Dimensões do poder: história, política e relações internacionais

Share Embed


Descrição do Produto

Dimensões

do Poder História, Política e Relações Internacionais

Conselho Editorial da Série História (Editor) Leandro Pereira Gonçalves, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil

Chanceler Dom Jaime Spengler Reitor Joaquim Clotet

António Costa Pinto, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal

Jorge Ferreira, Universidade Federal Fluminense, Brasil

Maria Helena Capelato, Universidade de São Paulo, Brasil

Maria Izilda Santos de Matos, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

Jens Hentschke, Newcastle University, Reino Unido

René E. Gertz, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil

Rui Cunha Martins, Instituto de História e Teoria das Ideias/ Universidade de Coimbra, Portugal

Vice-Reitor Evilázio Teixeira Conselho Editorial Jorge Luis Nicolas Audy | Presidente Gilberto Keller de Andrade | Diretor da EDIPUCRS Jorge Campos da Costa | Editor-Chefe Agemir Bavaresco Augusto Buchweitz Carlos Gerbase Carlos Graeff-Teixeira Clarice Beatriz da Costa Söhngen Cláudio Luís C. Frankenberg Érico João Hammes Gleny Terezinha Guimarães Lauro Kopper Filho Luiz Eduardo Ourique Luis Humberto de Mello Villwock Valéria Pinheiro Raymundo Vera Wannmacher Pereira Wilson Marchionatti

Série

História

66 Dimensões

do Poder História, Política e Relações Internacionais

Marçal de Menezes Paredes, Leandro Pereira Gonçalves Luciano Aronne de Abreu e Helder Gordim da Silveira Organizadores

Porto Alegre, 2015

© EDIPUCRS 2015 DESIGN GRÁFICO [CAPA e DIAGRAMAÇÃO]  Dani.Editorial REVISÃO DE TEXTO  Clea Motti TRADUÇÃO ESPANHOL/PORTUGUÊS DO CAPÍTULO De frente para o futuro  Clea Motti

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Publicação apoiada pela Capes. Esta obra não pode ser comercializada e seu acesso é gratuito.

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 E-mail: [email protected] Site: www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D582  Dimensões do poder : história, política e relações internacionais [recurso eletrônico] / Org. Marçal de Menezes Paredes et al. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2015. 191 p. – (Série História ; 66). Modo de Acesso: ISBN 978-85-397-0715-7 1. Brasil – História Pólítica. 2. Brasil – Relações Exteriores História. I. Paredes, Marçal de Menezes Paredes. I. Título. CDD 981 Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

Sumário

prefácio................................................................................................................................ 7 apresentação.................................................................................................................... 9 A fronteira no centro................................................................................................... 13 Rui Cunha Martins

De frente para o futuro. O Conceito de nação nos processos de independência hispano-americana...................................................................... 29 Fabio Wasserman

Nas origens do nacionalismo político da I República Portuguesa: o projeto da “nacionalização do Estado” e o debate jurídico e político em torno da conceção da soberania e do modelo de representação política........................... 63 Paula Borges Santos

Nacionalismos e política externa portuguesa no pós-25 de Abril....................... 81 José Pedro Zúquete

Nacionalismos e Impérios: o caso da Itália fascista............................................... 97 João Fábio Bertonha

A década de 20 e a gênese das ideias autoritárias no Brasil: o jovem Francisco Campos....................................................................................... 115 Cláudia Maria Ribeiro Viscardi

Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica: uma síntese tentativa.................................................. 135 Paulo Roberto de Almeida

A Questão do Acre nas Caricaturas dos Jornais Cariocas (1903-1904)........... 165 Luís Cláudio Villafañe G. Santos

sobre os autores......................................................................................................... 189

Prefácio

Este livro, como muitos outros, originou-se da organização de dois seminários de pesquisa realizados na PUC de Porto Alegre, que tiveram como eixo comum os estudos ibero-americanos. Um tipo de atividade bastante frequente nos programas de pós-graduação brasileiros e também bastante frutífero, já que, aliando ensino e pesquisa, permite o contato entre graduandos, pós-graduandos, professores estrangeiros e professores nacionais de várias partes do país. Portanto, é uma estratégia que deve permanecer sendo experimentada por muito tempo e com muito proveito. Um dos resultados esperados de tais seminários costuma ser a produção de um livro que reúna um conjunto de trabalhos neles apresentados e debatidos. Nesse aspecto, este livro é como vários outros resultantes dessa rica dinâmica. Contudo, ele se diferencia de quase todos eles, ao se propor não tanto a reunir textos, mas a reorganizá-los segundo uma nova perspectiva, ela mesma produto das discussões dos seminários. Esse fato explica, a meu ver, sua estrutura bem-acabada e suas diversas contribuições, assentadas, basicamente, em um forte convite a novas reflexões. O tema do nacionalismo é a grande marca de todos os capítulos, que se dedicam à política e às relações internacionais na história de três países: Brasil, Portugal e, em menor escala, a Itália. Essa questão clássica aparece, em boa parte desses capítulos, associada a outra, não menos instigante: a da experiência autoritária, absolutamente incontornável nesses três casos de Estados nacionais. Assim, o leitor poderá conhecer dimensões do nacionalismo português e do brasileiro, em diferentes temporalidades, além de se beneficiar de um capítulo que analisa o fascismo italiano pela via de sua política de expansão colonial. Em todos os trabalhos é possível encontrar um esforço de reflexão teórica, que se explicita nos dois capítulos iniciais do livro, dedicados, respectivamente, às categorias de nação e nacionalismo e ao conceito de fronteira, cujo(s) significado(s) é/são retomado(s) para realizar a conexão entre a política e as relações internacionais. Dessa forma, acredito que o livro renova, para o leitor, o tratamento de temas que são muito visitados, justamente por serem sempre desafiadores, sobretudo, nos estudos ibero-americanos.

Angela de Castro Gomes Professora Titular da Universidade Federal Fluminense e Professora Visitante da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

|  7

Apresentação

Ao longo dos últimos anos, as diferentes linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da PUCRS têm promovido uma série de eventos, de variadas dimensões e temáticas, com o objetivo de refletir sobre suas próprias práticas de pesquisa histórica e as novas tendências nacionais e internacionais da historiografia contemporânea, tanto em termos teórico-metodológicos quanto empíricos. A esse respeito, pode-se dizer que esses eventos têm se constituído cada vez mais em importantes espaços de diálogo não apenas entre os próprios professores, pesquisadores e alunos do PPGH da PUCRS, mas também com seus pares de outras reconhecidas instituições nacionais e internacionais de pesquisa histórica, com as quais têm procurado estreitar ainda mais suas relações de parceria no campo da História. Nesse sentido, deve-se destacar que os estudos aqui reunidos e publicados em livro são o resultado de amplas discussões ocorridas no “IX Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos” e no “Seminário Nacionalismo e Política: Brasil e Portugal”, eventos organizados pelas linhas de pesquisa “Sociedade, Política e Relações Internacionais” e “Sociedade Urbanização e Imigração” do PPGH da PUCRS. Em que pese a grande variedade e qualidade dos trabalhos então apresentados nesses eventos, que contaram com a participação de professores e alunos de instituições como Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Juiz de Fora, Universidade Estadual de Maringá, Universidade de Coimbra, Universidade de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa e outras, os professores atualmente vinculados à linha de pesquisa “Sociedade, Política e Relações Internacionais” do PPGH da PUCRS optaram por reunir na presente obra apenas os estudos com temáticas mais afins às questões do nacionalismo e autoritarismo, como se verá a seguir. Rui Cunha Martins e Fabio Wasserman abordam o tema numa perspectiva mais teórico-conceitual, o primeiro sobre a fronteira, o segundo sobre a nação. O próprio título do texto sugere a riqueza da perspectiva teórica de Rui Cunha Martins – A fronteira no centro. Trata-se de recuperar no debate em torno da fronteira – tratada como dispositivo conceitual moderno – suas diversas funcionalidades, muito além do seu uso mais corriqueiro, como margem contrária |  9

apresentação

ao centro. A análise do autor aponta, entre outras questões, para o próprio mecanismo de ativação do limite a partir de um centro de referência que, ao fazê-lo, designa a si próprio como poder. Em De frente para o futuro: o conceito de nação nos processos de independência hispano-americana, Fabio Wasserman critica o essencialismo e a teleologia presentes na forma como são costumeiramente tratados os temas das nações e dos nacionalismos. Para além destes ecos do romantismo, o autor nos apresenta uma pluralidade de significados existentes sobre a palavra nação no contexto das Independências da América Hispânica entre 1780-1830. Trata-se de um texto que, à luz de algumas diretrizes da História Conceitual de Reinhart Koselleck, desnuda a historicidade dos significados políticos e sociais e aponta para a necessidade de o historiador ter atenção às mudanças de sentido e significado, precavendo-se contra a naturalização dos significados na história. Como se vê, ambos os textos são desafiadores e complexos, vocacionados, cada um a seu modo, para a instrução de um debate aberto e crítico por excelência. Paula Borges Santos e José Pedro Zúquete tomam como referência o caso português, ainda que em períodos diferentes – a primeira, analisando as origens do nacionalismo na I República, e o segundo, sua versão mais contemporânea, pós-25 de Abril. Nesse aspecto, a nacionalização do Estado Português no contexto da Primeira República é verificada enquanto a hipótese da narrativa sobre a soberania ter correspondência na representação política; assim Paula Borges Santos busca estabelecer se o nacionalismo teve uma matriz revolucionária ou tradicionalista e conservadora no contexto de rompimento da ordem política vigente. Em um contexto contemporâneo, Zúquete apresenta uma reflexão sobre a Lusofonia em torno de uma rede ambiciosa que é concebida e ativa no século XXI com o objetivo de redefinir e revalorizar a importância de Portugal, 40 anos após a Revolução dos Cravos. João Fábio Bertonha analisa o clássico caso do nacionalismo italiano e sua perspectiva imperialista e apresenta ao leitor reflexões sobre o fascismo italiano como uma proposta sofisticada em termos teóricos, que tentou exercer a prática expansionista no período entre as duas guerras mundiais, entretanto, com erros que causaram desgraças ao povo italiano no âmbito da Segunda Guerra Mundial. Cláudia Viscardi toma por referência o caso brasileiro, refletindo a concepção nacionalista autoritária de Francisco Campos, um dos mais importantes intelectuais vinculados ao Estado Novo de Getúlio Vargas, entretanto a importância da análise está na reflexão dos discursos parlamentares do jovem Campos como defensor das oligarquias situacionistas e do modelo liberal-oligárquico nos anos 20, explicitando alterações nos rumos políticos, uma vez que esteve ao lado dos revolucionários de 30 e foi um dos principais articuladores do golpe do Estado Novo ao lado de Vargas.

10 |

apresentação

Paulo Roberto de Almeida e Luís Cláudio Villafañe Gomes dos Santos analisam a questão nacional brasileira a partir de suas relações internacionais, ou seja, do modo como o Brasil se colocou diante das demais nações e com isso reafirmou seus próprios interesses políticos, territoriais e mesmo de construção de uma nação. Nessa direção, Paulo Roberto de Almeida apresenta uma ampla reflexão na qual analisa os sentidos fundamentais da política externa e da inserção internacional do Brasil desde suas origens no século XIX, colocando assim em perspectiva histórica as tendências e condicionamentos contemporâneos deste aspecto da vida nacional. Luís Cláudio Villafañe Gomes dos Santos propõe por seu turno um exame do período fundamental de Rio Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a partir das caricaturas na imprensa referentes à atuação do chanceler brasileiro, que viria a constituir-se em patrono do Itamaraty e em figura simbólica da nacionalidade. Com este conjunto de interpretações, cremos estar dando continuidade à vocação do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em priorizar o desenvolvimento e a difusão de perspectivas historiográficas qualificadas e com a melhor apetência crítica em torno dos principais temas em debate em nosso tempo.

Os Organizadores

|  11

A fronteira no centro Rui Cunha Martins Universidade de Coimbra

1. Função Consta das funcionalidades asseguradas pelos dispositivos da fronteira a produção de centralidades. Uma propriedade, é bom dizê-lo, nem sempre fácil de detectar (desde logo porque o senso comum analítico tende a privilegiar as figuras do limite conotadas com demarcação e confim, em detrimento das figuras resultantes do desdobramento do limite sobre si próprio) e cujo reconhecimento, quando acontece, tem sido mais ou menos reconduzido a uma expressão mais das inversões de sentido exibidas pela contemporaneidade recente e assimilada, portanto, a fenómenos como a reconhecida propensão das fronteiras para o respectivo deslocamento ou a manifesta apetência dos centros para a respectiva multiplicação. Ora, é nosso entendimento que a funcionalidade em causa, isto é, essa produção de centralidade pelos dispositivos fronteiriços, corresponde, afinal, a um dos mecanismos desde há muito residentes no corpo do conceito de fronteira e que, mais do que tratar-se de mero epifenómeno que traduziria um momento de particular turbulência no desempenho desse conceito, é antes constitutivamente produzido por ele, ganhando, por ocasião da sua mobilização pelas diversas conjunturas históricas, novos recortes funcionais e novas formas de realização. Tanto assim é que, uma vez ensaiada uma concretização do problema no quadro da modernidade, se torna possível detectar, pelo menos, duas modalidades pelas quais se concretiza essa dimensão do limite enquanto centralidade: a da designação; e a do hibridismo.

2. Modelo Nos inícios da modernidade, a noção de fronteira encontra-se suficientemente burilada para que se tornem claras, já então, as respectivas propriedades e condições de desempenho. A impressão com que se fica é a de que, por essa |  13

a fronteira no centro

altura, andam associados ao conceito elementos de vária ordem, desde princípios teóricos e doutrinários até funções pragmáticas, passando por experiências concretas, historicamente inscritas. Alguns desses elementos tendem a ser agregados entre si, reunidos no âmbito do conceito de soberania, enquanto que outros sugerem persistir mais ou menos arredios a esforços de compactação teórica e de normalização. De alguma forma, o trabalho da modernidade consistirá em assegurar a manutenção de ambas as vias, ou, dito de outro modo, em investir sobremaneira na primeira, estimando ao mesmo tempo a margem de manobra e a agilidade funcional garantidas pela segunda. É nesta perspectiva, só nela, que tem cabimento falar de um modelo moderno de fronteira. A expressão designa precisamente essa possibilidade de sentido e esse investimento de coerência em torno do conceito; nada disto fere a disponibilidade da ideia de fronteira para as dimensões da adaptabilidade, da variabilidade e da dispersão de significado, as quais, de resto, constarão de modo gradual do seu recorte conceptual e da sua eficácia. O nosso ponto de vista aponta, portanto, para um grau de razoável estabilidade da noção de fronteira no quadro das primeiras sínteses produzidas pelo pensamento e pela teoria política modernas, estabilidade essa que, ao imputar à fronteira determinado conjunto de competências e determinado tipo de operatividade, lhe permite integrar, com visível sucesso, o painel de elementos que a modernidade se encarregará de popularizar quer ao sabor da sua apetência expansiva, quer da sua incorrigível apetência ordenadora. É dentro desta linha de raciocínio que se torna possível isolar, por entre aqueles que aparentam ser, do ponto de vista da modernidade, os eixos maiores dessa configuração funcional e doutrinária – desse conjunto de mecanismos, será com certeza a expressão conveniente – que é a fronteira, aquilo a que em outro trabalho chamámos já o eixo da designação1. E a tese que lhe está subjacente pode ser dada pela seguinte fórmula: as fronteiras correspondem tanto à definição de uma exterioridade, quanto, sobretudo, à pretensão de visibilidade do invólucro que elas delimitam. Que quer isto exatamente dizer?

3. Designação Basicamente o seguinte: que as fronteiras não remetem apenas para os contornos do que se demarca, nem apenas para aquilo que, pelo ato da demarcação, ganha estatuto excêntrico ou alienígena; qualquer demarcação, na medida em que se faz a partir de um interior que se quer ver demarcado, remete, com naturalidade, para esse invólucro que é a entidade patrocinadora da ativação dos limites. Subjacente a esta tese está, pois, a seguinte percepção:

MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008, p. 112. 1

14 |

rui cunha martins

qualquer mecanismo de separação, e, mais ainda, aqueles que, como as fronteiras políticas, são regularmente trabalhados, não separa virado para fora, separa virado para o interior de si mesmo. A delimitação é uma designação – o “traço” denuncia um referente. A este título, a relevância da atividade demarcatória, ou, especificamente, de cada um desses momentos de fixação dos marcos fronteiriços – ocasiões em que uma entidade política (seja o reino), enquanto entidade demarcada, se instancia e se refaz, à escala local, no próprio ato de fixação dos símbolos que o delimitam –, essa relevância, se é certo decorrer, por um lado, da possibilidade de construir as exterioridades tidas por pertinentes, decorre também, por outro, da evidenciação assim garantida à própria entidade demarcada, como o atesta, de resto, o investimento narrativo-memorial a que esta se entrega. Neste sentido, cada cerimónia de instalação dos marcos visa conferir ao corpo do reino o estatuto de facto notório (não ensinara a tradição jurídica medieval que um tal estatuto designava uma verdade de tal modo evidente e perceptível ao olhar que, uma vez alojada no espírito dos homens, aí residiria ad aeternum?). Um reino demarcado, crê-se perene. O corpo dinástico designado pela demarcação, também.

4. Centralidade Assim se compreende um segundo nível da questão: as fronteiras, enquanto margens, não funcionam apenas como o contrário dos centros; são também a reserva destes, quando não a sua outra natureza. Trata-se, aqui, de retirar as devidas consequências de exemplos como o fornecido por uma leitura da história portuguesa enquanto virtual mobilização em direção a um horizonte de fronteira. Uma leitura segundo a qual, desde essa protoexpansão que é a reconquista peninsular, até à expansão africana, e, mais genericamente, ultramarina, ocorreu uma perpétua reinvenção de um limite posto diante dos portugueses, e deslocando-se sempre para diante deles à medida que dele se aproximavam, como se o mundo fosse irremediavelmente fronteira, ou como se a ucronia se fosse sucessivamente realizando enquanto utopia. Ora, reconhecer-se-á, mesmo sem ser preciso abandonar esta matriz explicativa, que essa progressão em direção às fronteiras se fez acompanhar, em simultâneo, da constatada capacidade da Coroa em instituir-se, desde sempre, como polo configurador desses processos estruturantes da construção portuguesa. Uma percepção que se manifesta em dois níveis. Por um lado, no esforço de captação dos recursos mais visíveis desses espaços marginais por parte de uns centros de decisão só em aparência confinados à retaguarda da dinâmica fronteiriça (pense-se, por exemplo, neste sentido, na rentabilização do contrabando, pela esfera do rei e das elites sociopolíticas, na fronteira castelhana de Quatrocentos; mas pense-se então, com maior abrangência, que essa atuação |  15

a fronteira no centro

é uma etapa de uma tendência longa em que igualmente se inscreverão, quer o gradual envolvimento da monarquia, em negócios similares, a partir da fronteira marroquina de Quinhentos, quer o modo de atuação da Coroa na fronteira brasileira, especialmente na segunda metade do século XVIII). E manifesta-se, por outro lado, no modo como as franjas do reino, ou do império, foram configurando um espaço de escoamento das tensões existentes no seu seio, à laia de “reserva” onde se fazia desembocar a energia social tida por excessiva. Está aqui em causa, afinal, a ativação da dimensão da fronteira como potencial receptora de tensões, como margem estimada, paradoxalmente, enquanto garante das sinergias procuradas, internamente, por uma sociedade em expansão. Será irónico, mas é assim: só um centro bem delimitado (i.e, solidamente designado) pode estimar o potencial ilimitado das margens. Naturalmente que, assim sendo, a fronteira, factor de complexificação histórica que é, não age, porém, sobre o real como garantia de metamorfose social. Persiste, com efeito, na fronteira, uma dimensão de resistência à “metamorfose”, cuja expressão é o inusitado “conservadorismo” que o nível socio-histórico da análise lhe surpreende: recorde-se, com base nos indicadores empíricos, que a sua ativação enquanto mecanismo social propicia mesmo, sob não poucos ângulos de visão, a cristalização das matrizes socio-históricas em presença, mas não a respectiva reversão. Na verdade, já deverá aparecer como seguro, no quadro da primeira modernidade, aquilo que a própria experiência histórica moderna se encarregará de ir comprovando (e que, bem perto de nós, Prigogine explicará tecnicamente): que, mesmo quando o limiar marca o aparecimento de um regime de funcionamento novo, esse novo deve entender-se de uma maneira relativa, isto é, sempre explicável por referência ao que o produz.

5. Contingência Há ainda um terceiro aspecto a ter em conta. Tem a ver com o espaço reservado à contingência no campo do conceito de fronteira e, nomeadamente, com o necessário recuo crítico perante assimilações demasiado rápidas entre contingência e alternativa. Vejamos. Não sobram dúvidas sobre as inúmeras facetas que imprimem à fronteira um elevado grau de resistência a esforços de uniformização: pense-se no seu carácter “contextual”, na sua propensão plural ou no seu potencial de desdobramento, características que têm nas figuras da duplicação de fronteiras, da sobreposição de fronteiras, do apagamento de fronteiras e da reposição de fronteiras a sua expressão acabada. Dito isto, importa frisar que, se estes elementos existem, em qualquer fronteira, de modo latente, vigorando nela em potência, não é, contudo, forçosa, e menos ainda permanente, a sua manifestação. Semelhante latência não pode, portanto, tomar-se como a essência da própria fronteira, como que antecipando-se, por inerência, à contextualização proporcionada, a essa mesma fronteira, pelos res16 |

rui cunha martins

pectivos quadros históricos; aquilo que, em bom rigor, está próximo do âmago da fronteira e pode ser talvez dito essencial nela é, agora sim, a disponibilidade assegurada por essa latência, o carácter “negocial” adveniente à fronteira por via de uma eventual ativação desses elementos potenciais, ou até – e este é o ponto a reter - a possibilidade em aberto de que cada uma dessas iniciativas e ativações permita mesmo aclarar uma sede (chame-se-lhe também centro ou referente) produtora e organizadora desse mesmo quadro de multiplicidade. Donde, constatar a presença da instabilidade e da contingência por entre os elementos integrantes do corpo do conceito só pode significar a consciência de que é no enfrentamento com essa contingência (um enfrentamento entendido como “negociação” pelo que se considere ser, em contexto, a melhor opção) que se instaura a possibilidade de um referente, ou seja, que se torna possível ativar a matéria autoral – porque, de acordo com nosso ponto de vista, “toda a fronteira tem autor”. Por conseguinte: permitir o exercício demarcatório que confira sentido à dispersão; e permitir o reconhecimento desse esforço ordenador; são estes os dois momentos complementares que a contingência, contra ela própria, acaba por assegurar. Daí que ao pensamento moderno não se imponha terminar com a ambiguidade mas geri-la, até porque só essa gestão permite a definição das situações de transgressão, de exceção, de punição ou de perdão, expressões autorais máximas em matéria de fronteira, tal como só ela permite o gesto articulador que, integrando todas essas modalidades, designe o autor. Porque o autor e a sua centralidade são demarcados pelo próprio ato de demarcação que ele assegura.

6. Adaptabilidade Justificar-se-á, neste ponto, uma pergunta: é esta fronteira, assim entendida no quadro da modernidade, um mecanismo dotado de uma capacidade de adequação tal que lhe permita ser exportável para diferentes contextos e, em simultâneo, acrescentar ao seu recorte conceptual, a partir desses trajetos históricos, novas formas de operatividade? Tudo indica que sim. Tudo indica, com efeito, que uma disponibilidade constante para que possam manifestar-se ou ser ativadas as diversas figuras do limite, consoante os contextos, os quadros doutrinários e as estratégias políticas subjacentes, é característica tópica do regime fronteiriço da modernidade. Uma verificação que pode bem traduzir-se na ideia de que as fronteiras são historicamente disponíveis, valência que cauciona, em larga medida, a gradual constituição da fronteira moderna enquanto dispositivo. Joga-se aqui, como está bom de ver, a plasticidade do modelo. Não propriamente, ou não somente, no âmbito da sua matéria conteudística, quer dizer, não somente ao nível da coerência interna dos elementos residentes no conceito de fronteira; sim, muito mais, ao nível do modo como esses mesmos elementos interagem com dimensões como o contexto ou a conjuntura, ao nível, por |  17

a fronteira no centro

conseguinte daquilo que podemos chamar a matéria da historicidade e que justifica essa predisposição das formas fronteiriças para a respectiva ativação em moldes não uniformes. Só esta dimensão pode explicar o sucesso histórico do modelo e a sua pouco linear mas duradoura operatividade. Quando o século XIX se dispõe a tratar do tema da fronteira, tem já ao seu dispor uma gama infindável de modalidades de ativação e configuração de um mecanismo da fronteira cada vez mais disponível para assumir a sua valência de dispositivo.

7. Interioridade O cruzamento dessas possibilidades produzirá fórmulas tão variadas quanto as conjunturas concretas que as enquadram. A sua descodificação nem sempre é fácil. Até porque, gradualmente, não só as mais clássicas figuras do limite (delimitação e ilimitação) surgem articuladas com figuras relevando da dimensão da autoria ou da centralidade, no sentido em que atrás se fez referência, como também esta última dimensão vai ela própria arredondando a sua presença, complexificando as suas expressões. Bom exemplo disso é a noção de “fronteira interior”, de matriz fichteana, a qual, da perspectiva que é a nossa, pode bem ser entendida enquanto expressão do desdobramento do limite em direção a si mesmo e, por conseguinte, como mais uma expressão, também, da produção de centralidade pelo dispositivo fronteiriço. Por que interior? O próprio Fichte o explica: “As fronteiras primeiras, originais e verdadeiramente naturais dos Estados são sem dúvida nenhuma as suas fronteiras interiores […] É somente desta fronteira interior, traçada pela própria natureza espiritual do homem, que resulta o traçado das fronteiras exteriores do seu habitat, que não é senão a sua consequência”. Deixando de lado, neste momento, a problemática das “fronteiras naturais” em que notoriamente o texto está ancorado, o que toma particular relevo para nós é que esta propensão para a interioridade traduz, uma vez mais, agora em um nível mais intimista ou, em nomenclatura técnica, mais da ordem do sensível, o desdobramento do limite em direção ao centro. Ao seu centro, por certo que sim; mas reconhecer-se-á então, e já não será pouco, que o limite tem uma estrutura compósita que contempla a vigência de centralidades. E para que seja possível afirmar, a propósito desse desdobramento fichteano, que nele se cruzam “uma dialéctica temporal e uma dialéctica do território”, obrigatório será entendê-lo, fundamentalmente, como uma recusa de desalojamento originário, não como modo de preservar a essência correspondente a essa fronteira interior, mas como forma de nesse limite interno sediar a inspiração para os rumos a tomar (pela germanidade, no caso) em direção ao futuro, lugar em potência da regeneração espiritual e moral. Porque, neste raciocínio, aquele âmago, aquele ponto central essencial e originário permanentemente descoberto pela fronteira interior “não designa aquilo 18 |

rui cunha martins

de onde provém um povo, mas aquilo em direção ao qual ele avança”2 . Com o que a localização da interioridade devém, em última instância, promessa de futuro. Ora, ao generalizar-se o modelo do estado-nação, ou, dizendo-o com maior ancoragem historiográfica, à medida que a modernidade processa esse longo movimento de exportação do estado-nação como forma de arrumação política, primeiro nas margens do espaço europeu e depois para fora dele, em direção à sua periferia – movimento que, deste ponto de vista, pode ser perseguido até à contemporaneidade –, também esta modalidade de realização da fronteira enquanto centro (a da “fronteira interior”) segue junto com todas aquelas que, em paralelo, integram o quadro de valências do mecanismo “fronteira”. O resultado maior da sua ativação conjugada é, provavelmente, a american frontier, tal como desenhada por Turner. Aí, a fronteira parece caminhar irreversivelmente para a sua própria centralidade. Mas só aí? E no caso brasileiro? Aqui, a impressão que se colhe é a de que o tópico da centralidade, tanto quanto os da ilimitação e da demarcação, será também ele francamente mobilizado por um debate identitário brasileiro que, em Oitocentos, surge obcecado com a definição das fronteiras jurídico-políticas e culturais. E, por arrasto, com a definição dos argumentos conexos: com o lugar da Ibéria nesse quadro, sem dúvida; com os modos da especificidade e da diferença, com certeza que sim; e, inevitavelmente, com as virtudes demarcatórias do elemento híbrido.

8. Hibridização Escreveu-se já que a construção do Estado-Nação brasileiro, ao colocar desafios que não encontravam resposta no contexto europeu, promoveu outro tipo de respostas e outras técnicas, basicamente as que resultaram de uma incorporação da tradição em modalidades próprias do contexto sul-americano, sendo que “o primeiro passo dado nesse sentido foi o da miscigenação”, no sentido em que “a cultura brasileira nasceu da articulação vinculada à miscigenação, nasceu envolvida em uma trama de convenções sociais heterogéneas, [pelo que] as suas instituições são marcadas por essa heterogeneidade mediada pelo sincretismo que a compõe”3. E, com efeito, consulte-se, dentro deste espírito, o Código Criminal brasileiro de 1830. Produto do modo de construção legislativa e de concepção jurídica que assiste, desde 1822 e até meados do século, ao processo de Independência e de construção do Estado, produto, também, de intelectuais-estadistas formados na Universidade de Coimbra, geração entretanto prolongada pela que frequenta, desde 1827, os Cursos Jurídicos de Olinda e São Paulo, a cultura jurídica brasileira, e de BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intérieure. À propos des Discours à la nation allemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après Marx. Paris: Galilée, 1997, p. 150. 2

GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001, p. 35-36. 3

|  19

a fronteira no centro

modo muito particular o referido Código, “explicita a capacidade de hibridização de elementos tradicionais e modernos, condizentes com a sociedade e a cultura que lhe conferem significado. Ao mesmo tempo em que é reflexo de um conhecimento universal, é particular, não deixa de absorver as peculiaridades de uma sociedade escravista, sem perder o viés da sociedade liberal da época”. Deste ponto de vista, “a legislação penal brasileira do século XIX abarca, na mesma construção lógica, o espírito científico ocidental, trazido e relido pela Reforma Pombalina, e a hierarquia revelada pela Escolástica barroco-aristotélica”4 . Um pensamento jurídico, portanto, indiciador de uma sociedade vocacionada para a conciliação dos opostos, registo polifónico que é afinal, também, o do próprio processo de independência brasileira genericamente considerado, no âmbito do qual, perante as dicotomias entre ruptura e continuidade e entre liberalismo/ constitucionalismo e tradição mercantil-escravista, “venceu o meio-termo, uma vitória eclética que procurou fundir liberalismo com escravismo e constitucionalismo com absolutismo do mesmo modo que se mantiveram em equilíbrio de antagonismo a Casa-Grande e os Sobrados nas disputas políticas do Império”5. Importará agora verificar se esta mesma propensão para o “equilíbrio de antagonismos” se detecta igualmente no momento de forjar uma especificidade político-cultural que de certa maneira o campo jurídico brasileiro já delineava.

9. Historicidade A segunda metade do século XIX e os inícios do século XX correspondem, à escala luso-brasileira – também à escala ibero-americana, como veremos – a um momento de particular esforço de clarificação identitária por parte das nações envolvidas. Como é usual em casos que tais, esse esforço tem expressão em fenómenos de demarcação cultural e política, no estabelecimento de diferentes escalas de referência identitária, na reavaliação de memórias nacionais e na sobreposição concorrencial entre os vários critérios avançados para os fins demarcatórios em vista. Compreende-se, neste contexto, que ao levantar-se a questão do relacionamento entre as entidades político-culturais brasileira e portuguesa, tópicos como a dívida, a herança, a fraternidade, a diferença e a originalidade impusessem um estado de permanente mobilização das historicidades, ele mesmo desafiador do lugar da história nos processos de definição dos contornos nacionais. E compreende-se, de igual modo, que todo este complexo cruzamento de razões desembocasse em verdadeiras fricções demarcatórias e naquilo a que chamámos já, em outro local, “turbulências do limite”6 .

SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003, p. 265-269. 4

5

Idem, p. 269.

6

MARTINS, Rui Cunha, op. cit.

20 |

rui cunha martins

Esta problemática foi tratada recentemente, de forma esclarecedora, por Marçal Paredes7. Da sua análise exaustiva torna-se possível isolar, mesmo correndo o risco de sacrificar a sua abrangência aos nossos objectivos imediatos, cinco aspectos fundamentais diretamente relacionados com a nossa investigação. Podemos, na realidade, considerar, do ponto de vista do nosso argumento, que se trata de cinco propostas de resolver o problema da fronteira à escala transatlântica: (I) o entendimento do Brasil como prolongamento de Portugal e, portanto, o entendimento de uma “longa” e eterna fronteira portuguesa, prolongando-se na fronteira brasileira tanto quanto na africana; (II) a recusa da leitura anterior por via de uma demarcação de sentido oposto, qual seja, a de um afastamento brasileiro da herança portuguesa; (III) o alargamento da primeira proposta – a da continuidade, portanto –, a uma escala ibérica de referência, no âmbito da qual os povos sul-americanos são entendidos como neoibéricos (pressupondo, assim sendo, uma “longa” e eterna fronteira ibérica, prolongando-se na América); (IV) a recusa desta última proposta por via da contraposição de uma escala americanista de referência, ela sim passível de demarcar as culturas sul-americanas; (V) a proposição de uma demarcação brasileira pela originalidade, isto é, basicamente, pela celebração do carácter singular do mestiço.

10. Limite Podemos ensaiar uma tradução deste painel para a linguagem do limite. Obteremos então o seguinte panorama: em (I) e em (II) temos propostas claramente inscritas num pano de fundo de ilimitação (a insistência na continuidade ilimitada da fronteira portuguesa para lá das evidentes rupturas introduzidas pela história encontra correspondência, à luz deste raciocínio, no próprio modelo que a recusa, visto que a leitura do afastamento de Portugal enquanto afastamento evolutivo de dado passado só pode inscrever-se no tempo longo da ilimitação); em (III) e (IV) temos propostas que concedem em trabalhar a questão do limite mediante um exercício de complementaridade entre a dimensão ilimitada (tal como constatada nos pontos anteriores) e uma dimensão delimitadora, que, para não negar aquela, propõe-se demarcar escalas de significação amplas (num caso a Ibéria, no outro a América, são os referentes com que se propõe demarcar o ilimitado); em (V), por fim, deparamos com uma mobilização simultânea e sucessiva das várias figuras do limite: conforme teremos oportunidade de explicar, essa inflexão para o “centro” que é a aposta na originalidade, feita critério demarcatório por intermédio da mestiçagem, constrói-se sobre o círculo vicioso da ilimitação.

PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história e Escalas identitárias (1870-1910). Coimbra: FLUC, 2007. 7

|  21

a fronteira no centro

11. Continuidade Comecemos pela primeira tendência. Abdicaremos aqui de reproduzir a multiplicidade de posicionamentos e linhas interpretativas passíveis de filiação na visão do Brasil enquanto prolongamento português. Essa tarefa está feita. Para o que aqui interessa, a tendência vale pelo seu todo, sendo que a diferença entre os que, como Oliveira Martins (de igual modo Eduardo Prado ou Eça de Queirós), apelam à “comunidade de sangue” entre portugueses e brasileiros para justificar o Brasil enquanto futuro de dado passado e, donde, como nação neoportuguesa na América e produto da obra civilizacional portuguesa, e aqueles outros que, no contexto do republicanismo, celebravam na interação entre as duas culturas a lei das afinidades que, segundo a filosofia positiva, regia a relação de “povos irmãos”, não anula o essencial: a visão de uma linha de continuidade transatlântica que recusava reduzir a fronteira cultural (e não só ela, evidentemente) ao rincão lusitano. E porque a fronteira de qualquer uma das duas entidades era sempre, de acordo com esta ideia, fronteira luso-brasileira, daí se seguia que qualquer alteração que às fronteiras brasileiras respeitasse lesava a própria ideia de Portugal. Eis-nos bem em face do ilimitado da fronteira. O debate entre unitarismo e federalismo no Brasil não podia deixar de aparecer, a esta luz, como debate português também (sabido que era, como se rezava em alguns círculos, ser a Espanha um país que chegara à uniformidade por via da “junção violenta de muitos estados”). Bem assim, os sucessos ocorridos na fronteira do Rio Grande do Sul não podiam deixar de ser gravosos para a imagem de Portugal, tanto ou tão pouco que se ensaia uma comparação entre essa ameaça de desagregação no sul do Brasil e a ameaça inglesa sobre as pretensões coloniais portuguesas em África, ambas tidas por problema maior da portugalidade nos finais do século XIX8 . A autorreferencialidade de semelhante visão resulta patente.

12. Evolução É, dissemo-lo já, sobre uma mesma lógica de ilimitação que procede o entendimento simétrico do anterior. Agora, porém, a insistência é no sentido de um afastamento da herança portuguesa e da ligação a Portugal, estratégia de distanciamento que mobiliza primacialmente as matérias da “lei natural” e da “evolução dos povos” e que impõe, com base nesses ensinamentos, a recusa do passado colonial, maxime a sua superação, como única forma de obter os traços de originalidade e diferenciação que deveriam resultar do processo evolutivo e da gradual adaptabilidade de qualquer cultura. Araripe Júnior, Manoel

PAREDES, Marçal, op. cit., p., 25-122; HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República. Viseu: Palimage, 2001, p. 13-25. 8

22 |

rui cunha martins

Bomfim e Sílvio Romero, por exemplo, alinham-se por este diapasão. Uma vez mais não cuidaremos aqui das diferenças, profundas ou de ocasião, entre eles. Por todos, seguiremos Romero. E aquilo que de particularmente expressivo pretendemos elucidar a seu respeito, é a compaginação que pode ser feita entre o seu discurso e o de um outro americano, este do norte, Frederick Jackson Turner9. Longe do nosso intuito reabrir o debate sobre a recepção e o papel da obra turneriana no Brasil. O que, por outro lado, pretendemos aqui sublinhar é que, independentemente das circunstâncias quanto às condições de recepção, e, ainda, à margem de qualquer preocupação em estabelecer afinidades intelectuais ou doutrinárias entre ambos, a proximidade que se detecta entre os dois discursos é irrecusável. Bem vistas as coisas, Romero, como Turner, tinha pela frente a tarefa de integrar a presença de uma fronteira em movimento e as especificidades por ela introduzidas no processo de demarcação de uma dada sociedade cultural e política. A um como a outro se impunha dotar de coerência o movimento ilimitado. Uma das principais consequências analíticas a retirar dessa comum necessidade será uma também comum recusa do passado europeu que a cada um coube. Já destacámos este ponto para o caso de Turner. Por seu turno, Sílvio Romero é, quanto a este ponto, igualmente conclusivo. Atente-se, desde logo, na sua convicção de que “uma nação se define e se individualiza quanto mais se afasta pela história do carácter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à sua mentalidade”, ou, na mesma linha, na sua certeza de que “a nação brasileira, se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português”10. Por detrás destas ideias germinam conceitos do neolamarckismo (dos quais fará também visível uso um Manoel Bomfim na altura de caracterizar o “mal de origem” brasileiro enquanto “parasitismo” português, cuja “cura” era o afastamento do passado ibérico) e o cruzamento de preceitos darwinistas ou aparentados, canalizados para uma interpretação naturalista da evolução dos povos na qual o potencial de mistura e de combinação inesperada de elementos de diversa proveniência era sobrestimado enquanto garante de uma originalidade em permanente eclosão. No âmbito desta linha evolutiva em direção à singularidade e à diferença em que a própria história se transforma, a fronteira brasileira não pode ser em caso algum a fronteira portuguesa, mas, bem ao invés, a sua constante negação, o lugar do perpétuo movimento para longe de Portugal e das raízes onde estiolava o “velho reino”, esse que “havia feito completa bancarrota de ideias” e que, resignado à condição de “ínfimo glosador dos desperdícios franceses”, não era mais do que a raiz longínqua que “perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos”11.

9

MARTINS, Rui Cunha, op. cit., p. 129-135.

10

PAREDES, op. cit., 114.

11

Idem, 116-121.

|  23

a fronteira no centro

A definição turneriana da fronteira norte-americana como movimento ilimitado para longe da origem europeia – movimento pelo qual a América renascia em permanência – não é dita de modo substancialmente diferente12 .

13. Delimitação Dispunham, entretanto, os cultores da ligação inquebrantável entre Portugal e Brasil de um outro argumento: o da inscrição desse relacionamento na escala mais ampla da ibericidade. Fosse no decurso de uma leitura dessa relação nos termos clássicos da herança, fosse, o que para a perspectiva que é a nossa vai dar no mesmo, nos termos de uma marca de negatividade referencial, o certo é que se assiste à regular sugestão de que o posicionamento de exceção detido pelos países ibéricos no contexto europeu – Espanha e Portugal aparecendo, nessas teorias, claramente demarcados relativamente aos saxões – tinha prolongamento natural à escala americana, ou, dito com maior propriedade, à escala “neoibérica”, fazendo das ex-colónias sul-americanas “filhos ibéricos”, nos quais, por conseguinte, seguia vigente o “génio peninsular” cuja transposição transatlântica o curso da história havia garantido (neste cenário, o contexto luso-brasileiro seria um subconjunto)13 . Era como se, de certa forma, o agrupamento de povos formado por Espanha, Portugal e pelas nações que deles haviam derivado em solo americano, se apresentassem como conjuntamente distintos, compondo uma fronteira ibero-americana que os demarcasse dos restantes polos congregadores. O texto de Oliveira Martins intitulado justamente “A Liga Ibérica”, publicado em 1892, resume, melhor do que qualquer outro, o espírito deste desiderato14 . Mas se parece incontornável, a dado estado do debate, que alguma dose de limitação seja imposta às pretensões ilimitadas patenteadas por várias das interpretações em presença, era tudo menos seguro que essa operação, essa busca de uma escala de referencialidade por parte da cultura brasileira, em relação à qual esta pudesse desenvolver sentimentos de pertença, coincidisse com o mundo ibérico. Pense-se que, de acordo com alguns analistas e, sobretudo, a partir da contaminação do pensamento letrado brasileiro pela propaganda republicana, o passado português – ou ibérico, que importava? – era o passado a ser superado. A fundação ou refundação do Brasil exigia um sentimento “regenerador”, que TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of Arizona Press, 1986. 12

13

PAREDES, Marçal, op. cit., p. 77-93.

MARTINS, J. P. Oliveira. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957. Veja-se também: MATOS, Sérgio Campos. Portugal e Brasil: crónicas esquecidas de Oliveira Martins. In: MARTINS, J. P. de Oliveira. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos, Lisboa: Universidade de Lisboa, 2005, p. 7-36; e, do mesmo Autor, Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14 (2006), p. 349-400. 14

24 |

rui cunha martins

propiciasse o encontro brasileiro com o seu âmago (arrisquemos desde já: com a sua fronteira interior). Tanto assim era que, em simultâneo com a sugestão da “liga ibérica”, mas em nítido sentido concorrencial com ela, o espírito antilusitano se aplica na promoção de uma escala americana de referência, contraposta à anterior. Este reforço do cunho americanista está presente na órbita do “Manifesto Republicano de 1870”, em que o processo abolicionista brasileiro e a questão do derrube da monarquia se fazem acompanhar da denúncia do passado português e concretamente europeu e, ao mesmo tempo, da estima confessa que deveria merecer, nos areópagos republicanos, o culto do sentimento americanista, vertido na mensagem óbvia de que “somos da América e queremos ser americanos”15. Preocupações demarcatórias, claro. Uma vez mais. Só que, desta vez, a demarcação cultural extirpava o sangue e optava pelo território.

14. Essência Resta, enfim, a tendência que deixámos propositadamente para o final. Em rigor, não se pode dizer que ela inove por comparação com aquelas interpretações que, de entre as por nós repertoriadas, pugnavam por um afastamento em relação à herança portuguesa. A ideia do afastamento, de resto maioritária à escala político-cultural luso-brasileira, é também a que traduz o espírito da proposta que agora nos ocupa. Mas ela é mais do que isso: a sua ambição de diferenciação face às raízes portuguesa, ibérica e europeia (diferenciação também almejada, a breve trecho, frente ao negro e ao índio) redunda numa aspiração de originalidade. Uma demarcação pela singularidade e pela essência, pela clara delimitação dos caracteres específicos, eis do que se trata. Uma fronteira definida a partir de dentro, dir-se-á também. A ideia pode resumir-se num objectivo: estabelecer as fronteiras da nação ali mesmo naquele ponto exato em que deixar de se sentir o eco daquilo que se entenda ser a genuinidade nacional. E esta, afinal, o que se poderia entender que ela fosse? Sílvio Romero, sempre ele, sabe o que procura. Ele começa por saber que o transformismo, para o dizer nas suas próprias palavras, “é a lei que rege a história brasileira”. E se, assim sendo, a ação da história, no Brasil, surge como elemento determinante na definição do carácter brasileiro, é porque só ela (não exatamente só ela, mas a intersecção do historicismo com o materialismo monista) permite explicar o facto de o choque de culturas resultante da ocupação e da colonização não ter preservado nenhuma etnicidade em estado puro; como só ela permite entender que os sucessivos cruzamentos étnicos só podem oferecer, como realidade ontológica passível de ser comemorada enquanto expressão verdadeiramente nacional, a mestiçagem (“todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias”, dita o mais célebre dos aforismos 15

PAREDES, Marçal, op. cit., p. 256.

|  25

a fronteira no centro

romerianos) 16. Este é o resultado único e, por isso, absolutamente singular, dos regimes de adaptabilidade em que se fundou a ação da história no Brasil.

16. Ilimitação Declinemos o exposto de acordo com o ponto de vista do limite, que constitui o nosso posto de observação privilegiado. Intuitos de demarcação como o protagonizado por Sílvio Romero, ao colocarem o mestiço no centro da definição de uma identidade brasileira, consagram o potencial de liminaridade do elemento híbrido. É verdade que, posta assim a questão, a mestiçagem, que apresenta, por definição, um estatuto de transitoriedade e de indefinição, remete fundamentalmente para uma realidade transfronteiriça, situada algures entre os distintos caminhos ditados pelas exigências de adaptabilidade. Nem outra coisa se poderia deduzir de um fenómeno produzido a partir da inexistência de pureza e, por consequência, menos apto a delimitações puras do que à definição de contornos demarcatórios difusos. Mas, mesmo posta a questão nestes termos, o facto é que o mestiço é colocado, em definitivo, no centro. Como se, de cada vez que a história brasileira perguntasse pelo seu verdadeiro âmago, pela sua essência, ou (digamo-lo, agora, com toda a propriedade) pelo seu interior, não pudesse ser senão o mestiço que ela descobrisse. Assim perspectivado, o híbrido é expressão de uma fronteira interior. E esta, como sabemos, ou é tida por ponto de partida (o “genuíno nacional”) ou é apeadeiro (a “gradual autonomização”da forma mestiça) de uma longa marcha para o futuro. Um trajeto futuro tão ilimitado quanto se acreditava ser o destino dos povos que, no seguimento da sua própria marcha evolutiva, se haviam voltado para si próprios na demanda do respectivo traço distintivo. O que quer dizer, em sede do nosso argumento, que a tentativa de resolver o ilimitado por intermédio de uma demarcação feita a partir do centro acabava por entregar a fronteira memorial, cultural e política brasileira, de novo, ao ilimitado que se abria diante dela, como sempre se usou na sequência de processos de demarcação ancorados na demanda identitária. Hobbes sabia-o; a seu modo, os Founding Fathers norte-americanos, também: a noção de movimento, e, por maioria de razão, a de movimento gradual adaptativo, desenvolve apertada conivência com a de ilimitação. Nesta, a linha rapidamente devém circularidade. Esse círculo é por norma vicioso.

16

26 |

Ibidem.

rui cunha martins

Referências BALIBAR, Étienne. Fichte et la Frontière Intèrieure. À propos des Discours à la nation allemande. In: BALIBAR, E. La crainte des masses. Politique et Philosophie avant et après Marx. Paris: Galilée, 1997. GAUER, Ruth. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos Egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001. HOMEM, Amadeu Carvalho. Da Monarquia à República. Viseu: Palimage, 2001. MARTINS, Rui Cunha.  O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de Um Dispositivo Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas). Coimbra: Almedina, 2008. MATOS, Sérgio Campos. Iberismo e Identidade Nacional (1851-1910), Clio, 14, 2006. ______. Portugal e Brasil: cróniqcas esquecidas de Oliveira Martins. In: OLIVEIRA MARTINS, J. P.. Portugal e Brasil (1875), ed. Sérgio Campos Matos.  Lisboa: Universidade de Lisboa, 2005. OLIVEIRA MARTINS, J. P. Política e História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957. PAREDES, Marçal de Menezes. Fronteiras Cuturais Luso-Brasileiras: Demarcações da história e Escalas identitárias (1870-1910) Coimbra: FLUC, 2007. SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. O pensamento jurídico e a organização do estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2003. TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. Tucson: The University of Arizona Press, 1986.

|  27

De frente para o futuro. O Conceito de nação nos processos de independência hispano-americana1 Fabio Wasserman Instituto Ravignani Conicet – Universidade de Buenos Aires

Introdução Basta examinar o catálogo de qualquer biblioteca especializada na América Latina para perceber que a nação, a questão nacional ou Estado nacional, são algumas das temáticas mais investigadas pela historiografia, a ensaística, a crítica literária e as ciências sociais. Não se trata de um interesse casual, uma vez que considera a nação como um dos eixos articuladores da experiência histórica continental nos dois últimos séculos. A atribuição desta centralidade é compartilhada por autores das mais variadas correntes e posições ideológicas, teóricas e epistemológicas, razão pela qual também são diversos os problemas suscitados e as abordagens utilizadas para dar conta da nação. O que é notável é que, apesar desta diversidade, na maioria dessas indagações prevalece uma visão essencialista e teleológica que, tributária do princípio das nacionalidades difundido pelo romantismo, deu forma às histórias escritas a partir da segunda metade do século XIX. Essas histórias, assim como grande parte da historiografia e da ensaística do século XX, compartilham um pressuposto fundamental que calou fundo em nossas sociedades, como se pôde constatar nas recentes comemorações dos bicentenários das revoluções hispano-americanas que proclamaram as independências no primeiro quarto do século XIX: considerar que esses processos Este texto é uma tradução com pequenas variações do meu artigo “La nación como concepto fundamental en los procesos de independencia hispanoamericana (1780-1830)”, em Gilberto Loaiza Cano e Humberto Quiceno (coord.), Aproximaciones al concepto de nación (Colombia, siglo XIX), Cali, Universidad del Valle, 2014. 1

|  29

de frente para o futuro

foram protagonizados por nacionalidades preexistentes ou, em todo caso, por atores com consciência ou interesses nacionais que pretendiam acabar com o jugo colonial para poder constituir os atuais Estados nacionais. Nos últimos anos a historiografia questionou estas interpretações ao promover uma profunda revisão tanto das revoluções de independência como do vínculo que se estabelecia entre estas e a nação. Com efeito, colocar em primeiro plano a crise monárquica como justificativa para o início do processo revolucionário de um lado e outro do Atlântico (a revolução liberal na Espanha e a independentista na América), levou a questionar a existência dessas nações ou nacionalidades e a estabelecer outras formas de conceber as comunidades políticas, fossem cidades, províncias ou reinos2 . Basta recordar que a maioria das declarações de independência foram feitas em nome de entidades que não coincidiam com as nações atuais, e que o mesmo pode ser dito em relação aos primeiros congressos, que não as representavam nem necesariamente promoveram sua criação. Mas não se trata apenas de uma diferença no que se refere ao alcance territorial ou a sua denominação, que são talvez as questões que primeiro chamam a atenção, mas principalmente aos seus fundamentos e aos seus componentes sociais e políticos. Isso não deveria surpreendernos, já que nessa época eram inconcebíveis nossas ideias sobre nação, nacionalidade e o Estado nacional. No entanto, isso não significa de modo algum que nessa época não existisse o conceito de nação ou que este não tivesse nenhum importância. Muito pelo contrário, se considerarmos as revoluções de independência em um intervalo de tempo maior, se poderia muito bem argumentar que o conceito teve um papel decisivo no proceso de transição entre colônia e república. Neste texto pretendo desenvolver esta afirmação tomando como objeto de análise os usos e significados do conceito de nação na América Hispânica entre 1780 y 18303 . Este propósito o distingue de grande parte dos estudos

É impossível fazer uma lista ainda que breve dos trabalhos dedicados a estes temas, portanto me permito citar uma obra coletiva onde se definiram algumas das linhas que renovaram os enfoques sobre a história do período: Antonio Annino e François-Xavier Guerra, coords., Inventando la nación. Iberoamérica. Siglo XIX, (México: Fondo de Cultura Económica, 2003) 2

Para tanto, retomo e reformulo um trabalho realizado no marco de um projeto de história conceitual ibero-americana: Fabio Wasserman, “El concepto de nación y las transformaciones del orden político en Iberoamérica (1750-1850)”, em Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas, 45 (2008): 197-220, também publicado em Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social del mundo iberoamericano. La era de las revoluciones, 1750-1850 [Iberconceptos-I] (Madrid: Fundación Carolina – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2009), 851-869 [http://www.iberconceptos.net/wp-content/uploads/2012/10/DPSMII-bloque-NACION.pdf]. O trabalho original reuniu contribuições de José María Portillo Valdés (Espanha); Hans-Joachim König (Nueva Granada/Colômbia); Elisa Cárdenas (México); Isabel Torres Dujisin (Chile); Marcel Velázquez Castro (Peru); Marco Antônio Pamplona (Brasil); Sérgio Campos Matos (Portugal); Véronique Hébrard (Venezuela); Nora Souto e Fabio Wasserman (Río de la Plata/Argentina). Cabe salientar que todas as afirmações são de minha inteira responsabilidade. 3

30 |

fabio wasserman

sobre as nações que enfocam os nacionalismos e os processos de formação e consolidação dos Estados nacionais4 . As principais divergências têm origem no objeto de estudo e no enfoque utilizado, pois muitos desses trabalhos partem de definições apriorísticas sobre o que é uma nação, seja por ter um caráter normativo como por utilizá-la como categoria de análise, enquanto minha intenção é esclarecer os conceitos de nação que os atores da época tinham e como estes delimitavam, ordenavam ou orientavam cursos de ação possíveis. Para tanto, e seguindo algumas das diretrizes desenvolvidas pela história conceitual, considerarei a função referencial do conceito como indicador e modelador de estados de coisas, experiências e expectativas, mas também como um fator do movimento histórico. Minha hipótese é que ao longo desses anos nação foi se constituindo em um “conceito histórico fundamental”, isto é, aquele que, “em combinação com dezenas de outros conceitos de similar importância, direciona e informa inteiramente o conteúdo político e social de uma língua”, atuando como “conceitos-guia do movimento histórico”5 . Antes de iniciar a análise gostaria de fazer alguns esclarecimentos que permitirão calibrar os alcances e os limites do trabalho. O primeiro é que, embora o sentido dos conceitos não possa ser captado plenamente quando são examinados de forma isolada, já que formam parte de uma trama conceitual e discursiva, por razões de espaço e de clareza expositiva concentrei-me em nação e farei apenas breves alusões a outros com os quais estava vinculado6 . O segundo é que me restrinjo às elites pois são escassos os estudos sobre as classes subalternas que utilizam uma perspectiva conceitual e que poderiam ser aproveitados em um trabalho de síntese como este. O terceiro é que também incluí a Espanha, pois a história da metrópole e suas colônias estava estreitamente inter-relacionada, além de compartilhar o mesmo universo político e Uma revisão dos diversos enfoques e teorias de Gil Delanoi e Pierre-André Taguieff comps., Teorías del nacionalismo (Barcelona: Paidós,1993) e Anthony D. Smith, The Nation in History. Historiographical Debates about Ethnicity and Nationalism (Hanover: University Press of New England, 2000). Para Iberoamérica Hans-Joachim König “Nacionalismo y Nación en la historia de Iberoamérica”, Cuadernos de Historia Latinoamericana nº 8 (2000): 7-47 e Tomás Pérez Vejo “La construcción de las naciones como problema historiográfico: el caso del mundo hispánico”, Historia Mexicana, LIII, 2 (2003): 275-311. 4

Reinhart Koselleck, “Historia de los conceptos y conceptos de historia”, Ayer 53 (1) (2004): 35; “Un texto fundacional de Reinhart Koselleck. Introducción al Diccionario histórico de conceptos político-sociales básicos en lengua alemana”, Anthropos 223 (2009): 93. 5

Daí o valor de projetos como Iberconceptos, que permitiu desenvolver um estudo comparativo de alcance ibero-americano no qual foi tratado sistematicamente um conjunto de conceitos fundamentais. No volume I, já citado na nota 3, foram analisados América, Cidadão, Constituição, Federalismo, História, Liberalismo, Nação, Opinião Pública, Povo e República. O volume II, que também incorporou equipes com trabalhos sobre o Uruguai, América Central, Caribe e Antilhas Hispânicas, inclui estudos sobre Civilização, Democracia, Estado, Independência, Liberdade, Ordem, Partido, Pátria, Revolução e Soberania. Javier Fernández Sebastián dir., Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos en la era de las independencias, 1770-1870 [Iberconceptos II] (Madri, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais e Universidade do País Basco: 2014). 6

|  31

de frente para o futuro

cultural. O quarto é que devido ao tratamento muito desigual do ponto de vista conceitual que diferentes espaços, momentos e atores mereceram, é inevitável que alguns casos recebam melhor tratamento do que outros.O leitor observará, por exemplo, que não há nenhuma referência sobre a América Central e as Antilhas, enquanto que outras áreas como México, Colômbia e Rio da Prata, e em especial suas cidades mais importantes, podem estar ou parecer super-representadas. A fim de mitigar este déficit, procurei que os exemplos citados fossem o mais representativos possível, independente de quem tenham sido seus autores.

