz” o que não poderia ser dito de outra forma, como um modo de (re)conhecimento sobre o mundo e suas múltiplas possibilidades de enunciação. Signo do acesso a outras perspectivas, sem que se caia nestas indefinidamente. Um “estar lá” que antecipa a volta imediata ao “estar aqui”, assegurando este “lugar” ao qual voltar. É o riso, penso, que coloca esta possibilidade: espécie de vislumbre, mecanismo que permite acessar outros códigos comunicativos sem que se perca de vista a diferença entre eles, quer dizer, o próprio fato deste acesso. A brincadeira e o riso situam-se num plano metacomunicativo que, como diz Bateson sobre o anúncio “This is play”, estabelece a equalização e ao mesmo tempo discrimina a mensagem e os objetos os quais ela denota: “These actions in which we now engage do not denote what those actions for which they stand would denote” (Bateson 2000: 180). O objeto do discurso metacomunicativo seria então a relação (relationship) entre os falantes, capazes de reconhecer que os signos veiculados por eles mesmos e por outros indivíduos são “apenas” signos. Isto acarreta a natureza lábil da moldura (frame) estabelecida pela mensagem “This is play” e o paradoxo presente nos signos veiculados nestes contextos: “that the playful nip denotes de bite, but does note denote that which would be denoted by the bite (Bateson 2000: 183). Num trecho do artigo “Style, Grace 199

Livro Conhecimento e Cultura.indd 199

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

and Information in Primitive Art”, no qual delineia uma análise da pintura balinesa, Batenson (1999) amplia suas asserções sugerindo que It is probably an error to think of dream, myth and art as being about any one matter other than relationship [...] if the pictures are only about sex or only about social organization, it would be trivial. It is non trivial or profound precisely it is about sex and social organization and cremation and other things. In a word, it is only about relationship and not about any identificable related. (Bateson 1999:151 – ênfase no original) Tal caráter de simultaneidade desses “objetos” (sistemas de comunicação) sobre os quais o autor mantém sua atenção, quero dizer, uma espécie de qualidade refratária à captura por um só referente, parece poder nos ajudar no entendimento dos modos de socialidade despertos pela chicha e vislumbrados pelo riso. Como diz Sztutman (2006:242) recorrendo a Georges Bataille, a propósito da experiência do “sair de si”: “O êxtase é comunicação entre termos (esses termos não são necessariamente definíveis), e a comunicação possui um valor que os termos não possuem: ela os aniquila – do mesmo modo, a luz de uma estrela aniquila (lentamente) a própria estrela (Bataille 1961:50)”. E o riso, esse que vislumbra os intervalos se entrosando um no outro, os antecipa e dispõem deles, os obvia, no sentido proposto por Wagner: For any nonarbitrary symbolization, any “motivation”, that is not of a conventional symbolization character threatens to subvert and supplant the conventional symbolization with a “nonarbitrariness” of a much more piquant and individual variety. The “trope” or “turning”, of the symbol from its conventional application directly confutes or denies the latter. The conventional (or, in the case of a well-worn trope, a conventional) sense “dies”, and is fragmented and is “fragmented” or “differentiated” into something “new”. This confutation of the conventional is an effect of what is generally called “metaphor”, and is germinal to what I shall call, in its broadest implications, obviation. (Wagner 1978:24 – ênfase no original) Aniquilar referentes, deslocar modos de significação, rir. Não que se queira excluir sua contraparte: a tristeza e o choro pelos parentes mortos. Antes é necessário entendê-los como momentos (eventos) de uma parábola desenhada pela embriaguez. Afinal, se se está ali para beber e “brincar”, porque tão facilmente pode-se cair em seu oposto? Não se vislumbra a reversibilidade sem que isso envolva um perigo. Quanto mais a reversibilidade vislumbrada de tais estados 200

Livro Conhecimento e Cultura.indd 200

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

aproximar-se de seu limite, podendo, de súbito, capturar aquele que ri numa transformação irreversível: seu distanciamento, sua captura por outro ponto de vista, enfim, sua morte antecipada. Se o estado de riso antecipa a saudade (o perigo) dos mortos, talvez seja porque ele mesmo é uma espécie de morte, um discurso letal. Desde a macaxeira, fruto dos ossos de um menino, cuja plantação de suas manivas pode ser traduzida como “enterrar gente”. O que está em jogo é o desamarrar de certas categorias que ninguém é obrigado o tempo todo a perseguir. O interessante, o que cativa, é apostar na possibilidade de ultrapassá-las, vislumbrar categorias outras. Faz-se, assim, da alegria um meio de liberdade, assim como se faz da tristeza pelos parentes mortos a possibilidade de não estar mais aqui, de ir além, quando tudo isso se faz pesado demais. Manivas não são ossos de seres mitológicos, um peixe assado não é uma prima.... – não se os referentes permanecerem os mesmos, se estivermos em busca de epifanias. Não, se tais referentes não morrerem. Não, se pensarmos na morte como um mero perecimento físico, em vez da suspensão e redefinição de limites (sentidos). Não, se não forem afetados pela embriaguez.

201

Livro Conhecimento e Cultura.indd 201

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

Notas O trabalho de campo na T.I. Rio Guaporé foi realizado durante três meses, subsequentes a outros dois meses em outros locais de Rondônia, com vistas à produção de dissertação de mestrado intitulada “Do poder do sangue e da chicha: os Wajuru do Guaporé (Rondônia)”, sob orientação de Edilene Coffaci de Lima, defendida em 2009 no PPGAS/UFPR (Soares-Pinto 2009). Na ocasião, foram enfocados a dinâmica social Wajuru e seus modos de organização social e parentesco. Como um modo de visualização de tais relações, as chichadas se fizeram um ponto importante. Em grande medida, a reflexão que agora apresento deriva de e replica aquela apresentada em minha dissertação, que se restringe às chichadas que pude acompanhar na aldeia Ricardo Franco e nos sítios em seus arredores. 1 A mandioca-braba (chamada também de paxiubão), até onde sei, não é nem nunca foi utilizada para a produção de bebida. Seu uso, mais recente, se restringe à produção de farinha, quando deve ser pubada, prensada e, depois, torrada. 2 A população geral na T.I. ultrapassa 600 pessoas, sendo os Makurap os mais numerosos, seguidos pelos Djereoromitxi, Wajuru, Tupari, Canoé, Cujubim, Massacá e Arikapo, nesta ordem. A T.I. Rio Guaporé é composta pela aldeia do Posto Ricardo Franco ou mais simplesmente “Posto”; a Baía da Coca; a Baía das Onças; a Baía Rica e os locais “Mata Verde” e o “Bairro”. A aldeia Ricardo Franco compreende o Posto Indígena, a escola, a enfermaria; nas suas cercanias imediatas têm-se muitas casas chefiadas por homens de diversos grupos étnicos e, mais afastados, alguns “sítios”, locais de assentamento de famílias extensas ou jovens casais. É ali também que se encontram as pessoas que vêm das outras povoações da T.I., ou índios de outras localidades, principalmente de Sagarana, além de representantes da Funai, do Cimi ou de quaisquer organizações indigenistas. Na Baía da Coca estão algumas famílias chefiadas por homens Makurap e Tupari. A Baía das Onças é reconhecidamente território Djeoromitxi, bem como a Baía Rica, local de uma só família extensa. O Bairro e a Mata Verde são locais entre o Posto e a Baía da Coca, assim como a Baía Rica se localiza entre o Posto e a Baía das Onças. O Bairro é local de uma família extensa Tupari e a Mata Verde é local Makurap. Pelos caminhos de ligação entre assentamentos mais densos, caso em que se pode chamá-los de “aldeia”, estão numerosos sítios ou moradas. 3 Devo notar minha inspiração na atenção às formas de saudações em Erikson 2009. 4 Calculo que tais cabaças tenham capacidade para dez litros ou mais, enquanto as cuias devem servir aproximadamente um litro. 5 Concomitantemente ao incremento da exploração seringueira na região do médio Guaporé, em 1930, foi criado pelo SPI, no baixo curso deste rio, o Posto Indígena de Atração Ricardo Franco, que mais tarde veio se tornar a Área Indígena Rio Guaporé. A primeira demarcação desta área data de 1935, e teve a aprovação do Marechal Rondon. Sua história não difere dos demais postos do SPI, criado com o objetivo de “civilizar” os índios. A colônia agrícola teve seu “apogeu” na década de 1940, quando os funcionários do SPI compulsoriamente transferiram para este Posto parte dos povos dos afluentes do médio Guaporé, os rios Mequéns, Colorado, Corumbiara e afluentes (Funai 1985). 6 O que aqui estou chamando de irmãos classificatórios se refere aos primos paralelos matrilaterais ou a outras relações que não necessariamente estão ancoradas num substrato genealógico, mas que dizem respeito à “história de relações” da ascendente feminina de Ego. 7 Surralés (2003:100 apud Lagrou 2006:61) sugere que “Lo que hace reír del humor no es menudo outra cosa que constatar la posibilidad que tiene solo el humor para decir lo que seria indecible de outra manera”. 8 Existe uma categoria preferencial para cônjuges, rotulada oguaikup em Wajuru, ou virá em Djeoromitxi – este último é na verdade o termo (autorecíproco) que os Wajuru usam mais comumente para se referir à relação. A categoria envolve, de um lado, a preferência para o casamento e, de outro, a “amizade” entre pessoas de mesmo sexo: proximidade, ajuda mútua e pilhéria. Por

202

Livro Conhecimento e Cultura.indd 202

26/4/2011 12:20:52

Nicole Soares Pinto

isso os virás são também chamados de amigos/companheiros. Quanto ocorre o casamento entre pessoas nesta realção, isso cancela as atitudes entre cunhados efetivos, que passam a tratar-se com reserva. Durante a pesquisa, encontrei o termo aplicado por Ego masculino a pessoas nas posições de MBSC, FFZC, FZDC e MMBC. Para maiores detalhes, ver Soares-Pinto 2009. 9 Sztutman assinalou que “[s]ubstâncias que produzem alguma alteração – ‘a um só tempo na consciência e no corpo’, pois esses domínios se constituem de modo imbricado no pensamento ameríndio –, estão inseridas nos processos reflexivos de produção de sociabilidade e da socialidade e, de modo mais amplo, do próprio lugar da humanidade” (2008:232). 10 Característica das conexões engendradas pelo cromatismo que Lévi-Strauss chama a atenção: a redução ao mínimo dos intervalos entre a natureza e a cultura, ao mesmo tempo que acarreta o perigo do descontínuo máximo, “uma união da natureza e da cultura que determina sua disjunção (Lévi-Strauss 2004: 321). Diz o autor, da análise dos mitos sobre o veneno de pesca, que ele estende aos mitos sobre o arco-íris, que “passa-se livremente e sem obstáculos de um reino a outro, em vez de existir um abismo entre os dois, misturam-se a ponto de um dos reinos evocar imediatamente um termo correlativo no outro reino” (Lévi-Strauss 2004:316).

203

Livro Conhecimento e Cultura.indd 203

26/4/2011 12:20:52

Beber e brincar

Referências BATESON, Gregory. 2000. Steps to an ecology of mind. Chicago and London: The University of Chicago Press. CASPAR, Franz. 1953. Tupari: entre os índios, nas florestas brasileiras. São Paulo: Melhoramentos. CLASTRES, Pierre. 2003. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Prefácio de Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman. Tradução de Theo Santiago. São Paulo: Cosac & Naify. ERIKSON, Philippe. 2009. “Diálogos à flor da pele... ������������������������������� Nota sobre as saudações na Amazônia”. Campos. Revista de Antropologia Social, 10(1):9-27. FUNAI. 1985. Relatório Antropológico de demarcação da Terra Indígena Rio Guaporé. GALVÃO, Eduardo. 1960. “Áreas culturais indígenas do Brasil; 1900-1959”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia), 8. LAGROU, Eljse. 2006. “Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances kaxinawa”. Revista de Antropologia, USP, 49(1). LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004. O cru e o cozido. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify. LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou pra mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São �������� Paulo/Rio de Janeiro: Editora Unesp/ISA/NuTI. MALDI, Denise. 1991. “O complexo cultural do marico: sociedades indígenas dos rios Branco, Colorado e Mequéns, afluentes do médio Guaporé”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia), 7(2):209-269. SOARES- PINTO, Nicole. ������������������������������������������������������� 2009. Do poder do sangue e da chicha: os Wajuru do Guaporé (Rondônia). Dissertação de mestrado em antropologia, UFPR. SZTUTMAN, Renato. 2006. De outros caxiris: festa, embriaguez e comunicação na Amazônia indígena. Dissertação de mestrado em Antropologia, USP. Versão para publicação. SZTUTMAN, Renato. 2008. “Cauim, substância e efeito: sobre o consumo de bebidas fermentadas entre os ameríndios”. In: B. Labate; S. Goulart; M. Fiore; E. Macrae & H. Carneiro (orgs.), Drogas e Cultura: Novas Perspectivas, Salvador: EDUFBA. pp. 219-250. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “Atualização e contra-efetuacão do virtual”. In:______. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, pp. 401-456. WAGNER, Roy. 1978. Lethal speech: Daribi myth as simbolic obviation. London: Cornell University Press.

204

Livro Conhecimento e Cultura.indd 204

26/4/2011 12:20:52

“O pessoal da cidade”: o conhecimento do mundo dos brancos como experiência corporal entre os Karajá de Buridina

Eduardo S. Nunes

Buridina, uma pequena aldeia Karajá incrustada no centro da turística cidade de Aruanã (GO), é, há muito tempo, conhecida pela intensidade de sua incursão no mudo dos tori, i.e., dos não-índios. Os primeiros etnólogos que passaram pela região do rio Araguaia, às margens do qual estão aldeia e cidade, tais como Fritz Krause (cuja viagem data de 1908) e Herbert Baldus (que esteve na região em 1935 e 1947), já descreviam essa aldeia como bastante “aculturada”. Ainda hoje, a impressão de um observador desavisado é exatamente essa. Os Karajá comem nossas comidas, estão integrados ao comércio local, usam nossas roupas, nossa língua, nossos nomes, têm televisões, telefones, fogões, geladeiras, freezeres, bicicletas, algumas motos, camas, guarda-roupas, barracas de acampamento, canoas de alumínio com motores de popa etc. Além do fato de terem muitos amigos não-indígenas na cidade e, sobretudo, filhos com eles, a maioria da população da aldeia sendo mestiça. Para grande parte dos moradores e visitantes de Aruanã, a aldeia é apenas mais um bairro da cidade e os índios pouco (ou nada) se diferenciam deles.1 Se a noção de aculturação tem sido combatida pela antropologia no Brasil desde pelo menos a década de 1950, o estigma da aculturação continua vivo na cosmologia de uma parcela considerável da população nacional, e certamente ainda pesa sobre esta população. Os Karajá de Buridina certamente estão “virando brancos”, em alguma medida, mas isso não representa algo da ordem da “perda da cultura”. A proposta deste artigo é tratar etnograficamente essa complexa questão a partir do prisma do conhecimento indígena, ou da forma indígena de conhecimento. A história da aldeia é uma trajetória de conhecimento e experimentação do mundo dos 205

Livro Conhecimento e Cultura.indd 205

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

brancos que acabou por gerar uma relação corporal entre as perspectivas indígena e não-indígena, epitomizada pelo próprio corpo mestiço. Ancorado na etnografia, espero ao final, estar apto a mostrar que o conhecimento que estes Karajá lograram obter sobre os tori é uma experiência corporal.

