DIMENSÕES DA AUTORRESTRIÇÃO JUDICIAL

Share Embed


Descrição do Produto

DIMENSÕES DA AUTORRESTRIÇÃO JUDICIAL 1 Carlos Alexandre de Azevedo Campos2

1.

Introdução Muito se tem escrito, recentemente, sobre a atuação expansiva das cortes

constitucionais e supremas em diferentes cantos do mundo. O fenômeno da judicialização da política e das grandes questões sociais fez com que o papel do Judiciário e, principalmente, dessas constitutional e apex courts fosse amplificado, tornando-se cada vez mais determinante para o dia a dia dos cidadãos dos respectivos países. Interpretações criativas, correção das leis, ampliação, por conta própria, de seus instrumentos processuais e da eficácia de suas decisões, falta de deferência às capacidades legal e cognitiva dos outros poderes, interferência na formulação e na execução de políticas públicas têm feito parte do comportamento judicial dessas cortes, e transformado o “ativismo judicial” em tema da moda. No Brasil, particularmente, o debate sobre o ativismo judicial tem ganhado fôlego impressionante nos últimos anos, com a proliferação de textos, monografias e coletâneas específicas3. Não obstante, o adversário histórico do ativismo judicial, a 1

O texto corresponde à adaptação de partes dos Capítulos 1 e 3 da Dissertação “Dimensões do Ativismo Judicial do Supremo Tribunal Federal”, orientada pelo Professor Daniel Sarmento, defendida, em 30/8/2012, no âmbito do Programa de Mestrado em Direito Público da UERJ, aprovada com o grau máximo 10 com “Distinção e Louvor”. A versão comercial do trabalho foi publicada pela Editora Forense, em 2014, sob o mesmo título. 2 Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. Professor-Adjunto de Direito Tributário da UERJ. Professor UCAM/FDC. Assessor de Ministro do STF. Advogado licenciado. Membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF, da Sociedade Brasileira de Direito Tributário – SBDT e da International Fiscal Association – IFA. 3 Textos: POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate Contemporâneo. Revista Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro: PUC – Direito, Vol. 17, 2000, pp. 121/143; CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, ativismo judiciário e democracia. ALCEU Vol. 5 (nº 9), Rio de Janeiro: PUC, 2004, pp. 105/113; ENGELMANN, Fabiano. Internacionalização e Ativismo Judicial: causas políticas e causas jurídicas nas décadas de 1990 e 2000. Contexto Internacional Vol. 29 (1), Rio de Janeiro: PUC – Instituto de Relações Internacionais, 2004, pp. 39/62; VERÍSSIMO, Marcos Paulo. A Constituição de 1988, vinte anos depois: Suprema Corte e ativismo judicial “à brasileira”. Revista Direito GV Vol. 8, São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2008, pp. 407/440; BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo judicial e Legitimidade Democrática. Revista de Direito do Estado Vol. 13, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 71/91; CONTINETINO, Marcelo Casseb. Ativismo judicial: considerações críticas em torno do conceito no contexto brasileiro. Revista de Direito do Estado Vol. 19/20, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pp. 105/134; MELLO, Patrícia Perroni de Campos. Ativismo judicial e o Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito do Estado Vol. 19/20, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pp. 183/213. Monografias: RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010; LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou Altivez? O Outro Lado do Supremo Tribunal

2

“autorrestrição judicial”, tem recebido pouca ou nenhuma atenção por parte dos estudiosos. Talvez isso se explique pela própria relevância espetacular recente do ativismo judicial. Todavia, sob a perspectiva normativa, o resultado deveria ser o oposto: quanto mais revela-se a ascensão do ativismo judicial, mais atenção merece o comportamento contrário. Compreender a autorrestrição judicial é essencial para que se possa não só identificar o ativismo, mas também avaliar seus pontos positivos e negativos. O estudo conjunto permite saber melhor quando uma das duas posturas adjudicatórias se justifica, ou mesmo quando nenhuma das duas está em jogo. O termo “autorrestrição judicial” padece dos mesmos males de indefinição e polissemia do termo “ativismo judicial”. Assim como ocorre com o segundo, o exame da utilidade de trabalhar-se com a categoria depende da teorização sobre a própria definição do que seja a autorrestrição. O propósito deste texto é o de contornar esses problemas conceituais por meio da sistematização de condutas judiciais que caracterizam a autorrestrição. O ensaio divide-se em seis partes. No próximo tópico (2), investigo a distinção entre autorrestrição e ativismo judicial inaugurada por Arthur Schlesinger Jr. e, na sequência (3), busco a fundamentação dos comportamentos de autorrestrição tendo em conta os elementos clássicos de deferência e prudência judicial. Com essas premissas delineadas, apresento, a seguir (4), a sistematização dos comportamentos autorrestritivos por meio das dimensões da autorrestrição judicial. Por fim (5), conclusões.

2.

A distinção entre ativismo e autorrestrição judicial inaugurada por Arthur Schlesinger Jr. O historiador estadunidense Arthur Schlesinger Jr., em artigo intitulado The

Supreme Court: 1947, publicado na Revista Fortune, vol. XXXV, nº 1, no mês de

Federal. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010; POGREBINSCHI, Thammy. Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011; CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014. Coletâneas: VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo Jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, 2009; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do (Coord.). Estado de Direito e Ativismo Judicial. São Paulo: Quartier Latin, 2010; LEAL, Rogério Gesta; LEAL, Mônica Clarissa Henning (Org.). Ativismo Judicial e Déficits Democráticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda et al. (Org.). Constituição, Ativismo Judicial e Déficits Democráticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; FELLET, André Luiz Fernandes et al. (Orgs.). As Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: JusPodivm, 2011.

3

Janeiro de 19474, foi quem utilizou, publicamente5, o termo “ativismo judicial” pela primeira vez, e o fez em oposição à “autorrestrição judicial”. Nesse texto, Schlesinger avaliou a Suprema Corte de 1947. O autor classificou os juízes da Corte em: (i) juízes campeões do ativismo judicial com ênfase na defesa dos direitos das minorias e das classes mais pobres – Justices Black e Douglas; (ii) juízes juízes campeões do ativismo judicial com ênfase nos direitos de liberdade – Justices Murphy e Rutledge; (iii) juízes campeões da autorrestrição judicial – Justices Frankfurter, Jackson e Burton; e (iv) juízes representantes do equilíbrio de forças (balance of powers) – Chief Justice Fred Vinson e o Justice Reed. Os ativistas eram liderados por Hugo Black; os autorrestritivos, por Felix Frankfurther6. Schlesinger apresentou o termo “ativismo judicial” exatamente como oposto à “autorrestrição judicial”. Para o autor, juízes ativistas substituem a vontade do legislador pela própria porque acreditam que devem atuar ativamente na promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias, dos destituídos e dos indefesos, “mesmo se, para tanto, chegarem próximo à correção judicial dos erros do legislador”. Ao contrário, juízes “campeões da autorrestrição judicial” possuem visão muito diferente a respeito das responsabilidades da Corte e da natureza da função judicial: a Suprema Corte dos Estados Unidos não deve intervir no campo da política, e sim agir com “deferência à vontade do legislador”7. O autor analisou as divergências intelectuais e as disputas de poder entre as diferentes personalidades judiciais da Corte e concluiu que a oposição entre os juízes ativistas e os defensores da autorrestrição judicial resultava, ao final, em “conflito fundamental sobre a própria função do judiciário em uma democracia”. O autor acertou em cheio ao eleger Hugo Black e Felix Frankfurter como principais símbolos

4

SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947. Sou muito grato ao Professor Ángel Oquendo, professor visitante no Programa de Pós-Graduação da UERJ, pela obtenção da reprodução integral do texto original nos Estados Unidos. 5 Existem anotações no sentido de que Schlesinger na verdade não teria criado o termo, mas o tomou de empréstimo de Thomas Reed Powell, seu colega de Harvard: GREEN, Craig. An Intellectual History of Judicial Activism. Emory Law Journal Vol. 58 (5), 2009, p. 1203, n. 19. 6 Realizando a mesma divisão: McWHINNEY, Edward. Judicial Review in the English-Speaking World. Toronto: University of Toronto Press, 1956, p. 170-185; HORWITZ, Morton J. The Warren Court and the Pursuit of Justice. New York: Hill and Wang, 1998, p. 114; BURNS, James MacGrecor. Packing The Court. The Rise of Judicial Power and the Coming Crisis of the Supreme Court. New York: Penguin Press, 2009, p. 167. 7 SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 75/77.

