Dimensões do Planejamento Urbano Integrado: Revisão Histórica e Discussão Conceitual

May 29, 2017 | Autor: Andre Lopes | Categoria: Transport Planning, Conceptual Modelling, Land-use planning, LUTI
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André Soares Lopes Carlos Felipe Grangeiro Loureiro

RESUMO O reconhecimento de que a cidade deve ser tratada como problemática multidisciplinar vem sendo sistematicamente reafirmado na literatura. Este reconhecimento remete à importância da maneira como devemos abordar o planejamento deste fenômeno. A cidade, como mais do que a soma de suas partes, exige mais do que a junção de esforços de planejamentos paralelos. Infere-se que abordar o fenômeno urbano como problemática única, com múltiplas dimensões integrando disciplinas diversas, permitiria construir uma metodologia de planejamento que contemple sua essência sistêmica. Este trabalho pretende identificar e avaliar as dificuldades e deficiências da integração nos processos de planejamento do uso do solo e transportes, a partir do levantamento histórico das propostas de planejamento urbano do último século, de modo a permitir destacar insuficiências nos esforços de integração, apontando lacunas no entendimento e contextualização do fenômeno urbano assim como a desvalorização da discussão crítica sobre estes. 1. INTRODUÇÃO A abordagem das problemáticas urbanas tomou forma com o desenvolvimento do que se chama hoje de planejamento urbano. Devido à complicada estrutura e funcionamento das cidades é lógico imaginar que o planejamento de tal fenômeno também o seja. O que torna tal processo complicado é o fato de que os mais diversos esforços e produtos do pensamento humano se materializam neste espaço, sendo pensados por diversos grupos de pessoas, influenciando e sendo influenciados pelos demais. A tentativa de ordenar, a partir da racionalidade, os fenômenos que compõem a cidade constitui o planejamento urbano.

ISBN 978-85-60762-08-8

O PLANEJAMENTO URBANO REGIONAL INTEGRADO E SUSTENTÁVEL, 2012, Brasília. PLURIS 2012 ? Programação e Resumo dos Trabalhos. Brasília: 978-85-60762-08-8, 2012.

LOPES, A. S.; LOUREIRO, C. F. G. Dimensões do Planejamento Urbano Integrado: Revisão Histórica e Discussão Conceitual. In: PLURIS - 5º CONGRESSO LUSO BRASILEIRO PARA

DIMENSÕES DO PLANEJAMENTO URBANO INTEGRADO: REVISÃO HISTÓRICA E DISCUSSÃO CONCEITUAL

O desejo de organizar as cidades a partir da integração de diversos campos do conhecimento acompanha o ser humano desde milênios, mas foi apenas com o advento da computação e processamento de dados que o formato de pensamento atual sobre planejamento urbano integrado tomou forma (Timmermans, 2003). O foco na modelagem matemática, muito mais robusta a partir dos anos 1960, apresentou-se como um novo desafio a ser conquistado pelos campos do saber. Apesar de outras disciplinas tratarem do assunto, é evidente a liderança do Planejamento de Transportes neste movimento de sistematização, sendo esta a disciplina que tomou a dianteira na tarefa de aglutinar objetivamente duas das disciplinas constituintes da problemática urbana: o sistema de atividades, entendido como “todas as interações sociais, econômicas, políticas, entre outras, que ocorrem no espaço e no tempo em uma dada região”, sendo estas interações, responsáveis pela geração da demanda por deslocamentos (Manheim et al., 1969; Ortúzar e Willumsen, 2011) ; e o sistema de transportes, que “consiste não apenas dos elementos 1