Uma pluralidade de significados: a palavra nação no século XVIII A linha metodológica que conduz esta pesquisa sustenta que os conceitos se caracterizam por sua polissemia, pois para ser considerados como tal devem reunir vários conteúdos significativos, seja no que se refere a experiências, estados de coisas ou expectativas. Desse modo, e ao contrário das palavras que podem ter significados diversos mas definíveis de forma mais ou menos inequívoca, os conceitos somente podem ser apreendidos através de uma interpretação histórica e linguística que recomponha essa diversidade de forma sincrônica e diacrônica7. No entanto, ainda que os conceitos não se limitem aos termos que costumam designá-los, pode ser útil iniciar sua análise recorrendo a uma aproximação lexicográfica que permita dar conta de suas definições. A esse respeito cabe salientar que em meados do século XVIII a palavra nação tinha acepções diferentes e, portanto, seus usos também eram diversos. Em primeiro lugar, e como assinalava o Dicionário da Real Academia Espanhola, o termo era empregado como sinônimo do ato de nascer, por isso poderia ter um significado aproximado ao de ser “cego de nascença”. Ainda mais importante foi seu uso para explicar a origen ou o local de nascimento de pessoas ou grupos, como se fazia na Baixa Idade Média para distinguir membros das ligas universitárias, mercantis ou conciliares8 . É por isso que

A principal referência é a obra de Reinhart Koselleck. Além dos textos citados na nota 5, pode ser consultado Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos (Barcelona: Paidós, 1993). 7

Uma síntese dos significados e usos pré-modernos do termo em Alessandro Campi, Nación. Léxico de Política (Buenos Aires: Nueva Visión, 2006); Aira Kemiläinen, Nationalism. Problems Concerning the Word, the Concept and Classification (Jyväskylä: Kustantajat Publishers, 1964); José Andrés Gallego “Los tres conceptos de nación en el mundo hispano”, em Cinta Cantarela ed., Nación y constitución: De la Ilustración al liberalismo (Sevilla: Universidad Pablo de Olavide y Sociedad Española de Estudios del Siglo XVIII, 2006), 123-146. 8

32 |

fabio wasserman

nesse mesmo dicionário se acrescia esta outra definição cujo uso social estaba muito difundido: “A coleção dos habitantes de uma Província, País ou Reino”9. Em segundo lugar, e como também assinalava esse dicionário, a palavra nação poderia assumir um caráter mais impreciso ao ser empregada como sinônimo de estrangeiro sem precisar explicitar sua origem ou procedência. Outro dicionário dava o seguinte exemplo desse uso: “As pessoas humildes de Madri chamam nação a qualquer um que seja de fora da Espanha, assim, ao ver uma pessoa loira dizem, por exemplo, se parece nação”10. Foi empregado do mesmo modo pelos comuneiros neogranadinos ao expressar seu repúdio às reformas borbônicas que limitavam o acesso dos nativos a cargos hierárquicos. O pasquim conhecido como Salud, Señor Regente, que circulou em Nova Granada durante 1781, afirmava que “se estes domínios têm seus próprios donos, senhores nativos, por que motivo vêm governar-nos malditos estrangeiros de outras regiões”11. Em terceiro lugar, a palavra nação era empregada para designar populações que compartilhavam traços físicos ou culturais como língua, religião e costumes. Este uso tendia a sobrepor-se aos anteriores, supondo-se que aqueles que tinham a mesma origem também deveriam partilhar algumas características capazes de distingui-los. Desta perspectiva, nação poderia remeter a uma ampla gama de referências. Seguindo uma antiga tradição, utilizava-se a mesma para designar povos considerados por sua alteridade, fossem bárbaros, gentios, pagãos ou idólatras. Mas também poderia referir-se a uma comunidade que se distinguisse por determinadas características que não expressassem necessariamente uma distância tão radical. Félix de Azara, um funcionário enviado pela Coroa ao Rio da Prata no final do século XVIII, escreveu uma obra sobre a história e a geografia da região informando a seus leitores potenciais que “Chamarei nação a qualquer congregação de índios que tenham o mesmo espírito, usos e costumes, com idioma próprio tão diferente dos conhecidos por lá, como o espanhol do alemão”12 . Certamente que para o ilustrado Azara a diferença entre espanhóis e alemães não era da mesma natureza que entre estes e os indígenas. Este significado teve uma trajetória particular no continente americano, pois foi endossado pelos grupos que eram designados dessa maneira. É o caso Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...] Compuesto por la Real Academia Española. Tomo quarto. Que contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N, (Madrid: Imprenta de la Real Academia Española, 1734), 644. 9

Esteban de Terreros y Pando, Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes y sus correspondientes de las tres lenguas Francesa, Latina e Italiana (Madrid: Imprenta de la viuda de Ibarra, hijos y compañía, 1786), t. II, 645. Grifo no original. Nesta e em todas as citações a ortografía foi atualizada. 10

Pablo E. Cárdenas Acosta, El movimiento comunal de 1781 en el Nuevo Reino de Granada (Bogotá: Editorial Kelly, 1960), t. II, 127. 11

Félix de Azara, Descripción e historia del Paraguay y del Río de la Plata, (Buenos Aires: Editorial Bajel, 1943), 100 (o texto foi escrito em 1790 e editado postumamente em Madri, 1847). 12

|  33

de frente para o futuro

dos escravos africanos e seus descendentes, que se agrupavam em nações identificadas com seus lugares de procedência, como Congo e Benguela. Ou de alguns povos indígenas, como no final de 1780 quando Tupac Amaru dirigiu-se ao Bispo de Cusco para explicar-lhe que o movimento por ele liderado buscava acabar com os tributos cobrados pelos corregedores “aos fiéis vassalos de minha nação” que gravavam também “as demais nações”, razão pela qual solicitava “a isenção plena em minha nação de todo tipo de impostos”13 . Por fim, havia uma série de usos e significados do termo cujas conotações eram de caráter político. Com efeito, a palavra nação também poderia ser empregada para fazer referência a populações regidas por um mesmo governo ou as mesmas leis muito além de sua origem ou traços socioculturais. Por isso, em alguns dicionários dos séculos XVII y XVIII pode-se encontrar definições como as seguintes: “Nome coletivo que significa alguma cidade grande, Reino, ou Estado. Submisso a um mesmo Príncipe ou Governo”14 . Como observou José C. Chiaramonte, esta concepção forjada no marco do processo de reordenamento político da Europa moderna, foi difundida por tratadistas e divulgadores do Direito Natural e das Gentes que enfatizavam o caráter contratual desta associação política às vezes denominada Estado. Emmer de Vattel, autor de uma das obras desta corrente de maior circulação em ambos lados do Atlântico entre meados dos séculos XVIII e XIX, sustentava, por exemplo, que “As nações ou estados são corpos políticos ou sociedades de homens reunidos com a finalidade de procurar sua preservação e vantagem, mediante a união de suas forças”15 . Isto evidencia que, ao contrário do que se costuma alegar, a acepção política de nação antecedeu a Revolução Francesa. Em todo caso, isto possibilitou que fosse considerada como sujeito soberano, ideia que também estava presente em autores como Vattel, ainda que atribuindo-lhe outras características que não faziam nenhuma referência à soberania popular16 . Carlos Daniel Valcárcel ed., Colección Documental de la Independencia del Perú. Tomo 2: La Rebelión de Túpac Amaru (Lima: Comisión Nacional del Sesquicentenario de la Independencia del Perú, 1971), vol. 2, 346. 13

Terreros y Pando, Diccionario Castellano, t. II, 645. Definições similares podem ser encontradas em outras línguas que compartilham a mesma raiz, como português e francês (que incorporava também um componente linguístico): “Nome colectivo, que se diz da Gente, que vive em alguma grande região, ou Reino, debaixo do mesmo Senhorio”; “Tous les habitants d’un mesme Estat, d’un mesme pays, qui vivent sous mesmes loix, & usent de mesme langage”. Rafael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino (Lisboa: Oficcina de Pascoal da Sylva, 1716), vol. V, 568; Dictionnaire de l’Académie français, (1694), 110. 14

Emmer du Vattel, Le droit de gens ou principes de la loi naturelle apliques a la conduite et aux affaires des nations et des souveaines, (Leyden, 1758), citado em José C. Chiaramonte, Nación y estado en Iberoamérica. Los lenguajes políticos en tiempos de las independencias, (Buenos Aires: sudamericana, 2004), 34. 15

Assim, ao comentar uma citação extensa de Christian Wolff na qual aparece a palavra nação, Vattel esclarecia que “Une nation est ici un État souverain, une société politique indépendente” cit. en Chiaramonte, Nación y Estado, 34. 16

34 |

fabio wasserman

Na verdade isto era impensável não apenas no mundo hispânico, pois a ideia dominante há séculos era que a sociedade não poderia existir sem alguma autoridade, seja resultado de um pacto de obediência entre povo e monarca, fruto da vontade divina, ou atribuída a uma combinação de ambas as origens. Esta concepção está presente, por exemplo, na crítica realizada por Joaquín de Finestrad ao movimento comuneiro neogranadino de 1781. Para o frei capuchinho, “A Nação deve ser vista como um indivíduo. É um corpo político que tem partes integrantes e cabeça que o compõem”, deixando claro em várias passagens que, para poder subsistir como comunidade, os membros deveriam submeter-se a sua cabeça, que era o Rei. Propósito que, como deixava explícito, coincidia com a definição política de nação: “A Pátria é o Reino, é o Estado, é o corpo da Nação, da qual somos membros e onde vivemos unidos pelo vínculo das mesmas leis sob o governo do mesmo Príncipe”17. Esta breve análise permite concluir que até o final do século XVIII a palavra nação era utilizada em dois sentidos diversos que percorriam caminhos separados: o sociocultural ou étnico e o político. Ao contrário da concepção que iria se impor a partir de meados do século seguinte, mantendo-se até os dias atuais, o pertencimento a uma nação entendida como submissão a um Estado ou a uma mesma estrutura política não implicava nem tinha como pressuposto que seus membros deveriam compartilhar uma identidade étnica ou algum outro atributo que os distinguisse. Embora admitindo-se que uma certa homogeneidade da população poderia contribuir para sua governabilidade, a fundação da nação entendida como sujeito político repousava/assentava-se no direito divino ou na realização de acordos entre seus membros, fossem corpos coletivos ou indivíduos.

As referências da nação O termo nação tinha significados de natureza diversa, mas em todos os casos cumpria com uma função precisa que, considerada a longo prazo, talvez seja sua marca mais perene: distinguir, delimitar ou definir populações e/ou estruturas políticas. No final do século XVIII esta delimitação tinha diferentes posibilidades que não eram apenas uma consequência das diversas acepções do termo. A nação, muitas vezes escrita com maiúscula, designava em primeiro lugar a totalidade dos reinos, províncias e povos que deviam obediência à monarquia espanhola, bem como sua população, com exceção das castas e, em alguns casos, da república dos índios. Finestrad afirmava, por exemplo, que “O Povo

Joaquín de Finestrad, El Vasallo instruido en el estado del Nuevo Reino de Granada y en sus respectivas obligaciones, Margarita González Int. e transcrição (Bogotá: Faculdade de Ciências Humanas – Universidade Nacional da Colômbia, 2000), 224 y 321. 17

|  35

de frente para o futuro

Americano e o Espanhol, formam ambos nossa Nação e ambos devem reconhecer como seu legítimo Rei e Senhor Natural ao Senhor Dom Carlos III”18 . Porém não se tratava apenas de uma convicção dos espanhóis peninsulares ou europeus, já que as elites nativas, cujos membros muitas vezes denominavam-se espanhóis americanos, também se consideravam parte dessa nação. Mesmo os protagonistas das reações provocadas pelas reformas bourbônicas no final do século XVIII mostravam-se críticos do “mau governo”, mas sem questionar a lealdade para com o Rei nem o fato de fazer parte da nação espanhola. Mais do que isso, este pertencimento podia ser usado como argumento para exigir um tratamento mais justo. No processo realizado em 1795 por ter traduzido e publicado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Antonio Nariño defendeu-se alegando que Um deles é o piedoso Monarca que a todos nós governa, nós mesmos somos seus vasalos, algumas são suas justas leis; elas não fazem distinção entre recompensa e punição para os que nascem aos quatro e meio graus de latitude daqueles que nascem aos quarenta, abraçam toda a extensão da Monarquia e sua influência benéfica deve abranger igualmente toda a nação19.

As menções diretas a nação referiam-se à Espanha, porém entendida como o conjunto da monarquia cujos domínios se expandiam por vários continentes. Contudo, também poderia considerar-se que em seu âmago conviviam nações de outra índole: províncias e reinos americanos ou peninsulares que se distinguiam por sua densidade demográfica, social e cultural, ou por seu desenvolvimento econômico, político e institucional. Estes traços característicos foram destacados e estilizados por escritores em cujos textos tomaram forma representações que favoreceram seu reconhecimento como nações concebidas em caráter sociocultural. É o caso de alguns ilustrados peninsulares que, entre meados e o final dos Setecentos, promoveram uma reflexão sobre a natureza da nação espanhola. Esta empreitada, animada por um espírito reformista, levou-os a unificar os diferentes reinos que coexistiam na Península e a traçar uma demarcação entre esta, entendida como uma nação europeia, e a Coroa, que possuia um caráter pluricontinental. José Cadalso, por exemplo, escreveu, em 1768, uma inflamada Defesa da nação espanhola para rebater as críticas feitas por Montesquieu em uma de suas Cartas Persas que, certamente, eram compartilhadas por mais de um ilustrado europeu 20. Em sua

18

Finestrad, El Vasallo, 343.

Antonio Nariño “Apología”, em José Manuel Pérez Sarmiento comp., Causas Célebres a los precursores, (Bogotá: Imprenta Nacional, 1939) t. I, 129. 19

José Cadalso, Defensa de la nación española contra la Carta persiana LXXVIII de Montesquieu, (Toulouse: France-Iberie Recherche, 1970). 20

36 |

fabio wasserman

argumentação, Cadalso deixou explícito que a nação espanhola era a sociedade estabelecida na Península, além de fazer uma breve revisão de sua história, e de destacar suas riquezas naturais, seu desenvolvimento cultural e moral, e as qualidades que distinguiam os espanhóis, como coragem, compaixão e senso de honra. No marco deste movimento que buscava deslindar a nação espanhola da monarquia que a regia, promoveu-se também uma reflexão sobre sua constituição social, estabelecendo a existência de leis que lhe davam forma e cujo conhecimento remontava a vários séculos atrás. Estas considerações não implicavam de forma alguma em ignorar a autoridade do Rei, mas favoreciam a possibilidade, então conjetural, de promover reformas para que a nação tivesse uma representação própria e, portanto, gozasse de certa autonomia. Nesse sentido destacou-se Victorián de Villava, o Fiscal de Audiência de Charcas nascido em Zaragoza em cujos Apontamentos para a reforma da Espanha, escritos em 1797 e inéditos por um quarto de século, propunha criar um “Conselho Supremo da Nação” com participação de representantes americanos21. Tratava-se, porém, de uma raridade, pois essas propostas costumavam omitir as províncias americanas, já que a maioria dos reformistas tratavam-nas como colônias ou almejavam que cumprissem esse papel 22 . Este tratado apenas reforçou a reação dos nativos letrados que há décadas procuravam enfrentar os preconceitos de alguns autores europeus sobre o continente e seus habitantes, muitos dos quais eram compartilhados e difundidos pelos próprios espanhóis23 . Desse modo seus atributos morais e materiais começaram a destacar-se, em um movimento que, em alguns casos, resultou na identificação como nações de seus reinos ou províncias. Assim, em resposta ao desdém com que Manuel Martí havia se referido ao desenvolvimento intelectual da Nova Espanha em suas Cartas latinas, publicadas em 1735, o Bispo de Yucatan e ex-Reitor da Universidade do México, Juan José Eguiara y Eguren, propôs “transformar em ar e fumaça a calúnia levantada contra nossa nação”. Para tanto, decidiu editar a Biblioteca Mexicana, que deveria acomodar a vasta obra produzida pelos escritores “mexicanos de nascença”, onde incluía obras de nativos, espanhóis e indígenas, destacando em mais de um trecho o Portillo Valdés, José María, La vida atlántica de Victorián de Villava (Madrid: Fundación MAPFRE, 2009). 21

O debate sobre a pertinência de considerar as Índias como colônias foi retomado há pouco tempo em “Para seguir con el debate en torno al colonialismo ...”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, On-line desde 08 fevereiro 2005, consultado em 08 julho 2013. http://nuevomundo.revues.org/430. Uma análise que aborda o problema a partir da perspectiva conceitual em Francisco Ortega, “Ni nación ni parte integral. Colonia, de vocablo a concepto en el siglo XVIII iberoamericano”, Prismas. Revista de Historia Intelectual, 2011 (15), 11-29. 22

Uma exaustiva análise das considerações feitas sobre o continente americano em Antonello Gerbi, La disputa del nuevo mundo. Historia de una polémica 1750-1900 (México: Fondo de Cultura Económica, 1982). 23

|  37

de frente para o futuro

desenvolvimento cultural e as qualidades dos antigos habitantes do México e seus descendentes24 . Isso permite compreender sua decisão, então inusitada, de designar como mexicanos o vasto e heterogêneo grupo de autores cuja obra almejava resenhar. Recorrer a este qualificativo iria ser de grande importância, pois um dos elementos em jogo na hora de considerar alguns reinos ou províncias como nações era a possibilidade de reivindicação de uma população nativa que permitisse particularizá-las, conferir-lhes densidade histórica e identificá-las. Daí o valor e interesse que adquiriram as obras escritas ou publicadas por alguns jesuítas após sua expulsão em 1767, já que muitas delas associavam o território de um reino ou província com um povo indígena detentor de determinada identidade ou homogeneidade étnica. Francisco Javier Clavijero, por exemplo, em sua História Antiga do México, utilizava a palavra nação para enumerar cada um dos povos que habitaram o Anahuac (toltecas, chichimecas, acolhuas, olmecas, otomis, etc.), mas acabava identificando seus traços físicos e morais com um deles: “os mexicanos”25 . Da mesma forma, mas fazendo referência a um reino localizado do outro lado do continente, para Juan Ignacio Molina “Parece que no início tivesse se estabelecido no Chile uma única nação; todas as tribos indígenas que ali vivem, embora independentes umas das outras, falam a mesma língua e têm a mesma fisionomia”26 . Embora não tenha sido necessariamente o objetivo de seus autores, estas considerações foram usadas mais de uma vez pela elite nativa no momento de reconhecer-se ou imaginar-se membro de uma nação. O Chile, por exemplo, apesar de não ter o mesmo desenvolvimento econômico, sociocultural e institucional que o México, contava com uma produção discursiva sobre os araucanos que, somada a outras condições como seu relativo isolamento e sua organização como Capitania Geral, criou condições favoráveis para ser considerado como uma nação. Contudo, a reivindicação destas particularidades, ou de outras, como a veneração da Virgem de Guadalupe no México e a de Santa Rosa, no Peru, que encorajavam o que alguns autores decidiram chamar de “patriotismo crioulo”27, não implicava uma tradução política nem um afã de independência: no final do século XVIII a nação compreendida como um Estado ou como populações submetidas a um único governo, continuava tendo como referência a Monarquia com o Rei à frente. Por isso se poderia estabelecer a existência de Juan José Eguiara y Eguren, Bibliotheca Mexicana, Benjamín Fernández Valenzuela trad. do Latin, Ernesto de la Torre Villar coord., (México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1986), 53 y 175. 24

Francisco Javier Clavijero, Historia Antigua de México, (México: Editorial Porrúa, 1991, 1ra. ed. em italiano, 1780), 44/5. 25

Juan Ignacio Molina, Compendio de la Historia Civil del Reino de Chile, Nicolás De La Cruz y Bahamonde ed. e tradutor de italiano (Madrid: Imprenta de Sancha, 1795,), 12. 26

27

38 |

David Brading, Los orígenes del nacionalismo mexicano, (México: Era, 1997), 25.

fabio wasserman

nações consideradas pelo caráter étnico, sociocultural ou territorial que, por sua vez, faziam parte da nação espanhola definida pelo fato de compartilhar a lealdade à Coroa e às leis da monarquia. Levando-se em conta a perspectiva conceitual, o que mais se destaca nesta pluralidade de referências de nação é sua baixa densidade e fato de que, em geral, remete a estados de coisas mais do que à abertura de novos horizontes ou possíveis cursos de ação. Se bem que sua acepção em caráter contratual permitia a criação de uma nova nação ou que alguma já existente se proclamasse soberana, eram possibilidades que recém começaram a surgir no contexto da crise desencadeada pelas Abdicações de Baiona, em maio de 1808, e a resistência à coroação de José I, irmão de Napoleão Bonaparte. Apesar das inovações introduzidas pelos ilustrados durante a segunda metade do século XVIII, continuou prevalecendo a ideia de que a existência da nação, seja como corpo político ou como sociedade, dependia de sua subordinação ao Rei. E se havia algo inimaginável na época era exatamente isso, a ausência do monarca.

A crise monárquica e o surgimento da nação como sujeito soberano A crise da Coroa e as revoluções na Espanha e América deram início a um processo durante o qual o conceito de nação passou a ocupar o primeiro plano ao surgir a possibilidade de sua existência sem o monarca e a criação de novas entidades políticas. Fator decisivo nesse aspecto não foi tanto uma mudança no plano das ideias, o que sem dúvida aconteceu e foi radical, mas nas condições de produção das mesmas e dos discursos nos quais estas ganhavam forma e circulavam 28 . No contexto desse processo, cujo ritmo e intensidade não foram similares em todos os espaços nem setores sociais, a palavra nação passou a ter uma difusão mais ampla, além de sofrer importantes mudanças qualitativas que a dotaram de maior densidade. Enquanto aumentavam significativamente as qualificações de que era credora/merecedora ou os atributos que lhe impunham, em geral positivos, disseminava-se a adjetivação de experiências com o termo nacional. E se nação havia tido até então um papel passivo no discurso social, pois somente poderia ser uma questão de ações para melhorá-la, elogiá-la, exaltá-la ou defendê-la, o fato de passar a ser considerada como sujeito político autônomo possibilitou que também agisse, ainda que devesse fazê-lo através de seus representantes. Em termos conceituais também aconteceram mudanças decisivas, já que o termo nação sofreu um rápido processo de politização e ideologização que

Elías Palti realizou uma interpretação deste processo complexo destacando os problemas que acarretava conceber a soberania nacional, unindo dois conceitos até então antagônicos, em El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado (Buenos Aires, Siglo XXI: 2007), cap. 2. 28

|  39

de frente para o futuro

aumentou sua carga polêmica. Não foi um fenômeno isolado, pois a mesma coisa ocorreu com muitos outros conceitos com os quais formou uma trama política e discursiva. As relações que nação estabelecia com esses outros conceitos eram de natureza diversa. Podiam ser de oposição, como aconteceu com colônia, ou com facção e partido, pois eram considerados expressão de interesses parciais que dividiam a nação. E aconteceria a mesma coisa com província e povo/s no marco das disputas entre federais ou autonomistas e centralistas. Mas os vínculos nem sempre eram claros e inequívocos: povo/s poderia ser associado de maneira positiva a nação se esta se identificava com um povo ou com a união de povos que concordavam em reunir-se em um corpo político. Nação também se vinculou positivamente a conceitos como pátria, território, América, cidadão, independência, opinião pública, ordem e, acima de tudo, soberania, constituição e representação, que davam conta da inovação que implicava a existência ou criação da nação como sujeito autônomo e soberano, que devia constituir-se através de seus representantes. No discurso articulado em torno desta rede conceitual ganharam forma problemas enormes delimitados pela necessidade de redefinir os vínculos políticos e sociais dos súditos da Coroa. É devido a isso que, se o conceito nação remetia até então a estados de coisas existentes e, em particular, à Monarquia, seus domínios e seus súditos, invocá-lo em um contexto pactista legitimado pela doutrina da retroversão da soberania permitiu que também propagasse a possibilidade de criar comunidades políticas de cunho novo, que fossem também expressão de relações sociais não menos inovadoras. Nesse sentido, podem ser identificadas duas tendências, ainda que na prática as propostas costumassem combinar elementos de ambas: a daqueles que idealizavam uma nação única e indivisível de caráter abstrato constituída por indivíduos, e a daqueles que julgavam que era formada por corpos coletivos, fossem estamentos ou povos que reassumiram sua soberania ante o estado de acefalia – reinos, províncias, povos ou cidades. De uma forma ou de outra, a verdade é que isto implicou em uma temporalização do conceito: a nação orientava-se inevitavelmente em direção ao futuro que não se desejava que fosse legatário do passado. A possibilidade de definir conjuntos políticos de essência diversa, agora associada à ideia de soberania, também levou a uma expansão dos marcos de referência de nação. Nesse sentido havia a possibilidade de manter unidos todos os domínios da Coroa; de levar a uma divisão entre sua seção europeia e americana; à proclamação como nações de alguns de seus vice-reinados, reinos e províncias; ou à associação de algunas dessas entidades ou de parte delas em diferentes órgãos políticos. Afora essa diversidade, o que não foi questionado de modo algum foi o caráter católico que essas nações deveriam ter e, exceto para os absolutistas contrarrevolucionários, a necessidade de sua organização exigir uma sanção constitucional para dar-lhe consistência e regular as relações entre seus membros, além de assegurar-lhes seus direitos. Por isso o debate político confundiu40 |

fabio wasserman

-se muitas vezes com o constitucional, sendo incontáveis as convocatórias para assembleias e as constituições promulgadas a partir de 1808. Nestas foram colocadas em discussão concepções sobre a nação e seus alcances, sejam espaciais (que territórios ou povos faziam parte da nação), sociais (que setores a integravam e quais estavam excluídos; de que forma e sob quais princípios deveriam ser estruturadas as relações sociais), ou políticos (quais os direitos e obrigações de seus membros, como eram concebidos e representados). Esta diversidade traduziu-se em conflitos que expressavam diferentes visões e interesses, pois a partir da crise monárquica e das revoluções pôs-se em foco o acesso ao poder mas também, e isso é decisivo para entender o radicalismo dos enfrentamentos que animaram a vida política pós-revolucionária, sua própria definição. A partir de então a definição de nação não poderia mais ser ignorada, constituindo-se em um conceito histórico fundamental dessa conflituosa experiência.

A nação espanhola: entre as cortes de Cádis e a monarquia absoluta Para embrenhar-se na análise deste processo é necessário começar pela própria Espanha. Em maio de 1808 aconteceram as Abdicações de Baiona, que levaram à prisão de Fernando VII e à coroação do irmão de Napoleão sob o título de José I, provocando, para assombro de muitos, a rejeição de grande parte da população, que se levantou em armas e enfrentou as tropas francesas. Se no início desse movimento convocou-se os habitantes das cidades, províncias e reinos, ou seja, as comunidades políticas que protagonizavam a insurreição e proclamavam as Juntas para defender os direitos de Fernando VII, a guerra favoreceu a difusão de uma concepção unitária de nação29. Às vezes esta operação era explícita, como se pode constatar em um texto do político e ensaísta catalão Antonio de Capmany: O que seria dos espanhóis se não houvesse aragoneses, valencianos, murcianos, andaluzes, asturianos, galegos, estremenhos, catalães, castelhanos, etc.? Cada um destes nomes inflama e envaidece e destas pequenas nações compõe-se a massa da grande Nação […]30.

A invocação à nação como sujeito disseminou-se no discurso público e avalizou-se com a criação, em setembro de 1808, de uma Junta Central que foi reconhecida pela maioria dos espanhóis e americanos. Pouco tempo depois este conselho diretivo realizou uma convocatória às Cortes para que os representantes Francois-Xavier Guerra, Modernidad e Independencias. Ensayo sobre las revoluciones hispánicas, (Madrid: Mapfre, 1992), 157. 29

Antonio de Capmany, Centinela contra franceses (Madrid: Gómez Fuentenebro y Compañía, 1808), 94 [http://156.35.33.113/derechoConstitucional/pdf/espana_siglo19/centinela/centinela.pdf]. 30

|  41

de frente para o futuro

do povo pudessem dotar a nação de um marco institucional. Mas este propósito poderia implicar em diversas opções, razão pela qual também foi motivo de disputas. Para alguns esse chamado deveria limitar-se a promover uma colaboração entre o Rei e a nação, como vinham propondo alguns reformistas ilustrados desde o final do século anterior. Ao contrário, aqueles que brandiam ideias mais radicais acreditavam que a nação era um sujeito soberano que tinha o direito de constituir-se segundo sua vontade, interesse e necessidade. Esta posição, encorajada por aqueles que se identificariam como liberais, foi a que prevaleceu quando, em setembro de 1810, e no contexto de uma situação crítica provocada pela derrota das forças espanholas que no início daquele ano levou à dissolução da Junta Central e à criação de um Conselho de Regência, as Cortes conseguiram reunir-se em Cádis, decretando que nelas residia a soberania nacional. E teve sua confirmação em março de 1812 ao ser sancionada uma constituição em que se proclamava que a nação era livre e independente e que nela residia essencialmente a soberania, embora seu título fosse Constituição Política da Monarquia Espanhola, talvez para preservar seu caráter pluricontinental. Cabe salientar que, diferente de outras constituições da época que começavam proclamando direitos individuais, esta definia a Nação espanhola como “a reunião de todos os espanhóis de ambos hemisférios”, adjetivo com o qual eram designados todos os homens livres e domiciliados nos territórios da monarquia 31. Porém esta concepção de nação não estava tão difundida como pareciam acreditar os deputados das Cortes ou, se preferirmos, não contava com a mesma legitimidade que o soberano. A derrota das forças francesas e a queda de Napoleão permitiram a Fernando VII subir ao trono em 1814 sem que encontrasse maiores obstáculos para restaurar o absolutismo. Uma de suas primeiras medidas foi decretar a anulação da Constituição e a suspensão das Cortes, ameaçando com a pena de morte aqueles que as invocassem ou promovessem: […] declaro que minha real intenção é não apenas não jurar nem consentir com a referida constituição nem com qualquer decreto das Cortes gerais e extraordinárias, a saber, os que reduzem os direitos e prerrogativas da minha soberania, estabelecidas pela constituição e as leis em que a nação tem vivido por muito tempo, mas o de declarar aquela constituição e tais decretos nulos e de nenhum valor e efeito, agora nem em tempo algum, como se tais atos não tivessem acontecido jamais, [...]32 .

Constitución política de la Monarquía Española: Promulgada en Cadiz a 19 de Marzo de 1812. Precedida de un Discurso preliminar leído en las Cortes al presentar la Comisión de Constitución el proyecto de ella (Madrid: Imprenta que fue de García; Imprenta Nacional, 1820), 4. Tanto a Constituição como uma seleção significativa dos documentos institucionais produzidos a partir de 1808 podem ser consultados no portal http://www.cervantesvirtual.com/portal/1812 31

“Decreto dado en Valencia a 4 de mayo de 1814 firmado por YO, EL REY”, citado em Juan Angel de Santa Teresa, Sumario de injusticias, fraguadas por el liberalismo impío, contra la religión 32

42 |

fabio wasserman

O que importa aqui, como se depreende do Decreto, é que se pode constatar que nessa época nem mesmo os defensores do absolutismo poderiam ignorar o conceito de nação. Sua generalização para dar conta da sociedade espanhola como comunidade o havia convertido em um conceito indiscutível e, portanto, polêmico: já que não se podia ignorá-lo, se deveria discutir seu conteúdo e seu significado. Isto pode ser constatado em um libelo publicado quando ocorreu a segunda restauração de Fernando VII após outro breve interregno constitucional, conhecido como o triênio liberal (1820-3), cujo autor, um clérigo absolutista, recordava com satisfação a extinção das Cortes e da Constituição, alegando que “com este Decreto Real a nação oprimida respirou” 33 .

Os povos americanos: de colônias a nações Entre 1808 e 1810 os americanos também sofreram o impacto da crise monárquica, distanciando-se progressivamente da metrópole que logo se converteria em uma revolução e uma longa guerra que iria culminar com a independência de grande parte do continente. No contexto desse conflituoso e confuso processo começou a ser considerada a possibilidade de que nação, entendida como corpo político soberano, fosse a própria América, mas também seus vice-reinados, reinos e províncias ou a associação de algunas dessas entidades ou dos povos que as formavam. A ruptura que ocorreu com a Espanha e com a antiga ordem não foi apenas factual mas também discursiva, além de implicar em uma forte carga emocional e uma redefinição das identidades, como é possível constatar em nação e em outros conceitos fundamentais através dos quais estas mudanças foram expressas. A esse respeito cabe ressaltar que quando se buscava mobilizar a população, e especialmente nos tempos de guerra, apelava-se mais à pátria do que à nação. Isto deveu-se tanto a sua maior carga emocional quanto ao uso generalizado entre amplos setores sociais, que davam continuidade à tradição hispânica de invocar a tríade Deus (ou religião), Pátria e Rei, embora reformulada ao associar-se a valores como liberdade e igualdade, e ao começar a suprimir o monarca da mesma 34 . A nação, no entanto, era mais invocada e passava ao primeiro plano quando eram discutidas a soberania, a representação e a criação de instituições políticas. catolica e inocencia cristiana de España (Zaragoza: Imprenta de Andrés Sebastián, 1823), 10. 33

Santa Teresa, Sumario, 11.

O maior apelo à pátria em situação bélica foi relatado há varias décadas por Pierre Vilar em “Patria y nación en el vocabulario de la guerra de la independencia española”, Hidalgos, amotinados y guerrilleros. Pueblos y poderes en la historia de España, (Barcelona: Crítica, 1982), 237. Sobre a tríade pode ser consultado Gabriel di Meglio “Patria” em Noemí Goldman ed., Lenguaje y revolución. Conceptos políticos clave en el Río de la Plata, 1780-1850, (Buenos Aires, Prometeo, 2008), 115-130. 34

|  43

de frente para o futuro

Em janeiro de 1809 a Junta Central, que procurava reunir todo o apoio possível, emitiu uma Proclama afirmando que os domínios americanos não eram colônias, mas “uma parte essencial e integrante da monarquia espanhola”, motivo pelo qual também tinham direito de escolher representantes para participar desse corpo diretivo. Contudo esse reconhecimento ficou manchado ao outorgar aos americanos uma representação exígua em relação a sua população. Esta decisão, que deu lugar a eleições em numerosas cidades americanas, provocou reações que oscilavam entre o apoio irrestrito e o mais absoluto repúdio. Mas mesmo nesse caso, a liderança nativa parecia contentar-se com a obtenção de mais direitos e um maior grau de autonomia sem que isso acarretasse deixar de pertencer à nação espanhola. Em novembro de 1809, Camilo Torres redigiu uma Representação da Municipalidade de Santafé endereçada à Junta Suprema, sustentando que Estabelecer pois uma diferença neste aspecto, entre América e Espanha, seria destruir o conceito de províncias independentes e de partes essenciais e constituintes da monarquia, e seria supor um princípio de degradação. As Américas, senhor, não são compostas de estrangeiros para a nação espanhola. Somos filhos, somos descendentes dos que derramaram seu sangue para adquirir estes novos domínios da coroa de Espanha […] Somos tão espanhóis como os descendentes de Dom Pelayo e por esta razão tão credores das distinções, privilégios e prerrogativas do resto da nação35 .

Ainda que possa parecer paradoxal, a ênfase com que Torres defendia o pertencimento dos americanos à nação espanhola não fazia mais do que evidenciar o progressivo distanciamento entre os nativos e a metrópole, cujo desfecho, contudo, ainda não se vislumbrava com clareza. No início de 1810, após o triunfo das forças francesas que ocuparam a Espanha, a Junta Central foi dissolvida, escolhendo-se em substituição um Conselho de Regência que se instalou na Ilha de León sob a proteção da marinha britânica. A reação na América foi imediata: em várias cidades ocorreram movimentos que desconstituiram as autoridades coloniais e instituiram Juntas governamentais amparando-se no estado de acefalia que justificava a retomada da soberania por parte do povo. O Conselho de Regência ignorou as juntas americanas, que em geral também o rejeitaram por considerá-lo uma autoridade ilegítima cujo poder não emanava do Rei nem dos povos ou, para aqueles que preferiam considerá-los como um único corpo, da nação. É o caso de Francisco Miranda, que em um artigo publicado em El Colombiano, de Londres,

Camilo Torres, “Representación del Cabildo de Santafé (Memorial de agravios)”, em José Luis Romero y Luis A. Romero (comps.), Pensamiento político de la emancipación (1790-1825), (Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977), t. I, 29. 35

44 |

fabio wasserman

reproduzido pelo diário oficial de Buenos Aires, afirmava que a Junta Central havia “criado um Soberano sem a participação da nação”36 . É importante ter em conta os deslizes conceituais ocorridos nesse breve período, os quais a revolução e a guerra tornaram irreversíveis, pois foi nessas circunstâncias em que nada ainda estava definido e que eram confusas para seus próprios protagonistas que foi concebida a possibilidade de que os povos, além de reassumir a soberania, também pudessem constituir nações soberanas, livres e independentes. Neste sentido, é paradigmática a trajetória de Camilo Torres, que em pouco tempo deixou de reclamar uma representação mais equitativa no seio da nação espanhola para passar a propor a formação de uma nação neogranadina. Em uma longa carta datada de 29 de maio de 1810, endereçada a seu tio José Ignacio Tenorio, que integrava a Audiência de Quito, Torres repassava as diferentes alternativas que se apresentavam aos americanos, concluindo que […] perdida a Espanha, dissolvida a monarquia, rompidos os vínculos políticos que a uniam às Américas, e destruído o governo que havia organizado a Nação para comandá-la em meio à tempestade, e enquanto tinha esperanças de salvar-se —; não há solução. Os reinos e províncias que compõem estes vastos domínios são livres e independentes, e não podem nem devem reconhecer outro governo nem outros governantes além daqueles que os mesmos reinos e províncias nomeiem e se deem livre e espontaneamente de acordo com suas necessidades, seus desejos, sua situação, seus objetivos políticos, seus grandes interesses, e conforme a índole, caráter e costumes de seus habitantes. Cada reino escolherá a forma de governo que mais lhe convier, sem consultar a vontade de outros com quem não mantenha relações políticas nem qualquer dependência. Este Reino, por exemplo, está tão distante dos demais, seus interesses são tão diversos destes, que realmente pode ser considerado como uma nação separada das demais, unido apenas por laços de sangue e por relações familiares; este reino, digo, pode e deve organizar-se por si só 37.

Sem dúvida alguma eles também eram aqueles que continuavam acreditando na possibilidade de que a Espanha subsistiria, por conseguinte mantinham sua lealdade às autoridades metropolitanas e aos vice-reinados. Para eles a nação seguia sendo o conjunto da Monarquia ou, em todo caso, o de seus súditos, que deviam fidelidade e obediência ao Rei, como sustentou a Gazeta de Montevideo em meados de 1811: 36

La Gazeta de Buenos Ayres, n° 18, 4/X/1810, 288.

Proceso histórico del 20 de Julio de 1810. Documentos, (Bogotá: Banco de la República, 1960), 66. O documento foi citado em várias ocasiões, às vezes datado de maio de 1809, quando Torres faz referência a fatos ocorridos posteriormente, como a batalha de Ocaña. Avalio que o erro se deve ao afã por dotar os protagonistas das revoluções de uma consciência nacional. 37

|  45

de frente para o futuro Os direitos do Trono a ele transmitidos pelos Povos são sagrados e perpétuos, e a vassalagem destes é necessária e perdurável. A pessoa do Rei, que é o Magistrado Supremo, reúne as obrigações de todos os cidadãos à Nação, e qualquer um que tentar separar-se desta, ou negar-lhe seus direitos ou contestar suas deliberações, é um réu de lesa-majestade ou, o que é a mesma coisa, da Nação.38

Contudo, o fato de reivindicar o pertencimento à nação espanhola não implicava necessariamente em uma relação de submissão colonial ou uma defesa obstinada do absolutismo. Também poderia ser aproveitada para exigir igualdade de direitos, como havia proposto anos antes, mas agora sob a proteção providenciada pelo constitucionalismo liberal gaditano. Foi o que fez, por exemplo, Gaspar Rico y Angulo quando, em 1812, defendeu o periódico El Peruano do Conselho de Censura, alegando que “a soberania é indivisível, pois residindo essencialmente na nação e constituindo a nação de espanhóis de ambos hemisférios, é igual em todos os povos, e não muda nos lugares onde acidentalmente se situa”39. Nessa época, assim como na Espanha, na América também havia se propagado o uso polêmico de nação. Nenhum ator que interviesse no debate público podia evitá-lo, nem mesmo os absolutistas contrarrevolucionários que tiveram que discutir seu significado com os insurgentes e, ao mesmo tempo, com aqueles que aderiram ao liberalismo gaditano. Assim, ao recordar Gabriel Moscoso, o Governador de Arequipa que morreu vítima da revolução iniciada em Cusco em 1814, o Presbítero Mateo Joaquín de Cosío revelou-se crítico da Constitução de 1812 por “abrir as portas de par em par para a insurreição”, enquanto elogiava Fernando VII por tê-la anulado, deixando claro que “os fiéis vassalos desejamos apenas que se conservem conservadas as antigas leis que nossos pais obedeceram, reconhecendo a Soberania no Rei e não na nação; pois esta, desde sua fundação, sempre a respeitou nos reis; […]”40 . No discurso dos insurgentes ou revolucionários, no entanto, houve um processo de politização do patriotismo crioulo do século XVIII. Isto deu lugar a uma renovada identidade americana associada a ideias e valores como a liberdade, em oposição à espanhola que passou a ser considerada expressão do despotismo colonial. Grande parte dos líderes revolucionáríos não hesitava em afirmar que a sua nação era a América, como fez o padre mexicano Miguel Hidalgo em uma Proclama de setembro de 1810 à “Nação Americana” na qual

Gazeta de Montevideo n° 33, 14/VIII/1811 (Montevideo: Imprenta de la Ciudad de Montevideo), 283. 38

39

El Peruano (Lima: 1812), 425.

D. D. Mateo Joaquín de Cosío, Elogio Fúnebre del señor D. José Gabriel Moscoso, Teniente Coronel de los Reales Ejércitos, Gobernador Intendente de Arequipa. En las exequias que el ilustre Cabildo justicia y regimiento de dicha ciudad hizo en honor y sufragio de tan benemérito jefe el dia 9 de mayo de 1815 (Lima: Bernardino Ruiz, 1815), 47. 40

46 |

fabio wasserman

incitava os “americanos” a libertar-se da “tirania dos europeus”41. Ou no Decreto de Abolição da Escravidão, de 27 de novembro de 1810, em que fazia referência ao “feliz momento em que a valorosa nação americana pegou em armas para sacudir o pesado jugo que a mantinha oprimida por cerca de três séculos”42 . Quanto à possibilidade de constituir uma nação americana como um corpo político, embora tenha havido expressões prematuras como a federação idealizada por Miranda enquanto permanecia em Londres nos primeiros anos do século XIX, apenas adquiriu consistência no contexto da crise que deu lugar ao processo revolucionário e independentista43. Como é fato conhecido/Comoé sabido, apesar da prédica e dos esforços nesse sentido realizados por líderes como Simón Bolívar, essa nação jamais seria constituída. Na carta enviada a seu tio em maio de 1810, Camilo Torres advertia sobre as dificuldades que sua realização acarretaria, concluindo que Nova Granada deveria constituir-se em uma nação. E a mesma proposta seria apresentada poucos meses depois por Mariano Moreno, líder da ala radical dos revolucionários rio-platenses e Secretário da Junta de Governo de Buenos Aires, quando sustentou que era inviável convocar um congresso americano devido às dificuldades materiais e geográficas, e também injustificado, pois tendo a soberania retrovertido aos povos perante a ausência do Rei, não havia motivo para que permanecessem unidos, embora acreditasse que aqueles que integravam o Vice-reinado do Rio da Prata deveriam fazê-lo 44. Portanto, foram outros os marcos territoriais nos quais foram definidas as novas unidades políticas concebidas como nações, embora a ideia de uma nação americana, entendida em termos culturais como expressão de unidade continental, iria desfrutar de uma longa vida. As disputas em torno da dimensão territorial, do papel dos povos e do caráter que a nação deveria ter, são alguns dos fios condutores que articularam em uma mesma trama a crise, a revolução e as guerras de independência, com os enfrentamentos que se sucederam ou foram solapados e que muitas vezes são considerados como guerras civis45. Quanto a isso, e contra o que estabeleceu a historiografia durante mais de um século, o mínimo que pode ser dito é que foi um processo Miguel Hidalgo, “Proclama del cura Hidalgo a la Nación Americana” em Haydeé Miranda Bastidas y Hasdrúbal Becerra sel., La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas (Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005), 38. 41

Miguel Hidalgo, “Abolición de la esclavitud y otras medidas decretadas por Hidalgo” em Carlos Herrerón Peredo, Hidalgo. Razones de la insurgencia y biografía documental (México: SEP, 1986), 242. 42

Francisco de Miranda, “Bosquejo de Gobierno provisorio” em Romero y Romero, Pensamiento político, t. I, 13-19. 43

“Sobre el Congreso convocado y Constitución del Estado”em Gaceta de Buenos Aires nº 27, 6/XII/1810. 44

Embora não seja o tema deste trabalho, gostaria de chamar a atenção sobre a necessidade de questionar a nítida distinção que se costuma fazer entre as guerras de independência e as guerras civis, o que é apenas uma das muitas consequências do fato de considerar as nações americanas como entidades preexistentes ou destinadas a se constituírem da maneira como as conhecemos hoje. 45

|  47

de frente para o futuro

aberto e indeterminado que foi assumindo novos significados para seus próprios protagonistas à medida que transcorria. Para isto foram decisivos alguns conceitos como nação, que além de dotar os acontecimentos de inteligibilidade, eram capazes de delinear cursos de ação possíveis ao indicar um norte para orientá-los. A independência, que supostamente era o propósito inicial dos revolucionários, não foi necessariamente proclamada pelas Juntas erigidas no contexto da crise nem pelos governos que surgiram depois delas. Ao mesmo tempo em que se mantinha a lealdade a Fernando VII, eram feitos pronunciamentos contraditórios ou ambíguos em relação a seu pertencimento à nação espanhola. Então, poucos dias após ter sido criada, a Junta de Caracas decidiu dirigir-se ao Conselho de Regência, fazendo-o perceber que “É muito fácil confundir o significado dos nossos procedimentos e dar a uma comoção provocada apenas pela lealdade e o sentimento de nossos direitos, o caráter de insurreição antinacional”46 . Estes “procedimentos” incluiam a eleição de deputados que formaram uma representação nacional dos povos da Venezuela. Mas esta representação, que expressava uma comunidade munida de um governo próprio, não comportava uma identidade nacional venezuelana e tampouco se opunha a uma eventual “concorrência às cortes gerais de toda a nação, desde que sejam convocadas com aquela justiça e equidade de que é credora a América que forma a maior parte dos Domínios do cobiçado e perseguido Rei da Espanha”47. Evidente que essa “justiça e equidade” não foi uma característica da liderança da metrópole, cuja visão sobre a posição subordinada que a América deveria ter na nação espanhola apenas aprofundou a brecha existente entre as elites nativas, apesar da ampliação de direitos promovida pelas Cortes. Assim, nos anos seguintes e no contexto das guerras que sacudiram o continente, diversos povos ou reuniões de povos declararam sua independência e seu desejo de constituir-se em nações soberanas, procurando organizar instituições governamentais que pudessem garantir seus direitos e os de seus membros. Conforme observava o diário oficial do governo de Buenos Aires, isto implicava em “Ascender da condição degradante de Colônia obscura à hierarquia de uma Nação”48 . Para grande parte dos americanos, esse processo confuso em que estavam imersos há anos havia encontrado no calor da revolução e da guerra um rumo e um sentido precisos: a transição de colônias a entidades soberanas que poderiam constituir-se como nações. A nação voltava-se para um futuro no qual reinariam a liberdade e a independência, enterrando no passado o despotismo e os séculos de opressão e dominação colonial.

“A la Regencia de España, 3 de mayo de 1810” em Actas del 19 de Abril. Documentos de la Suprema Junta de Caracas (Caracas: Concejo Municipal, 1960), 99. 46

47

Gazeta de Caracas, 27/VII/1810.

48

Gazeta de Buenos Ayres, 27/V/1815.

48 |

fabio wasserman

A nação como criação política: entre a vontade, a legitimidade e a possibilidade Mas como se poderia alcançar esse futuro? E, mais precisamente, como eram constituídas as nações? Como eram reconhecidas? Quais eram seus atributos? Que papel se atribuía aos indivíduos e aos povos que as formavam? Em termos teóricos ou ideológicos havia um repertório de respostas mais ou menos exatas que podiam divergir em alguns aspectos e por isso davam lugar a debates e polêmicas. Mas a maior fonte de conflitos foi sua decisão prática, isto é, política, já que através de suas concepções se expressavam e se buscavam impor posições e intereses políticos, sociais, econômicos, territoriais ou jurisdicionais. Em maio de 1825, o Congresso Constituinte das Províncias do Rio da Prata discutiu a possibilidade de criar um exército nacional perante a iminente disputa com o Brasil pela Banda Oriental (conflito cujo desfecho seria a criação da República do Uruguai como nova nação soberana). Um dos entusiastas deste debate foi o cônego saltenho Juan Ignacio Gorriti, que se opôs à criação desse exército alegando que a nação era inexistente. Embora concordasse com a criação de uma nação que centralizasse o poder e governasse o território rio-platense, entendia que mesmo que não fosse sancionada uma Constituição as províncias continuariam sendo soberanas. Ao ter sua opinião questionada, viu-se obrigado a explicar que “De duas maneiras pode ser considerada a nação, ou como pessoas que têm um mesmo idioma, apesar de formarem diferentes estados, ou como uma sociedade já constituída sob o regime de um único governo”. O primeiro caso seria o da antiga Grécia ou Itália, assim como da América do Sul, que na sua opinião poderia ser considerada como uma nação mesmo tendo diferentes Estados, “mas não no sentido de uma nação que é regida por uma única lei, que tem um único governo”, que era ao que ele se referia 49. Gorriti assim sintetizava os dois significados do conceito nação que, em meados da década de 1820, e após ter sido declarada a independência de quase todo o continente, seguiam percorrendo caminhos separados. Embora sua acepção como população que possui traços idiossincráticos continuasse sendo utilizada, a que prevaleceu naquela época foi a de caráter político, que a distinguia por ser resultado de um ato voluntário de seus membros para constituir uma comunidade regida pelas mesmas leis e um único governo. Esse ato voluntário foi revelado algumas semanas mais tarde, quando os representantes dos povos do Alto Peru declararam sua independência, descartando a possibilidade de juntar-se ao Peru ou às Províncias do Rio da Prata. A esse respeito, sustentaram que “A representação Soberana das Províncias do Alto Peru” havia decidido erigir-se

Sesión del 4/V/1825 em Emilio Ravignani (ed.), Asambleas Constituyentes Argentinas, 18131898, (Buenos Aires: Peuser, 1937), t. I, 1325. 49

|  49

de frente para o futuro […] em um Estado Soberano e Independente de todas as nações, tanto do velho como do novo mundo, e os departamentos do Alto Peru, firmes e unânimes nesta tão justa e magnânima decisão, protestam perante o mundo inteiro, que sua vontade irrevogável é governar-se por si próprios, e ser regidos pela constituição, leis e autoridades que eles próprios se dessem, e acreditassem mais condizentes com sua futura felicidade como nação, e a sustentação inalterável de sua santa religião católica, e dos sagrados direitos de honra, vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança 50.