Uma narrativa histórica sobre Buridina Os Karajá, grupo falante de uma língua tardiamente classificada como pertencente ao tronco Macro-Jê – o inỹrybè2 –, ocupam imemorialmente a calha do rio Araguaia. A maior parte de suas aldeias está situada na Ilha do Bananal (TO), sendo Buridina aquela situada mais à montante deste território, na margem goiana da divisa com o Estado do Mato Grosso, junto à confluência dos rios Araguaia e Vermelho. A narrativa que se segue trata da fundação desta aldeia, dos problemas que ela enfrentou e da maneira como sua configuração atual foi instaurada. Advirto, porém, que estarei ocupado, não com uma “verdade histórica”, tentando desvelar os significados que as ações das personagens tinham para elas próprias, mas sim com a teia de significados que os atuais Karajá construíram com e sobre elas, seus avôs/avós e tios/tias. Assim procedendo, o que tento apontar é o significado histórico desta memória em termos da relação dos habitantes de Buridina com a cidade de Aruanã e seus habitantes tori. *** Kabitxa’na, o caçula de um grupo de sete germanos, foi o fundador da aldeia Buridina. Ele era um grande hyri (xamã) da aldeia Hãwalò (Santa Isabel do Morro – Ilha do Bananal, TO). Era muito poderoso, “mas ele só curava”, dizem seus descendentes.3 O xamã karajá, entretanto, assim como ocorre dentre muitos outros grupos indígenas, é uma figura ambígua. Sua face pública é a de curador, mas a feitiçaria é sempre uma contraparte possível, pois tanto a cura quanto o feitiço são viabilizados por meio do aprendizado de um mesmo conjunto de operações e técnicas.4 E quanto mais poderoso for o hyri em termos de cura, mais seus (possíveis) feitiços serão temidos. Assim, Kabitxa’na sofria muitas acusações de feitiçaria. “Aí diz que todo menino que morria, as crianças que adoecia, jogava tudo em cima dele, aí diz que judiava de bater nele, aí chegou um certo ponto, [...] ele desgostou tanto que veio embora”,5 resolveu procurar um outro lugar para viver. Ele e sua mulher, Hãbibi, subiram o rio de canoa a remo e foram parando de aldeia em aldeia, mas em nenhuma delas seus anfitriões lhe ofereceram um lugar para morar. Assim, 206

Livro Conhecimento e Cultura.indd 206

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

passou por todas as aldeias e acabou se assentando junto à margem sul do córrego Xibiu.6 Quando Kabitxa’na chegou à região, não havia ninguém por lá. Ele ergueu um rancho e o casal ficou morando ali por um tempo até que, para sua surpresa, começaram a chegar muitas famílias karajá e javaé que se instalaram junto a eles, sob o comando de Kabitxa’na. A chefia da aldeia “foi passando de geração em geração, [de acordo com o modo tradicional hereditário de transmissão,] que de um para outro formou a maior aldeia de toda história do vale do Araguaia. De Conceição do Araguaia [PA] até chegar aqui em Aruanã, a aldeia, aqui, diz que foi a maior que já teve”.7 Tendo em vista esta época, alguns de seus parentes da Ilha do Bananal se referem (ou o faziam, até duas ou três décadas atrás) aos Karajá de Buridina como hãwahakỹ mahãdu, “o pessoal (mahãdu) da aldeia grande (hãwahakỹ)”. Outro indício do grande tamanho da aldeia era a presença de duas hetokrè,8 Casas de Aruanã, o centro da vida ritual do grupo.9 Buridina era uma aldeia muito próspera, um lugar muito bom para se viver. Seus habitantes eram conhecidos como ibò(k)ò mahãdu, “o pessoal de cima/do alto”,10 porque entre eles havia grandes “historiadores”,11 lutadores e hyri (xamãs). “Agora, se tem historiador que difama, guerreiro que mata só por matar, hyri que mata, aí é iraru mahãdu”. Os próprios iraru mahãdu, “pessoal de baixo”, não gostam de ser assim chamados, pois o termo indica o distanciamento de um ideal de comportamento e de conhecimento inỹ, humano. Mas a década de 1940 guardava revezes para o destino da aldeia. Dois acontecimentos alteraram radicalmente sua situação populacional: de uma grande e ritualmente (super)ativa aldeia, ela ficaria resumida a uma única família, menos de 10 pessoas. Primeiro, um assassinato iniciou um movimento de dispersão da população. A vítima, Alfredo Ijahi’na, era muito respeitada. Dizia-se dele, entretanto, que era perigoso feiticeiro. Tybiru, uma moça de aproximadamente 12 anos, morreu repentinamente. Seu pai e seu marido, convencidos de que a causa da morte teria sido um feitiço de Ijahi´na, o assassinaram e fugiram. Pouco tempo depois, a aldeia foi acometida por uma epidemia de sarampo. Ali morava um Javaé, Warikina, poderoso hyri. A epidemia, acreditavam, havia sido causada por feitiço seu. Ele próprio, entretanto, pegou sarampo, e ficou sob os cuidados de Lídia Dikuria e Alice Koabiru, até ficar bom. Quando se curou, disse que não se esqueceria dos cuidados que havia recebido e que era boa a decisão que haviam tomado em não partir, de permanecer ali. Na aldeia grande, disse, há muita briga, muita confusão. Depois partiu. Esse episódio intensifica o movimento de dispersão iniciado com o assassinato. As pessoas voltaram para suas aldeias de origem. Os Karajá se referem ao momento destes dois acontecimentos como o “fim da aldeia”. Apenas um homem, Jacinto Ma(k)urehi – e sua 207

Livro Conhecimento e Cultura.indd 207

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

família, da qual as duas mulheres citadas acima faziam parte –, decide permanecer no local e reúne em torno de si, nas décadas subsequentes, dois irmãos e uma sobrinha. É em torno deste núcleo de parentes que a aldeia se reestruturará e crescerá até o ponto em que a encontramos hoje. *** Na década de 1950, a aldeia via-se resumida à família de Jacinto Ma(k)urehi. Vivendo ali, entretanto, ele sentia-se sozinho. Com o passar do tempo, começou a fazer viagens para trazer alguns parentes para junto de si. Mariana Maluhereru, sua sobrinha, junto com seu marido Pedro Wassuri Javaé, os filhos do casal e Maria Severia foram os primeiros a voltar. Logo após o assassinato, eles saíram da aldeia e foram para Ouro Fino, uma pequena aglomeração, próxima a Cuiabá (MT), que surgia em torno de um garimpo. Jacinto foi até lá “buscar eles”. Mas eles não queriam vir, achando que ainda havia muita gente ali. Só se convenceram quando Jacinto lhes contou do esvaziamento (“o fim”) da aldeia. Mas o casal andava muito pelo rio, passando, por vezes, longos períodos nessas viagens. Jacinto ia também até Santa Isabel e chamava seu irmão João Lawa(k)uri para morar com ele, mas Joãozinho (como era conhecido) nunca aceitava o convite. Foi só quando sua filha (a segunda mais velha) morreu, vítima de feitiçaria, que ele cedeu aos pedidos insistentes de sua mulher, Isabel Sawakaru, e aceitou o convite. Ficaram desgostosos e resolveram ir embora, confiando na afirmação de Jacinto de que em Buridina poderiam criar seus filhos com tranquilidade. Chegam no primeiro biênio da década de 1960. Mário Arumani chegou um ou dois anos depois. Ele ia até esta aldeia com certa freqüência, visitar sua mãe, Isabel Sawakaru. Ele era casado, mas largou sua mulher e fugiu de Santa Isabel do Morro com Jandira Diriti, com quem viveu, em Buridina, até sua morte (novembro de 2005) – ela ainda está viva. Essa é certamente uma ocasião na qual é necessário deixar a aldeia e procurar outro local para morar, pois, caso ficassem, os irmãos da mulher abandonada vingar-se-iam. Antes dele partir, entretanto, lhe disseram que lá ele nunca teria filhos, não criaria netos. Depois de um tempo, já com um filho pequeno, o casal resolveu desafiar os que haviam lhes dito aquilo e voltou para a Ilha. Ocorreu, porém, que o menino faleceu, vítima de feitiço. “Porque o pessoal falou que ele não podia ter filho lá: podia, mas era desse jeito. Se tivesse, eles mandavam matar. Feitiçaria, era negócio de feitiçaria. (...) Aí ele foi fazer o teste lá e o menino morreu. Por isso que ele veio para cá”, assim me contava seu meio-irmão, Nicolau Kawinỹ. Desgostosos, resolveram voltar para Buridina, na esperança de poder criar os filhos com mais tranquilidade. 208

Livro Conhecimento e Cultura.indd 208

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

Luiz Bydè, por sua vez, não gostava da vida de aldeia. Ainda muito jovem saiu para trabalhar na lida do gado em fazendas e cidades no interior de Goiás, desaprendendo, assim, a falar o inỹrybè. Morou com sua primeira esposa no Mata-Coral e só foi para Buridina já com certa idade, depois do fim de seu segundo casamento e sob muita insistência dos irmãos. Casou-se novamente nesta aldeia e teve seis filhos, que ainda hoje lá residem. A década de 1960 marca o início da reestruturação da aldeia, com a reunião deste núcleo de parentes que, embora ainda pequeno, constituiu a base sobre a qual a população cresceu. Na década seguinte, um surto de turismo promoveu uma grande expansão da malha urbana de Aruanã, que atravessou o córrego Bandeirantes – antes esse era o limite físico entre cidade e aldeia –, crescendo na direção norte. Como resultado deste processo, cerca de 10 anos depois a aldeia já se encontrava, exceção feita ao lado do rio, circundada pela malha urbana e confinada em um pequeno lote. Na segunda metade da década de 1970, aconteceram os primeiros casamentos com tori. É nesse período, portanto, que a situação de Buridina começa a ganhar seus contornos atuais. *** Os dois primeiros casamentos com tori – os de Meire Nunsia e Luiz Bydè – aconteceram, na verdade, nas décadas de 1950 e 1960, mas em ambos os casos o casal não foi morar em Buridina. Quando os Karajá falam do início dos casamentos com não-índios, “casar com branco”, estão se referindo ao processo iniciado na segunda metade da década de 1970, com o casamento de Nicolau Kawinỹ– ainda existente –, no qual os cônjuges tori passaram a ser trazidos para morar dentro da aldeia. Mas porque os Karajá de Buridina iniciaram tal processo? Um dos motivos alegados é que a população da aldeia nas décadas de 1950, 1960 e 1970 era toda ligada por laços de parentesco extremamente próximos, o que impossibilitava que se casassem entre si.12 Como o incesto é algo tão impensável quanto não casar, tiveram que buscar cônjuges fora do grupo. Mas essa explicação esconde uma escolha: porque optaram pelos tori? Porque não foram procurar cônjuges nas aldeias da Ilha do Bananal? Poderiam tê-lo feito, reconhecem, mas não o fizeram. É bem verdade que, para que um casamento entre pessoas de distintas aldeias ocorra, é necessário que elas se encontrem, oportunidade que os jovens de Buridina da década de 1970 não tiveram. Os Karajá mais velhos não queriam levá-los para as aldeias da Ilha, sobretudo nas ocasiões rituais, uma das oportunidades de encontro para os jovens. Além disso, muitos dos mais velhos estimulavam seus filhos a casar com tori. O que fica claro, aqui, é que, ao se depararem com a impossibilidade de praticarem endogamia local 209

Livro Conhecimento e Cultura.indd 209

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

e com a consequente necessidade de procurar cônjuges alhures, os Karajá de Buridina optaram, direta ou indiretamente, por negar a possibilidade de casar seus filhos com outros indígenas da Ilha do Bananal e por vê-los casados com os regionais. O início desse processo veio acompanhado da inversão do padrão de uxorilocalidade, amplamente descrito na literatura Karajá (cf. Lima Filho 1994; Toral 1992; Rodrigues 2008; Dietschy 1978). Os homens indígenas que se casaram com mulheres tori passaram a levá-las para morar consigo, na aldeia, e as mulheres indígenas que se casaram com homens não-indígenas saíram da aldeia para morar junto de seus maridos, constituindo, assim, casamentos virilocais. Essa inversão, entretanto, foi apenas temporária, circunscrita, pois as mulheres mais novas (assim como em alguns casos de segundo casamento das mais velhas) não saíram da aldeia ao casar, trazendo, ao contrário, seus maridos para a aldeia. Note-se que a virilocalidade sob a qual os casamentos com tori se derem, num primeiro momento, coincide com o padrão de casamento dos regionais, ainda hoje predominante, sobretudo nos contextos rurais da região. De uma só vez, portanto, os Karajá de Buridina optaram por experimentar tanto os cônjuges quanto a lógica do casamento dos brancos. Depois deste momento inicial, o padrão que se estabeleceu é que os cônjuges não-indígenas (de ambos os sexos) passam a morar na aldeia. *** Mas porque Jacinto Ma(k)urehi optou por permanecer ali, mesmo com todas as pressões que sofreram? Desde os dois acontecimentos na década de 1940 até o início do processo de demarcação, em meados da década de 1980, estes indígenas empreenderam uma firme resistência, tanto no sentido de ir contra a coação dos regionais e da Funai, como no de ser uma postura ímpar mesmo entre os Karajá: ao se defrontarem comfeitiçaria e morte, quase toda a população da grande aldeia abriu mão daquele território e voltou para suas aldeias de origem. Aqui, quero enfatizar que a permanência de Jacinto foi sim uma escolha. Os episódios posteriores também parecem confirmar que tratava-se sim de uma escolha. Ainda nas décadas de 1950 e 1960, Jacinto Ma(k)urehi é pressionado pelo SPI para sair dali e mudar-se para junto de seus parentes na Ilha do Bananal, mas insiste em permanecer. Com o processo de expansão da cidade na década de 1970, a Funai continuou tentando transferir os indígenas, mas sempre encontrou resistência ferrenha (cf. Portela 2006:162). Em 1976, o médico João Paulo Botelho Vieira Filho visita a aldeia e registra que “os índios de Aruanã externam o desejo de permanecer onde estão” (1976:152). A própria expansão 210

Livro Conhecimento e Cultura.indd 210

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

da cidade se constituiu também como uma pressão para que eles abandonassem o local, quando passaram a ver-se progressivamente confinados pela malha urbana, por uma cerca viva de moitas bambu e por uma grade. A ideia de viver em um território delimitado por cercas é algo extremamente incômodo para os Karajá, que gostam da “liberdade”, como dizem, de trânsito dos espaços abertos. Jacinto previu o desfecho do processo de crescimento da cidade que ele via se iniciar. “Tio Jacinto dizia assim: que a cidade estava crescendo e que daqui a um pouco a gente ia estar cercado, igual a porco no chiqueiro”, disse sua sobrinha, que confirma sua previsão dizendo que “o pior é que tudo o que ele dizia está acontecendo!” (Cavalcanti-Schiel 2008:6) – e mesmo assim quis permanecer. Além do mais, a área da cidade já estava toda loteada e o terreno onde a aldeia se encontrava possuía um proprietário não-indígena. No ano de 1982, a Funai empreendeu uma última tentativa de transferir a população da aldeia, chegando um funcionário a oferecer uma quantia de dinheiro para um indígena, mas também encontrou resistência. Em 1986, a Funai finalmente cedeu às pressões contrárias, que exigiam que o órgão fornecesse a devida assistência à comunidade,13 e iniciou o processo de demarcação da Terra Indígena Karajá de Aruanã (cf. Braga 2002). Mas quais os motivos alegados para que Jacinto tenha permanecido em Buridina? Porque, diante de tais pressões, os Karajá desta aldeia optaram por permanecer em uma situação territorialmente extrema, adversa para a realização de um ideal Karajá de uma ‘boa vida’? O que, neste lugar, despertava seu interesse? Uma das respostas que os Karajá me ofereceram para a primeira destas três perguntas tem um sentido territorial, da relação que uma pessoa estabelece com seu local de origem. “Ele [Ma(k)urehi] nasceu aqui, gostava daqui, para onde ele poderia ir? Não ia se acostumar em outro lugar”, me disse uma senhora, ou “aqui era o território”, como fraseou um homem. Mas tal explicação ainda me parecia insuficiente: dentre as pessoas que foram embora quando a aldeia “acabou”, muitas eram, assim como Jacinto Ma(k)urehi, originais dali. Porque, então, apenas ele resolveu ficar? Jacinto dizia que queria “a liberdade do menino não-índio para os netos”, queria ter tranquilidade para criar as crianças. Aqui há um contraste com a vida de “aldeia grande”, de que as maiores aldeias da Ilha do Bananal servem hoje de modelo, marcada pela rigidez. A oposição, aqui, é sobretudo ritual. Quando falam que na “aldeia grande é muito rígido”, estão se referindo ao conjunto de restrições rituais que pesa sobre crianças e mulheres, que não podem circular irrestritamente pela aldeia, nem muito menos pelo mato, sob o risco de variadas restrições/punições. Rodrigues, por exemplo, relata sobre o (k)òrera (k) 211

Livro Conhecimento e Cultura.indd 211

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

uni, o “corpo velho do jacaré-tinga”, que “quando anda pela aldeia, as mulheres e crianças trancam-se assustadas dentro das casas, nas quais ele bate ameaçadoramente, com uma grande vara, ao escutar alguma mulher ou criança falando” (2008:870). Há outras entidades ainda mais perigosas, como o ilabi(k)èhekỹ. Vejamos a descrição de Lima Filho (1994:101). Havia um sentimento de medo e expectativa na aldeia. O Ilabiehekÿ chegaria no final da noite. Seus gritos seriam ouvidos na madrugada. (...) A aldeia se recolheu cedo, a noite avançava e todos tinham medo do Ilabiehekÿ. A Casa Grande [hetohokỹ] estava completamente vazia. (...) O Ilabiehekÿ é avô dos Worÿsÿ. (...) Perigoso, ele não pode ser visto nem pelos homens. Os Karajá que o encaram são tidos como especiais, e fazem parte do grupo dos homens Mahãdu Mahãdu. (...) Mas, mesmo assim, jamais deverá olhar de frente a grande figura mascarada. Se o fizer, Ilabiehekÿ comerá seu fígado e a morte é certa. A preservação do “segredo ritual masculino”, vedado às mulheres e aos meninos não iniciados, talvez seja a maior das restrições. Há uma narrativa mitológica sobre como a revelação deste segredo por parte de um menino em processo de iniciação para sua mãe ocasiona a morte de uma aldeia inteira.14 Há ainda outra dimensão da vida em “aldeia grande” comumente ressaltada como ruim: os conflitos e, sobretudo, a feitiçaria. Um dos motivos disto é, sem dúvida, que nos pequenos agrupamentos familiares, como era Buridina nas décadas de 1950 e 1960, a proximidade dos laços de parentesco torna os conflitos raros. Desentendimentos, brigas, acusações, agressões, feitiços e assassinatos, são gradações de um anti-ideal de socialidade Karajá que aumenta com a distância (do parentesco). As aldeias maiores são conjugações de famílias e são elas, usualmente, as unidades mínimas dos conflitos. A feitiçaria, por seu turno, pode aparecer tanto no âmbito destes conflitos interfamiliares como em consequência do ritual. Lembro aqui que, como dito acima, o principal motivo que levou tanto João Lawa(k)uri quanto Mário Arumani a se mudarem para/fixarem-se em Buridina foi a morte de uma criança por feitiçaria. “Aldeia grande” não se opõe a “aldeia pequena”, mas a pequenos assentamentos familiares que não se caracterizam como “aldeias”.15 Buridina é um desses pequenos assentamentos, não-aldeias. Uma mulher, por exemplo, me dizia sobre seu irmão, que acabou mudando-se dali para a Ilha do Bananal: “meu irmão gostava de ser índio. Ele queria viver em aldeia, mesmo. Aqui não servia para ele”. É nesse sentido que devemos entender a afirmação que seus moradores fazem de que “a aldeia acabou”, na década de 1940. Ela não se extinguiu 212