físicos e organizacionais que interagem para produzir oportunidades de deslocamento, mas também da demanda que se utiliza destas oportunidades” (Cascetta, 2009). Por sua vez, o Urbanismo interpreta o fenômeno urbano, desde seus primórdios até dias contemporâneos, baseado na organização espacial das atividades e funções urbanas demandadas, segregadas em grupos de atividades similares (CIAM, 1933; Chapin et al., 1995). Historicamente, representa-se o uso do solo através de categorizações, priorizandose a abordagem quanto ao tipo de atividade desempenhada. Reconhece-se, entretanto, que outras dimensões também são importantes, tais como: função econômica; tipo de estrutura construída; ocupação do lote ou gleba; e quanto à sua propriedade, público ou privada (Chapin et al., 1995). A importância desta discussão para o presente tema reside na necessidade de se trabalhar acerca de um fenômeno complexo, a problemática urbana e suas diversas dimensões, intencionando-se entender melhor suas interações, através da construção científica do pensamento (Morin, 2005). É importante frisar desde o início que este trabalho não pretende clarear as idéias sobre o pensamento complexo propriamente dito, inclusive incorrendo conscientemente no erro da mutilação (no que se refere às dimensões urbanas escolhidas para serem trabalhadas); mas sim, sob a ótica desta teoria, trazer à discussão da problemática urbana contribuições ao corpo de conhecimento do Planejamento Urbano na sua tentativa de integração multidimensional. Este trabalho busca, portanto, identificar e avaliar as lacunas nas propostas metodológicas de planejamento urbano, objetivando reconhecer as deficiências no processo de integração entre uso do solo e sistema de transportes, tendo como objetivos específicos e correspondente organização do texto: representar as dimensões do processo de planejamento urbano e suas relações (item 2); avaliar as relações envolvidas nos vários esforços de planejamento urbano em busca de lacunas e dificuldades no processo de integração (item 3); discutir conceitualmente e determinar um ponto de partida para a construção de uma representação integrada da problemática urbana (item 4). 2. DIMENSÕES DO PLANEJAMENTO URBANO O reconhecimento de que a cidade deve ser tratada como problemática multidisciplinar vem sendo sistematicamente reafirmado na literatura. Este reconhecimento remete à importância da maneira como devemos abordar o planejamento deste fenômeno. A cidade, como mais do que a soma de suas partes, exige mais do que a junção de esforços de planejamentos disciplinares paralelos. Infere-se disto que abordar o fenômeno urbano como problemática única, com múltiplas dimensões integrando disciplinas diversas, permitiria construir uma metodologia de planejamento que contemple sua essência sistêmica. Tradicionalmente, a prática do planejamento urbano tem acontecido dentro de várias disciplinas de maneira paralela. Cada especialidade se “apodera” ou lança mão do conhecimento relativo aos seus fenômenos de interesse, identificando problemas e construindo métodos próprios de solução, quase sempre tratando os demais elementos constituintes desta realidade ou como irrelevantes ao processo, e portanto excluindo-os dos estudos, ou como elementos exógenos, que contribuem como dados de entrada para que os fenômenos ditos de primeira importância sejam “entendidos”. 2

Hall e Tewdwr-Jones (2010) apontam o fato de que o planejamento urbano exige o que se chama de componente espacial ou geográfica; na qual os objetivos a serem atingidos são resumidos em prover a sociedade de uma estrutura espacial de atividades melhorada, se comparada à pré-existente. Com esta afirmação formaliza-se o entendimento de que o planejamento urbano é prioritariamente a porção espacial do processo de planejamento da cidade como um todo; não limitado ao pensamento espacial, mas com resultados que necessariamente são de transformação espacial. As outras dimensões do planejamento urbano são, portanto, aquelas cujos objetivos apontam para resultados não-espaciais. Destaca-se, entretanto, que outras dimensões deste planejamento podem e devem ter reflexos espaciais, uma vez que se entende a problemática urbana como sendo intricada e retroalimentada em si mesma. O planejamento econômico preocupa-se em olhar, por exemplo, para como se desenvolve a estrutura econômica de certa região, para os orçamentos, para os gastos, etc.; mas olha também para elementos espaciais que tenham efeitos diretos nos componentes da economia. A dimensão econômica tem, portanto, papel importante no planejamento urbano, sendo a mesma lógica aplicável às demais dimensões. Na Figura 1 propõe-se as relações entre as quatro dimensões tradicionais do planejamento urbano. Estas, tipicamente encontradas nos esforços de planejamento das cidades, relacionam-se intensamente, tendo, cada uma, disciplinas responsáveis por áreas do conhecimento. A dimensão espacial, em especial, é alimentada pelas demais dimensões e formada por “n” disciplinas, podendo ser exemplificadas por: regularização fundiária, saneamento ambiental, embelezamento urbano, ou ainda uso do solo e transportes.