Se bem que poderiam ter apelado para alguma particularidade capaz de identificar esses povos que buscavam constituir-se como nação, o certo é que em nenhuma declaração de independência ou constituição associava-se nação com sua definição étnica ou com algum traço sociocultural, pois predominava o fato de ser considerada como corpo político soberano, constituído pela vontade de seus membros, sejam indivíduos ou sujeitos coletivos como as províncias. Não se tratava de uma exceção nem obedecia apenas à natureza política desses documentos. Nos textos jurídicos da época e no ensino do Direito, por exemplo, a nação também era definida dessa forma. No curso sobre Instituições de Direito Natural e das Gentes, ministrado em 1822/3 na recém-criada Universidade de Buenos Aires, Antonio Sáenz ensinava a seus alunos que A sociedade assim chamada por antonomásia também costuma ser denominada nação e Estado. É uma reunião de homens que se submeteram voluntariamente à direção de alguma autoridade suprema, também chamada soberana, para viver em paz e conseguir seu próprio bem e segurança 51 .

Do mesmo modo, no Direito das Gentes, publicado dez anos mais tarde no Chile, Andrés Bello afirmava que “Nação ou Estado é uma sociedade de homens que tem por objetivo a preservação e felicidade dos associados; que é governada por leis positivas emanadas dela própria e é dona de uma porção de território”52 . A permanência desta concepção e sua vasta difusão na América Latina devem-se a suas numerosas reedições corrigidas que seguiram sendo publicadas durante décadas em Santiago, Caracas, Cochabamba, Lima, Buenos

Declaração de 6 de agosto de 1825 em Colección oficial de leyes, decretos y órdenes de la República Boliviana. Años 1825 y 1826 (La Paz: Imprenta Artística, 1826), 17. 50

Antonio Sáenz, Instituciones elementales sobre el derecho natural y de gentes, (Buenos Aires: Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, 1939), 61. 51

52

50 |

Andrés Bello, Principios de Derecho de Jentes (Santiago de Chile: Imprenta de la Opinión, 1832), 10.

fabio wasserman

Aires, Madri e Paris, embora a partir de 1844 com o título modernizado como Princípios de Direito Internacional53 . O fato das nações poderem constituir-se pela vontade de seus membros favorecia a criação de entidades inovadoras. Essa característica tornou-se explícita na própria denominação em alguns casos como Bolívia, Argentina ou Colômbia, o que, é claro, também implicou na criação de novos adjetivos ou de sua resignificação54 . De qualquer forma, nos Vice-reinados, Reinos ou Províncias que durante o período colonial podiam ser reconhecidos como nações, também se podia legitimar a construção de um poder político como representação dessa entidade preexistente. No Sermão que abriu um Congresso Nacional no Chile em julho de 1811, o frei Camilo Henríquez fez constantes referências à “nação chilena” que, além de ser católica, era detentora de direitos que a habilitavam a fazer uma constituição capaz de garantir sua liberdade e felicidade ante o estado de acefalia em que se encontrava a monarquia 55 . Da mesma maneira, quando dez anos mais tarde aconteceu a declaração de independência do México como reação de parte de suas elites ante o triunfo da revolução liberal na Espanha, seus autores deixaram claro que se tratava de uma nação que existia há séculos: “A nação mexicana, que por trezentos anos nem teve vontade, nem livre o uso da voz, hoje sai da opressão em que viveu”56 . O fato de proclamar a independência, seja de nações que se consideravam preexistentes ou de povos que aspiravam a formar uma nova instituição, poderia ser considerado uma clara demonstração da existência de uma vontade nacional. No entano, isso não era suficiente, pois se quisesse ter existência política e ser reconhecida como uma nação, também deveria ser sancionada uma constituição para dar-lhe forma. O periódico La Abeja Republicana recordava, em setembro de 1822, a declaração de independência realizada no ano anterior por José de San Martín, alegando que a libertação do Peru permitira a seus habitantes transitar “da classe dos colonos […] para compor uma grande e heroica nação” capaz de apresentar-se “perante as nações”57. Mas como iriam perceber seus redatores semanas mais tarde, este propósito somente poderia ser cumprido através de um Congresso Constituinte: “E a formação desta nação,

Andrés Bello, Principios de Derecho Internacional, 2da. ed. Corrigida e ampliada (Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1844). 53

José Carlos Chiaramonte e outros, comps., Crear la nación. Los nombres de los países de América Latina (Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008). 54

Camilo Henríquez, “Sermón en la instalación de Primer Congreso Nacional”, em Escritos Políticos de Camilo Henríquez Raúl Silva Castro rec., (Santiago de Chile: Ediciones de la Universidad de Chile, 1960), 50-59. 55

“Acta de Independencia del Imperio Mexicano pronunciada por su Junta Soberana, congregada en la capital de él, en 28 de septiembre de 1821”, em Bastidas y Becerra, La Independencia, 42. 56

57

La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 22/IX/1822).

|  51

de frente para o futuro

como começá-la? Que o decida o Congresso Soberano a cujas luzes foi confiada a sorte das gerações presentes e futuras”58 . Se era somente através da constituição que a nação poderia ganhar forma, compreende-se por que motivo sua análise e a dos debates constitucionais permitem penetrar nas diversas concepções sobre a ordem social e política que o conceito veiculava. A Constituição Política da República Peruana, sancionada em novembro de 1823, afirmava, em seu primeiro artigo, que “Todas as províncias do Peru reunidas em um só corpo formam a Nação Peruana” e, no terceiro, que “A soberania reside essencialmente na Nação”59. Por sua vez, a Constituição para a República Peruana, também conhecida como Constituição Vitalícia, promulgada em novembro de 1826 sob a inspiração de Bolívar, sustentava que “A Nação Peruana é a reunião de todos os Peruanos”, e o mesmo se estabelecia naquela sancionada na mesma época pela Bolívia60. Quase todas as constituições asseguravam que a “soberania reside essencialmente na nação” ou em fórmulas similares que a convertiam no sujeito político por excelência. Precisamente por isso podiam expressar diversas concepções sobre o que era ou deveria ser a nação e, em particular, sobre quem a compunha. Na constituição de 1823 as províncias do Peru eram corpos coletivos; enquanto que na de 1826 os peruanos eram indivíduos. Mas mesmo dentro dessas opções também se poderia encontrar alternativas. Os corpos coletivos podiam ser estamentos tal como se propôs em alguns projetos constitucionais. E os indivíduos podiam ser considerados de outro modo: a Constituição Política sancionada em março de 1828 declarava que “A Nação Peruana é a associação política de todos os cidadãos do Peru” e já não “a reunião de todos os peruanos”. Definição que faz sentido quando se tem presente que muitos de seus habitantes não reuniam as qualidades necessárias para ser considerados cidadãos61. Esta última questão remete ao lugar que, nas diferentes propostas de nação, era atribuído às classes subalternas, cujos membros podiam ser considerados ou não como cidadãos plenos. Os indígenas, por exemplo, costumavam ser excluídos da cidadania política, distanciando-se, assim, das regras de alguns dos discursos e projetos propostos no contexto do processo revolucionário que aspiravam a sua integração social e política, seja como indivíduos ou como comunidades. Esse distanciamento ficou explícito em mais de uma ocasião, como em meados do século, quando Juan B.Alberdi, ao repassar as constituições que haviam sido sancionadas no continente para decidir o modelo mais adequado

58

La Abeja republicana (Lima: Imprenta de José Masias, 24/XI/1822).

59

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01482074789055978540035/index.htm

60

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01479514433725784232268/index.htm

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02450576436134496754491/index. htm. 61

52 |

fabio wasserman

para a nação argentina, permitiu-se afirmar com total crueza que “O indígena não figura nem é levado em conta na nossa sociedade política e civil”62 . A composição social e étnica não era o único motivo de discussão em torno da construção da nação. Muito mais acirrada foi a disputa em relação à soberania dos povos e a sua integração ou não com a nação que, com muita frequência, estimulou os conflitos entre autonomistas, federalistas e centralistas ou unitários. Enquanto que os primeiros tendiam a utilizar o conceito de nação enfatizando a vontade dos povos para constituí-la, os segundos costumavam acrescentar como requisito uma espécie de critério informal e pragmático: ter capacidade suficiente para poder manter sua soberania e independência63 . No início de 1822 e perante à resistência de Guaiaquil em incorporar-se à República da Colômbia, Simón Bolívar escreveu uma carta a José Joaquín Olmedo, que presidia o Conselho Diretivo, afirmando que “uma cidade com um rio não pode formar uma nação” e que a própria natureza fez com que a cidade e sua região fizessem parte da Colômbia, de modo que reconhecia a esse povo o direito à “completa e livre representação na Assembleia Nacional”64 . Dois anos antes essa mesma concepção havia encorajado a intervenção de Francisco Zea ao presidir as sessões do Congresso da recém-criada República da Colômbia. Zea defendia que esse extenso território pródigo em riquezas somente poderia “entrar no mundo político” por vontade expressa de seus membros. No entanto, também advertia que era uma condição insuficiente ao salientar que As nações existem de fato e são reconhecidas, digamos, por seu tamanho, designando por esta palavra o conjunto de território, população e recursos. Vontade manifesta e um tamanho considerável são os dois únicos títulos que podem ser exigidos de um povo novo para ser admitido na grande sociedade das nações 65 .

Um ano depois, o mexicano José María Luis Mora publicava no Semanário Político e Literário um texto que procurava contestar os liberais espanhóis e legitimar a recente independência do México e sua instituição como nação. Para tanto considerou necessário definir em que consistia, començando por desconsiderar uma possível má interpretação do princípio de soberania popular que, no seu entender, havia causado um grande dano ao

Juan B. Alberdi, Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina, (Buenos Aires: Plus Ultra, 1982), 82 [Valparaíso, 1852]. 62

Este critério é semelhante ao “princípio do limiar” defendido em meados do século por nacionalistas europeus como Giuseppe Mazzini. Eric Hobsbawm, Naciones y nacionalismo desde 1780 (Barcelona, Crítica, 2000), 39-48. 63

Cali, 2/1/1822 Simón Bolívar, Doctrina del Libertador, Manuel Pérez Vila comp. (Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1992): 137/8. 64

65

Correo del Orinoco n° 50, Angostura, 29/I/1820.

|  53

de frente para o futuro […] povo ignorante, persuadido de sua soberania e carente de ideias precisas que determinem de um modo firme e exato o sentido da palavra nação, acreditou que se deveria considerar como tal toda reunião de indivíduos da espécie humana, sem outras qualidades e circunstâncias. Equívocos que devem promover a discórdia e a desunião e fomentar a guerra civil! […] Que é então que entendemos por esta palavra nação, povo ou sociedade? E qual o sentido que lhe deram os ensaístas quando afirmam sua soberania nos termos expressos? Não pode ser outra coisa senão a reunião livre e voluntária de homens que podem e querem constituir-se na terra legitimanente possuída, em um Estado independente dos outros. Nem é crível que as nações reconhecidas como soberanas e independentes possam alegar outros títulos, a capacidade para constituir-se como tal e sua vontade para efetuá-lo

Depois disso, passava a enumerar essas condições indispensáveis para constituir-se como nação que, conforme alegava, possuia o recém-criado Império Mexicano: território, população, instrução e forças armadas capazes de garantir a ordem interna e defendê-lo de qualquer agressão externa. Para concluir, o que se demandava era “uma terra possuída legitimamente e a força física e moral para mantê-la”66 . Em resumo, para aqueles que defendiam este ponto de vista, a existência da nação não dependia somente do livre arbítrio e do consentimento de seus membros. Também era preciso contar com uma base moral e material capaz de dar-lhe sustento. É por isso que mesmo em uma declaração de independência tão tardia como a realizada pelo Congresso do Paraguai, em novembro de 1842, se alegava “que além dos justos títulos que tem como fundamento, a natureza o favoreceu para que seja uma nação forte, populosa, fértil em recursos, e em todos os ramos da indústria e comércio”67.

Rumo a um novo conceito de nação: de frente para o futuro mas com raízes no passado Em 1842, mesmo ano em que o Paraguai proclamava formalmente sua independência, produzia-se no Chile um intenso e prolífico debate sobre literatura entre escritores locais e rio-platenses, exilados devido a sua oposição ao governo de Juan Manuel de Rosas. Nesses artigos jornalísticos, que ficariam conhecidos como A polêmica do romantismo, percebe-se uma ênfase maior nas referências José María Luis Mora, “Discurso sobre la independencia del Imperio Mejicano” [21/XI/1821] em Obras sueltas de José María Luis Mora, ciudadano mejicano (París: Librería de Rosa, 1837), t. II, 11. 66

67

54 |

Bastidas y Becerra, La Independencia, 84.

fabio wasserman

culturais e identitárias que o conceito ‘nação’ poderia portar 68 . Não se tratava de um fato excepcional, pois nessa época, tanto nação como a trama conceitual e discursiva da qual fazia parte, estavam ocorrendo importantes mudanças que estavam entrelaçadas com transformações econômicas, sociais, políticas e culturais mais vastas. O ritmo e intensidade destes processos foi variável, mas o resultado a médio prazo seria o mesmo: a unificação dos dois significados de nação, o étnico ou sociocultural e o político, tal como ficaria sintetizado no sintagma Estado nacional. Esta nova conceituação implicou também outras mudanças decisivas, como o fato de considerar a origem da nação em um passado longínquo e quase mítico, ou a atribuição de um caráter transcendente que tendia a atenuar, resignificar ou, em suas versões mais extremas, fazer desaparecer a vontade de seus membros. A análise dessas mutações excede as possibilidades do presente trabalho, motivo pelo qual, nestas linhas finais, me limitarei a fazer algumas observações de caráter geral. Este breve apanhado começará pelo mesmo lugar que o anterior: os dicionários. Em sua edição de 1869, o Dicionário da Real Academia Espanhola não parecia registrar nenhuma alteração, pois continuava definindo nação do mesmo modo que vinha fazendo há mais de um século. Contudo, nas entradas seguintes que assinalam alguns termos derivados de nação, se percebe a existência de usos e significados que dotavam o conceito de um novo sentido. Uma das novidades foi a introdução de uma palavra até então ausente, como nacionalismo, se bem que ainda não se atribuia a ela nenhum caráter político, pois era definida como “Apego dos nativos de uma nação a ela própria e a quanto lhe pertence”. Esta característica, no entanto, era registrada na acepção que se dava à palavra nacionalidade e que, em grande parte, era tributária do princípio das nacionalidades elaborado e difundido por escritores, ensaístas e políticos pertencentes ao movimento romântico e aos nacionalismos europeus. Com efeito, enquanto que nas edições anteriores “nacionalidade” somente fazia alusão a uma inclinação particular de alguma nação, agora era definida pela primeira vez como a “Condição e caráter peculiar do agrupamento de povos que formam um Estado independente”69. Como costuma acontecer com os dicionários, esta edição apenas recolhia usos e significados que já existiam há vários anos, até mesmo décadas. No caso das repúblicas hispano-americanas se pode perceber que a partir de 1830 houve um interesse crescente por conhecer, inventariar e difundir valores, instituições e modos de vida locais. Este traço distintivo expressava-se através da palavra nacionalidade, que embora ainda tivesse um caráter algo difuso quanto a seus conteúdos e contornos, evidenciava a progressiva tendência a unificar no con-

68

Norberto Pinilla, La polémica del romanticismo (Buenos Aires: Americalee, 1943).

Real Academia Espanhola, Diccionario de la lengua castellana décima primeira edição (Madrid: Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869), 631. 69

|  55

de frente para o futuro

ceito nação o pertencimento a uma comunidade política representada por um Estado e uma identidade coletiva de caráter sociocultural. Esta mudança conceitual foi possível graças a uma combinação de vários fatores, a começar pela formação de identidades e interesses compartilhados por diferentes grupos sociais e regionais após décadas de vida independente. Este processo favoreceu, em alguns casos, a consolidação de estruturas estatais que, por sua vez, procuravam adquirir maior legitimidade alegando ser a expressão de uma nacionalidade. Mais do que acordos, alianças e experiências em comum que possibilitaram este processo, também foram decisivos os conflitos e enfrentamentos em cujo desenvolvimento foi se consolidando a associação entre nação, identidade e território. Nesse contexto, cabe diferenciar três tipos de conflitos armados. Os internos, que costumam ser interpretados como guerras civis e que em mais de uma ocasião provocaram o enfraquecimento de lideranças regionais, favorecendo a consolidação de estruturas estatais nacionais. As guerras entre Estados americanos mais ou menos consolidados, como a que mantiveram Chile e a Confederação Argentina contra a Confederação PeruBolívia (1836-1839), a Guerra da Tríplice Aliança na qual Argentina, Brasil e Uruguai combateram contra o Paraguai (1865-1870), ou a Guerra do Pacífico entre Chile, Peru e Bolívia (1879-1883). E, por último, os que envolveram potências estrangeiras, como a ocupação do México por tropas dos Estados Unidos (1846-1848) e França (1862-1867), as intervenções da França e Inglaterra no Rio da Prata entre 1838 e 1850, ou os ataques da marinha espanhola às costas do Pacífico (1864-1866). Estas considerações merecem pelo menos dois esclarecimentos para que não sejam mal interpretadas. A primeira é que a distinção entre conflitos internos e externos nem sempre foi muito nítida, e certamente em mais de um caso foram seu desenvolvimento e seu resultado que contribuiram para formar expressões, representações e identidades nacionais, sem mencionar que também podem ter favorecido a consolidação de Estados nacionais e a derrota de forças oponentes. A segunda é que não há uma relação automática de causa-efeito entre conflito bélico e identidades, mas sem dúvida tendem a criar condições favoráveis para sua difusão e consolidação. Claro que para que isto fosse possível, também foi necessário pôr em ação escritores e ensaístas que elaboraram discursos e representações em que essas identidades tomaram forma. Destacaram-se os autores românticos que colocaram a nação, a cultura e a identidade nacional no centro de sua produção literária, jornalística, ensaística e historiográfica. Embora todos estes gêneros tenham uma grande importância, talvez a mais decisiva a médio e longo prazo tenha sido a historiográfica. Na rede que articulava esses relatos históricos, que com toda justiça passaram a ser consideradas histórias nacionais, aspirava-se a mostrar o processo de constituição da nação em um passado longínquo ou, ao menos, o dos elementos que estavam predestinados a formá-la, assim como o das leis ou princípios que regiam seu futuro e a orientavam para um destino 56 |

fabio wasserman

inexorável70 . Dessa maneira, era possível atribuir-lhes um caráter transcendente que as tornava imunes às contingências ou à vontade dos homens, como explicitou Bartolomé Mitre em 1852 ao referir-se à nacionalidade argentina: A tradição, os antecedentes históricos, a constituição geográfica, os sacrifícios comuns, a identidade de crenças e de caráter, a unidade de raça, a planície ininterrupta do pampa, e essa atração misteriosa que um povo exerce sobre o outro, tudo conspira para fazer que a Confederação Argentina seja indivisível [sic] como a túnica do Redentor. Este sentimento, este princípio é mais forte que os homens, é mais forte que os próprios povos. Em vão reagir contra ele […] A nacionalidade é uma lei orgânica, uma lei constitutiva desse pedaço de terra que hoje se chama Confederação Argentina. É independente da vontade dos homens, porque reside em todos os elementos essenciais da sociedade, circula em seu sangue, aspira-se com o ar, é a alma desse corpo e, como a alma, ainda viverá, à semelhança do patriotismo romano quando se dissolver o corpo que o abrigou 71 .

Contudo, mesmo que nesse momento o novo sentido de nação estivesse disponível e pudesse ser encontrado nas produções intelectuais e nos debates públicos, a verdade é que levou muito tempo para se impor. De fato, até a segunda metade do século XIX continuou prevalecendo a concepção pactista de nação cuja legitimidade consistia no livre arbítrio ou consentimento de seus membros, como foi se consolidando no calor das revoluções de independência. As inovações que tendiam a fundir seu sentido étnico e político recém começavam a ter repercução e mostrariam todo seu potencial décadas mais tarde, quando conseguiram consolidar-se os Estados nacionais que buscavam estabelecer-se e legitimar-se no princípio das nacionalidades. É claro que nessa época o panorama social, político e intelectual havia sido transformado radicalmente e o mundo em que fora concebido era inevitavelmente outro.

Para o conceito História me remeto aos trabalhos publicados em Fernández Sebastián, Diccionario político y social, t. I 551-692. Um panorama que aborda diversos casos de vínculo entre história e nação no século XIX em Guillermo Palacios, comp., La nación y su historia. Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación. América Latina, siglo XIX, (México: El Colegio de México, 2009). Uma análise comparativa de três histórias nacionais produzidas na segunda metade do século XIX em Fernando Devoto, “La construcción del relato de los orígenes en Argentina, Brasil y Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá” em Jorge Myers, ed. volume e Carlos Altamirano dir. Coleção, Historia de los intelectuales en América Latina. I. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo, (Buenos Aires: Katz Editores, 2008), 269-289. Mais detalhes sobre o que poderia ser considerado uma história nacional, em Fabio Wasserman, Entre Clío y la Polis. Conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (18301860), (Buenos Aires: Teseo, 2008), 91-107. 70

71

“Nacionalidad” em El Nacional nº 137 (Buenos Aires: Imprenta Argentina, 27/10/1852).

|  57

de frente para o futuro

Referências AAVV. Para seguir con el debate en torno al colonialismo ..., Nuevo Mundo Mundos Nuevos, on-line desde 08 fevereiro 2005. Consultado em: 08 jul. 2013. http://nuevomundo.revues. org/430. ANNINO, Antonio; GUERRA, François-Xavier Guerra (coords.). Inventando la nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003. BRADING, David. Los orígenes del nacionalismo mexicano. México: Era, 1997. CAMPI, Alessandro. Nación. Léxico de Política. Buenos Aires: Nueva Visión, 2006. CARDENAS ACOSTA, Pablo. El movimiento comunal de 1781 en el Nuevo Reino de Granada. Bogotá: Editorial Kelly, 1960. CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en Iberoamérica. Los lenguajes políticos en tiempos de las independencias. Buenos Aires: sudamericana, 2004. CHIARAMONTE, José Carlos e outros (comps.). Crear la nación. Los nombres de los países de América Latina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008. DELANOI, Gil Delanoi; TAGUIEF, Pierre-André (comps.). Teorías del nacionalismo. Barcelona: Paidós, 1993. DEVOTO, Fernando. La construcción del relato de los orígenes en Argentina, Brasil y Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá. In: MYERS, Jorge (ed. volumen) y ALTAMIRANO, Carlos (dir. Colección). Historia de los intelectuales en América Latina. I. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, pp. 269-289. DI MEGLIO, Gabriel di. Patria. In: GOLDMAN, Noemí (ed.). Lenguaje y revolución. Conceptos políticos clave en el Río de la Plata, 1780-1850. Buenos Aires: Prometeo, 2008, pp. 115-130. FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano. La era de las revoluciones, 1750-1850 [Iberconceptos-I]. Madrid: Fundación Carolina – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2009. ______. Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870 [Iberconceptos II]. Madri: Centro de Estudos Políticos e Constitucionais e Universidade do País Basco, 2014. GALLEGO, José Andrés. Los tres conceptos de nación en el mundo hispano. In: CANTARELA, Cinta (ed.). Nación y constitución: De la Ilustración al liberalismo. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide y Sociedad Española de Estudios del Siglo XVIII, 2006, pp. 123-146. GERBI, Antonello. La disputa del nuevo mundo. Historia de una polémica 1750-1900. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. GUERRA, Francois-Xavier. Modernidad e Independencias. Ensayo sobre las revoluciones hispánicas. Madrid: Mapfre, 1992.

58 |

fabio wasserman HOBSBAWM, Eric. Naciones y nacionalismo desde 1780. Barcelona: Crítica, 2000. KEMILÄINEN, Aira. Nationalism. Problems Concerning the Word, the Concept and Classification. Jyväskylä: Kustantajat Publishers, 1964. KÖNIG, Hans-Joachim. Nacionalismo y Nación en la historia de Iberoamérica. In: Cuadernos de Historia Latinoamericana, nº 8, 2000, pp. 7-47. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. ______. Historia de los conceptos y conceptos de historia. In: Ayer 53 (1), 2004, pp. 27-45. ______. Un texto fundacional de Reinhart Koselleck. Introducción al Diccionario histórico de conceptos político-sociales básicos en lengua alemana. In: Anthropos 223, 2009, pp. 92-105. ORTEGA, Francisco. Ni nación ni parte integral. Colonia, de vocablo a concepto en el siglo XVIII iberoamericano. In: Prismas. Revista de Historia Intelectual, 2011 (15), pp. 11-29. PALACIOS, Guillermo (comp.). La nación y su historia. Independencias, relato historiográfico y debates sobre la nación. América Latina, siglo XIX. México: El Colegio de México, 2009. PALTI, Elías. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007. PÉREZ VEJO, Tomás. La construcción de las naciones como problema historiográfico: el caso del mundo hispánico. In: Historia Mexicana, LIII, 2, 2003, pp. 275-311. PINILLA, Norberto. La polémica del romanticismo. Buenos Aires: Americalee, 1943. PORTILLO VALDÉS, José María. La vida atlántica de Victorián de Villava. Madrid: Fundación MAPFRE, 2009. SMITH, Anthony D. The Nation in History. Historiographical Debates about Ethnicity and Nationalism. Hanover: University Press of New England, 2000. VILAR, Pierre. Patria y nación en el vocabulario de la guerra de la independencia española. In: Hidalgos, amotinados y guerrilleros. Pueblos y poderes en la historia de España. Barcelona: Crítica, 1982. WASSERMAN, Fabio. Entre Clío y la Polis. Conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-1860). Buenos Aires: Teseo, 2008. ______. El concepto de nación y las transformaciones del orden político en Iberoamérica (1750-1850). In: Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas, 45, 2008, pp. 197-220.

|  59

de frente para o futuro

Fontes ACTA de Independencia del Imperio Mexicano pronunciada por su Junta Soberana, congregada en la capital de él, en 28 de septiembre de 1821. In: MIRANDA BASTIDAS, Haydeé y BECERRA, Hasdrúbal (sel.). La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005, pp. 42-44. ACTAS del 19 de Abril. Documentos de la Suprema Junta de Caracas. Caracas: Concejo Municipal, 1960. ALBERDI, Juan B. Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina. Buenos Aires: Plus Ultra, 1982. [1ra. ed. Valparaíso, 1852]. AZARA, Félix de. Descripción e historia del Paraguay y del Río de la Plata. Buenos Aires: Editorial Bajel, 1943. [o texto foi escrito em 1790 e editado postumamente em Madrid, 1847). BANCO DE LA REPÚBLICA (ed.). Proceso histórico del 20 de Julio de 1810. Documentos. Bogotá: Banco de la República, 1960. BELLO, Andrés. Principios de Derecho de Jentes. Santiago de Chile: Imprenta de la Opinión, 1832. ______. Principios de Derecho Internacional. 2da. ed. Corrigida e ampliada. Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1844. BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Portuguez & Latino. Lisboa: Oficcina de Pascoal da Sylva, vol. V, 1716. BOLÍVAR, Simón. Doctrina del Libertador. PÉREZ VILA, Manuel Pérez (comp.). Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1992. DICTIONNAIRE de l’Académie français. Paris: Chez la Veuve de Jean Baptiste Coignard, 1694. CADALSO, José. Defensa de la nación española contra la Carta persiana LXXVIII de Montesquieu. Toulouse: France-Iberie Recherche, 1970. CAPMANY, Antonio de. Centinela contra franceses. Madrid: Gómez Fuentenebro y Compañía, 1808. CLAVIJERO, Francisco Javier. Historia Antigua de México. México: Editorial Porrúa, 1991 [1ra.ed. em italiano, 1780]. COLECCIÓN oficial de leyes, decretos y órdenes de la República Boliviana. Años 1825 y 1826. La Paz: Imprenta Artística, 1826. CONSTITUCIÓN política de la Monarquía Española: Promulgada en Cadiz a 19 de Marzo de 1812. Precedida de un Discurso preliminar leído en las Cortes al presentar la Comisión de Constitución el proyecto de ella. Madrid: Imprenta que fue de García; Imprenta Nacional, 1820. CORREO del Orinoco. Angostura: 1820. COSÍO, D. D. Mateo Joaquín de. Elogio Fúnebre del señor D. José Gabriel Moscoso, Teniente Coronel de los Reales Ejércitos, Gobernador Intendente de Arequipa. En las exequias que el ilustre Cabildo justicia y regimiento de dicha ciudad hizo en honor y sufragio de tan benemérito jefe el dia 9 de mayo de 1815. Lima: Bernardino Ruiz, 1815.

60 |

fabio wasserman EGUIARA y EGUREN, Juan José. Bibliotheca Mexicana. FERNÁNDEZ VALENZUELA, Benjamín (trad. del Latín), TORRE VILLAR, Ernesto de la (coord.). México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1986. El NACIONAL. Buenos Aires: Imprenta Argentina, 1852. EL PERUANO. Lima: Imprenta de los Huérfanos, 1812. FINESTRAD, Joaquín de. El Vasallo instruido en el estado del Nuevo Reino de Granada y en sus respectivas obligaciones. GONZÁLEZ, Margarita (Int. e transcrição). Bogotá: Faculdade de Ciências Humanas – Universidade Nacional da Colômbia, 2000. GAZETA de Buenos Ayres. Buenos Aires: Imprenta de los Niños Expósitos, 1810 y 1815. GAZETA de Caracas. Caracas: 1810. GAZETA de Montevideo. Montevideo: Imprenta de la Ciudad de Montevideo, 1811. HIDALGO, Miguel. Abolición de la esclavitud y otras medidas decretadas por Hidalgo. In: HERRERÓN PEREDO, Carlos. Hidalgo. Razones de la insurgencia y biografía documental. México: SEP, 1986, p. 242. ______. Proclama del cura Hidalgo a la Nación Americana. In: MIRANDA BASTIDAS, Haydeé y BECERRA, Hasdrúbal (sel.). La Independencia de Hispanoamérica. Declaraciones y Actas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005, pp. 38-41. LA ABEJA republicana. Lima: Imprenta de José Masias, 1822. MIRANDA, Francisco de. Bosquejo de Gobierno provisorio. In: ROMERO, José Luis y ROMERO, Luis A. (comps.). Pensamiento político de la emancipación (1790-1825). Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977, t. I, pp. 13-19. MOLINA, Juan Ignacio. Compendio de la Historia Civil del Reino de Chile. DE LA CRUZ y BAHAMONDE, Nicolás (ed. e tradutor de italiano). Madrid: Imprenta de Sancha, 1795. MORA, José María Luis. Discurso sobre la independencia del Imperio Mejicano. In: Obras sueltas de José María Luis Mora, ciudadano mejicano. París: Librería de Rosa, 1837, t. II, pp. 7-22 [21/XI/1821]. NARIÑO, Antonio. Apología. In: PÉREZ SARMIENTO, José Manuel (comp.). Causas Célebres a los precursores, t. I. Bogotá: Imprenta Nacional, 1939. RAVIGNANI, Emilio (ed.). Asambleas Constituyentes Argentinas, 1813-1898. Buenos Aires: Peuser, 1937, t. I. REAL ACADEMIA ESPANHOLA. Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...] Compuesto por la Real Academia Española. Tomo quarto. Que contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N. Madrid: Imprenta de la Real Academia Española, 1734. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua castellana. Undécima edición. Madrid: Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869. SÁENZ, Antonio. Instituciones elementales sobre el derecho natural y de gentes. Buenos Aires: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires, 1939.

|  61

de frente para o futuro SANTA TERESA, Juan Angel de. Sumario de injusticias, fraguadas por el liberalismo impío, contra la religión catolica e inocencia cristiana de España. Zaragoza: Imprenta de Andrés Sebastián, 1823. SILVA CASTRO, Raúl (rec.). Escritos Políticos de Camilo Henríquez. Santiago de Chile: Ediciones de la Universidad de chile, 1960. TERREROS y PANDO, Esteban de. Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes y sus correspondientes de las tres lenguas Francesa, Latina e Italiana. Madrid: Imprenta de la viuda de Ibarra, hijos y compañía, t. II, 1786. TORRES, Camilo. Representación del Cabildo de Santafé (Memorial de agravios). In: ROMERO, José Luis y ROMERO, Luis A. (comps.). Pensamiento político de la emancipación (1790-1825). Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977, t. I, pp. 25-42 [Quito, 1809]. VALCÁRCEL, Carlos Daniel (ed.). Colección Documental de la Independencia del Perú. Tomo 2: La Rebelión de Túpac Amaru. Lima: Comisión Nacional del Sesquicentenario de la Independencia del Perú 1971.

62 |

Nas origens do nacionalismo político da I República Portuguesa: o projeto da “nacionalização do Estado” e o debate jurídico e político em torno da conceção da soberania e do modelo de representação política Paula Borges Santos Instituto de História Contemporânea – Universidade Nova de Lisboa

Introdução A experiência histórica do primeiro tempo do republicanismo em Portugal, enquanto poder público constituído, designadamente o período compreendido entre 1910 (ano da proclamação da República) e 1926 (ano da instauração da Ditadura Militar no País, na sequência do golpe militar de 28 de maio), fez-se sob o signo da modernização da sociedade, a realizar por via do próprio processo de republicanização (tido simultaneamente como seu propulsor e como seu instrumento viabilizador). Os cultores desse desígnio projetaram tal modernidade para todos os domínios sociais, sem exclusão do espaço político e da configuração das suas instituições. O dinamismo que envolveu a recomposição do sistema político-institucional passou, em boa medida, por uma transformação dual: por um lado, foi promovida a emancipação do indivíduo face às instituições, mas, por outro lado, a autonomia do indivíduo foi restringida com fundamento em teses que abandonavam a conceção individualista e contratualista como origem da sociedade e do poder político, e as próprias instituições revelaram estar dependentes, em maior ou menor grau, de novos procedimentos de regulação. Nestes eixos refletiram-se a recriação política da “nação” e da identificação desta com o próprio Estado. A complexidade desta última articulação impôs a necessidade de resposta à questão: como se nacionalizou o Estado? Ou, por outras palavras, de que modo as mudanças introduzidas no que até então foi a conceção tradicional de “nação”, |  63

nas origens do nacionalismo político...

determinaram um ideário que não só gerou a reconstituição simbólico-cultural da identidade nacional como serviu para reorganizar o Estado e os seus poderes? Com efeito, os republicanos construíram um discurso sobre a “nação”, onde se refletiu o duplo objetivo de, por um lado, resgatá-la da situação de decadência que acreditavam afetá-la, e, por outro lado, de organizá-la1, sendo que este aspeto, em particular, não foi dissociável da edificação do próprio Estado. Tem sido frequente a historiografia ocupar-se do processo de “nacionalização do Estado” republicano privilegiando a análise dos seus sistemas cultural ou educativo, identificando tanto a influência de movimentos intelectuais e políticos exteriores a Portugal nas opções dos edificadores daqueles sistemas, como o pensamento e o papel de intelectuais e políticos na construção da mundividência e da simbologia da I República, ou ainda a ação da propaganda do regime na inculcação dos valores do republicanismo ou no fomento de uma cultura de massas2 . Neste artigo, para observar a “nacionalização do Estado”, parte-se antes da análise da noção de soberania que foi adotada pelo legislador republicano em 1911 e da solução de representação política que lhe correspondeu, não se ignorando que as mesmas resultaram de contribuições das distintas sensibilidades republicanas. Trata-se de verificar se a narrativa sobre a soberania e seu respetivo exercício teve ou não correspondência na representação política e nos dispositivos que a suportaram, e de perceber se o nacionalismo, que serviu de pano de fundo às várias escolhas, teve um cariz revolucionário ou, ao invés, foi tradicionalista e conservador, isto é, se rompeu ou não com as normas simbólicas e políticas da monarquia liberal e constitucional. Para desenvolvimento desta problematização, opta-se por cruzar o que foram discursos políticos e jurídicos, tomando como referência as condições ideológicas e legais que aí se apontaram para explicar a origem da noção de soberania e sustentar qual a sua melhor configuração constitucional, bem como para fundamentar as escolhas de representatividade política que lhe estiveram associadas.

Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010, pp. 277-283. 1

Atualmente é abundante a literatura sobre o tema. Entre outros estudos, destaque-se: CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 235-276; RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926), de História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol. VI, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, pp. 401-433 e 529-560; MATOS, Sérgio Matos, História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 89-164; LEAL, Ernesto Castro. Nação e nacionalismo: a cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (19181938), Lisboa, Cosmos, 1999, 537 p.; PINTASSILGO, Joaquim. República e Formação de Cidadãos. A Educação Cívica nas Escolas Primárias da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Colibri, 1998, 278 p. 2

64 |

paula borges santos

A secularização da soberania antes da República: soberania popular ou soberania nacional? Em 1910, em obra editada ainda antes da proclamação da República, o antigo regente da disciplina de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, o professor José Ferreira Marnoco e Souza, escrevia: “O Estado não é uma instituição religiosa, mas uma organização política, e por isso a soberania nunca pode ser uma emanação da divindade, mas um fenómeno natural próprio da vida das sociedades”3 . Ao proferir esta afirmação, Marnoco e Souza revelava um pensamento estruturado pela filosofia positivista, que começara a difundir-se em Portugal, sobretudo a partir do último quartel do século XIX, e que, sobre o aspeto concreto da natureza da soberania, excluía os argumentários suportados tanto por teorias “teológicas” como por teorias “metafísicas”4 . Longe de representar uma posição singular e estritamente académica, o comentário de Marnoco e Souza enunciava, antes, uma reflexão que fizera caminho, nos anos anteriores, fruto da evolução cultural e política do País, e que já se encontrava difundida fora da universidade, em especial, entre círculos de pensamento republicano, e até outros de pensamento socialista. Em tais círculos, formados por políticos mas também por figuras da intelectualidade portuguesa - que conheciam o positivismo de Comte, a escola de Littré e o positivismo liberal de Stuart Mill, e haviam aderido a diferentes correntes da sociologia (sobretudo ao naturalismo positivista, ao evolucionismo biológico e social de Herbert Spencer e à Escola da Ciência Social de Frédéric Le Play) e a outras conceções filosóficas que haviam entrado em Portugal, como o monismo naturalista de Haeckel, o evolucionismo biológico de Darwin ou o materialismo de Vogt, Moleschott e Büchner5 -, a recusa da natureza religiosa da soberania, ou, se se quiser, da sua origem sobrenatural, era, nessa época, uma ideia generalizada. Com efeito, não obstante as diversas apropriações doutrinárias resultarem em diferentes visões sobre a sociedade e o que poderia ser a reforma social ou a organização do Estado, tornara-se frequente o julgamento de que, naquele que era então o tempo presente, o princípio religioso já deixara de poder ser considerado como “fator de coesão e harmonia dos agregados Cf. SOUZA, Marnoco. Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia política e o direito constitucional português, Coimbra, França Amado Editor, 1910, p. 14. 3

Entre as “teorias teológicas”, explicava Marnoco e Souza, encontravam-se: a teoria do direito divino sobrenatural, a teoria do direito divino providencial, a teoria do patriarcado, a teoria legitimista, a teoria do direito divino dos reis e, por fim, a teoria do direito divino dos povos. As “teorias metafísicas” envolviam: a teoria da soberania popular, a teoria da soberania da razão e da justiça, a teoria da soberania da inteligência e da força (Cf. Idem, ibidem, pp. 9-14 e 16-21). 4

Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português. In: Das Urnas ao Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923), coord. de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República, 2012, p. 224. 5

|  65

nas origens do nacionalismo político...

humanos”, como sucedera durante a “infância da civilização”. A esse raciocínio subjazia uma conceção evolutiva da vida em sociedade, de acordo com a qual a “eliminação da crença como fundamento da soberania” surgia como resultado dos “ditames da ciência” e do progresso político6 . Esta última dimensão era ainda relacionada com a própria necessidade de implantação da República, que se impunha inevitavelmente em consequência do devir histórico, para os que pensavam a situação nacional por via da questão do regime. Saliente-se, porém, que o problema da fonte da soberania não se colocou apenas aos adversários do regime monárquico (republicanos, socialistas, anarquistas); a cultura cientista da época e o exercício de desvio da atenção das formas legais para as realidades sociais serviu também, como adiante se verá, a alguns monárquicos ou simpatizantes de uma chefia de Estado dinástica para defenderem a secularização da fonte de autoridade do rei, fazendo-a emergir da Nação. No interior do campo republicano, a debilidade teorética que se apontava às teses que faziam radicar, quer no direito divino, quer na razão natural, a origem do poder não eliminou a dificuldade de se tomarem posições sobre essa questão nem de encontrar um sistema de representatividade política que correspondesse à especificidade da idiossincrasia da República, como reinvenção da respublica e como solução para a crise do sistema eleitoral e do sistema partidário vigente sob a Carta Constitucional. No momento do derrube violento da Monarquia e perante a oportunidade de assumirem a governação e de se apresentarem como poder constituinte, os republicanos não tinham visões e posicionamentos consolidados sobre o exercício da soberania e a organização dos poderes do Estado. Apenas no decurso dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 28 de maio de 1911 e reunida entre 19 de junho e 21 de agosto daquele ano, lograriam alcançar um acordo político funcional sobre aquelas questões, onde pesaram mais conceções doutrinais híbridas e argumentos de cariz histórico do que a alegada pureza dos ideais republicanos, defendidos nos anos de combate à instituição monárquica e ao constitucionalismo cartista. Com efeito, os republicanos, tendo passado o último quartel de oitocentos a debater entre si diferentes visões sobre as teses contratualistas, o constitucionalismo da Revolução Francesa e o modelo de Estado unitário proposto pela tradição jacobina, haviam-se dividido quanto ao princípio fundador da soberania e ao modelo de representação nacional. Por exemplo, como já enunciou Fernando Catroga, o primeiro programa federalista (1873), assinado por Horácio Esk Ferrari – onde transpareciam a influência do pensamento de Henriques Nogueira e referências a Pi y Margall, Proudhon, Tocqueville, Vacherot, Stuart Mill, mas também aos textos constitucionais dos Estados Unidos da América e da Suíça, e ao movimento krausista  –, norteado por um ideal de democracia direta, tinha-se proposto desenvolver o princípio da soberania popular (aceitando o sufrágio universal, para homens

6

66 |

Cf. Idem, ibidem, pp. 14-17.

paula borges santos

e mulheres maiores de 18 anos) e transformá-lo no único meio de legitimação do poder. A soberania não era pensada como una e indivisível, sendo que também não se tinha do Estado uma conceção unitária. Daí que se recusasse a existência da figura do presidente da República (sobre a qual se projetavam os princípios de personalização e unificação do poder), mas se reconhecesse a representatividade política das minorias, se aceitasse o “mandato imperativo” e se optasse pelo federalismo quer para a organização interna de poderes do Estado, quer para orientação das relações externas entre países com afinidades (i.e., projetando primeiro uma “federação ibérica” e depois a construção dos Estados Unidos da Europa). No primeiro caso, a divisão da nação fazia-se em vários governos autónomos: provinciais, municipais ou de freguesia, que possuíam ampla capacidade legislativa; o poder central recaía sobre uma assembleia federal eleita por sufrágio direto, mas de limitada competência legislativa (i.e., reservada para assuntos de interesse geral: orçamento, justiça, segurança, serviços públicos e política externa). Na dependência dessa assembleia federal era colocado o poder executivo, que exercia funções por delegação7. Neste modelo político-administrativo, que sustentou a candidatura dos federalistas nas eleições de 1878 e 1881, não se reviram republicanos “unitários”, como patentearam o programa democrático de 1873 e o projeto de programa de 1878. Aí se consagrava o princípio da soberania nacional e a conceção de Estado unitário, na linha do jacobinismo francês. O sufrágio moldava-se a um critério censitário. Papel hegemónico era dado ao poder legislativo, de feição parlamentarista (a sua designação variou entre 1873, quando a referência se fazia ainda às “cortes”, e 1878, onde passou a “assembleia nacional”), que tinha no poder executivo uma “delegação”. O projeto federalista era recusado, admitindo-se apenas que o poder local fosse exercido “por meio da administração municipal e distrital”8 . O manifesto-programa republicano de 1891, escrito por Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Homem Cristo, Bernardino Pinheiro, Azevedo e Silva e Jacinto Nunes, num momento em que, pelo agravamento da crise do sistema político suscitada pela questão do Ultimatum (1890), o partido buscava uma solução de compromisso a fim de conseguir organizar-se em definitivo, procurou conciliar as propostas de sistema político-administrativo, defendidas anteriormente pelos elementos federalistas e “unitários” do movimento. Assim, a separação de poderes continuava a determinar a organização do Estado, não sendo incompatível com a supremacia concedida ao legislativo, que resultaria de “eleição direta”. Admitia-se que o poder executivo, de “delegação temporária do legislativo”, se especializasse na ação presidencial para as relações gerais do Estado. Numa cedência aos interesses federalistas, esse poder surgia estruturado por níveis: Cf. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910…, pp. 44-46. 7

8

Cf. Idem, ibidem, pp. 49-51.

|  67

nas origens do nacionalismo político...

em primeiro, previa-se a “federação de municípios”, “legislando em Assembleias provinciais sobre todos os atos concernentes à segurança, economia e instrução provincial, dependendo das relações mútuas de homologação da Assembleia Nacional”; em segundo, estabelecia-se a “federação de províncias”, que, “legislando em Assembleia nacional e sancionando sob o ponto de vista do interesse geral as determinações das Assembleias provinciais”, deveria velar “pela autonomia e integridade da Nação”; e, por último, a “Constituinte decenal”, encarregada não só da revisão da Lei Fundamental como também de “reformar a Codificação geral”. A influência federalista encontrava-se ainda presente na aceitação da representação das minorias e na questão do sufrágio, que se alargava também às mulheres (mas ainda assim de forma discriminatória, já que se ponderava a sua “educação progressiva”, de modo a que apenas exercesse “a capacidade política em correlação com as obrigações civis a que estiver sujeita”)9. As exigências programáticas e os compromissos entre fações republicanas que subjaziam ao manifesto-programa de 1891 não foram, contudo, suficientes para gerar consenso no tocante às propostas com dimensão política (como, aliás, em relação às demais esferas: económica, social e cultural). A redação do próprio documento, na parte do programa propriamente dita, evidenciava uma atitude de uma calculada evasão. O que aí se registava, em frases telegráficas, não passava de princípios, alguns a carecer de maior clareza no seu enunciado. Essa mesma consciência parecem ter tido os seus redatores que começaram por divulgar o texto com o título de “Indicações para o Programa do Partido Republicano Português [PRP]”. A construção de um “código doutrinário”, a partir do desenvolvimento dos “tópicos” aí condensados, era um esforço que, como admitiam, reservavam “à imprensa republicana e aos conferentes democráticos” dos congressos e centros republicanos (e até de sessões promovidas pela Maçonaria). No começo dos anos de 1890, impunha-se, cada vez mais, para as lideranças do Partido Republicano, na persecução dos objetivos que as animavam de reorganização política da nação, seguir a ação revolucionária em detrimento de uma tática legalista. Bastava-lhes, por isso, no manifesto associado àquele programa, criticar, nos aspetos que aqui estão em análise, a Monarquia Constitucional por se fundar “na amálgama irracional da soberania do direito divino com a soberania da nação” e reafirmar que a República era “a nacionalidade exercendo por si mesma a própria soberania, intervindo no exercício normal das suas funções e magistratura”. Afinal, como também acrescentavam: “no momento que atravessamos não há lugar para demonstrações teóricas, nem mesmo para argumentar com os pedantocratas do constitucionalismo”10 .

9

Cf. Idem, ibidem, pp. 57-58.

Cf. “Manifesto-Programa do Partido Republicano Português” [publicado em O Século, 12 de janeiro de 1891, pp. 1-2], consultável em: Ernesto Castro Leal, Partidos e Programas. O campo 10

68 |

paula borges santos

O caminho paulatino para a afirmação da soberania nacional em detrimento da soberania popular A última afirmação dos redatores do manifesto-programa de 1891, atrás citada, sugerindo implicitamente um divórcio entre agentes do mundo político e do mundo jurídico, naquele que foi um momento de transformação profunda da sociedade portuguesa, impõe que, neste trabalho, se coloque a seguinte interrogação: acompanharam o direito público e o direito constitucional português, na transição do século XIX para o XX, e no começo de novecentos, as modificações que sofriam as ideias políticas sobre o direito de soberania e a construção do Estado, e que apontavam para alterações dos próprios princípios jurídicos, sendo que essa não era uma realidade exclusivamente portuguesa, mas antes se inscrevia na evolução registada um pouco por toda a Europa ocidental? A crer no diagnóstico que fazia, em 1878, um dos mais prestigiados lentes de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, José Joaquim Lopes Praça, a literatura jurídico-constitucional não era nem extensa, nem apresentava grande utilidade e sofria de um carácter difuso no estilo11. O polemismo não encontrava acolhimento fácil nos compêndios de ensino de direito constitucional e as teorias ministradas não se substituíam com facilidade, quer pela resistência da maioria dos professores a novas doutrinas, quer pelos exíguos índices da sua própria produção autoral (a escrita de lições não foi usual até cerca de 1870 e, ainda assim, haveriam de passar algumas décadas até se tornar frequente os professores produzirem esse tipo de escritos). Como demonstrou António Hespanha, a evolução foi lenta entre o primeiro liberalismo e o início do século XX. Refira-se, sinteticamente, que, depois de 1836, haviam sido abandonadas as bases filosóficas do jusnaturalismo, de índole individualista, para se adotar a filosofia krausista, numa ação fomentada especialmente pelo professor Vicente Ferrer Neto Paiva. Nessa época, também o organicismo social, que caracterizara os romantismos alemão (designadamente, a Escola Histórica Alemã) e francês (de F. Guizot), recolheu alguma adesão. A renovação do corpo docente do curso jurídico, em 1850, facilitou a introdução de nova bibliografia em algumas disciplinas, como direito público ou direito constitucional (cátedra criada apenas em 1865). Algum ecletismo dominou então o ensino ministrado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra12 , que incorporou referências a teses de filosofia política individualista, ao hegelianismo, sem abandono da doutrina solidarista. Gradualmente, no final da década de 1860, os textos partidário republicano português 1910-1926, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, pp. 143-149. Cf. HESPANHA, António Manuel. Guiando a Mão Invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português, Coimbra, Livraria Almedina, 2004, pp. 531-532. 11

Esta foi a única Faculdade de Direito em Portugal até 1913, ano em que, por iniciativa governamental, foi criada a Faculdade de Direito e Ciências Sociais em Lisboa. 12

|  69

nas origens do nacionalismo político...

trabalhados registaram também citações de autores seduzidos por um novo organicismo (entre os quais se destacou J.K. Bluntschli), que privilegiava agora o papel ordenador do Estado (por influência das propostas do estadualismo político, avançadas, por exemplo, por Bismarck), sobre os direitos individuais e sobre os elementos de auto-organização da sociedade. Uma nova rutura no ensino do direito (nas suas várias especialidades), ocorreu cerca de dez anos mais tarde, suportada pela integração da filosofia positivista, de matriz comtiana, nos programas de várias cadeiras, tendo o lente Manuel Emídio Garcia realizado, nesse sentido, um esforço pioneiro. Até 1910, os pressupostos naturalistas do positivismo vieram a favorecer a afirmação do anti-individualismo como substrato da filosofia política e cultivou-se a ideia de que “todo o direito público se deveria construir sobre os agregados naturais da sociedade, desde as famílias ao Estado”, cuja função reguladora também se acentuava13 . Esta tendência reforçar-se-ia nos anos finais da Monarquia Constitucional, quando, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, se tornaram dominantes três correntes metodológicas no ensino do direito público: a escola do “positivismo estatal” (Laband, Meyer, Jellinek), de influência alemã; a escola do realismo francês (L. Duguit); e a escola histórico-evolucionista, de origem italiana14 . Da sociologia voltaram, nessa época, a surgir novos subsídios para a formação daquele ramo do direito, designadamente por via da ciência social da escola de Le Play, divulgadas pelo lente Marnoco e Souza. Esta evolução de algumas décadas que o próprio Direito registou, quanto ao seu fundamento como área científica, de afastamento do jusnaturalismo e de aproximação ao que se concebia ser a realidade social em transformação15 , ajuda a explicar que, a partir de 1878, no direito público e no direito constitucional se preferissem explicações sobre a origem da soberania que refutavam “princípios idealistas e abstratos” e não fossem independentes dos fenómenos sociais e da sua historicidade. Com efeito, logo em 1879, Lopes Praça, de formação política liberal e defensor de uma monarquia hereditária representativa, não hesitaria em subscrever a teoria da soberania nacional. Escrevia o professor: “A quem pertence o direito de soberania? Variam as respostas segundo os sistemas, está no direito divino, entendido pelos seus ministros, responde a teocracia; está na hereditariedade e legitimidade monárquica, asseguram os absolutistas; reside na vontade popular, emendam os sectários de Rousseau; M. Royer-Collard fazia depender a soberania política da razão […]. Se é preciso dizer o nosso modo de pensar 13

Cf. Idem, ibidem, pp. 532-541.

Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da República Portuguesa: Comentário. Prefácio. Coord. de J.J.Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011, p. 10. 14

Cf. CRUZ, Manuel Braga da. Sociologia. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. IX, Porto, Livraria Figueirinhas, 2000, p. 466. 15

70 |

paula borges santos

neste capítulo de direito público, célebre por tantas alucinações, diremos sem muitos rodeios, que a soberania de um povo e de uma nação reside essencialmente nesse povo, nessa nação”16 . Nos anos de 1880, também Manuel Emídio Garcia, influente doutrinador do pensamento republicano (e, ainda, do pensamento socialista) ensinou, designadamente, que a ideia metafísica da soberania popular, tal como havia sido formulada por Rousseau, correspondia a uma visão anacrónica da sociedade porque excessivamente contratualista. Para aquele lente prevalecia o princípio de que o indivíduo só pode ser compreendido na sua dimensão social. Apresentava ainda a noção de “povo” como “ser orgânico, que para se converter em organizado precisa de formar-se e constituir-se em nação”; e, à ideia de “nação” como “ser organizado”, fazia corresponder a coordenação de distintos graus de soberania, “a do indivíduo, da família, da comuna, do município, da província”17. Em 1910, seria a vez do professor Marnoco e Souza, que nesse ano assumira funções como ministro e secretário de Estado da Marinha e Ultramar no gabinete de Teixeira de Sousa (o último governo da monarquia constitucional), na obra Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia política e o direito constitucional português, registar críticas a várias teorias sobre a soberania e a organização dos poderes e eleger, como orientação mais adequada para explicar e organizar politicamente a sociedade e o Estado, uma das três “teorias positivas”: a teoria da soberania nacional18 . Explicava aquele lente que aquela teoria surgida de forma ainda embrionária nas doutrinas de Romagnosi e de Sismondi, fora desenvolvida por Palma, autor da chamada escola “histórica-evolucionista”, que sustentara que a soberania não podia deixar de pertencer “substancial e originariamente à nação”. Isto significava entender, em sentido político, o povo como uma “comunidade organizada” e não como “multidão inorgânica”. De acordo com esta teorização, os direitos de soberania cabiam à “universalidade dos cidadãos”, não podendo ser gozados por “nenhum indivíduo, nenhuma fração ou associação parcial”, aos quais não tivessem sido confiados expressa ou implicitamente. Sem hesitar em considerar que a teoria da soberania nacional era aquela que “melhor satisfaz as exigências do direito político moderno”, Marnoco e Souza não a julgava completamente aperfeiçoada, à data em que escrevia. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito Constitucional Portuguez, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 11-13. 16

17

Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 166-167.

Segundo Marnoco e Souza, eram quatro as “teorias positivas”: a teoria da soberania da utilidade social, acolhida preferencialmente em Inglaterra, construída por Bentham e, mais tarde, desenvolvida por Mill, Bain e Herbert Spencer; a teoria da soberania do Estado, com defensores na Alemanha e em Itália, produzida por autores como Gneist, Bluntschli, Zorn, Orlando e Icilio Vanni; a teoria da soberania da sociedade, formulada por Miceli; e, por fim, a teoria da soberania da nação (Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 25-32). 18

|  71

nas origens do nacionalismo político...

Alertava para o facto de os principais autores da teoria da soberania nacional não terem definido convenientemente o conceito de soberania, pelo que os próprios estabeleciam, não raras vezes, confusões entre esta e “o direito de eleger os depositários do poder” ou o direito de fiscalizar o exercício do poder público”. A ausência de uma boa conceptualização levava também a que equiparassem, erradamente na sua opinião, “nação” e “Estado” ou “nação” e povo”. Com essas posições, aproximavam-se das doutrinas que a própria teoria da soberania nacional, na origem, pretendera questionar e face às quais quisera servir de contraponto: a soberania do Estado e a soberania popular19. Se a primeira fora importante, especialmente para o interior da cultura científica e da política alemãs, suscitando alguns defensores em Itália, Marnoco e Souza não hesitava em afirmar que, para a evolução histórica e política, tivera maior importância a teoria da soberania popular, sobretudo depois da formulação que lhe fora atribuída por Rousseau. Apresentava a Revolução Francesa como a sua mais direta consequência e assegurava que toda a política do presente século” se havia desenvolvido sob o poder do seu domínio irresistível”. Porém, na linha do que Manuel Emídio Garcia já registara, Marnoco e Souza escrevia que nada era mais inadmissível do que a teoria da soberania popular de João Jacques Rousseau”. Sobre os princípios fundamentais dessa teoria 20 , o professor adiantava que tornavam o Estado um produto arbitrário”, lançado na instabilidade e perturbação”. Recusava que fosse possível conciliar as ideias de soberania do povo” e de liberdade absoluta do indivíduo”, porque seria “manifestamente absurdo sustentar que obedecer ao povo é obedecer a si mesmo”. Do mesmo passo, via na identificação entre soberania e vontade geral uma incompatibilidade, já que a segunda “por si só não pode de modo algum constituir um direito”. Afinal, acima da vontade geral, que não era outra coisa senão o “agregado mecânico do maior número”, estavam “condições de existência e de desenvolvimento da vida social, com que ela se deve conformar”21. Esta última observação relacionava-se com a outra fragilidade apontada por Marnoco e Souza à teoria da soberania nacional. Revelando um fôlego teórico e dogmático próprio, onde transparecia a sedução que haviam exercido sobre si os ensinamentos da “psicologia coletiva”22 , sustentava que aquela

19

Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 30.

Sintetizando os princípios daquela teoria, Marnoco e Souza escrevia que correspondiam aos seguintes: a soberania reside essencialmente no indivíduo, não sendo a soberania social senão resultante da soma dos poderes individuais; todos os indivíduos são soberanos, tendo um domínio absoluto sobre as pessoas; quando os indivíduos se reúnem, mediante o contrato social, renunciam, para constituir o poder coletivo, à sua liberdade e soberania; […] a soberania é, em última análise, a vontade popular, entendida como a expressão da maioria numérica dos cidadãos” (Cf. Idem, ibidem, p. 17). 20

21

Cf. Idem, ibidem, pp. 22-23.

22

Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, “Prefácio”…, p. 10.

72 |

paula borges santos

teoria ganharia em ser combinada com a “doutrina da consciência coletiva”. Por “consciência coletiva” entendia “o fenómeno de coordenação das consciências individuais”, percetível enquanto “processo psicossocial”, inscrito na temporalidade, sendo que rejeitava as considerações dos que advogavam que aquela consciência era distinta dos indivíduos que a compunham e possuía até um carácter místico e transcendente. A “doutrina da consciência coletiva” surgia-lhe como um instrumento capaz de responder à necessidade de captar a “característica fundamental da nacionalidade”, noção que retinha, a seu ver, a “verdadeira teoria da soberania”. Explicava porquê: “um agregado social [leia-se: a nação] que tenha os caracteres duma nacionalidade [i.e., conhecimento das suas condições de existência e desenvolvimento, das leis reguladoras da sua evolução e das influências do meio ambiente envolvente] goza do direito não só de afirmar a sua independência relativamente aos outros, mas também de se organizar politicamente pela forma que melhor [lhe] convier”23 . Do que fica dito, e sem prejuízo da necessidade de uma investigação mais aturada sobre o modo como se cruzaram o pensamento político e o pensamento jurídico quanto às questões em apreço neste artigo (explorando-se, por exemplo, se os dirigentes políticos se socorreram ou não das teses jurídicas para legitimarem as suas posições ou se seguiram outras referências e quais), parece interessante notar que a passagem de um quadro político fundado no “princípio monárquico” para outro ancorado no “princípio democrático” (para usar a antítese em que se expressava José de Arriaga 24) se fez sem grandes comoções doutrinais no ambiente académico português. De facto, doutrinadores (Lopes Praça, Manuel Emídio Garcia e Marnoco e Souza) de diferentes gerações e perfis políticos, partindo da crítica aos dogmas metafísicos da construção liberal do Estado (contrato social, soberania, representação parlamentar) concordaram no sentido da mudança de fundamento da fonte da soberania. Mais, como demonstram as posições citadas dos três lentes de Coimbra, essa viragem antecedeu, num período de tempo considerável (1879-1910), a própria realidade política – recorde-se que, apenas em 19 de junho de 1911, durante a primeira reunião da Assembleia Constituinte, se decretou “para sempre abolida a monarquia e banida a dinastia de Bragança” e se declarou que “a forma de Governo de Portugal é a República Democrática”25. Mesmo que se pretenda levar em consideração a facilidade do que podia ser uma tomada de posição científica, em boa medida inspirada nos exemplos de realidades políticas da Europa ocidental coeva e da literatura especializada sobre o tema produzida em fóruns internacionais, quando comparado com as exigências colocadas à ação política interessada na derrocada do regime monárquico constitucional, não será de negligenciar a unanimidade 23

Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 30, 39-41.

Cf. ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro de 1910, Lisboa, 1911, p. 8. 24

25

Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, 19 de junho de 1911, p. 3.

|  73

nas origens do nacionalismo político...

que se regista no pensamento jurídico evocado, quanto à subscrição da teoria da soberania nacional. Com efeito, essa unanimidade não existiu no pensamento político republicano, e até socialista, da época. Nas vésperas do 5 de outubro de 1910, alguns núcleos da propaganda republicana tinham ainda por tema maior a reafirmação da soberania popular26 , sendo que nos trabalhos constituintes de 1911 essa sensibilidade voltou a manifestar-se entre alguns deputados. Também no interior do Partido Socialista Português, em 1911, o problema da origem da soberania não tinha uma resposta única.

Poder constituinte, nação, soberania e representação política A Constituição de 1911 estabeleceu o princípio de que “a soberania reside essencialmente na Nação” (art. 5.º), adotando a teoria da soberania nacional na esteira de anteriores redações das Leis Fundamentais de 1822 e 1838, particularmente da primeira (no seu art. 26.º)27. A razão para tal aproximação filiou-se na circunstância desses textos constitucionais recolherem influência de um pensamento político que, convocando argumentos do constitucionalismo da Revolução Francesa, entendia que à ordem legalista e democrática assistia “um carácter voluntário, constitutivo e progressivo”28 . Também a opção aí tomada de ruptura com a representação política do modelo tradicional das cortes, onde se deduzia o acolhimento das teses de Sieyès, justificou o não rompimento da República com o constitucionalismo liberal. Finalmente, não menos importante terá sido a promessa regeneradora da pátria, alimentada pelo republicanismo, que passava, em certa medida, pela convicção de que era necessário consumar todas as revoluções traídas ou inacabadas, como teria sido o caso das revoluções de 1820-1822 e de 1836. O cultivo da memória vintista, setembrista e patuleia completava essa atitude29, embora para efeitos das opções de redação do texto constitucional, tenha tido pouca importância. Apesar de não terem surgido projetos de alteração constitucional propondo a adesão ao princípio da soberania popular, este esteve subjacente a diversas posições defendidas sobre outros pontos do articulado do projeto de Constituição. Ainda na discussão do projeto primitivo, logo a propósito do art. 1.º, onde se declarava que a nação assumia como forma de governo a “república democrática”, os constituintes 26

Cf. CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 165-167.

Sublinhe-se que as Constituições de 1822 e 1838 serviram de fonte para a globalidade do texto constitucional de 1911, e não só para o artigo 5.º. De resto, não foram as únicas fontes, pois a Constituição de 1911 veio a assimilar algumas disposições da Constituição brasileira de 1891 (Cf. SOUZA, Marnoco e. Constituição Política da República Portuguesa. Commentario, Coimbra, F. França Amado Editor, 1913, pp. 6-7). 27

28

Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 175-176.

Cf. CATROGA, Fernando. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português…, pp. 223 e 230. 29

74 |

paula borges santos

dividiram-se sobre esse conceito. Para uns tratava-se de uma república em que os poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial) eram exercidos pelo povo. Outros consideravam que tal expressão apontava apenas para a questão da soberania pertencer à generalidade dos cidadãos. Na ausência de consenso, decidira-se fixar simplesmente que “a Nação, organizada em Estado Unitário, adota como forma de governo a República”. Deliberadamente afastava-se a hipótese de significar que o regime comportava uma ação direta do povo, isto é, rejeitava-se que o povo pudesse exercer por si, e não por meio de delegados, uma parte das funções do governo e da legislatura. A aplicação de um tal modelo no País seria rotulada de uma “fantasia de sonhadores, que se imaginavam eguaes, nas suas condições nacionais, àquelas que fazem da Suissa um bello e extraordinario povo”30. Esta argumentação exemplifica como os constituintes se dividiam entre si sobre questões fundamentais para a organização política a consagrar pela Constituição, mas que mais não eram do que remanescências de divergências transportadas da fase da propaganda, suscitadas pelas diferenças programáticas que animavam “federalistas” e “unitários”. Outro exemplo disso mesmo, encontra-se na decisão dos constituintes de sancionarem a forma unitária do Estado, resultando dessa opção a derrota da corrente federalista na Assembleia Constituinte (sendo que, para tanto, um dos argumentos evocados foi o de que o País apresentava uma rara unidade da comunidade política e social, sedimentada na história). Ao contrário dos legisladores liberais, os constituintes em 1911 não caracterizaram formalmente, no texto constitucional, o que entendiam por “nação”. Em 1822, optara-se por considerar a Nação como “a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios” (art. 20.º), numa valorização da ideia de “comunidade de pessoas vinculadas entre si por uma razão mais forte (o sangue) do que o facto de terem nascido no território sujeito a um mesmo rei”. Afirmara-se que a Nação era “livre, independente, e não pode ser património de ninguém”, cabendo-lhe, por intermédio dos deputados reunidos em cortes, fazer a Constituição, “sem dependência de sanção do Rei” (art. 27.º). Em 1838, o legislador entendera a nação, da qual emanavam todos os poderes e onde residia a soberania, como “associação política de todos os cidadãos portugueses” (art. 1.º), considerando que estes eram os indivíduos nascidos em Portugal e nos seus domínios (com exceção dos que tivessem assumido outra naturalidade). Desvalorizara-se a relação entre poder e súbditos para, sobretudo, definir e reforçar os laços políticos pelo princípio da territorialidade, noção que fora já introduzida na Carta Constitucional de 182631. Com efeito, a razão mais direta para a curta fórmula adotada no art. 5.º da Constituição de 1911 prendeu-se com a falta de entendimento entre os constituintes quanto a dizer-se que a nação exercia, “por delegação voluntária”, a soberania. Essa ideia fora avançada pela comissão redatora do projeto cons-

30

Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, pp. 9-11.

31

Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, pp. 203-204.

|  75

nas origens do nacionalismo político...

titucional, mas caíra após se considerar que podia abrir caminho a cenários de renúncia ou de abdicação do exercício de soberania32 . O discurso de alguns constituintes evidenciava que a nação era uma entidade distinta dos indivíduos que a compunham. Traduzia-se por uma vontade geral, superior às vontades individuais, e, portanto, era una e indivisível, revelando uma consciência de continuidade histórica. Daí que se traduzisse nos hábitos e costumes e estivesse preparada para cooperar nos progressos exigidos pelo futuro histórico. Com esse espírito, repudiavam-se teses contratualistas. “A soberania da nação não é mais do que esse mútuo consenso, que origina todas as instituições sociais”, afirmava Teófilo Braga, presidente do Governo, perante a Assembleia Constituinte, e acrescentava: “um indivíduo isolado tem a sua capacidade civil e os seus direitos, mas é impotente para os manter e reivindicar”33 . Com efeito, o lugar do indivíduo no novo ordenamento a erigir não foi óbvio para todos os constituintes, sendo que tal se manifestou quanto a dois aspetos: por um lado, na hierarquia de matérias elencadas pela Constituição, envolvendo os direitos individuais e a organização atribuída aos poderes do Estado; por outro lado, no alcance dos direitos individuais que foram consagrados. Sobre o primeiro aspeto, refira-se que no projeto proposto pela comissão encarregada de redigir uma primeira versão da Lei Fundamental (daqui em diante designado projeto primitivo), a enumeração das liberdades individuais surgia depois de se tratar a organização dos poderes do Estado, num sistema que era igual ao da Carta Constitucional. Esta ordem de matérias foi alterada, por via de se considerar que “os direitos e garantias individuais são o limite natural da ação dos diversos poderes do Estado”, donde não resultaria apresentá-los como uma concessão do poder, ainda que este tivesse o “direito de regular as manifestações da atividade dos indivíduos, de modo a assegurar a vida da sociedade”34 . Quanto ao segundo aspeto, como demonstrou Rui Ramos, embora o catálogo de direitos inscrito na Constituição tenha sido extenso, não correspondeu ao que os dirigentes do PRP haviam defendido durante o seu combate à Monarquia cartista. De facto, sucederam-se os casos em que se registaram limitações ao alcance prático da maior parte das anteriores reivindicações republicanas35 . Não foi, por exemplo, fixada a doutrina do sufrágio universal, embora tenham existido constituintes a defendê-la com os argumentos de que: a república só seria democrática caso contemplasse aquele critério; a exclusão do sufrágio universal só permitiria o voto a entidades e classes privilegiadas, quando, 32

Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 206-208.

Cf. BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de 1911, na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911, p. 33. 33

34

Cf. SOUZA, Marnoco e, Ibidem, pp. 7-8.

Cf. RAMOS, Rui. Para uma história política da cidadania em Portugal. In: Análise Social, vol. XXXIX (172), 2004, p. 560. 35

76 |

paula borges santos

contraditoriamente, a todos os indivíduos que compunham a nação se exigia o pagamento de impostos e o cumprimento dos deveres perante o Estado; todos os indivíduos tinham o direito de fiscalizar o governo; o sufrágio destinava-se ao povo e a ele se devia a República. Nestas posições reaparecia o acolhimento dado ao princípio da soberania popular, sendo, uma vez mais, essa sensibilidade derrotada perante parlamentares que defenderam o sufrágio restrito, alegando a elevada taxa de analfabetismo para sustentar a impreparação desses sectores da população para se pronunciarem politicamente36 . Não passaram também propostas que sugeriam a adoção do mandato imperativo e o alargamento do sufrágio universal às mulheres, cuja capacidade política só era reconhecida desde que fossem “chefes de família há mais de um ano” e tivessem o “exame de instrução primária”. Como alguns autores já apontaram, a principal motivação para a regulação restritiva destes direitos relacionou-se com o receio de que o pleno uso destes beneficiasse os opositores do poder constituído. Não tendo, aparentemente, tido particular significado o facto de, nos anos anteriores, a propaganda republicana ter discutido o défice de legitimidade da monarquia a propósito dos problemas que apontavam ao modelo de sufrágio e de círculos eleitorais, sobre os quais a representação política se organizava 37.

Considerações finais O projeto republicano de “nacionalização do Estado”, do ponto de vista político, enformou de características que não corresponderam a um pleno desenvolvimento do ideal republicano, tal como este fora defendido nos anos de combate à Monarquia Constitucional. O sucesso desse projeto foi acentuadamente cultural, tendo expressão na criação do culto da pátria (constituído à volta de uma nova simbologia nacional, formada pelo hino, bandeira, heróis já desaparecidos, novos feriados nacionais, festas cívicas, comemorações de efemérides republicanas, e donde se excluíam todos os vestígios de internacionalismo), nas medidas de escolarização (ensino laico, obrigatório e gratuito) e no incentivo ao reencontro do “valor primitivo” da respublica, com fundamento na história de Portugal38 . Sobre o projeto político em si, uma primeira nota: foi utilizada uma argumentação híbrida para explicar a nação como entidade, assistindo-se a um desligamento da ideia, inerente às propostas demoliberais, de comunidade política como a soma dos indivíduos para, ao invés, se salientar a importância dos agregados sociais que compunham a sociedade. Esta tendência incorporava

36

Cf. SOUZA, Marnoco e, ibidem, p. 264.

Cf. RAMOS, Rui, ibidem, p. 561; CATROGA, Fernando, ibidem, p. 233; Idem, O Republicanismo em Portugal…, pp. 175-187. 37

Sobre a “revolução cultural” desencadeada pela I República, e as causas que aí pretenderam defender, veja-se: RAMOS, Rui, A Segunda Fundação (1890-1926)…, pp. 401-433. 38

|  77

nas origens do nacionalismo político...

manifestamente o impacto de novas correntes do pensamento jurídico e do debate político, realizado a partir da segunda metade do século XIX, onde a tomada de posições defensoras de uma noção de representação política, assente na representatividade dos interesses sociais e menos no sufrágio individual, começara a tornar-se atrativa e a generalizar-se entre personalidades intelectuais (onde os jurisconsultos se incluíram) e políticas (atraídas pelas teorias políticas do organicismo, mas também do estadualismo pós-liberal)39. Não foi por acaso que, apesar de não ter sido reconhecido o carácter constitucional da orgânica da sociedade civil em 1911, como pretendiam algumas propostas apresentadas na Assembleia Constituinte, de composição do Senado tendo por base a representação dos corpos administrativos locais e de certas corporações socioprofissionais, essa experiência foi tentada, mais tarde, durante o consulado de Sidónio Pais (decreto n.º 3977, de 30 de março de 1918)40 . Decorrente do ponto anterior, um segundo apontamento: a busca do interesse público e da ordem social, que se pensou serem exercidos por um modelo de Estado antifederalista e centralizador, concorreu para uma limitação da própria participação democrática. Aos republicanos interessou mais o desenvolvimento do projeto do Estado educador, e em menor grau do Estado higienista, e a dedicação do indivíduo às necessidades da vida coletiva e o cultivo dos seus afetos pátrios (fundamentados na tradição, nos costumes e na história do País), do que fomentar o aumento da legitimidade democrática do regime, pelo alargamento da capacidade política dos indivíduos. Nessa medida, o Estado republicano iniciou um percurso de desligamento da vinculação da promoção dos direitos individuais políticos, dado que, para os seus mentores, as restrições legais eram “menos graves do que as limitações de liberdade que se verificam no domínio das relações privadas, porque as primeiras são impostas em nome do interesse Para maior detalhe das ideias e das personalidades políticas e intelectuais que iniciaram a discussão e a crítica ao modelo de representação liberal, consulte-se: OTERO, Paulo. Corporativismo político. In: Dicionário de História de Portugal, coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. VII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 425-428; RAMOS, Rui. Oligarquia e caciquismo como forma de pensar: Oliveira Martins, Joaquim Costa, Gaetano Mosca e a transformação da cultura política liberal na Europa do Sul (c. 1800-c.1900). In: Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, 2.ª série, n.º 16, pp. 179-216. Como referência da atenção que essas propostas despertaram também entre os lentes de direito público, lembre-se que Marnoco e Souza, em 1910, refletindo sobre o exercício da soberania e a questão da representatividade política, fez a primeira defesa, no âmbito do direito constitucional, da representação dos interesses sociais. Sem desenvolver doutrina sobre este aspeto, mas considerando que essa seria a forma mais perfeita de representatividade, deixava transparecer um otimismo quanto à futura concretização histórica desse tipo de propostas, porque um “tal acordo doutrinal só se pode encontrar em épocas em que as ideias estão maduras para se transformarem numa realidade” (algo que, cerca de trinta anos mais tarde sucederia, de facto, através do projeto político do regime autoritário de Salazar e Marcelo Caetano) (Cf. SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Poderes do Estado..., pp. 164, 174-175). 39

Sobre os motivos que dificultaram, em 1911, a adesão às propostas de representação de índole corporativa, veja-se: CATROGA, Fernando, ibidem, pp. 248-249; Idem, O Republicanismo em Portugal…, pp. 168-172. 40

78 |

paula borges santos

público”41. Um exemplo desse procedimento encontra-se na imposição da Lei de Separação, em 1911, pelo Estado às Igrejas e, por extensão, aos crentes das várias confissões religiosas, de carácter fortemente restritivo da libertas ecclesiae, ao mesmo tempo que se promoveu a liberdade religiosa, na sua vertente de dimensão individual e privada (ninguém podia ser perseguido por motivo de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da mesma)42 . Por fim, refira-se que o fator mais original do projeto político de “nacionalização” do Estado republicano, indissociável da forma de governo estabelecida pelo regime, foi a secularização promovida da origem e da função do poder político, ao retirar-lhe fundamentações de ordem teológica e metafísica43 . Em boa medida, talvez as maiores inovações e ruturas que o novo regime poderia ter introduzido naquele projeto (e na nova ordem constitucional), radicassem nas propostas que foram rejeitadas pela Assembleia Constituinte. As divisões que se revelaram existir entre os constituintes não permitiram, contudo, a sua adoção (como ilustram quer o projeto constitucional apresentado por Teófilo Braga, quer as reações que suscitou). Donde a maior radicalidade da “nacionalização” do Estado, na sua dimensão política, residiu na apropriação que foi feita pelo republicanismo (enquanto poder constituinte) do projeto democratizante da tradição vintista/setembrista, ao concretizar a abolição do pariato (existente nas duas constituições oitocentistas de curta duração), mas também, desta vez, a própria monarquia (não se limitando a neutralizar o poder do rei).

Referências ARRIAGA, José de. Os Últimos 60 Anos da Monarquia. Causas da Revolução de 5 de Outubro de 1910, Lisboa, 1911. BRAGA, Teófilo. Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza. Proferidos na discussão na generalidade e especialidade, nas Sessões de 18 de julho e 2 de agosto de 1911 na Assembleia Nacional Constituinte, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Prefácio. In: SOUZA, Marnoco e. Constituição da República Portuguesa: Comentário, coord. de J. J. Gomes Canotilho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011, pp. 9-14.

41

Cf. HESPANHA, António Manuel, ibidem, p. 189.

Diga-se, aliás, que a proibição da perseguição religiosa e da indagação da pertença religiosa por agentes do Estado eram garantias já consagradas, respetivamente, pela Carta Constitucional e pelo Código Civil de 1867. 42

Também aqui deve ser lembrado o caminho nesse sentido já feito antes da República. Apesar de a Carta Constitucional de 1826 iniciar com a fórmula tradicional das cartas de lei (“D. Pedro IV, pela graça de Deus, rei de Portugal…”), não era dado no seu articulado qualquer indicação de uma fundamentação sobrenatural do poder ou da soberania, nem sequer repetindo a fórmula inicial da Constituição mais democrática de 1822 (“Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade…”). 43

|  79

nas origens do nacionalismo político... ______. Introdução. In: PRAÇA, José Joaquim Lopes. Direito Constitucional Portuguez, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 5-19. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 3.ª edição, Alfragide, Casa das Letras, 2010. ______. O “complexo” cartista do parlamentarismo republicano português. In: Das Urnas ao Hemiciclo. Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923), coord. de Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón, Lisboa, Assembleia da República, 2012, pp. 223-252. CRUZ, Manuel Braga da. Sociologia. In: Dicionário de História de Portugal. Coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. IX, Porto, Livraria Figueirinhas, 2000, pp. 466-468. DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, 19 de junho de 1911. HESPANHA, António Manuel. Guiando a Mão Invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português, Coimbra, Livraria Almedina, 2004. LEAL, Ernesto Castro. Nação e nacionalismo: a cruzada nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938), Lisboa, Cosmos, 1999. MATOS, Sérgio Campos. História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990. OTERO, Paulo. Corporativismo político. In: Dicionário de História de Portugal. Coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. VII, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 425-428. PINTASSILGO, Joaquim. República e Formação de Cidadãos. A Educação Cívica nas Escolas Primárias da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Colibri, 1998. RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926); MATTOSO, José (dir.), História de Portugal Lisboa, Editorial Estampa, 1994, v. VI. ______. Para uma história política da cidadania em Portugal. In: Análise Social, vol. XXXIX (172), 2004, pp. 547-569. ______. Oligarquia e caciquismo como forma de pensar: Oliveira Martins, Joaquim Costa, Gaetano Mosca e a transformação da cultura política liberal na Europa do Sul (c. 1800c.1900). In: Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, 2.ª série, n.º 16, pp. 179-216. SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Poderes do Estado. Sua organização segundo a sciencia política e o direito constitucional português. Coimbra, França Amado Editor, 1910. ______. Constituição Política da República Portuguesa. Commentario, Coimbra, F. França Amado Editor, 1913.

80 |

Nacionalismos e política externa portuguesa no pós-25 de Abril1 José Pedro Zúquete Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

As pessoas têm um ideal para o país que é muito maior do que o seu esqueleto. D. Manuel Clemente2

De cravos e de rosas No dia 25 de abril de 2014, a Revolução dos Cravos, que pôs fim a quase cinquenta anos de ditadura, celebrou o seu quadragésimo aniversário. Em Portugal, fizeram-se conferências, colóquios, exposições, as televisões recorreram a imagens de arquivo, as revistas e os jornais encheram-se de memórias históricas e de opiniões sobre o evento, os políticos juraram mais uma vez fidelidade eterna aos valores de abril, e um pouco por todo o lado se falou do “significado” da revolução e sobretudo do seu “legado” para o Portugal dos nossos dias. Falar da Revolução de 25 de Abril de 1974, portanto, significa falar de um acontecimento que marcou a história do país, abriu um novo ciclo político e inaugurou uma Terceira República. Mas também de um acontecimento que mudou a história de famílias, muitas famílias, quer aquelas que estavam no Portugal continental, como as que estavam no que à época se chamava de Ultramar. Quarenta anos depois, se há algo que passou para todo o sempre a estar associado na mentalidade colectiva portuguesa ao 25 de Abril é a ideia de Liberdade. Ainda recentemente o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa publicou um Este texto conjuga duas intervenções no âmbito de mesas-redondas em universidades brasileiras: no dia 9 de abril de 2014, no “Seminário Internacional Nacionalismo e Política: Portugal e Brasil”, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e no dia 24 de abril de 2014, no evento “Os Cravos de Abril: Os Quarenta Anos da Revolução Portuguesa (1974-2014)”, na Universidade Federal Fluminense (UFF). 1

2

Clemente, 2009: 31.

|  81

nacionalismos e política externa portuguesa...

estudo de opinião onde se verifica que cerca de 60% dos portugueses consideram o 25 de Abril como o facto mais importante da história. Muito à frente da Batalha de Aljubarrota, ou das viagens de Vasco da Gama. Claro que esta percepção tem a ver com a proximidade histórica (é um episódio mais perto das pessoas), mas não deixa de ser relevante. Existe um antes e um depois – e se o antes era autoritário –, o depois, através da transição, passou a ser o Portugal de hoje, o Portugal democrático. E o 25 de Abril como um símbolo consensual, final, desse processo. Mas se a um nível abstrato, difuso, essa ideia impera, se nós descermos ao concreto, ou seja, à opinião das pessoas sobre o funcionamento da democracia em Portugal (aquilo que os cientistas políticos chamam de “qualidade da democracia”), verificamos que, quarenta anos depois, para a maioria das pessoas, a tal promessa de um Portugal novo e democrático ainda está por cumprir. Um dos últimos Eurobarómetros (um inquérito europeu feito com regularidade), do outono de 2013, não deixa margem para dúvidas: dos 28 países da União Europeia, os portugueses são, de todos os europeus, os mais insatisfeitos com o funcionamento da democracia (85% dos portugueses estão insatisfeitos – e em todos os grupos sociodemográficos). 3 E resultados de 2015 confirmam a desconfiança, bem acima da média europeia, dos portugueses relativamente ao parlamento e ao governo da nação.4 “Abril” venceu, sim, mas o jogo está longe de ter acabado. Ainda falta muito para que os cravos se transformem em rosas. 5

A Sereia Europeia A Revolução Portuguesa – e o consequente desejo de refazer Portugal – desde cedo que esteve vinculada à ideia que era preciso integrar Portugal, decisivamente e definitivamente, na Europa. Até para sedimentar o novo regime político. Toda a política externa portuguesa, a partir de 25 de abril, se orientou nesse sentido. A adesão a um projeto europeu teve o consenso das elites políticas no Portugal democrático. Era esse o caminho para a modernização de Portugal. O “destino” europeu de Portugal foi exaltado como talvez nunca tenha sido ao longo da história. José Medeiros Ferreira disse, em 1976, num discurso no Conselho da Europa, que com o 25 de Abril “Portugal volta por fim oficialmente à convivência com a Europa”. Esse era “um ato” que exprimia “a consciência do nosso destino histórico”. Era, nas palavras do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, “o regresso de Portugal às suas raízes continentais”.6

3

Eurobarómetro, 2013: 9, 10.

4

Eurobarómetro, 2015: 2.

5

Ver também História Viva, 2014.

6

Ferreira, 1976: 44.

82 |

josé pedro zúquete

O destino estava traçado. E o destino era europeu. Nos anos 80 ou 90 do século passado, não eram muitos os que falavam de Lusofonia como um “destino” alternativo para Portugal. Mas se existe algo que qualquer observador nota é que a palavra “lusofonia” explodiu literalmente no vocabulário. E essa explosão dá-se, sobretudo, na passagem do século XX para o século XXI. Hoje em dia, em Portugal, é difícil não ler ou ouvir a palavra na mídia. É difícil não ouvir políticos a falar de Lusofonia como raiz e como horizonte da relação de Portugal com o mundo. E a todo instante nós vemos eventos/grupos que promovem a Lusofonia: o Grupo de Reflexão Lusófona, os Encontros da Lusofonia pela União dos Médicos Escritores e Artistas Lusófonos, os Encontros das Mulheres Lusófonas, os Congressos dos Mares da Lusofonia. Até os Jogos da Lusofonia já vão na quarta edição. E por que agora? E eu aí penso que isso tem a ver, ou pelo menos está relacionado, em boa parte, com o fim do deslumbramento com a Europa. Seria fácil limitar-me a mostrar os resultados do último Eurobarómetro de 2013, que mostra que Portugal é o terceiro país da União Europeia que tem pior imagem sobre a União Europeia (apenas 22% dos portugueses veem a União Europeia de forma positiva).7 Mas por detrás da frieza dos números existe algo mais profundo nas mentalidades. É que progressivamente houve a constatação, e os momentos de crise económica, austeridade financeira e desemprego ajudam naturalmente a agravar esse sentimento, que o projeto Europeu não é suficiente. E assim se começou a falar cada vez mais 1) da necessidade de reposicionar Portugal em termos estratégicos, ou o regresso a uma “visão atlântica”8 , 2) do mar como destino, ou “regresso ao mar”9, 3) dos povos de língua portuguesa espalhados pelo mundo, 4) enfim, da Lusofonia como realidade, como projeto e como sonho. Só dentro deste contexto é que se entende que um ministro do governo de Portugal diga, em 2012, que “nos últimos 20 anos preocupamo-nos demasiado com a Europa, e se nós olharmos para a nossa história nós sabemos que cada vez que fomos empurrados para o oceano esses foram os momentos de maior glória da nossa história … Portugal é tão mais forte quanto mais olha para o mundo”.10 E este comentário é apenas um sinal, entre tantos outros, dos novos tempos.

O mundo como âncora E o que é a Lusofonia? A um nível básico: a Lusofonia faz referência aos oito países (nove, desde 2014) cuja língua oficial é o português, assim como às comunidades de origem portuguesa espalhadas pelo mundo. A um nível superior: a 7

Eurobarómetro, 2013: 3.

8

Lopes, 2011: 199.

9

Diário de Notícias, 2012.

10

Relvas, 2012.

|  83

nacionalismos e política externa portuguesa...

Lusofonia representa uma rede ambiciosa e profunda que é concebida como uma comunidade de valores, interesses e afinidades comuns, e como uma maneira de redefinir e revalorizar a importância de Portugal no mundo contemporâneo. Claro que esta visão lusófona tem uma dimensão obviamente pragmática, ou seja, tirar vantagem política, económica e cultural de uma relação especial entre países unidos pela mesma língua. De um ponto de vista utilitário é um passo lógico. Mas é importante não nos limitarmos a este entendimento da Lusofonia, sob pena de não entendermos uma importante dimensão, mais profunda e imaterial, da sua atração e do seu apelo na mentalidade colectiva do Portugal de hoje. E isso tem a ver com a identidade portuguesa e com o nacionalismo cultural que hoje se manifesta através da via lusófona. A sua origem é a mitologia nacional. Esse nacionalismo cultural emerge das fontes histórico-culturais e sagradas da identidade portuguesa. E quais são elas? • Em primeiro lugar, a ideia do excepcionalismo lusitano, a longa tradição de eleição na história de Portugal. O sentimento de que Portugal se enquadra na tradição dos povos missionários, eleitos para liderar e, no fim, transformar o mundo. Se à França, desde o início, se atribuiu a “Gesta Dei per Francos”, e a Inglaterra e os Estados Unidos, em diferentes momentos, foram vistos como a “Nova Israel”, também Portugal, na sua historiografia, foi visto como uma espécie de “menino Jesus das nações”, como notou esse psicanalista da história lusa chamado Eduardo Lourenço.11 Nesta visão, que reemerge ao longo dos tempos de diferentes formas e feitios, o imaginário dos descobrimentos, e da expansão ultramarina, é fundamental. • E daqui parte a segunda grande dimensão da mitologia nacional, ou seja, o universalismo português. A ideia é simples: é a ideia de que Portugal provou, ao longo da história, ter desenvolvido um modelo de convivência entre os povos que é superior. E é esse humanismo e ecumenismo português que distingue a experiência portuguesa no mundo. A meu ver, a Lusofonia é a manifestação contemporânea, com novas vestes e novos ares, destes dois grandes esteios do nacionalismo cultural da nação portuguesa. E por isso, dentro desta perspectiva, a Lusofonia é um mito. E é um mito de refundação nacional: redefinir e revalorizar o papel de Portugal no mundo; reaproximar Portugal do seu destino; impulsionar e projetar o “modo português de estar no mundo” visto como único, ecuménico e humanista (como afirmou o economista e pensador português Ernani Lopes, e grande defensor da Lusofonia, “nós [nós portugueses] só somos nós quando formos para além de nós”)12 ; no fundo, mostrar que Portugal, embora hoje estatisticamente pe11

Lourenço, 1988.

12

Lopes, 2011: 265.

84 |

josé pedro zúquete

queno e geograficamente periférico, é, na sua natureza, um país grande. Por isso não é surpreendente que um “certo fascínio pelo império” persista nas narrativas identitárias portuguesas.13 O escritor António Lobo Antunes disse uma vez, numa entrevista, “eu acho insuportável ouvir que nós somos um país pequeno e periférico. Para mim, Portugal é central e muito grande”.14 Para um estrangeiro, estas palavras podem parecer um paradoxo, mas o comum do cidadão português, sem ter que pensar muito, entende aquilo que o escritor quer dizer. E é isso. É exatamente isso. É essa a razão mais profunda, e irresistível, do nacionalismo cultural português (Portugal universalista, um país de destino, um país que sendo pequeno é grande). Esse nacionalismo cultural é intuitivo e instantâneo. Naturalmente aceite, ele nem sequer é visto, ou racionalizado, como nacionalismo. E nós sabemos que uma ideologia, seja ela qual for, triunfa, ela verdadeiramente triunfa quando não é sentida como ideologia mas como senso comum. Ninguém pensa na composição química do ar que respiramos, limitamo-nos a respirar. O mesmo se passa com uma ideologia triunfante. E como os restos do império perdido, ela encontra-se em quase todo o lado. E este traço mental português é ainda mais peculiar porque coexiste com um outro nacionalismo que, ao nível das elites e da opinião pública, é resolutamente rejeitado: o nacionalismo étnico (identificado com a extrema-direita, marginal e eleitoralmente insignificante).15 Ao contrário da visão do mundo da Lusofonia que vê Portugal como enraizado em valores espirituais e culturais ligados ao expansionismo além-mar, este etnonacionalismo entende Portugal unicamente como algo enraizado num povo, dentro de um território físico e concreto. E qual é o mapa mental que guia estes etnonacionalistas? É a ideia-motora que Portugal está num período insuportável de decadência – perda de soberania e de identidade – causada pela globalização, por entidades supranacionais e por políticas “criminosas”, como a abertura de fronteiras, que minam e corrompem as raízes profundas do povo português. E tudo isto com a colaboração dos políticos, traidores da pátria. Este é o diagnóstico. Qual a cura? O renascimento da nação exige a homogeneização étnica no território original onde ao longo dos séculos a comunidade “indígena” se formou – e daqui surgem ideais de pureza e a rejeição de elementos “estranhos” e subversores da autêntica cultura e etnia lusitanas (políticas anti-imigração, encerramento das fronteiras, rejeição de organizações transnacionais). Este nacionalismo étnico representa o “Portugal que não se mistura” – e defende esse Portugal. E este nacionalismo étnico trava uma batalha desigual, e condenada a partida, contra o nacionalismo cultural da Lusofonia, promovido de várias maneiras

13

Sobral, 2012:93.

14

Antunes, 2008: 18.

15

Ver Zúquete 2013; Marchi 2010.

|  85

nacionalismos e política externa portuguesa...

pelo Estado português, pela sociedade civil, pela comunicação social. E esse nacionalismo cultural tem como símbolo o “Portugal que sempre se misturou”. É que a Lusofonia é uma corrente transversal à sociedade portuguesa. Ela não se identifica primariamente com nenhuma corrente ideológica, nem com nenhuma força política. Ela existe para além de uma simples divisão entre Direita e Esquerda. Mas supera essa divisão. E isso é claramente visível nas políticas dos governos portugueses desde o final do século XX. E é também a partir dessa altura que a Lusofonia é definida como uma “prioridade” da política externa portuguesa.16 A Lusofonia navega num mar comum às principais correntes dominantes, mainstream, respeitáveis, da sociedade portuguesa.

Figura 1: “Um dos muitos exemplos de promoção da Lusofonia no século XXI”.

16

86 |

Ver, por exemplo, Portas, 2011.

josé pedro zúquete

A “maneira portuguesa” de ver o mundo E reparem: não é um acaso que seja exatamente neste período histórico que se dê um impulso decisivo para a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, em 1996. Independentemente das motivações utilitárias, pragmáticas e comerciais que estiveram também na sua origem, há algo mais profundo subjacente ao interesse português. O documento fundador descreve estes países como partilhando uma “identidade única” reforçada por uma língua que difunde globalmente os seus valores culturais de uma forma aberta e “universalista”.17 António Pinto Ribeiro, ministro da Cultura num dos governos socialistas, revela esse lado mais intercultural e espiritual da empresa, quando afirma [e eu cito] “politicamente a miscigenação é o futuro. Ou seja, os indivíduos são os mesmos, mesmo que sejam diferentes, isso é aquilo que nós [portugueses] somos, isso é aquilo que nós [portugueses] fizemos. Entender isto é entender a CPLP”.18 Eu poderia dar outros exemplos de afirmações deste tipo na história recente, de cronistas, políticos, deputados ou governantes que revelam à exaustão esta narrativa de eleição que gira à volta da “forma portuguesa de estar no mundo”, do “modo de ser português”, invariavelmente visto como intercultural, ecuménico, humanista e cosmopolita – e a CPLP e a Lusofonia como manifestações, como frutos dessa “vocação” universalista, como um dia afirmou o então Ministro dos Negócios Estrangeiros português, José Manuel Durão Barroso.19 E pensem no seguinte: o debate sobre o acordo ortográfico e a procura de uma plataforma comum durou quase 100 anos, mas foi só a partir do final do século passado que o projeto avançou, levando à sua aprovação definitiva. Existiram críticas (e as críticas continuam, o debate apaixonado até aumentou nos últimos tempos, assim como os problemas de implementação do acordo), mas inicialmente houve um consenso generalizado em nível político.20 E isso tem um significado. Mais do que um simples retoque na linguagem, existe toda uma estratégia de poder por detrás, que vê no acordo um passo inicial necessário para o fortalecimento de um espaço geolinguístico e a implementação de uma estratégia cultural e política no mundo. Veja-se, e é apenas um exemplo, a posição da anterior presidente do Instituto Camões, Simonetta Luz Afonso – que descreve a língua como um “instrumento de poder”.21 E ninguém podia dar maior legitimidade a esta visão do que o próprio presidente da República, que vê no português, no âmbito da CPLP, “um instrumento essencial

17

CPLP 1996.

18

Lusa, 2008.

19

Barroso, 1995b: VIII.

20

Sobre este assunto ver Zúquete, 2008.

21

Afonso, 2008.

|  87

nacionalismos e política externa portuguesa...

para afirmar internacionalmente os nossos países e a nossa maneira de ver o mundo”. A língua é, assim, muito mais do que um instrumento de comunicação, a) ela contém valores, b) encerra uma visão lusófona, e c) é uma fonte de poder para a “nossa maneira de ver o mundo”.

O mar alto da lusofonia No Portugal de hoje nem todas as pessoas sentem o chamamento da Lusofonia da mesma maneira. Esta manifestação do nacionalismo cultural luso existe numa escala que contém diferentes níveis de intensidade, que vai desde a indiferença à efervescência. Nesta escala, a corrente de pensamento agregada ao Movimento Internacional Lusófono (MIL) encontra-se no topo. Este movimento, fundado em 2008, tem membros de todos os países da CPLP e muitos brasileiros, e tem como órgão principal a revista Nova Águia. Aqui, o imaginário lusófono surge em toda a sua intensidade e expansionismo; até abranger, para os militantes da Lusofonia redentora, o mundo inteiro. Como afirma o seu manifesto: “Portugal e a comunidade lusófona poderão ser uma espécie de pátria alternativa mundial, embrião dessa possível comunidade planetária futura cuja visão é tão presente na nossa tradição”. Assim, a Lusofonia representa um “serviço prestado a toda a humanidade”, levando, se se cumprir a sua promessa, a um “mundo novo”.22 Para os apóstolos da Lusofonia, o modelo de civilização superlativo que Portugal gerou em contacto com as ex-colónias, visto como sincrético, fraternal e harmónico, contém a chave ética e espiritual para pôr termo à globalização atual e desumana do materialismo, do egoísmo e do consumismo. Deste modo, a Lusofonia adquire os contornos e o conteúdo, para estes apoiantes, de uma globalização alternativa. Veja-se como esta ideia está presente, por exemplo, num livro de 2012 do filósofo português Miguel Real: Face à situação atual profundamente desequilibrada entre os continentes, esvaziadora da esperança; face ao alto grau de conflitualidade política e religiosa existente; face a um sistema económico mundial assente na exploração intensa das grandes massas e na especulação financeira, a novel comunidade lusófona, a existir como comunidade, deverá provocar uma espécie de choque cultural radicalmente subversor dos valores dominantes no mundo contemporâneo.23

22

Nova Águia, 2008.

23

Real, 2012: 137.

88 |

josé pedro zúquete

Ou seja, a criação de um “bloco civilizacional lusófono” – que constitua “um exemplo para os outros povos do mundo” e que sirva de contrapeso ao falhanço do modelo “anglo-saxónico de civilização”.24 De acordo com esta visão, a convergência dos países da Lusofonia deve ser absoluta e englobar todas as áreas, incluindo, decisivamente, a convergência política. Por isso, o MIL defende propostas como a refundação da CPLP como União Lusófona, a criação de um parlamento lusófono, um passaporte lusófono, ou uma força lusófona de manutenção de paz. E este movimento, embora pouco conhecido, não é insignificante. Tem uma intensa atividade cultural, e o apoio de figuras como Mário Soares, Adriano Moreira, Fernando Nobre ou Ximenes Belo. De qualquer forma, esta representa apenas uma demonstração mais exuberante, mais efervescente, de um credo lusófono que, como já foi referido, está muito bem representado, também noutros sectores. E esse credo tem a alimentá-lo a ideia, que é expressa de forma explícita ou implícita, de que o destino de Portugal se cumpra através da Lusofonia.

A longa travessia Mas a marcha da Lusofonia no século XXI, não obstante os desejos, realistas ou irrealistas, tem a percorrer um longo caminho, árduo e potencialmente tortuoso. − A começar pela terminologia, pois o termo “luso” gera desconforto, visto que ao remeter especificamente para a origem portuguesa, corre o risco, para os opositores, de legitimar uma visão hierárquica de um projeto que deveria ser horizontal, pois engloba as experiências de vários países. Não é de admirar, portanto, que em certos meios académicos, nomeadamente anglo-saxónicos, se evite a palavra “lusofonia”, e o seu uso é visto como politicamente incorreto. Além disso, muitos habitantes de países oficiais de língua portuguesa, nomeadamente em África, não falam a língua, o que coloca entraves à sua designação como lusófonos. Esta realidade, contudo, está a ser gradualmente alterada e nesses países são cada vez mais os falantes da língua. − Mas o que é um facto é que, quer em Portugal, quer noutros pontos do espaço lusófono, muitos críticos veem na Lusofonia pouco mais do que uma “ideologia colonial revitalizada”, uma mera ferramenta ideológica para manter o papel civilizador do ex-colonizador na época contemporânea. Em Portugal, Alfredo Margarido escreveu um pequeno texto, no ano 2000, sobre a Lusofonia

24

Epifânio, 2010: 116-17.

|  89

nacionalismos e política externa portuguesa...

como um “novo mito português”. E é esse o seu argumento principal, ou seja, a Lusofonia seria uma tentativa desesperada de recuperar o império.25 Aliás, este é um discurso muito utilizado em África, contra Portugal, quando surgem divergências diplomáticas. O Jornal de Angola, por exemplo, é incansável na denúncia do que chama de “neocolonialismo” luso cada vez que as posições dos governos ou da justiça portuguesa não agradam ao status quo angolano.26 Mas logo em 1978, Samora Machel, então Presidente de Moçambique, numa cerimónia da Organização de Unidade Africana (OUA), alertava: “os colonizadores utilizam agora para nos dividir conceitos como francofonia, anglofonia, e até mesmo a lusofonia”.27 Embora, no caso da CPLP, e ao contrário das outras duas organizações (como a Commonwealth – 1949; e a Francofonia – 1970), a sua criação não foi logo imediata ao fim das colónias (isso só aconteceu mais de 20 anos depois). Esta questão deve ser problematizada, e não deve haver uma generalização. Ao longo do tempo, muitos devotos da Lusofonia e de projetos de constituição de uma comunidade afro-luso-brasileira não eram portugueses de nacionalidade. Veja-se, apenas e só a título de exemplo, a figura do ex-presidente do Senegal, Leopold Senghor, nos anos 70, um dos primeiros a falar explicitamente em Lusofonia e na importância do “grande desígnio de um humanismo lusófono e moderno”.28 E alguns dos maiores mentores e impulsionadores da criação da CPLP são brasileiros (como, por exemplo, o embaixador José Aparecido de Oliveira). O prémio da CPLP (instituído em 2014) para as personalidades lusófonas de destaque, tem, aliás, o nome do político mineiro brasileiro. De qualquer forma, tem que haver alguma precaução quanto à ideia de que a Lusofonia é inevitavelmente apenas e só uma “ideologia colonial” portuguesa. Pelo menos deve reconhecer-se que ela engloba uma realidade histórica viva e complexa, com múltiplos contributos, e que por isso não pode ser vista de uma forma simplista e redutora. A título de curiosidade: Durão Barroso, como Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, nos anos 90, sentia sempre a necessidade de afirmar em público que a CPLP era uma “proposta brasileira” que os portugueses tinham aceite.29 Exatamente nesta perspectiva de “fugir” da acusação de neocolonialismo. − Mas o expansionismo lusófono debate-se com um outro grande obstáculo. É certo que o Brasil, pelo seu peso demográfico e crescente poderio económico, político e cultural, assume-se, naturalmente, como a força propulsora da Lusofonia na atualidade. E esse papel de líder é reconhecido, e até esperado, 25

Margarido, 2000.

26

Por exemplo, Jornal de Angola, 2013.

27

Jornal Novo, 1978: 20.

28

Flama, 1975.

29

Barroso, 1995a: 80.

90 |

josé pedro zúquete

pelos defensores do projeto. Assim, António Monteiro, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros (2004-5), deu voz a esta realidade afirmando, em 2010, “Temos uma língua que tem poder a escala mundial e esse poder é o Brasil”. 30 Se há uma palavra que define as relações luso-brasileiras é a palavra “lirismo”, ou o discurso grandiloquente da “boa vontade”, das “raízes comuns”, da “união fraternal”, etc. Desde cedo que foi assim, mesmo que, e também desde cedo, no nível intelectual certas vozes apregoem que o mal de origem do Brasil advém da lusitanidade. 31 Mas esse lirismo, essa política romântica das intenções, é como que um fio condutor que atravessa todos os regimes dos dois lados do Atlântico. As intenções estão bem presentes ao longo do século XX e, nos anos 40, o Presidente Getúlio Vargas teve uma afirmação que teve grande repercussão na mídia portuguesa da época: “nada do que acontece no Brasil pode ser indiferente a Portugal, da mesma forma que nada que diga respeito a Portugal pode ser indiferente ao Brasil”. 32 A primeira parte da equação, hoje em dia, até faz sentido. A cultura popular brasileira, do entretenimento à música, penetrou claramente a sociedade portuguesa. E até na comunicação social seguem-se as eleições brasileiras com interesse. Mais problemática é a parte que respeita ao “Portugal no Brasil”. Existe um enorme desconhecimento, no nível das massas, do que se passa ou produz em Portugal. A indiferença é a norma. E essa realidade choca com o que tem proclamado, ao longo dos tempos, a classe política brasileira. Como o presidente eleito Tancredo Neves que, na sua visita a Portugal em 1985, no seu discurso à Assembleia da República, afirmou o seguinte: “Não existe hoje um só brasileiro que ao acordar não tenha dois pensamentos: um voltado para Deus, e outro para Portugal.”33 E de uma forma ou doutra, com mais ou menos floreados, este discurso mantém-se ao longo dos tempos, e dos dois lados do Atlântico. A Lusofonia será tanto mais forte quanto maior for o empenho do Brasil: é esta a lógica. Mas essa intenção esbarra com uma política externa brasileira que se rege, como tantas outras, pelo realismo e os tais “interesses egoístas” noutros espaços, e mercados, não lusófonos (como, por exemplo, o Mercosul ou os BRICS). É comum ouvir dizer-se que, desde o início do século, o empenho brasileiro na Lusofonia tem sido mais visível. Mas resta saber se alguma vez será suficiente. Porque, e sem lirismos, o realismo diz-nos que a Lusofonia será tanto mais forte quanto maior for a consciência do Brasil de que pode lucrar com ela, numa perspectiva de interesse próprio. E, até o momento, esse interesse parece ser mais propagandeado do que realmente efetivado.

