“Dilemas da antropologia das instituições controvertidas: reflexões a partir de uma investigação etnográfica no Exército argentino” en Castro, C. y Leirner, P., Antropologia dos militares, Rio de Janeiro, FVG, 2009, p. 187-199.

June 13, 2017 | Autor: Máximo Badaró | Categoria: Anthropology, Ethnography, Qualitative methodology
Share Embed


Descrição do Produto

1 Dilemas da antropologia das instituições controvertidas: reflexões a partir de uma investigação etnográfica no Exército argentino1 Máximo Badaró2 Entre o final de 2002 e 2004 realizei uma investigação etnográfica no Colégio Militar da Nação (CMN), a única academia de formação inicial de oficiais do Exército argentino. Durante a investigação participei de numerosas conversas informais nas quais cadetes, oficiais e professores faziam comentários reivindicando a atuação do Exército argentino nos anos 1970 ou minimizando as reclamações dos organismos de direitos humanos sobre o alcance da repressão militar durante essa época. Ao longo da investigação também participei de manobras militares; compareci a almoços e batepapos informais nos quais oficiais da hierarquia média e superior faziam comentários sobre diferentes aspectos da realidade política do país, os cadetes ou as atividades do CMN; realizei uma viagem de alguns quilômetros com dois oficiais em um velho automóvel, marca Ford Falcon de cor verde, o automóvel emblemático utilizado pelos militares nos atos de repressão durante a última ditadura (1976-1983). À primeira vista, todas essas situações respondem a um dos mandamentos clássicos do método etnográfico: observar e compartilhar atividades com o grupo estudado. Sem dúvida, o fato de que se trata de situações que se apresentaram durante o trabalho de campo numa instituição muito controvertida coloca diferentes dilemas e desafios à prática etnográfica. Na minha investigação, esses dilemas manifestaram-se principalmente em torno das memórias da atuação do Exército argentino durante os anos 1970. O Exército argentino é uma instituição controvertida por diferentes motivos. Em primeiro lugar, o Exército foi responsável pela morte, tortura e desaparecimento de milhares de pessoas durante os 1970 e pela alteração violenta da ordem política argentina durante a maior parte do século XX. Em segundo lugar, esta instituição constitui, para a antropologia, um objeto de estudo problemático, visto que se trata de um grupo de poder que pertence à mesma sociedade do investigador, o que altera a

1

Tradução de Sérgio Lamarão. Doutor en antropologia social (EHESS-França). Pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Tecnicas CONICET (Argentina) e professor do Instituto de Altos Estudios Sociales (IDAES) da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) em Buenos Aires. 2

2 tendência clássica dessa disciplina de investigar os setores marginais, despossuídos e distantes em termos geográficos e culturais. Ao mesmo tempo, essa instituição encarna ideias e valores perante os quais os antropólogos costumam opor-se, como o militarismo, a violência armada e a guerra. Essas características da instituição militar argentina impediam que eu pudesse apelar ao relativismo cultural para evitar que o contato com os militares não interpelasse diretamente meus próprios valores políticos, ideológicos e morais, tal como a priori poderia tê-lo feito se houvesse estudado grupos sociais distanciados e culturalmente “exóticos” e “diferentes”3. Ao contrário, os militares argentinos fazem parte de uma instituição que desperta conflitos e reações sociais de diferentes tipos no interior da minha própria sociedade. Nas situações que mencionei acima, as possibilidades de eu entabular uma relação de relativa empatia com meus interlocutores eram fortemente problemáticas. Estava sempre presente o risco de justificar indiretamente suas ideias ao adotar uma atitude neutra ou de banalizar seu conteúdo moral por efeito de escutá-las com reiteração ao longo do trabalho de campo. Até que ponto familiarizar-se com as práticas e a vida cotidiana dos militares? Meus principais dilemas giravam em torno de como entabular e manter, ao mesmo tempo, uma proximidade e uma “distância justa” (Bensa, 1994) com meus interlocutores militares. Por outra parte, esse tipo de investigação coloca a pergunta acerca de se é possível estudar etnograficamente os grupos de nossa sociedade com os quais, em razão de seus posicionamentos políticos, ideológicos ou morais, existem poucas possibilidades de estabelecer uma relação de empatia ou de identificação. Dito de outra maneira: é possível realizar uma investigação etnográfica em grupos que nos provocam rejeição ou que até mesmo detestamos? A pesquisa de campo diante do passado recente Um dos principais dilemas que uma antropologia das forças armadas latinoamericanas acarreta para os pesquisadores desta região remete ao passado de ditadura, tortura e morte que a maioria dos seus países possui. As dimensões geracionais, políticas, ideológicas e biográficas dos pesquisadores adquirem, então, um protagonismo central na hora do trabalho de campo. A escassez de trabalhos 3