(b) (a) Fig. 1. (A) Dimensões do planejamento urbano e (B) Interações de disciplinas da dimensão espacial do planejamento urbano, e a contribuição das outras dimensões. Esta proposta corrobora o entendimento, proposto por Morin (2005), no qual tais dimensões representariam a condição dualista da proposta segregadora da ciência positivista, que percebe o observador/transformador e o observado/transformado, concordando ainda com o conceito fundamental do planejamento de sistemas onde temos uma relação paralela entre o controlador do sistema e o sistema(s) controlado(s). Desta forma podemos entender que a relação entre o indivíduo (biológico, antropológico, social, etc...) e o local onde vive (micro-física, macro-física, espaço, ambiente, etc...) é visto na relação entre sociedade e meio-ambiente. A partir de um processo de reinterpretação destes dois elementos pelo observador, teríamos a economia, como uma representação das relações sociais associadas ao espaço urbano, que é uma re-interpretação do meio natural. Esta proposta não esgota os argumentos, mas corrobora a abordagem típica da divisão do planejamento urbano; sendo sua gênese já identificável nos primórdios do século XX, como será relatado no item 3 3

2.1. Relacionando as Disciplinas do Planejamento Urbano Uma alegoria possivelmente representativa do processo de planejamento urbano é aquela ilustrada por um cubo mágico (Rubik`s cube – Figura 2). Sendo o cubo representação da problemática urbana, cada face de uma determinada cor representa uma disciplina tratada por uma comunidade científica específica. Podemos dizer que a tentativa de solucionar os problemas urbanos, metaforizados na aleatória mistura de cores nas várias faces do cubo, seria aquela que busca posicionar cada um dos pequenos quadrados de mesma cor em apenas um de seus lados. Imaginemos agora que as disciplinas responsáveis por cada cor são trabalhadas em separado, sendo os seus esforços primariamente voltados para resolver apenas a sua face do cubo. Soluções desenvolvidas para atender aos problemas da cor correspondente ao uso-do-solo, ou qualquer outra disciplina exclusivamente, podem ter efeitos negativos nas demais cores/disciplinas. Aponta-se aqui uma lacuna conceitual. Os esforços de solucionar a problemática urbana vêm tentando construir maneiras de aproximar os esforços independentes de duas ou mais disciplinas a lidar com “o seu lado do cubo”, sem, contudo, obter sucesso no desenvolvimento de metodologias que reconheçam a problemática como algo maior, com mais dimensões. Deve-se considerar que os problemas que assolam os espaços urbanos têm importância para mais de uma disciplina devido à complexidade das interações que ocorrem em seu interior. O entendimento de problema como a percepção de uma diferença entre a realidade como ela se apresenta e o desejo ou a necessidade de atores que participam do processo constituindo comunidade (ou subconjuntos destas), requer inicialmente a identificação e compreensão da problemática como o meio mais plausível de se transformar positivamente a realidade urbana de maneira integrada. Entretanto, faz-se necessário reforçar que os vários problemas observados pelos diversos entes formadores deste ambiente urbano exigem, muitas das vezes, soluções contraditórias. Estas contradições se refletem na construção de objetivos diversos e também incompatíveis entre si. Saber lidar com estas incompatibilidades faz parte do estudo de sistemas complexos.

(a) Problema do planejamento urbano (b) Objetivo do planejamento urbano Fig. 2. Analogia do planejamento urbano com o cubo mágico. A abordagem de sistemas complexos vem sendo tema de estudos desde o fim da década de 1940, com o advento da cibernética, que pretende entender o funcionamento de diversos fenômenos como sendo um conjunto de sistemas que se inter-relacionam. Muito já foi ganho, com a incorporação dos preceitos da cibernética nas diversas áreas de conhecimento humano; entretanto, outras questões ainda permanecem em aberto quanto às interações envolvidas (Morin, 2005). Tradicionalmente, as várias disciplinas do conhecimento humano desenvolveram-se separadamente, cada uma em seu nicho, na busca da simplificação do conhecimento sobre os fenômenos que cercavam o homem. Não aconteceu diferentemente com as disciplinas que tratam da problemática urbana. Esta 4

