Diga me com quem andas e te direi quem és: a batalha entre táxis e Uber nas vias públicas de Nova Amsterdã

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Diga-me com quem andas e te direi quem és: a batalha entre táxis e Uber nas vias públicas de Nova Amsterdã

Mariana de Siqueira 03/09/2016

Nos últimos dias do mês de agosto do atual ano, o Uber anunciou a sua chegada às terras de Poti. Seguindo a “tradição” vivida por outras localidades que antes receberam o invento, Natal não se manteve inerte à presença da inovação e foi palco de polêmicas, debates acalorados e atos de violência. Nesse sentido, apenas para citar alguns exemplos de ocorrências, taxistas protestaram contra o Uber, a população expôs enfaticamente suas divergências ao redor do tema nas redes sociais, passageiros foram retirados à força de veículos particulares e a Câmara de Vereadores sediou audiência pública para debater o assunto. Nesse mar de controvérsias, três ondas aparecem como as responsáveis por captarem posicionamentos distintos sobre o Uber: i) há os que expõem a necessidade de proibição total da atividade na cidade, mantendo-se apenas os tradicionais táxis; ii) há os que digam que o Uber deve exercer o seu labor sem ingerências do Estado por ser meio de transporte de passageiros privado; iii) e há os que opinam pela manutenção do Uber no município, porém com uma adequada regulação que viabilize a isonomia entre táxis e Uber. Antes de apresentar o que o direito positivo brasileiro e a história jurídica institucional nacional oferecem de aplicável ao caso, penso se fazer relevante brevemente conceituar o Uber e a atividade que ele oferece. O Uber é uma empresa multinacional de origem norte-americana que vem se destacando no segmento de e-hailling nos últimos seis anos. Tal segmento é responsável por oferecer ao cidadão que possui smartphone o acesso a transporte através do uso de aplicativo específico. A ideia original no setor era a de permitir “caronas remuneradas diferenciadas”, com carros luxuosos e “mimos” para os passageiros. Na medida em que o aplicativo do Uber se tornou conhecido, a estrutura das atividades por ele propostas caminhou no sentido de se assemelhar um pouco ao que habitualmente já era oferecido por táxis, especialmente no que diz respeito ao fato de os atuais carros não serem exclusivamente luxuosos, como eram as Mercedes e Cadillac Escalade iniciais.1 No site da empresa é possível encontrar espaço para formular pedido de cadastramento como motorista do Uber, são ali apresentados requisitos e exigências que variam conforme a região de oferta do serviço. A despeito das condições impostas para cadastro, a aparência que a página do Uber passa para quem a visita é a de abertura e receptividade com os interessados em oferecer “caronas remuneradas”.2 1

Disponível em: http://www.relatodeumempreendedor.com.br/materias/uber-como-surgiu-essamarca-que-esta-revolucionando-o-mercado-de-taxi/ Acesso em 03/09/2016. 2 Disponível em: https://www.uber.com/?exp=hp-c Acesso em 03/09/2016.

