Dilemas da Escrita Literária

June 14, 2017 | Autor: Andréa Catrópa | Categoria: Literatura brasileira, Literatura, Escrita Criativa, Escrita, Criação Literária
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DILEMAS

DA ESCRITA LITERÁRIA Andréa Catrópa Cada época tanto molda quanto é moldada pelos seres que a habitam. O jogo de forças entre plano individual e coletivo não tem regras determinadas e, portanto, estas podem ser alteradas a qualquer segundo. Pense, por exemplo, nos escritores do passado que mais admira e em sua relação com o momento histórico em que viveram. O que vem à sua mente? Autores reconhecidos, que parecem ampliar a percepção dos acontecimentos para seus pares e dialogar com seus contemporâneos, ou aqueles seres geniais, deslocados socialmente e cujos escritos seriam abraçados entusiasticamente por gerações vindouras de leitores? Nem sempre, é claro, os tipos acima apontariam para lados opostos. Muitos autores poderiam conjugar ambos os perfis e oscilar entre eles, ora produzindo obras reconhecidas em vida, ora escrevendo livros momentaneamente incompreendidos e que pouco a

pouco contribuiriam para alterar os paradigmas literários e artísticos. Quem, nos dias de hoje e no mundo ocidental, defenderia que Flaubert fosse levado aos tribunais por criar uma “heroína” adúltera? A disseminação de uma visão liberal e esclarecida, porém, não oculta o fato de que estamos longe de gozar de plena liberdade de expressão, sendo essa questão um ponto chave do debate cultural de início do século XXI. Já em meados do século anterior, autores como Orwell e Huxley criaram em 1984 e em Admirável Mundo Novo ficções que apresentavam a homogeneização e o controle da humanidade como metas últimas do Estado. Impactados pelo totalitarismo que ascendia quando publicaram essas obras, ambos carregaram esses textos de uma visão crítica avessa aos elementos que prefiguravam. No entanto, percebemos atualmente como muitos mecanismos

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de vigilância e padronização infiltraram-se de forma sutil, muitas vezes sendo solicitados pelos atores sociais que se sentem ameaçados pelo terrorismo, pela criminalidade e pela ameaça do desemprego. Este é apenas um exemplo para ilustrar o fato de que muitos elementos de crítica defendidos pelos escritores modernos parecem não mobilizar tantos adeptos Talvez porque, para conceber a distopia, antes precisemos encontrar um espaço para a utopia. Por muito tempo, a modernidade e o modernismo inspiraram obras tão diversas quanto memoráveis. Estas mantêm em comum o fato de se remeterem a um imaginário no qual os referenciais políticos, sociais

e estéticos tornavam-se elementos centrais para a criação, mesmo quando seu produto transcendesse o engajamento fervoroso ou simplista. Se o “novo” era o horizonte do artista moderno (como tantos teóricos afirmam), este precisava estudar o ambiente e seus pares, de certa forma, contrapondo-se ao estabelecido para poder dominar sua matéria e forjar uma visão de mundo por meio de sua voz literária. Fazer boa literatura moderna implicava necessariamente em uma conquista simultaneamente ética e estética, projetando na ficção o desejo de transpor a distância entre techné e episteme, tão acentuada desde a Revolução Industrial. Esboçamos aí, portanto, uma situação na qual um autor observava seu entorno, esperando receber como eco vozes de autoridade que definiriam a sua posição na cena artística; muitas vezes, vindas da imprensa e da crítica especializada. Ser “relevante” poderia, assim, englobar uma pitada de ostracismo (confirmando o potencial iluminador da visão gauche), outra de prestígio (mesmo que apenas só após a morte, o reconhecimento do artista criava o ambiente propício para o “descobrimento” da obra). Em contraposição a isso, o escritor enfrenta hoje um dilema ainda mais acirrado no que concerne à oscilação entre pertencimento e marginalidade frente ao establishment. Quando os procedimentos de legitimação da arte transcendem os limites de pequenos grupos e tornam-se absolutamente atomizados, o artista é pressionado pelas leis do mercado a enfatizar a própria desenvoltura técnica, portando-se mais como profissional do que como intelectual. Um dos maiores desafios do escritor contemporâneo é, a partir de um lugar tão especializado, conseguir fazer circular a sua obra e ser lido, mas sem consentir no abandono de uma ética global da arte.

Andréa Catrópa é Doutora em Teoria Literária na FFLCH-USP. Foi contemplada duas vezes com o prêmio Rumos, do Itaú Cultural: em 2004 e 2007. Dirigiu e atuou como entrevistadora na série de vinte e quatro programas de rádio “Ondas Literárias”, premiado pela Secretaria de Estado de Cultura de São Paulo (PAC). Publicou o livro de poemas “Mergulho às avessas” (Lumme Editor : 2008).

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