proposta disjuntiva dos conhecimentos tem sua origem, segundo Morin (2005), em Descartes, que formulou o que o autor chama de paradigma da simplificação. Sob esta ótica aponta-se como falha do pensamento científico contemporâneo a sua incapacidade de tratar de fenômenos complexos; “ou ele unifica abstratamente ao anular a divesidade, ou, ao contrário, justapõe a diversidade sem conhecer a unidade” (Morin, 2005). Como proposta de solução para este impasse o autor propõe a adoção do que chamou de “pensamento complexo”, ainda sem aplicabilidade concreta, mas que argumenta no sentido de se evitar o pensamento mutilador e abraçar o “impossível” problema das infinitas interações, da incertezas ou mesmo contradições da complexidade. Apesar de ainda ser cedo para traçarem-se caminhos metodológicos que alcancem a proposta unificadora do pensamento complexo de Morin, é bem sensato e plausível reconhecermos que os adventos da cibernética, que deram origem aos argumentos da complexidade, têm ainda muito a contribuir para a maneira como nos deparamos com o funcionamento deste fenômeno chamado cidade. Que se busque o melhor entendimento do funcionamento deste tecido de constituintes heterogêneas e inseparáveis, que é a complexidade em si, reconhecida no funcionamento da cidade; sem se anular a diversidade e sem esquecer a unicidade de suas partes. A interpretação fenomenológica pretendida da cidade, passa pela aceitação que tal fenômeno é único, constituído de infinitas partes menores, indissociáveis. No item seguinte pretende-se apontar, na análise da evolução dos processos do planejamento urbano, a identificação das partes constituintes deste fenômeno e como os diversos estudiosos, ao longo do tempo, construíram maneiras de integrá-las. 3. REVISÃO HISTÓRICA DO PROCESSO DE PLANEJAMENTO URBANO Apresentado em 1898, um dos primeiros trabalhos relacionados ao esforço de organizar o funcionamento das cidades através de práticas de planejamento, os esquemas da Cidade Jardim de Ebenezer Haward, também conhecida como a Cidade Social, era uma proposta de zoneamento e distribuição população no território. Apesar do pioneirismo na proposta metodológica para a prática da criação de novas cidades, não se vê naquele momento uma conceituação dos elementos que constituem a problemática urbana. A estrutura lógica do planejamento urbano surgiu anos depois, em 1915, com o trabalho de Patrick Geddes “cidades em evolução”, que fortemente indica a necessidade de pesquisas sistemáticas precedentes ao processo de planejamento; e daí lança as bases da Geografia Humana que daria, posteriormente, origem ao que se conhece por Ecologia Humana; a relação humana com o seu ambiente. Reconhece-se ainda a importância da Carta de Atenas para o início do urbanismo como disciplina “cientificizada”, sendo o esforço do grupo de pensadores do primeiro terço do século XX que construiu as bases do que seria a prática da arquitetura e do urbanismo até a década de 1960 em boa parte do planeta. Este documento, redigido durante o CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) de 1933, categorizava a existência humana em espaços urbanos como sendo dividida em quatro funções básicas que deveriam atender a todas as necessidades. “O dimensionamento de todas as coisas no dispositivo urbano só pode ser regido pela escala humana. As chaves para o urbanismo estão nas quatro funções: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular” (CIAM, 1933). Estes quatro itens da Carta de Atenas tinham como premissa básica a distribuição de áreas destinadas a funções urbanas específicas, que eram entendidas como suficientes para o desenvolvimento humano em sociedade urbana. Eram, portanto, basicamente uma divisão teórica das dimensões da cidade; distintas, mas complementares umas às outras. Percebe-se aqui esforço, não sistematizado, de planejamento urbano. 5

3.1. O pós-guerra – Décadas de 1940 e 1950 Nestas décadas, alguns modelos espaciais urbanos surgiram a partir dos esforços do movimento conhecido como Escola de Chicago, relacionados às teorias da ecologia humana. Segundo seus criadores, a análise ecológica vai bem além da distribuição de pessoas e atividades no espaço, tratando com maior apreço as relações sociais e seus reflexos no espaço da cidade; naquele caso, de Chicago. O crescimento urbano era uma preocupação constante já naquele tempo. Os esforços generalistas dos ecólogos deram origem a alguns modelos de uso (variedade de atividades) e ocupação (variedade de localização) do solo urbano, dos quais três se destacam (ver Figura 3), tendo sido tratados por diversos autores (Chapin et al., 1995; Torrens, 2000; Rodrigue et al. 2009): o modelo concêntrico de Burgess datado do final da década de 1920, que conjuntamente com o modelo Setorial de Hoyt (datado de 1939), foram base para uma abordagem mais elaborada, firmada pelo modelo polinucleado de Ullman, 1945.