Para ter acesso ao serviço de transporte vendido pelo Uber, é preciso que o cidadão possua aplicativo específico em seu celular. O site da empresa, mais uma vez aparentando abertura e desejo de disseminação de suas atividades, é bastante didático nas explicações que oferece aos que, como eu, estão ali pela primeira vez a tentar desbravar o seu sistema.3 No que diz respeito ao pagamento pela viagem efetuada, convém expor que com o cadastro prévio no site da empresa e com o uso do aplicativo, a regra é a do não manuseio de cédulas pelo particular passageiro. O custo da viagem é quitado com a via do cartão de crédito e o motorista é pago diretamente pela empresa de modo proporcional às viagens efetivamente feitas. Se pararmos para realizar uma análise comparativa entre as atividades desempenhadas pelos táxis e as atividades realizadas pelos motoristas do Uber, a conclusão a que imediatamente chegaremos será no sentido da inexistência de uma diferença ontológica entre ambas. Nos dois casos existem carros dirigidos por sujeitos oferecendo a atividade de transporte dentro dos limites geográficos de uma determinada região e mediante pagamento. Em síntese, são carros levando pessoas para os lugares que desejam, desde que paguem por isso. Aos meus olhos, portanto, nessa análise inicial, as distinções são mais de procedimento do que de essência, mais de forma do que de conteúdo. Os táxis necessitam de outorga do município para desempenharem as suas atividades, se submetem a controle do poder público a partir de normativa específica já existente e possuem pontos fixos na cidade onde estacionam os seus veículos para que os sujeitos tenham a possibilidade de acessá-los. Aqui convém lembrar que os táxis também se utilizam de aplicativo para oferta de suas atividades, o Easy Taxi é bastante conhecido mundialmente e se destina a essa finalidade. É justamente pela ausência de burocracia imposta pelo município, pela inexistência de normativa específica e pela falta de maior controle por parte do poder público que os motoristas de táxi se insurgem contra o Uber. Em síntese, são as distinções de procedimento, as semelhanças na essência, a disputa pelo mercado e a aparente violação à livre concorrência4 que fomentam as polêmicas e discussões atuais. Em meio a tudo isso estamos nós, cidadãos, desejosos pelo acesso a atividades que nos permitam exercer o nosso direito de ir e vir com conforto, segurança e dignidade. Nesse ponto, levanto algumas questões que acredito pertinentes para uma análise jurídica inicial e mais cuidadosa do tema: a) qual o fundamento jurídico para o controle e regulação dos táxis pelos municípios?; b) quais as razões para a inexistência de um controle e regulação do Uber por parte do poder público?; c) o Uber hoje é proibido ou permitido?; d) o poder público municipal pode proibir o Uber?; e) é proibido ao poder público regular o Uber ou essa é uma escolha possível?; f) sendo possível o controle do Uber, quem é o sujeito competente para exercê-lo? Passemos à análise individual de cada uma das perguntas apresentadas. a) qual o fundamento jurídico para o controle e regulação dos táxis pelos municípios? A Constituição Federal de 1988, em seu art. 22, incisos IX e XI, expõe competir privativamente à União legislar sobre as diretrizes da política nacional de transporte, sobre o transporte e o trânsito. Além do exposto, diz a Constituição, em seu art. 21, inciso XX, caber à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano. A União, exercendo 3

Disponível em: https://www.uber.com/?exp=hp-c Acesso em 03/09/2016. Aqui convém mencionar que o CADE realizou estudo recentemente concluindo pela ausência de grande impacto concorrencial da atividade do Uber no âmbito do mercado de taxi. As conclusões são no sentido de que o Uber não retirou mercado dos taxistas. 4

o dever que lhe foi imposto pelo constituinte em variadas passagens, publicou, em 3 de janeiro de 2012, a Lei n.º 12.587. É esta lei a responsável por atribuir aos municípios a expressa e específica competência de cuidar dos táxis em seu território. O legislador nacional, observando a necessidade de racionalmente disciplinar o tema da ocupação do espaço urbano com veículos, seguindo a lógica da repartição de interesses típica do federalismo brasileiro, qualificando a atividade dos táxis como atividade de interesse local, optou por atribuir aos municípios a competência para o controle cotidiano de tal transporte. A lei em questão qualificou os táxis como serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros, impondo ao poder público municipal a sua organização, disciplina e fiscalização, com base em um padrão básico e mínimo de segurança, conforto, higiene, qualidade e com a fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas. Reforçando a competência municipal para cuidar dos táxis, disse a lei que “o direito à exploração de serviços de táxi poderá ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local.”5 Logo, vem expressamente da Lei 12.587/2012 a competência para que o município cuide dos táxis que transitam em seu espaço. b) quais as razões para a inexistência de um controle e regulação do Uber por parte do poder público? O Uber oferece atividade nova, a despeito de sua rápida disseminação no mundo, a sua existência sequer completou uma década de vida. É o típico advento de algo que estremece as estruturas tradicionais existentes e que é rotulado por alguns estudiosos como inovação disruptiva. Floriano Marques e Rafael Freitas, discorrendo sobre o tema, conceituam as inovações disruptivas como novas tecnologias que “rompem com o modo de se prestar e oferecer um bem ou serviço.” Expõem os autores que essas novas tecnologias acabam por gerar impactos na competitividade do setor e que fragilizam “a liderança consolidada pelas denominadas 'empresas líderes’.” 6 Quando uma inovação disruptiva chega em setores pouco regulados, a zona de conforto é maior. Floriano e Rafael ressaltam, inclusive, que nesse caso “o desafio é absorvido pelas leis de mercado. (...) Quando, porém, a inovação disruptiva tem lugar em setores regulados (serviços públicos tradicionais, por exemplo) a questão se apresenta mais complexa.” 7 Por ser novo é que o Uber não possui normativa nacional criada específica e detalhadamente para o seu controle e disciplina, a exemplo daquela aqui apresentada para os táxis. Ocorre, porém, que por ser inovação que chega em setor já regulado, não passa despercebida, muito pelo contrário, faz nascer polêmicas, demandas por nova lei e interpretações que buscam enquadrá-la no direito positivo hoje existente. Quem advoga a ideia de diferença entre Uber e táxis faz uso da própria Lei 12.587/2012 para dizer que são coisas distintas. Nesse sentido, a lei poderia ser aplicada