30

Notícias Lusófonas, 2010.

31

Ver, por exemplo, Paredes, 2011.

32

O Globo, 1942.

33

Correio da Manhã, 1985.

|  91

nacionalismos e política externa portuguesa...

− Para complicar a imagem, talvez pueril, que se tem da Lusofonia (e, por conseguinte, da CPLP) como primariamente uma comunidade de valores, assente na língua e na defesa de um património imaterial e histórico comum, acelerou-se a tendência (e o perigo, para alguns) da sua transformação, ou mutação, para uma espécie de clube de negócios. A adesão à CPLP, e a integração no Bloco Lusófono, em julho de 2014, na décima cimeira da organização em Timor- Leste, da Guiné Equatorial (o que aumentou para nove o número de estados-membros), um país que só marginalmente comunga desse imaginário histórico e cultural, mas que acrescenta, contudo, um peso energético e petrolífero importante à comunidade, simboliza esse reforço cada vez maior daquilo que o Primeiro-Ministro Português Pedro Passos Coelho chamou de “lusofonia económica” e “lusofonia energética”.34 Mesmo que a população do novo estado- membro não fale a língua (apressadamente reconhecida como “oficial”) ou que o seu executivo ditatorial não partilhe dos valores humanistas que estão na base da CPLP e que, supostamente, distinguem a ação “ecuménica” e “universalista” da experiência portuguesa no mundo. Talvez por isso, e mesmo com essa atração irresistível pelos benefícios económicos, Portugal tenha sido o último país a aceitar, relutantemente, ao fim de um processo que durou anos, e sob pressão dos outros estados-membros (como o Brasil e Angola), a entrada do novo estado africano na organização.35 − Finalmente, é difícil não ter consciência do elitismo de muitas destas dinâmicas associadas à Lusofonia. Embora ela assente na língua, que é “democraticamente” partilhada por todos, com sotaque ou não, os projetos a ela associados correspondem muitas vezes a interesses, desejos e sonhos de elites políticas, elites económicas e, sobretudo (embora a sua influência possa estar a desvanecer-se), de elites culturais. Pelo meio, existe um enorme desconhecimento e desprendimento popular, relativamente à construção da Lusofonia como uma via possível para um futuro comum e integrado de todos os países de língua portuguesa. Pode até dizer-se que existe um “deficit democrático” nesse sentido. Em suma, talvez o mais inultrapassável dos obstáculos seja o de sentir que a realidade é sempre a maior madrasta do lirismo dos poetas, dos sonhos dos pregadores, e dos projetos grandiosos de políticos desprevenidos.

34

Lusa, 2014.

35

Sobre este tem ver, por exemplo, Público, 2014.

92 |

josé pedro zúquete

Em busca de um imaginário global Independentemente destas considerações, e até como forma de conclusão, o que é certo é que este debate sobre a Lusofonia pode levar-nos a uma discussão mais académica, ou conceptual, se quisermos. Sobre nacionalismo: por exemplo, relativamente a conceitos que tem sido usados mais recentemente, exatamente devido à intensificação dos processos da globalização, como o de “nacionalismo cosmopolita”. Ou seja, a ascensão no mundo de um nacionalismo mais aberto, inclusivo e que tem o globo como referência; uma reorientação do nacionalismo para fins mais transnacionais. Isso pode ter um fundo de verdade no caso da Lusofonia mesmo que as raízes portuguesas desta crença lusófona estejam bem presentes. Embora o objectivo final possa ser um projeto global transnacional e transcontinental, ele está ligado culturalmente e espiritualmente à identidade nacional portuguesa. Embora, como já foi dito, a Lusofonia não deva ser reduzida apenas a essas origens, não é de estranhar que seja exatamente em Portugal que o apelo da Lusofonia tenha maior sucesso, e que continue a ser um conceito mobilizador, quer através do Estado, quer através da sociedade civil. De qualquer forma, o imaginário lusófono é um imaginário global, ou seja, tem um sentido do global, que parte do nacional, e que ajuda também a moldá-lo. 36 O sociólogo Manfred Steger diz mesmo que esse é o caminho das novas ideologias. Elas já não vão ser mais apenas nacionais, mas cada vez mais têm o globo como referência (veremos se será mesmo assim). 37 De qualquer forma, este imaginário lusófono enquadra-se bem nesta discussão de imaginários. Mas este debate sobre a Lusofonia pode gerar uma incursão pela geopolítica. Porque a própria geopolítica da Lusofonia (a chamada “Lusofonia global”), esse ideal de criação de um bloco linguístico, unido por uma língua e valores comuns, e portanto um bloco potencialmente geopolítico, pode ser entendida como parte de um mundo multipolar em construção. Ou seja, pode ser enquadrado num discurso contra-hegemónico, uma afirmação de diversidade e distinção (neste caso dos países de língua portuguesa), no seio das dinâmicas de uniformização da globalização dominante. Esta tentativa de afirmação de um espaço lusófono, com todos os seus defeitos de origem, seria, simultaneamente, uma resistência à globalização atual, e uma tentativa de a superar através de um projeto transnacional diverso e autónomo. Dessa forma, e tirando partido dos processos da globalização (da compressão do tempo e do espaço), a Lusofonia seria um exemplo do aparecimento de “novas formas de comunidade política,” e “novas visões de uma política integrada,” que refletem “comunidades de consciência

36

Ver por exemplo, Rodrigues, 2008.

37

Steger, 2009.

|  93

nacionalismos e política externa portuguesa...

transnacionais,”38 assentes em novas formas de mobilização que ultrapassam as fronteiras nacionais e reconfiguram as identidades nacionais. Talvez estes sejam novos caminhos que se esperam redentores para Portugal, 40 anos depois da outra luz redentora, a do 25 de Abril de 1974.

Referências AFONSO, Simonetta Luz. Entrevista em Expresso, 25 de abril, 2008. ANTUNES, António Lobo. Mais dois, três livros e pararei. JL – Jornal de Letras e Ideias, ano XXVI, n.º 941, 25 de outubro, p. 18, 2008. BARROSO, José Manuel Durão. A Política Externa Portuguesa; Seleção de discursos, conferências e entrevistas do Ministro dos Negócios Estrangeiros (1994-1995), Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1995a. BARROSO. José Manuel Durão. Cooperação Portuguesa. Portugal: Dez anos de Política de Cooperação, Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1995b. CLEMENTE, D. Manuel. Há uma desmesura que nos explica como portugueses. Ípsilon, 25 de setembro, p. 31, 2009. COELHO, Pedro Passos. Discurso de Posse como Primeiro-Ministro de Portugal, Lisboa, 24 de junho, 2011. CORREIO DA MANHÃ. Brasileiros acordam a pensar em Portugal, 29 de janeiro, p. 20, 1985. CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Declaração Constitutiva. Disponível em: http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/OI/CPLP/CPLP-D-Constitutiva_e_estatutos.htm, 1996. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Edição Especial: Como o nosso futuro vai voltar a passar pelo mar, 10 de junho, 2012. EPIFÂNIO, Renato. A Via Lusófona: Um Novo Horizonte para Portugal. Sintra: Zéfiro, 2010. EUROBARÓMETRO. Standard 80/Outono. Relatório Nacional: Portugal, 2013. ______. Standard/83. Relatório Nacional: Portugal, 2015. FERREIRA, José Medeiros. Elementos para uma política externa do Portugal contemporâneo. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1976. FLAMA. Primeiro estadista Africano a visitar Portugal, janeiro, pp. 18-21, 1975. GOODMAN, James. Reflexive Solidarities. In: GOODMAN, James; JAMES, Paul (Org.). Nationalism and Global Solidarities. London: Routledge, 2007, pp. 187-204. ORTIZ, Fabíola. O que restou da revolução dos cravos. História Viva, junho, pp. 42-45, 2014. JORNAL DE ANGOLA. Adeus Lusofonia, 21 de outubro. Disponível em: http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/editorial/adeus_lusofonia, 2013. JORNAL NOVO. “Samora Machel na OUA: ‘Colonizadores utilizam agora a lusofonia’”, 20 de julho, p. 20, 1978.

38

94 |

Goodman, 2007

josé pedro zúquete LOPES, Ernâni Rodrigues. A Lusofonia - Uma Questão Estratégica Fundamental, Lisboa: Jornal Sol, 2011. LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português, Lisboa, Public. D. Quixote, 1988. LUSA. Pinto Ribeiro anuncia estudo sobre valor económico da língua portuguesa, Lusa – Agência de Notícias de Portugal, 10 de junho, 2008. LUSA. PM/Timor-Leste: Passos confiante no potencial da ‘lusofonia económica’ e ‘lusofonia energética’, 24 de julho, 2014. MARCHI, Riccardo. Il Partido Nacional Renovador: La nuova estrema destra portoghese. Trasgressioni: Rivista Quadrimestrale di Cultura Politica, 50, Anno XXV, n. 1-2, GennaioAgosto, pp. 57-80, 2010. MARGARIDO, Alfredo. A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses. Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000. NOTÍCIAS LUSÓFONAS. “Não há donos da língua”, afirma o embaixador António Monteiro, ex-ministro português dos Negócios Estrangeiros”, 24 de março. Disponível em: http://www. noticiaslusofonas.com/view.php?load=arcview&article=25839&catogory=Manchete, 2010. NOVA ÁGUIA. Manifesto Nova Águia. In: Nova Águia: Revista de Cultura para o Século XXI, n.º 1, I semestre, pp. 7-13, 2008. O GLOBO. A imprensa de Portugal e as palavras do Sr. Getúlio Vargas, 9 de setembro, 1942. PAREDES, Marçal de Menezes. A Ibéria como mal-de-origem: Organicismo e tribunal da História em Manoel Bomfim. In: PAREDES, Marçal de Menezes; ARMANI, Carlos Henrique; AREND, Hugo (Org.). História das Ideias: Proposições, Debates e Perspectivas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. pp. 205-234. PORTAS, Paulo. Entrevista. In: Expresso, 24 de setembro, 2011. PÚBLICO. “Como Obiang isolou Portugal e fez xeque-mate em Fevereiro”, 6 de julho. Disponível em: http://www.publico.pt/mundo/noticia/obiang-isolou-portugal-e-fez-xequemate-em-fevereiro-1661688, 2014. REAL, Miguel. A Vocação Histórica de Portugal. Lisboa: Esfera do Caos, 2012. RELVAS, Miguel. Miguel Relvas elogia ‘juventude bem preparada’ que emigra. In: Lusa, 7 de janeiro, 2012. RODRIGUES, Miguel Jasmins (org.). Futuro e História da Lusofonia Global. Lisboa, IICT, 2008. SILVA, Aníbal Cavaco. In: VII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP. Centro Cultural de Belém, 25 de julho, 2008. SOBRAL, José Manuel. Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012. STEGER, Manfred. Political Ideologies and Social Imaginaries in the Global Age. Global Justice: Theory Practice Rhetoric, 2, pp. 1-17, 2009.

|  95

nacionalismos e política externa portuguesa... ZÚQUETE, José Pedro. Beyond reform: the orthographic accord and the future of the Portuguese language. South European Society & Politics, 13 (4), pp. 495-506, 2008. ______. Conclusion. Between Land and Sea: Portugal’s Two Nationalisms in the Twenty-First Century. In: MANUEL, Paul Christopher; LYON, Alynna e WILCOX, Clyde (Org.). Religion and Politics in a Global Society Comparative Perspectives from the Portuguese-Speaking World. Lanham: Lexington Books, pp. 205-226, 2013.

96 |

Nacionalismos e Impérios: o caso da Itália fascista João Fábio Bertonha Universidade Estadual de Maringá

Introdução A concepção de mundo dos fascismos implica a presença do nacionalismo e do imperialismo. Composições, acordos e revisões são e eram sempre possíveis, mas um fascismo com tons cosmopolitas ou pacifistas seria uma contradição em termos, praticamente negando o modelo. A grande questão é definir melhor esses termos. O nacionalismo é uma ideologia com múltiplos significados, indo desde uma visão de luta por direitos de cidadania (como em Mazzini ou Garibaldi), até um patriotismo mais ou menos inofensivo, passando por visões mais ou menos excludentes, centradas na economia ou na cultura. É possível, assim, ser nacionalista sendo democrata ou não, de direita ou de esquerda, conservador ou revolucionário. Tudo depende de que nacionalismo se está falando. No caso dos fascismos, o que temos, em geral, é uma concepção excludente de Nação, que identifica claramente o “nós”e o “eles” a partir de elementos nacionais ou raciais e concebe um “outro” como um inimigo a ser destruído. E esse “outro” não é apenas externo, mas também interno, a ser combatido através da reorganização completa da sociedade em novos termos, corporativistas, com partido único, etc. Dessa forma, dizer que os fascismos eram nacionalistas é repetir o óbvio, sendo fundamental esclarecer qual o tipo de nacionalismo de que estamos falando. Sobre o imperialismo, a mesma questão se apresenta. Não é possível ser fascista sem uma perspectiva imperial, mas as tradições históricas, a geopolítica e as prioridades condicionavam cada tipo de imperialismo e é conveniente, para a precisão histórica, entender as várias possibilidades de imperialismo dentro do universo dos fascismos e da extrema-direita como um todo. |  97

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Para tanto, esse artigo trabalhará a questão do imperialismo na Itália fascista. Inicialmente, procurarei apresentar a questão do imperialismo na ideologia fascista e sua importância no seu projeto de renovação da Itália na perspectiva do regime. Posto isso, abordarei os vários mecanismos, diretos e indiretos, com que a Itália de Mussolini tentou exercer seu imperialismo no período entre as duas guerras mundiais e como tais mecanismos se articularam num todo contraditório, mas não totalmente incoerente. Por fim, farei uma abordagem geral a respeito da noção de Império dentro da Itália fascista, comparando-a com a outra perspectiva central do universo do fascismo, a nazista.

Império e imperialismo na Itália fascista Os historiadores italianos debatem intensamente, há décadas, a respeito das diferenças e continuidades entre a política imperial praticada pelo Estado italiano na era liberal e durante o regime fascista. Sem querer entrar nesse debate, já abordado por mim em outras ocasiões1, é possível perceber como há uma diferença significativa entre o imperialismo promovido pelo regime fascista e aquele liberal e, mais especialmente, entre o imperialismo liberal e aquele promovido pelo regime na década de 1930, sendo a de 1920 um momento de transição. Realmente, na sua primeira década no poder, ou seja, entre 1922 e 1932, o fascismo manteve algumas das estratégias e padrões que haviam caracterizado a política externa italiana no período liberal, como o equilibrismo entre as grandes potências, a amizade com a Grã-Bretanha, a ênfase das ambições italianas no Mediterrâneo e no Adriático, certa moderação, etc. Para os observadores externos parecia que o fascismo, apesar da retórica nacionalista, não mudara em essência a tradicional política externa italiana e, de fato, não o fez. Durante a sua primeira década no poder, assim, o imperialismo fascista, apesar da sua retórica, não se afastou muito do padrão anterior. Já na década de 1930, por motivos tanto de ordem interna como pela mudança do contexto internacional, o fascismo implantou uma política externa muito diferente da do período anterior, caracterizada por uma agressividade intensa, objetivos imperiais ainda mais amplos e rompimento da tradicional aliança com a Inglaterra. A Itália se tornou um país muito mais agressivo e ligou

BERTONHA, João Fábio. Os Italianos. São Paulo: Contexto, 2005, cap. 5; Um imperialismo dos pobres: O Império italiano da era liberal ao fascismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Impérios na História. Rio de Janeiro: Campus, 2009, p. 259-269; Entre Continuidade e ruptura. A Política Externa Fascista como um Problema Histórico e político. Contexto Internacional, v. 23, n. 2: 399-434, 2001. Ver também vários artigos meus sobre o imperialismo italiano e a “diplomacia paralela” de Mussolini reunidos em Sobre a direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá, Eduem, 2008. 1

98 |

joão fábio bertonha

claramente, a partir da metade da década, os seus destinos aos da Alemanha de Hitler. Um ponto que convém deixar claro é que o fascismo nunca renunciou ao uso do poder militar para construir seu Império, da forma mais clássica possível. O regime de Mussolini não hesitou em utilizar, quando pôde, as forças armadas para exercer poder e o fez em nada menos do que cinco guerras (reconquista da Líbia, Etiópia, Espanha, invasão da Albânia e a Segunda Guerra Mundial), de diferentes intensidades. Essa ênfase no poder militar e na sua utilização para a conquista do Império levou a imensos investimentos por parte de Roma. No período crítico do imperialismo fascista, entre 1934-1935 e 1939-1940, os gastos militares passaram de 4,75 a 27 bilhões de liras ao ano. O orçamento do Exército passou de 2,6 a 6,9 bilhões ao ano, o da Força Aérea de 810 milhões a 6,9 bilhões e o da Marinha de 1,3 para 5,2 bilhões. No seu auge, a despesa militar italiana se aproximava da britânica e ultrapassou a francesa, ao menos por algum tempo. A diferença no padrão de gastos militares italianos, que, entre 1911 e 1930, segue a média histórica de 4% do PIB de 1860 a 1945, mas sobe para 12% do PIB entre 1931 e 1940, confirma essa nova fase da política externa italiana, muito mais agressiva, na década de 1930 2 . Enquanto potência internacional, a necessidade de uma estratégia militar de longo prazo era evidente e essa surgiu, mas nunca se converteu em algo coerente e que tenha sido realmente posta em prática. A influência de Mussolini e dos objetivos políticos fascistas davam o norte para as forças armadas, mas, a partir daí, havia liberdade para o pensamento militar. Talvez até demais, pois o desinteresse de Mussolini pelo planejamento estratégico de longo prazo levou a uma subutilização dos recursos disponíveis e ao domínio, na sua elaboração, dos militares e seus interesses pessoais e corporativos. Mussolini, assim, nunca forçou as várias armas a formatarem uma Estratégia militar unificada. O Exército, por exemplo, permaneceu com a sua doutrina de “força nos números”, enquanto a Marinha e a Força Aérea não se articularam para uma projetada guerra contra a Inglaterra no Mediterrâneo, o que foi desastroso a partir de 1940. As forças armadas faziam planos operacionais, de forma isolada, mas sem articular-se para uma luta unificada contra um adversário claro. Os inimigos também variavam ao sabor das decisões de Mussolini e as necessidades operacionais oscilavam entre conter os alemães nos Alpes, invadir a península Balcânica ou destruir as frotas francesa e inglesa no Mediterrâneo, o que impedia o estabelecimento de prioridades. Por fim, como indicado, o fascismo deixou os interesses corporativos dos militares e da grande indústria atuarem sem MALLET, Robert. The Italian Navy and Fascist expansionism, 1935-1940. London: Frank Cass, 1998, p. 48 e 60; GOOCH, John. Mussolini e i suoi Generali. Forze Armate e politica estera fascista. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2011, p. 737. Para outros dados estatísticos e bibliografia sobre o tema, ver Bertonha, Os italianos, cap. 5. 2

|  99

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

maiores freios, o que levou a aquisições desnecessárias, inúteis ou redundantes e a escolhas desastrosas, como o não investimento em porta-aviões e em radar, inteligência naval de baixa qualidade, pouca autonomia tática para os oficiais, etc.3. Em última instância, é claro que o que levou o fascismo (e seu Império) à derrocada na Segunda Guerra Mundial foi a pequena base produtiva da indústria italiana, incapaz de manter um sistema militar adequado para uma guerra contra potências industriais como os Estados Unidos. A incompetência, a corrupção e a incapacidade do Estado em articular uma Estratégia nacional mais elaborada também tiveram, contudo, impacto. Nesse aspecto, cumpre ressaltar o trabalho de Fortunato Minniti, citado, o qual destaca que a Itália fascista teve uma grande estratégia, ou Estratégia Nacional, entre 1923 e 1940, quando se tornou um aliado menor do Reich. O regime era imperialista e militarista, mas também realista, identificando as fraquezas da Itália e que a guerra, apesar de instrumento e opção, poderia ser um potencial desastre para o país. Era através da ação política, diplomática e da “diplomacia paralela” que o poder italiano se manifestaria e que o país obteria reconhecimento como grande potência, o que de fato aconteceu. Minniti chega a concluir que a própria relutância da Itália pela guerra (a não ser quando parecia sem riscos) era, em boa medida, reflexo do receio de que um insucesso faria esse reconhecimento desaparecer, o que, novamente, acabou por acontecer. John Gooch, citado, também compartilha dessa avaliação, ou seja, que o imperialismo fascista era agressivo por natureza, mas que era também realista, tanto que, quando não havia condições internas ou externas para aventuras, o regime se conteve, pois sabia de seus limites militares, sendo 1940 o maior equívoco nesse sentido. Ele também ressalta como o estamento militar, o responsável pela Estratégia militar do país, também falhou enquanto instituição. De qualquer modo, o mais importante a reter aqui é que, por mais que o imperialismo fascista italiano desejasse, até por suas convicções ideológicas próprias e pela tradição imperial europeia, atuar de forma direta e conquistar o Império que lhe parecia de direito e se preparasse para isso dentro de suas possibilidades, as condições práticas não o permitiam. Isso levou a abordagens mais sutis e que hoje chamaríamos, para usar termos conhecidos da teoria das relações internacionais, soft power. Em outras palavras, o imperialismo mais tradicional, hard power, foi suplementado, no caso italiano, pela diplomacia tradicional e por um tipo de imperialismo mais sutil, por uma “diplomacia paralela”, de base expressivamente subversiva e ideológica. Essa “diplomacia paralela” foi pensada, em alguns casos, como suplementar à ação imperialista mais tradicional da Itália e, em MALLETT, Robert. The Italian Navy; CEVA, Lucio. The Strategy of Italian Fascism: A Premise. In: MALLETT, Robert; SORENSEN, Gert. Internacional Fascism, 1919-1945. London: Frank Cass Publishers, 2002, p. 41-54; e MINNITI, Fortunato. Fino alla Guerra. Strategie e conflitto nella politica di potenza di Mussolini, 1923-1940. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000. 3

100 |

joão fábio bertonha

outros, como um substituto aos meios econômicos e militares que a Itália não dispunha no volume necessário para conseguir o que desejava. Um imperialismo paralelo, mais sutil, que se articulava com o tradicional ou o substituía, conforme o momento e a região do mundo. Dessa forma, a Itália mobilizou todos os recursos disponíveis para suprir a sua falta de recursos militares e econômicos. Alguns eram tradicionais e comuns à maioria dos países, como a formatação de laços econômicos ou financeiros, a venda de armamentos4 , o estabelecimento de relações diplomáticas de amizade e uma política cultural e de propaganda. O modelo fascista trazia, contudo, algumas novidades. A mobilização e o controle das colônias de italianos espalhadas pelo mundo, a ligação com os movimentos fascistas e com governos estrangeiros pelo viés ideológico, a formatação de uma propaganda cultural marcada pelos pressupostos ideológicos e os esforços de subversão da ordem interna de outros países foram os elementos centrais dessa “diplomacia paralela”, que existia ao lado da diplomacia oficial italiana. Vários desses elementos já eram pensados dentro da realidade geopolítica italiana desde antes do fascismo (como a propaganda cultural e a mobilização dos emigrantes) e vários outros países – democráticos ou não - também recorriam a esses elementos para ampliar seu poder internacional naqueles anos. Mesmo hoje, a política cultural ainda é parte da diplomacia da maioria dos Estados e mesmo de instituições como a União Europeia. Agir nas sombras na política interna de outros Estados e mobilizar os simpáticos e adeptos de uma dada ideologia em outros países também não era e nem é algo novo. O fascismo italiano, contudo, reelaborou estes elementos, associou-os ao pensamento imperialista tradicional e os ligou a uma concepção particular de Império, relacionada à tradicional, mas com aspectos novos. De qualquer forma, fica claro, aqui, como a Itália fascista buscava, em todo momento, não fugir do imperialismo tradicional, mas buscar métodos alternativos ou suplementares a ele, de forma que Roma pudesse atuar com mais eficiência no sistema imperialista global, ainda que os resultados finais, como é conhecido, não tenham sido dos melhores.

Os círculos do imperialismo fascista De extremo interesse para a nossa discussão é a ideia de “imperialismos concêntricos”. Segundo essa perspectiva, as elites diplomáticas e do Partido fascista italiano conceberam, com o tempo, uma ideia de um Império italiano a ser integrado por círculos concêntricos, com o centro formado pela Itália e com as camadas exteriores abrangendo quase todo o mundo.

SABA, Andrea Filippo. L´imperialismo opportunista. Politica estera italiana e industria degli armamenti (1919-1941). Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 2001. 4

|  101

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Dessa forma, haveria um núcleo, formado pela Itália e anexações (ilhas Jônias, Dalmácia, Eslovênia, Nice, Córsega, Savoia, etc.), além das colônias africanas (às quais seriam acrescentadas o Sudão, o Egito e a Tunísia), no qual o poder italiano seria absoluto. Num segundo nível, estariam os protetorados coloniais, como a Turquia, a Palestina, o Iêmen e outros, além de, provavelmente, as colônias remanescentes de França e Inglaterra, que deveriam ser mais permeáveis aos interesses italianos. No terceiro nível ou camada, por sua vez, estariam os protetorados da comunidade imperial na Europa (Grécia, Croácia, Montenegro, Sérvia, uma grande Albânia), no qual o poder italiano seria hegemônico, mas não total. No quarto nível, estariam Estados com forte ligação cultural e política com a Itália e ligados a ela pela raça, civilização e cultura: Bulgária, Romênia, Espanha, Portugal, Hungria e talvez a França. Esses Estados seriam independentes, mas girariam ao redor do eixo italiano. Numa quinta camada, estariam as áreas de influência além-mar, como os vários países da América Latina ou a China, nas quais se poderia esperar dependência e obediência, mas não dominação nem hegemonia. Por fim, na sexta camada, haveria locais como os Estados Unidos ou a Alemanha, onde a possibilidade de influência italiana seria diminuta, mas onde, mesmo assim, todos os meios indiretos de ação deveriam ser cultivados para garantir algum papel à Itália nesses núcleos de poder. É claro que nunca houve um consenso absoluto sobre quais Estados e regiões ficariam em qual camada e esse consenso não existe também entre os historiadores. A elaboração acima, por exemplo, é minha, não sendo igual às reflexões de outros historiadores que também trabalham o tema5. Parece evidente, igualmente, que os planos e sonhos italianos tiveram que se adaptar continuamente aos fatos reais, às vitórias (e, especialmente, às derrotas) das suas forças armadas. Mas é possível ver alguns padrões. Quanto mais perto do núcleo, mais o imperialismo fascista seria tradicional, a apelar à força para exercer a conquista e a dominação. Sinais de como seria a vida nessas regiões podem ser encontrados na brutalidade da ocupação italiana na Iugoslávia ou na Etiópia6.

RODOGNO, Davide. Il Nuovo Ordine mediterraneo. Le politiche di occupazione dell´Italia Fascista in Europa (1940-1943), Torino, Bollati Boringhieri, 2003. DELL´ERBA, Nunzio. L´idea di romanità durante il fascismo. Nuova Storia Contemporanea 13, 6 (2009), 33-60. CORNI, Gustavo. Imperio e spazio vitale nella visione e nella prassi delle dittature (1919-1945). Ricerche di storia politica, 9, 3 (2006), 345-57, e GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Ascesa e declino del mito della nazione nel Ventesimo Secolo, Milano, Mondadori, 1997. 5

Ver, entre outros, DOMINIONI, Matteo. I limiti dell´espansionismo fascista. Il fallimento dell´annessione della provincia di Lubiana. In: L´Annale Irsifar - Politiche di occupazione dell´Italia Fascista, Milano, Franco Angeli, 2008; p. 58-77; FOCARDI, Filippo, e KLINKHAMMER, Lutz. Italia potenza occupante: una nuova frontiera storiografica. In: Idem, p. 21-31; PIPITONE, Cristiana. Dall´Africa all´Europa: Pratiche italiane di occupazione militare. In: Idem, p. 31-42, e MICHELETTA, Luca. La resa dei conti. Il Kosovo, l´Italia e la dissoluzione della Iugoslavia (19391941), Roma, Edizioni Nuova Cultura, 2008. 6

102 |

joão fábio bertonha

Ao afastar-se dele, os métodos indiretos, como o apelo às populações de imigrantes, a solidariedade ideológica e a política cultural7 ganhariam importância, ainda que todos os elementos estivessem sempre presentes também nos outros níveis. Além disso, mesmo dentro de uma dada região geográfica, os interesses italianos, a presença de coletividades italianas mais ou menos próximas do fascismo, de movimentos fascistas locais ou a ação de outras potências estrangeiras também faziam a combinação dos elementos variar enormemente. O caso da América Latina é emblemático, com objetivos e combinações diferenciadas entre, por exemplo, o México e a Argentina ou a Bolívia e o Uruguai8. O mesmo pode ser dito da Europa oriental, cada vez mais bem estudada pela historiografia italiana9. Assim, não espanta como, apesar da manipulação das coletividades de imigrantes ou dos fascismos do exterior serem uma constante na política imperial italiana, em todos os níveis, na prática a situação variava enormemente. No caso de países situados na esfera imediata dos interesses imperiais italianos, por exemplo, o objetivo do governo fascista parece ter sido o de utilizar os emigrantes italianos e os fascistas locais como força de espionagem e quinta coluna, à espera da futura chegada das tropas italianas. Esse foi, sem dúvida, o caso da Tunísia, de Malta ou da Suíça. Já nos Estados Unidos, o uso dos emigrantes e das amizades políticas não podia deixar de ter objetivos bem mais modestos e tendo por instrumento central o poder eleitoral dos italianos10.

O tema da política cultural fascista para o exterior tem se revelado dos mais promissores na historiografia italiana e internacional nos últimos anos. Ver, por exemplo, LONGO, Gisella. L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura. Da Giovanni Gentile a Camillo Pellizzi (1925-1943), em GENTILE, Emilio. Gli Intellettuali tra partito e regime. Roma, Antonio Pellicani, 2000; CAVAROICCHI, Francesca. Avanguardie dello Spirito. Il fascismo e la propaganda culturale all’estero, Roma, Bulzoni, 2010; MÉNDEZ, Rubén Domínguez. La Política Cultural del fascismo en Espana (1922-1945). Sociabilidad, Propaganda y Proselitismo. Tese de doutorado em História, Universidad de Valladolid, 2011, e GARZARELLI, Benedetta. Parleremo al mondo intero. La propaganda del fascismo all´estero. Alessandria, Edizioni dell´Orso, 2004. 7

Para uma visão geral, ver SAVARINO, Franco. Apuntes sobre el fascismo italiano en América Latina (1922-1940). Reflejos (Revista de la Universidad Hebrea de Jerusalén), 9 (2001), p. 100-110; En busca de un “Eje” Latino: la política latinoamericana de Italia entre las dos guerras mundiales. Anuario del Centro de Estudios Históricos “Profesor Carlos Segreti”, 6, 6 (2006), p. 239-61, e Juego de ilusiones: Brasil, México y los ‘fascismos’ latinoamericanos frente al fascismo italiano. Historia Crítica, 37 (2009), p. 120-47. 8

OSTENC, Michel. La politica estera italiana e il concetto di Civiltà (1914-1943). Nuova Storia Contemporanea, 13, 3 (2009), p. 11-24; GODESA, B. Le autorità italiane di occupazione e gli intellettuali sloveni. Qualestoria, 27, 1 (1999), p. 133-170, e Penetrazione culturale in Europa Orientale, 1918-1939. Le grandi potenze occidentali in confronto. Passato e Presente, 56 (2002), p. 85-114, e SANTORO, Stefano. Panslavismo e latinità negli studi di “L´Europa Orientale”. Qualestoria, 27, 2 (1999), p. 55-70. Do mesmo autor, é fundamental L´Italia e l´Europa orientale. Diplomazia culturale e propaganda, 1918-1943, Milano. Franco Angeli, 2005. 9

Ver, apenas a título de exemplo de uma imensa bibliografia para o caso dos Estados Unidos, LUCONI, Stefano. La “Diplomazia Parallela”- Il regime Fascista e la mobilitazione politica degli italo-americani, Milano, Franco Angeli Editore, 2000. 10

|  103

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

A América Latina e o Brasil estariam, com certeza, nos círculos mais externos das ambições imperiais italianas, o que explica os limites dessas e também porque o recurso aos métodos indiretos foi mais intenso nesse continente do que em outros, conforme trabalhei em diversos outros textos11. É importante ressaltar novamente como não havia uma separação absoluta entre o imperialismo tradicional e o alternativo. As fronteiras entre um e outro eram móveis e sutis, podendo ser ultrapassadas de um lado ao outro sem dificuldades se as ocasiões o exigissem. Na Tunísia, por exemplo, depois de décadas de esforço de subversão por meio da cultura e da mobilização dos italianos locais, a conquista italiana acabou se dando, apesar de ser por pouco tempo, pela via militar, em conjunção com as tropas alemãs. A Europa oriental e balcânica também é um exemplo excelente disso. Nos anos 1930, havia um apelo aos valores culturais compartilhados, como a latinidade (no caso romeno, mas, de resto, aplicado também na América Latina e na Europa do sul), o catolicismo, etc. A Itália seria a herdeira romana nos Bálcãs, a dominar pela cultura e pela ascendência. Nessa região, os contatos com os emigrantes italianos, a difusão cultural e a busca de contato com os sacerdotes católicos e os movimentos fascistas locais foram intensificados e coordenados para permitir uma maior difusão da mensagem fascista12 . Na verdade, a política cultural fascista para a Europa Oriental não falhou, tendo tido excelente repercussão entre as elites da região. Os mitos da latinidade, da romanidade e os ideais do corporativismo e da Itália como alternativa ao nazismo tinham repercussão na região e eram bem vistos. A diplomacia cultural só não teve os resultados previstos em termos de influência e poder porque não foi associada a uma força econômica e militar adequada e, pelo contrário, foi anulada pelo domínio alemão nestes aspectos, especialmente nos anos 1940. Se, nesse caso, o fascismo preferiu não cruzar a fronteira para um imperialismo tradicional, frente ao esmagador poder alemão, em outros momentos isso aconteceu. Na Eslovênia, por exemplo, em 1941, depois de uma tentativa de cooptar os intelectuais locais e convencer os eslovenos das vantagens da associação à Itália, Roma preferiu usar o método direto da anexação13 .

Ver mais detalhes nos meus “¿Un imperio italiano en América Latina? Inmigrantes, fascistas y la política externa “paralela” de Mussolini”. In: SAVARINO, Franco e GONZÁLEZ, José Luis. México. Escenario de confrontaciones, México, ENAH, 2010, p. 161-188, e Los fascismos en América Latina. Ecos europeos y valores nacionales en una perspectiva comparada. In: SAVARINO, Franco e BERTONHA, João Fábio. El fascismo en Brasil y en América Latina. Ecos europeos y desarrollos autóctonos. México, DF, ENAH, 2013, pp. 31-66 e La “Diplomacia Paralela” de Mussolini en Brasil: Vínculos culturales, emigratorios y políticos en un proyecto de poder (1922-1943). Pasado y Memoria, nº. 11 (2012): 71-92.. 11

Além do já citado, ver BIANCHINI, Stefano. L´idea fascista dell´Impero nell´area danubiano-balcanica. In: DI NOLFO, Ennio. L’Italia e la politica di potenza in Europa (1938-1940). Milano: Marzorati, 1988, pp. 173-86. 12

BURGWYN, H. James. L´Impero sull´Adriatico. Mussolini e la conquista della Jugoslavia, 19411943. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2006. 13

104 |

joão fábio bertonha

Nas colônias africanas, a Itália agiu de forma semelhante a outras potências coloniais, alternando repressão e cooptação. Setores do Partito Nazionale Fascista, contudo, propuseram, por alguns anos, que as populações coloniais fossem incorporadas ao projeto imperial fascista sem que isso se resumisse a uma simples submissão. Houve ideias de conceder uma cidadania parcial aos líbios ou de colocar jovens da Líbia em organizações fascistas. Tais iniciativas foram aplicadas em parte na Líbia, mas não foram adiante, pois era impensável associar um povo dominado, o líbio, com os conquistadores italianos. Já na Etiópia, as iniciativas fascistas se limitaram, em essência, a tentar recrutar o máximo de soldados locais para o Exército colonial14 . Isso indica como as ideias de “imperialismo indireto” eram, essencialmente, voltadas para os locais onde o fascismo dispunha de menos poder direto e/ou na Europa. Outro exemplo nesse sentido é a presença de vários teóricos e diplomatas fascistas que pensaram a questão dos emigrantes, da cultura e dos vínculos ideológicos como um fator de potência italiana atuando como governadores militares em regiões ocupadas da Grécia ou da Dalmácia. Serafino Mazzolini, por exemplo, foi um grande operador da “diplomacia paralela” de Mussolini em São Paulo e Montevidéu, para depois se converter em figura-chave do imperialismo fascista no Egito e governador do Montenegro ocupado. O mesmo pode ser dito de Amedeo Mammalella, cônsul em Curitiba e depois em Sydney, o qual terminou sua carreira como cônsul em Dubrovnik, preocupado com a hipótese de que o Império Austro-Húngaro pudesse ser reconstruído15. Já Giuseppe Bastianini foi um homem-chave na direção e desenvolvimento dos fasci all´estero (instrumento para a difusão do fascismo entre os italianos do Exterior) por toda a década de 1920 e 1930, para depois se tornar governador da Dalmácia, onde implantou a política de italianização forçada dos habitantes16 . Para homens como esses, e muitos outros, a fusão das várias maneiras de ser imperial se dava em carne e osso e a transição entre níveis era quase natural, conforme as circunstâncias. GOGLIA, Luigi. Sulle Organizzazioni Fasciste Indigene Nelle Colonie Africane Dell´Italia. In: DI FEBO, Giuliana e MORO, Renato. Fascismo e Franchismo. Relazioni, Immagini, Rappresentazioni. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2005, pp. 173-212. 14

15

RODOGNO, Davide. Il Nuovo Ordine mediterraneo, p. 63.

Sobre esses cônsules, ver, entre outros, BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os Imigrantes Italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001; ODDONE, Juan. Serafino Mazzolini: Un Misionero del Fascismo en Uruguay, 1933-1937. Estudios Migratorios Latinoamericanos 12, no. 37 (1997): 375-87; PAPINI, M. Serafino Mazzolini: Un Diplomatico a Salò. Storia e Problemi Contemporanei 18, no. 39 (2005): 61-84; ROSSI, Gianni Scipione. Mussolini E Il Diplomatico. La Vita E I Diari Di Serafino Mazzolini, Un Monarchico a Salò. Rubbettino: Soveria Mannelli, 2005; SCARANTINO, Anna. La Comunità Ebraica in Egitto Fra Le Due Guerre Mondiali. Storia Contemporanea 17, no. 6 (1986): 1033-82; CRESCIANI, Gianfranco. A Not So Brutal Friendship: Italians Responses to National Socialism in Australia. AltreItalie - Rivista Internazionale di studi sulle popolazioni di origine italiana nel mondo (2007); BASTIANINI, Giuseppe. Gli Italiani All’estero. Milano: Mondadori, 1939 e CATTARUZZA, Camila. L’italia E Il Confine Orientale, 1866-2006. Bologna: Il Mulino, 2007. 16

|  105

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

Isso não significa afirmar que havia uma perfeita sintonia entre as várias partes desse sistema. Os vários órgãos e personalidades do regime divergiam entre si sobre os caminhos a tomar e as oscilações táticas eram constantes. Do mesmo modo, se nem mesmo no tocante ao imperialismo tradicional o fascismo conseguiu elaborar uma Estratégia militar e de política externa coerente, articulando objetivos e meios, como indicado acima, como esperar que a Estratégia Nacional fascista, articulando seus vários modelos imperiais, o fosse? Não obstante, havia uma linha geral de atuação e tal linha se relacionava diretamente à dicotomia entre força e pretensões que a Itália atravessava naquele período. Todo fascismo é imperialista, mas, ao defrontar-se com a realidade material da Itália e com as suas tradições – também derivadas dessa realidade – de um imperialismo liberal mais focado no comércio e na cultura já desde antes do fascismo, este reelaborou a sua noção de Império, mas sem jamais abandonar a sua pretensão imperial. Sem o imperialismo, a noção de nacionalismo defendida pelo fascismo se tornaria algo vazio: sem um sonho imperial, não pode haver fascismo.

O imperialismo e o Império na ideologia fascista Emilio Gentile17 oferece uma interessante abordagem nesse aspecto. Ele indica como, na Itália liberal, havia pouco espaço para ideias de uma raça italiana e a concepção de Nação então vigente se fundava num passado comum e num destino comum. Uma vontade de um povo em se unir, mais do que um destino natural mediado pela natureza e destino. Não havia o mito da “raça italiana”, mas o mito negativo do “caráter dos italianos”, mal visto pelas elites e a ser modificado pelo uso do poder do Estado. Nesse mito nacional liberal, as imagens da Grande Itália e da nova Roma não deixavam de ter peso e levavam a sonhos e conquistas imperiais (como aconteceu na Eritreia ou Líbia) ou, ao menos, à concepção de que a Itália não devia ser uma potência inferior, como uma Bélgica ou uma Grécia. A noção geral que delimitava a ideia de Nação, contudo, era ainda a liberal, associando Nação com liberdade e modernidade, um espaço para que vivessem, em liberdade, todos os italianos, não importando a sua filiação política e religiosa ou as diferenças culturais. A uniformidade linguística, por exemplo, seria atingida pela ação escolar e pelo poder do Estado, mas de forma natural, pelo tempo, sem necessidade de reprimir as minorias dialetais, que sumiriam naturalmente com o tempo. Os socialistas, os católicos, os republicanos, os nacionalistas e outros não se reconheciam nesta Itália e propunham alternativas identitárias, especialmente nas duas primeiras décadas do século XX. Uma Itália definida pelo nacionalismo

GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Os parágrafos a seguir se baseiam nesse livro, especialmente nas pp. 46-153. 17

106 |

joão fábio bertonha

expansionista, como Nação orgânica e unida pela língua e cultura começou a ser uma versão com crescente força e popularidade. A descoberta do imperialismo teve um papel fundamental na transformação dessa Itália liberal e democrática para uma imperialista, que reformulou o conceito de Nação para algo mais exclusivista e restritivo. Mussolini reforçou esse processo, associando a Nação a uma ideologia, o fascismo. No nacionalismo fascista, assim, muitas (mas não todas) correntes do nacionalismo antiliberal anterior confluíram e formaram uma nova versão de Nação, que deveria ser una e com homogeneidade ideológica e cultural. Desapareceu também a identificação da Nação como pertencente a algo maior, a humanidade, em favor de uma nação voltada à política de potência e ao imperialismo. O nacionalismo fascista, contudo, teria tido várias fases. Primeiro, se pensou em “regenerar a estirpe itálica” (no início do movimento) e em “restaurar a nação” (nos primeiros anos de poder); depois surgiu a proposta de “regeneração totalitária da nação” (anos finais da década de 1920 e início da de 1930); a era da “civilização imperial” (entre a guerra da Etiópia e 1942) e a “guerra revolucionária” (durante a Repubblica Sociale Italiana). Esses conceitos e propostas conviveram na maior parte do tempo, mas sempre com alguns predominando e outros recuando conforme a época. O fascismo, na verdade, sempre identificou a regeneração da Nação ou da raça italianas com o expansionismo externo, ao mesmo tempo em que considerava tal regeneração como fundamental para sustentar a expansão externa. Qual dos polos predominava é uma questão sobre a qual os historiadores têm sempre debatido18 , mas a interação entre política externa e interna, entre concepção de Nação e de Império, era especialmente visível no regime de Mussolini. Nas fases finais do fascismo, especialmente, a sua doutrina começou, com efeito, a ir além da Nação. Ele regeneraria ou criaria a mesma e partiria para o destino imperial, até como forma de garantir essa regeneração. Haveria, contudo, outro passo a seguir, dentro de uma missão civilizadora, mundial, revolucionária. Não no sentido mazziniano, mas de destino epocal, de comando e influência no mundo. Um nacionalismo universalístico, mas também de dominação e poder. Com efeito, as imensas discussões sobre uma nova civilização europeia e o papel das várias Nações, da Itália e do fascismo dentro dela estavam sendo feitas com uma perspectiva hierárquica. Seria uma Europa como uma comunidade imperial que superaria o velho imperialismo, mas onde os grandes países seriam superiores aos pequenos e todos girariam em torno de um polo, aquele de onde emanava a nova civilização, a Itália19. 18

BERTONHA, Entre Continuidade e ruptura, pp. 402-405.

Para o papel do Istituto Nazionale Fascista di Cultura nessa elaboração teórica, ver LONGO, Gisella. L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura e Gli intellettuali tra partito e regime. Roma: Antonio Pellicani, 2000. 19

|  107

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

O imperialismo fascista era assim, ao menos no papel, menos de conquista, de erradicação populacional e ocupação e mais de domínio por superioridade de cultura. Haveria uma liderança fascista na Europa, sendo o grande problema como encaixar a Alemanha e seu próprio imperialismo. Como já indicado, é claro que este plano estava mais dirigido à Europa do que às colônias africanas e a brutalidade da ocupação italiana na África e na Iugoslávia indica, volto a ressaltar, como os vários círculos do imperialismo fascista podiam ser cruzados com facilidade. Não obstante, perto do nazismo, o Império fascista seria mais inclusivo e menos genocida, se é que podemos classificar Impérios dessa forma 20. Essa versão de um “imperialismo universalista” era uma clara derivação das fraquezas materiais italianas, mas também era uma proposta apresentada como contraposição e alternativa ao imperialismo da outra matriz do universo fascista, o nazismo alemão. Com efeito, não espanta que essa proposta foi refinada justamente nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando o poder italiano entrava em colapso e ficava evidente que a Itália seria subordinada ao poder alemão, mesmo em caso de vitória do Eixo. Dessa forma, foi apenas em abril de 1943 que o governo italiano preparou, com aval de Mussolini, a “Carta da Europa”. Nesta, estavam presentes quatro pontos: respeito do princípio da nacionalidade e do direito dos Estados de se constituírem com base na homogeneidade étnica; respeito à soberania e à livre organização interna dos Estados; princípio da colaboração baseada no reconhecimento da unidade moral da Europa e sobre o direito de desenvolvimento das nacionalidades individuais, e a promessa que o Eixo guiaria a Europa para a paz, a prosperidade e a distribuição equitativa dos recursos do mundo. Esse documento representa um desesperado esforço italiano para salvar algo em uma realidade decepcionante, na qual a Itália se tornava cada vez mais dependente de Berlim. Não obstante, esse documento também refletia anos de reflexão sobre os limites do poder italiano e seu desejo de construção de um Império e a experiência de dois anos de ocupação militar nos Bálcãs, quando os italianos concluíram que a política implacável dos alemães não era viável, ao menos para os recursos militares italianos, e que algum tipo de cooptação e acomodação com os dominados tinha que ser encontrado para que o Império existisse. O fato de os alemães terem proibido os italianos de irem em frente com esse projeto indica, igualmente, como Berlim estava consciente de que esse era uma jogada final da Itália fascista para salvar o possível de sua influência na Europa e como esse modelo de imperialismo não era compatível com o de Hitler21.

20

CORNI, Gustavo. Imperio e spazio vitale.

21

RODOGNO, Davide, pp. 65-66.

108 |

joão fábio bertonha

O imperialismo fascista e nazista em confronto A visão nazi de Império era realmente muito mais darwinista, de busca de uma reordenação nacional e racial da Europa de forma implacável e praticamente sem compromissos. Como aconteceu com o fascismo italiano, a visão imperial nazista acabou por superar, num certo sentido, a Nação alemã e avançou para uma concepção de um Império organizado racialmente e no qual a raça ariana seria a dominante, sendo os alemães os seus principais representantes. Sua maneira de lidar com a oposição e seus planos de gerir, transferir e eliminar a população europeia iam muito além do que o fascismo esperava realizar. Como ressaltou Mazower22 , o nazismo trouxe para a Europa boa parte da brutalidade dos países europeus nas colônias e pensou a dominação de forma tal que compromissos eram quase impossíveis e transferir ou eliminar populações era a tônica. Domínio direto e absoluto, frente ao qual os planos imperiais fascistas e mesmo suas ações repressivas nos Bálcãs (na maior parte dos casos, em resposta à pressão alemã ou a ações de guerrilha) pareciam escaramuças menores. O que Mazower indica é que, na verdade, mesmo para os estágios iniciais, os nazistas não tinham muita segurança sobre o que fazer. A unificação dos povos alemães dentro de um Estado nazista era algo mais ou menos simples de conceber e imaginar. No entanto, mesmo os passos posteriores, apesar de sempre pensados, nunca haviam se convertido em planos e diretrizes prontas a serem aplicadas. Assim, quando quase toda a Europa caiu sob o controle alemão, entre 1939 e 1941, a ideologia nazista oferecia apenas alguns esboços gerais do a ser feito, sendo necessárias inúmeras adaptações e experiências para tentar delimitar o que fazer. Claro que algumas diretrizes centrais já estavam mais ou menos estabelecidas. Haveria uma hierarquização geral dos povos europeus com base na doutrina racial e todos os recursos desse espaço serviriam para manter a máquina de guerra alemã e, ao seu final, para o engrandecimento desse Império. Também está claro como haveria povos que seriam mais ou menos tolerados, como os europeus ocidentais, e outros destinados à escravidão, como os poloneses, além, é claro, da eliminação, pela emigração ou morte, dos judeus. Mas isso eram apenas ideias gerais, que, ao serem confrontadas com a realidade, levaram, muitas vezes, à improvisação e a experiências diversas. Os nazistas tiveram que recorrer, assim, às únicas fontes de inspiração possíveis, ou seja, os velhos padrões colonialistas europeus, os tradicionais objetivos geopolíticos alemães na Europa do Leste e as suas obsessões raciais. Do mesmo modo, impossível não recordar como o próprio colonialismo alemão

MAZOWER, Mark. Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books, 2008. 22

|  109

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista

na África foi especialmente implacável, como indica o genocídio na Namíbia 23 . Foi com base nessas tradições e experiências que eles construíram suas políticas, numa combinação de tradição e novidade realmente notável. Eles tendiam a ver, no Leste Europeu, um verdadeiro “Far West” nos moldes da conquista americana do oeste, no qual eles exterminariam os povos nativos, ou uma Índia, a ser dominada pela raça superior. Ou seja, eles seguiam padrões tradicionais para o colonialismo europeu, com o diferencial de estarem aplicando estes padrões no continente europeu e os combinando com a obsessão racial. O resultado foi uma proposta imperial muito mais genocida, rígida e intolerante. No caso alemão, assim, a difusão cultural era mera propaganda, a ser utilizada especialmente nas populações racialmente aceitáveis ou nas quais era politicamente, instrumentalmente, útil investir. O uso completamente instrumental que o Reich fez dos movimentos fascistas estrangeiros durante a guerra também indica isso. A Alemanha confiava muito mais no seu hard power para reformatar o continente europeu e o mundo, e o caráter implacável do mesmo colaborou para a sua queda, pois gerou reações em todo o continente, facilitando a tarefa dos Aliados. A proposta italiana, assim, implicava em compromissos e na criação de hierarquias: nacionais (com a Itália no topo), raciais (italianos, outros europeus, árabes, africanos), de direitos e de padrões de exploração econômica, tendo por fim último o domínio de um espaço. Já a nazista implicava em reformatação desse espaço e a criação de uma hierarquia única, entre senhores e escravos, sendo compromissos apenas táticos e circunstanciais24 . Ambas são imperialistas e condenáveis, mas a diferença de enfoque e estilo merecem ser consideradas, até para que entendamos as contradições, contatos e separações entre as duas matrizes centrais do universo fascista.

Conclusões Como indicado inicialmente, não é possível ser fascista sem ter sonhos ou ambições imperiais, mas as tradições de cada país, as avaliações de poder e as prioridades alteraram os contornos de cada tipo de imperialismo. Dessa forma, enquanto o integralismo brasileiro propunha uma espécie de “imperialismo interno” e uma hegemonia ideológica sobre a América do Sul, com leves menções a uma atuação mais efetiva no Rio da Prata 25 , o nazismo, como visto, propunha

BREPOHL, Marion. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos expansionistas do Império, 1896-1914. Rev. Bras. Hist. [online]. 2013, vol.33, n.66, pp. 13-29  23

24

RODOGNO, Davide, pp. 96-100.

Ver as várias discussões a esse respeito no meu Integralismo. Problemas, perspectivas e questões historiográficas. Maringá: Eduem, 2014. 25

110 |

joão fábio bertonha

um imperialismo muito mais agressivo e implacável, trazendo para a Europa o padrão violento da colonização europeia na África e Ásia. No caso da Itália, houve um investimento intenso nas formas tradicionais de imperialismo e de política externa associado a uma “diplomacia paralela” fortemente calcada na propaganda cultural, na questão dos emigrantes e em vínculos ideológicos. Conforme as condições e as possibilidades, tais políticas se complementavam, se articulavam e até mesmo se contrapunham, mas a simples ênfase do regime em ambas indica a amplitude dos sonhos imperiais italianos naquele período e uma avaliação realista das capacidades e possibilidades de ação por parte do Estado italiano. Interessante observar como o falangismo espanhol (e mesmo o primeiro franquismo) combinava uma ação imperial direta na África e negociações com a Alemanha para adquirir algumas colônias francesas (já durante a Segunda Guerra Mundial) com um esforço de imperialismo indireto, cultural, voltado à América Latina 26 . O fato de Espanha e Itália serem, em diferentes níveis, potências médias, talvez ajude a compreender essa combinação particular de hard power e soft power que ambas fizeram. A proposta italiana, contudo, era muito mais sofisticada em termos teóricos e a Espanha, até pelos seus recursos materiais ainda menores, não tentou aplicar essa política externa com duas faces com a mesma intensidade que a Itália. Até por isso, Franco não entrou na Segunda Guerra Mundial, o grande erro de Mussolini que, ao final, reduziu a pó seu Império na África, sua influência na Europa e sua rede de apoio indireto pelo mundo, trazendo, além disso, imensas desgraças ao povo italiano.