Fig. 3. Escola de Chicago: Modelo concêntrico de Burgess (a) ; Modelo Setorial de HOYT (b) e Modelo Poli-nucleado de Ullman (c). Estes modelos trataram do uso e ocupação do solo de maneira simples, ignorando elementos entendidos como básicos, já na época, como a topografia ou mesmo os traçados viários, apesar de se valerem de medidas de distâncias representando o que viria a ser tratado posteriormente como medidas de acessibilidade. Crítico dos modelos ecológicos, Maurice Davie apontava, já então, para a incapacidade de se validar os modelos propostos, alegando que o surgimento de centralidades urbanas (como o caso dos núcleos do modelo setorial) era muito influenciado pela existência de traçados viários, já reconhecendo a necessidade de integração destas disciplinas em modelos futuros. Acima de todas as limitações verificadas nos modelos e na abordagem do planejamento do espaço urbano, pode-se apontar para uma questão conceitual básica. Até a década de 1950 o planejamento urbano era entendido como um produto racional que mostrava como o futuro estado físico da cidade deveria ser concretizado. Evitava-se o exercício de avaliar alternativas futuras, tendo isto advindo do senso, construído desde os tempos de Geddes, no qual o planejador deveria, a partir de pensamento lógico, encontrar a única resposta correta para a situação em questão. Uma proposta metodológica ensinada a todo estudante de planejamento durante décadas – entre 1920 a 1960- emergiu deste modo de pensar e foi útil até aquela época, representada por: Pesquisar →Analisar →Planejar (Hall e Tewdwr-Jones, 2010). 6

3.2. Década de 60 – Mudança Paradigmática A década de 1960 foi um marco importante na evolução do planejamento urbano como este é conhecido atualmente. Foi em meados de 1965, e posteriormente reforçado em 1968 pelo Town and Country Planning Act na Inglaterra, que o planejamento urbano passou a ser tratado como um processo contínuo. Antes disto tratava-se apenas de desenvolvimento de Master Plans (planos diretores), identificados pela estaticidade e detalhamentos de propostas cristalizadas de um futuro imutável. O planejamento urbano, procurando um modelo normativo ideal de tomada de decisão, culminou na proposta observável na Figura 4 (Meyer e Miller, 2001), bem como algumas variações desta. Este novo modo de pensar contrastava bastante com o anterior, incorporando etapas relacionadas à identificação de problemas, produção e avaliação de alternativas possíveis de soluções.

Fig. 04. Modelo de tomada de decisão, adotado pelos planejadores, principalmente de transportes, nas décadas de 1960 (Meyer e Miller, 2001). O próprio entendimento das etapas a serem vencidas no processo de planejamento urbano passou por uma completa revisão. A sequência padrão de coletar dados, analisá-los e desenvolver os planos, surgida das propostas normativas de Geddes (Hall e Tewdwr-Jones, 2010), na qual propunha-se uma abordagem racionalista buscando a otimização do sistema, fora completamente substituída por um novo processo que incorporava uma característica de ciclo contínuo (feed-back ou retroalimentação), apresentando uma tentativa mais próxima da simulação de senários futuros. Os modelos propostos incorporavam os adventos da cibernética, reunindo a idéia de monitoramento do processo, materializados na condição de retroalimentação e controle. Propunha-se a melhoria dos métodos de planejamento, sem, contudo, introduzir o conceito de integração, uma vez que a retroação prevista na proposta metodológica era estritamente de monitoramento. Não se pensava em retroalimentação trans-disciplinar. Foi ainda nesta época que aconteceu em escala global uma nova onda de preocupação com o modo de crescimento das cidades e, principalmente, com os meios de transporte necessários para que tal crescimento pudesse ser mantido. O planejamento dos transportes passou a ser o cerne da questão espacial urbana, tendo sido importados, primeiramente para a Europa, os estudos de Chicago e Detroit sobre transportes. Conjuntamente com o incremento do uso do computador e da tentativa de relacionar os padrões de uso do solo urbano e aqueles dos transportes, verifica-se neste momento o surgimento dos primeiros modelos computacionais integrados de planejamento destas duas disciplinas. Interessante ressaltar que ainda naquela década os estudos de transportes, que focavam nas relações econômicas de custo/benefício para se tomar decisões, passaram a sofrer pressões da sociedade exigindo maior preocupação com questões ambientais e outras externalidades urbanas. A etapa de avaliação econômica, que até a década anterior não era levada em consideração, passou a ser um dos carros chefe no desenvolvimento de modelos de planejamento. Segundo Torrens (2000), os modelos eram acusados de trazerem ao cenário de planejamento urbano uma desnecessária complexidade, além de serem vorazes consumidores de dados, apresentarem ordenamento mecanizado, resolução de atuação inadequada e falta de transparência das análises (entendidos como “caixa preta”). 7