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Arts. 12 e 12-A da lei. FREITAS, Rafael Veras de. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uber, Wapp e Netflix. Quando o mercado e a tecnologia desafiam a doutrina. Disponível em: http://www.cest.poli.usp.br/wpcontent/uploads/sites/26/2016/05/uber-whatsapp-netflix-floriano.pdf Acesso em 03 de setembro de 2016. p. 1. 7 FREITAS, Rafael Veras de. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Uber, Wapp e Netflix. Quando o mercado e a tecnologia desafiam a doutrina. Disponível em: http://www.cest.poli.usp.br/wpcontent/uploads/sites/26/2016/05/uber-whatsapp-netflix-floriano.pdf Acesso em 03 de setembro de 2016. p. 1. 6

ao Uber, porém não na exata disciplina destinada aos táxis, mas sim através de outros dispositivos. Daniel Sarmento8, por exemplo, em parecer produzido a pedido dos advogados do Uber, expõe que o enquadramento legal de tal atividade é diferente do atribuído aos táxis. Em tal interpretação, o Uber possui disciplina no art. 3º, §2º, inciso I, alínea “a”, inciso II, alínea “b” e inciso III, alínea “b” da Lei 12.587/2012. A partir de tal foco, o Uber oferece transporte individual privado de passageiros não sujeito às ingerências normativas e fiscalizatórias municipais. Para tal entendimento, o município, conforme disposição expressa da lei, controla o transporte público individual de passageiros e não o transporte privado individual de passageiros. Ressaltando a distinção, diz Daniel Sarmento que a lei trata de duas modalidades do transporte individual de passageiros: “a ‘pública’, que configura serviço de utilidade pública, sujeita assim a intensa regulação estatal, e que é prestada de modo privativo pelos táxis; e a privada, prevista na lei, que não foi ainda regulamentada – o que, pelo princípio da livre empresa (art. 170, Parágrafo único) não impede a sua prestação pelos particulares interessados em fazê-lo.” 9 c) o Uber hoje é proibido ou permitido? Aqui um ponto importante merece ser apresentado, a regularidade ou não da atual prestação de atividades pelo Uber, a partir do direito positivo já publicado, se liga diretamente à natureza jurídica a ser atribuída a ele. O Uber é transporte individual privado ou transporte público individual de passageiros? A Lei 12.587/2012 não ofereceu conceito detalhado para transporte individual privado, apenas mencionando a possibilidade de sua existência. Quanto ao transporte público individual, a normativa o conceituou como “serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas”. Se o Uber for entendido como transporte individual privado, a sua existência e exercício por particulares não cadastrados junto ao município é legítima atualmente. Porém, sendo enquadrado como transporte público individual de passageiros, a realidade é outra, pois tal transporte não pode ser prestado por sujeitos distintos dos taxistas. A Lei 12.468/2011, responsável por regulamentar especificamente o trabalho do taxista, expõe que os táxis são os únicos habilitados ao exercício de transporte público individual remunerado de passageiros. É preciso que os juristas se debrucem seriamente sobre a interpretação dos dispositivos já existentes com vistas a averiguar a natureza real da atividade prestada pelo Uber. Quais as razões que fazem com que o Uber não se enquadre com perfeição no conceito legal de transporte público individual? Por que a atividade do Uber não pode ser entendida como “aberta ao público”? O que faz dela atividade eminentemente privada? O táxi é ontologicamente atividade “aberta ao público” ou assim é caracterizado por uma escolha legislativa? A questão da proibição ou legitimidade, portanto, passa invariavelmente pela interpretação das leis hoje existentes e posterior construção da norma responsável por atribuir ao Uber o seu enquadramento legal e natureza jurídica. 8