Referências BASTIANINI, Giuseppe. Gli Italiani All’estero. Milano: Mondadori, 1939. BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. ______. Entre Continuidade e ruptura. A Política Externa Fascista como um Problema Histórico e político. Contexto Internacional, v. 23, n. 2: 399-434, 2001. ______. Os italianos. São Paulo: Contexto, 2005.

Ver, entre outros, CALLEJA, Eduardo González; NEVADO, Fredes Limón. La Hispanidad como instrumento de combate. Raza e Imperio en la prensa franquista durante la Guerra Civil española, Madrid, CSIC, 1988; GÓMEZ-ESCALONILLA, Lorenzo Delgado. Diplomacia Franquista y política cultural hacia Iberoamérica, 1939-1953, Madrid, CSIC, 1988, e Imperio de papel: acción cultural y política exterior durante el primer franquismo, Madrid, CSIC, 1992; REIN, Raanan. Francoist Spain and Latin America, 1936-1953. In: LARSEN, Stein Ugelvik, op.cit, pp. 116-152; ROLLAND, Denis et alii. L’Espagne, la France et l’Amérique latine. Politiques culturelles, propagandes et relations internationales. XXe siècle, Paris, L’Harmattan, 2001. 26

|  111

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista BERTONHA, João Fábio. Sobre a direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá: Eduem, 2008. BERTONHA, João Fábio. Um imperialismo dos pobres: O Império italiano da era liberal ao fascismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Impérios na História. Rio de Janeiro: Campus, 2009, p. 259-269. ______. Integralismo. Problemas, perspectivas e questões historiográficas. Maringá: Eduem, 2014. BIANCHINI, Stefano. L´Idea fascista dell´Impero nell´area danubiano balcanica. In: DI NOLFO, Ennio. L’Italia e la politica di potenza in Europa (1938-1940). Milano: Marzorati, 1988, pp. 173-86. BREPOHL, Marion. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos expansionistas do Império, 1896-1914. Rev. Bras. Hist. [on-line]. 2013, vol.33, n.66, pp. 13-29. BURGWYN, H. James. L´Impero sull´Adriatico. Mussolini e la conquista della Jugoslavia. 1941-1943. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2006. CALLEJA, Eduardo Gonzàlez; NEVADO, Fredes Limon. La Hispanidad como instrumento de combate. Raza e Império en la prensa franquista durante la Guerra Civil española. Madrid, CSIC, 1988. CATTARUZZA, Camila. L’Italia e il confine orientale, 1866-2006. Bologna: Il Mulino, 2007. CAVAROICCHI, Francesca, Avanguardie dello Spirito. Il fascismo e la propaganda culturale all’estero. Roma: Bulzoni, 2010. CORNI, Gustavo. Imperio e spazio vitale nella visione e nella prassi delle dittature (19191945). Ricerche di storia politica, 9, 3: 345-57, 2006. CRESCIANI, Gianfausto. A Not so Brutal Friendship: Italians Responses to National Socialism in Australia. AltreItalie – Rivista Internazionale di studi sulle popolazioni di origine italiana nel mondo, n. 34:4-38, 2007. DELL´ERBA, Nunzio. L´idea di romanità durante il fascismo. Nuova Storia Contemporanea, 13, 6: 33-60, 2009. DOMINIONI, Matteo. Lo sfascio dell’Impero. Gli Italiani in Etiopia, 1936-1941. Roma-Bari: Laterza, 2008. ______. I limiti dell´espansionismo fascista. Il fallimento dell´annessione della provincia di Lubiana. L´Annale Irsifar – Politiche di occupazione dell´Italia Fascista. Milano, Franco Angeli, 2008, p. 58-77. FOCARDI, Filippo e KLINKHAMMER, Lutz. Italia potenza occupante: una nuova frontiera storiografica. In L´Annale Irsifar – Politiche di occupazione dell´Italia Fascista. Milano, Franco Angeli, 2008, p. 21-31. GARZARELLI, Benedetta. Parleremo al mondo intero. La propaganda del fascismo all´estero. Alessandria: Edizioni dell´Orso, 2004. GENTILE, Emilio. La Grande Italia. Ascesa e declino del mito della nazione nel Ventesimo Secolo. Milano: Mondadori, 1997. GODESA, B. Le autorità italiane di occupazione e gli intellettuali sloveni. Qualestoria, 27, 1: 133-170, 1999.

112 |

joão fábio bertonha GODESA, B. Penetrazione culturale in Europa Orientale, 1918-1939. Le grandi potenze occidentali in confronto. Passato e Presente, 56: 85-114, 2002. GOGLIA, Luigi. Sulle Organizzazioni fasciste indigene nelle colonie africane dell´Italia. In: DI FEBO, Giuliana e MORO, Renato. Fascismo e Franchismo. Relazioni, Immagini, Rappresentazioni. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2005, p. 173-212. GOMEZ-ESCALONILLA, Lorenzo Delgado. Diplomacia Franquista y política cultural hacia Iberoamérica, 1939-1953. Madrid: CSIC, 1988. GOOCH, John. Mussolini e i suoi Generali. Forze Armate e politica estera fascista. Gorizia: Libreria Editrice Goriziana, 2011. LONGO, Gisella. L´Istituto Nazionale Fascista di Cultura. Da Giovanni Gentile a Camillo Pellizzi (1925-1943). In: GENTILE, Emilio. Gli Intellettuali tra partito e regime. Roma: Antonio Pellicani, 2000. LUCONI, Stefano. La “Diplomazia Parallela” – Il Regime Fascista e la Mobilitazione Política degli Italo Americani. Milano: Franco Angeli, 2000. MALLETT, Robert. The Italian Navy and Fascist expansionism, 1935-1940. London: Frank Cass, 1998. MAZOWER, Mark. Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books, 2008. MÉNDEZ, Rubén Domínguez. La Politica Cultural del fascismo en España (1922-1945). Sociabilidad, Propaganda y Proselitismo. Tese de doctorado en Historia, Universidad de Valladolid, 2011. MICHELETTA, Luca. La resa dei conti. Il Kosovo, l´Italia e la dissoluzione della Iugoslavia (1939-1941). Roma: Edizioni Nuova Cultura, 2008. MINNITI, Fortunato. Fino alla Guerra. Strategie e conflitto nella politica di potenza di Mussolini, 1923-1940. Napoli: Edizioni Scientifiche italiane, 2000. ODDONE, Juan. Serafino Mazzolini; un misionero del fascismo en Uruguay, 1933-1937. Estudios Migratorios Latinoamericanos, 12, 37: 375-387, 1997. OSTENC, Michel. La politica estera italiana e il concetto di Civiltà (1914-1943). Nuova Storia Contemporanea, 13, 3: 11-24, 2009. PAPINI, M. Serafino Mazzolini: un Diplomatico a Salò. Storia e Problemi Contemporanei 18, no. 39 (2005): 61-84. PIPITONE, Cristiana. Dall´Africa all´Europa: Pratiche italiane di occupazione militare. In: L´Annale Irsifar – Politiche di occupazione dell´Italia Fascista. Milano, Franco Angeli, 2008, p. 31-42. REIN, Raanan. Francoist Spain and Latin America, 1936-1953. In: LARSEN, Stein Ugelvik. Fascism outside Europe. The European impulse against domestic conditions in the diffusion of global fascism. New York: Columbia University Press, 2001, p. 116-152. RODOGNO, Davide. Il Nuovo Ordine mediterraneo. Le politiche di occupazione dell´Italia Fascista in Europa (1940-1943). Torino: Bollati Boringhieri, 2003. ROLLAND, Dennis et alli. L’Espagne, la France et l’Amérique latine. Politiques culturelles, propagandes et relationes internationales. XXe siècle, París: L’Harmattan, 2001.

|  113

nacionalismos e impérios: o caso da itália fascista ROSSI, Gianni Scipione. Mussolini e il diplomatico. La vita e i diari di Serafino Mazzolini, Un monarchico a Salò. Rubbettino: Soveria Mannelli, 2005. SABA, Andrea Filippo. L´imperialismo opportunista. Politica estera italiana e industria degli armamenti (1919-1941). Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001. SANTORO, Stefano. Panslavismo e latinità negli studi di “L´Europa Orientale”. Qualestoria, 27, 2: 55-70, 1999. ______. L´Italia e l´Europa orientale. Diplomazia culturale e propaganda, 1918-1943, Milano. Franco Angeli, 2005. SAVARINO, Franco. Apuntes sobre el fascismo italiano en América Latina (1922-1940). Reflejos (Revista de la Universidad Hebrea de Jerusalén), 9: 100-110, 2001. ______. En busca de un “Eje” Latino: la politica latinoamericana de Italia entre las dos guerras mondiales. Anuario del Centro de Estudios Históricos “Profesor Carlos Segreti”, 6, 6: 239-261, 2006. ______. Juego de ilusiones: Brasil, México y los “fascismos” latinoamericanos frente al fascismo italiano. Historia Crítica, 37: 120-147, 2009. SCARANTINO, Anna. La Comunità Ebraica in Egitto fra le due Guerre Mondiali. Storia Contemporanea 17, n 6 (1986): 1033-82.

114 |

A década de 20 e a gênese das ideias autoritárias no Brasil: o jovem Francisco Campos1 Cláudia Maria Ribeiro Viscardi Universidade Federal de Juiz de Fora

Este capítulo faz parte de um projeto mais amplo, que tem por fim prestar uma contribuição para o debate acerca do advento das ideias nacionalistas e autoritárias difundidas no período republicano brasileiro no contexto da década de 1920. O nacionalismo na Primeira República é visto de forma marginal, em geral associado aos militares. Há um reconhecimento da existência de um sentimento nacionalista florianista, no final do XIX, cuja maior expressão foi o movimento jacobino, eminentemente xenófobo e especificamente lusófobo. Entre suas propostas estavam uma maior intervenção do Estado na economia com fins industrializantes, o fortalecimento do poder executivo, a ditadura militar e o anticlericalismo. Cabe destacar a criação da Liga da Defesa Nacional por Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon - presidida por Rui Barbosa - em 1916, cujo objetivo era apoiar os aliados na Primeira Guerra e instituir o serviço militar obrigatório, aprovado em 1908 e viabilizado só pela ação da Liga. O nacionalismo era exaltado como justificativa para se ter um exército forte e um soldado-cidadão, ou seja, mais envolvido na política. Em que pesem tais iniciativas, em geral, a Primeira República é vista como um regime eminentemente liberal, onde o papel do Estado é o de observador, cabendo às unidades federadas um maior protagonismo nos processos decisórios. O estatismo ou o sentimento nacionalista estaria enfraquecido pelo próprio espírito federalista, responsável pela prevalência do poder local/regional sobre a ideia de nação. O mesmo se pode dizer acerca do autoritarismo. A perspectiva de predominância de um liberalismo oligárquico como regime político dominante, obnubilou a presença de ideias autoritárias que estiveram presentes. No início da República, o Castilhismo positivista e o próprio jacobinismo florianista Este é um resultado parcial de um projeto mais amplo de pesquisa, realizado com o apoio do CNPq e da FAPEMIG. 1

|  115

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

foram doutrinas de viés autoritário. Há inúmeros outros indícios da presença do autoritarismo nos anos 10, sobretudo consolidado na obra de Alberto Torres (Gentil, 1938 e Marson, 1979) e entre os militares reunidos na Revista da Defesa Nacional de 1913. (Capella, 1985, p.79) Fora do Brasil há uma literatura ampla sobre o nacionalismo2 . Entre eles realçamos nosso vínculo intelectual com as análises propostas por Benedict Anderson (2008), que analisa o fenômeno não como uma ideologia política pronta e acabada, mas como um sistema cultural, difundido principalmente pela literatura e pela imprensa, com o fim de criar-se uma abstração, uma construção de nação imaginada, a ser compartilhada pelos diferentes atores que dela se apropriam. Na década de 1920 foram publicadas as primeiras obras de teóricos autoritários brasileiros como Oliveira Vianna, Francisco Campos 3 , Álvaro Bomílcar4 , dentre outros. Pretendemos entender de que forma os acontecimentos vivenciados por estes intelectuais se constituíram em um ambiente propício para o advento das críticas e para A aceitação e difusão de seus projetos alternativos ao liberalismo imperante. Dentro deste projeto que é mais amplo, conferiremos neste capítulo um destaque especial a Francisco Campos, em seu posicionamento sobre o movimento tenentista em curso no período. Longe estamos de realizar um trabalho que se relacione à História das Ideias. Entendemos que boa parte destes pensadores nacionalistas ou autoritários não compunham uma elite intelectual autônoma, pelo menos durante o período de nossa análise. Muitos viviam da ocupação de cargos públicos e/ou da própria ação política. Portanto, sua produção intelectual esteve vinculada a interesses explícitos ou não – vinculados à manutenção ou renovação de poderes instituídos e é desta forma que suas produções serão lidas e interpretadas. Por esta razão, privilegiaremos a análise dos discursos políticos proferidos no Parlamento ou pela imprensa, acerca das conjunturas nas quais se inseriam, com o fim de identificar a leitura que faziam da realidade e os caminhos que propunham para a mudança ou conservação da mesma. Procuraremos identificar relações de fidelidade e compromisso políticos, com o fim de entender os discursos e ideias professadas.

Gostaríamos de destacar alguns deles: Gellner (1993) Hobsbawm (1990), Anderson (1983 e 2008), Mann (1993 e 1994), Smith (1991, 1996, 1998, 1999 e 2000). 2

A produção bibliográfica de F. Campos é razoavelmente ampla. No entanto, não há muitas publicações na década de vinte, objeto de nossas pesquisas, a não ser a obra Pela Civilização Mineira: Documentos de Governo, 1926-1930 (1930), publicada ao final da década. Antes, no entanto, foram publicados os seguintes trabalhos: Democracia e unidade nacional, de 1914. Antecipações à reforma Política, também de 1914. A Doutrina da População, de 1916. Natureza Jurídica da Função Pública, de 1917. O Animus na Posse, de 1918. Introdução Crítica à Filosofia do Direito, também de 1918. 3

Populações Meridionais no Brasil, de Oliveira Viana, foi publicado em 1920. Há mais cinco obras de sua autoria nos anos vinte: Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921), O Idealismo na Evolução Política do Império e da República (1922), Evolução do Povo Brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925) e O Idealismo na Constituição (1927). De Bomílcar, A Política no Brasil ou o Nacionalismo Radical, 1920 – em memória de Floriano. 4

116 |

cláudia maria ribeiro viscardi

Por outro lado, abrimos mão de pensar tais atores como “frutos de seus respectivos contextos”. Interessa-nos a relação texto-contexto, na medida em que os discursos produzidos fazem parte do conjunto de “acontecimentos”, além de interferirem sobre o rumo das coisas. Todo discurso é um ato de fala (Austin, 1975). Embora a maior parte dos nossos atores estivessem fora dos altos cargos de comando do regime, não se encontravam a sua margem. Muitos deles já haviam iniciado sua trajetória política como deputados ou secretários de estado. Como jovens, galgavam vagarosamente os degraus do poder e, na maioria das vezes, não encontrando um ambiente hostil. No caso específico de Francisco Campos, optamos por analisar seus discursos parlamentares, uma vez que não há publicações do autor ao longo da década de 1920. Especificamente para os fins deste texto, optamos por analisar seu posicionamento diante das revoltas militares de 1922 e 1924. Pretendemos perceber sua linguagem política inserindo-a no meio em que vivia, de forma a perceber o que falava, o que estava fazendo ao falar e mais marginalmente, os efeitos de sua fala sobre os receptores de seu discurso. As referências à vertente inglesa da História dos Conceitos são nítidas5 . J. Austin (1975, 7th Lecture), em análises discursivas que fundamentaram a formulação dos trabalhos dos historiadores da Escola de Cambridge, afirma que o discurso político – que se constitui em atos de fala – possui três dimensões a serem levadas em conta: a locucionária (of saying), que diz respeito ao conteúdo da proposição, que se manifesta no ato de discursar. A ilocucionária (in saying), que leva em conta o que o agente está fazendo no momento em que profere o discurso. E a perlocucionária (by saying), relativa aos efeitos produzidos pelo ato de fala na audiência. Em nossa análise, procuraremos identificar as três dimensões, reconhecendo, no entanto os limites de nossas fontes para a abordagem da terceira dimensão. Serão objeto de investigação dois discursos proferidos no Congresso Nacional por Francisco Campos. O primeiro em sessão de 7 de julho de 1922, dois dias após a revolta do Forte de Copacabana. O segundo em sessão de 10 de julho de 1924, cinco dias após a tomada do poder pelos tenentes na revolta de 1924.6 Em ambas as ocasiões, Francisco Campos se valeu da tribuna do Parlamento para condenar as revoltas e defender a restauração da ordem política oligárquica, ameaçada pelas manifestações dos militares. Como dissemos, em razão da natureza das fontes disponíveis, a primeira e segunda dimensões (locucionária e ilocucionária) serão levadas em conta com A História dos Conceitos nasceu e se consolidou em duas escolas, a de Bielefeld na Alemanha, onde se destacou Reinhart Koselleck e a de Cambridge, no Reino Unido, cujos maiores expoentes são Quentin Skinner e John Pocock. As escolas caminharam de forma independente. A este respeito já existe vasta bibliografia, produzida inclusive por brasileiros. Entre o valioso material disponível destacamos: KOSELLECK, Reinhart (1992), POCOCK, J.G.A. (2003), JASMIN, Marcelo G.(2005) e PALONEN, Kari (2005). 5

Os discursos encontram-se disponíveis nos Anais da Câmara de Deputados. Nos valemos de sua publicação no livro: BONAVIDES (1979). 6

|  117

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

prioridade, uma vez que através da análise dos discursos parlamentares –objeto de investigação deste capítulo - fica muito difícil perceber a terceira dimensão de seu discurso, qual seja, os efeitos produzidos pela sua fala no Parlamento, ou mesmo sobre a opinião pública. Quando muito, tivemos acesso à recepção de alguns parlamentares que se manifestaram ou através de aplausos ou de apartes à fala de Francisco Campos. Mas tais manifestações, por serem esparsas e em número não significativo, nos impedem de perceber o real impacto do discurso sobre seus receptores. Portanto, não dispomos de fontes que evidenciem de que forma os discursos proferidos foram aceitos ou rejeitados. Com o fim de perceber a dimensão ilocucionária dos discursos, passaremos a seguir a acompanhar com brevidade a trajetória política de Campos até o momento em que os discursos foram proferidos.

Quem fala Nascido em Minas Gerais, na pequena cidade de Dores de Indaiá, no centro do estado, graduou-se em Direito na capital e teve rápida ascensão política, atuando como deputado estadual e federal pelo Partido Republicano Mineiro. 
Francisco Campos pertencia a uma segunda geração de políticos mineiros, trazidos ao poder sob a batuta de Arthur Bernardes. É conhecido pela historiografia o processo de renovação dos quadros do Partido Republicano Mineiro (PRM), empreendido por Bernardes quando esteve à frente do governo de Minas, entre 1918 e 1922 (Viscardi, 1999). Para que fosse assegurada a sua projeção nacional, Bernardes cuidou de afastar do poder lideranças mais tradicionais, que eventualmente poderiam frear sua ascensão ou com ele competir. Sua intervenção sobre as eleições da comissão executiva do PRM permitiu que fossem trazidos para os quadros partidários jovens políticos e afastadas antigas lideranças, a exemplo de Francisco Sales e Wenceslau Brás. Por indicação de Raul Soares, parceiro político de Bernardes, Francisco Campos foi trazido ao grupo, somando-se às demais lideranças jovens, porém, mais críticas às práticas recorrentes do Partido em Minas. Além de Francisco Campos, outras lideranças emergiram na nova correlação de forças estabelecida no estado, como Odilon Braga, Cristiano Machado, Daniel de Carvalho, entre outros. A renovação de quadros do PRM fazia parte de um projeto de ascensão de Bernardes à presidência da República. Suas ambições foram dificultadas pela formação de um eixo oposicionista, reunido na Reação Republicana. Em razão dos diversos conflitos advindos de uma acirrada disputa eleitoral, Bernardes ao assumir o poder decretou o Estado de Sítio. Campos era deputado federal no período, e não só apoiou a medida extraordinária, mas insistiu que fosse prorrogada, o que se comprova a partir de seus discursos parlamentares.

118 |

cláudia maria ribeiro viscardi

Ao final de seu governo, tendo conseguido apaziguar um pouco as dissidências através de medidas autoritárias, que ameaçavam a autonomia das unidades federadas que contra ele se uniram, Bernardes viabilizou a primeira reforma constitucional em 1926. Embora as propostas de revisão tenham sido recorrentes desde a primeira década republicana, havia uma rejeição por parte das elites dirigentes em reconhecer os problemas da carta de 1891. Alberto Torres sempre fora um defensor da revisão com o fim de conferir à União maiores poderes. Chegou a propor a criação de um quarto poder (o Coordenador: órgão autônomo com os mesmos poderes do Moderador, porém ser estar vinculado a Presidente). Com a mudança de perspectiva e de correlação de forças, a necessidade de revisão tornou-se um consenso. Dentre os itens reformados, destaca-se um maior detalhamento do artigo sexto, que tratava das possibilidades de intervenção da União sobre a autonomia dos estados. Antes, o artigo era muito fluído e pequeno. A partir de 1926, foram listadas todas as circunstâncias em que a intervenção seria permitida, o que gerou uma ampliação das possibilidades de intervenção, reduzindo a autonomia dos estados. Tais mudanças ampliavam a centralização e diminuíam os marcos do federalismo. Na ocasião, Francisco Campos era deputado federal e atuou como aliado de Bernardes neste projeto. Na condição de Secretário do Interior do então governador de Minas, Antônio Carlos, Francisco Campos atuou na luta eleitoral ao lado de Vargas e depois na Revolução de 1930. Quando Vargas assumiu, foi seu Ministro da Educação e Saúde, ministério novo criado durante o governo provisório. Como Ministro realizou uma reforma do ensino médio e superior, pelo qual tornou-se bastante conhecido. Em Minas aliou-se à Legião de Outubro, organização criada em vários estados para conferir sustentação política a Vargas. Em vão tentou eleger-se deputado constituinte em 34, mas não obteve êxito. Recebeu como prêmio de consolação a incumbência de ser o Secretário de Educação do Distrito Federal, freando os avanços ocorridos sob a gestão de Anísio Teixeira, afastado em razão de suas pretensas ligações com o comunismo. Foi um dos principais articuladores do golpe do Estado Novo e seu mais importante jurista, na medida em que elaborou o texto da Constituição de 1937. Sua permanência no governo como homem de confiança de Vargas se encerrou quando o Brasil aproximou-se dos aliados. Como novo prêmio de consolação, passou a presidir a Comissão Jurídica Interamericana. Sua biografia nos interessa até este ponto, dados os propósitos deste artigo.7 Para compreendermos melhor o discurso de Campos e os ideais por ele defendidos, faz-se importante acompanhar o que se passava no Brasil dos anos 20, sobretudo entre os jovens políticos e intelectuais de sua geração.

A trajetória política de Campos envolveria ainda sua participação no regime pós 64, tendo sido ele responsável pela elaboração dos Atos Institucionais 1 e 2. Para informações mais detalhadas sobre sua vida ver: Malin, M. (2013). 7

|  119

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

De onde se fala A década de 20 no Brasil foi marcada por muitas mudanças nos diversos setores da sociedade civil. O impacto da Grande Guerra e da Revolução Russa sobre os mercados, os costumes e a política foram significativos. Francisco Campos esteve envolvido neste conjunto de mudanças. Portanto se faz importante identificá-las, para que possamos compreender de que forma ele interveio e se inseriu neste conjunto de mudanças e como sua produção intelectual e suas práticas políticas foram perpassadas pelos acontecimentos em curso. A emergência de ideais autoritários de caráter antiliberal que ocorria em solo europeu no entre guerras não deixaria de influenciar o país. No entanto, como veremos, as críticas ao regime republicano, muito comuns ao longo de toda a década de 1920 no Brasil, não eram majoritariamente autoritárias, mas nasciam entre os próprios liberais, desencantados com os rumos tomados pelo regime inaugurado em 1889. Na década de 20 eclodiram propostas que preconizavam uma maior intervenção do Estado na vida econômica do país, bem como a necessidade de arrefecer os problemas derivados do federalismo. A crítica ao federalismo foi muito importante, pois no período, o regime descentralizado foi associado à ideia de “paroquialismo” e de poder dos chefes locais. O que ao final do século XIX era considerado o melhor caminho para a resolução das crises econômicas e políticas do Império, nos anos 20, passou a ser a causa dos maiores problemas da República. Por esta razão, as críticas ao federalismo vinham acompanhadas de um saudosismo em relação ao Império. A crítica política tinha como foco o combate às fraudes eleitorais e a necessidade de se resolver a crise econômica derivada da depressão do pós-guerra. As fraudes eleitorais tinham como causa, na visão dos contemporâneos, o controle do voto pelos coronéis, possível em razão da descentralização política. Por sua vez, a crise econômica era vista como resultante do excesso de autonomia dos estados, que podiam se endividar livremente no exterior, à revelia do equilíbrio econômico da nação. Alguns eventos importantes contribuíram para a criação e consolidação desta atmosfera crítica, nos mais variados campos. Proliferaram o pensamento conservador, autoritário, nacionalista e antiliberal. No campo da religiosidade, a fundação do Centro Dom Vidal (1922) propunha uma renovação da prática católica a partir de um maior distanciamento em relação a Roma e de uma aproximação com o povo. Emergiram figuras como o Padre Júlio de Maria, Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Carlos de Laet, dentre outros (Azzi, 1994). Ainda inspirados pela Encíclica Rerum Novarum, viam o povo não como coautor de um projeto de mudança, mas como público que deveriam trazer para o seio da Igreja, sem necessariamente integrá-lo. Não se tratava mais de discutir a separação entre Estado e Igreja, questão que até então havia mobilizado os católicos no Brasil, mas de como combater a maior 120 |

cláudia maria ribeiro viscardi

ameaça que assolava o país em sua visão naquele momento: o comunismo. Pela sua rejeição ao comunismo e pelo medo do povo organizado e mobilizado no período, a Igreja assumiria uma postura conservadora, mas próxima ao projeto nacional-autoritário em curso na Europa do que ao projeto liberal tradicional dominante. No entanto, é preciso destacar que seus elos com as oligarquias agrárias permaneciam e sua intervenção político-partidária seria limitada. Este era também um período de ascensão do movimento operário, impactado pelo desenvolvimento industrial do Pós I Guerra, o qual havia proporcionado no Brasil uma maior concentração de operários por fábrica (Suzigan, 1986). Sob o impacto do vitorioso projeto bolchevique, os anarquistas foram definitivamente afastados das direções sindicais, abrindo espaço para a fundação do PCB. Aprofundava-se, no entanto, o autoritarismo de esquerda, seguindo as diretrizes da III Internacional, sobretudo após a morte de Lenin em 1924. O PCB fundaria em 1927 o Bloco Operário Camponês (BOC), que assumiu o discurso antiliberal e anti-oligárquico, em prol de um comunismo de viés maoísta. O centralismo partidário também conferiu um tom menos democrático ao seu discurso, com predominância do nacionalismo sobre o internacionalismo dos trotskistas, que haviam se tornado minoritários. O PCB se colocaria ao lado das oligarquias dissidentes, sem participar da Revolução de 30, após recusa pessoal de Prestes. Mas sua crítica aos limites da democracia burguesa contribuiu para o desgaste do regime. 8 Uma outra evidência de que caminhava-se rumo a um Estado mais interventor e centralizado esteve na regulamentação das conquistas trabalhistas obtidas pelas ondas grevistas de 1917 e 1918. O viés intervencionista, para além da dura repressão aos movimentos dos trabalhadores, do exílio e da prisão dos líderes, foi a criação de um conselho arbitral de interesses entre capital e trabalho. O Conselho Nacional do Trabalho, criado em 1923, quebrou um dos pilares do liberalismo brasileiro neste campo: o da não intervenção do Estado nos processos de negociação. Paralelamente houve o esvaziamento de associações autônomas dos trabalhadores, como as mutuais de ofício. Enquanto na Inglaterra elas foram incorporadas a um projeto de construção da previdência pública, no Brasil foram colocadas à margem do processo e esvaziadas pelos montepios e seguradoras, responsáveis pela viabilização das Caixas de Aposentadorias e Pensões, primeiro esboço da instituição de uma previdência pública no Brasil (Viscardi, 2010). Outro conjunto de atores destacados no período foram os tenentes. Estes ganham uma importância maior para nós em razão da análise que faremos dos discursos de Francisco Campos acerca do movimento. O conjunto de revoltas colocou em risco a estabilidade, levando Bernardes a governar em estado de sítio. Antes, tal medida, embora recorrente, tinha caráter extraordinário e curta duração. Com Bernardes, o regime de exceção foi a regra. Dentre as revoltas militares, a Coluna Prestes foi a que teve maior impacto, inclusive em solo euHá muitos e relevantes estudos sobre o PCB. Entre vários trabalhos, destacamos: Carone (1989), Dulles (1977), Karepovs (2006) e Del Roio (2007). 8

|  121

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

ropeu. A Coluna se confunde com a liderança de Prestes, o que de certa forma nos leva a omitir seu distanciamento em relação à classe operária, sua crítica ao liberalismo oligárquico, sua proposta de fortalecimento do poder executivo e sua crítica ao federalismo. As propostas do fim da fraude eleitoral e a defesa do voto secreto os aproximavam dos anseios dos dissidentes da Reação Republicana. Em que pese a heterogeneidade do movimento, as propostas tenentistas iam ao encontro de uma República mais centralizada e nacionalista.9 Para além de católicos, trabalhadores e militares, não se pode falar em atores políticos na década de 20 sem se referir aos modernistas. Não faz parte dos objetivos deste capítulo aprofundar as discussões relativas ao movimento, mas apenas destacar que o pensamento nacionalista também esteve presente em seu seio e que o grupo que dele participou, em sua complexidade, reuniu tanto comunistas, como liberais e integralistas. A própria historiografia sobre o Modernismo, em razão da simpatia por um movimento intelectual genuinamente nacional, acabou por homogeneizar o grupo e superestimá-lo. O elo entre eles era a busca de uma identidade nacional, a partir da rejeição ao passado, do combate ao eurocentrismo da produção artística, mas também de sua “antropofagia”. A recuperação dos mitos nacionais, a valorização do mestiço e o contato com a natureza foram instrumentos de fortalecimento do nacionalismo10. É neste período que se consolida no empresariado nacional emergente, o nacionalismo econômico e as críticas ao liberalismo fundador da república. Com os investimentos industriais proporcionados pela diversificação de investimentos do capital cafeeiro, aliados ao processo de substituição de importações do Pós I Guerra, panorama agravado pelo refluxo de capital internacional, a burguesia industrial nascente buscaria mais proteção do Estado e criticaria o liberalismo. Um exemplo importante desta nova postura, por estar associado ao nosso personagem principal, esteve nos debates travados nos governos Epitácio e Bernardes acerca da estatização da Itabira Iron. Com o desenvolvimento siderúrgico em Minas Gerais, havia um interesse do Estado em não se limitar a ser um mero exportador de matéria-prima, mas faltava-lhe tecnologia. Epitácio e Bernardes recusaram acordos com a mineradora inglesa, já presente na exploração do minério em Minas, em prol de um contrato com os belgas. Das intensas negociações nasceu a Belgo-Mineira, explorando minério e transferindo tecnologia, com participação estatal (Silva,1997). A intransigência de Bernardes e seu nacionalismo eram dados novos no horizonte. Foi também em seu governo que foi aprovada a defesa permanente do café, o que gerou oposições de liberais, mas não tão fortes como a de 1906. A intervenção do Estado era vista com maior naturalidade neste período e reivindicada pela burguesia emergente. E foi neste período que Francisco Campos estava sendo trazido ao PRM, sob o aval de Bernardes. Acerca do Tenentismo ver, entre outros: Forjaz (1978), Drummond (1986), Prestes (1991), Castro (1995) e Carvalho (2005). 9

10

122 |

Acerca do Modernismo destacamos: Sevcenko (1992), Travassos (2000), Silva (2009) e Velloso (2010).

cláudia maria ribeiro viscardi

Destaca-se que a Nação completava em 1922 seus 100 anos de existência, evento que ensejava uma reavaliação sobre o projeto republicano (Motta, 1992). Nesta ocasião (1921) foram transplantados para o Brasil os restos mortais de D. Pedro II (bem como de Tereza Cristina, Conde D’eu e outros familiares da realeza), como uma das formas de comemorar-se o centenário da independência. O enterro de seus despojos ganhou honras militares, houve decretação de feriado nacional e inúmeras festividades foram realizadas sob a condução do IHGB, que comparou o evento ao processo abolicionista, equiparando-os como se tivessem igual importância (Fagundes, 2013). Lembre-se que no ano anterior, o banimento da família real havia sido revogado, após intensos debates no Parlamento. A redescoberta do Monarca refletia o saudosismo do Estado centralizado do passado, abrindo espaço para a crítica ao federalismo e à própria República. Estes diversos grupos de interesse tinham alguns elementos comuns em meio a diferentes projetos e estratégias: o nacionalismo, a crítica ao federalismo e ao liberalismo, a oposição às oligarquias situacionistas, o fortalecimento do executivo, a desqualificação do parlamento – tido como espaço de uma elite bacharelesca e inútil -, a crítica aos processos eleitorais em curso e a busca de uma identidade nacional alternativa. Sua estratégia era veiculada através de um discurso de desqualificação do sistema, aprofundado posteriormente pela era Vargas. Em tese anterior sugerimos que a expressão “café com leite”, vulgarizada a partir de 1926, esteve relacionada a este processo de desqualificação do federalismo, ao associá-lo a um suposto monopólio do poder por parte de a uma aliança Minas-São Paulo, o que de fato não ocorria (Viscardi, 2001). Na prática, esta crítica se dava às eleições, ao poder do Parlamento, ao sufrágio universal, aos partidos políticos, ou seja, ao liberalismo formal em curso, que se queria mudar. Importante ressaltar que a crítica vinha de quem encontrava-se fora do poder. As elites oligárquicas consolidadas no controle do regime se opunham às dissidências e aos movimentos de contestação. Reprimiu duramente os trabalhadores grevistas. Puniu exemplarmente os dissidentes da Reação Republicana. Reprimiu com rigor as rebeldias dos tenentes. Mas não deixou de incorporar algumas das reivindicações em curso, a exemplo da reforma constitucional de 1926 e de viabilizar algumas concessões aos trabalhadores. Bernardes era o objeto principal da crítica do movimento tenentista e dos líderes remanescentes da Reação Republicana. Portanto, seus apoiadores sentiam-se impelidos a combater as críticas ao federalismo, às fraudes eleitorais e sobretudo aos tenentes. Como vimos, Francisco Campos fora alçado ao poder por Bernardes e seria seu porta-voz no Parlamento. Sem estar imune ao ambiente conturbado pelo qual passava a república, Campos se colocaria a favor da manutenção da ordem e se oporia a estes movimentos de contestação. Ao mesmo tempo, teria participação destacada no processo de reforma constitucional em 1926. Nosso argumento é que durante a década de 20, nada nos autoriza a qualificar Francisco Campos como um intelectual autoritário ou mesmo antiliberal. Ao con|  123

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

trário, como veremos, Campos será um árduo defensor da Carta de 1891 – mesmo admitindo-se a necessidade de alguns ajustes – em defesa das oligarquias liberais no poder e opondo-se ao “bando de ideias novas” que emergira nos anos de sua juventude. Mas passemos agora à dimensão locucionária de nosso personagem.

O que Francisco Campos fala Como afirmamos anteriormente, partiremos da análise de dois discursos políticos enunciados por Campos ao longo dos anos 20. No período, era deputado federal pela bancada de Minas Gerais. Em 7 de julho de 1922, dois dias após a tomada do Forte de Copacabana pelos revoltos e sua imediata repressão pelas forças militares fiéis ao governo federal, Francisco Campos fez uso da palavra no Congresso Nacional acerca do evento recente, a revolta dos tenentes, ocorrida no Forte de Copacabana em 5 de julho de 1922, na cidade do Rio de Janeiro. Participaram da revolta 18 revoltosos, um deles civil. Seu objetivo primordial era impedir a posse de Arthur Bernardes, candidato vitorioso no pleito de 1922, em oposição a Nilo Peçanha, que concorreu pela chapa da chamada Reação Republicana. Bernardes era candidato da situação e contava com o apoio das oligarquias paulistas e pernambucanas, além da mineira e paraibana (o Presidente na época era Epitácio Pessoa, da Paraíba). O estopim da revolta havia sido a prisão de Hermes da Fonseca, presidente do Clube Militar e que havia apoiado a candidatura da Reação. Por ter feito críticas duras ao processo eleitoral, Epitácio o mandou prender, gerando revolta entre os jovens militares. O forte foi duramente bombardeado pelas forças militares fieis ao governo. 17 militares se renderam e foram em marcha a caminho do Palácio do Catete. Tiveram, durante o percurso, a adesão de um civil. Ao chegarem no posto três, foram metralhados pelas forças da ordem. Dos 18, apenas dois sobreviveram: Siqueira Campos e Eduardo Gomes11. Francisco Campos inicia seu discurso atacando os que para ele tinham sido os reais responsáveis pela revolta: Nilo Peçanha e Borges de Medeiros, o primeiro candidato derrotado na chapa de oposição e o segundo, governador

Em razão dos limites do texto, não nos é possível discutir historiograficamente as eleições de 1922. O tema foi recentemente revisitado e maiores informações podem ser obtidas em: VISCARDI, Cláudia M.R. Teatro das Oligarquias: uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte, Fino Traço, 2012, cap. 7 e FERREIRA, Marieta de M. e PINTO, Surama Conde de S. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de A. N. (orgs.) O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente, da proclamação da República à revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. O mesmo acerca do próprio movimento tenentista. Nos limitaremos a fazer uma síntese sumária acerca dos eventos tratados pro Francisco Campos, o que de forma nenhuma esgota tema tão tradicional e tão debatido pela historiografia brasileira. Acerca do tenentismo, indicamos dois trabalhos mais recentes: PRESTES, Anita. L. A Coluna Prestes, 2ed, São Paulo: Brasiliense, 1991 e LANNA Jr. Tenentismo e crise política na Primeira República. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de A. N. op. cit. 11

124 |

cláudia maria ribeiro viscardi

do Rio Grande do Sul, que havia se somado à articulação oposicionista. Os tenentes foram poupados de suas acusações. Em sua visão, os jovens militares haviam sido manipulados pelas lideranças oligárquicas dissidentes, o que para ele, constituiu-se em ato de covardia. Da mocidade enviada na frente, desprevenida na sua ignorância e ingenuidade para bater o caminho pelo qual haviam de passar os triunfadores dessa mocidade é que lançaram mão os políticos misericordiosos para com a dor humana, para varrerem as resistências que, por acaso, encontrassem no seu caminho, atentos na bondade dos soldados ao verem aproximar-se a primavera formassem alas para que ela passasse (Bonavides: 68).

O discurso de Campos é construído de forma a atribuir a Nilo Peçanha o papel de mandante e a Borges de Medeiros, o de omissão. Contra eles se vale de expressões duras. Embora afirme respeitar a autoridade moral do líder gaúcho, acusou-o de ter permanecido em “solidão especulativa” ou em “hibernação positivista”. Sobre o papel de Borges de Medeiros, assim se manifesta Campos: [...] já existia [a revolta] virtualmente no silêncio budista do Sr. Borges de Medeiros na indiferença com que S. Exa. considerava o desenrolar dos acontecimentos sem prever suas consequências, com o abandono da direção política que lhe cabia tomar, como órgão mais autorizado, das mãos do Sr. Nilo Peçanha. E, portanto, participando por omissão criminosa, do movimento revolucionário, porque era de seu dever, já não digo de estadista e chefe de estado, mas dever de caridade, fazer valer sua autoridade moral, o seu prestígio para que não se produzissem os efeitos irreparáveis da revolução política (Bonavides: 64 – grifos nossos).

Para ele, não fosse a omissão de Borges, Nilo não teria tido êxito em insuflar a revolta dos tenentes. O peso todo de seu discurso recairia sobre o senador fluminense. Portador de uma “retórica de falso propagandista da república”, Nilo teria atiçado entre os jovens o desejo pela revolução. Expressões como “covarde” e portador de “desvario mental” conferem um tom agressivo ao discurso, aplaudido por membros da bancada mineira, que lhe faziam apartes, complementando sua fala. Poucos deputados gaúchos procuraram intervir, apoiando Bernardes, mas a palavra era de Campos e dela ele se valia para construir uma interpretação sobre um evento contemporâneo, tentando construir uma memória acerca do que havia acontecido muito recentemente. Ao narrar este evento traumático, Campos, além de construir uma versão sobre seus algozes, definiu bem quem eram as vítimas do processo: os tenentes (“holocausto para a flor da mocidade brasileira”), o povo e o próprio Hermes da Fonseca. Todos manipulados pelos líderes. A revolta, pela sua dramaticidade, foi qualificada através das seguintes expressões: subversão, revolução, ameaça à integridade do país, ato inconstitucional, |  125

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

catástrofe, criminosa e perturbadora do sossego público. Tais expressões conferem um tom maior do que de fato a revolta possuía. Os jovens tenentes, quando muito, ousaram se opor à posse de um presidente eleito, segundo eles, favorecido pela fraude eleitoral. Não se tratava de uma revolução, mas de um protesto armado. Em seu idealismo de juventude, chegaram a propor a substituição de Bernardes por um outro oligarca mineiro, o ex-presidente Wenceslau Brás. Embora revoltas militares assumam um tom de indisciplina e sedição, o exagero de Campos pode ser explicado pelo seu compromisso com a manutenção da ordem e com a garantia da posse de seu conterrâneo Arthur Bernardes. Os tons por ele conferidos aos líderes e à própria revolta, antes de revelarem seu respeito às normas constitucionais ou a rejeição aos conflitos políticos, identificavam suas relações de fidelidade política ao líder que o havia alçado ao poder em Minas Gerais. No que concerne às razões da revolta, em nenhum momento Campos admite a autonomia do movimento tenentista. Para ele, os militares eram objeto de manipulação pelos membros da Reação Republicana, ignorando que naquele momento, já construíam uma pauta própria de reivindicações e um rosário de críticas aos descaminhos que a república trilhava. Campos não conseguia – ou não admitia – ver no movimento a expressão dos descontentamentos dos contemporâneos com o regime. Ele mesmo se somaria mais tarde ao grupo dos descontentes. Mas naquela ocasião, estava mais comprometido com a manutenção do governo de Bernardes do que com qualquer outra postura alternativa. Ao não reconhecer autonomia aos tenentes, tratando seu movimento como um objeto dos interesses das dissidências oligárquicas, Campos não se opunha ao tenentismo em si, mas à Reação Republicana. Poupou de suas críticas os militares – entre eles, o próprio Hermes da Fonseca – deixando sua reprovação cair sobre as lideranças de oposição ao governo ao qual cabia sustentar politicamente. No contexto de crise institucional em curso, cuja maior expressão eram as revoltas militares que se espalhavam por diferentes regiões do território nacional, a dimensão ilocucionária do discurso é a mais perceptível. Francisco Campos, ao trazer o tema para a plenária do Parlamento, atuava como um porta-voz dos interesses do situacionismo mineiro e desejava convencer a plateia acerca da inconveniência da plataforma tenentista, bem como de seus métodos para levá-la à frente. Ao mesmo tempo, tinha por objetivo identificar responsabilidades civis sobre as ações dos jovens militares. Desta forma, tentava criar uma aura de vitimização de Bernardes – objeto dos protestos – e de medo, ao anunciar os riscos que a nação estava correndo a partir da ação armada dos militares. Colocava-se com um defensor da ordem liberal-oligárquica. No dia 5 de julho de 1924, estourou outra revolta dos tenentes, desta vez na cidade de São Paulo, com apoio de outras cidades do interior paulista. Os revoltosos tomaram o poder na capital durante 23 dias. A cidade foi bombardeada por aviões e a revolta também fora combatida por tropas de terra, fieis a Bernardes e ao governador Carlos de Campos, então refugiado no interior. Os tenentes foram vencidos e tentaram migrar para o Mato Grosso, onde sofreram 126 |

cláudia maria ribeiro viscardi

suas maiores perdas humanas. Já fragilizados, dirigiram-se a Foz do Iguaçu, para se se unirem à coluna liderada por Prestes, que então se organizava. Cinco dias após o início da revolta, enquanto os rebeldes ainda mantinham a cidade sob controle, Francisco Campos foi à tribuna do Congresso para uma vez mais conferir sustentação política a Bernardes, novamente ameaçado pelas convulsões das casernas. Seu breve discurso foi proferido após o de Antônio Carlos, deputado mineiro, líder da maioria. Nele, o que se destaca são os valores defendidos que se resumem no compromisso com a manutenção da ordem e no respeito às instituições. Interessante destacar as expressões escolhidas por Campos para se referir a tais valores: “escravidão às responsabilidades” e “submissão à ordem”, como se observa na citação abaixo: Sr. Presidente, submissão à ordem, escravidão às responsabilidades, apagando-as as atitudes individuais, para que apareça e se acuse a solidariedade geral indispensável à realização de toda a obra política, que não é apenas a obra de indivíduos isolados, senão o resultado de uma convergência de vistas, em que as individualidades se sacrificam e se apagam, disciplina essencial a todos os corpos, assim como os corpos políticos, disciplina que não representa uma abdicação, disciplina que não representa uma ablação dos órgãos mentais, senão uma surdina destes órgãos e uma aplicação mais atenta deles aos seus deveres (grifos nossos , p.75).

Ressalta-se o apelo à solidariedade, obtida pela subsunção do interesse individual ao bem público. O pacto proposto por Campos passa pela concessão ao Estado de parte da soberania individual ou corporativa. Parte, porque não significa abrir-se mão do raciocínio, mas apenas estar momentaneamente surdo, para o cumprimento dos deveres. Tais expressões revelam uma relação com o poder no qual o indivíduo autônomo não se submete ao Estado na condição de súdito, servo ou escravo, mas delega a ele parte de sua soberania, mantendo sua autonomia enquanto membro da polis ou cidadão. Nada mais liberal do que o contrato por ele proposto. O discurso da submissão servia como justificativa ao estado de sítio imposto por Bernardes, para ele, uma medida de manutenção da ordem. Pode-se aventar, que a adesão incondicional de Campos ao estado de sítio implique em sua relação com o pensamento autoritário. Mas o instrumento estava previsto pela Constituição de 1891 e por diversas vezes havia sido usado ao longo do regime. Consistia em expediente provisório, com o fim de resolver-se alguma crise, ameaça à estabilidade do regime ou defesa da própria constituição. Tal medida está prevista nas constituições liberais, pois nos regimes autoritários ela não se faz necessária. Portanto, a defesa do expediente, feita por Campos, não configura sua adesão às ideias autoritárias. Há igualmente no discurso de Campos um reforço da imagem construída em torno do papel de Minas na federação, como o centro de equilíbrio do regime |  127

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

republicano, ao mesmo tempo em que se vale de um símbolo monárquico – a coroa – quando se refere ao papel do estado: Sr. Presidente, pelos sentimentos de Minas, pelo pensamento político de Minas, pela atitude de Minas, afinam igualmente o pensamento, o sentimento e a atitude dos outros estados da república, todos eles reunidos, como uma coroa, em torno do governo federal, traçando este círculo de garantias morais e políticas sobre o qual repousa (grifos nossos, p. 74).

A ele interessava o reforço desta imagem para que a liderança de Bernardes deixasse de ser contestada pela ameaça dos tenentes. O fato de Francisco Campos ter trazido para seu discurso símbolos monárquicos e defendido a aplicação de medidas de exceção, antes de ter sido um compromisso precoce do personagem com as ideias autoritárias que defenderia mais tarde – até para fugirmos ao anacronismo – era uma estratégia de justificação das ações discricionárias levadas a cabo por Bernardes, líder com o qual estava comprometido a defender. Daí a alusão à Coroa e ao papel de Minas Gerais. Tomando por base as análises de Austin, a dimensão ilocucionária de seu discurso encontra-se na posição em que está Francisco Campos no momento em que o profere: é um parlamentar da base de apoio da presidência da República, alçado ao poder por ele, e que precisa reforçar o discurso de Antônio Carlos, que como líder da maioria, defendeu arduamente o governo, então ameaçado por uma revolta, até o momento, exitosa. Debatia-se no plenário a proposta de uma moção de confiança e de aplauso à enérgica atitude do Presidente da República e de admiração à atitude de Carlos de Campos, governador de São Paulo, ao reprimir duramente os adversários. Cabia a Campos defender a aprovação da moção e justificar o estado de sítio em curso. Seu discurso, como ato de fala, tinha por objetivo justificar a aplicação de medidas repressoras sobre o movimento e para este fim se valeu da escolha de expressões nada fortuitas, como as aludidas acima. Esta é a dimensão locucionária, da qual nos falava Austin. A expectativa de Campos era que o Parlamento conferisse poderes discricionários a Bernardes, como claramente encontra-se expresso ao final de seu discurso: ... [daria] o meu apoio ao projeto autorizando o Governo a decretar o estado de sítio, como também a todas as medidas, ainda as mais extremas, repito, que o Congresso julgar necessárias, aparelhando o Poder Executivo, indo mesmo até à delegação de plenos poderes ao Sr. Presidente da República para exercer, durante o tempo que fosse preciso, uma ação discricionária (grifos nossos, p. 76).

Previa a constituição de 1891 que o estado de sítio poderia ser instituído, por prazo determinado (não estabelecia qual) em duas ocasiões: invasão es128 |

cláudia maria ribeiro viscardi

trangeira ou comoção interna. A segunda ocasião justificara sua instituição. A clara defesa do estado de exceção pode ser entendida como uma vinculação de Campos às ideias autoritárias que defenderia mais tarde. No entanto, acreditamos que a esta altura, o deputado estava mais interessado em garantir a ordem para viabilizar o governo de seu conterrâneo e aliado, do que em defender ideias autoritárias. Embora quisesse conferir a Bernardes poderes extra constitucionais, não chegou a propô-los, limitando-se a defender seu líder, dentro da ordem constitucional.

O que se fala sobre Francisco Campos Para uma leitura mais apropriada do discurso de Campos, é importante nos valer das contribuições, sobretudo as mais recentes, produzidas sobre ele. A maior parte dos trabalhos, no entanto, analisa o pensamento político de Campos no período pós 30, uma vez que sua trajetória ascendente na política lhe conduziu a cargos muito importantes na gestão do Estado varguista e por ter publicado no período a maior parte de seus trabalhos. Poucas referências estão disponíveis sobre seu período de juventude, o que nos interessa mais para os fins deste capítulo. Em geral, Campos é visto com um teórico autoritário e nacionalista12 . Seu compromisso com a sustentação política do Estado Novo e com a redação da Carta de 1937 conferem o tom dos trabalhos sobre ele produzidos. Procuramos evitar partir destes pressupostos ao analisar os seus escritos de juventude, sob pena de procurarmos elementos autoritários em seus discursos, quando ainda não existiam, conforme foi visto. Paulo Bonavides (1979:12,14 e 21) afirma que o líder político mineiro Bias Fortes, por ocasião da reforma constitucional de 1926, já lamentava o pensamento centralizador de F. Campos. Bem sabemos que a reforma ampliou os poderes da União, diminuindo a autonomia dos estados, ao regulamentar mais detalhadamente o artigo sexto, que tratava destas relações. Bonavides afirma que Campos criticou os excessos de regionalismo, que dificultavam a construção da nacionalidade brasileira. No entanto, o próprio autor reconhece que no período não havia uma filiação totalitária de Campos, mas pode ter havido uma “antecipação” doutrinária, que se pressente em seus discursos, sem que, no entanto, abrisse mão de seus compromissos com a liberalismo. Rogério Santos (2007) inova ao perceber Francisco Campos não como um teórico do autoritarismo, mas como um crítico ao constitucionalismo antiliberal, inspirado por Carl Schimitt. O autor fundamenta muito bem seu argumento, quando afirma que a proposta de representação pela via das corporações ou pela via plebiscitária – que seria mais tarde proposta por Campos - já era defendida 12

Entre os diversos trabalhos destacamos: Lamounier (1989), Oliveira (1982) e Beired (1999).

|  129

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

pelo jurista alemão. Além do que, o esvaziamento do Parlamento e a crítica das instituições liberais, que faziam parte do discurso de Campos nos anos 30 e 40, encontravam eco nos trabalhos de Schimitt. Para Santos, Francisco Campos se coloca em uma posição diferente de Alberto Torres, Plínio Salgado ou Alceu Amoroso Lima, os quais vinculam a garantia da ordem ao Estado autoritário. Para Francisco Campos, a democracia seria uma opção, mas não a democracia liberal clássica, mas uma adaptada a nossa própria realidade cultural. Estava mais próximo ao pensamento conservador europeu do que ao autoritário. Embora considere bem fundamentada a hipótese de Rogério Santos, torna-se muito difícil afiançá-la, quando observa-se o comportamento político de Campos, para além de suas ideias registradas em suas obras e discursos. Quando atentamos para as suas práticas, percebemos que o político mineiro contribuiu com a arquitetura de dois regimes autoritários, não só do ponto de vista teórico, como prático. Foi um verdadeiro intelectual orgânico de ambos os regimes, nos valendo de uma visão de Gramsci. A Carta de 37 foi de sua autoria, bem como os dois atos institucionais que inauguraram a ditadura civil-militar. Considerá-lo conservador implica em avaliar ambos os regimes como tais, o que não se justifica. Apesar de não podermos considerar Francisco Campos um escritor autoritário nos anos 20 – e neste ponto concordamos com Rogério Santos ao caracterizá-lo como um conservador - já se percebe em seu discurso, uma crítica aos limites do liberalismo, conforme apontava Bonavides. Chamava atenção para a indiferença do povo e lhe incomodavam as tumultuadas relações entre civis e militares nos anos iniciais da República. Só a unidade em torno da lei seria capaz de preservar a democracia. Mas a partir dos anos 30, é difícil não associá-lo a um projeto claramente autoritário de governo. Para o período que nos interessa, a pesquisa de Rogério Santos abarca uma análise de um ensaio do jovem Francisco Campos, intitulado “Democracia e Unidade Nacional”, publicado em 1914. O trabalho do autor nos informa que Campos já se mostrava crítico à descentralização republicana e ao federalismo em si, desde os seus primeiros escritos. Associava democracia à descentralização, denunciando seus vícios, que eram a ausência de unidade e as ações desagregadoras das facções partidárias. Segundo Campos, eram as tradições monárquicas que permaneceram mesmo após a instituição da República, as responsáveis pela manutenção de uma certa unidade, garantia de sobrevivência do novo regime. Para ele, a democracia liberal era um mal necessário e o ideal seria um governo de juristas, capazes de tutelar as instituições liberais. Para Marco Cabral dos Santos (2007) o pensamento de Campos pode ser observado a partir de três vetores distintos. O primeiro é ver o Parlamento como um obstáculo ao desenvolvimento de um bom regime, dado o seu papel estéril. O segundo é a necessidade de entregar o exercício do governo a uma elite tecnicamente qualificada. E o terceiro é a ideia de que o líder corporifica a nação. Em discordância explícita com o trabalho de Rogério dos Santos, vê Francisco Campos como o grande arquiteto teórico do Estado Novo e portanto, 130 |

cláudia maria ribeiro viscardi

um intelectual autoritário. Para Marco Cabral o regime ditatorial varguista foi uma obra de Francisco Campos. Embora o objetivo do artigo seja estabelecer os vínculos do pensamento de Francisco Campos com o Estado Novo, Marco Cabral também analisou o ensaio de 1914, conferindo destaque ao papel atribuído por Francisco Campos à elite jurídica, capaz de corrigir os excessos do temperamento democrático. Mais tarde, nos anos 30, Campos travaria um debate mais árduo contra a democracia, por ser um regime que permitiria a emergência de doutrinas autoritárias. Com este argumento justificava sua proposta de centralização, para que a própria democracia fosse preservada.