Nesse ponto, retomo as observações de Faye Ginsburg (1992) sobre os dilemas éticos e epistemológicos presentes em sua investigação sobre os movimentos militantes a favor e contra o aborto nos Estados Unidos.

3 antropológicos sobre as forças armadas latino-americanas responde, em certa medida, às diferentes marcas que estas deixaram nas instituições, nas ideias e nas subjetividades. Essas marcas estiveram constantemente presentes durante meu trabalho de campo e o processo de investigação em geral, manifestando-se principalmente sob uma lógica de relações sociais fortemente inspirada no modelo da guerra: a relação “amigo/inimigo”. O trabalho de campo etnográfico em instituições militares argentinas está sujeito à necessidade de superar uma lógica social e institucional fortemente arraigada entre elas, que supõe que existam pessoas que são seus aliados ou seus opositores. No CMN, escutei muitas vezes oficiais, cadetes e professores civis e militares comentarem que determinada pessoa estava “a favor” ou “contra” os militares. As pessoas situadas nessa última categoria eram geralmente acusadas mediante o recurso a argumentos científicos (por exemplo, não serem “objetivas” em suas investigações e opiniões) ou diretamente a razões ideológicas (serem “esquerdistas” ou “comunistas”). No CMN, as representações e visões sobre o passado recente funcionam como um sistema de classificação que possui uma forte performatividade identitária. Quando são mencionadas ou evocadas indiretamente pelos cadetes ou oficiais, as representações deste passado contribuem para classificar pessoas, lugares e práticas, assim como para demarcar as fronteiras que delimitam o dentro e o fora do mundo militar. Um exemplo. Numa oportunidade, enquanto conversava com um cadete de terceiro ano na recepção da biblioteca do CMN, abri minha sacola para tirar um livro que havia levado emprestado. Nesse momento deixei cair involuntariamente um DVD que estava na sacola. O cadete olhou o título do DVD – era um documentário antropológico – e me disse rindo: “Imagine se fosse La noche de los lápices!”. O cadete referia-se a um filme argentino de 1986 que relata os acontecimentos ocorridos na noite de 16 de setembro de 1976, durante a última ditadura militar, quando dez estudantes secundaristas que reclamavam a redução no preço do transporte público foram sequestrados, torturados e “desaparecidos” por integrantes das forças armadas e da polícia argentinas. Desde seu lançamento , o filme transformou-se em pouco tempo num dos recursos mais utilizados nas escolas e nos meios de comunicação para ilustrar e condenar a repressão militar dessa época. Para aquele cadete, esse filme representava, de forma emblemática, quem estava “contra” o Exército. Outro exemplo. Santiago, um cadete de quarto ano, contou-me que em um encontro realizado no CMN, do qual participaram estudantes de várias universidades públicas e privadas e alguns cadetes, ele se havia dado conta da "existência de um muro