4

intelectuais, respectivamente, do ativismo e da autorrestrição judicial8. Sem dúvida, o pensamento extremado de ambos os juízes reflete melhor e ajuda muito bem a compreender a oposição entre as filosofias judiciais que caracterizam esse “conflito fundamental”9. Hugo Black sempre defendeu que a Constituição e a Bill of Rigths norteamericanas criaram uma forma de governo limitado, cabendo ao Judiciário “a responsabilidade primária e o dever de executar e tornar efetivas as liberdades constitucionais e as limitações sobre os Poderes Executivo e Legislativo”. Para Black, a Bill of Rigths excluiu do Congresso qualquer poder sobre os direitos e liberdades individuais, ao passo que confiou às cortes o “dever sagrado” de proteger esses direitos. As cortes deveriam se comportar como “fortalezas impenetráveis contra as afirmações de poder pelo Legislativo e pelo Executivo”10. É verdade ter sido Hugo Black, sob a óptica metodológica, fervoroso defensor do “textualismo”, ou seja, da prática de “discernir o significado das provisões constitucionais por meio de uma interpretação estrita da linguagem específica do documento”11. Com apoio nesse cânon interpretativo, ele chegou a rejeitar expressamente o papel de “convenção constitucional diária” (day-to-day constitutional convention) para a Suprema Corte12. Essa defesa do “puro textualismo”13 impõe aparente paradoxo à classificação de Black, feita por Schlesinger, como “campeão do ativismo judicial”, haja vista a interpretação textualista, a princípio, não ser exatamente adequada ao alcance de propósitos ideológicos na concretização da Constituição.

8

Sobre essa oposição intelectual como fundamental para o desenvolvimento da jurisprudência da Suprema Corte sobre liberdades individuais e o papel das instituições democráticas na proteção desses direitos, cf. a obra paradigmática: SIMON, James. F. The Antagonists. Hugo Black, Felix Frankfurter and Civil Liberties in Modern America. New York: Simon & Scuster, 1990. 9 Cf. MENDELSON, Wallace. Justices Black and Frankfurter: Conflict in the Court. Chicago: University of Chicago, 1961: o autor acusa Black de votar de acordo com sua ideologia e favorece Frankfurter como juiz comprometido com o sistema democrático norte-americano. 10 BLACK, Hugo. The Bill of Rights. New York University Law Review Vol. 35 (4), 1960, p. 879/880. 11 BLOOM JR., Lackland H. Methods of Interpretation. How the Supreme Court Reads the Constitution. New York: Oxford University Press, 2009, p. 1. 12 Seu voto em Griswold v. Connecticut (381 U.S. 520-521 [1965]): “Use of any such broad, unbounded judicial authority would make of this Court's members a day-to-day constitutional convention.” Neste famoso caso, referido mais adiante (item 4.2), Black, já com mais de 80 anos, deu um forte exemplo de autorrestrição na interpretação da Constituição em seus últimos anos na Corte (aposentou-se em 1971, ano também de sua morte). Quando falou em “autoridade judicial ampla e sem limites”, ele fez referência à possibilidade da Suprema Corte julgar leis inconstitucionais com base na 9ª Emenda. 13 Para Antonin Scalia e Bryan A. Garner, Reading Law: The Interpretation of Legal Texts, St. Paul: West, 2012, p. 16, “Textualismo, em sua forma mais pura, começa e termina com o que o texto diz e precisamente implica.” Segundo os autores, “no amplo sentido, todos são textualistas”, mas não puros.

5

Contudo, segundo advertência de J. Harvie Wilkinson III, “na prática, o puro textualismo de Black foi, em última análise, uma decepção”. Ante a textura aberta de muitos dos enunciados normativos da Constituição norte-americana, máxime da Bill of Rigths, como a due process clause e a equal protection clause, Black, mesmo defendendo uma postura de restrição metodológica, aproveitou oportunidades normativas para fazer prevalecer valores próprios sobre a Constituição. Black teria chegado ao ativismo judicial por meio do textualismo, fazendo desta uma teoria de restrição judicial apenas na aparência14. Frankfurter, ao contrário, talvez tenha sido o mais comprometido defensor da autorrestrição judicial na história da Suprema Corte, um juiz verdadeiramente antiativismo. Ele pertenceu à tradição de juízes que afirmaram a autorrestrição judicial como filosofia adjudicatória, a qual tinha em James Bradley Thayer o mais importante referencial teórico15, e nomes como Oliver Wendell Holmes, Louis Brandeis e Learned Hand16 como principais representantes. Frankfurter defendia que o juiz deveria separar as convicções particulares de justiça substantiva do dever funcional na Corte e, por isso, atuava com igual deferência tanto ao legislador conservador quanto ao liberal. Ele foi liberal fora da Corte, mas adotou a autorrestrição judicial como padrão para julgar leis conservadoras. Agindo assim, ao lado de juízes ativistas e liberais, acabou taxado de conservador ao sustentar a constitucionalidade dessas leis como decorrência de sua postura de autorrestrição. Porém, na realidade, Frankfurter foi apenas um juiz que adotou a autorrestrição judicial como princípio de adjudicação que valia “para todas as estações”17.

14

WILKINSON III, J. Harvie. Cosmic Constitutional Theory. Why Americans Are Losing Their Inalienable Right to Self-Governance. New York: Oxford University, 2012, p. 35. Para o autor, criticando o textualismo de Black, “pode ser exatamente tão ativista pretender que as palavras da Constituição provejam todas as respostas quanto ignorar seu texto em ordem a alcançar resultados que suceda a aprovar”. Isso não significa, segundo penso, que todo juiz “textualista” deva ser ativista. 15 O principal marco teórico dessa linha judicial foi o festejado texto de James B. Thayer, The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law, Harvard Law Review Vol. 7 (3), 1893, p. 129156, no qual o autor defendia que a judicial review só deveria ser exercida quando o juiz ou a Corte se deparassem com uma situação de inconstitucionalidade acima de qualquer dúvida razoável, ou seja, quando o legislador cometesse um “erro claro e manifesto”. A sua abordagem teórica será melhor explorada no Capítulo III. 16 Sobre a influência comum de James Bradley Thayer a esses juízes, cf. MENDELSON, Wallace. The Influence of James B. Thayer upon the Work of Holmes, Brandeis, and Frankfurter. Vanderbilt Law Review Vol. 31 (1), 1978, p. 71-87; LUBAN, David. Justice Holmes and the Metaphysics of Judicial Restraint. Duke Law Journal Vol. 44 (3), 1994, p. 451. 17 MENDELSON, Wallace. The Influence of James B. Thayer upon the Work of Holmes, Brandeis, and Frankfurter. Vanderbilt Law Review Vol. 31 (1), 1978, p. 80.

6

Ele era cético sobre supremacia judicial e acreditava que juízes “devem decidir ‘casos’ e ‘controvérsias’, e não criar um mundo novo”. Essa tarefa seria apenas do governo e do legislador18. A função judicial, segundo Frankfurter, estaria sujeita a constrições próprias de sociedades democráticas: interpretar leis além dos “significados das palavras utilizadas pelo legislador” corresponderia a “usurpar poder que nossa democracia depositou nos legisladores eleitos”. Por isso, “um juiz não deve reescrever a lei, nem alargar ou contraí-la”19, mas deve exercer suas funções com restrição e cautela, especialmente, a judicial review. Neste sentido, vale o registro de uma das passagens mais citadas de Frankfurter na Corte:

O impressionante poder desta Corte de invalidar tais leis, por ser limitado na prática apenas por nossa própria prudência em discernir os limites de nossa função constitucional, deve ser exercido com a máxima restrição. (...) o poder de invalidar a legislação não deve ser exercido como se, em teoria constitucional ou na arte de governo, ele se apresentasse como a única fortaleza contra as tolices ou excessos do momento20.

Como se vê, não eram exatamente questões de política substantiva que separavam as ideias de Black e Frankfurter. Como disse Schlesinger, esses juízes “expressa[va]m elementos divergentes dentro de uma tradição liberal comum”21. Da mesma forma, não eram essas questões que substancialmente dividiam os demais juízes da Corte Vinson, todos igualmente nomeados por presidentes Democratas (Roosevelt e Harry Truman). O que realmente dividia os seus membros, muito bem representado pelas ideias opostas de Black e Frankfurter, era o diferente entendimento que tinham sobre o papel constitucional da Suprema Corte22. Esse é o ponto que, verdadeiramente, extrema ativismo da autorrestrição judicial.