As falas finais Ao traçar este breve panorama, nossa intenção era de inserir nosso ator em seu meio, com o fim de compreender as posições políticas por ele assumidas diante das mudanças em curso na década de 1920. O discurso dos dissidentes, ou seja, os que estavam à margem do poder nos anos 20, manifestava-se pela crítica à República como projeto; pelo desejo de uma uma maior intervenção do Estado sobre a economia; pelo realce dos problemas do federalismo; pela denúncia do caráter oligárquico do regime; por uma visão positiva sobre a Monarquia; pelo nacionalismo que rejeitava o eurocentrismo, o estrangeirismo e a importação de modelos externos; que valorizava símbolos e demais elementos da cultura genuinamente brasileira. Formava-se no período um contra-discurso de mudança, como uma estratégia de emergência ao poder destes mesmos grupos dissidentes. Embora este discurso possa eventualmente relacionar-se às propostas autoritárias, Campos a ele não aderiu naquele momento, por estar comprometido com a sustentação política de Bernardes, no âmbito do regime liberal-oligárquico. Um dos ganhos da análise do discurso como ato de fala é evitar-se o anacronismo. É tentador relacionar o discurso de Campos às ideias autoritárias já existentes nos anos de sua juventude, por já conhecermos seus compromissos futuros com a formulação e manutenção do Estado Novo. Mas a análise de seus discursos no período não autoriza esta interpretação. E a compreensão de seu papel político no período, não como um intelectual, mas como um político emergente, justifica seu papel no campo do conservadorismo liberal, conquanto tenha incorporado parte do discurso crítico difundido por boa parte dos membros de sua geração. No momento em que se projeta na política, Campos esteve mais interessado em pavimentar sua trajetória do que somar-se aos críticos do regime. Afinal, ele não se encontrava à margem do poder. Havia sido alçado ao Partido na condição de um dos seus talentos mais promissores. Cabia a ele defender o governo de Bernardes ante as ameaças representadas pelas oligarquias dissidentes reunidas na Reação Republicana e denunciar a sua instrumentalização |  131

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias...

das rebeldias militares. Como visto, em nenhum momento Campos criticaria os tenentes. Ao contrário, os colocaria como vítimas, ressaltando a injustiça de perder-se a juventude nas batalhas campais. Opunha-se desta forma a alguns setores oligárquicos, sustentando outros. Deixava em aberto futuras parcerias com os militares, poupando-os de sua crítica. Defendia a atribuição de poderes discricionários ao líder, não como uma estratégia de governo, mas apenas como medida excepcional de controle da crise. Seu pensamento era genuinamente pragmático. Sabemos que Campos esteve ao lado dos revolucionários de 30 e foi um dos principais articuladores do golpe do Estado Novo, para ele, um golpe preventivo que viria evitar as distorções da Carta de 1934 – excessivamente liberal – e recuperar os ideais da Revolução. Ou seja, na década de 20 encontramos um jovem Francisco Campos defensor das oligarquias situacionistas e do modelo liberal-oligárquico em curso. Menos de dez anos depois, o vimos atuar ao lado dos mesmos críticos do regime, como os tenentes e os gaúchos. Como explicar as correções de rumo? Ao analisar Campos menos pelos seus ideais, e mais pelo seu pragmatismo político. Era um conservador, interessado em manter-se a ocupar posições políticas de mando e controle. Importante perceber que para ele a revolução de 30 fora um golpe antiliberal e anti-oligárquico. Lembre-se que a Revolução fora conduzida sob a liderança das oligarquias tradicionais, agregando-se a ela os jovens tenentes e os jovens filhos de oligarcas. Boa parte deste grupo era crítico ao Liberalismo, mas todos eram filhos dele e nele haviam sido gestados. A partir de suas experiências, pôde elaborar uma crítica ao regime republicano oligárquico, justamente no momento em que ele não conseguia se abrir para a entrada de novos atores, sedentos por serem integrados. Neste momento, Campos acompanharia Vargas e toda a elite mineira envolvida no projeto revolucionário de 30. Ao fim e ao cabo, mantinha-se governista.

Referências ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1983. ______. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008. AUSTIN, John Langdon. How To Do Things with Words (2. ed.). Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1975. AZZI, Riolando. A neo-cristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulus, 1994. BEIRED, José L. B. Sob o signo na nova ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na Argentina. São Paulo, Loyola, 1999. BONAVIDES, Paulo. Perfis parlamentares: Francisco Campos. Livraria José Olympio e Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro/Brasília, 1979.

132 |

cláudia maria ribeiro viscardi CAMPOS, Francisco. Democracia e Unidade Nacional. In: Antecipações à Reforma Política. Rio de Janeiro, José Olympio, 1914. ______. A Doutrina da População. Rio de Janeiro, Tipographia do Jornal do Comercio. Tese apresentada à Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais para o concurso de lente substituto da 3a secção, 1916. ______. Introdução Crítica à Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1918. CAPELLA, Leila Maria Corrêa. As malhas de Aço no Tecido Social: A Revista “A defesa Nacional” e o Serviço Militar Obrigatório. Niterói - RJ: 1985. Dissertação em História. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense. CARONE, Edgard. Classes sociais e movimento operário. São Paulo: Ática, 1989. CARVALHO, José M. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 2005. CASTRO, Celso. Os militares e a república: um estudo sobre cultura e ação política, Rio de Janeiro: Zahar, 1995. DE LORENZO, Helena de C. e COSTA, Wilma P.(orgs) A década de vinte e as origens do Brasil Moderno. São Paulo: UNESP, 1997. DEL ROIO, Marcos. A gênese do Partido Comunista (1919-1929) In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.) As esquerdas no Brasil: a formação das tradições. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. DRUMMOND, José Augusto. O movimento tenentista: a intervenção política dos oficiais jovens (1922-1935). Rio de Janeiro: Graal, 1986. DULLES, John F. Anarquistas e comunistas no Brasil. 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. DULLES, John W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. FAGUNDES, Luciana P. As ‘batalhas’ no Congresso Nacional em prol da revogação do banimento da família imperial e do traslado dos despojos de D. Pedro II e Thereza Christina para o Brasil (1891-1920). Anais do XXVII Simpósio da ANPUH. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh. org/resources/anais/27/1364567270_ARQUIVO_ArtigocompletoLucianaFagundes.pdf, 2013. FORJAZ, Maria C. S. Tenentismo e aliança liberal (1927-1930). São Paulo: Polis, 1978. GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismos. Lisboa: Gradiva, 1983. GENTIL, Alcides. As ideias de Alberto Torres. 2. ed., Cia Editora Nacional, São Paulo, 1938. GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia das letras, 1987. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. KAREPOVS, Dainis. A classe operária vai ao parlamento: O Bloco Operário Camponês do Brasil (1924-1930). São Paulo: Alameda, 2006. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro, Contraponto e Ed. PUC-RJ, 2006. LAMOUNIER, Bolivar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. Uma interpretação. In: FAUSTO, Boris (ORG.) História Geral da Civilização Brasileira. 5 ed, Rio de Janeiro, Bertrand, 1989. Volume 9.

|  133

a década de 20 e a gênese das ideias autoritárias... MALIN, Mauro. Francisco Campos In: Dicionário da Elite Republicana (1889-1930). Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CAMPOS,%20 Francisco.pdf. Acessado em 09/06/2014. MANN, Michael. The Sources of Social Power: The rise of classes and nation- states. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. ______. A political theory of nationalism and its excesses. Madrid: Instituto Juan March de Estudios e Investigaciones, 1994. MARSON, Adaberto. A ideologia nacionalista em Alberto Torres. São Paulo, Duas Cidades, 1979. MOTTA, Marly da Silva. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da independência. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992. OLIVEIRA, Lúcia L. de. et alii. Estado Novo – Ideologia e poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. PRESTES, Anita L. A coluna Prestes. 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 1991 SANTOS, Marco A. C. Dos. Francisco Campos: um ideólogo para o estado Novo. Locus, Revista de História. Disponível em: http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/ view/1235/981. Acessado em 09/06/2014. SANTOS, Rogério D. dos. Francisco Campos e os fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal no Brasil. Revista dados. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar ttext&pid=S0011-52582007000200003. Acesso em 09/06/2014. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. 2. ed., São Paulo: Cia das Letras, 1992. SILVA, Anderson P. da. Mário e Oswald: uma história privada do modernismo. Rio de Janeiro: Faperj/7Letras2009. SILVA, Lígia O. A crise política no quatriênio Bernardes: repercussões políticas do caso Itabira Iron. In: DE LORENZO, Helena de C. e COSTA, Wilma P.(orgs). A década de vinte e as origens do Brasil Moderno. São Paulo: UNESP, 1997. SMITH, Anthony D. National identity. Londres: Penguin, 1991. ______. Nationalism and Modernism. Londres: Routledge, 1998. ______. Myths and Memories of the Nation. Oxford: Oxford University Press, 1999. ______. The Nation in History. Cambridge: Polity Press,2000. SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1986. TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. VELLOSO, Mônica P. História e modernismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. VISCARDI, Cláudia. M. R. Minas de Dentro para Fora: A Política Interna Mineira no Contexto da Primeira República. Revista Locus, Juiz de Fora, v. 5, n. 2, p. 89-99, 1999. ______. Trabalho, previdência e associativismo: as leis sociais na Primeira República. In: LOBO, Valéria, DELGADO, Ignacio e VISCARDI, Cláudia (orgs.). Trabalho, proteção e direitos: o Brasil além da era Vargas. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010. ______. Teatro das oligarquias: uma revisão da política do café com leite, Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

134 |

Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica: uma síntese tentativa1 Paulo Roberto de Almeida Centro Universitário de Brasília (Uniceub)

1. Introdução: premissas conceituais e suas limitações Abordar a problemática dos padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica implica, implícita ou explicitamente, examinar as mudanças de regime ocorridas em suas configurações ao longo do tempo, discorrer sobre eventuais paradigmas ou conceitos unificadores daquelas características em suas diferentes etapas, bem como tentar detectar aquilo que se costuma chamar de “linhas de continuidade”ou, alternativamente, “momentos de ruptura”, isto é, conjunturas de descontinuidade em relação aos traços predominantes na fase anterior. Representa também identificar os componentes definidores das relações exteriores do Brasil, no seu sentido amplo, em cada um dos períodos pretensamente homogêneos da história nacional, e aplicar, a esses conjuntos, alguns rótulos que supostamente ofereceriam uma síntese de suas identidades respectivas em uma dinâmica de sucessão de políticas. Tais exercícios de síntese não faltam na historiografia nacional, eventualmente até na área das relações internacionais do Brasil, embora sejam bem mais comuns nas áreas da história política ou da econômica. Eles começam sempre por algum tipo de periodização, que serve, justamente, para delimitar as grandes fases da história nacional. Os marcos definidores mais comumente aceitos na historiografia nacional poderiam ser representados por estes processos ou etapas da vida nacional: o período colonial, o primeiro e o segundo reinados (eventualmente intercalados pelas regências), a velha República, a

As opiniões e argumentos desenvolvidos no presente ensaio são as do próprio autor, e não refletem posições ou políticas da instituição diplomática ou do governo brasileiro. 1

|  135

padrões e tendências das relações internacionais...

era Vargas, a República de 1946, o regime militar e, para a fase mais recente, a chamada “nova República”, também identificada como de redemocratização, embora já se esteja longe do processo de reconstrução institucional do final dos anos 1980 e do início da década seguinte. Esses ensaios de periodização também podem se fixar numa vertente menos linear politicamente, e mais de tipo econômico, a partir das grandes características estruturais de cada época: a economia primário-exportadora, a era (e a diplomacia) do café, a industrialização substitutiva de importações, o nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, a modernização autoritária do período militar, ou um alegado (pelos seus adversários ideológicos, mas totalmente inexistente) “neoliberalismo” dos anos 1990, com eventualmente mais alguns processos intermediários. Vários desses rótulos, no entanto, são necessariamente simplificadores e sempre estarão sujeitos às revisões historiográficas que normalmente ocorrem nas ciências humanas e sociais. Pode-se também argumentar que alguns rótulos são francamente ideológicos, como parece ocorrer com o presumido “neoliberalismo”, que alguns observadores – talvez até historiadores – querem associar aos processos de abertura econômica e de liberalização comercial dos anos 1990, uma classificação altamente improvável no caso de um país que jamais foi liberal, muito menos neoliberal, e sempre seguiu uma cartilha abertamente intervencionista, mesmo quando se tratou de corrigir os excessos do estatismo anterior (com governos sempre recorrendo a decretos e medidas provisórias). A fase recente, ou seja, as administrações identificadas com o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores, tem se prestado a algumas das simplificações e abusos a que se submetem alguns momentos de ruptura, quando sua interpretação e registro são dominados pelos discursos daqueles mesmos que querem fazer acreditar que este período de “história imediata” tenha sido de fato marcado por mudanças cujo caráter eles previamente se encarregaram de definir segundo um rótulo escolhido a propósito. Demonizar a chamada “herança maldita”, pespegar o rótulo equivocado de “neoliberal” a qualquer orientação de política econômica que não lhes parece condizente com seus objetivos protonacionalistas e reconhecidamente estatizantes, arrogar-se a pretensão de retomada da “política externa independente” de outras eras, tudo isso faz parte mais da luta política e ideológica do que da análise acadêmica, como deveria ser o propósito legítimo de qualquer governo sério. Tais explicações, convenientes do ponto de vista dos que pretendem definir os traços do período, geralmente em oposição ao que existia no período anterior, e favoravelmente ao que seus protagonistas querem realçar como alegada excelência do seu próprio momento – que seria insuperável em suas qualidades e benfeitorias para o país, como eles gostariam de registrar –, podem ser enfeixadas sob dois outros rótulos: fraude acadêmica e desonestidade intelectual. Como tentar, então, falar de padrões e tendências das relações internacionais do Brasil no longo prazo, da independência à era contemporânea, sem incorrer 136 |

paulo roberto de almeida

em alguns desses rótulos simplificadores e buscando ser o menos ideológico possível? O exercício é arriscado, inclusive porque o autor destas linhas não costuma prender-se a conceitos acadêmicos, mesmo os mais sofisticados – como, por exemplo, a autonomia pelo distanciamento, ou a mesma, pela participação –, nos trabalhos mais descritivos ou interpretativos produzidos nos últimos anos, e tampouco se deixa enredar nas legitimações oficiais das políticas públicas, que sempre trazem a marca da chamada langue de bois, mais vulgarmente conhecida entre nós como discurso “chapa branca”. Este ensaio não pretende sucumbir a qualquer um dos escolhos que costumam marcar certos consensos acadêmicos ou que soem frequentar os escritos e discursos de acadêmicos ou diplomatas. O autor não se considera suficientemente acadêmico para juntar-se às manias temporárias das academias, nem se assume como um diplomata politicamente correto para aderir acriticamente ao discurso do momento, aliás, de qualquer outro momento. Ele se vê apenas um observador da realidade ambiente e um estudioso da história, o que lhe permite fazer seus próprios julgamentos, sem ter de apelar a paradigmas universitários consagrados ou submeter-se a qualquer versão oficial da história. A História, aliás, não pode ter versões oficiais, pelo menos não deveria, ainda que governos, ou melhor, pessoas de governos sempre tentem assim proceder. Mas mesmo adotando uma perspectiva libertária no plano intelectual, e pouco disciplinada no contexto profissional, não é fácil escapar de certos constrangimentos metodológicos e de algum enquadramento conceitual, que estão inevitavelmente vinculados a qualquer tipo de empreendimento acadêmico que se pense fazer em torno da questão, tal como posta aqui: padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica. Este ensaio procurará ser o mais objetivo possível, ainda que não se possa evitar algum grau de subjetividade na escolha dos temas e das questões relevantes que é possível identificar nessa área relativamente complexa da atividade governamental.

2. Periodização tentativa: cinco momentos das relações internacionais do Brasil Em qualquer tipo de exercício histórico, é inevitável começar por algum tipo de periodização, abordagem aliás incontornável, em vista das importantes transformações, com graus diversos de aprofundamento, que o Brasil enfrentou desde sua constituição, enquanto Estado nacional independente, até o período contemporâneo, tanto na esfera política quanto no domínio econômico. Podemos adotar, para tal exercício, a divisão clássica da historiografia nacional, que cobre razoavelmente bem os três primeiros períodos, e que podem circunscrever, igualmente, as relações externas da nação: o Império, até 1889; a Velha República, até 1930; e a era Vargas, que, numa certa concepção, vai até 1964. O regime militar, de 1964 a 1985, representaria um quarto período |  137

padrões e tendências das relações internacionais...

identificado com um rápido e intenso processo de modernização do país, mas com pouca, por vezes quase nenhuma, autonomia da cidadania no que se refere à representação política e aos espaços decisórios a ela correspondentes, que de fato não foram livres e estiveram muito pouco abertos a concepções alternativas de organização econômica e política da nação; mas ele também correspondeu a uma forma peculiar de o Estado organizar as suas relações exteriores. Por fim, à falta de melhor termo, e como se trata de um espaço de tempo que cobre, grosso modo, uma geração, costumamos nos referir ao período contemporâneo, o quinto da periodização aqui adotada, como sendo a era da redemocratização, mas este é um termo genérico, ou indistinto, que provavelmente será revisto pela historiografia do futuro; afinal, no que se refere às suas relações exteriores, a redemocratização também correspondeu a um novo perfil com o qual o Brasil se apresentou na cena internacional. Como parece mais interessante, ou necessário, examinar este último período de forma mais detalhada, ele será dividido, por sua vez, em quatro diferentes momentos das últimas três décadas: (a) a redemocratização, estrito senso, que corresponde ao processo de reconstitucionalização do país, entre os anos de 1985 e 1989, quando também o país passou a oferecer um outro discurso no plano externo, tendo retomado, por exemplo, o processo de integração regional; (b) os anos de crise e de transformação, uma conjuntura bastante confusa que corresponde à aceleração inflacionária e às crises político-econômicas dos anos 1990-1994, culminando na estabilização do Plano Real, período no qual as relações financeiras internacionais do Brasil podem até ter prevalecido sobre outros aspectos de suas relações internacionais; (c) a consolidação da estabilidade e a reinserção do Brasil no mundo, num movimento bastante aberto e receptivo à globalização, anos que correspondem aos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso; e, finalmente, (d) a grande afirmação internacional do Brasil e a transformação do cenário político nacional, nos anos distributivistas do governo Lula, que foram identificados à chamada diplomacia Sul-Sul, período ainda em aberto. O ensaio tratará perfunctoriamente dos quatro períodos anteriores à fase contemporânea, que figuram aqui apenas a título de enquadramento histórico preliminar à discussão dos problemas atuais das relações internacionais do Brasil. Maior atenção será dedicada, como já indicado, ao período atual, mesmo sob risco de algumas dificuldades interpretativas, já que o discurso oficial da diplomacia brasileira, por um lado, ou os diversos enfoques analíticos privilegiados na academia, por outro, sempre podem estar sujeitos a certo imediatismo de tipo subjetivo ao tratar da presente fase. 2.1. O Império: a construção da nação e as bases de sua diplomacia

A emergência do Estado, no Brasil, e, portanto, de suas relações internacionais, se fez com base na herança portuguesa deixada por D. João VI em 1821. Na “herança” figuravam os conflitos no Prata, algumas pendências com Estados 138 |

paulo roberto de almeida

europeus (Espanha, por exemplo) e diversos compromissos assumidos pela ex-potência colonial obrigando o Brasil, como o tratado de comércio de 1810 com a potência protetora, ou já em nome do Reino Unido, como o de abolição do tráfico, no quadro do Congresso de Viena. Eles não deixaram de apresentar consequências práticas para a economia do Estado nascente. A primeira providência, contudo, foi a de assegurar o reconhecimento do novo Estado, processo que se delongou por três anos, tempo necessário para concretizar negociações com Portugal e com a Grã-Bretanha, de escopo sobretudo financeiro. O Brasil começou assumindo para si empréstimos contraídos pela Coroa portuguesa na Grã-Bretanha, e também por acatar indenizações em favor do soberano português: a longa trajetória, tortuosa e torturada, da dívida externa começou naquele mesmo momento. Os esforços para assegurar o livre trânsito no Rio da Prata – indispensável para o acesso às províncias brasileiras do interior, pela via dos rios da bacia platina – e certo controle de segurança sobre as fronteiras meridionais também ocuparam a nascente diplomacia, na qual iniciativas tomadas pelo próprio primeiro imperador muitas vezes predominavam sobre as opiniões da Assembleia Geral ou sobre outras orientações do governo de gabinete. A guerra em torno da Cisplatina, bem como as desavenças familiares em torno da sucessão do trono português consomem recursos e a atenção do chefe de Estado, terminando por gerar conflitos políticos que encontrariam o seu desenlace no ato de abdicação de 1831. Antes, contudo, frustrado pela recusa da Grã-Bretanha em renunciar às vantagens que lhe tinham sido concedidas pelo tratado de comércio de 1810, o governo resolveu estender os privilégios da tarifa baixa aos demais países que buscavam estabelecer relações comerciais com o Brasil. O problema do tráfico foi outro irritante nas relações com a principal potência da época, questão sobre a qual as elites dominantes do Brasil tergiversaram enquanto foi possível, em meio a demonstrações da prepotência britânica; o assunto se arrastou por um quarto de século após um tratado de “abolição” (“para inglês ver”) de 1826, até a lei de proibição do tráfico de 1850. As regências foram mais dominadas por conflitos internos do que externos, ainda que a situação turbulenta do Prata e outras incertezas quanto às fronteiras amazônicas continuassem preocupando o governo. Mas foi nessas circunstâncias que foram assentadas algumas das bases da diplomacia imperial, entre elas a preocupação com os equilíbrios do Prata, o que significava, basicamente, garantir a independência do Uruguai e do Paraguai em face das pretensões e dos interesses de Buenos Aires, cujos líderes pretendiam reconstruir o ViceReinado do Prata, que se estendia até o sul da Bolívia. Essa preocupação levou o Brasil a mais de uma intervenção nos assuntos internos do Uruguai, um dos vetores para assegurar esse equilíbrio e a liberdade de acesso, o que culminou com a aliança com os inimigos de Rosas, ditador de Buenos Aires, e acabou resultando, mas por outros motivos, na guerra do Paraguai. Esse conflito, a maior guerra na qual o Brasil se envolveu, é até hoje uma tragédia paraguaia, deixando marcas também em certa historiografia enviesada; ela foi oportu|  139

padrões e tendências das relações internacionais...

namente revista, e corrigida, pelo historiador Francisco Doratioto, cujo livro, Maldita Guerra, desfaz muitos mitos e equívocos cometidos por historiadores dos quatro países envolvidos no conflito. O Império não tinha vergonha ou remorsos de suas intervenções no Prata, comportamento de certa forma “imperial” que, a partir da era Vargas, passou a ser apagado da historiografia nacional, num exercício precoce de revisionismo histórico: tenta-se eludir o fato de que o Brasil praticou intervenções nas tribulações platinas, não exatamente para ampliar o território, mas para garantir a segurança e a integridade de suas fronteiras meridionais. O Império foi um renitente tomador de empréstimos externos, e um bom pagador, ainda que fosse eventualmente obrigado a contrair novos empréstimos para pagar os anteriores. Mas o Império sempre honrou as suas dívidas, o que já não mais seria o caso da República, que incorreu em moratórias e em insolvências diversas vezes ao longo de mais de um século de anarquia emissionista e de esquizofrenias econômicas. 2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

A República começou confusa, revisando as bases da diplomacia imperial, e se mostrando simpática aos americanos do norte e do sul, consoante o refrão do Partido Republicano: “somos da América e queremos ser americanos”. Com os primeiros foi contraído um acordo comercial rapidamente desconstruído pelo errático protecionismo americano, embora nunca tivesse havido, na história econômica mundial, país tão protecionista quanto o Brasil, sob o Império, sob a República, sob qualquer regime, até hoje, aliás. Com os segundos, mais especialmente com os argentinos, o primeiro chanceler da República acertou um acordo de fronteiras que praticamente deixava o Rio Grande do Sul isolado do Brasil, já que reproduzindo alguns mapas maldesenhados do tratado de Madri; o Congresso recusou aprovação para esse acordo malcosturado, o que permitiu a Rio Branco começar a brilhar, logo depois, na demarcação por via arbitral das fronteiras da pátria. Justamente, nos primeiros dez anos de regime republicano, o Brasil teve praticamente dez chanceleres, senão mais, ao passo que teve um só nos dez anos seguintes. O Barão se identificou tão completamente com as bases da política externa do Brasil que virou o patrono da diplomacia brasileira, passando a figurar em cédulas de praticamente todos os regimes monetários desde 1913. Estes foram muitos, ao longo do século XX: mil-réis (e bilhetes da caixa de conversão em 1906), cruzeiro em 1942, cruzeiro novo em 1967, de volta ao cruzeiro três anos depois, cruzado em 1986, cruzado novo em pouco mais de dois anos, cruzeiro de volta em 1990, cruzeiro real e, finalmente, o real (o Barão do Rio Branco só esteve ausente da URV, pois esta não conheceu bilhetes impressos, já que tratou de uma moeda virtual).

140 |

paulo roberto de almeida

Na Velha República, assim como o Brasil era café e o café era o Brasil, a diplomacia era o Barão e o Barão era a diplomacia: desde então, nunca mais se conseguiu superar o paradigma, embora alguns tenham tentado imitá-lo, até em longevidade. Mas o Barão tinha uma noção muito precisa do equilíbrio que era preciso manter entre os interesses europeus e americanos no Brasil, e sobre como conduzir os negócios sul-americanos do Brasil, com plena afirmação, sem arrogância, mas também na estrita defesa dos interesses nacionais, sem qualquer concessão a algum vizinho mais afoito ou atrabiliário, de qualquer tamanho que fosse. Ela não dava muita relevância para ideologias, mas dava, sim, muito valor às ideias, se possível claras, diretas, sem afetação e sem ceder a modismos circunstanciais, e sem precisar lembrar o tempo todo que estava defendendo a soberania nacional (para ele isso era tão evidente que sequer precisava ser dito, o que poderia denotar algum sinal de insegurança psicológica). Sem bravatas, conseguiu manter a Argentina no seu lugar – ou seja, sem interferir na capacitação estratégica do Brasil – e também entreteve boas relações com bolivianos, assim como o teria feito com bolivarianos, se por acaso existissem em sua época. O Barão não cultivava nenhuma mania de catalogar geograficamente a política externa, para o Norte, para o Sul, ou para qualquer direção: ele simplesmente cuidava pragmaticamente da política externa, e sempre disse, desde o primeiro dia, que não tinha entrado no governo para servir a partidos, e sim ao Brasil. Uma lição razoável para os dias que correm, embora não se possa esperar que todos os homens públicos sejam razoáveis, ou pautados pelo simples bom senso, como parecia ser o Barão. Uma das grandes questões das relações internacionais do Brasil, que o Barão teve de administrar em sua época – mas a mesma questão permanece até hoje, cem anos depois, ainda que de forma talvez um pouco diferente – foi a transição de projeção de poder entre o velho hegemonismo imperial britânico e a crescente ascendência da nova potência americana, o que ele fez de modo muito natural, sem qualquer demanda por uma relação especial e sem afetar qualquer tipo de hostilidade vazia ou descabida. Quando teve de se opor a posições americanas – o que ocorreu tanto na conferência americana do Rio de Janeiro, quanto na segunda Conferência da Paz da Haia – ele assim procedeu sem pedir licença a ninguém, mas também sem vangloriar-se de tal feito. Não precisou ficar agredindo a potência hemisférica apenas porque ela não reconhecia o papel do Brasil na região e em outras esferas. Depois do Barão, o Brasil conheceu pequenos e grandes chanceleres, como Oswaldo Aranha, por exemplo, que, já na era Vargas, soube avaliar muito bem onde estavam os interesses brasileiros numa era de enfrentamentos globais, tendo conseguido preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas adequadas e convenientes em função dos interesses de longo prazo do Brasil, numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas. |  141

padrões e tendências das relações internacionais... 2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

A menção a Oswaldo Aranha nos leva justamente à era Vargas, que começou quando os gaúchos amarraram seus cavalos no Obelisco do Rio de Janeiro, para ali ficar durante algumas décadas, pelo menos até o final do regime militar. A revolução que levou Vargas ao poder não teria acontecido, precisamente, se não fosse por Oswaldo Aranha, um líder decidido, decisivo, e de clara visão quanto aos problemas do Brasil, bem como sobre os melhores caminhos para resolvê-los. Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas – no sentido vulgar da expressão – para preservar-se no poder durante breves quinze anos, como ele mesmo mencionou. Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução de outubro de 1930. Sem ele, aliás, provavelmente a política externa do Brasil, no decorrer dos anos 1930, e ao longo da Segunda Guerra, teria sido muito diferente, e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos, que se mantiveram neutros – na verdade simpáticos aos nazifascistas – até quase o final da guerra, e só mudaram de posição por pressões americanas e muitos gestos brasileiros. Talvez não só a política externa, mas também a própria política econômica do Brasil e sua posição internacional teriam sido muito diferentes, caso Oswaldo Aranha tivesse ascendido a posições ainda mais altas na política nacional, o que ele não fez por amizade e condescendência com Getúlio e em virtude das várias traições deste último. Ele poderia ter sido presidente em 1934, em 1938, na redemocratização pós-1945, e também em qualquer um dos pleitos que foram feitos na República de 1946, até 1960, quando morreu, de certa forma ainda jovem. O Brasil teria adotado outras políticas econômicas, mais liberais, menos estatizantes ou protecionistas, mais abertas ao capital estrangeiro e a uma presença internacional de maior prestígio, graças à inteligência, habilidade política e conhecimento do mundo e dos grandes líderes que Aranha exibia. Mas estas são hipóteses que pertencem ao terreno da história virtual, aos “big ifs” da trajetória da nação. A era Vargas só termina, de fato, em 1964, quando militares efetivam um golpe para afastar as forças varguistas e populistas que eles consideravam nefastas ao desenvolvimento do país. Antes disso, durante a República de 1946, o Brasil manteve uma política externa tradicional, que um crítico chamou de “bacharelesca”, e que outros apelidavam de “punhos de renda”. De fato, antes que os militares entrassem com os seus punhos de aço – inclusive projetando poder brasileiro sobre outros governos do Cone Sul – os bacharéis da diplomacia brasileira conduziram uma diplomacia bastante previsível em seus grandes traços de alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de aparente modernização, quando se tentou impulsionar ações e iniciativas próprias do país, sempre voltado para as questões cruciais do desenvolvimento econômico. O Brasil pretendia, por exemplo – tanto na conferência interamericana de Bogotá, em 1948, quando se criou a OEA, quanto nas demais conferências eco142 |

paulo roberto de almeida

nômicas subsequentes desse organismo, e nas reuniões da Cepal, ou no projeto de JK de uma Operação Pan-Americana –, que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano Marshall para a América Latina, ou seja, a transferência de capitais governamentais americanos para impulsionar o desenvolvimento econômico da região. Os EUA sempre responderam – aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá – que os países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar-se bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de terras. As mesmas recomendações eram feitas, aliás, pela Cepal, assim como pela OEA, pelo Banco Mundial e por muitos economistas estrangeiros e da própria região. O Brasil, assim como outros países da região, aprecia os capitais estrangeiros, mas não tanto os capitalistas estrangeiros, assim que o seu grau de abertura externa sempre permaneceu limitado, estritamente dependente de capitais de empréstimos. O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo. O Brasil, de fato, deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena nessa época, processo que depois seria completado pelos militares, mas com as deformações estruturais que se conhecem – de protecionismo excessivo, de introversão tecnológica, de custos muito altos – que pesariam muito na fase ulterior de descontrole inflacionário e de baixo coeficiente de abertura externa. A chamada “política externa independente”, que teve início com Jânio Quadros e Afonso Arinos, e continuou sob Jango e seus muitos ministros, transformou-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente, como tendo sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. Registre-se, porém, que esta reversão ao alinhamento quase incondicional se desenvolveu por um tempo relativamente limitado, pois a partir de 1967, no segundo governo da era militar, já ocorreria uma recondução a padrões mais afirmativamente desenvolvimentistas e orientados para o pleno exercício da soberania brasileira. As avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão, talvez, ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda; caberia, provavelmente, uma revisão historiográfica mais acurada, para recolocá-la em seu contexto histórico de mudança geral nas relações internacionais – processos como os da descolonização e de um começo de détente entre as duas grandes potências – e também nos próprios padrões da diplomacia brasileira, que seguia as transformações rápidas que passaram a ocorrer no país desde meados dos anos 1950. |  143

padrões e tendências das relações internacionais... 2.4. O regime militar: consolidação do corporativismo diplomático

Consoante a intenção de discorrer brevemente sobre a diplomacia brasileira das eras que precederam o período contemporâneo, cabe também ser breve sobre o regime militar, em grande medida porque já existem dezenas de teses acadêmicas e muitos livros sobre o período, inclusive do ponto de vista diplomático, mas cuja qualidade e sobretudo objetividade, como soe acontecer em relação a muitas outras avaliações dessa fase autoritária da história nacional, podem ser consideradas divergentes, em função, precisamente, dos preconceitos políticos e da memória “sentimental” da geração que viveu na carne aquelas duas décadas de fechamento político e de muita contestação por parte da chamada intelligentsia nacional. Tais circunstâncias políticas podem dificultar um julgamento mais matizado sobre o período, feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados pelo supercentralismo estatal e uma política de superaquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda atualmente. A historiografia brasileira sobre o período também mereceria um sério esforço de revisão, para afastar maniqueísmos e simplismos que ainda caracterizam boa parte da literatura especializada produzida em torno e a propósito do regime militar. Em todo caso, na diplomacia, depois de alguns poucos anos de alinhamentos com o império – o que levou o Brasil a romper com Cuba, a enviar tropas para a República Dominicana, e aprovar uns quantos atos favoráveis ao capital estrangeiro na legislação econômica –, logo se voltou, até com maior empenho, a um padrão de comportamento que foi chamado de desenvolvimentista (certamente) e de terceiro-mundista, no sentido mais corriqueiro da palavra. Em outros termos, se passou ao alinhamento em favor de teses reformistas da ordem econômica internacional, do tratamento especial e diferenciado em favor dos países em desenvolvimento, do princípio da não reciprocidade nas relações comerciais, de modo a refletir as novas aspirações das economias que buscavam industrialização e acesso a mercados. Os problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados, o que envolvia não apenas a recusa formal dos mecanismos de não proliferação nuclear e de salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, como implicava também conflitos potenciais com as potências guardiãs da ordem nuclear e com a própria Argentina, cujos sucessivos regimes militares (e também civis) perseguiam igualmente a tecnologia nuclear, numa competição pouco saudável para ambos os países. Ocorreram conflitos menores com os Estados Unidos, no terreno comercial e em diversas votações dos organismos da ONU, no contexto subjacente do enorme problema da dependência financeira e da quase completa dependência da importação de petróleo, uma vez que o histórico nacionalismo petrolífero não permitia qualquer associação da monopolista estatal com empresas estrangeiras, obviamente mais capacitadas em tecnologias de prospecção e de 144 |

paulo roberto de almeida

exploração. Havia também o clima de renovada Guerra Fria, com a aparente expansão mundial da União Soviética, o que levou o Brasil à participação em alguns golpes contra regimes ditos progressistas na América do Sul, cujos contornos e intensidade não foram ainda totalmente esclarecidos pelos arquivos militares e diplomáticos. De resto, os militares conduziram uma política econômica, e externa, bastante nacionalista e autárquica, o que levou o Brasil a inacreditáveis índices de autossuficiência no abastecimento interno, que jamais seriam igualados desde então, embora o protecionismo comercial continue renitente, e até renovado em sua pujança. O regime militar foi, justamente, mais derrotado pelos seus erros econômicos – inflação galopante, crise da dívida externa, crescimento errático – do que pela eventual dureza da ditadura política, relativamente morna comparada a padrões mais brutais observados em países vizinhos. Os cidadãos brasileiros saíram às ruas para protestar contra a ausência de eleições diretas, mas, na verdade, a transição foi negociada e basicamente aceita pelos militares, inclusive porque se partiu de uma dupla anistia que alguns pretendem atualmente revisar, com certo ânimo de vingança. O regime militar se esgotou nele mesmo, mais do que foi derrubado pelas forças de oposição, ainda que existisse um forte movimento de opinião contrária. Os militares não tinham sucessor próprio, e aceitaram compor, em 1984, com o candidato moderado das oposições. No âmbito da política externa, pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”, se cabe o contraditório, no sentido em que a corporação dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e operacional, inclusive com os vários diplomatas se sucedendo à frente do Itamaraty. A Casa se profissionalizou mais ainda, criando uma corporação bastante autocentrada, que depois seria objeto de críticas de certa diplomacia partidária que se manifestou mais adiante. Em todo caso, a autonomia funcional obtida durante o regime militar tinha suas peculiaridades e a historiografia especializada ainda precisa fazer o balanço dessa época, no que tange ao aparato institucional do Itamaraty no período. Sob o regime militar, os valores e princípios essencialmente profissionais cultivados pela diplomacia foram ainda mais acentuados por uma relativa introversão do corpo diplomático no estrito cumprimento de seus deveres funcionais, o que de certa forma foi permitido pelo mútuo respeito que mantinham as duas corporações mais tradicionais do Estado brasileiro – soldados e diplomatas –, aliás, de qualquer estado. Assim, o estamento diplomático preservou as tradições de profissionalismo e de adesão aos grandes princípios, mesmo quando certas iniciativas do regime – em relação a governos progressistas na América do Sul, por exemplo – destoaram do padrão normalmente seguido pela estrita política de não intervenção do Itamaraty. O alto profissionalismo de seu corpo de funcionários permanentes, o respeito absoluto ao direito internacional, a seriedade no tratamento dos dossiês |  145

padrões e tendências das relações internacionais...

diplomáticos, a preservação das tradições herdadas do Império (de fato, as boas qualidades da velha diplomacia lusitana) passaram a ser, assim, uma marca distintiva do serviço exterior brasileiro em face de congêneres no continente e além. “El Itamaraty no improvisa” era uma frase muito ouvida na Casa de Rio Branco durante décadas, tanto se tornou um refrão repetido incessantemente durante anos a fio, mas caberia indagar se ela ainda é válida, não exatamente na diplomacia, mas na política externa. A principal ferramenta da diplomacia é o corpo de funcionários permanentes a ela dedicados, mas o conteúdo mesmo da política externa é dado pelo soberano, seja ele, dependendo do país, o monarca, um chefe de gabinete, o presidente ou até um ditador ou uma junta militar.

3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil A quinta etapa desta periodização tentativa é a atual, aliás imediatamente contemporânea, fase que costuma ser enfeixada sob o conceito de redemocratização, ou de Nova República, o que parece pouco apropriado para uma correta apreciação de todos os seus matizes e rupturas, por vezes dramáticas, seja no plano político, seja, especialmente, na área econômica. O termo tampouco se presta a uma caracterização mais precisa de suas implicações e peculiaridades do ponto de vista da política externa; esta tem a ver com a capacidade de projeção externa e de defesa dos interesses do país no plano mundial, o que também tem pouco a ver com a natureza de um determinado regime político. Algumas considerações iniciais, de caráter conceitual, são de rigor. Ditaduras exibem política externa e capacidade de projeção internacional, tanto quanto as democracias. Por vezes se tem a situação esdrúxula de ver democracias ditas ideais se comportarem de modo arrogante no plano externo – comportamentos ditos imperiais, ou unilaterais –, assim como perfeitas ditaduras podem exibir, por exemplo, uma política externa formalmente correta, sem ofender o direito internacional. É claro que um país democrático sempre possuirá uma melhor imagem internacional do que uma ditadura aberta. O Brasil dos militares não conformou a pior das ditaduras do planeta, e certamente não no plano regional, mas não se pode negar que a volta à democracia e o respeito aos direitos humanos, tanto quanto a estabilidade econômica, fizeram um bem enorme ao Brasil, desde meados dos anos 1980 e especialmente após conquistada a estabilidade econômica. Ainda persistem problemas quanto ao respeito dos direitos humanos, não por motivos políticos, mas de pessoas comuns; também esses aspectos serão corrigidos, pouco a pouco... A redemocratização é, portanto, um conceito inadequado, para discorrer sobre a evolução e as novas características da política externa brasileira, que deve ser vista em seu âmbito próprio, inclusive porque a diplomacia pode guardar certa distância das tribulações da política interna. Por isso mesmo, uma nova subdivisão se impõe como forma de apreender as mudanças ocorridas ao longo do último quarto de século. 146 |

paulo roberto de almeida 3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

O ano de 1985 é o ponto de partida de um período marcado pela reconstrução constitucional do país, depois de mais de duas décadas de regime autoritário militar. Ele foi seguido pelos anos turbulentos de reformas econômicas e sociais, com a chamada ruptura do “neoliberalismo” – um termo profundamente equivocado, mas que pode contentar os mais estatizantes, ao risco de descontentar os verdadeiramente liberais. O período de reconstitucionalização foi marcado por algumas importantes mudanças conceituais e práticas nas relações internacionais do Brasil. Essa segunda fase do período contemporâneo foi especialmente conturbada em todas as frentes das políticas públicas, mas ela desembocou no processo de estabilização macroeconômica comandada por FHC – primeiro como ministro econômico, depois em dois mandatos como presidente –, ela mesma profundamente perturbada pelas crises financeiras dos anos 1994 a 2002, com todos os ajustes adicionais que o país teve de fazer para superar essas conjunturas difíceis nos contextos econômicos nacional e internacional. Finalmente, a partir de 2003, o país entrou numa fase bem diferente das precedentes, e que continua, mesmo na ausência do seu promotor e patrono, com políticas na área externa bastante distintas daquelas seguidas nos períodos anteriores. Pode-se distinguir, pois, quatro grandes fases da vida política e econômica nacional, desde o final do regime militar, às quais não caberia, por enquanto, atribuir qualquer novo rótulo simplista, o que aliás denotaria uma falsa identidade entre, de um lado, os processos em curso nos terrenos da política e da economia, na frente doméstica e no plano internacional, e, de outro lado, nas relações internacionais do país, uma área que por vezes apresenta um comportamento de certa forma autônomo em relação aos desdobramentos que ocorrem no cenário interno no período contemporâneo imediato. Essa relativa autonomia das relações exteriores do país, em relação às duras realidades da conjuntura interna, pode ser vista como algo relativamente natural, considerando-se as distintas modalidades de tomada de decisões em cada frente, ou os procedimentos adotados na condução das relações exteriores, mais autocentrados, em face, por exemplo, das intensas pressões que se exercem em qualquer área das políticas públicas na frente interna. Ela também depende da personalidade e do engajamento do presidente, que dispõe de ampla margem de manobra nessa área, mas que também pode escolher para liderá-la um aliado político ou um profissional da própria diplomacia, casos nos quais se apresentam agendas e resultados eventualmente diferentes, em função das próprias personalidades e suas perspectivas políticas. Não se pode tampouco negligenciar os influxos ou demandas externas, já que a agenda internacional se faz, ou se constrói, a partir de outras forças e outras dinâmicas, às quais o país nem sempre consegue influenciar ou se adaptar de modo adequado, sem falar de crises externas, ou de desequilíbrios internos que se transformam em crises de transações correntes ou em outros desafios do gênero. |  147

padrões e tendências das relações internacionais...