4 de Berlim entre civis e militares". Santiago estava surpreso com o desconhecimento “dos civis" sobre o Exército e as atividades dos cadetes no CMN, assim como das simpatias ideológicas daqueles jovens: Os civis começaram a falar de direitos humanos, de comunismo; para alguns, Che Guevara era o maior, e eu lhes perguntava se sabiam de onde vinha o comunismo, que não havia começado com Che, que vinha de muito antes, com Lênin, e se eles sabiam quais eram os ideais do comunismo; outros defendiam os direitos humanos e também as Mães da Plaza de Mayo. Por outra parte, as visões sobre o passado também intervêm no modo em que os cadetes avaliam não somente os aspectos morais, ideológicos e políticos da juventude atual, mas também questões como a aparência estética e corporal. Santiago comenta a esse respeito: Os civis tinham vindo vestidos de qualquer jeito; um deles tinha o cabelo comprido, muito despenteado, a barba em desalinho; ele não podia ter vindo assim; se você tem cabelo comprido, você tem de, pelo menos, penteá-lo para trás com gel, e a barba tem de ser bem cortada, tipo aparada, se não fica parecendo um subversivo, como nós dizemos aqui. Não é por nada não, mas essa forma de vestir parece com a dos subversivos de antes". O que fazer para não cair na armadilha dessa lógica classificatória? Acredito que não há receitas para fazer frente aos dilemas pessoais, éticos e políticos que qualquer investigação antropológica pressupõe e, menos ainda, a investigação sobre grupos, temáticas e instituições controvertidas. O trabalho de campo é um processo dinâmico e mutável que coloca o investigador constantemente diante de situações e dilemas que devem ser resolvidos “enquanto estão quentes”, à medida que se apresentam. Os papéis e as identidades que se adquirem durante o trabalho de campo são o resultado da interação de interesses acadêmicos e pessoais do investigador com os interesses diversos do grupo estudado. Ao longo do meu trabalho de campo houve três elementos que me ajudaram para que eu não tivesse que me posicionar constantemente diante dessa lógica classificatória amigo/inimigo: o funcionamento da hierarquia militar, minha condição de estudante de doutorado na França e a dimensão geracional. Com efeito, a identidade que assumi e que meus interlocutores militares me atribuíram durante a pesquisa foi marcada e beneficiada pelas características do funcionamento da estrutura hierárquica militar. Como eu estava “autorizado pelo diretor” e contava com o apoio da secretaria acadêmica do CMN, não recebi nenhum tipo de questionamento. De fato, questionar algum aspecto de minha identidade teria

5 significado lançar um manto de dúvida sobre o critério daqueles que haviam autorizado minha presença no CMN. Portanto, nunca tive que passar por controles ideológicos, políticos, religiosos, morais ou de qualquer outro tipo, nem tampouco fui forçado a expressar ideias pessoais sobre algum tema ou a aceitar condições particulares para desenvolver minha investigação. Por outra parte, o prestígio que minha condição de “estudante de doutorado na França” pressupunha para meus interlocutores militares fez com que, durante as interações com professores e oficiais, prevalecesse essa dimensão de minha identidade. Em compensação, no contato com os cadetes, procurei fazer com que prevalecessem as identificações geracionais. Quando comecei a investigação no final de 2002 eu tinha 27 anos e a maioria dos cadetes tinha entre 19 e 26 anos. Se bem que eu fosse cerca de oito anos mais velho que os cadetes mais jovens, minha distância geracional com os demais cadetes não era muito grande, o que me permitiu estabelecer uma relação de maior proximidade e compreensão mútua com eles. O trabalho de campo no CMN exigiu de mim uma espécie de transformação corporal que modificou alguns aspectos da minha vida cotidiana. Uma das primeiras medidas que tomei antes de começar a entrar em contato com o mundo militar, e que mantive durante todo o trabalho de campo, foi cortar meu cabelo e cuidar cotidianamente da minha escassa barba. Se bem que isso seja comum para muitos jovens, para mim era algo relativamente novo. Qualquer pessoa mais ou menos familiarizada com as características dos militares argentinos conhece o valor que eles atribuem ao comprimento do cabelo e da barba, os quais são avaliados principalmente em termos morais antes que estéticos. Também modifiquei minha maneira de vestir: durante todo o trabalho de campo vesti calça social, paletó e gravata. Só em casos especiais me vesti de um modo mais informal, com jeans e camisa. As camisetas e os tênis estiveram ausentes da minha indumentária durante todo o trabalho de campo. Em geral, os antropólogos não mencionam a forma como se vestem enquanto realizam suas investigações nem tampouco as mudanças estéticas e corporais que estas acarretam. São poucas as etnografias que destacam essas dimensões como um elemento central da imagem e o status que adquire o(a) investigador(a) “no campo” 4. Essa ausência parece sugerir que a corporalidade e a imagem estética, além das dimensões de gênero, de classe e geracionais, entre outras, são aspectos que não influem na relação 4

Uma exceção é o trabalho de Pinçon, e Pinçon Charlot (1997).