3.3. Planejamento nos anos 1980 a 2010 Muitas das críticas aos modelos de planejamento foram endereçadas e resolvidas ao longo das décadas seguintes, principalmente pelo incremento da capacidade computacional e na disponibilidade facilitada de dados. Entretanto, observa-se que, apesar de e em parte por causa destes avanços, outros problemas surgiram. As novas dificuldades foram creditadas a deficiências mais profundas nas construções teóricas, como aponta Torrens (2000) e Timmermans (2003). A evolução na construção de propostas metodológicas de planejamento urbano (mais especificamente dos sistemas de transporte) culminou, nos dias de hoje, com a proposta de Meyer e Miller (2001), apresentada na Figura 5, na qual se observa a manutenção do pensamento em etapas (Identificação dos problemas, Escolha de alternativas, Implementação e Monitoramento/avaliação) e na retroação (feedback).

Fig. 5. Proposta metodológica de planejamento, apresentada por Meyer e Miller (2001), com as etapas explicitadas da tomada de decisão. Dentre as críticas apresentadas a este modelo, que é amplamente reconhecido pela comunidade científica de transportes, aparecem indicadas limitações na representação do fluxograma quanto à etapa de identificação de problemas. As argumentações apontam para a inexistência de etapa metodológica que permita ao planejador entender (avaliar ou diagnosticar) a realidade existente (pré-intervenção); que é entendida como essencial para a própria identificação dos problemas, e para a delimitação dos objetivos. Reconhece-se, portanto aqui uma direção do desenvolvimento do conhecimento sobre o planejamento urbano. A incapacidade de se construir metodologicamente etapas de entendimento do fenômeno estudado é legitimada pela inexistência de teorias sobre os fenômenos de interesse - nas críticas de Torrens (2000) o fenômeno é a cidade. Torna-se evidente a importância de se retornar aos conceitos de complexidade neste momento. Sendo o objetivo desta pesquisa tratar do planejamento de um fenômeno específico, a cidade, devemos reconhecer que os esforços de entendimento deste fenômeno tem sido contrários ao que a cibernética, e mais tarde o pensamento complexo pregam. O entendimento deste fenômeno exige mais que a simples junção de esforços paralelos de planejamento; cada um com o seu entendimento e representação individuais daquilo que deveria ser visto como um fenômeno só. Exalta-se portanto a importância de se avançar no entendimento mais aprofundado do fenômeno como ponto de partida.