18

MENDELSON, Wallace. The Orthodox, or Anti-Activist, View – Mr. Justice Frankfurter. In: FORTE, David F. (Ed.) The Supreme Court in American Politics. Judicial Activism v. Judicial Restraint. Lexington: D.C. Heath and Co., 1972, p. 26. 19 FRANKFURTER, Felix. Some Reflections on the Reading of Statues. In: O’BRIEN, David M. (Ed.) Judges on Judging. Views from the Bench. Washington: CQ Press, 2009, p. 286 20 Trop v. Dulles, 356 U.S. 86, 128 (1958). 21 SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 79. 22 Em carta a um já aposentado Frankfurter, Black afirmou o seguinte: “Nossas diferenças, que foram muitas, rarente foram a respeito do propósito último desejado, mas foram particularmente relacionados aos meios que fossem mais adequados a alcançar o fim que nós ambos visionávamos”. (SIMON, James. F. The Antagonists. Hugo Black, Felix Frankfurter and Civil Liberties in Modern America. Op. cit., p. 258).

7

As divergências eram, enfim, uma disputa sobre o lugar da Suprema Corte no sistema de governo norte-americano, travada por meio de posições radicais, mas intelectualmente honestas. No interior dos grupos divididos por Schlesinger, poderia até haver alguma discordância entre os juízes sobre casos específicos, mas nunca sobre a questão essencial da “natureza da função judicial”. Entre os dois grupos, o “grande debate” era mesmo sobre a extensão na qual a Suprema Corte estava permitida a intervir sobre o campo da política, como bem resumido pelo próprio Schlesinger:

O grupo Black-Douglas acredita que a Suprema Corte pode cumprir um papel afirmativo em promover o bem-estar social; o grupo Frankfurter-Jackson advoga uma política de autorrestrição judicial. Um grupo é mais preocupado com o emprego do poder judicial em favor da própria concepção de bem social; o outro com expandir o campo de liberdade de conformação dos legisladores, mesmo se isso significar sustentar conclusões que eles particularmente condenam. Um grupo considera a Corte como instrumento para alcançar resultados sociais desejados; o segundo como instrumento para permitir que os outros poderes de governo alcancem os resultados que o povo deseja, sejam bons ou ruins. Em suma, a ala Black-Douglas parece estar mais preocupada em resolver casos particulares de acordo com as próprias pré-concepções sociais; a ala Frankfurter-Jackson com preservar o judiciário em seu espaço estabelecido, mas limitado no sistema Americano23.

Renúncia ao poder de revisar leis não faria parte da agenda dos juízes ativistas. Ao contrário, a autorrestrição requer tal renúncia, pois o próprio legislador deve corrigir seus erros. Juízes ativistas tomam decisões de caráter político e de criação positiva do direito, orientados por seu sentido de justiça social, sem fidelidade ao sentido literal do texto constitucional e sem deferência às ações prévias do legislador24. No entanto, juízes “campeões da autorrestrição judicial” são humildes na interpretação da Constituição e deferentes às decisões dos demais poderes do governo ainda que contrárias às próprias convicções políticas ou morais. Mais do que simplesmente um embate jurídicometodológico, a discussão é de ordem político-institucional. É sobre o espaço decisório dos juízes e cortes no sistema constitucional e político do país.

23

SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 201. A toda evidência, a abordagem de Schlesinger Jr. adota a perspectiva atitudinal para os juízes ativistas da Suprema Corte, haja vista trabalhar com a ideia que esses juízes atuam sem responder a qualquer constrição legal (texto constitucional ou precedentes) ou sociopolítica (pressão dos partidos políticos, opinião pública), mas que apenas decidem de acordo com suas filosofias política e moral. Sobre o modelo atitudinal de adjudicação, cf. SEGAL, Jeffrey A.; SPAETH, Harold J. The Supreme Court and the Attitudinal Model Revisited. New York: Cambridge University Press, 2002. 24

8

3.

O conceito de autorrestrição judicial entre deferência e prudência Dessa certidão de nascimento do adversário famoso “ativismo judicial”,

formulada por Arthur Schlesinger Jr., extrai-se que a “autorrestrição judicial” equivale à humildade judicial e fundamenta-se, notadamente, na postura de deferência institucional aos outros poderes, máxime ao Legislativo. A deferência em favor dos outros poderes apresenta-se, assim, como elemento clássico da formulação da autorrestrição judicial. Contudo, este não é o único elemento. A prudência, como mecanismo de preservação da própria autoridade judicial, também se revela fundamento clássico que dá forma ao sentido de autorrestrição judicial. Esses dois critérios podem, certamente, contribuir para a melhor definição do termo. Como já dito, o termo autorrestrição sofre das mesmas dificuldades de indefinição e polissemia do ativismo, com repercussões negativas para o uso acadêmico e crítico25. Richard Posner disse que “o termo ‘autorrestrição judicial’ é um camaleão”26, titular de muitos significados para diferentes autores. A compreensão do termo entre deferência e prudência é uma tentativa de contornar esses defeitos. A origem desses elementos deve ser buscada nos debates que marcaram o surgimento do constitucionalismo democrático nos Estados Unidos e a definição inicial do papel do Judiciário no sistema político norte-americano. Larry Kramer aponta que a autorrestrição judicial, como doutrina de retração de poder judicial em favor de outro ator político, remonta ao tempo da Convenção Constitucional e às origens da judicial review27. Ao tempo das discussões em torno da promulgação da Constituição norteamericana e da questão fundamental sobre quem tem autoridade para interpretar e definir os sentidos do texto, não havia dúvidas, mesmo entre os que discordavam sobre todas as outras questões fundamentais, que a judicial review apenas poderia ser exercida com a mais absoluta restrição judicial (judicial restraint). Isso significava que os juízes deveriam agir com modéstia, devendo evitar, a todo custo, interferir nas decisões dos outros poderes. Todavia, não havia consenso entre as “facções constituintes” sobre quais eram os fundamentos nem a exata medida dessa modéstia.

25

LAMB, Charles M. Judicial Restraint on the Supreme Court. In: HALPERN, Stephen C.; _______. (Ed.). Supreme Court Activism and Restraint. Lexington: Lexington Books, 1982, p. 25. 26 POSNER, Richard. The Rise and Fall of Judicial Self-Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 520. 27 KRAMER, Larry D. Judicial Supremacy and the End of Judicial Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 622.

9

Para os Republicanos, a “autorrestrição judicial era um recurso para preservar a autoridade primária e superior do ‘the People’” como intérprete da Constituição. Como o povo (the People), na Constituição, havia delegado ao Legislativo a autoridade de fazer as leis, a suspeita de inconstitucionalidade seria assunto para ser resolvido diretamente entre a comunidade e os representantes eleitos, salvo se ela fosse muito manifesta, além de qualquer disputa razoável. Para os Republicanos, definitivamente, fora casos muito excepcionais, “as cortes deveriam deixar a decisão para aqueles que tinham a responsabilidade primária para decidir: ‘the People themselves’”28. Nesse sentido, eles acreditavam na autorrestrição judicial como um exercício de deferência aos outros poderes em homenagem ao autogoverno popular (a visão Jeffesrsoniana da autoridade judicial perante uma sociedade democrática). De outro modo, conquanto igualmente defendessem a autorrestrição judicial, os Federalistas não a fundamentavam no dever de deferência à autoridade do the People em interpretar a Constituição por meio de representantes eleitos. Para eles, a autoridade interpretativa final da Constituição era das cortes. No entanto, como os Republicanos, acreditavam que os juízes apenas poderiam deixar de aplicar uma lei na hipótese em que a inconstitucionalidade fosse muito clara. Em caso de dúvida quanto à inconstitucionalidade da lei, eles afirmavam que a norma deveria ser mantida. Porém, neste caso, os Federalistas não invocavam razões democráticas, mas defendiam a autorrestrição judicial como “uma questão de prudência e de conveniência política: algo necessário para assegurar e preservar a autoridade judicial (em vez de popular), através da minimização dos riscos do excesso [judicial]”29. Veja-se que ambas as concepções originais de autorrestrição judicial apontam para o dever de respeito dos juízes e cortes em favor das decisões prévias dos outros poderes,

cuja

inconstitucionalidade

apenas

poderia

ser

declarada

se

fosse

manifestamente fundada. No entanto, os fundamentos são diversos e giram em torno das ações por deferência e por prudência. O primeiro fundamento observa valores políticos e se encaixa na teoria do constitucionalismo democrático: as cortes cumprem o papel de guardiã da constituição com modéstia em favor do autogoverno popular. O segundo fundamento observa valores de estabilidade institucional e não é, necessariamente, 28

KRAMER, Larry D. Judicial Supremacy and the End of Judicial Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 625. 29 KRAMER, Larry D. Judicial Supremacy and the End of Judicial Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 626.