Livro Conhecimento e Cultura.indd 212

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

enquanto um hãwa (aldeia/território/lugar), mas enquanto uma “aldeia grande”, ritualmente ativa e potencialmente conflitiva. Vendo a “aldeia grande” – i.e, as festas, a atividade ritual – acabar, Jacinto escolheu por permanecer ali, uma opção que parece ter sido mesmo pela ruptura. Isso pode ser entrevisto, por exemplo, em sua declarada vontade de criar as crianças com tranquilidade, livres das restrições e perigos do ritual. Ele optou, além disso, pela quebra dos vínculos rituais com outras aldeias. Durante o Hetohokỹ, por exemplo, a aldeia que sedia a festa recebe muitas famílias de outras localidades, que vêm para assistir, simplesmente, ou para que um menino seja iniciado. Mas apesar de a comunicação com outras aldeias não ter ficado interrompida desde a década de 1950, nenhum dos Karajá mais velhos jamais levou seus filhos e netos para participar das festas. O cacique Raul Hawa(k)a’ti me dizia que Jacinto nunca o fez, pois, dizia ele, os meninos não tinham preparo. Tinha medo que eles fizessem ou dissessem algo errado. Por mais que ele estivesse sempre falando sobre como as coisas funcionavam, eles não tinham experiência prática, i.e., nunca tinham vivenciado. Isso parecia ser algo especialmente grave em relação às moças, sobre as quais a rigidez das regras rituais pesa muito mais do que sobre os homens. “Como nós éramos muito atentadas, ele tinha medo”, uma mulher me disse. Como cresceram em Buridina, estavam acostumadas a andar livremente, conversar com “todo mundo” etc., ao contrário das mulheres das aldeias da Ilha do Bananal, cujo comportamento é contido, andam de cabeça baixa (evitando o contato visual)16 e “não conversam com qualquer pessoa fácil, não”. “Acho melhor vocês ficaram por aqui e casar com tori mesmo, já que não tem outro jeito”, dizia Jacinto. Não deixa de ser curioso que, depois de ter feito uma opção por romper com a vida de “aldeia grande” – e com os vínculos rituais, conflitos e feitiçaria nela implicados –, ele alegue que não tem outro jeito. Ma(k)urehi, ao fazer a opção por permanecer em Buridina, não sabia quais seriam os resultados, a médio prazo, daquele experimento. Justamente porque parece se tratar precisamente disto, uma experiência, que, sem dúvida, gerou seus efeitos colaterais. A diferença de comportamento entre os rapazes e moças desta aldeia e de outros jovens da Ilha do Bananal é uma consequência da especificidade territorial de Buridina, i.e., de sua conjunção com a cidade. Como diz o Cacique Raul, eles foram criados “no meio do povão” (convivendo cotidianamente com não-índios) – “com a liberdade do menino não-índio”, como quis Jacinto –, desenvolvendo, assim, uma outra socialidade, que, parece-me, se configurou como um padrão nesta aldeia. Se, por um lado, certamente a experiência dessa primeira geração de jovens guarda suas diferenças para com a experiência da juventude atual (a terceira geração), a

213

Livro Conhecimento e Cultura.indd 213

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

diferença de comportamento em relação a seus parentes da Ilha parece ter permanecido basicamente a mesma. Mas se opção de Jacinto em permanecer ali foi um experimento, o que exatamente eles queriam e estavam experimentando? Depois de tudo que já foi dito aqui, não é difícil chegar à conclusão de que se tratava de uma experimentação do mundo dos tori. Em relação aos casamentos, já vimos como os Karajá optaram, num primeiro momento, tanto pelos cônjuges quanto pelo padrão de casamento dos regionais, um movimento que inverteu a uxorilocalidade do grupo. Tendo sido criados “no meio do povão”, na cidade, o padrão de socialidade que ali se configurou em muito coincide com a socialidade dos não-índios. Houve, de fato, um empenho em aprender a ser branco, tanto por parte dos jovens quanto dos mais velhos, e isto desde muito cedo. Já em 1908, Krause relata a presença de uma aldeia ao lado da vila de Leopoldina, descrevendo-a como habitada por “índios civilizados, que preferem as vantagens da civilização (fumo, sal) à convivência com a tribu” (1941: 241). Baldus (1948: 145-148), em um relato sobre uma curta passagem por esta aldeia no ano de 1947, faz uma curiosa descrição da sua situação de “aculturação”, descrevendo a presença de objetos industrializados e do uso das roupas dos brancos, convivendo com utensílios, vestimentas e adornos Karajá. Em Ossami de Moura (2006: 327) encontramos três fotos do interior da casa de Jacinto Ma(k)urehi e de sua mulher Lídia Dikuria, tiradas já no ano de 1991. Numa delas vemos uma televisão sobre um pequeno móvel. Em suas prateleiras há vários livros, todos perfeitamente organizados, e um forro triangular bordado que o enfeita, certamente uma réplica perfeita do interior de uma casa regional. Na outra, vemos uma estante cheia de panelas de alumínio e alguns pratos. Estas panelas, nos contam alguns indígenas, eram um dos principais fascínios dos Karajá antigos com o mundo tori. Na terceira, vemos Lídia Dikuria cozinhando num fogão a gás. Poderíamos, enfim, recolher inúmeros fragmentos que nos auxiliariam a reforçar a hipótese que exponho. Mas vou me deter aqui sobre um último ponto, pois ele indica que essa é justamente a imagem que alguns dos Karajá da Ilha fazem destes seus congêneres. Desde pelo menos a década de 1960, seus parentes da aldeia de Santa Isabel começaram a chamar os moradores de Buridina de tori hãwa mahadu, expressão cuja tradução literal seria “pessoal (mahãdu) da aldeia/território/lugar (hãwa) dos brancos (tori)”. Os próprios Karajá de outras aldeias, assim, passaram a reconhecer a relação de conhecimento privilegiada de Buridina em relação ao mundo dos brancos. Nessa época, me disse um senhor, alguns Karajá da Ilha do Bananal iam até esta aldeia fazer trocas. Levavam coisas como um enfeite plumário ou um feixe de sementes de melancia e desejavam artigos industrializados como roupas. Por vezes, o produto trazido não tinha 214

Livro Conhecimento e Cultura.indd 214

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

valor (monetário) equivalente ao da roupa, fato desconhecido pelos visitantes. Mas a ética Karajá reza que pedidos de parentes próximos não devem ser negados, algo que causou constrangimento a alguns destes visitantes quando o descobriram. Ainda hoje essa associação com o mundo dos brancos permanece. Quando os indígenas desta aldeia chegaram a Santa Isabel, alguns anos atrás, para a ocasião de assistir ao Hetohokỹ, escutaram de seus parentes o seguinte comentário: “Lá vêm os tori de Buridina” ([Cavalcanti-]Schiel 2002: 50). Isso não ocorreu uma única vez. Conversando com um homem sobre o assunto, ele me relatava um comentário semelhante, falando que os Karajá de Santa Isabel dizem que até o sotaque do inỹrybè destes seus parentes (daqueles que o falam fluentemente) “puxa mais para o lado do branco”.17 Seria apressado, entretanto, supor que os Karajá de Santa Isabel pensam que seus parentes de Buridina não são índios, até mesmo porque eles são reconhecidos como indígenas em diversas situações. Mas continuemos pela via do conceito tori hãwa mahãdu. Se falei de uma “tradução literal” é porque há algumas sutilezas no significado desta expressão. Hãwa é um conceito traduzido pelos índios como aldeia, lugar onde se situa/constrói uma aldeia, ou simplesmente como lugar. Se as aldeias Karajá são inỹ hãwa, as cidades dos brancos são tori hãwa, “aldeia/território/lugar dos brancos”. Esta informação está também presente na etnografia de Donahue (1982: 172). Assim, penso que uma tradução mais apropriada para a expressão em questão seria “pessoal da cidade”, indicando que a experiência urbana destes Karajá é, ao mesmo tempo, uma experiência do mundo tori. * ** Vimos aqui que os Karajá de Buridina optaram por permanecer junto à cidade de Aruanã e por casar com seus moradores tori. Percorrendo estes eventos e tentando desvendar as intenções e escolhas dos personagens dessa trama, fica claro que no fundo desta história narrada está uma vontade de conhecer o mundo dos brancos, conhecimento esse que só pode ser obtido por vias da experiência, viver com e como os tori. É, com efeito, por via dessa experimentação de uma vida outra, ou melhor, de uma perspectiva outra, que o conhecimento pode se dar. Acredito que os Karajá tenham sido bem-sucedidos nessa empreitada e logo a situação deixou de ser um experimento para se transformar propriamente na vida deles. Mas isso não encerra a questão, pois, para tornar-se tori, eles não deixaram de ser Karajá, nem nesses tempos antigos, aqui narrados, nem nos dias de hoje. No que se segue, investiremos sobre o sentido desta duplicidade e da relação que eles estabelecem entre ambos “os lados”, entre ser índio e ser branco, 215

Livro Conhecimento e Cultura.indd 215

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

entre o conhecimento e a perspectiva de índios e não-índios. Se até aqui vimos as intenções envolvidas nessa história, agora nos concentraremos no resultado dessa experiência, i.e., como se constituiu esse conhecimento.

Mestiçagem e mistura A vida atual dos Karajá de Buridina é marcada por uma dualidade entre seu próprio mundo e o dos tori. Porém, ao contrário do que supõem os estereótipos e preconceitos, “virar branco” é apenas metade da questão, por assim dizer. Há também as relações de parentesco, o inỹrybè, as comidas típicas, as disputas políticas características do grupo, xamanismo (ainda que sem xamãs reconhecidos), práticas de resguardo, nominação, etc. Não se trata, assim, de escolher entre essas duas perspectivas qual seria mais apropriada para descrever essa comunidade. Nem, muito menos, de escrever uma “história do meio”, algo como uma negação de seu estigma de aculturados por meio do reconhecimento de que seu engajamento extremo no mundo dos brancos não lhes tira a condição de indígenas, pois sua tradição não estaria em contradição com a nossa “modernidade”. Não que isso não seja verdade. Pelo contrário, trabalhos como os de Sahlins (1997a; 1997b), demonstram a fecundidade dessa abordagem para compreendermos situações como esta. O ponto é que ela resolve a questão para nós mesmos, i.e., desfaz contradições que antes existiam no nosso pensamento. Para o pensamento indígena, porém, a questão parece se pôr em outros termos. Acredito que, para os Karajá de Buridina, essas são duas histórias distintas e legítimas, e não duas versões de uma única história. Há sempre a possibilidade de contar ambas, mas nunca ao mesmo tempo. O meio (o mestiço, a mistura) não é um entre dois, no sentido de um lugar intermediário entre os mundos indígena e não-indígena. O meio não é um um, é um dois sem intervalo, no qual, em cada momento, só se pode estar em um dos lados. O meio é ambos os lados, sem nunca sê-los ao mesmo tempo. Não há um ponto de vista mestiço, misturado, pois o meio é a possibilidade de ser ambos. *** Na década de 1970, como dito acima, teve início a mestiçagem. Algumas décadas depois, podemos perceber que um dos resultados deste processo foi a instauração de um novo padrão de casamentos. Desde então, as uniões entre dois indígenas é rara e, geralmente, fruto de particularidades das histórias pessoais: o normal, poder-se-ia dizer, é casar com tori. Dessa forma, a grande maioria dos atuais casamentos (77,8%) envolve um cônjuge não-indígena. Sendo, portanto, 216

Livro Conhecimento e Cultura.indd 216

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

a mestiçagem uma questão tão ampla e importante nesta aldeia, como os Karajá conceitualizam este processo? Há uma tríade conceitual indígena básica: puro, mestiço e tori. Índio(a) puro(a), ou simplesmente puro, é a pessoa cujos dois genitores são indígenas (ou seja, puros). Os mestiços são os frutos das uniões destes com os tori, i. e, os não-índios.18 Esta é uma forma geral de classificação, mas que, estritamente, só abrange as duas primeiras gerações – A, B, D, E, no Diagrama 1. O que acontece, então, quando descemos neste diagrama? Como são classificados/pensados os netos, bisnetos etc., deste primeiro casamento misturado? Os Karajá formulam tal questão a partir de dois principais idiomas: o da geração e o da distância.

O primeiro opera por uma espécie de marcação da geração do indivíduo ao qual se refere. Explico-me. Seguindo o exemplo do Diagrama 1, se uma mulher pura (A) se casa com um homem tori (B), terão uma filha mestiça (E). Se ela (E) se casa novamente com um homem tori (F), os filhos do casal (I, J) serão ainda considerados mestiços, mas “mestiços de terceira geração”, ou simplesmente “de terceira geração” (g3, no Diagrama 1). Se um destes (J), por sua vez, repete o matrimônio com não-índio (K), os filhos do casal (M) serão ditos “mestiços de quarta geração”, ou simplesmente “de quarta geração” (g4). E assim sucessivamente. Por vezes, os Karajá se referem aos mestiços (D, E) como “de segunda geração” (g2), sobretudo em contextos em que estão fazendo cálculos sobre um fragmento de genealogia. Mestiço, portanto, é um termo não marcado: pode tanto se referir 217

Livro Conhecimento e Cultura.indd 217

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

a qualquer indivíduo que tenha não-índios nas gerações ascendentes próximas quanto especificamente à “segunda geração”. Note-se que esta formulação está focada nos sucessivos matrimônios com os regionais. Uma segunda formulação está pautada no idioma da distância. Trata-se de uma forma geral de classificação que permite pensar sobre outras situações além dos casamentos com tori. Muitas vezes interpelei pessoas com perguntas tais como: se os filhos de índios com não-índios são mestiços, os filhos destes últimos com não-índios seriam o quê? Ainda mestiços? Haveria outra categoria para classificá-los? E quanto aos filhos de mestiços com índios puros? Apenas algumas pessoas responderam a essas questões de forma assertiva: filhos de mestiços com não-índios são tori, já não são mais indígenas; e filhos de mestiços com índios puros voltam a ser puros. A maioria das respostas que recebi, entretanto, eram mais vagas – “Rapaz, não sei! Acho que...” –, ­­­ mas concordam com essa formulação assertiva num sentido: nas falas dos Karajá há um consenso de que o casamento com tori provoca um afastamento em relação à cultura/ característica indígena (o que corresponde a uma progressão no esquema das gerações, de A[g1] para E[g2], para J[g3]...), ao passo que casar com índio puro direciona esse processo no sentido contrário (a passagem de I[g3] para L[g2] ou de D para G, por exemplo). Assim, quanto aos filhos de mestiços com tori (I, J e M), por exemplo, dizem que “vai distanciando”, “vai acabando”, “puxa mais para o lado do branco”; já os filhos de mestiços com índios puros (G), “acho que volta [a ser puro], não é?”, “volta de novo”, “puxa mais pro lado do índio”. Nesta formulação, a volta é um caminho possível, como se pode notar. Mesmo com uma distância genealógica considerável. Não importa de qual geração é um mestiço, se de terceira ou de quinta, sexta: se ele (um homem, suponhamos) se casar com uma índia pura, o filho do casal voltará à segunda geração. Afinal, se assumimos sua linha de descendência materna como referência, o deslocamento é apenas de uma geração.19 Já os filhos de casamentos entre dois mestiços continuam mestiços: afinal, um casamento entre iguais não provoca nem distanciamento nem aproximação – da mesma forma que filho de dois índios puros é igualmente puro ou filho de dois tori é igualmente tori. Paralela às duas formulações apresentadas, os Karajá utilizam ainda uma outra: o sangue.20 Um mestiço traz consigo sangues diferentes, vindos tanto da mãe quanto do pai. É comum ouvir comentários do tipo “fulano, quer ver, já tem três sangues, Karajá, Javaé e Tori!”, falando de um mestiço cujo pai, por exemplo, seja um índio (mestiço de Karajá e Javaé) e a mãe seja tori. 218

Livro Conhecimento e Cultura.indd 218

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

*** Os Karajá, advirto, falam de mestiços, mas não de mestiçagem: este é o termo que escolhi utilizar para me referir exclusivamente aos casamentos entre índios e regionais e as crianças deles resultantes. O conceito utilizado pelos indígenas é mistura, que tem um significado mais abrangente que este outro. Em suas falas sobre este processo e sobre algumas de suas consequências, pode-se escutar comentários com mesmo teor, ora se referindo aos mestiços, ora se referindo aos jovens, em geral. A mestiçagem, poder-se-ia dizer, é um caso particular de um processo mais amplo, que não se restringe à questão biológica. A mistura, assim, é o que está em foco: ela é uma questão tanto para mestiços quanto para puros.21 Hoje, os Karajá dizem não haver problema que os jovens se casem com não-índios, desde que, com isso, não deixem de devotar a devida atenção à cultura e tradição indígenas.22 Em Portela (2006:169), encontramos um exemplo desta postura em uma fala de um indígena citada pela autora: “mas o meu caso é mais tentar fazer que a aldeia mantenha sua cultura, num importa que tá casando com não-índio, não importa não, porque as duas coisas são importantes”. Também o Cacique Raul me dizia que, “no meu modo de ver, não tem jeito de parar os meninos de casar na cidade. Contanto que mantenha a cultura, pode casar [com tori] à vontade!”. Ou, como disse um homem quando o perguntei se a mestiçagem não seria um problema,“o importante para nós é guardar a cultura na memória, no sangue”, me respondeu. “Não importa que a mãe ou o pai não seja índio?”, continuei. “Pode ter o olho azul, não importa”. De modo análogo, também não se vê problema na mistura, como a fala de um homem karajá bem o exemplifica. A mistura não tem problema, não. Porque todos nós, seres humanos, somos assim, misturados. Para mim, não importa a característica, se é de índio, se não é. Importa é ele saber quem ele é, filho de índio. Então, para ele, as duas coisas são importantes, tanto o conhecimento do índio como o do não-índio. As duas coisas são importantes para nós, como para nossas crianças. O meu lado direito [do cérebro] pode ser inỹ, o esquerdo é tori! Longe de verem a mistura como um problema, os Karajá de Buridina enfatizam a importância dos “dois lados” (as culturas/perspectivas indígena e não-indígena). Ela é, antes, constitutiva da vida dos indígenas desta aldeia. Seu cotidiano é dividido, para tudo há dois lados. Detenhamo-nos um pouco sobre alguns exemplos desta dualidade.