6 com os grupos estudados, nos dados que se obtêm nessas relações e na vida cotidiana do antropólogo. Na minha investigação, pelo contrário, essas dimensões foram centrais para adquirir respeitabilidade e legitimidade perante meus interlocutores militares. Ao longo da pesquisa, participei de manobras militares na Patagônia argentina, onde vesti o mesmo uniforme militar de combate que os cadetes vestem (calça e camisa de cor verde com motivos e tonalidades de camuflagem), que as autoridades do CMN me entregaram junto com uma mochila e umas botas antes de partir para as “manobras”. Sempre tive vergonha de mostrar aos meus colegas as fotografias em que apareço vestindo esse uniforme ao lado de oficiais e cadetes, em diferentes situações das manobras militares. As experiências que recolhi dentro e fora do CMN durante o trabalho de campo me demonstraram que a identidade militar, do mesmo modo que muitas outras identidades sociais, é, antes de tudo, uma experiência corporal e estética que se reveste de valores morais, ideológicos e culturais. Nesse sentido, para levar a cabo minha investigação tive que assumir os riscos de colocar pessoalmente em cena uma corporalidade que, no caso da Argentina atual, remete a situações e períodos trágicos do país. Por outra parte, a investigação antropológica em âmbitos militares coloca um problema adicional: o da transformação analítica dos militares em uma alteridade. A dificuldade para estabelecer uma relação de empatia e o temor à proximidade excessiva acarretam o risco de cair na tentação da exotização dos militares. Esse enfoque tende a atribuir aos militares características radicalmente opostas às do investigador e seu espaço social de pertencimento, ao mesmo tempo que concebe os militares como uma espécie de sociedade tradicional homogênea, equilibrada, coesionada, isolada e encerrada em si mesmo. De fato, este olhar não faz mais do que naturalizar o ponto de vista que os militares possuem sobre sua instituição, segundo o qual o Exército constitui um mundo especial e distinto em relação ao conjunto da sociedade. Dito de outro modo, o olhar exotizante tende a militarizar a representação dos militares e a relativizar as dimensões sociológicas e culturais na hora de tentar compreender e explicar suas práticas e suas ideias. O etnógrafo também corre o risco de cair vítima daquilo que Robben (1995), a partir de sua experiência de entrevistas com oficiais argentinos que participaram da última ditadura militar, denominou “sedução etnográfica”. Segundo este autor, a amabilidade, os bons modos e a disponibilidade que esses oficiais demonstraram para com ele criavam uma imagem completamente oposta à que se depreendia das acusações

7 judiciais e sociais que recaíam sobre eles, como o roubo de crianças, o sequestro, a tortura e o desaparecimento de milhares de pessoas durante a última ditadura militar argentina. Robben sustenta que essas atitudes de “sedução” fazem parte de uma estratégia de defesa que os oficiais lançam mão perante seus interlocutores para evitar críticas e questionamentos. Os efeitos possíveis desse comportamento de “sedução” consistem, segundo indica Robben, na redução das possibilidades de comunicação genuína e do conhecimento surgido das entrevistas simuladas e na superficialidade ou na debilitação da olhada crítica do etnógrafo. Na minha investigação não tive que ficar cara a cara com oficiais acusados de violações aos direitos humanos, mas sim com jovens cadetes que, por sua idade, não integravam o Exército nos anos 1970, ou com oficiais que não tinham tido uma implicação direta nas ações de repressão durante esta época, ainda que, em geral, todos tenham apoiado ou justificado essas ações. Do mesmo modo que Robben, eu também fui tratado com muito respeito e amabilidade pelos oficiais. Ainda que essas atitudes podem, certamente, funcionar como uma estratégia de defesa, é necessário levar em conta que a aprendizagem dos modos e das formas de comportar-se “em sociedade” ocupa um lugar central na socialização militar dos oficiais argentinos. O estudo etnográfico dessas dimensões é fundamental não apenas para compreender as práticas e as ideias dos oficiais, como também para contextualizar e compreender a “sedução” e os comportamentos amáveis que utilizam em suas relações com outras pessoas. As formas da cumplicidade Assim, a autorização do diretor do CMN, minha condição de estudante de doutorado na França e minha proximidade geracional com os cadetes me ajudaram a entabular vínculos relacionais que não foram diretamente moldados pela referência ao passado recente e à lógica binária amigo-inimigo. Não obstante, seria ingênuo pensar que eu tenha conseguido estabelecer uma posição de completa exterioridade e distância frente aos comentários, discursos e ideias que eram expressas no CMN sobre esse período. Com efeito, desde os primeiros dias de trabalho de campo me dei conta de como era difícil ter acesso ao sentido social desse passado sem, parafraseando a experiência de Favret-Saada (1997) em seu estudo sobre a bruxaria na França, ficar “afetado” pela lógica identitária e relacional que a referência a esse passado acarretava. Para os meus interlocutores militares, o fato de eu não manifestar críticas de peso sobre