10

incompatível com os ideais do constitucionalismo democrático30: as cortes respeitam as decisões dos outros poderes, evitando agir de forma agressiva a ponto de produzir reações políticas adversas (political backlash) e, com isso, protegem a capacidade de cumprir seu papel institucional. No primeiro caso, a deferência é um valor políticodemocrático, no segundo, a prudência configura uma postura de caráter políticoinstitucional. Longe de serem adversários, esses elementos podem ser complementares. Tem sido, portanto, em meio a esses dois fundamentos – deferência e prudência – que a autorrestrição judicial vem sendo desenvolvida por seus defensores como conceito-chave “de como os juízes devem funcionar em uma sociedade democrática”31. Considerados esses fundamentos clássicos, a autorrestrição judicial pode ser entendida como a filosofia adjudicatória ou mesmo a prática decisória que consiste em retração do poder judicial em favor dos outros poderes políticos, seja por motivos de deferência político-democrática, seja por prudência político-institucional. A partir desses fundamentos originários, é possível defender também a abordagem multidimensional para a autorrestrição judicial, o que significa que cortes praticam variadas condutas igualmente autorrestritivas de poderes decisórios: a) de um lado, dimensões da autorrestrição judicial que têm como núcleo a postura de deferência aos outros poderes na atividade de revisão de seus atos e decisões prévias32. Foi considerando justamente tal núcleo que Schlesinger opôs ativismo judicial e autorrestrição judicial: se ativismo judicial é enfrentar aos outros poderes, autorrestrição é evitar decidir contra esses poderes em respeito à autoridade política ou técnica dos mesmos. É dar-lhes o benefício da dúvida sobre a legitimidade e correção material de seus atos, ainda que os juízes sejam pessoalmente contrários a essas decisões;

b) de outro, dimensões da autorrestrição judicial tendo por núcleo a retração de poder judicial como estratégia de preservar o prestígio institucional das cortes ou até mesmo para assegurar sua funcionalidade. Juízes evitam tomar 30

Em sentido contrário: KRAMER, Larry D. Judicial Supremacy and the End of Judicial Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 633-634. 31 LAMB, Charles M. Judicial Restraint on the Supreme Court. In: HALPERN, Stephen C.; _______. (Ed.). Supreme Court Activism and Restraint. Op. cit., p. 8. 32 Cf. LUBAN, David. Justice Holmes and the Metaphysics of Judicial Restraint. Duke Law Journal Vol. 44 (3), 1994, p. 450.

11

decisões que produzam reações políticas muito adversas, efeitos sistêmicos de desprestígio institucional ou aumento extraordinário de litigância a ponto de comprometer a capacidade e a qualidade dos serviços.

O efeito prático da retração de poder por prudência é igual ao da autorrestrição judicial por deferência, porém, a postura institucional é distinta em fundamento e propósito. Caberá o cuidado em diferenciar esses aspectos de um mesmo instituto. Para tanto, é necessário algum rigor no uso dos critérios de classificação das medidas de autorrestrição. Trata-se de trabalhar, portanto, uma distinção que leve em conta o propósito da conduta judicial autocontida. Essa distinção não tem passado despercebida pela doutrina. John Daley apontou três diferentes condutas que servem para caracterizar as medidas de autorrestrição: deferência – “juízes devem evitar contradizer as decisões dos outros poderes de governo”; discrição – “juízes devem evitar fazer escolhas morais (e talvez políticas, sociais e econômicas)”; prudência – “juízes devem evitar tomar decisões que enfraquecerão sua capacidade de tomar outras decisões”33. Acredito que o elemento “discrição”, apontado como propósito autônomo por Daley, dilui-se nas condutas por deferência e por prudência. Os juízes podem evitar fazer escolhas morais e políticas por deferência à maior capacidade legal ou epistêmica dos outros poderes, assim como podem evitar essas escolhas por prudência diante dos riscos de erro em suas decisões e de reações sistêmicas adversas que possam prejudicar sua liberdade e capacidade decisórias. Portanto, com apoio nesses elementos34, é possível sistematizar as medidas de autorrestrição judicial segundo os critérios de deferência e prudência. Para tanto, tomo como referencial o trabalho desenvolvido por Richard Posner por meio do qual o autor 33

DALEY, John. Defining Judicial Restraint. In: CAMPBELL, Tom; GOLDSWORTHY, Jeffrey (Ed.) Judicial Power, Democracy and Legal Positivism. Aldershot: Ashgate, 2000, p. 286. 34 Há também a distinção de dimensões de autorrestrição judicial a partir da natureza da restrição utilizada. Segundo este critério, John Roche, Structural Interpretation. In: FORTE, David F. (Ed.) The Supreme Court in American Politics. Judicial Activism v. Judicial Restraint. Op. cit., p. 9-11, classificou as medidas em (a) procedimentais e (b) substantivas. Dentro da categoria de técnicas procedimentais, incluem-se o controle da agenda de casos, a rigidez e o formalismo nos requisitos de legitimidade de acesso às cortes, o uso parcimonioso dos instrumentos processuais de decisão, entre outros. As técnicas substantivas compreendem mais aderência ao sentido literal dos textos constitucionais, maior deferência às decisões prévias dos outros poderes, principalmente, as que exigem expertise diferenciada, mais valor à presunção de constitucionalidade das leis, evitar ampla teorização dos direitos constitucionais, não interferir em políticas públicas e sociais, respeito aos precedentes.

12

ampliou a aplicação dos critérios de deferência e prudência e formulou verdadeiras dimensões da autorrestrição judicial.

4.

Dimensões da autorrestrição judicial Em texto que produzi em 201135, o qual serviu de piloto para a elaboração de

minha dissertação apresentada junto ao Programa de Mestrado em Direito Público da UERJ, eu defendi a possibilidade de superação da vagueza e da indeterminação do termo “ativismo judicial” por meio da sistematização dos comportamentos judiciais ativistas a partir de critérios objetivos que denominei “dimensões do ativismo judicial”. Esse esforço conceitual também é necessário e válido para a “autorrestrição judicial”, utilizando-se da mesma estratégia classificatória. Atento à distinção entre deferência e prudência como propósitos de autorrestrição judicial, Richard Posner realizou classificação da espécie, descrevendo diferentes dimensões da autorrestrição. Com as duas condutas em mente, Posner distinguiu (i) autorrestrição estrutural (structural selfrestraint) e (ii) autorrestrição prudencial (prudential self-restraint) 36.

4.1.

A autorrestrição judicial estrutural A autorrestrição judicial estrutural, que Posner gostaria se “tornasse seu sentido

exclusivo”, tem no elemento deferência o núcleo. A deferência é reconhecida como valor político de um governo democrático e de poderes separados. É a clássica autolimitação do poder judicial como exigência da própria ideia de estrutura de divisão de poderes constitucionalmente estabelecida. Trata-se de elemento estrutural das relações entre o Judiciário e os outros ramos autônomos e independentes de governo. Na autorrestrição estrutural, a autoridade judicial deixa de decidir um caso, ou o decide sem base nas próprias razões substantivas, para respeitar ou adotar as razões de decidir de outro poder.

35

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Moreira Alves v. Gilmar Mendes: a evolução das dimensões metodológica e processual do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. In: FELLET, André Luiz Fernandes et al (Org.) As Novas Faces do Ativismo Judicial. Op. cit., p. 541-594. 36 Cf. POSNER, Richard A. The Federal Courts, Challenge and Reform. Cambridge: Harvard University Press, 1999, p. 314-328.

13

A classificação desenvolvida por Posner revela que a deferência poderá responder a duas distintas razões: a autoridade jurídico-constitucional dos outros poderes ou a capacidade epistêmica superior desses37. Essa distinção nos permite cogitar de duas dimensões iniciais da autorrestrição judicial: a autorrestrição estrutural em razão da capacidade jurídico-constitucional e a autorrestrição estrutural em razão da capacidade epistêmica dos outros poderes.