219

Livro Conhecimento e Cultura.indd 219

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

A começar pelo nome da aldeia. Alguns afirmam que é uma corruptela do antigo nome da cidade (Leopoldina). Outros, entretanto, dizem que Buridina é uma aproximação para o português do verdadeiro nome da aldeia em inỹrybè: burudena hãwa, termo cuja tradução aproximada seria “lugar onde há muita concha buru”. Come-se tanto comida inỹ quanto tori, a primeira sendo obtida essencialmente pelas vias tradicionais (pesca, sobretudo), ao passo que a segunda é comprada no comércio local. Fala-se tanto a língua indígena quanto o português, e todos têm um nome inỹ e um nome não-indígena. Há o reconhecimento de que aldeia e cidade são marcadas por distintas socialidades, que não se confundem. Dizem que a cidade tem suas “leis”, falam “na lei da cidade”, na “lei do branco”, a “organização lá de fora”, utilizando estes termos para contrastar com a “cultura”, o “jeito cultural”, o “nosso jeito” ou a “lei do índio”. Renan, por exemplo, me explicou certa vez: Quando a gente vai pra cidade, quando atravessa o portão [da aldeia] ali, tem que tirar a memória indígena, guardar no bolso e colocar a memória de não-índio no lugar [gesticulando com as mãos como se tirasse e colocasse pequenos chips de memória em sua cabeça]. Quando chega pra cumprimentar alguém é “bom dia”, “como vão os senhores?”, se for uma mulher abraça e dá um beijo no rosto, ou então dá um beijo nas costas da mão. Aí vão saber que quem está ali é um cavalheiro. Por que os índios não se cumprimentam assim, é na distância, não se encostam. Aí quando passa do portão pra dentro tem que tirar a memória do não-índio da cabeça e colocar a memória indígena, que estava guardada [no bolso], no lugar. Aí volta a funcionar do nosso jeito. Então a gente tem que ter essas duas memórias, e as duas são muito importantes pra gente. Todos nesta aldeia têm tori em suas famílias e, assim, entretêm com eles relações de parentesco. Por outro lado, a incapacidade destes parentes tori de se comportarem como parentes verdadeiros, sendo muitas vezes avarentos, preguiçosos ou mesmo utilizando o matrimônio interétnico como suporte e/ou justificativa para cometer infrações legais, marca sempre, aos olhos dos Karajá, seu lado Outro. ***

220

Livro Conhecimento e Cultura.indd 220

26/4/2011 12:20:53

Eduardo Nunes

Voltemos aos cálculos da mistura, cujas formulações foram apresentadas no início da seção. Seriam aquelas equações genealógicas e sanguíneas uma teoria genética da inter-relação cultural? Certamente não, mas certamente sim. Explico-me. Certamente não, se o que temos em mente são tipos similares de explicação (sociobiológicas, sociogenéticas) que ainda hoje podemos encontrar em nosso próprio mundo. Por outro lado, não pretendo dizer, com isso, que a explicação indígena seja metafórica, que falam de corpo querendo dizer outra coisa: trata-se sim de uma teoria corporal. Apenas seus corpos são diferentes dos nossos (cf., por exemplo, Viveiros de Castro 2002). As teorias sociais ameríndias são tão corporais quanto suas teorias corporais são sociais: mais precisamente, essa distinção [entre o corpo (natural, dado) e relações sociais (construídas)], clássica entre nós, não existe entre eles, como bem mostra Patrícia Rodrigues para o caso Javaé. “O sujeito humano”, diz a autora, “não é uma abstração racional ou imaterial, mas antes de tudo um corpo” (2008:407). Se a distinção entre atributos da mente e atributos do corpo não nos ajuda a melhor compreender o que se passa no mundo ameríndio, nossas noções sociais (e mentais) de mudança e relação cultural também tampouco o fazem. Uma mudança social, para os ameríndios, apresenta sempre um correlato corporal, ou melhor, é sempre ela própria corporal: “não há mudança espiritual que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de suas afecções e capacidades” (Viveiros de Castro 2002:390). O que poderíamos dizer, então, sobre o caso dos Karajá? “Eu valorizo muito os dois lados. Não valorizo só a nossa cultura, não só a do branco: uma complementa a outra”, dizem constantemente os Karajá. Um homem, por exemplo, criticava a atitude de algumas pessoas da aldeia porque, quando morre alguém, “eles fazem é levar padre lá pra rezar”. Ele disse não concordar com isso por não estar-se fazendo “do jeito cultural”. O correto, prosseguiu, era que as duas “religiões” (como ele dizia) estivessem presentes, não só a dos tori: “a cruz e o itxe(k)ò,23 tem que ter os dois, mas o corpo é um só”. Ou, como ele próprio havia dito em outra oportunidade, “minha característica é indígena, mas eu uso duas coisas ao mesmo tempo, característica, língua...” Se a mistura, para os Karajá de Buridina, como argumentei, é um dois sem intervalo, uma duplicidade na qual só se pode estar de um dos lados – sob uma das perspectivas – a cada momento, o aspecto corporal deste fenômeno só pode se apresentar também como uma duplicidade. Vejamos o caso dos xamãs Wari’, que nos fornecerá uma imagem deste ser dois. Tudo começa com uma doença, quando “o xamã dorme e sonha com karawa, que ele vê com a forma humana, como um igual. É durante o sonho que ele será banhado por jamikarawa e se sentirá ‘curado’, com melhor disposição física” 221

Livro Conhecimento e Cultura.indd 221

26/4/2011 12:20:53

“ O pessoal da cidade”

(Vilaça 1992:82). Com o banho, “o jam [do xamã] torna-se karawa [animal], e com isso o processo de desaparecimento do corpo físico (doença-morte) é interrompido; o agora xamã se torna um doente crônico, um wari’ com jam autônomo, um homem-animal” (id. ibid.:83). “Tudo se passa como se o xamã tivesse dois corpos: um humano, entre os Wari’, e outro animal, junto aos animais” (id. ibid.:80). “Diz-se que o xamã jamu, ou seja, por meio de seu espírito, ele se transformou e passou a ter um outro corpo” (Vilaça 2006:203).24 A relação dos Wari’ com os brancos se daria de maneira similar: assim como o xamã não deixa de ser wari’, humano, quando ele jamu, i.e., quando sua “alma” torna-se um corpo animal, o conhecimento e a experimentação do mundo dos brancos constituem-se como um outro corpo-perspectiva possível, que não exclui seu ponto de vista indígena. Nas palavras da autora: Eu diria que os Wari’ querem continuar a ser Wari’ sendo brancos. Em primeiro lugar, porque desejam as duas coisas ao mesmo tempo, os dois pontos de vista. (...) Os Wari’, pelo que entendo, não querem ser iguais aos brancos, mas mantê-los como inimigos, preservar a diferença sem, no entanto, deixar de experimentá-la. Nesse sentido, vivem hoje uma experiência análoga a de seus xamãs: têm dois corpos simultâneos (id. ibid.:515). Às conclusões as quais a autora chega, percebe-se logo, vão precisamente ao encontro da descrição que faço aqui. Também para os Karajá de Buridina, a relação entre seu próprio ponto de vista e o dos tori, mediada pelos casamentos misturados, se constitui como uma questão corporal: a possibilidade de uma experiência dupla (o ser dois, poder acessar dois pontos de vista, como faz o xamã) corresponde a uma duplicidade dos corpos. Não se trata, porém, de algo que é viabilizado por um corpo duplo, mas de algo que o corpo duplo é: uma experiência dupla. Assim, para os Karajá, segundo percebo, essa relação é o próprio corpo mestiço. Note-se que quando falam dos sangues de uma pessoa mestiça, por exemplo, os Karajá não falam de um sangue misturado, como no caso Piro (Gow 1991), mas dos dois (três, quatro...) sangues da pessoa. “Então nós temos quatro sangues misturados”, me dizia uma senhora. Ou quando eu conversava com um homem sobre os possíveis futuros filhos de uma jovem mestiça (cujo pai era mestiço de Karajá e Javaé) casada com um índio Xerente, ele comentou que “a criança já vai ter, quer ver... quatro sangues: Karajá, Javaé, tori e Xerente”. Uma perspectiva-corpo misturada não funde os corpos-perspectivas que lhe dão origem: ela apenas os põe em relação. O mestiço, a mistura, parece encarnar justamente essa relação. Não um um (um único sangue), mas um dois sem intervalo (dois sangues em um mesmo corpo), onde só se pode estar na relação de um dos lados, sob uma das perspectivas. 222

Livro Conhecimento e Cultura.indd 222

26/4/2011 12:20:54

Eduardo Nunes

E se, como argumentei, essa relação (a mistura) não se restringe aos mestiços, não havia motivos para supormos que, no que tange aos corpos, isto seria diferente: os corpos puros são tão duplos quanto os corpos mestiços. A procriação – o que diferencia, afinal, puros e mestiços – é apenas uma parte do processo de construção de um corpo-pessoa propriamente indígena (humano). Nem mesmo a concepção é, como entre nós, aquele momento mágico que inaugura um processo de desenvolvimento biológico autônomo. Entre os Karajá, como entre muitíssimos outros grupos ameríndios, a formação do feto depende de contínuas relações sexuais: o desenvolvimento do corpo do filho depende do acúmulo de sêmen paterno no útero,25 não é algo automático. Os corpos-pessoas não nascem nem prontos, nem mesmo humanos: é necessário que se os construa, desde dentro da barriga (cf. Coelho de Souza 2004). E, importante, isso se faz por diversos processos, que vão desde a alimentação e “técnicas corporais” (como o uso de certos adornos, escarificações e aplicação de substâncias geralmente vegetais) aos cuidados e carinhos dos parentes (cf. Gow 1997). Os “corpos aqui”, em suma, “são feitos, não dados, e uma etnografia após a outra tem mostrado como os corpos são construídos e transformados por meio do compartilhamento de substâncias como os alimentos, as palavras e as doenças” (Gow 2003:66). Em Buridina, todos estes processos são misturados, tanto para os índios puros quanto para os mestiços. Já falamos, por exemplo, que se come tanto “comida de índio” quanto “comida de tori”; que a maior parte das pessoas tem tanto parentes inỹ quanto tori; que se tem dois nomes, um indígena e outro não. Para tudo, enfim, há dois lados. A mestiçagem é a linguagem privilegiada pelos Karajá de Buridina para falar da mistura, justamente porque o corpo mestiço, contendo em si os dois sangues, sem nunca misturá-los, encarna ele próprio o modelo da relação entre as perspectivas: contendo ambos os pontos de vista em si, ele é a própria relação.

Conclusão Depois de tudo o que foi dito acima, poderíamos nos perguntar: o que significa, para os Karajá de Buridina, conhecer os tori? Certamente, estamos falando de uma filosofia guiada por um outro ideal de conhecimento. Tendo em vista o xamanismo, Viveiros de Castro argumenta que, para o pensamento ameríndio,“conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido – daquilo,ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente” (2002:358). Se falamos, porém, de uma filosofia ou pensamento, esses conceitos certamente não dão conta da forma do conhecimento indígena, pois aqui não se 223

Livro Conhecimento e Cultura.indd 223

26/4/2011 12:20:54

“ O pessoal da cidade”

trata de abstrair algo – uma atividade da (nossa) mente –, mas sim de experimentar um ponto de vista – uma atividade do corpo (indígena). Certa vez, por exemplo, o Cacique Raul me contou que passou sete ou oito anos frequentando uma igreja evangélica e que, quando já estava quase se tornando pastor, decidiu sair. Surpreso, perguntei porque, depois de tão longa data, optou por abandonar a vida religiosa, ao que ele respondeu: “Não, eu entrei só para conhecer, mesmo”. A experimentação das perspectivas alheias, percebe-se, é algo que se leva muito a sério. Se olhamos para a história de Buridina, vemos que, para conhecer os brancos, os Karajá precisaram viver com e como eles. Assim, “virar branco”, longe de ser um movimento contra-identitário, é uma prática de conhecimento. E se, como disse acima, o pensamento ameríndio prescinde de uma divisão entre o material e o imaterial, entre os atributos da alma e os atributos da matéria, o lugar do conhecimento, como uma prática de acesso a perspectivas outras, é o corpo. Depois de mais de trinta anos vivendo na cidade, casando-se com os tori e tendo filhos com eles, esse conhecimento se inscreveu no corpo dos Karajá de Buridima, ou melhor, se constituiu como um segundo corpo. A mistura, assim, pode ser vista como a própria história desta aldeia, um corpo (duplo) que é o conhecimento de si e de outrem, a possibilidade de ser ambos.