SARMENTO, Daniel. Parecer. Ordem constitucional econômica, liberdade e transporte individual de passageiros: o “caso uber”. Disponível em: s.conjur.com.br Acesso em 03 de setembro de 2016. p. 1 – 41. 9 SARMENTO, Daniel. Parecer. Ordem constitucional econômica, liberdade e transporte individual de passageiros: o “caso uber”. Disponível em: s.conjur.com.br Acesso em 03 de setembro de 2016. p. 1 – 41.

d) o poder público municipal pode proibir o Uber? Definitivamente não! Proibição dessa ordem e envolvendo o tema do trânsito demanda normativa produzida pela União, pelas razões expostas quando da resposta ao primeiro questionamento. É a União o ente competente para disciplinar o trânsito, o transporte e o espaço urbano. A despeito de o município ter competência para tratar de assuntos locais, mesmo sendo competente para disciplinar os táxis, não consigo enxergar competência atual para construir proibição pioneira dessa ordem. E já adianto aqui que uma proibição assim não soa constitucional em minha interpretação, ainda que seja elaborada pelo sujeito competente. e) é proibido ao poder público regular o Uber ou essa é uma escolha possível? O poder público pode sim e deve regular o Uber. Como atividade econômica que é, o Uber está sujeito à possibilidade de controle, regulação e fiscalização. São inúmeros os interesses de ordem pública que fundamentam as disciplinas normativas das mais variadas atividades econômicas, dentre elas dessa especificamente. Não nos esqueçamos que a livre iniciativa deve ser interpretada em harmonia com outras diretrizes constitucionais, a exemplo da livre concorrência, da defesa ambiental, da harmonia do espaço urbano etc. Pela sistematicidade da Constituição, proibir o Uber soa indefensável. A tutela constitucional da livre iniciativa, a ideia de livre concorrência, a defesa dos consumidores, dentre tantos outros fundamentos, sustentam a possibilidade de existência do Uber e a indefensabilidade de sua vedação. A escolha pela efetiva regulação é política, uma vez feita, em sua construção, estruturação de limites e possibilidades, deverá necessariamente atentar para o espectro jurídico, especialmente para o texto constitucional e para os precedentes já externados ao redor de outros casos. Se não soa razoável e constitucional proibir o Uber, não regular a sua existência soa tão descabido quanto isso. Viva a concorrência e tudo de belo que ela nos permite vivenciar! Por fim, devo dizer que a normativa hoje direcionada aos táxis deve ser aprimorada. Há tantos anos criticada, parece encontrar agora o momento de sua inevitável modificação. O serviço dos táxis sem dúvidas necessita evoluir. f) sendo possível o controle do Uber, quem é o sujeito competente para exercêlo? A legislação sobre o Uber deve ser produzida inicialmente pela União, tal qual aconteceu com o tema do táxi. A lei, uma vez feita, assim como se deu com os táxis, poderá atribuir ao município a competência para o controle, fiscalização e disciplina complementar do assunto. Respondidas as perguntas propostas, inúmeras outras questões remanescem permeando a disputa Uber x táxis. Os aspectos tributários, por exemplo, demandam um pensar específico e apurado. A essa altura do texto encerro a minha singela contribuição para o refletir crítico sobre o tema. Enquanto pesquisadora do Direito Administrativo, percebo que as inovações tecnológicas nos trazem um desafio imenso. As construções teóricas tradicionais parecem não se adequar em perfeição ao que a nova era nos impõe. As dificuldades que temos hoje, por exemplo, com o conceito de serviço público são apenas um singelo reflexo disso. Como nos portar diante dessa realidade? Negá-la não parece ser a melhor das escolhas. Ora, já nos primeiros dias de aula no curso de Direito aprendemos que “onde está o

Homem, está a sociedade; onde está a sociedade, está o Direito”. É o famoso Ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus, de Ulpiano. Se a nova conjuntura social nos insere cotidianamente num universo virtual, fechar os olhos para isso não parece coerente. Hoje me pego refletindo sobre algo que rotulo como Direito Administrativo Digital. A nomenclatura provisória é essa, confesso desde já que estou a pensar sobre ela também. De todo modo, temas ligados ao papel da Administração no que diz respeito ao Uber, Netflix, Wapp, Internet e tantos outros elementos digitais ocupam um espaço considerável em minhas leituras e escritos atuais. Vejo que as inovações disruptivas estão aí, que é preciso pensar sobre elas e caminhar no sentido de construir racionalmente o Direito que as disciplinará, como forma de evitar todos os malefícios, artificialidades, desigualdades e injustiças desse admirável mundo novo.

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