4.1.1.

A autorrestrição judicial estrutural em razão da capacidade jurídicoconstitucional dos outros poderes A autorrestrição estrutural em razão da capacidade jurídico-constitucional dos

outros poderes resulta do status de autoridade constitucionalmente atribuído ao agente que praticou o ato normativo sujeito ao controle de constitucionalidade38. Vinculada à questão da legitimidade democrática, a deferência é também justificada em função das regras de organização e separação de poderes que estão no coração de toda estrutura constitucional. Quanto maior for a autoridade que a Constituição atribuir para determinado ator político praticar o ato normativo questionado, mais deferência deverá ser prestada por juízes e cortes. Aqui, democracia e separação de poderes atuam juntos em favor da autorrestrição judicial. Na doutrina clássica, destaca-se o minimalismo substantivo de James Bradley Thayer como a mais conhecida e influente proposta de autorrestrição judicial estrutural baseada na capacidade jurídico-constitucional dos outros poderes. Na realidade, a doutrina de Thayer pode ser considerada o marco da sistematização teórica da autorrestrição judicial. Em festejadíssimo ensaio escrito em 189339, ele formulou a proposta de uma lei só dever ser declarada inconstitucional pelas cortes na hipótese de a violação à constituição ser tão manifesta que não deixe espaço para dúvida razoável.

37

Sobre a deferência em razão da capacidade jurídica e da capacidade epistêmica, cf. HORWITZ, Paul. Three Faces of Deference. Notre Dame Law Review Vol. 83 (3), 2008, p. 1085-1090. 38 LAWSON, Gary; MOORE, Christopher D. The Executive Power of Constitutional Interpretation. Iowa Law Review Vol. 81 (5), 1996, p. 1.278-1.279. 39 THAYER, James Bradley. The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law. Harvard Law Review Vol. 7 (3), 1893, p. 129-156.

14

Alexander Bickel batizou a proposta de Thayer de “regra do erro manifesto” (rule of the clear mistake)40, segundo a qual apenas um erro legislativo claro, manifesto, acima de qualquer dúvida pode justificar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei. Caso não esteja presente erro dessa natureza, juízes e cortes devem abster-se de pronunciar a inconstitucionalidade, ainda que não concordem com isso. Thayer defendeu, portanto, limitações substantivas ao exercício da judicial review, deferência aos outros poderes e isso por motivos de fundo democrático. A presente proposta é o marco clássico da autorrestrição judicial estrutural. Na história da Suprema Corte norte-americana, discípulos de Bradley Thayer como Holmes, Brandeis e, acima de todos, Felix Frankfurter41 desenvolveram sua proposta teórica de autorrestrição judicial. Como dito na parte inicial deste ensaio, Frankfurter, independentemente do conteúdo liberal ou conservador das leis, atuava com deferência às decisões prévias do legislador. Ele defendia que o juiz deveria separar as convicções particulares de seu dever funcional na Corte. Agindo assim, sempre se mostrou cético sobre supremacia judicial, sujeitando sua atuação às constrições democráticas próprias do sistema político em que inserida a Suprema Corte. Em relação ao Supremo Tribunal Federal, podemos colecionar decisões nas quais esteve absolutamente ausente esse sentido de autorrestrição. No rumoroso “caso Battisti”, para julgar pedido de extradição do governo italiano em face do ativista político Cesare Battisti, condenado por crimes de homicídio na Itália e, oficialmente, refugiado no Brasil, o Supremo revisou as razões de mérito do Ministro da Justiça, Tarso Genro, assentadas no ato de concessão de refúgio político, e o declarou nulo para deferir o pedido da extradição42. A maioria da Corte admitiu examinar, preliminarmente, a validade jurídica do ato de refúgio por considerá-lo ato administrativo vinculado e decidiu pela nulidade absoluta, considerando inadequados os motivos expostos pelo Ministro da Justiça para a concessão.

40

BICKEL, Alexander M. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. 2ª ed. New Haven: Yale University Press, 1986, p. 35-46. 41 O ensaio de Thayer influenciou grandes juízes norte-americanos como Learned Hand, Oliver Wendell Holmes, Louis Brandies e Felix Frankfurter. Sobre essa influência, cf. MENDELSON, Wallace. The Influence of James B. Thayer upon the Work of Holmes, Brandeis, and Frankfurter. Vanderbilt Law Review Vol. 31 (1), 1978, p. 71-87; LUBAN, David. Justice Holmes and the Metaphysics of Judicial Restraint. Duke Law Journal Vol. 44 (3), 1994, p. 451; POSNER, Richard. The Rise and Fall of Judicial Self-Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 525-531. 42 STF – Pleno, Ext. 1.085, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 16/12/2009, DJ 16/04/2010.

15

O Supremo recusou o caráter marcadamente político do ato de concessão de refúgio e, portanto, a autonomia do Executivo em concedê-lo. Atacou o ato em sua higidez, autoproclamando-se senhor absoluto das razões da concessão. Em decidir ter competência para tanto, o Supremo excluiu a competência política do Executivo de, na condução soberana das relações internacionais, excluir livremente de antemão a possibilidade de extradição. A maioria do Supremo, simplesmente, não admitiu pudesse o ato administrativo do Ministro da Justiça excluir a competência da Corte para o julgamento da extradição. Ela requalificou fatos, revisou razões, mediu a conveniência e a oportunidade do ato, enfim, ignorou o poder discricionário do Executivo para afirmar o da Corte e não deixar escapar mais essa questão relevante à sua jurisdição. Outra manifestação de falta de deferência do Supremo em perspectiva thayeriana, desta feita em face do Legislativo, é quando ele decide anular leis em situações que a ilegitimidade constitucional não se apresenta clara, ao contrário, inserese em contexto de dúvida razoável. Foi assim nos julgamentos dos casos da “verticalização”43 e da “cláusula de barreira”44. Particularmente, no primeiro caso, temse revelada face muito mais aguda dessa falta de deferência ao legislador: a do controle rígido de constitucionalidade das emendas constitucionais. O controle de constitucionalidade forte de emenda constitucional é uma grande marca ativista do Supremo e se desenvolve desde o início de vigência da Constituição de 1988. Sem dúvida, o julgamento de inconstitucionalidade material dessa espécie legislativa é algo qualitativo por excelência para efeito de identificação do ativismo judicial, na medida em que é dever da Corte prestar deferência diferenciada ao constituinte derivado. Como se sabe, poucas são as Cortes que exercem esse poder, como as Cortes Constitucionais da Colômbia, Costa Rica, Índia, Turquia45, mas nenhuma delas o tem feito com a mesma frequência do Supremo Tribunal Federal. O Supremo peca pela falta de deferência à autoridade superior do constituinte derivado a partir de uma atitude metodológica de expansão do conteúdo das cláusulas pétreas do artigo 60, § 4º, da Constituição46. Além do “caso da verticalização das 43

STF – Pleno, ADI 3.685/DF, Rel. Minª. Ellen Gracie, DJ 10/08/2006. STF – Pleno, ADI 1.351/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 30/03/2007. 45 Sobre exemplos diversos dessa attitude, cf. BARAK, Aharon. Unconstitutional Amendments. Israel Law Review Vol. 44 (2), 2011, p. 321-341. 46 Para os riscos de uma “interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade institucional, (...) arrisca[r] legitimar rupturas revolucionárias ou dar 44

16

coligações partidárias”, é também hipótese flagrante dessa falta de deferência o julgamento do “caso do IPMF”47, em que o Supremo superdimensionou a regra constitucional da anterioridade tributária do artigo 150, inciso III, alínea b, entendendoa como núcleo essencial da segurança jurídica, para retirar do constituinte derivado o poder de criar imposto novo que pudesse ser cobrado no mesmo ano da criação. Sem embargo, para além de casos específicos, chama mesmo atenção o volume de casos em que a Corte desconsidera a autoridade do poder constituinte derivado como standard válido em favor da autorrestrição judicial48.

4.1.2.