224

Livro Conhecimento e Cultura.indd 224

26/4/2011 12:20:54

Eduardo Nunes

Notas Em Motta (2004) encontramos diversas falas de moradores da cidade e de turistas que explicitam a imagem que eles fazem dos índios. 2 Inỹ é o termo de autodesignação dos Karajá, Javaé e Karajá do Norte (Xambioá); rybè significa “fala”, “língua”, “modo de falar”. Essa língua apresenta uma diferenciação da fala segundo o sexo do falante, geralmente caracterizada pela inserção, na variante feminina, de uma consoante (majoritariamente o “k”, mas também o “n” e o “tx”) onde há um encontro vocálico na fala masculina (ou no caso de algumas palavras iniciadas com vogais). Os parênteses nas palavras grafadas nesta língua representam a inserção da consoante na fala feminina. 3 “A reação normal de quase todos os Karajá, quando os julgam feiticeiros, é negar tal qualidade, alegando ser apenas curadores” (Fénelon Costa 1978:43). 4 Cf. Rodrigues (1993:150) e Donahue (1982:217) sobre as duas faces do xamã karajá. 5 Fala de Raul Hawa(k)a’ti, em Portela (2006:152). 6 Este córrego, juntamente com outro, Bandeirantes – situado pouco mais a montante, já bem próximo da foz do rio Vermelho –, são hoje os limites sul e norte da Gleba I da T.I. Karajá de Aruanã, que ainda conta com duas outras glebas. Para informações sobre as áreas e detalhes do processo de demarcação, cf. Braga 2002. 7 Fala de Raul Hawa(k)a’ti, em Almeida (2007:23). 8 As informações sobre a quantidade de pessoas que esta aldeia chegou a aglutinar são controversas, variando entre 300 (Pechincha & Silveira 1986:2), 800 ([Cavalcanti-]Schiel 2002:44) e mil pessoas (Almeida 2007:23) – todas baseadas em relatos indígenas. A julgar tanto pelo comprimento das fileiras de casas (segundo a memória indígena) quanto pela presença de duas casas rituais, esta última estimativa parece mais provável. Se tomamos em comparação as maiores aldeias hoje existentes, com populações variando entre 300 e 600 pessoas (cf. a tabela das populações das aldeias atuais elaborada por Rodrigues 2008:168-170), nenhuma delas é grande o suficiente para possuir duas destas casas. Nem mesmo na grande Canoanã, que chegou a reunir 800 pessoas, este foi o caso. 9 A este respeito, cf., por exemplo, a descrição de Lima Filho (1994) do ritual Hetohokỹ. 10 Ibò(k)ò, o extremo do rio acima, é um termo de referência espacial (em contraposição à iraru, o extremo do rio abaixo) mas que encerra um componente valorativo associado à tripartição cósmica. Tudo o que está associado ao alto, ao extremo rio acima, ao leste, à luz e à cor branca e ao biuwètyky (o céu, um patamar cósmico superior) é valorizado, em contraposição ao que está associado ao oeste, ao baixo, ao extremo rio abaixo, à falta de luz e à cor negra e aos patamares cósmicos inferiores (cf. Rodrigues 2008). 11 “Historiadores” são pessoas reconhecidas por serem grande conhecedoras da terminologia de parentesco e das relações (de respeito, evitação, proximidade etc.) que ela implica, das genealogias e de histórias de tempos antigos (narrativas míticas). 12 A literatura especializada concorda quanto à preferência pela endogamia de aldeia – cf. Rodrigues (2008:738), Donahue (1982:145) e Lima Filho (1994:134). 13 Em Portela (2006:74), por exemplo, encontramos uma carta do então prefeito da cidade, datada de 1975, relatando a situação da comunidade e cobrando atitudes do órgão. 14 Trata-se do episódio ocorrido no local hoje conhecido como inỹwèbohona (cf., p. ex., Erenreich 1948:81; Rodrigues 1993:273-274; Rodrigues 2008:578-579). 15 Em outros níveis de contraste, entretanto, como no caso de todos os assentamentos Karajá e/ou Javaé estarem em consideração ou no caso de um (pequeno) assentamento específico ser o foco da fala, a palavra “aldeia” serve como uma categoria abrangente. Assim, pode-se ouvir os Karajá de Buridina se referir ao seu local de moradia como uma aldeia, assim como quando falam das “aldeias Karajá”, também estão incluindo Buridina neste grupo.

225

Livro Conhecimento e Cultura.indd 225

26/4/2011 12:20:54

“ O pessoal da cidade”

A troca de olhares é um indicativo de desejo sexual. Cf. outro registro semelhante em Portela (2006:206 – fala de Uberena). 18 Esclareço que os trabalhos de Cavalcanti-Schiel (2002 2008) já haviam registrado esta tricotomia classificatória básica e abordado alguns aspectos relativos à mestiçagem, e, assim, acabaram por se constituir em um de meus pontos de apoio. 19 O Diagrama 1, advirta-se, não é genealógico: ele apenas sintetiza (com o engessamento próprio deste tipo de representação), a lógica dos cálculos feitos pelos Karajá a partir de ambos os idiomas, o da geração e o da distância. 20 Patrícia Rodrigues diz sobre os Javaé, que “não se acredita que o parentesco seja baseado no compartilhar de um mesmo sangue”: reconhecem-se laços bilaterais de descendência pela “mistura do sêmen paterno [que forma o corpo da criança] e de influências menos visíveis das substâncias maternas”, configurando uma consubstancialidade que não é uma consanguinidade (2008:521). Quando os Karajá falam de sangue, porém, não parecem estar se referindo à substância-sangue. Quando perguntei a algumas pessoas se a criança, quando nascia, trazia consigo tanto o sangue da mãe quanto o do pai, recebi sempre uma negação como resposta. Assim, quando dizem, p. ex. que “o sangue puxa”, estão se referindo a uma conexão entre os pais e a criança – os “laços bilaterais de descendência” de que fala Rodrigues – cujo veículo não parece ser a substância do sangue. Eis aqui uma dimensão da etnografia Karajá e Javaé que ainda merece ser mais explorada. 21 Em sua etnografia sobre os Yãnomãmi do Ocamo, na Venezuela, José Kelly (no prelo), fala da relação destes indígenas com os brancos como uma “anti-mestiçagem”. Sua descrição guarda enormes semelhanças com o que, seguindo os termos dos Karajá, chamo de mistura. Infelizmente, porém, só tive a oportunidade de ler o trabalho do autor depois de ter escrito minha monografia sobre Buridina. 22 Há, nesta aldeia, sobretudo por parte dos mais velhos, um discurso que associa a mistura à “perda da cultura”, ou ao “fim da tradição”. Porém, como mostrei alhures (Nunes 2010), o problema não reside no fato da mistura, mas na forma específica que este processo vinha tomando em Buridina, principalmente devido ao forte preconceito dos regionais e a pressão para deixarem o território que ocupavam. A partir do início da demarcação das terras e, sobretudo, da implementação do Projeto de Educação e Cultura Maurehi, em 1994, cujo objetivo era justamente a reversão deste quadro (cf. Pimentel da Silva 2009), esse panorama negativo vem se revertendo. Hoje, os Karajá demonstram otimismo ao ver o interesse das crianças em aumentar seu conhecimento da cultura karajá. 23 “É a cruz indígena”, artefato antropomorfo de madeira adornado que se coloca na cabeceira do túmulo. Cf. Ehrenheich (1948:66-68). 24 Cf. o restante da descrição aqui resumida em Vilaça (1992:79-83; 2006:202-207). 25 Sobre o caso Karajá, cf. Donahue (1982:106) e Lima Filho (1994:132). Sobre os Javaé, cf. Rodrigues (1993:50-51). 16 17

226

Livro Conhecimento e Cultura.indd 226

26/4/2011 12:20:54

Eduardo Nunes

Referências ALMEIDA, Rita Heloísa de. 2007. Levantamento demográfico e socioeconômico nas aldeias Buridina e Hurehawa e nos perímetros urbanos de Aruanã e Cocalinho, estados de Mato Grosso e Goiás. Brasília, CGEP-Funai. 45 pp. BALDUS, Herbert. 1948. “As tribos do Araguaia e o Serviço de Proteção aos Índios”. Revista do Museu Paulista, N.S., vol. II. BRAGA, André. G.. 2002. A demarcação de Terras Indígenas como processo de reafirmação étnica: o caso dos Karajá de Aruanã. Monografia de graduação – Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília. 49 pp. [CAVALCANTI-]SCHIEL, Helena M. 2002. Etnicidade ou lógica cultural? Os Karajá de Buridina e a cidade de Aruanã. Monografia de graduação, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília. 63 pp. ______. 2008. “Dançando cacofonias. A relação aldeia-cidade entre os Karajá”. Ensaio inédito. 45 pp. COELHO DE SOUZA, Marcela S. 2004. “Parentes de sangue: incesto, substância e relação no pensamento Timbira”. Mana (10)1:25-60. DIESTSCHY, Hans. 1978. “Graus de Idade entre os Karajá do Brasil Central”. Revista de Antropologia, 21:69-86. DONAHUE, George. 1982. A contribution to the ethnography of the Karajá Indians of Central Brazil. Tese de doutorado, Universidade da Virgínia. 344 pp. ERENREICH, Paul. 1948. “Contribuições para a etnologia do Brasil”. Revista do Museu Paulista, 2:7-135. FÉNELON COSTA, Maria Heloisa. 1978. A arte e o artista na sociedade Karajá. Brasília: Funai. GOW, Peter. 1991. Of mixed blood. Kinship and history in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press. ______. 1997. “O parentesco como consciência humana: o caso dos Piro”. Mana 3(2):3965. ______. 2003. “‘Ex-cocama’: identidades em transformação na Amazônia Peruana”. Mana (9)1:57-79. KELLY, José Antonio. no prelo. Becoming napë?: a symmetrical ethnography of healthcare delivery among the Upper Orinoco Yãnomãmi. Tucson: University of Arizona Press. LIMA FILHO, Manuel Ferreira. 1994. Hetohokỹ: um rito Karajá. Goiânia: Editora UCG. MOTTA, Olga Maria Fernandes. 2004. Os Karajá, o Rio Araguaia e os Outros: territorialidades em conflito. Dissertação de mestrado em Geografia, Universidade Federal de Goiás. 93 pp.

227

Livro Conhecimento e Cultura.indd 227

26/4/2011 12:20:54

“ O pessoal da cidade”

NUNES, Eduardo S. 2010. “De corpos duplos: mestiçagem, mistura e relação entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO)”. Cadernos de Campo, 19:113-134. PECHINCHA, Mônica S. & SILVEIRA, Ester M.O. 1986. Relatório circunstanciado de identificação de área indígena. Brasília: Funai. PIMENTEL DA SILVA, Maria do Socorro. 2009. Reflexões sociolinguísticas sobre línguas indígenas ameaçadas. Goiânia: Editora da UCG. PORTELA, Cristiane de Assis. 2006. Nem ressurgidos, nem emergentes: A resistência histórica dos Karajá de Buridina em Aruanã – GO (1980-2006). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia. 233 pp. RODRIGUES, Patrícia de Mendonça. 1993. O povo do meio: tempo, cosmo e gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal. Dissertação de mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília. 438pp. ______. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Tese de doutorado em Antropologia, Universidade de Chicago, Chicago. 953 pp. TORAL, André Amaral de. 1992. Cosmologia e Sociedade Karajá. Dissertação de mestrado – PPGAS-Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 287 pp. VIERA FILHO, João Paulo Botelho. 1976. “Os índios Carajá da cidade de Aruanã”. Revista de Antropologia, 22:151-152. VILAÇA, Aparecida. 1992. Comendo como gente. Formas de canibalismo Wari’. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Anpocs. ______. 2006. Quem somos nós? Os Wari’ encontram os brancos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2002. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify. pp. 345-399.

228

Livro Conhecimento e Cultura.indd 228

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos: reflexões acerca do pedido de patrimonialização da Ayahuasca

Júlia Otero dos Santos

Esse trabalho investiga os possíveis significados, contextos, atores e redes que emergem a partir do pedido de reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio cultural do Brasil. A variedade de usos e concepções relativos à bebida por parte dos grupos solicitantes – Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal –, bem como de alguns povos ameríndios que a utilizam, acaba por colocar a própria beberagem no centro da questão, obviando de certa forma os modos de fazer, saber e transmitir envolvidos nesse cenário. A diversidade de denominações, mitos de origem, símbolos e rituais que gravitam em torno da bebida faz questionar se estamos sempre diante de um mesmo objeto quando se pretende inventariar seus usos rituais, conforme sugestão do Iphan. Por meio da análise de alguns dos contextos de utilização da Ayahuasca – nas igrejas associadas no pedido de patrimonialização e em alguns povos ameríndios –, buscarei mostrar ser possível ver a bebida como um agente não-humano associado a humanos em diferentes redes ou contextos, em lugar de pensá-la como um objeto único significado de diferentes formas: cada contexto cria sua “Ayahuasca”. A inspiração para esta leitura é múltipla. Assim, nos termos de Gell (1998), o exercício é conceber a Ayahusca como um agente sempre causador de efeitos em sua vizinhança. Com Latour (1988), trata-se de pensá-la enquanto um ator ou actante associado em várias redes. E em um vocabulário wagneriano, procurarei investigar como o contexto molda o objeto (Wagner 1981). 229

Livro Conhecimento e Cultura.indd 229

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Patrimônio cultural no Brasil: alguns apontamentos Inspirado pela Convenção da Unesco sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, e pela Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de 1989 (documento proposto por alguns países de Terceiro Mundo), o Estado brasileiro vem buscando criar e implementar meios de proteção e promoção dos modos de criar, fazer e viver característicos dos mais diversos grupos integrantes da sociedade nacional. É nesse ambiente de discussão promovido pela Unesco que surgem expressões como “patrimônio intangível” ou “patrimônio imaterial” – um conceito que, segundo Sant’Anna (2006:17), enfatiza mais o processo e o conhecimento envolvidos na produção de um bem cultural do que o produto em si. Em agosto de 2008, assim, foi aprovado no Brasil o Decreto n° 3.551, instituindo o registro de bens culturais de natureza imaterial. Interessa-nos aqui analisar as implicações e os pressupostos quanto à natureza do “objeto” envolvido no pedido, por parte de algumas religiões, de reconhecimento do uso religioso da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil. No Processo 01450.008678/2008-61, aberto em 20/05/08, a Prefeitura de Rio Branco-AC, a partir do diálogo com os três troncos fundadores das doutrinas contemporâneas ayahuasqueiras, solicitou ao Ministro da Cultura que se instaurasse o “processo de reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira”.1 A justificativa apresentada no documento é a afirmação de que “as doutrinas do Daime/Vegetal como estabelecidas por seus mestres fundadores tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo assim receber nosso reconhecimento como patrimônio cultural do nosso país”. Ainda nesse documento, afirma-se que a utilização ritual da Ayahuasca preenche os quesitos que permitiriam caracterizá-la como patrimônio imaterial. Quais seriam esses quesitos? Uma breve investigação da legislação pertinente e dos materiais governamentais mostra que os conceitos e definições não possuem contornos muito nítidos, o que pode por um lado gerar alguma confusão nos trâmites mas também, por outro, permite evitar o engessamento dos procedimentos de reconhecimento e registro dos bens imateriais. O Decreto n° 3.551 menciona somente os critérios de continuidade histórica e relevância nacional para a memória, identidade e formação da sociedade brasileira. Nesses critérios, parece caber uma diversidade de manifestações, classificadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (Iphan) – órgão vinculado ao Ministério da Cultura e responsável pela política do patrimônio – em quatro categorias ou Livros de registro: 230

Livro Conhecimento e Cultura.indd 230

26/4/2011 12:20:54

Júlia Otero dos Santos

Livro dos Saberes – para o registro de conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro das Celebrações – para as festas, rituais e folguedos que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e outras práticas da vida social; Livro das Formas de Expressão – para a inscrição das manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e o Livro dos Lugares – destinado à inscrição de espaços como mercados, feiras, praças e santuários onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. (Sant’anna, 2006:20)2 É nesse escopo de “materialização” da cultura que o patrimônio cultural imaterial ganha (às vezes literalmente) substância. Como o uso ritualizado de uma bebida de origem indígena em religiões com forte caráter sincrético pode figurar nessa política? Este é o cenário em construção no qual se situa a solicitação junto ao Iphan por parte de algumas religiões que fazem uso da bebida composta pelo cipó denominado de Jagube ou Mariri (Banisteropis caapi) e pela folha da Chacrona ou Rainha (Psychotria viridis). Em reunião realizada em 26/11/2008, a Câmara do Patrimônio Imaterial3 recusou o registro da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil sob a alegação de que este não apresentava elementos suficientes para a identificação do objeto do Registro em relação às categorias e critérios estabelecidos pelo Decreto 3551/2000. Segundo a ata da reunião, observou-se que “comidas, bebidas, assim como crenças, filosofias e teologias, não constituem em si bens culturais passíveis de Registro, mas sim, referências para a produção e reprodução de processos, representações e práticas culturais”. Ainda segundo o documento, o caso em questão exigiria uma “investigação dos usos rituais da Ayahuasca e seu papel na constituição de referências culturais para os grupos sociais envolvidos”. Sugere-se, assim, “a realização de um inventário4 amplo acerca dos rituais em que se faz uso da Ayahuasca, a partir de sua origem indígena, até os dias atuais”. O estabelecimento de uma continuidade entre a origem ameríndia e os usos religiosos por não-índios parece pressupor que está em jogo um objeto único, uma bebida com atributos e propriedades fixos independente de sua inserção em diferentes contextos e redes. A decisão da Câmara dá a entender que os solicitantes parecem confundir o produto – a Ayahuasca – com seus modos rituais de utilização. A materialidade da bebida parece capturar a todos (religiosos, órgão responsável pelas políticas de patrimônio e pesquisadores), obscurecendo a percepção de que o estatuto ontológico das coisas depende de suas relações em um contexto específico. 231

Livro Conhecimento e Cultura.indd 231

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Como nos ensina Wagner (1981), os significados são função dos modos pelos quais criamos e, por outro lado, experimentamos contextos, vindo a existir, portanto, somente em suas mútuas relações. Não existem significados primários. As operações de definir e de estender uma palavra ou um elemento simbólico são a mesma operação, ou ainda: “todo uso de um elemento simbólico é uma extensão inovadora de associações adquiridas por meio da integração convencional a outros contextos”5 (1981:39). Logo, os significados primários são definidos de acordo com a importância e prioridades determinadas social e simbolicamente, o que leva o autor a afirmar que a definição primária é um compromisso ideológico. Por que supor que a Ayahuasca é desde sempre (ou, em vocabulário wagneriano, primariamente) indígena? A continuidade entre origem indígena e uso religioso não deve ser tomada como óbvia. Não estou questionando aqui a ciência indígena envolvida na invenção e preparo da bebida, nem o fato de serem os índios os precursores de seu uso. É consenso que a disseminação da Ayahuasca ocorreu a partir do contato das populações locais com povos indígenas que se relacionam com o cipó, principalmente a partir do segundo fluxo de exploração da borracha, durante as primeiras décadas do século XX. Não houve, contudo, coalizão de interesses entre as religiões ayahuasqueiras e os povos indígenas que também se utilizam da planta. A preocupação do órgão com o acesso ao conhecimento tradicional produzido por índios é compreensível, pois o registro de um bem cultural de origem ameríndia que exclua esses povos poderia eventualmente criar descontentamentos e futuras reivindicações. Não estou propondo ignorar os interesses e entendimentos desses povos quanto à possível declaração do uso ritual da bebida como patrimônio imaterial do Brasil, mas apenas questionar a tendência, nesse processo, a conceber a bebida como um objeto “lá no mundo” (moderno, claro), independentemente de seus contextos de uso. Ainda que não se faça nenhuma descrição das formas rituais de utilização da beberagem, dos saberes envolvidos e da participação das pessoas na carta em que se solicita o pedido de registro, o objeto de reivindicação, contudo, é explicitamente seu uso ritualizado, conforme expresso em trecho da solicitação: “reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira” (grifo meu). Apesar dessa lacuna no processo, existe uma literatura considerável a respeito do uso ritual da Ayahuasca, que servirá aqui de material para reflexão.