8 a atuação do Exército nos anos 1970 não me colocava automaticamente no grupo de pessoas que eles consideravam “a favor” do Exército, mas contribuía para despertar dúvidas com relação ao meu possível alinhamento ideológico com os setores da sociedade que, segundo eles, eram “contra” a instituição. Sem dúvida, eles não me consideraram um integrante da “família militar” nem um “camarada”. Para os cadetes estava claro que eu não era um deles, mas alguém a quem podiam contar suas experiências e pontos de vistas sem sentir que era necessário ter que se justificar ou me convencer. Para estabelecer uma interação com os cadetes e os oficiais me servi das técnicas etnográficas clássicas. Com efeito, inclusive em âmbitos controvertidos e de difícil acesso como as instituições militares, a predisposição à escuta e à possibilidade de colocar perguntas e comentários em termos significativos para os “nativos” são os principais instrumentos para assinalar um marco de confiança e interlocução mais ou menos fluido. Minha interação com os cadetes e os oficiais não foi marcada pela estima, pela identificação ou pela simpatia, mas antes por uma espécie de cumplicidade que se foi construindo no tempo e que, suponho, respondia à ausência, de minha parte, de um olhar orientado a julgar suas práticas e suas ideias ou a opor argumentos diferentes, tal como costumam fazê-lo os enfoques jornalísticos e muitos dos setores sociais que os cadetes encontram fora do CMN. Ao pedir justificativas sobre suas ideias acerca do passado recente ou ao manifestar argumentos contrários aos seus, eu me teria colocado quase automaticamente numa posição de exterioridade que seguramente teria aliviado meus princípios morais e ideológicos, mas, ao mesmo tempo, obstaculizado minhas possibilidades de conhecer e compreender com maior profundidade esse grupo social e esse espaço institucional. A cumplicidade que se estabelece no trabalho de campo entre o antropólogo e o grupo estudado adquire diversas formas e significados. George Marcus (1999) reivindica um tipo de cumplicidade que não responde a dimensões ideológicas, políticas ou morais, mas sim a orientações cognitivas e intelectuais que se manifestam quando o etnógrafo e os sujeitos estudados compartilham uma mesma curiosidade e afinidade para conhecer e compreender os vínculos entre as particularidades internas das vidas cotidianas destes últimos (por exemplo, a vida cotidiana do Exército) com diferentes instituições, processos e atores sociais externos (por exemplo, as políticas de defesa, os processos políticos, os valores sociais e culturais, os meios de comunicação etc.). Para Marcus, esta cumplicidade entre etnógrafo e informantes “arises from their mutual