A autorrestrição judicial estrutural em razão da capacidade epistêmica dos outros poderes A autorrestrição estrutural em razão da capacidade epistêmica consiste na

deferência como modéstia judicial em favor do conhecimento mais privilegiado de outros poderes sobre as matérias em discussão. Para Paul Horwitz, a deferência baseada na capacidade epistêmica é medida adequada quando as cortes têm motivos suficientes para acreditar que outros atores “sabem mais do que [elas] sobre algum conjunto de assuntos, de tal maneira que faz sentido permitir que as opiniões da outra autoridade superem o próprio julgamento das cortes”. Os juízes acreditam na expertise superior de outra instituição em área particular do conhecimento. Trata-se da abordagem comparativa de capacidades institucionais. Como aponta o mesmo Horwitz, essa espécie de deferência incorpora tanto uma declaração positiva das habilidades do outro ator político, como uma declaração negativa da capacidade epistêmica relativa das cortes49. Aplicada isoladamente, será a separação de poderes, sob o ponto de vista técnico, que governará a deferência em razão da capacidade epistêmica.

pretexto fácil à tentação dos golpes de Estado”, cf. o voto de Sepúlveda Pertence em STF – Pleno, MS 23.047/DF, Rel. Sepúlveda Pertence, j. 11/02/1998, DJ 14/11/2003. 47 STF – Pleno, ADI 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 15/12/1993, DJ 18/03/1994 48 STF – Pleno, ADI 1.946/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 03/04/2003, DJ 16/05/2003 (Benefícios de Previdência – EC 20/98); STF – Pleno, ADI 3.105/DF, Rel. p/ ac Min. Cezar Peluso, j. 18/08/2004, DJ 18/02/2005 (a contribuição dos Inativos – EC 41/03); STF – Pleno, ADI-MC 3.395/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 05/04/2006, DJ 10/11/2006 (Competência Justiça do Trabalho – EC 45/2004); STF – Pleno, ADI 4.307/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 11/11/2009, DJ 05/03/2010 (Número de vereadores – EC 58/09); STF – Pleno, ADI 4.307/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 11/11/2009, DJ 05/03/2010 (Número de vereadores – EC 58/09); STF – Pleno, ADI 4.425/DF, Rel. Min. Ayres Britto, acórdão redigido pelo Min. Luiz Fux, j. 14/3/2013, DJ 19/12/2013 (Precatórios). 49 HORWITZ, Paul. Three Faces of Deference. Notre Dame Law Review Vol. 83 (3), 2008, p. 1.0851.086.

17

Na doutrina contemporânea, o sentido de deferência epistêmica foi bem desenvolvido por Robert Alexy na Alemanha, e por Adrian Vermeule nos Estados Unidos. Explicando não só a fórmula, mas também os casos em que a ponderação se revela ferramenta útil para a solução de conflitos de direitos em casos difíceis, Alexy propõe que juízes tenham o máximo de cautela quando do julgamento da “veracidade das estimativas empíricas” da lei, ou seja, das conclusões empíricas que motivaram a formulação da lei. O autor alemão defende a deferência à margem legislativa de ação epistêmica do tipo empírico, isto é, que cabe ao legislador, prima facie em uma democracia, dizer dos fatos relevantes e dos resultados práticos pretendidos que dirigem as ações legislativas restritivas de direitos50. O mesmo ponto é defendido por Vermeule ao propor a temática das capacidades institucionais. Partindo das premissas que a escolha do intérprete adequado da Constituição é um exercício de opção institucional de sérias consequências e que o comprometimento com a democracia é elemento muito abstrato para justificar essa escolha51, Adrian Vermeule vem defendendo a alternativa de uma justificativa institucional, de orientação predominantemente empírica, em favor da autorrestrição judicial: a judicial review e o processo de interpretação constitucional devem ser avaliados à luz das capacidades institucionais do intérprete. Vermeule desenvolveu sua proposta adicionando ao minimalismo substantivo de James Bradley Thayer uma perspectiva institucional52: “a função judicial básica em casos constitucionais é aplicar textos constitucionais claros e específicos”, além dessa hipótese, “juízes devem evitar ataques ambiciosos”, eles devem ser deferentes aos legisladores “na interpretação de textos constitucionais que são ambíguos, que possam ser lidos em diferentes níveis de generalidade, ou que expressem normas aspiracionais cujo conteúdo muda com o tempo à medida que mudam os valores da sociedade”. Todavia, enquanto Thayer propunha essa regra tendo em conta a posição democrática

50 ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional Vol. 66, 2002, p. 50/53. 51 VERMEULE, Adrian. Judicial Review and Institutional Choice. William and Mary Law Review Vol. 43 (4), 2002, p. 1.557-1.558. 52 VERMEULE, Adrian. Judging under Uncertainty. An Institutional Theory of Legal Interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006, p. 230-232: “Eu argumentarei, sob fundamentos institucionais, uma versão Thayeriana de judicial review.” Vermeule inclui sua abordagem dentro de uma linha de pensamento constitucional que ele batizou de neo-Thayrerian.

18

superior do Legislativo no tráfego político-constitucional, Vermeule a defende em função da melhor capacidade institucional do Legislativo em comparação às cortes. O autor estadunidense propõe ocorrer a alocação de tarefas interpretativas entre diferentes instituições não em função do melhor ou pior pedigree democrático do órgão A ou B, mas em função das distintas capacidades institucionais. Para ele, cortes sofrem com “constrições de tempo, falta de informação e de expertise em identificar os profundos comprometimentos da Constituição que devem ser interpretados para se ajustarem às circunstâncias modernas”53. Legisladores, por outro lado, têm mais acesso às transformações da sociedade e, por isso, estão em melhor posição para avançar o entendimento de normas constitucionais de acordo com as circunstâncias sociais em mutação. A preocupação é, notadamente, com a escolha interpretativa que juízes fazem em condições de incerteza – enunciados normativos ambíguos, variáveis empíricas incertas e baixo acesso informacional. Nessas condições de incerteza, segundo Vermeule, as cortes devem adotar postura judicial modesta e sem ambição, e isso por que o legislador é a instituição mais capacitada para atualizar a Constituição. Em função de baixa capacidade institucional e curta visão dos efeitos sistêmicos de suas decisões, as cortes devem agir com deferência aos legisladores nas hipóteses de lacunas ou ambiguidades da Constituição, o que compreende a maioria das declarações vagas e aspiracionais da Bill of Rights, como a equal protecion e a due processo of law. As cortes devem reservar atuação mais assertiva apenas para as hipóteses de aplicação das normas constitucionais claras e especificas54. Ainda que com fundamentos relativamente diversos, essas facetas da dimensão estrutural da autorrestrição judicial não são excludentes entre si, ao contrário, podem ser complementares, podendo o juiz, para retrair seu poder de decidir, apelar tanto para a maior autoridade legal como a epistêmica do outro poder para decidir sobre a matéria questionada. O Supremo fez isso em caso recente: na Ação Direta de

53

VERMEULE, Adrian. Judging under Uncertainty. An Institutional Theory of Legal Interpretation. Op. cit., p. 248-251. Donald. L. Horowitz, The Courts and Social Policy. Op. cit., p. 255, fala em “problemas de visão, problemas de informação, problemas de administração e controle” como motivos da falta de capacidade institucional de juízes e cortes em matéria de políticas sociais. 54 VERMEULE, Adrian. Judging under Uncertainty. An Institutional Theory of Legal Interpretation. Op. cit., p. 233.

19

Inconstitucionalidade por Omissão nº 22/DF55, o Tribunal reconheceu não existir omissão parcial ou proteção deficiente do legislador federal quanto à regulamentação das propagandas comerciais de bebidas de teor alcoólico inferior a 13 graus Gay Lussac. Concluiu que a lei encerrava escolha própria do legislador quanto ao nível de restrição à propaganda considerado o teor alcoólico das bebidas envolvidas, de modo que o reconhecimento da omissão implicaria substituir o legislador na definição desses critérios, algo impróprio para o Supremo Tribunal Federal. Em seu voto, o ministro Luiz Fux clamou expressamente pela autorrestrição estrutural.

4.2.

A autorrestrição judicial prudencial A autorrestrição prudencial propõe-se à preservação institucional das cortes, o

que pode responder, segundo Posner, a dois motivos distintos: o temor das cortes a possíveis reações adversas dos outros órgãos políticos às suas decisões, ou a defesa da própria funcionalidade. Para Posner, no primeiro caso, o juiz, “consciente das constrições políticas práticas sobre o exercício do poder judicial”, evita tomar certas decisões que possam provocar reações muito adversas dos órgãos políticos e que possam colocar em perigo a saúde institucional das cortes. Na segunda hipótese de autorrestrição prudencial, o juiz evita tomar decisões que favoreçam o aumento de litigância a ponto de não permitir que as cortes funcionem efetivamente. Posner chamou o primeiro tipo de autorrestrição prudencial política; o segundo, de autorrestrição prudencial funcional.