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4. INTEGRAÇÃO USO DO SOLO E SISTEMA DE TRANSPORTES As diversas tentativas de representação integrada do fenômeno urbano mostraram-se, desde seu princípio até os dias de hoje, fundamentadas em duas visões bem distintas. Duas interpretações destas visões destacam-se, sendo a primeira proposta por Pietrantonio et al. (1996), e a segunda por Wegener (2004). Em sua interpretação dos processos de planejamento urbano Pietrantonio et al. (1996) propõem a separação dos vários esforços em dois grupos, ou óticas: a ótica segmentada, que engloba dois subconjuntos conceituais, as óticas local e global, compondo a abordagem compatibilista entre uso do solo e transportes; e a ótica estrutural, que propõe uma conceituação de complementariedade (sistemicidade), construída como contraponto à abordagem compatibilista que pressupõe uma interpretação não integrada do fenômeno urbano. Seguindo a mesma linha de pensamento, Wegener (2004) aponta para um formato de interpretação dos modelos computacionais que propõem a integração dos esforços de planejamento dos transportes e do uso do solo, que podem ser transpostos para qualquer esforço de planejamento urbano. Em sua proposta são apresentados os conceitos de modelos compostos, como aqueles em que a cidade é vista como um sistema hierárquico de subsistemas interconectados, mas estruturalmente autônomos; e os esforços de modelagem unificados, que propõem uma abordagem baseada em princípios básicos unificadores dos diversos sistemas tratados. O primeiro (compostos), segundo o autor, engloba os tipos de representação do fenômeno urbano que consistem na interpretação deste fenômeno como um conjunto de sistemas conectados, tendo cada um uma estrutura interna própria; já o segundo (unificados), apresenta-se como interpretação altamente integrada, partindo de conceitos básicos comuns às várias dimensões do fenômeno urbano. Dois exemplos de esforço de integração entre o uso do solo e transportes foram destacados como tentativas de representação do fenômeno urbano, o primeiro exemplificando a abordagem segmentada (Figuras 6), e outro a abordagem estrutural (Figura 7). As duas representam o fenômeno como interação entre dois corpos de conhecimento desenvolvidos por duas comunidades científicas distintas. Por este motivo percebe-se que o entendimento do fenômeno urbano também é representado diferentemente. O primeiro (Torrens, 2000) apresenta limitações na interpretação do sistema de transportes, resumindo-se a representálo apenas pelo clássico processo seqüencial de quatro etapas; e ainda na interpretação da interação entre os esforços paralelos. O segundo, apresentado por Cascetta (2009), mais recente e robusto, propõe uma representação mais elaborada do sistema de transportes, embora apresente uma representação simplificada do sistema de atividades. Porém, dá importante passo na tentativa de representar a relação entre as duas disciplinas - cada uma representando lado distinto na analogia do cubo mágico - incorporando as interações entre subpartes de cada disciplina, e ainda relacionado-as a indicadores externos, como pode ser visto na Figura 7. Nesta representação o sistema de atividades se materializa como o conjunto das atividades humanas sobre o espaço urbano sendo entendido como uma relação entre a demanda por estas atividades (efeito dos desejos e necessidades humanas emanadas da aglomeração urbana) e a oferta destas atividades geograficamente distribuídas no solo urbano, combinada ainda com os padrões ou tipos de assentamento (DÉAK, 1985). A porção relativa ao sistema de atividades no fluxograma proposto por Cascetta (2009) (Figura 7) apresenta em si mesmo uma dicotomia que pode ser interpretada como um sistema de equilíbrio oferta e demanda. É possível verificar que a localização das 9

residências e atividades econômicas são a sua interpretação da porção demandada do sistema; sendo estas entendidas como responsáveis diretas pelo nível de demanda por deslocamentos. O outro componente, “disponibilidade de espaço por área e tipo”, é o contraponto referente à porção oferta. Confirma-se aqui a visão urbanística do sistema de atividades; mas a proposta, simplificada demais, é entendida como lacuna conceitual.

Fig. 6. Proposta relacional entre uso do solo e transportes (Torrens, 2000).

Fig. 7. Relação entre os sistemas de atividades e de transportes. (Cascetta, 2009). Desde os primórdios do urbanismo científico representa-se o sistema urbano como um conjunto classificado de atividades tipicamente demandadas pelas populações urbanas. Apesar de vários estudos urbanísticos apontarem a importância de fatores sócioeconômicos para a formação e produção do espaço urbano, tais fatores podem ser interpretados como indicadores de níveis diferenciados de demandas por atividades. Da sociologia urbana verifica-se a emergência de interesses diferentes e inclusive conflitantes dos diversos grupos sociais, atores da produção do espaço (Corrêa, 1995). Em suas palavras o autor afirma que o espaço urbano é produto social de interação entre agentes produtores e consumidores que oferecem e consomem atividades e espaço. Percebe-se então uma dicotomia do equilíbrio do sistema de atividades, sendo aplicável tanto à oferta e demanda de atividades, quanto de espaço; questão esta ainda em aberto, mas que não invalida a teoria de equilíbrio dicotômico sugerida. 10

A interpretação pela engenharia, na proposta integradora de Cascetta, apresenta graficamente, mas não textualmente, uma relação entre dois conjuntos representativos dos sistemas de Transportes e de Atividades, que pode ser lido como dois conjuntos de equilíbrio entre oferta e demanda. Em sua proposta o autor relaciona a infra-estrutura de transportes (oferta) com a localização de atividades e habitações, do lado do uso do solo (demanda). Esta demanda do sistema de atividades alimenta o outro lado fechando um ciclo que pode ser visualizado na Figura 8a. Fica claro, pela figura, que o autor não reconhece na oferta do lado do sistema de atividades papel de importância para o ciclo.