9 curiosity and anxiety about their relationship to a ‘third’ - not so much the abstract contextualizing world system but the specific sites elsewhere that affect their interactions and make them complicit (in relation to the influence of that ‘third’) in creating the bond that makes their fieldwork relationship effective” (1999:101). Minha investigação foi marcada por um “terceiro” tácito – um “de fora” composto por diferentes atores e realidades – que intervinha e, em alguns casos, moldava minhas interações no CMN. Os cadetes e os oficiais sempre estavam interessados em refletir sobre as imagens do Exército que circulam “fora” do mundo militar. Ao longo do trabalho de campo, muitos deles fizeram comentários como este: “Todo o mundo fala sobre os militares, todos os criticam, mas até agora ninguém tinha vindo aqui para ver como é realmente a vida militar, como é a vida do cadete”. Enquanto as representações desse “fora” afetam, de diferentes maneiras, a vida cotidiana do “de dentro”, o etnógrafo, como assinala Marcus, “makes that elsewhere present” (1999: 98; itálico no original). A cumplicidade que eu mantinha com meus interlocutores militares estava vinculada, sobretudo, ao fato de compartilhar uma mesma curiosidade sobre as diferentes dimensões, níveis e processos que intervêm e afetam a vida interna do Exército e seus integrantes, entre as quais as memórias da última ditadura militar ocupam um lugar central. Ideias finais É difícil refletir sobre os dilemas da pesquisa etnográfica em instituições controvertidas sem contemplar a história das relações do grupo estudado e outros grupos sociais. As relações atuais entre o Exército e a sociedade argentina estão marcadas pelo repúdio aos militares por conta das violações aos direitos humanos, do autoritarismo e da violência e dos processos judiciais envolvendo os principais responsáveis por esses fatos. Se bem que as opiniões e as críticas são totalmente necessárias e justas no plano jurídico e social, estes não podem atuar como o único ponto de partida do olhar antropológico sobre a instituição militar. A implicação reflexiva do etnógrafo no campo constitui um dispositivo central tanto para estabelecer e desenvolver relações com o grupo estudado quanto para a produção de conhecimento antropológico. Um enfoque reflexivo permite enfrentar os riscos de etnocentrismo que estão sempre presentes quando se trata de estudar grupos controvertidos de nossa própria sociedade e com quem não nos identificamos ou

10 mesmo rechaçamos frontalmente. Esse enfoque também permite produzir um tipo de conhecimento antropológico que não esteja exclusivamente mobilizado pela lógica da acusação e do juízo político e moral, mas que também contemple e analise, sem balizálas, as dimensões culturais, históricas e sociais que modelam as ideias e as práticas desses grupos5. Por sua vez, se a investigação põe em evidência o exercício da reflexividade analítica, ela deveria permitir que nós reconhecêssemos, nesses grupos controvertidos, muitas de nossas próprias lógicas de ação e pensamento. Bibliografía BENSA, Alban, 1995, “De la relation ethnographique. A la recherche de la juste distance”, Enquête, nº 1. FAVRET-SAADA, Jeanne., 1977, Les mots, la mort, les sorts, Paris, Seuil, 1977. GINSBURG, Faye D., 1992, " Quand les indigènes sont nôtres voisins", L'Homme, nº.121. GUSTERSON, Hugh, 1993, “Exploding Anthropology’s Cannon in the World of the Bomb. Ethnographic Writing on Militarism”, Journal of Contemporary Ethnography, Vol. 22, nº1. MARCUS, George, “The uses of complicity in the Changing Mise-en-Scène of Anthropological Fieldwork”, in ORTNER, S. (ed.), The Fate of “Culture”. Geertz and Beyond, Berkley, University of California Press, PINÇON, Michel et PINÇON CHARLOT, Monique, 1997, Voyage en grande bourgeoisie. Journal d’enquête, Paris, PUF. ROBBEN, Antonius, 1995, "Seduction and persuasion: the politics of truth and emotion among victims and perpetrators of violence" in NORDSTROM, C. et ROBBEN, A. (eds.), Fieldwork under fire: Contemporary studies of violence and survival, Berkley, University of California Press.

5

Em um artigo em que reflete sobre os dilemas da investigação etnográfica sobre cientistas que produzem armas nucleares, Hugh Gusterson defende uma posição que compartilho: “I argue here that ethnographers can best make peace with the dilemmas inherent in studying nuclear elites – and, by extension, any elite groups whose exercise of power they may be inclined to oppose – if they seek to open up a space in their writing for the irreducible human ideology and culture”. Para isso, Gusteron propõe utilizar uma estratégia de escritura polifônica, que coloca em diálogo vozes de informantes opostas entre si e que possibilita que os etnógrafos possam “to map out bitterly contested cultural and political terrains without surrendering their own critical impetus but also without surrendering that impulse to understand and humanize the Other, which is the basis of our best ethnography” (1993: 76).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.