4.2.1.

A autorrestrição judicial prudencial política Na autorrestrição prudencial política, cortes são modestas em favor dos outros

poderes não como puro valor de relacionamento institucional, e sim como meio estratégico de proteger a própria integridade56. Há o receio de as decisões judiciais, por serem muito invasivas, acabarem simplesmente ignoradas pelas autoridades políticas, o que pode ser fator de grande desprestígio institucional às cortes. Ademais, juízes e cortes, dependendo do cenário político hostil, temem por reações bastante adversas 55 56

STF – Pleno, ADO 22/DF, Rel.ª Min.ª Carmén Lúcia, j. 22/4/2015, DJ de 3/8/2015. EPSTEIN, Lee; KNIGHT, Jack. The Choices Justices Make. Washinton: CQ Press, 1998, p. 47.

20

como reduções legais da jurisdição ou dos poderes de decisão, corte de vencimentos e até mesmo pedidos de impeachment. Em casos extremos, passa-se da autorrestrição para um inevitável passivismo judicial. O caso mais clássico de autorrestrição judicial prudencial por razões políticas é a formulação das virtudes passivas de Alexander Bickel. O sempre lembrado constitucionalista norte-americano, em artigo de 196157, incorporado no ano seguinte à sua obra seminal, The Least Dangerous Branch58, defendeu a estratégia adjudicatória por meio da qual a Suprema Corte, diante de caso envolvendo a aplicação de princípio constitucional ainda não maduro no seio da sociedade e entre os poderes políticos, deve não decidir o caso para adiar (delay) a solução da questão de fundo até que o princípio adquira sentido majoritariamente aceito. Nessas situações, para Bickel, a Suprema Corte deve agir com prudência política: recusar-se a decidir no primeiro momento para minimizar conflitos com as outras instituições de governo e permitir uma discussão mais ampla, um colóquio contínuo59, entre os poderes políticos, o público e as cortes. Para cumprir tal estratégia, Bickel sugeriu que a Corte exercesse o que chamou de “virtudes passivas” (passive virtues): uso de técnicas processuais que permitam evitar o julgamento de mérito do caso e das questões constitucionais envolvidas. Esses mecanismos processuais estratégicos são: ilegitimidade do autor para a propositura da demanda (standing), falta de maturidade do caso para julgamento (ripeness), inexistência de controvérsia atual e por isso a perda do objeto da ação (mootness), questão discutida eminentemente política, carecendo a Corte de competência para julgála (political questions doctrine) e ausência de relevância do caso para ser julgado pela Suprema Corte (denial of certiorari). Alexander Bickel propôs, dessa forma, o exercício de prudência pela Corte por meio de limitações procedimentais. Sua proposta foi de autorrestrição judicial prudencial (política). A abordagem de Bickel se diferencia da feita por Thayer em aspectos relevantes. É fora de dúvida que eles propuseram restrições de natureza técnica diversa – com a regra do erro manifesto (forte presunção de constitucionalidade das leis), Thayer impôs limites substantivos ao exercício interpretativo da Corte na judicial review 57

BICKEL, Alexander. The Passive Virtues. Harvard Law Review Vol. 75 (1), 1961, p. 40-79. BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. Op. cit., p. 111-198. 59 BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. p. 240-244. 58

21

(minimalismo substantivo); com a prática das virtudes passivas, Bickel quis dizer de limites procedimentais sobre o timing do exercício da judicial review (minimalismo procedimental). O primeiro preocupou-se diretamente com o conteúdo da decisão (como e o quê decidir), o segundo, com a conveniência e o momento (se e quando decidir). Eles também divergiram sobre o propósito da autorrestrição judicial: Thayer pretendeu uma Suprema Corte deferente ao legislador; Bickel, uma Suprema Corte prudente, que se preocupe com o impacto de e as reações às suas decisões dentro do sistema político como um todo, mas não necessariamente deferente a um poder político em particular60. Na história dos julgamentos da Suprema Corte norte-americana, Marbury61, decisão que fundou a judicial review, é o melhor exemplo de autorrestrição judicial prudencial. Como relata a história, o caso envolveu writ of mandamus proposto por William Marbury diretamente na Suprema Corte em face do Secretário de Estado James Madison, com o propósito de obrigar o último a outorgar-lhe os poderes de Juiz de Paz do Distrito de Columbia, cargo para o qual havia sido nomeado pelo presidente federalista, John Adams, em seus últimos dias de mandato. Ao tomar posse em 1801, o presidente republicano, Thomas Jefferson (que havia derrotado Adams nas eleições presidenciais de 1800), ordenou a Madison a negativa de investidura de Marbury. A Suprema Corte, liderada por Marshall, reconheceu tanto o direito de Marbury ao cargo como se tratar a hipótese de jurisdição originária na forma estabelecida pela Seção 13 do Judiciary Act de 1789. Contudo, a Corte negou o pedido formulado no mandamus, sob o fundamento de que a Constituição, em seu artigo III, não lhe outorgara essa jurisdição originária, mas tão-somente jurisdição em sede de recurso para julgar esse tipo de demanda. Por isso, o Congresso não podia, por meio da Seção 13 do Judiciary Act de 1789, ter expandido a jurisdição da Corte para além do estabelecido no texto constitucional. Ela reconheceu que a controvérisa atraía sua competência originária legalmente estabelecida, mas que esta era inconstitucional. Embora tenho implicado a afirmação do espetacular poder da judicial review, Marbury possui um aspecto relevante de restrição judicial que escapa a muitos: o resultado imediato da decisão foi o de negar a competência originária para controle

60

Nesse sentido, cf. POSNER, Richard. The Rise and Fall of Judicial Self-Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 532: “Bickel tinha uma ... opinião inferior sobre os legisladores … do que a de Thayer. (...) Para Bickel, então, como para os Federalistas, restrição era estritamente prudencial.” 61 5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803).

22

sobre atos de altas autoridades do governo e, com isso, absteve-se de intervir na ação ilícita do governo federal sobre a violação do direito de Marbury. Em função da disputa política que compunha o pano de fundo de Marbury, Marshall temia reações adversas do Presidente Jefferson, e assim promoveu uma troca: abriu mão do poder de julgar originariamente mandamus contra altas autoridades políticas e, assim, capitulou ao Presidente Jefferson, mas, para tanto, afirmou o poder da judicial review. Com esta estratégia, a Suprema Corte foi institucionalmente preservada e, ao mesmo tempo, realizou uma então discreta afirmação de um poder superior voltado para o futuro. No Brasil, Floriano Peixoto na República Velha, Getúlio Vargas e a Ditadura Militar impuseram constrições irresistíveis ao Supremo que deixaram clara a incapacidade não só das cortes, mas do próprio Direito em oferecer resistência a regimes autoritários. Nossa história de instabilidades políticas e de conflitos institucionais revela ter o Supremo até esboçado reações iniciais aos governos hostis, mas ou as decisões não eram obedecidas, ou o Tribunal era vilipendiado, ameaçado, atacado em sua estrutura e organização e, com isso, acabava recuando. Nesses ambientes problematicamente autoritários, a Corte acabou, no final, submetendo-se a Chefes de Executivo que concentravam todo o poder decisório e absorviam todos os ônus políticos das decisões. Nesses casos, muito mais do que autorrestrição por prudência política, assistiu-se ao passivismo judicial do Supremo62.

4.2.2.

A autorrestrição judicial prudencial funcional Na dimensão da autorrestrição prudencial funcional, o juiz se preocupa com os

efeitos sistêmicos e negativos das decisões sobre a própria funcionalidade da corte. Juízes evitam decidir, ou decidem de modo estreito, por se preocuparem em debilitar habilidades jurisdicionais, e não com eventuais reações políticas adversas às decisões. Embora o resultado prático seja igual ao da dimensão prudencial política, ou seja, a retração de poder das cortes, não há que se falar nesses casos de preocupação com os outros poderes. É apenas estratégia de defesa da funcionalidade e do prestígio social das cortes contra possível enfraquecimento da capacidade e qualidade de julgamento decorrente do acúmulo de processos. 62

Cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Op. cit., p. 223-232.