Daime, Vegetal, Hoasca: a Ayahuasca no contexto religioso A Ayahuasca – com sua multiplicidade de nomes e contextos – parece ser esse objeto que se alterna na posição de agente ou paciente nos diferentes ambientes 232

Livro Conhecimento e Cultura.indd 232

26/4/2011 12:20:54

Júlia Otero dos Santos

em que aparece, conforme pensado por Gell em Art and Agency­(1998). Se acompanhamos o autor e pensamos a agência não enquanto intuição não mediada, mas a partir da detecção de seus efeitos no ambiente causal, ficamos mais preparados para traçar as movimentações em torno da Ayahuasca e para levar a sério o que seus “consumidores” estão nos dizendo. Interessa-me percorrer os caminhos da beberagem, buscando perceber como ela atua no campo da ação social nos diferentes espaços em que circula. A bebida aparece, assim, ora como um agente propriamente dito, causador ele mesmo de efeitos em sua vizinhança (um “agente primário”, nos termos de Gell), ora enquanto índice – instrumento da agência social de humanos e não-humanos. Embora o interesse maior de Gell esteja focalizado nos objetos artísticos, sua teoria antropológica acerca da mobilização de princípios estéticos no curso da interação social pode ser facilmente estendida para contextos em que o foco não esteja na estética, uma vez que o autor nos fornece um vocabulário para imaginar um universo no qual tanto humanos quanto não-humanos podem deixar impressas as marcas de sua ação, causando efeitos em sua vizinhança.6 Quando se trata de reunir humanos e não-humanos, também não podemos deixar de nos referir ao pensamento de Latour (1988:35). Uma inspiração aqui é a ideia latouriana de que não conhecemos de antemão os agentes envolvidos na ação, ou nas palavras do autor: “nós não sabemos quem são os agentes que fazem o mundo. Devemos começar com essa incerteza se pretendemos entender como, pouco a pouco os agentes definem uns aos outros, intimando outros agentes e atribuindo a eles intenções e estratégias” (1988: 35). As coisas só ganham existência a partir de testes de força o que soa muito similar à ideia de Gell de que não se pode dizer que alguém/algo é um agente antes que aja como tal, ou seja, que perturbe o ambiente causal de modo que a perturbação possa ser atribuída à sua agência (1998: 20). Os mundos que nos interessam aqui gravitam em torno de (outros) mundos conhecidos por meio do uso da Ayahuasca.7 Os grupos e doutrinas religiosos envolvidas no pedido de patrimonialização surgem em diferentes períodos do século XX e têm em comum o fato de serem fruto do encontro de migrantes nordestinos que foram trabalhar nos seringais da Amazônia ocidental com as tradições locais, principalmente dos povos indígenas da região. É no meio de um ambiente até então desconhecido e de um trabalho árduo que Irineu Serra (1892-1971), Daniel Pereira de Mattos (1888-1958), ambos maranhenses, e José Gabriel da Costa (1922-1971), baiano, conhecem a Ayahuasca e fundam, respectivamente, o CICLU-Santo Daime por volta de 1930, a Barquinha em 1945 (ambos no Acre), e o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, mais conhecido como União do Vegetal ou UDV em 1961 (em Rondônia). 233

Livro Conhecimento e Cultura.indd 233

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Cada um dos fundadores tem sua história particular de contato e revelação com a bebida, a qual sempre envolve um mito fundador. Os relatos de adeptos e os textos acadêmicos divergem quanto a alguns pontos e datas referentes aos fundadores e à origem dessas religiões, o que é perfeitamente compreensível uma vez que se trata de doutrinas cuja transmissão é principalmente oral. Assim, também as interpretações acerca dos principais símbolos dessas religiões são ricamente diversas. Raimundo Irineu Serra conheceu a bebida provavelmente por volta de 1914 em um seringal no Acre. Após uma miração – visões experimentadas durante a força psicoativa da bebida – com uma mulher chamada Clara, a Rainha da Floresta, associada à Virgem Nossa Senhora da Conceição Imaculada, Irineu começa a fazer uso da bebida em rituais com valores cristãos. É a partir dessa experiência e com a autorização da Rainha da Floresta para realizar trabalhos de cura que surge o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU)8 (cf. Oliveira 2007: 177). Daniel Pereira de Mattos começou seus trabalhos com a Ayahuasca no CICLU, comandado por Irineu. Segundo Araújo (2004), Daniel recebeu duas vezes uma mensagem de dois anjos que desciam do céu com um livro para ele, a primeira vez tendo sido em um sonho e a segunda, anos depois, enquanto encontrava-se enfermo e era tratado por Irineu Serra. Após a revelação, Daniel cria sua própria linha religiosa, primeiramente denominada Capelinha e mais tarde de “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz”, comumente conhecida como Barquinha. Segundo Lúcia Gentil e Henrique Gentil (2004), José Gabriel da Costa conheceu a beberagem em 1959 com outros seringueiros em um seringal próximo à fronteira com a Bolívia, onde bebeu o chá com sua família durante três anos, “vivenciando um processo de recordação de sua missão de (re)criar a União do Vegetal” (Gentil e Gentil 2004: 561). A doutrina constituída por Mestre Gabriel é uma obra milenar cujo criador foi o rei Salomão, a qual, por não ter tido continuidade na Terra, ficou desconhecida por muitos séculos e foi resgatada por Gabriel, que se apresenta assim como o re-criador dessa “obra milenar”. Todas essas doutrinas são cristãs e se reconhecem de alguma forma como constituídas pela fusão de elementos de diferentes religiões, como o kardecismo e a umbanda. Nesse universo, cercado de uma aura de segredo, no qual rituais e símbolos diferenciam-se de uma religião para outra, a Ayahuasca permanece como o fio condutor da análise. A primeira coisa que chama a atenção é a variedade de nomes atribuídos à bebida ingerida nos rituais. No Santo Daime, ela é conhecida como Santo Daime ou simplesmente Daime, nome pelo qual é igualmente chamada na Barquinha, 234

Livro Conhecimento e Cultura.indd 234

26/4/2011 12:20:54

Júlia Otero dos Santos

que também adota o termo Chá. Na UDV, é denominada de Vegetal ou Hoasca. Esses nomes materializam-se a partir das diferentes histórias de contato de seus fundadores com a bebida. Uma investigação mais detalhada das concepções que os adeptos fazem da beberagem revela algumas distinções entre o Daime e a Hoasca. Para os adeptos da UDV, ela aparece como instrumento de concentração mental que possibilita a recepção dos ensinamentos da doutrina. Já para aqueles que tomam o Daime, a bebida é claramente percebida como um ser dotado de intenções, aproximando-se, assim das visões indígenas e vegetalistas acerca da Ayahuasca.9 Como coloca Couto (2004), a bebida é sagrada, veículo de comunhão entre pessoas e seres espirituais, objeto de veneração, agente de revelação e conhecimento. Para Oliveira (2007), há um ser divino na bebida, que ensina aos seguidores: [...] para os daimistas, em síntese, quem ensina é o Daime, percebido não apenas como uma bebida, mas como um ser divino que se manifesta em um sacramento e o que ele ensina é a doutrina, seus princípios morais, éticos e filosóficos, ou seja, o seu ordenamento simbólico que se aprende ao longo do consumo ritualizado da bebida na religião e na vivência comunitária dos adeptos. (Oliveira 2007: 50) Embora o Daime nem sempre apareça humanizado no Santo Daime, ele é certamente percebido ali como uma entidade dotada de capacidade de ação. Como coloca Gell (1998), a agência social não é sempre definida em termos de atributos biológicos básicos – como poderíamos pensar uma vez inseridos na matriz ocidental, que costuma operar com a oposição entre coisa inanimada e pessoa encarnada. A agência é relacional: ao atribuir o status de “agente social” não importa o que uma coisa ou pessoa é em-si mesma, mas onde ela está em uma rede de relações sociais (1998: 123). Isso porque a agência assim compreendida encontra-se na detecção dos efeitos da ação no ambiente causal, em lugar de se tratar de uma intuição não mediada – o que nos permite entendê-la como um fator do ambiente como um todo, uma característica global do mundo das coisas e das pessoas, e não como um atributo exclusivo da psique humana. Obviamente, não pretendo com essas observações obliterar o lugar da ação humana no uso ritual do Daime – considere-se por exemplo o trabalho espiritual conduzido no salão pelo padrinho e/ou madrinha responsáveis pela igreja. Oliveira afirma que há uma compreensão entre os daimistas de que o efeito do Daime depende dos cuidados envolvidos em sua elaboração. Além disso, “a perfeição e a firmeza na execução do ritual dão força ao Mestre,10 ou seja, são fatores que contribuem para o incremento da força fluídica da bebida” (2007: 252). 235

Livro Conhecimento e Cultura.indd 235

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Estamos, portanto, falando de um conjunto de relações que envolvem humanos e não-humanos. O desenrolar do ritual no salão não é a representação de eventos, mas o testemunho de um resultado: o resultado ou efeito da mobilização de relações. Uma paralelo poderia ser feto com a análise de Strathern (1999) da fotografia do dançarino Hagen vestido com seus adereços rituais. Cada corpo decorado é único, exibe as relações às quais a pessoa teve de recorrer para se apresentar de uma forma apropriada. Diferentemente do retrato, no qual o que está pré-figurado são os traços fisionômicos, na fotografia do dançarino Hagen são as relações que aparecem: a foto do dançarino não é o retrato nem de um indivíduo nem de um grupo. Não se trata de um retrato porque “a individualidade repousa não tanto na aparência quanto no ato de reunir” (Strathern, 1999: 41). Os homens dançam com aparências quase idênticas, mas para tanto cada um recorreu às suas próprias relações, as quais marcam sua individualidade. No salão do Santo Daime, homens e mulheres também dançam, ou melhor, bailam, uniformizados e também de forma quase idêntica; no entanto, cada um/a recorreu a seus próprios guias espirituais, à preparação a que se submeteu para ingestão da bebida11 e a sua posição específica na igreja.12 O trabalho espiritual realizado por cada pessoa é o efeito dessas mobilizações. Como em Hagen, “testemunhamos um resultado: o resultado ou efeito de mobilizar relações” (Strathern 1999: 41). A União do Vegetal, com sua cosmologia própria, descortina outro contexto, dentro do qual a Hoasca ou Vegetal parece ser reconhecido mais como instrumento mental do que como um agente. Segundo Gentil e Gentil, “para a UDV, a Hoasca é um veículo, um instrumento de concentração mental, através do qual a doutrina do Mestre Gabriel é difundida a seus discípulos” (Gentil & Gentil 2004: 561). A bebida também pode ser percebida como “facilitadora da concentração mental para, neste estado em que a sensibilidade se aflora e a consciência se altera, veicular o seu conteúdo religioso, forjado pelo Espiritismo e pelo Cristianismo”13 (Andrade 2004: 59). Esse estado mental diferenciado é atingido por meio da burracheira que, segundo Mestre Gabriel, significa “‘força estranha’, é a presença da força e da luz do Vegetal na consciência daquele que bebeu o chá. Assim, trata-se de um transe diverso, no qual não há perda da consciência, mas sim iluminação e percepção de uma força desconhecida” (Brissac 2004: 583). O discurso da UDV, expresso em seu estatuto e em materiais de divulgação, insere-se dentro de uma lógica bem racionalista e cientificista, o que explica a tentativa de dissociar a ideia de transe de inconsciência e de associar os efeitos do Vegetal a estados mentais e não espirituais. Diferentemente do Daime, onde a bebida pode ser compreendida como um ser vivo que ensina a cada seguidor/a, na UDV aprende-se do mestre que conduz a sessão e não diretamente da Hoasca. 236

Livro Conhecimento e Cultura.indd 236

26/4/2011 12:20:54

Júlia Otero dos Santos

O mestre pode ser visto, portanto, como um porta-voz que expressa o que o agente não-humano está dizendo (Latour 1988). Ele é o intérprete do invisível. Já no Santo Daime, parece que cada participante do ritual é porta-voz de si mesmo, sendo capaz de interpretar a seu modo e a partir dos ensinamentos da doutrina a experiência vivenciada com a ingestão do chá. É claro que essas experiências são compartilhadas coletivamente, o que auxilia no trabalho de compreensão das intuições e mirações. As diferenças na concepção da bebida também aparecem no interior de uma mesma doutrina. Dentro do Santo Daime podemos ver a emergência de dois contextos separados no tempo, a partir dos quais emergem dois objetos claramente distintos. Segundo Oliveira (2007), o Santo Daime seria um aprimoramento da utilização ancestral da bebida, legada pela cultura inca. Antes de ser doutrinada, a beberagem chamava-se Ayahuasca. Depois passa a ser designada por Daime. Como diz um dos entrevistados pela autora: “antes era Ayahuasca. Mas esse era o nome primitivo, ainda sem a doutrina. O nome doutrinado é Daime”. E quem nomeia é a Rainha da Floresta, que faz de Mestre Irineu seu porta-voz. Do rogativo formado pelo verbo dar e a partícula me, tem-se “dai-me, dai-me força, dai-me luz, Daime, Santo Daime”. A tradução de Ayahuasca em Daime se faz em associação com a cristianização da bebida, o que talvez explique um silêncio quanto aos vinte anos em que Irineu viveu na floresta.14 Há poucas informações referentes à Barquinha, o que dificulta qualquer formulação acerca da concepção dos adeptos sobre o Daime ingerido durante os trabalhos. Segundo Araújo (2004: 545), a bebida é considerada uma substância de poder e, para poder tomá-la, a pessoa precisa se mostrar digna dela, passando por uma série de provas que, no entanto, não são descritas pelo autor. Ainda de acordo com Araújo, “o enteógeno também é tido como um instrutor que ensina os participantes dos rituais que o utilizam. Estes ensinamentos estão presentes desde o momento em que Mestre Daniel resolveu formar a missão através do Livro Azul” (Araújo 2004: 545). A beberagem para os adeptos da Barquinha parece aproximar-se das concepções de daimistas e vegetalistas, o que pode ser explicado pelo fato de Mestre Daniel ter iniciado-se nos trabalhos com Ayahuasca com Mestre Irineu. Percebemos assim que, para os adeptos do Santo Daime (e provavelmente para os da Barquinha), o chá é um mestre que ensina diretamente seus discípulos, os quais podem ser pensados como índices a partir dos quais a ação do Daime pode ser “abduzida” (Gell 1998).15 Já para os freqüentadores da UDV, o Hoasca é um instrumento de concentração mental que, em associação com a intervenção do Mestre que conduz a sessão, “transmite as orientações doutrinárias úteis à transformação individual”.16 237

Livro Conhecimento e Cultura.indd 237

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Conexões parciais: a multiplicidade dos contextos de uso da Ayahuasca As origens diversas atribuídas à bebida, as concepções diferenciadas vivenciadas dentro de cada doutrina, bem como a condução ritual de seu sacramento, apontam para a centralidade dos contextos específicos de uso em sua definição, levando-nos a questionar o quanto estamos autorizados a falar aqui de um objeto único – a Ayahuasca. Ainda assim, para as doutrinas motivadoras do processo junto ao Iphan, ao menos diante do Estado, trata-se de uma mesma “coisa” – a Ayahuasca, conforme consta na documentação. Embora tenham concepções distintas acerca da bebida e a consagrem de acordo com os mandamentos particulares de suas religiões, integrantes da UDV, Barquinha e CICLU resolveram se associar e, considerando a sugestão de Latour (1988) de que toda associação envolve negociações e ajustes por definição políticos, seria conveniente uma investigação mais detalhada dos fundamentos e implicações desta associação – para além do fato óbvio de que tal associação fortalece os atores que compõem a rede de patrimonialização da Ayahuasca – que não será possível realizar aqui. Ainda inspirados pelo autor, lembramos que “nada é, por si mesmo, o mesmo ou diferente de outra coisa qualquer. Isto é, não existem equivalentes, somente traduções” (Latour 1988: 162). O contexto do processo acaba por criar uma nova rede em que a bebida se insere, tornando experiências que poderiam ser vistas como distintas equivalentes, ao menos perante o Estado. Os grupos que encabeçam a solicitação de reconhecimento do uso ritual da beberagem enquanto patrimônio imaterial consideram-se como sendo os três troncos fundadores das religiões ayahuasqueiras e se auto-denominam comunidades tradicionais da Ayahuasca em oposição às comunidades originárias (povos indígenas) e comunidades ecléticas (CEFLURIS e diversos outras religiões ditas neo-ayahuasqueiras).17 Conforme a descrição apresentada, pode-se notar que a origem ameríndia da bebida é assumida pelos devotos dessas religiões apenas como um dos componentes de sua totalidade sincrética. As ditas comunidades originárias são reconhecidas como detentoras de um saber transmitido aos fundadores das doutrinas tradicionais, mas pouco aparecem nos processos que a Ayahuasca teve de enfrentar perante o Estado, seja no caso do patrimônio ou da liberação do uso religioso, assunto que será tratado mais adiante. Nos estudos sobre o uso indígena da bebida, percebemos um uso intimamente ligado à prática xamânica. A beberagem aparece em grande parte das narrativas míticas dos povos Pano, Aruaque e Tucano. Para esses índios, ela [...] é um agente capaz de revelar os segredos do universo e apresentar a face real de outros seres igualmente dotados de humanidade, mas que no estado de percepção normal são plantas e animais. Assim, a 238