Fig. 08. Representação simplificada das propostas integradoras dos dois sistemas. (A) Interpretação da proposta de Cascetta (2009) e (B) Proposta em estudo. É ainda verificável que o autor interpreta a interação entre oferta de transportes e demanda de atividades através de um indicador, externo aos dois sistemas, que exprime medidas de acessibilidade; contemplando o que vem sendo construído pela comunidade científica de transportes. Avalia-se que da mesma forma que há um conector entre oferta de transportes e demanda de atividades, deva existir um conector entre oferta de atividades e demanda de transportes. A existência de tal conector exigiria a interação direta da oferta do sistema de atividades com o lado dos transportes, demandando para tal uma nova representação da interação dos dois sistemas, exemplificada na Fig. 08b. Argumenta-se, desta forma, que a oferta espacializada de atividades, corroborando a literatura de transportes (Ortuzar e Willumsen, 2011; Cascetta, 2009), é o principal responsável pelo desejo de deslocamento; apontando esta separação espacial como potencial caminho à resposta para tal conector. 5. COMENTÁRIOS FINAIS É visível, pela base bibliográfica mais recente, revista aqui, e pela discussão desenvolvida ao longo deste trabalho que um fator básico para que se possa avançar na construção de um modelo de planejamento urbano integrado é o incremento de discussão e desenvolvimento teórico na interpretação do fenômeno que se pretende planejar, neste caso o espaço urbano. Da limitação imposta pela representação parcial do fenômeno urbano, verificável pelas teorias discutidas aqui, reconhece-se a necessidade de avançar na interpretação, principalmente, do sistema de atividades. Futuros resultados de estudos, já postos em curso, apontam para um maior detalhamento das partes constituintes e interações entre estes componentes que formam o sistema de atividades. As dificuldades de se construir propostas de planejamento urbano integrado foram identificadas como referentes não aos modelos matemáticos, ou originada, simplesmente, na etapa de tomada de decisão; mas sim gestada nas etapas iniciais do planejamento das cidades, etapas estas relativas à identificação dos problemas, entendimento e representação do fenômeno urbano em si. Através de um melhor entendimento enfatiza-se a importância 11

de aprofundamento nas etapas de identificação e definição de problemas. O ponto de partida para o planejamento integrado proposto, portanto, é a identificação das interações entre suas partes constituintes, assumindo sua condição complexa. 6. AGRADECIMENTO À CAPES pelo apoio institucional e financeiro. 7. REFERÊNCIAS Cascetta, E. (2009) Transportation System Analysis: Models and Applications. Springer, NewYork. Optimization and its applications – volume 29 Chapin, F. S., Kaiser, E. J., Godschalk, D. R. (1995) Urban land use planning. University of Illinois Press. CIAM. (1933) Carta de Atenas. Assembléia do CIAM, Atenas. Corrêa, R. L. (1995) O Espaço Urbano. Ed. Ática, volume 174 da Série Princípios, 3ª Ed. Deák, C. (1985) Rent theory and the price of urban land/ Spatial organization in a capitalist economy. PhD Thesis, Cambridge, Capítulos 4 e 7 Hall, P. G. e Tewdwr-Jones, M. (2010) Urban and regional planning. 5th ed. Routledge, NY Meyer, M. D. e Miller, E. J. (2001) Urban Transportation Planning – A decisionoriented approach, 2nd edition. McGrow Hill series in transportation. Morin, E. (2005) Introdução ao pensamento complexo. (4ª ed.) Ed. Sulina. Porto Alegre Manheim, M. L.; Earl, R. R.; Kiran, U. B. (1969) Search and Choice in Transportation Systems Planning: Summary Report (Volume I of Series) MIT Ortuzar, J. D. e Willumsen, L. G. (2011) Modelling Transport (4nd ed.). Wiley, NY Pietrantonio, H., Gualda, N., Strambi, O. (1996) Integração entre Políticas de Uso do Solo e Transportes: Dificuldades e Necessidades. In: X Congresso da ANPET, Brasília. Rodrigue, J.; Comtois, C., Slacl, B. (2009) The Geography of Transport Systems. 2nd Ed Routledge, NY, Timmermans, H. (2003) The saga of integrated land-use-transport modelling: how many more dreams before we wake up? Keynote paper, 10th IATBR Conference, Lucern. Torrens, P. M. (2000) How Land-Use-Transportation models work. Working Paper Series, Paper 20. Centre for Advanced Spatial Analysis – UCL, London, 2000 [75 p.] Wegener, M. (2004) Overview of land-use transport models. In: Hensher, D.A., Button, K. Transport Geography and Spatial Systems. Handbook in Transport (5). UK, Pergamon. 12

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