23

Exemplos negativos dessa postura foram as decisões do Supremo por meio das quais restringiu o acesso da sociedade civil à sua jurisdição constitucional concentrada e abstrata. A Corte incluiu restrições objetivas à legitimidade ativa para propositura de ADI, sem que isso decorresse do texto dos incisos do artigo 103 da Constituição. Ela desenvolveu o requisito da pertinência temática, que “torna imprescindível, para efeito de acesso ao procedimento de fiscalização concentrada de constitucionalidade, que se evidencie um nexo de afinidade entre os objetivos institucionais da entidade que ajuíza a ação direta e o conteúdo material da norma por ela impugnada nessa sede processual”63. Para a Corte, Governadores, Assembleias Legislativas e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional, chamados de legitimados ativos especiais, não podem propor ADI para discutir qualquer lei ou ato normativo, mas apenas normas que possam repercutir sobre seus interesses institucionais e políticos. O Supremo também impôs sérios limites subjetivos ao exercício da legitimidade ativa do inciso IX do artigo 103: a legitimidade processual das confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional64. Em sucessivas decisões, a Corte, restringindo o alcance das expressões “confederação sindical” e “entidades de classe”, impediu associações de profissionais de categorias heterogêneas65, “associação de associações”66, associação civil de finalidade altruísta67, associação de órgãos públicos68, federações sindicais69 de proporem ADI por faltar-lhes legitimidade processual para tanto. Para a Corte, entidades de classe seriam apenas aqueles que defendem interesses profissionais, corporativos e de natureza econômica, impedindo que entidades da sociedade civil propusessem demandas para tutela de direitos de terceiros, em especial de minorias que não se encaixam no conceito de categorias profissionais e econômicas. Muitas dessas entidades de classe não buscam a defesa do interesse público, e sim, em razão dessas constrições e da própria figura da pertinência temática, de interesses

63

STF – Pleno, ADI 1.096/RS, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16/03/1995, DJ 22/09/1995, p. 92. Sobre o tema, cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.103/1.108. 65 STF – Pleno, ADI 34/DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, j. 05/04/1989, DJ 28/04/1989. 66 STF – Pleno, ADI 1.037/SC, Rel. Min. Moreira Alves, j. 03/06/1998, DJ 07/08/1998; STF – Pleno, ADI 23, Rel. p/ac Min. Moreira Alves, j. 02/04/1998, DJ 18/05/2001. 67 STF – Pleno, ADI 61/ES, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/08/1990, DJ 28/09/1990. 68 STF- Pleno, ADI 67/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 18/04/1990, DJ 15/06/1990. 69 STF – Pleno, ADI 17/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 11/03/1991, DJ 24/05/1991; STF – Pleno, ADI 505/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 20/06/1991, DJ 02/08/1991. 64

24

próprios de caráter corporativo, implicando déficit da jurisdição constitucional sobre questões relevantes de direitos fundamentais. A qualidade da defesa de direitos fundamentais é proporcional ao acesso facilitado às cortes constitucionais em favor de entidades da sociedade civil. No Supremo, a lógica adotada foi a inversa graças a essas medidas de autorrestrição prudencial, chamadas, por aqui, acertadamente de forma pejorativa, de “jurisprudência defensiva”.

5.

Conclusões Procurei demonstrar ser possível a abordagem objetiva da autorrestrição judicial

por meio da sistematização de condutas judiciais orientadas pelos propósitos de deferência e prudência. Tendo esses elementos como núcleos possíveis da postura judicial autocontida, tem-se o seguinte quadro de dimensões da autorrestrição judicial: - em razão da autoridade jurídicoconstitucional (i)

autorrestrição judicial estrutural - em razão epistêmica

da

capacidade

- política (ii)

autorrestrição judicial prudencial - funcional

Com deferência, a Corte pode favorecer as decisões prévias dos outros poderes em razão tanto da autoridade jurídico-constitucional como da melhor capacidade epistêmico desses atores políticos. No caso da prudência, a autorrestrição pode decorrer da preocupação com as reações políticas adversas às decisões que poderiam ameaçar a independência e a legitimidade institucional das cortes, ou do receio de determinadas decisões promoverem efeitos indesejados sobre a funcionalidade judicial. Nas duas primeiras dimensões, há o fundamento de respeito político aos outros poderes; nas duas seguintes, há o sentido de autotutela do capital de legitimidade institucional das cortes. Uma advertência deve ser feita: essas quatro dimensões não atuam, necessariamente, de forma isolada. Na já citada Ação Direta de Inconstitucionalidade

25

por Omissão nº 22/DF70, o Tribunal foi deferente à regulação do mercado de propaganda comercial de bebidas alcoólicas em razão tanto da autoridade constitucional do legislador quanto das capacidades institucionais envolvidas. Por sua vez, quando se recusou a julgar as demandas envolvendo o conjunto de reformas econômicas de março de 1990, dirigido a estabilizar a hiperinflação, conhecido como “Plano Collor”, o Supremo pode ter evitado enfrentar o Poder Executivo, assim como eventual enxurrada de recursos que pudessem inviabilizar sua agenda. A Corte protelou e, por razões processuais, acabou não julgando o mérito das demandas, deixando de interferir em medidas políticas de intervenção econômica de duvidosa constitucionalidade71. Esses casos demonstram a possibilidade, em decisões judiciais, assim como em formulações teóricas72, a combinação de variadas condutas judiciais igualmente autorrestritivas. A autorrestrição judicial não se apresenta em cada caso, necessariamente, como comportamento judicial de faceta única: as cortes podem, em uma mesma decisão, praticar variadas condutas, diferentes em fundamentos e natureza, que são igualmente restritivas de poderes decisórios. Caberá ao investigador o cuidado em diferenciar essas facetas de um mesmo instituto. A proposta aqui foi a de fornecer elementos objetivos que auxiliem essa empreitada. 70

STF – Pleno, ADO 22/DF, Rel.ª Min.ª Carmén Lúcia, j. 22/4/2015, DJ de 3/8/2015. STF – Pleno, ADI 259/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 11/03/1991, DJ 19/02/1993; STF – Pleno, ADI 534/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26/08/1992, DJ 08/04/1994. 72 Exemplo da espécie é o minimalismo judicial de Cass Sunstein. O autor, preocupado tanto com o espaço de deliberação democrática, quanto com a falibilidade judicial, defende modelo de modéstia judicial por meio do qual os juízes devem utilizar estratégias minimalistas de adjudicação diante de questões morais complexas: devem tomar decisões estreitas em vez de amplas, isto é, evitar dizer mais do que o necessário para justificar o resultado de um caso concreto; devem tomar decisões superficiais em vez de profundas, isto é, deixar, na maior medida possível, as questões teóricas ou filosóficas mais fundamentais sem decidir. Decisões minimalistas, na medida em que são estreitas, resolvem um caso de cada vez, evitam “generalizações prematuras” e, por isso, são capazes de preservar a flexibilidade decisória e o espaço de deliberação democrática sobre as questões de fundo. Ademais, elas diminuem os riscos de erros judiciais. Assim, em negar valor à amplitude e à generalidade decisória, o minimalismo judicial favorece a frequência dos acertos judiciais. Por sua vez, decisões minimalistas, na medida em que são superficiais em fundamentação teórica, caracterizam-se por expressar acordos incompletamente teorizados, o que faz com que as pessoas possam convergir sobre o resultado sem prejuízo de continuarem a discutir as teorias mais abstratas sobre as quais divergem. O vazio de conteúdo da fundamentação teórica incompleta seria preenchido, progressivamente, enquanto novos casos particulares fossem discutidos e decididos. Com isso, decisões da espécie têm a virtude de fomentar a deliberação democrática, além de evitar erros judiciais com sérios efeitos sistêmicos. Essas características não permitem o enquadramento de sua abordagem em apenas uma dimensão da autorrestrição judicial e isso porque ela requer tanto deferência à capacidade democrático-deliberativa dos outros poderes quanto prudência diante dos efeitos sistêmicos de erros judiciais que decisões maximalistas provocam. Dessa forma, ela é tanto autorrestrição judicial estrutural como prudencial (política). Cf., entre outros, One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999; Problems with Minimalism. Chicago Law School John M. Olim & Economics Working Paper nº 276 (2ª série), 2006; Beyond Judicial Minimalism. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper nº 237, 2008. 71

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.