Livro Conhecimento e Cultura.indd 238

26/4/2011 12:20:54

Júlia Otero dos Santos

Ayahuasca permite o acesso a uma outra realidade, ou seja, ‘possibilita a percepção da igualdade entre os seres, vendo como humanos (iguais) os seres encantados’ (Vasconcelos 2009: 14). A Ayahuasca apresenta-se aqui como um ser dotado de alma que possibilita o contato com outros seres, imaginados como fonte de conhecimento e poder. A ingestão da beberagem possibilita, assim, visões e acesso ao mundo espiritual. Até o momento, operei com os seguintes níveis na distinção entre os contextos de uso da Ayahuasca: descrevi a utilização da bebida na UDV, Santo Daime e Barquinha, para depois englobá-la em um contexto religioso tradicional, conforme essas doutrinas posicionam-se perante o Estado (e parecem ser por ele percebidas) em oposição ao uso indígena da bebida.18 Contudo, a depender de onde “cortamos” o social ou das conexões (parciais, sempre) assim criadas, esses dois contextos podem ser agrupados em um – que se poderia descrever apressadamente como uso para fins espirituais – em oposição, por exemplo, a uma utilização recreativa. Nesse sentido, é importante ressaltar que o pedido de patrimonialização da Ayahuasca foi precedido em muitos anos pelo debate sobre sua legalidade. A legislação sobre o uso da bebida começou a tomar forma no início dos anos 1980, a partir de denúncias sobre o uso de um chá alucinógeno e de Cannabis sativa na Colônia Cinco Mil, comunidade original do Padrinho Sebastião, pertencente à linha do CEFLURIS. Em 1985, formou-se a primeira equipe multidisciplinar para avaliar e regulamentar o uso da Ayahuasca, o que culminou na criação de uma comissão de trabalho para analisar suas formas de consumo, sob a égide do então Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN, atual Secretaria Nacional Anti-Drogas – SENAD). Em 1985, a Ayahuasca foi colocada na lista das substâncias proscritas pela Divisão de Medicamentos (DIMED) do Ministério da Saúde, mas os estudos realizados pela comissão levaram à retirada da bebida da lista em 1986. Em 1992, a legalidade da Ayahuasca voltou a ser questionada, outra vez por acusações de uso indevido juntamente com outras substâncias ilícitas. Foi instalada uma comissão mista, com a inclusão de membros das entidades usuárias e orientada pelo CONFEN, tendo como resultado a produção de um relatório que repudiou o teor intolerante das acusações e confirmou a suspensão da interdição da bebida (Labate 2004: 413). Conforme observado por Pedreira (2009), o foco da regulamentação é a definição de um objeto cultural restrito ao âmbito religioso. No âmbito da legalização do uso religioso da Ayahuasca, as comunidades tradicionais já haviam optado por se associarem,19 buscando criar, nas palavras de Pedreira, uma identidade geral calcada em uma utilização específica da bebida: assim, “o uso permissivo 239

Livro Conhecimento e Cultura.indd 239

26/4/2011 12:20:54

Diferentes contextos, múltiplos objetos

só pode ocorrer dentro de padrões que devem delimitar as diferentes linhas que usam o chá e agrupá-las sob o valor de um mesmo objeto, tomado como único e sinônimo do próprio ritual” (2009: 28). Para liberar, portanto, é preciso controlar o significado o uso ritual, isto é, “traduzi[r] a deontologia do uso da Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado”, conforme explicita o relatório final Grupo Multidisciplinar de Trabalho sobre a Ayahuasca (GMT-Ayahuasca) do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) instituído em 2006, com o objetivo de contribuir para a plena implementação do que até então havia sido discutido e aprovado “sobre o uso religioso da Ayahuasca”. Prevenir quanto ao uso inadequado (em outras palavras, não-tradicional, não-religioso, não-ritual) corresponde, assim, a listar formas corretas e responsáveis de utilização da Ayahuasca. Todo o esforço empreendido pelos órgãos ligados à temática das drogas visa, assim, a garantir o uso religioso da bebida. É nesse sentido que comunidades tradicionais, comunidades ecléticas e até mesmo comunidades originárias poderiam ser pensadas como um contexto único em oposição ao “uso recreativo” da Ayahuasca. A bebida para essas comunidades é, generalizando, sacramento. Já para os não-religiosos, apresentar-se-ia, aos olhos de religiosos e do Estado, como droga, substância ilícita. Se o processo de legalização da Ayahuasca cria um objeto cultural “religioso”, que objeto pode surgir a partir do inventário sugerido pelo Iphan? Novos significados, ou simplesmente significados diversos, estão em jogo no “campo ritual ayahuasqueiro”. Esse é um fato importante quando nos deparamos com a demanda pela patrimonialização. É possível incluir significados plurais em compreensões institucionalizadas do que está “dentro” ou “fora” do reconhecimento do Estado?

Considerações finais: patrimônio e inventário como objetificação da cultura Este trabalho buscou identificar alguns dos contextos e redes em que a Ayahuasca está inserida e como, a depender desde onde se olha ou de quais testes de força se enfrentam, essas redes acabam associando-se, estendendo-se ou retraindo-se. Ao levar em conta as redes e contextos em que a beberagem está inserida, ficamos mais aptos a perceber como ela adquire significados a partir da relação entre os vários agentes que compõem essa rede, o que implica que a variação dos elementos e de seus arranjos sociais acaba por criar uma diversidade de Ayahuascas. Nessa imensidão de conexões, a beberagem não é um objeto do mundo natural a ser significado culturalmente, mas um agente/paciente sempre determinado pelos efeitos das ações dos outros atores envolvidos. Seu estatuto ontológico depende dos outros termos das relações e batalhas em que se engaja. 240

Livro Conhecimento e Cultura.indd 240

26/4/2011 12:20:54

Júlia Otero dos Santos

Como diria Latour, “novos testes produzem um novo agente” (1988: 98). Assim, em cada rede e contexto por onde a(s) Ayahuasca(s) transita(m), criam-se sentidos, sujeitos e objetos distintos. As descrições apresentadas nos mostram como a bebida e seus usos têm uma forma particular – ou, nos termos de Strathern em suas análises da troca na Melanésia, uma forma apropriada para aparecer – diferente para membros das comunidades tradicionais da ayahuasca, indígenas ou pesquisadores. Enquanto para o Santo Daime e para populações indígenas amazônicas, por exemplo, a planta é um “mestre” que ensina, é dotada de intencionalidade, reflexão e características altamente humanizadas, para a UDV a bebida é um objeto, um meio material de se chegar a uma finalidade mental. Portanto, desde que se entenda que esse objeto é plural, que está se falando de Ayahuascas, a realização do inventário pode ser um bom caminho para se mapear o uso ritual da bebida. A ideia de se inventariar ou patrimonializar um bem não deixa de nos remeter às noções de invenção e objetificação da cultura conforme propostas por Wagner (1981). Para se patrimonializar ou inventariar, é preciso pensar o universo de consumo da Ayahuasca como uma cultura, isto é, estender a ideia de cultura para esse universo, ou como diria Wagner, metaforizar a vida em cultura – descrever em termos desse conceito o que para alguns é simplesmente vida. Como é possível descrever uso ritual da Ayahuasca em sua multiplicidade? No processo da transferência de associações dos contextos de uso da bebida para outro contexto (seja o do registro de bem cultural ou de inventário), é possível que a invenção e particularidade dos usos manejados pelas diversas comunidades não sejam pulverizadas ou reificadas? A objetificação da Ayahuasca que os aparatos do Estado operam, seja por meio dos possíveis estudos/políticas no âmbito do patrimônio ou da regulamentação de seu uso religioso, dificilmente conseguiria escapar da lógica convencional operada por uma simbolismo coletivizante (Wagner), uma vez que é vocação do Estado conceder ordem e integração racional ao vivido. Os efeitos disso sobre a lógica da objetificação diferenciante, ou seja, que especifica e concretiza o mundo desenhando distinções radicais e delineando suas individualidades, que me parece mais próxima daquela operante em pelo menos alguns dos contextos de utilização da Ayahuasca, é difícil de prever. Seria preciso investigar casos concretos de patrimonialização para recolocar a pergunta: será possível pensar em um “regime jurídico suis generis” que não violente as diferenças, e o constante diferenciar, que constituem aquilo que pode ou não pode ser considerado patrimônio da nação?

241

Livro Conhecimento e Cultura.indd 241

26/4/2011 12:20:55

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Notas Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém-Pará, Brasil. Esse trabalho é parte de um dossiê mais completo sobre o pedido de patrimonialização da Ayahuasca produzido no âmbito da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação” ministrada pela professora Marcela Coelho de Souza no PPGAS DAN/UnB em 2008. O dossiê foi elaborado coletivamente e agradeço a meus colegas Walison Vasconcelos, Paulo Roberto Nunes Ferreira, Carolina Pedreira, Antonio R. Guerreiro Júnior e Pedro de Lemos MacDowell a autorização e o incentivo para submetê-lo à apresentação. Reproduzo aqui com uma série de alterações a parte de minha autoria, sempre inspirada pelas discussões e reflexões dos colegas (o dossiê completo será publicado pela Série Antropologia da UnB). Sem as contribuições de Marcela Coelho de Souza bem como de suas aulas esse trabalho não seria possível. Agradeço às funcionárias do Iphan Sílvia Guimarães e Fabíola Cardoso pelo acesso ao processo e pelos esclarecimentos prestados sempre que solicitadas. Os três troncos envolvidos na solicitação são: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo (CICLU- Santo Daime); Casa de Jesus – Fonte de Luz (Barquinha) e Centro Espírita Beneficente União do Vegetal – UDV. O CEFLURIS, uma linha do Santo Daime fundada pelo Padrinho Sebastião Mota Melo, segundo o documento, não foi convidado a entrar na comissão “por ter elementos complementares destoantes das demais doutrinas”. 2 O Decreto n° 3.351 prevê a possibilidade de abertura de novos Livros de Registro. 3 Essa câmara é composta por notáveis e tem entre outras funções fazer uma triagem dos processos que devem seguir adiante. 4 No âmbito das políticas para o patrimônio imaterial, o inventário tem como objetivo a produção de conhecimento sobre as expressões culturais. 5 Todas as traduções dos textos referidos em língua original são minhas. 6 Creio que Gell aprovaria tal apropriação de sua teoria: “antropologia da arte, para reiterar, é somente antropologia mesmo, exceto que ela lida com essas situações nas quais há um ‘índice de agência’ que é normalmente um tipo de artefato” (1998: 66). 7 Diante da variedade de nomes (e até mesmo das folhas que se unem ao cipó no preparo da bebida) pelo qual a Ayahuasca é conhecida entre os adeptos das diferentes doutrinas religiosas, povos ameríndios e outros grupos que fazem uso da bebida, é preciso esclarecer que optei por esta denominação para identificar a bebida composta pela Banisteropis caapi e pela folha da Psychotria viridis por ser esse o nome que consta no processo do Iphan. Ayahuasca, do quéchua “cipó dos deuses” ou “vinho das almas”, é certamente o nome mais popular da combinação do cipó com a chacrona e pode até mesmo ser visto como porta-voz (Latour 1988) do yagé, shori, kamarampi, nixi pae, daime, hoasca, e outros nomes que o preparado dessas plantas pode receber. 8 O CICLU é, portanto, a igreja fundadora do Santo Daime. Com a morte de Irineu (e após rituais do Alto Santo já terem sido organizados na Colônia 5000), um de seus seguidores, Sebastião Mota de Melo (1920-1990), sai do CICLU, funda o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), introduz mudanças organizacionais e adiciona o sacramento da Santa Maria (cannabis sativa). O CEFLURIS é uma linha mais expansionista do Santo Daime, mantendo igreja em vários lugares do Brasil e no exterior. Podemos suspeitar que, pelo tom do documento encaminhado ao Iphan, o CEFLURIS não se encontre entre as doutrinas que solicitaram o pedido de patrimonialização devido ao sacramento da Santa Maria – “por ter elementos complementares destoantes das demais doutrinas”, conforme se lê no documento. É importante, todavia, frisar que nem todas as igrejas ligadas a esta linha fazem uso dessa planta de poder. 9 Sobre as concepções vegetalistas, ver Luna (2004). Segundo essa tradição, “algumas plantas ou ‘vegetais’, possuidoras de espíritos sábios, teriam a faculdade de ‘ensinar’ às pessoas que os procuram” (2004: 183). Elas seriam, assim, consideradas “mestras” ou “professoras” pelos mestiços peruanos. Entre os seringueiros do Brasil, Franco e Conceição (2004: 219) encontraram uma 1

242

Livro Conhecimento e Cultura.indd 242

26/4/2011 12:20:55

Júlia Otero dos Santos

concepção parecida: “todos reconhecem que a bebida ‘é professora’ e a ciência está em saber compreender o que é, sob seu efeito, vivenciado”. Para as concepções ameríndias, ver adiante. 10 Entre alguns seguidores, existe a compreensão de que Mestre Irineu é o Daime. 11 Recomenda-se que nos três dias antes de tomar o Daime, a pessoa não consuma bebida alcoólica, carne vermelha nem mantenha relações sexuais. Para que a energia possa ser conservada, é recomendado também abster-se de tais práticas até três dias após a ingestão. 12 Refiro-me aqui a uma posição simbólica que pode ser auferida pelo tempo de pertencimento à igreja e pelo lugar em que se senta ou se baila nas fileiras dispostas no salão. Antigamente, havia uma hierarquia entre os fardados – iniciados na doutrina – que podia ser verificada nas insígnias que constavam no uniforme. Ciente das intrigas e disputas que isso gerava entre os fiéis, Mestre Irineu aboliu esse tipo de diferenciação. 13 No sítio da internet da UDV, lê-se que o chá é “um instrumento de concentração mental dado o seu poder de favorecer estados ampliados de consciência benéficos ao desenvolvimento moral e intelectual do ser humano”. 14 As transformações nominais não se restringem somente à bebida, mas a seus componentes. Quando a bebida chamava-se Ayahuasca o cipó era designado Mariri e a folha, Chacrona ou Mescla. “Foi a partir da evolução da compreensão do Sr. Irineu sobre a Ayahuasca e de suas vivências culturais que se deu a elaboração dos novos nomes dos componentes da bebida. Então, a folha foi rebatizada como Rainha, o cipó foi designado como Jagube e a bebida recebeu o nome de Daime” (Oliveira 2007: 249-250). 15 A ação do Daime na pessoa pode ser abduzida a partir de transformações de comportamento, sentimentos, aparência e até curas de doenças ou de dependência química. 16 Ver http://www.udv.org.br/Uma+doutrina+crista/A+sagrada+Uniao/52/, consultado em 13/07/2010. 17 Fabíola Cardoso, comunicação pessoal. 18 É claro que, assim como o contexto ligado às comunidades tradicionais se ramifica no uso diferenciado que se dá nas três doutrinas, o contexto indígena também engloba os contextos particulares de uso de cada povo. 19 As mesmas comunidades lançaram em 1991 uma “Carta de Princípios para o Uso da Ayahuasca” na qual definem “procedimentos éticos comuns em torno do chá, sem prejuízo à identidade e às convicções de cada uma”. Ver http://mestreirineu.org/liberdade_carta.htm.

243

Livro Conhecimento e Cultura.indd 243

26/4/2011 12:20:55

Diferentes contextos, múltiplos objetos

Referências ANDRADE, Afrânio P. 2004. “Contribuições e limites da União do Vegetal para a nova consciência religiosa”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. ARAÚJO, Wladimyr S. 2004. “A Barquinha: espaço simbólico de uma cosmologia em construção”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. BRISSAC, Sérgio. 2004. “José Gabriel da Costa: trajetória de um brasileiro, Mestre e autor da União do Vegetal”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. COUTO, Fernando L.R. 2004. “Santo Daime: rito da ordem”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/ FAPESP.. CONAD. Relatório Final do Grupo Multidisciplinar da Ayahuasca. Brasília, 2006. FRANCO, Mariana C.P. & Osmilo S.D. CONCEIÇÃO. 2004. “Breves revelações sobre a ayahuasca. O uso do chá entre os seringueiros do Alto Juruá”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Claredon Press, 1998. GENTIL, Lucia R.B. & Henrique S. GENTIL. 2004. “O uso de psicoativos em um contexto religioso: a União do Vegetal”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. GUERREIRO JR., Antonio R. 2009. Entre invenção e apropriação: algumas questões sobre a patente da B. caapi nos EUA. In: Dossiê: O caso da patrimonialização da Ayahuasca no Brasil: algumas questões sobre pessoas e propriedade. Trabalho Final da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação”, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. FERREIRA, Paulo Roberto N. 2009. Ayahuasca no Peru: de pilar de identidades e medicina tradicional a Patrimônio Cultural da Nação. In: Dossiê: O caso da patrimonialização da Ayahuasca no Brasil: algumas questões sobre pessoas e propriedade. Trabalho Final da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação”, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. IPHAN. Processo 01450.008678/2008-61 referente à solicitação/registro da Ayahuasca como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira. Consultado em Maio de 2010. LATOUR, Bruno. The Pasteurization of France. Cambridge & Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1988. LABATE, Beatriz C. 2004. “A literatura brasileira sobre as religiões ayahuasqueiras”. In: In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. 244

Livro Conhecimento e Cultura.indd 244

26/4/2011 12:20:55

Júlia Otero dos Santos

LUNA, Luís Eduardo. 2004. “Xamanismo amazônico, ayahuasca, antropormofismo e mundo natural”. In: B.C. Labate & W.S. Araújo (orgs.), O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras/FAPESP. MACDOWELL, Pedro. 2009. Notas sobre a realização de pesquisas científicas sobre a Ayahuasca. In: Dossiê: O caso da patrimonialização da Ayahuasca no Brasil: algumas questões sobre pessoas e propriedade. Trabalho Final da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação”, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. OLIVEIRA, Isabela. 2007. Santo Daime: um sacramento vivo, uma religião em formação. Tese de Doutorado em História, Universidade de Brasília. OTERO DOS SANTOS, Júlia. Daime, Vegetal, Hoasca: a Ayahuasca no contexto religioso. In: O caso da patrimonialização da Ayahuasca no Brasil: algumas questões sobre pessoas e propriedade. Trabalho Final da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação” - Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2009. PEDREIRA, Carolina. Sobre a legalidade do uso ritual da Ayahuasca. In: Dossiê: O caso da patrimonialização da Ayahuasca no Brasil: algumas questões sobre pessoas e propriedade. Trabalho Final da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação”, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. SANT’ANNA, Marcia. 2006. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. In: IPHAN, O Registro do Patrimônio Imaterial – dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura. STRATHERN, Marilyn. 1999. “Pre-figured Features”. In: Property, Substance and Effect: Anthropological Essays on Persons and Things. London & New Brunswick: The Athlone Press. VASCONCELOS, Walison. Uso da Ayahuasca pelos povos indígenas e suas implicações no pedido de patrimonialização. In: Dossiê: O caso da patrimonialização da Ayahuasca no Brasil: algumas questões sobre pessoas e propriedade. Trabalho Final da disciplina “Cultura: invenção, objetivação, apropriação”, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. WAGNER, Roy. 1981. The invention of culture. Chicago & London: The University of Chicago Press. Sites consultados: www.iphan.gov.br www.udv.org.br

245

Livro Conhecimento e Cultura.indd 245

26/4/2011 12:20:55

Livro Conhecimento e Cultura.indd 246

26/4/2011 12:20:55

SOBRE OS AUTORES

Livro Conhecimento e Cultura.indd 247

26/4/2011 12:20:55

Livro Conhecimento e Cultura.indd 248

26/4/2011 12:20:55

Antonio Guerreiro Júnior Mestre em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, pela Universidade Federal de São Carlos(2008) e doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília. Desde 2005 realiza pesquisa entre os Kalapalo, povo de língua karib do Alto Xingu (Parque Indígena do Xingu, MT), da qual resultou a dissertação intitulada Parentesco e aliança entre os Kalapalo. Continua desenvolvendo junto ao mesmo povo sua pesquisa de doutorado, centrada nas relações entre ritual e chefia, a partir de uma etnografia do egitsü (conhecido popularmente como Quarup). Autor de “Aliança, chefia e regionalismo no Alto Xingu” (a ser publicado no Journal de la Société des Américanistes).

Diego Soares Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005) e doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília. Pesquisador associado desde 1999 ao Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACI) da UFRGS, onde participou de diversas pesquisas na área de antropologia e direitos humanos e desenvolveu a sua dissertação de mestrado sobre narrativa histórica e reforma agrária. Atuou como consultor na Secretária Especial de Direitos Humanos do governo federal e participou do Comitê de Avaliação de Processos do CGEN, onde também realizou pesquisa etnográfica. Atualmente, finaliza tese de doutorado na área de antropologia da ciência baseada em etnografia desenvolvida junto a povos tradicionais e cientistas envolvidos em pesquisas na área de “acesso” à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais (Alto Rio Negro e Alto Amazonas).

Edilene Coffaci de Lima Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2000) e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1996. Desenvolve desde 1991 pesquisa entre os Katukina, da família lingüística pano, que têm suas terras localizadas no Acre. Autora, entre outros trabalhos, de “Cobras, xamãs e caçadores entre os Katukina” (Tellus, 2008);“Remédio da ciência e remédio da alma: os usos da secreção do kambô (Phyllomedusa bicolor) nas cidades”, em parceria com Beatriz Labate (Campos. Revista de Antropologia, 2007) e “Entre o mercado esotérico e os direitos de propriedade intelectual: o caso do kampô” (na coletânea Dilema do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais, organizada por Sandra Kishi e John Kleba, 2009). Colaborou no livro Enciclopédia da Floresta. O alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações(2002). É Pesquisadora 2 do CNPq. 249

Livro Conhecimento e Cultura.indd 249

26/4/2011 12:20:55

Conhecimento e Cultura

Eduardo Soares Nunes Bacharel em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia, pela Universidade de Brasília, e mestrando em Antropologia Social na mesma universidade. Desde 2008, desenvolve pesquisa na aldeia karajá de Buridina, localizada na cidade de Aruanã (GO), que resultou em sua monografia de graduação e à qual vem dando continuidade no mestrado. Investiga a presença indígena nas cidades, interessado tanto no imaginário nacional acerca destas populações quanto nas relações que, do ponto de vista indígena, estão implicadas nesse engajamento com o mundo dos brancos. Autor de “Do pensamento indígena:algumas reflexões sobre Lucien Lévy-Bruhl e Claude Lévi-Strauss” (R@U, 2010) e “De corpos duplos: mestiçagem, mistura e relação entre os Karajá de Buridina (Aruanã-GO)” (Cadernos de Campo, 2010).

Guilherme Moura Fagundes Estudante de graduação de Antropologia na Universidade de Brasília, onde também é bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET/MeC) e membro do Laboratório de Antropologia da Ciência e da Técnica (LACT/UnB). Desenvolveu Pesquisa de Iniciação Científica vinculada ao Grupo de Estudos de Política Indígena e Indigenismo. Atualmente é estagiário em Antropologia na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, subsidiando a confecção de laudos, informações e notas técnicas em temas relativos aos povos indígenas, quilombolas e outras minorias étnicas.

José Pimenta Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (2002) e professor do Departamento de Antropologia da mesma universidade desde 2005. Atualmente, é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UnB e coordenador geral do PROCAD “Etnologia Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos”. Desenvolve pesquisa com os Ashaninka do Rio Amônia (Alto Juruá-Acre) desde 1999. Autor, entre outros trabalhos, dos artigos “Povos indígenas e desenvolvimento sustentável: os paradoxos de um exemplo amazônico” (Anuário Antropológico2004, 2005); “‘Viver em comunidade’: o processo de territorialização dos Ashaninka do rio Amônia” (Anuário Antropológico2006, 2007); e “Indigenismo e Ambientalismo na Amazônia ocidental: a propósito dos Ashaninka do rio Amônia” (Revista de Antropologia,2007). É co-organizador e co-autor do livro Faces da Indianidade (2009). 250

Livro Conhecimento e Cultura.indd 250

26/4/2011 12:20:55

Conhecimento e Cultura

Júlia Otero dos Santos Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (2010) e doutoranda em Antropologia Social na mesma universidade. Assessorou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome na formulação e implementação de políticas públicas na área de assistência social para comunidades tradicionais. Trabalhou junto ao INCRA-Sede nas políticas de regularização fundiária dos territórios quilombolas, tendo identificado o território do Alto Trombetas-PA. Atualmente, dá início a uma pesquisa entre os Arara (Karo), grupo de língua Tupi-Ramarama do estado de Rondônia, e tem também investigado o processo de patrimonialização do uso ritual da ayahuasca solicitado junto ao IPHANpela Prefeitura de Rio Branco.

Laura Pérez Gil Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006) e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É também Chefe da Unidade de Etnologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da mesma universidade. Realizou pesquisa de campo entre dois grupos da família lingüística pano: os Yawanawa, localizados no Acre, e os Yaminawa, na Amazônia peruana, das quais resultaram sua dissertação de mestrado sobre os Yawanawa (1999) e sua tese sobre os Yaminawa (2006), ambas centradas no tema do xamanismo. É autora, entre outros trabalhos, de “O saber é estranho e amargo. Sociologia e mitologia do conhecimento entre os Yaminawa”, com Oscar Calávia e Miguel Carid (Campos. Revista de Antropologia, 2003); “O sistema médico Yawanawá e seus especialistas: cura, poder e iniciação xamânica” (Cadernos de Saúde Pública, 2001); e “Chamanismo y modernidad: fundamentos etnográficos de un proceso histórico” (no livro Paraíso abierto, jardines cerrados, organizado por Oscar Calavia Sáez, Marc Lenaerts e Ana María Spadafora, 2004).

Marcela Stockler Coelho de Souza Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília desde 2006. Desenvolve pesquisa junto aos Kïsêdjê, grupo jê da área do Parque do Xingu (MT) desde 2004, dando continuidade a uma reflexão sobre o parentesco jê que hoje se prolonga na investigação das interferências entre as formas da socialidade indígena e os discursos da cultura, da propriedade (intelectual) e do conhecimento (tradicional). Autora, entre 251

Livro Conhecimento e Cultura.indd 251

26/4/2011 12:20:55

Conhecimento e Cultura

outros trabalhos, dos artigos “The future of the structural theory of kinship” (no livro organizado por Boris Wieseman, The Cambridge Companino to LéviStrauss, 2009), “Porque a identidade não pode durar: a troca entre Lévi-Strauss e os índios” (na coletânea Lévi-Strauss: leituras brasileiras, organizada por Rubem Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre, 2008), “As propriedades da cultura no Brasil Central Indígena” (Revista do Patrimônio, 2005) e “A cultura invisível: conhecimento indígena e patrimônio imaterial” (Anuário Antropológico 2009/I, 2010). É Pesquisadora 2 do CNPq.

Nicole Soares Pinto Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (2009) e doutoranda em antropologia social na Universidade de Brasília. Realiza desde 2006 pesquisa entre os Wajuru, de língua Tupi-Tupari, residentes da T.I. Rio Guaporé, no estado de Rondônia. Dessa pesquisa resultou seu mestrado em Antropologia Social, defendido no PPGAS/UFPR (2009), intitulado Do poder do sangue e da chicha. Dando continuidade à sua pesquisa, desde 2010, é doutoranda em Antropologia Social no PPGAS/UNB. Autora do verbete “Wajuru” na Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil (Instituto Socioambiental-ISA).

Paulo Roberto Nunes Ferreira Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (2010). Indigenista da educação escolar junto ao Governo do Estado do Acre. Há dez anos atua com os Kaxinawá  (Huni Kuĩ), experiência a partir da qual escreveu sua dissertação de mestrado intitulada Na ‘remenda do céu com a terra’: escolas diferenciadas não são Huni Kuĩn. Autor de “Economia e arte, entre o seringueiro e o artista: linguagens da política em etnografias kaxinawá” (na coletânea organizada por Maria Inês Smiljanic, José Pimenta e Stephen Grant Baines, Faces da indianidade, 2009).

252

Livro Conhecimento e Cultura.indd 252

26/4/2011 12:20:55

EVENTOS E PUBLICAÇÕES

Livro Conhecimento e Cultura.indd 253

26/4/2011 12:20:55

Livro Conhecimento e Cultura.indd 254

26/4/2011 12:20:55

Conhecimento e Cultura

Dos quatro cantos da Amazônia: conhecimento  indígena como prática de transformação 21 de setembro de 2009 Departamento de Antropologia/UnB Brasília

A pintura esquecida e o desenho roubado:  troca e criatividade entre os Kisêdjê Marcela Coelho de Souza  (Departamento de Antropologia – UnB) Entre o mercado esotérico e os direitos de  propriedade intelectual: o caso kampô Edilene Coffaci de Lima  (Departamento de Antropologia – UFPR) Heterotopias - Alguns exemplos Pano sobre a  propriedade e o saber Miguel Carid Naveira  (Departamento de Antropologia – UFPR) Os Ye’kuana e a vontade de saber Karenina Vieira Andrade  (Departamento de Antropologia – UnB) Mediador José Antonio Vieira Pimenta  (Departamento de Antropologia – UnB)

Realização Equipe PROCAD UnB/UFPR: “Etnologia Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos” Laboratório de Indigenismo e Etnologia Indígena – LINDE  (DAN/UnB) Apoio CAPES 255

Livro Conhecimento e Cultura.indd 255

26/4/2011 12:20:55

Livro Conhecimento e Cultura.indd 256

26/4/2011 12:20:55

Conhecimento e Cultura

Entre a Cultura e a Mercadoria: Diálogos em torno dos saberes indígenas 27 de abril de 2010 Departamento de Antropologia/UFPR Curitiba Manhã A controvérsia do murmuru. Notas sobre um conflito envolvendo conhecimentos tradicionais indígenas José Pimenta (Departamento de Antropologia – UnB) Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional Laura Pérez Gil (Departamento de Antropologia – UFPR) A ‘cultura’, os especialistas e os especialistas em ‘cultura’: conhecimentos e políticas Katukina/Pano Paulo Roberto Homem de Góes (mestre em Antropologia, PPGAS/UFPR) Debatedor Miguel Carid Naveira (Departamento de Antropologia – UFPR) Tarde Da inalienabilidade do alheio: a quem pertencem as espirais kisêdjê? Marcela Coelho de Souza (Departamento de Antropologia – UnB) A ‘cultura’ vive em uma rã? Notas sobre as transformações do kampô katukina Edilene Coffaci de Lima (Departamento de Antropologia – UFPR) Novos destinos para velhos saberes. Uma teoria ye’kuana do conhecimento Karenina Andrade (Departamento de Antropologia – UnB) Debatedor Miguel Carid Naveira (Departamento de Antropologia – UFPR)

Realização Equipe PROCAD UnB/UFPR: “Etnologia Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos” Apoio CAPES 257

Livro Conhecimento e Cultura.indd 257

26/4/2011 12:20:56

Livro Conhecimento e Cultura.indd 258

26/4/2011 12:20:56

Conhecimento e Cultura

Outras publicações do Projeto de Cooperação Acadêmica Etnologia Indígena e Indigenismo – Novos desafios téoricos e empíricos

FACES DA INDIANIDADE

Maria Inês Smiljanic José Pimenta Stephen Grant Baines (orgs.)

Este livro reúne artigos produzidos no contexto do Projeto de Cooperação Acadêmica Etnologia Indígena e Indigenismo – Novos desafios téoricos e empíricos, financiado pela CAPES por meio do Edital PROCAD 2007. Participam do projeto docentes e discentes dos Programas de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Paraná. Os textos incluídos nesta coletânea abordam diversos aspectos da relação entre os povos indígenas das terras baixas da América do Sul e seus Outros, lançando luz sobre dimensões variadas das relações entre os povos indígenas e entre estes e diferentes atores do indigenismo. Desta forma, contemplamosaquidosi campos distintos de reflexão que compõem o referido projeto: “Sociocosmologia, concepções da identidade e da alteridade” e “Indigenismo, políticas indígenas governamentais e não-governamentais”. As contribuições estão divididas em cinco sessões. As quatro primeiras contemplam as temáticas: Histórias do contato; Agencialidades; Políticas; e Imagens. A quinta sessão intitula-se Pesquisas em Andamento na Graduação.

Autores: Giovana Acácia Tempesta, Luis Cayón, Paulo Roberto Homem de Goés, José Pimenta, Karenina Vieira Andrade, Maria Inês Smiljanic, Stephen Grant Baines, Gersem Baniwa, Alessandro Roberto de Oliveira, Migue Carid, Paulo Roberto Nunes Ferreira. 259

Livro Conhecimento e Cultura.indd 259

26/4/2011 12:20:56

Livro Conhecimento e Cultura.indd 260

26/4/2011 12:20:56

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.