Em qualquer hipótese, uma característica distingue profundamente as três primeiras fases deste exercício de periodização de sua fase mais recente, a que se desenvolve no presente, enfeixada sob o rótulo ainda provisório do “lulopetismo”. Nos três primeiros períodos – chamemo-los, simplificadamente de “redemocratização”, de “ruptura neoliberal” e de “reformas globalizadoras” – as relações exteriores do Brasil, no plano estritamente diplomático, estiveram enfeixadas, talvez dominadas, pelo staff diplomático, ou seja, o próprio corpo de profissionais do Itamaraty, que forneceu alguns ministros, conselheiros presidenciais e, mais importante, determinou grande parte da agenda externa, senão toda ela; ocorreu, também, o fato relativamente inédito, desde a ditadura do Estado Novo, de uma grande estabilidade na condução da política econômica, com um único ministro da Fazenda a permanecer durante dois mandatos presidenciais no comando da pasta. O período do “lulopetismo” foi caracterizado por muitos observadores como sendo o de uma diplomacia partidária, o que parece evidente em muitas opções de política externa, com claro distanciamento em relação às linhas tradicionais de ação do Itamaraty, e também pelo fato de que o conselheiro presidencial é um funcionário do partido, bem menos identificado com as posturas relativamente neutras do corpo diplomático em diversas matérias da política internacional e regional. Cabe agora examinar, na sequência, os padrões e as características das relações internacionais do Brasil no período atual, ou seja, na fase da redemocratização estrito senso, na fase da ruptura “neoliberal” e dos ajustes reformistas, ambos dos anos 1990, e, finalmente, na fase da diplomacia partidária iniciada com o “lulopetismo”, ainda em curso. Serão igualmente sugeridos alguns elementos interpretativos sobre as grandes tendências da diplomacia brasileira em cada uma dessas fases, com considerações finais sobre as características do desenvolvimento brasileiro e seus desafios mais importantes. 3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

O processo de reconstitucionalização do país, engajado ao término do regime militar e no seguimento de diversos outros atos relevantes da história política do País, não foi efetuado mediante a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, que tivesse trabalhado independentemente das demandas que normalmente se exercem sobre os representantes e partidos engajados na luta pelo poder. Optou-se por um Congresso Constituinte, que procedeu em bases relativamente inéditas, mesmo tendo sido precedido por uma Comissão Constitucional, da qual ele não acolheu formalmente as propostas feitas por um grupo selecionado pelo vice-presidente, escolhido na eleição indireta feita no período autoritário, empossado como presidente na doença do titular. A Constituição saída desse exercício não produziu alterações radicais no plano das relações internacionais do Brasil, mas algumas características merecem ser apontadas na sequência desta apresentação. O novo texto constitucional 148 |

paulo roberto de almeida

contemplou toda uma gama de novas garantias e benefícios constitucionais que repercutiram de maneira definitiva na organização econômica e social da nação, mas negativamente, já que distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil. O contrato social efetuado pela nova constituição andou na direção de distribuir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada, distorção econômica que ainda não foi corrigida pelos contemporâneos. A fase da democratização foi marcada por essa mudança política fundamental, ou seja, uma Carta prolixa, carregada de direitos e benefícios para todos os brasileiros, exageradamente nacionalista, ou introvertida, num momento em que o mundo se abria a nova fase da globalização. Mas essa fase também esteve caracterizada por uma inegável deterioração da situação econômica, o que levou as autoridades econômicas a implementar diversos planos de estabilização, todos fracassados até o advento do Plano Real. O Brasil acumulou, nesses anos de 1985 a 1994, mais inflação do que em toda a sua história pregressa, estimada por alguns economistas em cifras astronômicas, na casa de alguns quatrilhões por cento, com todas as trocas de moedas. Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que tenha tido, não uma ou duas trocas de moedas, mas cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras poucas vezes visto no cenário mundial das hiperinflações. Senão vejamos: do cruzeiro ao cruzado, em 1986, depois ao cruzado novo, dois anos depois, seguido pela volta ao cruzeiro, logo adiante, que foi por sua vez substituído pelo cruzeiro real, até chegar ao real, passando por uma moeda indexada, a URV, unidade real de valor. Isso se descontarmos a troca do cruzeiro pelo cruzeiro novo, em 1967, voltando ao antigo padrão três anos depois, que por sua vez já tinha se substituído ao mil-réis (uma moeda já inflacionada, como evidenciado pelo seu próprio nome) em 1942. Em matéria de padrões e mudanças de regimes econômicos e monetários, o Brasil foi, sem dúvida alguma, um campeão mundial. As mudanças constitucionais nas relações internacionais estrito senso, foram menos relevantes, ou quase imperceptíveis, registrando-se apenas a consolidação dos valores e princípios pelos quais se deveria guiar o Brasil – promoção e defesa dos direitos humanos, por exemplo, repúdio ao terrorismo, entre outros – e a inscrição, inédita nos textos anteriores, da busca da integração latino-americana como uma espécie de obrigação constitucional imposta ao país no seu relacionamento com os vizinhos. A demanda pela integração regional pode ser até legítima, mas deve-se reconhecer que ela é rara nos anais do constitucionalismo mundial, podendo talvez existir no contexto europeu nas últimas duas ou três décadas. Esse preceito da integração latino-americana – pela qual lutou o senador Franco Montoro – cria, em todo caso, uma agenda praticamente compulsória para as relações exteriores do país, que terá de buscar atender ao requisito, in|  149

padrões e tendências das relações internacionais...

dependentemente do contexto regional, das condições políticas e econômicas vigentes nos países vizinhos, de suas orientações políticas, ou de sua própria factibilidade, para não dizer de sua razoabilidade ou racionalidade econômica. Alguns economistas poderiam argumentar que, de um ponto de vista estritamente econômico, seria muito melhor a abertura econômica e a liberalização comercial unilateral, e a ênfase nos acordos multilaterais, antes que nos esquemas minilateralistas, sempre discriminatórios, do que essa necessidade de se construir um bloco econômico regional, mas aparentemente ninguém cogitou mudar esse dispositivo, no quadro de emendas constitucionais que foram corrigindo, nos anos 1990, os excessos mais evidentes do nacionalismo econômico e do estatismo renitente do texto original da Constituição. 3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

A presidência Sarney, a despeito do nome pretensioso de Nova República, representou um retorno do sistema político aos padrões mais usuais da Velha República, com criação de ministérios, cargos, distribuição de favores, a própria mudança para um mandato de cinco anos, no regime presidencialista, contra as expectativas constituintes de um regime de feições mais parlamentaristas e de um retorno aos quatro anos tradicionais da Velha República. A presidência Collor, por sua vez, constituiu um episódio inédito para os padrões conhecidos na Velha ou na Nova República. Começou com uma promessa praticamente impossível, de terminar com a inflação – que ao finalizar o governo Sarney alcançava 80% ao mês – com um golpe de “ippon”, típica de um lutador de caratê, e terminou com a vitória da inflação sobre o caçador de marajás, e seu afastamento da maneira mais melancólica possível, por acusações de corrupção e de desvio de recursos públicos. Em todo caso, o governo realmente começou com um “ippon”, mas sobre as contas dos cidadãos, com o sequestro compulsório de todas as contas bancárias superando um determinado valor; aquele golpe efetivamente paralisou a dinâmica da inflação durante algum tempo, inclusive porque, entre outras violências econômicas e constitucionais, o Plano Collor representou o tabelamento de contratos, tarifas e outros valores, que engessaram a economia num beco sem saída, ou com saídas cada vez mais arbitrárias que representaram, ao mesmo tempo, a volta da inflação, em patamares até mais agressivos do que antes. A despeito dos malabarismos econômicos, o governo Collor também significou outras transformações no plano da política externa, com implicações importantes ainda hoje, vários deles até positivos para o Brasil, pelo menos numa perspectiva contrária ao que vinha ocorrendo até então, ou ao que poderia ocorrer, se o candidato socialista, Lula, tivesse conseguido ser eleito naquela ocasião, quando o PT defendia um tipo de política econômica diferente do que veio a sustentar quando do primeiro mandato do líder sindical. Com efeito, se150 |

paulo roberto de almeida

gundo as promessas do candidato do PT – todas no sentido da nacionalização, estatização, socialização, protecionismo, rompimento de contratos e recusa do pagamento das dívidas públicas –, uma eventual presidência petista poderia aproximar o Brasil bem mais de um governo à la Salvador Allende do que de um líder socialista moderado como Felipe González, responsável pelo ingresso da Espanha na OTAN, na Comunidade Econômica Europeia, pela abertura aos investimentos estrangeiros e outras atitudes contrárias aos velhos dogmas socialistas aos quais se aferram ainda alguns personagens em outros continentes. Ao lado da abertura econômica e da liberalização comercial – com uma importante reforma tarifária que fez com que o Brasil passasse do protecionismo exacerbado para um protecionismo relativamente moderado, para os padrões históricos da nossa introversão comercial –, o governo Collor tinha a pretensão de retirar o Brasil da condição de primeiro dos países pobres para o último dos países ricos, ou seja, deslocá-lo do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE. Ele não o conseguiu, obviamente, inclusive porque as reformas ficaram no meio do caminho, e as resistências de grupos de interesse foram mais fortes do que as intenções do presidente. Mas ele começou a reformular diversos outros aspectos da política externa que estavam colocando o Brasil na condição de “pária” do sistema internacional, como, por exemplo, no terreno da não proliferação e das tecnologias sensíveis, ou de uso dual. Com efeito, o Brasil mantinha, ao lado do programa nuclear legal e reconhecido, baseado na construção de centrais nucleares com tecnologia estrangeira e a supervisão da AIEA, um programa paralelo e clandestino, de natureza militar, que visava alcançar o domínio tecnológico e o desenvolvimento prático de um artefato explosivo, o que de resto se chocava com dispositivos mandatórios da Constituição nesse aspecto. Collor operou, portanto, a primeira viragem decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares, ao aceitar a ratificação plena do tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento à construção de confiança com a Argentina nessa área, que levaria à assinatura do acordo quadripartite de salvaguardas extensivas – Brasil, Argentina, Abacc e AIEA – e, mais adiante, à aceitação, já por FHC, do famigerado TNP, o Tratado de Não Proliferação Nuclear de 1968, gesto pelo qual este último é considerado um traidor dos interesses nacionais por vários militares e alguns diplomatas. As escolhas decisivas foram feitas por Collor, e independentemente dos fracassos econômicos, esse crédito diplomático lhe deve ser inteiramente concedido. Em um outro aspecto, ele também significou um avanço, que ocorreu no âmbito da política econômica externa, mais especificamente, no contexto da integração regional. O processo com a Argentina teve início em meados dos anos 1980, sobre a base de protocolos setoriais, visando uma complementação produtiva e uma abertura apenas recíproca, que deveria ser flexível, gradual e administrada; ou seja, se tratava de um modelo de abertura comercial limitado, conduzindo a fluxos administrados pelos dois governos, numa concepção que se aproximava mais do mercantilismo do século 17 do que do multilateralismo |  151

padrões e tendências das relações internacionais...

ilimitado, incondicional e não discriminatório do século 20. O que o governo Collor fez foi, por meio da Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, substituir o esquema em vigor dos protocolos setoriais e do Tratado de Integração de 1988 por um mecanismo automático, irrecorrível e universal – ou seja, não mais setorial – de reduções tarifárias, conduzindo ao livre comércio com a Argentina na metade do tempo previsto no tratado em vigor (que, aliás, não garantia que o livre comércio, ou o mercado comum, viessem realmente a existir nos dez anos anteriormente previstos). Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sobre os mesmos dispositivos de abertura econômica e de liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e Menem. O fato de o Mercosul não ter avançado em fases posteriores, ou de ter até regredido, institucionalmente, na fase recente, não tem muito a ver com desvios “neoliberais” cometidos pelos dois governos. Quem conhece o protecionismo exacerbado vivido pelos dois países nos anos anteriores à década de 90, não pode em sã consciência achar que o Brasil ou a Argentina estivessem se rendendo ao capitalismo internacional com o modesto grau de abertura operado naquele momento por esses dois governos, apenas em algumas frentes econômicas. A culpa da estagnação relativa e do real retrocesso institucional do Mercosul tem a ver com o descumprimento, pelos governos ulteriores, sobretudo na fase recente, de cláusulas fundamentais do Tratado de Assunção, não por causa dos mecanismos antes criados para operar o estabelecimento de um mercado comum, ou pelo menos de uma união aduaneira, entre os quatro países membros. Brasil e Argentina retornaram ao protecionismo rústico dos anos 1970 e 80, sendo que a Argentina parece ter retornado às patéticas medidas de controles de capitais e de manipulações cambiais típicas da época da grande depressão, nos anos 1930. 3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

Depois do furacão Collor, o Brasil entrou em outro tipo de furacão, mas sob a presidência honesta, ainda que confusa, do vice-presidente Itamar Franco, conhecido pela sua perfeita correção política, mas por alguns rompantes econômicos, que o fizeram trocar três ou quatro vezes de presidentes do Banco Central e de ministros da Fazenda. Finalmente, e para sua sorte, um senador que resolveu esquecer o que tinha escrito nos tempos de desvarios acadêmicos, em torno da teoria da dependência, deu à presidência Itamar a melhor marca de reconhecimento nacional a que um governo pode aspirar numa era turbulenta como a que o Brasil viveu, com a inacreditável aceleração inflacionária do início dos anos 1990. Com origem nos diversos planos frustrados de estabilização que tinham sido ensaiados desde o governo militar, e de forma crescente e recorrente na “Nova República”, o Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do 152 |

paulo roberto de almeida

milhar, e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração. O que o senador Fernando Henrique Cardoso fez, para seu crédito pessoal, e com a aprovação do presidente, foi juntar uma equipe de jovens e ousados economistas que souberam colocar as bases de um processo de estabilização macroeconômica, não mais baseado em golpes milagrosos e repentinos, mas atacando as bases da dinâmica inflacionária, autoalimentada pelo mecanismo de indexação generalizada que tinha se estendido por toda a economia brasileira, mas de forma anárquica e sustentado nos mais diversos indicadores de correção de valores (dólar, títulos públicos, índices de preços e o que mais servisse para garantir alguma reposição do poder de compra de uma moeda que já não mais servia de parâmetro para as suas três funções fundamentais e tradicionais). O Plano Real, cujas características não é necessário descrever aqui, teve uma importância fundamental também para a política externa, pois significou igualmente a recuperação da credibilidade do Brasil nos mercados internacionais, não apenas em termos de atração de investimentos e de contratos financeiros externos, mas sobretudo no que se refere à capacidade do Brasil de engajar-se em processos negociadores com parceiros internacionais em condições minimamente previsíveis quanto à preservação da legalidade jurídica e à capacidade do país de honrar seus compromissos externos, num ambiente liberado das ameaças de mudança contínua de regras como tinha sido o caso até ali, e praticamente desde o início da crise do petróleo, ainda nos anos 1970. Com a casa colocada novamente em ordem a partir do início dos seus dois mandatos, FHC pôde dar continuidade à política externa de abertura moderada nos planos regional e mundial e, de forma geral, em relação à globalização, o que era inédito para os padrões históricos do Brasil desde o entreguerras e que, de certa forma, também voltou a patamares ainda mais modestos na sua sucessão. O Brasil abandonou o conceito difuso de América Latina, em favor do espaço geográfico bem mais concreto da América do Sul, avançou bastante na construção de mecanismos de inserção nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial, e de exportações de equipamentos de uso dual – e também desenvolveu um diálogo desprovido de vieses ideológicos com as entidades multilaterais da globalização financeira, o que foi relevante em função das turbulências por que o mundo passou a partir das crises do México (1994), da Ásia (1997), da moratória russa (1998) e da própria crise brasileira de 1999, logo seguida pela crise terminal do modelo argentino de estabilização (com forte impacto no Brasil). FHC estimulou o que passou a ser chamado de diplomacia presidencial, para a qual ele estava amplamente preparado desde seus curtos meses de chanceler, no início do governo Itamar Franco, e em função de sua experiência como acadêmico conhecido internacionalmente. Os bons resultados foram em certa medida obscurecidos pela ocorrência de crises externas e internas, justamente, comprovando, assim, que o processo de estabilização deve ser levado de modo contínuo em todas as frentes da economia, sobretudo nos planos fiscal e mone|  153

padrões e tendências das relações internacionais...

tário. O Plano Real foi amplamente bem sucedido ao desmantelar os aspectos mais nefastos da indexação generalizada em que vivia o Brasil, mas pelo fato de que o presidente Itamar se opunha veementemente a qualquer tratamento de choque, ou recessivo, os ajustes fiscais foram muito moderados e tiveram de ser compensados por uma taxa de juros relativamente alta, inclusive porque estados e municípios ainda não tinham se ajustado aos novos tempos e ainda não existia a Lei de Responsabilidade Fiscal ou o câmbio flutuante. Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a correta avaliação da trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs frontalmente à sua implementação, em quaisquer de suas etapas, tentando inclusive embargar a Lei de Responsabilidade Fiscal em processo movido junto ao STF; o partido empreendeu igualmente uma campanha de desinformação, antes e depois, em relação não apenas aos aspectos internos do plano de estabilização macroeconômica, como também no que se refere aos acordos concluídos no plano externo com o Fundo Monetário Internacional, objetivando a superação das fragilidades cambiais do país. Felizmente, a primeira administração do governo do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superávit primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como confirmado pelos principais indicadores econômicos. Diversas das iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 – nos terrenos da integração, das negociações comerciais internacionais e inter-regionais, do relacionamento com parceiros ditos estratégicos – tinham sido de fato iniciadas sob os dois mandatos de FHC. O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento meteórico da China, cuja demanda elevou a níveis historicamente inéditos os preços das commodities exportadas pelo Brasil a partir de 2004 e ajudou na própria expansão do PIB durante o governo Lula. Bafejado pela procura chinesa, este último pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC, em especial, a revisão radical dos aspectos mais discriminatórios e economicamente irracionais da carta constitucional de 1988 e a correção cambial feita em 1999. Depois de FHC, nenhuma outra reforma estrutural foi empreendida pelos governos do PT para dar continuidade aos processos de abertura comercial e de inserção econômica internacional do Brasil. 3.5. Por fim, a era do “nunca antes”: a diplomacia personalista de Lula

A fase atual, finalmente, corresponde à era do “nunca antes”, a este período inédito na história do Brasil durante o qual todos os recursos da propaganda governamental e da retórica presidencial foram mobilizados para dar a impressão de que o país ingressava numa era de ouro, jamais vista desde Cabral 154 |

paulo roberto de almeida

e impossível de ser igualada pelas gerações que seguirão nos próximos anos ou décadas. Não se deve ser muito derrogatório com um governo que, finalmente, ao preservar todos os elementos essenciais da política econômica anterior – que os petistas chamam, com bastante má-fé, e de forma algo ignorante, de neoliberal –, conseguiu manter o Brasil ao abrigo de um retrocesso econômico que não deixou de ocorrer em diversos países da região; de fato, em vários deles se observa, de forma circunstancial ou cumulativa: retorno da inflação, fuga de capitais, manipulações cambiais, recrudescimento do protecionismo, enfim, desorganização da vida econômica, embora alguns desses aspectos começam a ser visíveis também no Brasil, e de maneira bastante preocupante. Atendo-se exclusivamente aos aspectos diplomáticos do governo do “nunca antes”, pode-se aliás argumentar que, nem sob esse aspecto, o panorama é totalmente inédito. Ao presidir a uma diplomacia superpresidencialista, e bastante personalista, Lula, segundo o grande intelectual da diplomacia que é o embaixador Rubens Ricupero, conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General De Gaulle. Vários diplomatas, que acompanharam em momentos diversos os passos da diplomacia lulista, confirmam que o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais, inclusive com personalidades que, por suas características especiais, não frequentam muito os foros internacionais ou não são convidados amiúde para visitas bilaterais; algumas das afinidades eletivas do governante e de seu partido foram de fato inéditas em todos os planos, a começar pela ilha dos irmãos Castro. A diplomacia do “nunca antes” assistiu, de fato, a eventos nunca antes vistos na história do Itamaraty, como a aceitação passiva de uma expropriação violenta e unilateral feita contra um patrimônio nacional por país vizinho; registrou-se, ainda, o rompimento do velho preceito constitucional da não intervenção em assuntos internos de outros países, inclusive no que tange ao apoio eleitoral a candidatos ditos progressistas, bem como, de forma geral, alianças com regimes e governos que provavelmente não passariam em alguns testes elementares em relação a princípios democráticos e de respeito aos direitos humanos. A diplomacia do “nunca antes” foi, sobretudo, uma diplomacia partidária, o que foi formalmente confirmado pelo próprio presidente em discurso feito num dia do diplomata, no Itamaraty, ao se referir ao seu assessor internacional como o companheiro dedicado a manter as relações com os partidos de esquerda da América Latina. Impossível não concordar com o argumento, quando fatos como esse são confirmados nesse nível de responsabilidade governamental. O Brasil de fato aumentou sua presença no mundo, abriu embaixadas em lugares nunca dantes explorados e contraiu várias “parcerias estratégicas”, em nível bilateral, plurilateral ou de grupo, que duplicaram a capacidade de expressão do país nos mais diferentes cenáculos internacionais. O ativismo dessa diplomacia foi realmente exemplar, embora em alguns episódios possa ter ocorrido mais transpiração do que propriamente inspiração, como evidenciado |  155

padrões e tendências das relações internacionais...

nos casos das relações com a China, nas frustradas tentativas de fazer a paz no Oriente Médio, de se envolver numa solução ao programa nuclear iraniano (em grande medida clandestino), ou na própria pretensão – ilusória, para os diplomatas experientes – de exercer uma liderança na região, como base para um salto de qualidade no plano mundial. Alguns erros de cálculo foram cometidos, inclusive no trato com alguns países vizinhos, assim como foram mantidas expectativas irrealistas quanto à realização de diversos objetivos retoricamente proclamados. Em certos temas da agenda externa, observou-se um descompasso completo entre um diagnóstico realista das opções abertas ao Brasil e intenções idealistas constantemente exibidas, seja quanto à “transformação das relações de força no mundo”, seja quanto a uma fantasmagórica “nova geografia do comércio internacional”. A China, por exemplo, já tem a sua geografia comercial bem assentada: ela importa matérias-primas de todos os fornecedores possíveis, e exporta seus manufaturados – grande parte produtos de design e tecnologia ocidentais – para todos os mercados abertos ao engenho e arte de seus diplomatas e mercadores absolutamente pragmáticos quanto aos resultados esperados, sem qualquer concessão a veleidades ideológicas ou uma patética aliança de não hegemônicos contra os poderosos do mundo. A maior parte dos países, aliás, segue os mesmos preceitos: eles procuram antes trabalhar na perspectiva de ganhos concretos do que simplesmente projetar transformações imaginárias do cenário mundial. São muitos, de fato, os aspectos inéditos da diplomacia partidária na era do “nunca antes” e seria especioso discorrer sobre acertos e desacertos da política externa de Lula e dos seus companheiros de partido. A historiografia futura, provavelmente mais sensata que certos vieses acadêmicos atualmente em curso, se encarregará de filtrar, e de avaliar, na sua justa medida, os aspectos positivos e os menos positivos dessa diplomacia que foi de verdade especial, sem que se possa dizer se o Brasil real, o do seu sistema produtivo e o da sua capacidade de competição internacional, tenha usufruído da pirotecnia praticada durante a década “lulopetista” na política externa. O Brasil perde espaço nos mercados internacionais – e o grande debate no momento é o da desindustrialização – e a integração regional não avançou de fato nos aspectos que deveriam contar: a abertura recíproca de mercados, a inserção das economias dos países-membros nas redes produtivas mundiais (de fato, ocorreu o contrário), e até o livre-comércio, que deveria vigorar internamente ao bloco, tem retrocedido a olhos vistos. Dos três grandes objetivos da diplomacia lulista – a obtenção de uma cadeira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU, o reforço e a expansão do Mercosul e a conclusão exitosa das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha –, não se pode dizer que algum deles tenha sido conquistado, sequer arranhado. O Mercosul, a despeito de preservado, perde espaço na interface externa do Brasil e abandonou quase completamente suas

156 |

paulo roberto de almeida

características iniciais, por sinal as únicas legítimas, já que derivadas do Tratado de Assunção, uma promessa frustrada. Pode-se, nessas condições, fazer um balanço esplendoroso, como pretendem seus executores, do “nunca antes” diplomático? Para todos os efeitos, a formidável máquina de propaganda do PT – construída, diga-se de passagem, com vários milhões ou bilhões de reais de recursos públicos – vai encarregar-se de passar uma imagem fabulosa destes tempos inéditos, quando se alega que tudo foi realmente maior e mais vigoroso do que antes, inclusive em certos aspectos talvez menos recomendáveis. Parafraseando uma expressão muito conhecida, poder-se-ia dizer da diplomacia lulista que, onde ela foi nova, não foi boa; e onde foi passavelmente boa, ou apenas razoável, não era nova. A diplomacia presidencial, por exemplo, já existente (mas nunca referida sob esse conceito), foi levada a extremos, e isso não é bom, nem para a diplomacia, nem para a figura do presidente, de qualquer presidente. Presidentes devem se reunir quando todos os estudos técnicos tenham sido feitos pelos diplomatas e quando os chanceleres tenham limpado o terreno para a assinatura e os discursos, geralmente vazios e anódinos, dos presidentes; nunca antes na história diplomática do Brasil tivemos tantas vezes o presidente, com suas contrapartes regionais ou externas, discutindo projetos e novas iniciativas, que deveriam ficar no âmbito das chancelarias respectivas. Presidente é a última linha de decisão, não a primeira de discussão. Por outro lado, nunca antes na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, e não se pode dizer que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente com toda a retórica a seu favor. Ao contrário; a América Latina está fragmentada em pelo menos três modelos, ou experimentos, de organização regional, um dos quais é declaradamente anti-integracionista, a despeito de toda as proclamações em contrário: o bolivarianismo só se sustenta à base de petrodólares chavistas e com indução estatal de um subcomércio totalmente desequilibrado; o segundo modelo é o livre-comércio e o da inserção nas redes mundiais de integração produtiva, o da Aliança do Pacífico, ou da abertura unilateral à la chilena; no meio, sem uma caracterização mais precisa, ficam os países do Mercosul e outros desgarrados, sem saber exatamente para onde pretendem ir. Cabe registrar, também, que muitas das novas entidades apressadamente criadas nos últimos anos, o foram para dar um caráter exclusivamente regional, ou introvertido, ao que antes era exageradamente hemisférico e “assimétrico”, como se comprazem em repetir os neófitos. Mas será que a América Latina vai realmente progredir, ao orientar para dentro todos os seus movimentos políticos e econômicos? Será que ela não teria nada a aprender com os países asiáticos e ocidentais da imensa bacia do Pacífico, que estão substituindo cinco séculos de dominação econômica norte-atlântica, por meio do estímulo a todos os intercâmbios possíveis, sem discriminação de espécie alguma?

|  157

padrões e tendências das relações internacionais...

4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica? Acadêmicos, em geral, historiadores em especial, exibem uma inclinação um pouco doentia por paradigmas, por modelos explicativos, por padrões e tendências que eles imaginam detectar no imenso caos material que é a trajetória das sociedades humanas sobre a face da Terra. A História não seria tão emocionante, e não teria tantos cultores, amadores ou profissionais, se ela não apresentasse, justamente, esses acidentes contingentes, essas possibilidades de caminhos alternativos e de trajetórias insuspeitas, que dependem, basicamente, de duas coisas: de um lado, as chamadas forças profundas, como gostam de lembrar os durosellianos e alguns marxistas estruturalistas (ou seja, sem aqueles fatalismos simplistas da sucessão inevitável dos modos de produção); de outro lado, dos imponderáveis da ação humana, que, muito longe dos determinismos históricos, está impregnada de paixões e de racionalidade, nem sempre bem calculada. É por isso que temos a história virtual, os big ifs que especulam um pouco sobre tudo, especialmente sobre as grandes viradas do processo histórico. O que teria ocorrido conosco se tivessem sido os chineses a ocupar as Américas? O que teria acontecido na Europa se os muçulmanos não tivessem sido detidos nos Pirineus, ou nas muralhas de Viena? O que teria acontecido se Napoleão tivesse vencido a Grã-Bretanha, se Hitler tivesse derrotado a União Soviética, ou se os soviéticos tivessem conseguido, de fato, submergir a Europa ocidental, com base não em tanques, mas na sua ideologia que prometia futuros radiantes numa sociedade sem classes? Nelson, Churchill, o Papa polonês, entre vários outros líderes, foram realmente decisivos em algumas grandes reviravoltas da história contemporânea? Stalin, Hitler, Mao poderiam ter sido contidos, ao fazer o mal sobretudo para os seus próprios povos? Ou são as forças profundas da história que sempre se impõem, independentemente de líderes geniais ou malévolos? Pode-se especular sobre como o Brasil poderia ter se desenvolvido, de forma diferente, caso Oswaldo Aranha, o grande líder gaúcho da revolução de 1930, tivesse ascendido à presidência da República, em alguma das muitas oportunidades que a história talvez lhe tenha oferecido, nas quais ele deixou passar a oportunidade, seja por imposição ou amizade com o ditador castilhista que dominou a história brasileira durante praticamente três décadas. Poderia ter sido em 1934, mas talvez fosse muito cedo, num momento em que ele ainda parecia demonstrar algumas simpatias pelo modelo fascista de organização social; provavelmente em 1938, se ele não tivesse sido afastado do país pelos cálculos maquiavélicos do mesmo Vargas; com maior razão, ainda, em 1945, em sua condição de líder inconteste da oposição democrática, mas quando o terreno foi ocupado por dois candidatos militares; ou talvez em 1950, quando ele decididamente continuou apoiando o ex-ditador, e a quem serviu uma segunda vez como ministro da 158 |

paulo roberto de almeida

Fazenda, tentando colocar mais uma vez em ordem o câmbio e as contas nacionais, esgarçadas por crises externas e comportamentos populistas e irresponsáveis dos decisores políticos; finalmente, mas talvez já fosse tarde, em 1955, quando várias opções e alianças partidárias ainda lhe estavam abertas. Depois de Rio Branco, bastante mitificado e incontestável no seu domínio dos temas e dos métodos diplomáticos, Oswaldo Aranha foi, possivelmente, o maior e melhor chanceler que a diplomacia brasileira conheceu no século 20, numa conjuntura de extremos desafios e de opções contrastadas para o futuro da nação: ele soube manter o rumo das alianças corretas e das escolhas certas, o que assegurou ao país bastante prestígio durante certa época. No período seguinte, o Brasil se perdeu na ditadura – pelo menos no plano moral, ainda que os progressos materiais tenham sido reais – tanto quanto na voragem inflacionária que destruiu várias possibilidades de crescimento sustentado, construindo um Brasil desigual, sempre penalizado pela baixa educação geral do seu povo. Oswaldo Aranha, provavelmente, teria optado por outras variantes de políticas econômicas e de alinhamentos internacionais, possivelmente mais condizentes com as possibilidades do país e com as necessidades de sua modernização produtiva e social. Sua não ascensão ao cargo de maior responsabilidade no comando da nação representou uma das muitas oportunidades perdidas pelo Brasil, um país que nunca perdeu uma oportunidade de perder oportunidades, como não se cansava de lembrar o diplomata e economista Roberto Campos (uma espécie de Raymond Aron nacional, um pensador que teve razão antes do tempo, mas que não conseguiu, tampouco, reformar a França, como também ocorreu com Oswaldo Aranha no caso do Brasil). Alguns líderes, verdadeiros estadistas, conseguem elevar seus países ao ponto máximo de suas possibilidades transformadoras, mas tais iniciativas parecem pertencer ao terreno dos fatores contingentes na História. O que ocorre mais frequentemente, na vida das sociedades, é que elites esclarecidas logrem conduzi-las pelo caminho correto, o das políticas econômicas adequadas, o da educação de qualidade, o das escolhas mais vantajosas no plano internacional. O Brasil, infelizmente, não tem sido premiado com lideranças particularmente brilhantes, e pode-se mesmo indagar se, na presente conjuntura da política nacional, o país não está de fato retrocedendo, bem mais no plano mental do que propriamente material. As possibilidades não se fecharam, mas elas são estreitas, para um país que praticamente não tem educação de qualidade, ostenta baixíssima produtividade e capacidade de inovação e que tem exibido um quadro de corrupção institucional e de degradação moral nunca antes visto na história nacional. O cenário pode parecer muito pessimista, mas é a constatação que emerge a partir de uma visão realista sobre os atuais padrões políticos e as tendências econômicas associadas. Ao mencionar padrões e tendências, se volta ao tema central do presente ensaio, sobre os padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica. Poder-se-ia pensar que uma postura mais ativista, |  159

padrões e tendências das relações internacionais...

por parte da diplomacia brasileira, seria uma via possível de vencer alguns dos desafios que se apresentam ao Brasil atual, um pouco na linha do que foi empreendido na fase recente da vida política, como forma de avançar decisivamente na solução dos problemas mais cruciais do país. Mas, de fato, não existem respostas reais a esses problemas do lado da diplomacia, sequer pela ação de uma política externa mais ativista do que a tradicionalmente conduzida pelo Itamaraty. Durante toda a história do Brasil, a diplomacia teve uma função puramente subsidiária nos grandes desafios que a nação enfrentou, em cada etapa, e provavelmente não foi ela que contribuiu para encontrar as soluções mais criativas aos problemas detectados. O Brasil, assim como metade da humanidade, iniciou seu itinerário histórico como colônia. Tal condição de submissão, a um ou outro dos centros dominantes da economia mundial, em alguma etapa preliminar, não constitui nenhuma fatalidade quanto ao futuro itinerário do país, assim como não constituiu uma tragédia definitiva, impeditiva do desenvolvimento de países como Estados Unidos, Canadá, Austrália ou até mesmo vários países europeus, que também foram colônias ou nações dominadas por vizinhos mais poderosos. Tal passado não os impediu de se desenvolverem e de se tornarem grandes benfeitores da humanidade, como de fato são, pela via da ciência e tecnologia, pelos progressos da medicina, pela paz e segurança e pela manutenção dos direitos humanos e das liberdades democráticas, que estão de fato concentrados nos capitalismos competitivos das modernas democracias de mercado. Se o Brasil não se libertou do tráfico de escravos no momento recomendado por José Bonifácio, durante a independência e a constituinte, foi por escolha de suas elites, não por imposição de portugueses ou de britânicos, aliás bem ao contrário, no que concerne estes últimos. Se ele não começou a construir uma economia aberta aos investimentos externos e à iniciativa privada, como recomendava Irineu Evangelista de Souza, depois barão de Mauá, foi por decisões de suas elites, as do Estado e as da economia escravocrata, que teimavam em preservar as mesmas estruturas anacrônicas. Se ele não se libertou da escravidão, como pressionavam os britânicos e como pedia o idealista Nabuco, foi inteiramente por decisão de suas elites, nos estertores do Império. Se, na República nascente, ele não fez uma reforma agrária e não implantou a educação universal, como também queriam Nabuco, o barão do Rio Branco, e tantos reformistas educacionais, como Lobato, Azevedo, Teixeira e vários outros, estas também foram escolhas inteiramente nacionais, não determinadas por nenhuma imposição ou relação de dependência externa. Nunca houve uma demanda externa pelo atraso nacional. A diplomacia, de vez em quando, oferecia algumas sugestões, colhidas ao acaso entre as elites ilustradas dos países mais avançados, mas não se pode dizer que ela, até meados do século 20 quase totalmente expatriada, tenha influenciado decisivamente as grandes escolhas feitas pela nação. A modernização acabou chegando, inclusive por força das contingências externas, devido às crises e o 160 |

paulo roberto de almeida

fechamento de mercados do entreguerras, mas o Brasil estaria muito melhor se o mundo tivesse continuado a ser aberto como foi até 1914, e se o Brasil, sobretudo, tivesse escolhido o caminho da inserção internacional. Ao contrário: dos anos 1930 aos anos 1980, o coeficiente de abertura externa do Brasil se reduziu dramaticamente e, no auge do regime militar, o grau de nacionalização do mercado interno atingia absurdos 95% da oferta disponível em bases correntes. O Brasil era um país fechado e aparentemente contente com essa autonomia, essa autossuficiência, essa independência de fontes externas. Qual foi o papel da diplomacia em todos esses anos de desenvolvimentismo acelerado? Justamente o de defender o modelo, resistir às investidas estrangeiras pela abertura, como aliás acontece até hoje, num recrudescimento de atitudes introvertidas que se acreditava terem sido superadas nos anos 1990. Não, elas não foram enterradas, e a diplomacia, mais uma vez, serve de anteparo, escudo e justificativa para esses caminhos para dentro que não devem conduzir o Brasil a parte alguma. Se é possível, portanto, resumir o sentido da trajetória nacional, sintetizar os padrões e tendências das relações internacionais do Brasil, não há como escapar de algumas velhas paranoias de sua história, de algumas grandes obsessões da sociedade: a ideologia nacional brasileira, desde os anos 1930, pelo menos, parece ser o culto do desenvolvimento nacional, nessa exata combinação de palavras. Culto, quase religioso, a um objetivo que é visto como desejado por todas as camadas sociais, por todos os líderes políticos e defendido ardorosamente por todos os diplomatas. Deve ser por isso que os padrões e tendências do Brasil nas relações internacionais sejam tão enviesados para dentro, que suas políticas econômicas sejam tão arraigadamente keynesianas, que as legitimações para certas posições nas negociações econômicas internacionais sejam tão cansativamente prebischianas, ou cepalianas da velha escola, e que o máximo de legitimação para as mesmas políticas que os dirigentes políticos exibem seja essa espécie de crítica a um fantasmagórico neoliberalismo, a la Ha-Joon Chang, que nada mais é do que keynesianismo prebischiano requentado ao molho de conceitos do momento. Tais características apenas comprovam quão pobre é a reflexão da intelligentsia nacional sobre a diplomacia e o desenvolvimento.

5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização Não se deve, contudo, terminar um ensaio deste tipo por uma nota de angústia existencial ao estilo de Kierkegaard. Mas tampouco convém ser ingenuamente otimista em face da retórica grandiloquente de certos falsos profetas da atualidade. O que cabe fazer é tentar manter a racionalidade instrumental quanto aos meios e fins do objetivo nacional do desenvolvimento econômico e social do país e quanto ao amplo espectro de reflexões registradas nas últimas décadas a esse respeito, inclusive no que se refere a algumas poucas contribuições no campo da diplomacia. |  161

padrões e tendências das relações internacionais...

Já foi dito, por exemplo, que a salvação do Brasil não virá pela diplomacia, nem pelo lado externo. Os principais desafios do Brasil estão mesmo dentro do país, e os instrumentos para superá-los dependem inteiramente de suas elites, do leque de políticas públicas escolhidas, das opções adotadas por uma sociedade consciente quanto aos desafios, ou orientada nesse sentido por elites esclarecidas. Muitos procuram bodes expiatórios para o baixo crescimento do país na situação externa, num fantasmagórico tsunami financeiro de países ricos, na concorrência desleal de países que não protegem sua mão de obra ou o meio ambiente. Estas são escapatórias à realidade, e não será na proteção mercantilista do mercado interno que o Brasil vai encontrar a solução dos seus problemas de falta de competitividade e de ameaça concreta de desindustrialização. Ao contrário, o ambiente internacional, a inclusão na globalização, oferecem oportunidades inigualáveis para o crescimento e o desenvolvimento de qualquer país, como a própria China demonstra a cada dia. Enquanto não for conduzido um diagnóstico correto da presente situação, e uma autocrítica sincera, da qual, aliás, todos os marxistas deveriam gostar – sobretudo os leninistas, como ainda existem alguns –, enquanto não se reconhecer todas as políticas equivocadas que têm sido implementadas nos últimos anos, no plano interno e no plano externo, não será possível superar os desafios do presente. O mundo é complicado, talvez, mas a cabeça de certas pessoas parece ser muito mais. O mundo, por sinal, oferece exemplos fabulosos de progresso e melhorias de bem-estar com algumas receitas muito simples. Algumas das mais comprovadas por sua eficácia podem ser assim resumidas: estabilidade macroeconômica; abertura e competição no nível microeconômico; níveis excelentes de governança e de gestão próxima à de mercados competitivos para a maior parte dos bens e serviços; alta qualidade dos recursos humanos; e, por fim, mas não menos importante, abertura ao comércio e aos investimentos internacionais. Tudo isso requer, obviamente, elites esclarecidas, uma mercadoria talvez rara nos tempos atuais.

Referências ABREU, Marcelo Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ______. (org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 1990. ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (org.). Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990). São Paulo: Cultura Editores Associados e Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, 1996, v. I e II. ______. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990). São Paulo: Annablume e Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, 2000, v. III e IV.

162 |

paulo roberto de almeida ALMEIDA, Paulo Roberto de. Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não convencionais. Curitiba: Editora Appris, 2014. ______. Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização. Rio de Janeiro: LTC, 2012. ______. O Estudo das Relações Internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia. Brasília: LGE Editora, 2006. ______. Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 2ª ed. São Paulo: Editora Senac, 2005. ARAÚJO, João Hermes Pereira de. (org.). Três ensaios sobre diplomacia brasileira. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1989. BARRETO FILHO, Fernando P. de Mello. A Política Externa Após a Redemocratização; tomo 1: 1985-2002; tomo 2: Brasília: Funag, 2012. ______. Os sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985. São Paulo: Paz e Terra, 2006. ______. Os sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964. São Paulo: Paz e Terra, 2001. BAUMANN, Renato (org.). O Brasil e a economia global. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 1996. BUENO, Clodoaldo. Política externa da Primeira República: os anos de apogeu, de 1902 a 1918. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ______. A República e sua política exterior (1889 a 1902). São Paulo: Universidade Estadual Paulista; Brasília: Funag, 1995. CARVALHO, Carlos Delgado de. História diplomática do Brasil. Organização e introdução: Paulo Roberto de Almeida. Edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1998; reedição: 2003. CERVO, Amado Luiz. O parlamento brasileiro e as relações exteriores, 1826-1889. Brasília: Editora da UnB, 1981. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 4a ed. rev. Brasília: Editora da UnB, 2011 [1ª ed.: 1992]. DANESE, Sérgio França. Diplomacia presidencial. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. HILTON, Stanley E. O Brasil e as grandes potências: os aspectos políticos da rivalidade comercial, 1930-1939. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. MAGNOLI, Demétrio. O corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp e Moderna, 1997. MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. ______. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. OLIVEIRA, Henrique Altemani de; LESSA, Antônio Carlos (orgs.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006, 2 v.

|  163

padrões e tendências das relações internacionais... RODRIGUES, José Honório; SEITENFUS, Ricardo A. S. Uma história diplomática do Brasil (1531-1945). Organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. SAMPAIO GOES, Synesio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil.  Ed. rev. e atual. Brasília: Funag, 2015. SANTOS, Luis Cláudio Villafañe G. O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, 1822-1889. Curitiba: UFPR, 2002. SEITENFUS, Ricardo A. S. O Brasil vai à guerra: o processo de envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial. Barueri, SP: Manole, 2003. SILVA, Raul Mendes; BRIGAGÃO, Clóvis (orgs.). História das relações internacionais do Brasil. Rio de Janeiro: CEBRI, 2001. VIANNA, Hélio. História das fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert-Biblioteca do Exército, 1948. ______. História diplomática do Brasil. História da República. São Paulo: Melhoramentos, [1961], pp. 89-285. 1ª edição: História diplomática do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, [1958].

164 |

A Questão do Acre nas Caricaturas dos Jornais Cariocas (1903-1904) Luís Cláudio Villafañe G. Santos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Com sinceridade, afianço a vossa excelência que para mim vale mais esta obra [...] do que as duas outras [a defesa brasileira nas arbitragens nas questões de Palmas e do Amapá], julgadas com tanta bondade pelos nossos cidadãos. (Barão do Rio Branco: Exposição de Motivos sobre o Tratado de Petrópolis, 1903)

Profundamente atento ao papel da imprensa e à força crescente da opinião pública, desde seu r etorno ao Brasil, em 1902, até sua morte, dez anos depois, o barão do Rio Branco selecionou pessoalmente e arquivou recortes de notícias e matérias de opinião dos jornais brasileiros sobre assuntos de política externa, relativas a sua própria figura e muitos outros temas. Esse acervo está preservado nos 147 volumes da “Coleção de Recortes de Jornais” no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Dentre esses documentos encontram-se mais de mil caricaturas, que merecem um realce especial por seu poder de condensar em espaço reduzido os sentimentos e os debates da época. O critério que guiou Rio Branco na seleção dos recortes de jornal, e das caricaturas, foi manifestamente pessoal e está patente na escolha dos temas: o próprio barão, eventos de política externa, referências a seus amigos e desafetos, críticas à Igreja (recorde-se o papel da chamada “questão religiosa” na queda do gabinete de seu pai na década de 1870), entre outros.1 Aparentemente, não há nessa seleção censura contra caricaturas críticas de suas políticas ou, mesmo, ataques pessoais, bastante presentes, especialmente no início de seu longo mandato no Itamaraty. Os agravos contra ele atingiram seu ponto máximo durante o transcurso da questão do Acre, cuja discussão nas caricaturas da coleção de Rio Branco será o objeto deste artigo. A escolha do tema explica-se não só pela

Registre-se, por exemplo, a quase completa ausência de recortes sobre a Conferência da Haia, na qual o brilho maior junto à imprensa e à opinião pública ficou reservado a Ruy Barbosa. 1

|  165

a questão do acre nas caricaturas...

importância em si da negociação que o próprio chanceler considera sua maior vitória diplomática, mas também pelo comportamento da imprensa e da opinião pública carioca ao longo dos acontecimentos. A imagem de Rio Branco ora é louvada, ora atacada e, sem dúvida, por trás dessas oscilações há uma série de circunstâncias que não serão examinadas no presente texto, cujo propósito é primordialmente ilustrativo, mas que explorei em outro contexto (Santos, 2012). Ao chegar ao Rio de Janeiro para assumir o Ministério das Relações Exteriores, depois das vitórias que obtivera como advogado do Brasil nas questões de fronteira com a Argentina e com a França, o barão era uma unanimidade nacional. No entanto, a disputa pelo Acre, que o esperava, era um problema candente e de natureza muito distinta das arbitragens em que ele pôde, na tranquilidade de seu gabinete de estudos, fazer valer sua notável erudição e aprofundados estudos da geografia e da história brasileiras. No caso da fronteira com a Bolívia, nada poderia ser mais distinto: o tema já se encontrava altamente politizado e os ânimos estavam exaltados, com opiniões fortemente polarizadas. Ainda que Rio Branco tenha procurado afastar-se das lutas partidárias desde seu primeiro discurso (ainda no dia de sua chegada), quando retornou ao Brasil, dissipou-se o consenso que se havia criado em torno de sua figura, que passou a ser vista com desconfiança pelos monarquistas mais radicais, que não aprovaram sua participação no governo, e por republicanos exaltados, que o viam como o possível líder de uma conspiração monárquica. Havia, portanto, uma grande expectativa sobre as diretrizes e caminhos que adotaria para resolver a espinhosa questão da fronteira com a Bolívia e o destino dos milhares de brasileiros que viviam e trabalhavam na região, em conflito aberto contra as autoridades de La Paz. Os fatos sobre a chamada questão do Acre são conhecidos e não é o objetivo aqui rediscuti-los ou reinterpretá-los, mas vale uma breve resenha para contextualizar as visões da imprensa com a cronologia dos acontecimentos. As fronteiras do Brasil com a Bolívia estavam estabelecidas pelo Tratado de 1867, que determinava que o ponto inicial da reta que serviria de fronteira entre os dois países, na região que hoje é o Acre, encontrava-se no rio Madeira, aos 10° 20´ de latitude sul. “Deste rio para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada de sua margem esquerda da latitude 10° 20´ até encontrar o rio Javari”, dizia o tratado. Na década de 1860, a latitude da nascente do Javari não era conhecida (foi estabelecida apenas em 1898, aos 7° 1´de latitude, muito mais ao norte, portanto) e imaginava-se que estivesse mais ou menos aos 10° e, assim, o tratado fala de uma “paralela”. No entanto, o texto do tratado de 1867 ia além e determinava que “Se o Javari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude, por uma reta, a buscar a origem principal do Javari”. Já em 1867, portanto, era clara a possibilidade da nascente do Javari situar-se mais ao norte e, nesse caso, a linha de fronteira não seria coincidente com o paralelo de 10° 20´, mas uma reta oblíqua a essa linha. O célebre “Mapa da Linha Verde” (de 1860), que serviu de subsídio para as negociações do Tratado de 1867, bem como a “Carta Geral do Império” (de 1875), registram claramente essa possibilidade. Ambos documentos, aliás, da lavra de 166 |

luís cláudio villafañe g. santos

Duarte da Ponte Ribeiro, o maior especialista em temas fronteiriços do Império.2 Vale notar, ainda, que, em 1902, a ocupação brasileira estendia-se também por uma extensa zona ao sul do paralelo 10° 20´, em território indiscutivelmente boliviano qualquer que fosse a exata localização das nascentes do Javari ou a interpretação dada ao Tratado de 1867.

Figura 1: “Mapa da Linha Verde” – Duarte da Ponte Ribeiro e Isaltino José Mendonça de Carvalho (1860). Fonte: Mapoteca do Itamaraty.

Até 1902, o governo brasileiro reconhecia cabalmente a soberania boliviana sobre a região que hoje corresponde ao estado do Acre. A cidade de Puerto Alonzo (hoje Porto Acre) ostentava, inclusive, um consulado brasileiro, prova contundente de que o território era considerado estrangeiro. No entanto, com a exploração da borracha, milhares de brasileiros tinham-se deslocado para lá e, desde 1899, os colonos brasileiros promoviam revoltas armadas contra as autoridades bolivianas. Uma “República do Acre”, chefiada pelo espanhol Luis Rio Branco arguiu desconhecer o “Mapa da Linha Verde” durante as negociações com os plenipotenciários bolivianos, ainda que depois, com o Tratado de Petrópolis já assinado, em meio às discussões no Congresso para sua ratificação, esse documento tenha “reaparecido” e sido entregue por Rio Branco ao presidente da comissão parlamentar que analisava o Tratado, como evidência de que, caso o tema houvesse sido encaminhado para arbitragem, como propunham alguns, entre os quais Ruy Barbosa, a derrota seria certa. 2

|  167

a questão do acre nas caricaturas...

Gálvez Rodríguez de Arias, chegou a ser proclamada, mas a soberania boliviana foi restabelecida em 1900. Ainda naquele ano, o governador do estado do Amazonas apoiou um segundo movimento separatista, que foi derrotado em poucas semanas. Em agosto de 1902, iniciou-se uma nova revolta, agora liderada por José Plácido de Castro, outra vez com o apoio do governo do Amazonas. O movimento era visto com grande simpatia pela opinião pública brasileira, inclusive na capital da república, e, certamente, correspondia a importantes interesses econômicos em Manaus e no Rio de Janeiro, pois a borracha já figurava como o segundo item de maior importância nas exportações brasileiras. Em síntese, no momento em que Rio Branco assumiu a chancelaria, o Acre era reconhecido como território boliviano, ainda que, na prática, as autoridades daquele país não detivessem o controle da região, nas mãos de revoltosos brasileiros. Para complicar, em 1901, o governo boliviano havia assinado um contrato com um grupo de investidores ingleses e estadunidenses que dava ao Bolivian Syndicate, empresa por eles criada, a completa administração da região, inclusive com poderes de polícia, um tipo de concessão então comum na África e em partes da Ásia, que geralmente era o prenúncio de um esforço de colonização direta pelas potências europeias. No entanto, o acesso do Bolivian Syndicate ao território dependia, na prática, da navegação fluvial por território brasileiro e já antes da chegada de Rio Branco a passagem de navios da companhia pelo Amazonas tinha sido proibida.

Figura 2: Com o toureiro (a Bolívia) fora de combate, o povo pede ao Presidente Rodrigues Alves e a Rio Branco que entrem na arena e peguem o touro (o Acre) “a unha”, ao estilo das touradas portuguesas. Fonte: O Malho, 13 de janeiro de 1903.

168 |

luís cláudio villafañe g. santos

O presidente da Bolívia, general José Manuel Pando, estava decidido a superar esse impasse e submeter militarmente os revoltosos para restabelecer a autoridade boliviana. Anunciou que chefiaria pessoalmente uma expedição armada ao Acre para retomar o controle sobre a região. A opinião pública brasileira reagiu com indignação contra Pando e previa-se a possibilidade de muitas vítimas brasileiras no possível conflito contra as tropas bolivianas. Para evitar o choque entre os militares chefiados por Pando e os revoltosos brasileiros, Rio Branco propôs a compra do território à Bolívia, pois a quase totalidade de sua população era brasileira, oferta que foi recusada por Pando.

Figura 3: O general Pando, presidente da Bolívia, representado como um macaco, que “quer meter a mão na cumbuca...” do Acre. Fonte: O Malho, 24 de janeiro de 1903.

Persistia o temor de que os Estados Unidos atuassem em favor da Bolívia para atender aos interesses reunidos em torno do Bolivian Syndicate, e não só os Estados Unidos, mas também a Argentina (onde o caso era acompanhado com interesse pela imprensa portenha), eram vistos como insufladores da reação militar boliviana

|  169

a Questão do acre nas caricaturas...

Figura 4: A Bolívia, representada por uma figura feminina, tem atrás de si uma representação do “Tio Sam”, em alusão ao Bolivian Syndicate, em desafio às tropas brasileiras que vão em direção à fronteira. O texto da charge não deixa margem a dúvidas: “Os arreganhos da Bolívia denotam que ela tem as costas quentes”. Fonte: O Malho, 24 de janeiro de 1903.

Antecipando-se à chegada das tropas bolivianas ao Acre, o governo brasileiro ocupou militarmente a região conflagrada e, para justificar esse passo, Rio Branco abandonou a interpretação de seus antecessores e o governo brasileiro deixou de reconhecer a linha oblíqua como divisa entre os dois países, declarando litigioso todo o território ao norte do paralelo de 10° 20´ (ainda que a ocupação tenha se estendido também à porção do território ocupada por brasileiros ao sul dessa linha). Negociou com os investidores do Bolivian Syndicate, que, em fins de fevereiro de 1903, abandonaram seu acordo com a Bolívia em troca de uma indenização de 114 mil libras esterlinas. Em março, assinou-se em La Paz um modus vivendi, um acordo provisório que reconhecia a situação no terreno, e anunciaram-se as negociações bilaterais, tendo sido resguardados os direitos do Peru, que também alegava ser soberano sobre parte do território em litígio.

170 |

luís cláudio villafañe g. santos

Figura 5: O general Pando representado como uma marionete nas mãos da Argentina e dos Estados Unidos, as “forças ocultas” que estariam por trás da reação boliviana. Fonte: Tagarela, 29 de janeiro de 1903.

A expectativa de uma guerra, o possível apoio estadunidense e argentino à Bolívia e a formação de batalhões de voluntários para lutar no Acre foram objeto de inúmeras charges nas diversas folhas ao longo de janeiro e fevereiro de 1903. Nesse momento, a imprensa carioca mostrou-se majoritariamente a favor da reação dura traduzida no envio de tropas e a ocupação da região em litígio. Ainda assim, até que se conhecesse o recuo de Pando e o cancelamento da expedição boliviana ao Acre – que resultaria em uma guerra entre os dois países –, também houve espaço para charges contrárias à decisão de arriscar a eclosão de um conflito militar e, mesmo, críticas diretas a Rio Branco, mas contrabalançadas por charges laudatórias, que predominaram em quantidade. Em caricatura publicada em O Malho, em 14 de fevereiro, por exemplo, um cidadão louva um Rio Branco que assiste à passagem das tropas brasileiras dizendo: “Isto é que é ministro! Ainda dizem que é o ministro dos estrangeiros... Ministro dos brasileiros é que ele é!”. Em contraste, não faltaram sugestões no sentido de que próprio Rio Branco deveria estar entre os primeiros a serem enviados para a frente de combate. |  171

a questão do acre nas caricaturas...

Figura 6: Rio Branco é retratado em trajes militares, com a patente de cabo, pronto para o combate. Sua conhecida vaidade é ironizada no título da charge “O cabo Pavão” e o texto decreta que ele deveria ser “o primeiro que devia seguir para o Acre em defesa da Pátria”. Fonte: Jornal não identificado, fevereiro de 1903.

Critica-se também o pagamento de indenização ao Bolivian Syndicate. Caricatura publicada no Jornal do Brasil, em 27 de fevereiro, mostra a imagem de um capitalista, indicado como “Bolivian Syndicate”, com uma grande bolsa de dinheiro em que está escrito “Indenização do Brasil”, de frente a um general Pando, vestido em traje típico, que lhe pergunta: “E se ´rachássemos´...?”.

172 |

luís cláudio villafañe g. santos

Figura 7: Tio Sam (Estados Unidos) e John Bull (Inglaterra) dividindo a indenização paga pelo Brasil para que o Bolivian Syndicate rescindisse seu contrato com a Bolívia para a administração do Acre. Fonte: O Malho, 7 de março de 1903.

O Brasil negociou um tratado com a Bolívia a partir de uma posição de força, pois ocupava a zona litigiosa militarmente e a esmagadora maioria da população lá residente era de brasileiros. Por questões logísticas, as negociações demoraram alguns meses para se iniciar, em Petrópolis. Do lado brasileiro, ademais do próprio Rio Branco, participaram Assis Brasil e Ruy Barbosa. A presença de Ruy foi explicada por Ricupero (2012: 141) pela “insegurança de Paranhos no primeiro teste e o natural desejo de reforçar a retaguarda, associando à responsabilidade pela decisão a voz mais influente dos críticos da interpretação oficial”. Esses dois temas, a suposta demora nas negociações e a escolha de Ruy Barbosa para integrar o trio de plenipotenciários, foram o tema de muitas sátiras. Os negociadores – Rio Branco, Assis Brasil e Ruy Barbosa, pelo lado brasileiro, e Claudio Pinilla e Fernando Guachalla, representando o governo boliviano –, de fato, demoraram cerca de quatro meses para começar suas discussões, mas, uma vez iniciado, o processo negociador foi bastante rápido, pois o tratado acabou sendo firmado em 17 de novembro. A opinião pública e a imprensa, no entanto, estavam impacientes. |  173

a questão do acre nas caricaturas...

Figura 8: O cartunista Crispim do Amaral deixa clara sua impaciência com as negociações sobre o Acre: “- E dizem que vai acabar a questão do Acre... qual! Nós até apresentamos a cara do sr. barão do Rio Branco, daqui a 20 anos, a parafusar sobre os meios de resolver essa questão.” Fonte: A Avenida, 28 de setembro de 1903.

A decisão de incluir Ruy Barbosa no trio de negociadores brasileiros foi bem recebida pela imprensa, que realçou sua grande erudição, mas sem deixar de insinuar, com humor, que as intervenções e pareceres do intelectual baiano muitas vezes se estendiam interminavelmente. Caricatura publicada no jornal O Malho, em 18 de julho de 1903, por exemplo, mostra Ruy falando ao barão: “Aceito essa espiga [problema] de entrar na pendenga do Acre; mas olhe lá: se encontrar alguma batata [asneira], faço um relatório maior do que o do Código Civil”. 3 No caso, o cartunista satirizava o longo parecer de Ruy ao projeto de Código Civil, publicado no ano anterior.

A discussão entre Ruy Barbosa e o filólogo baiano Carneiro Ribeiro acerca do projeto de Código Civil preparado por Clóvis Beviláqua foi muito acertadamente qualificada de a “mais espantosa polêmica gramatical e filológica da história brasileira, altamente reveladora do bizantinismo mental da República dos Bacharéis”. ALEXEI, Bueno; ERMAKOFF, George (org.). Duelos no Serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005, p. 497. 3

174 |

luís cláudio villafañe g. santos

Figura 9: Rio Branco, certamente o maior especialista nos problemas de fronteiras de seu tempo, apresenta-se a um Ruy Barbosa transmutado na “biblioteca nacional” e pergunta se pode consultar uma obra sobre a questão do Acre. Fonte: A Larva, 18 de setembro de 1903.

Rio Branco acabou por divergir de Ruy, que preferia levar a questão a um processo de arbitragem e não se convenceu da conveniência da fórmula finalmente aceita de troca de territórios: o Brasil ficaria com cerca de 191 mil km 2 antes bolivianos, incluindo-se 48 mil ao sul do paralelo de 10° 20´ e cederia 2.200 km 2 no triângulo entre os rios Madeira de Abunã, no Amazonas, e 860 km 2 em Mato Grosso. A Bolívia receberia, ainda, uma indenização de dois milhões de libras esterlinas e ao Brasil caberia construir uma estrada de ferro entre os rios Madeira e Mamoré, facilitar o trânsito boliviano por essa via e pelos rios amazônicos até o oceano e outorgar as correspondentes facilidades alfandegárias. A renúncia de Ruy Barbosa, em 17 de outubro, fez a delícia dos caricaturistas e abriu um intenso debate sobre as concessões que o Brasil estaria fazendo, julgadas excessivas para alguns, em especial a contrapartida (ainda que altamente vantajosa) de territórios |  175

a questão do acre nas caricaturas...

à Bolívia. Ainda antes da renúncia, em 3 de outubro, O Malho publicou charge de K. Lixto, que mostra o barão tentando descalçar botas assinaladas com a palavra “Acre” e pede auxílio a Ruy: “– Creio, seu Ruy, que, descalçada a bota, está o mal sanado, por via dos calos”. A resposta de Ruy, no entanto, é clara: “– Lá isso, não; com troca de territórios não embarco...” Outra caricatura desse mesmo dia, também publicada no jornal O Malho, agora de autoria de Falstaff, intitulada “Leilão de Prendas”, mostra Rio Branco com um martelo de leiloeiro às mãos incitando o presidente Rodrigues Alves a assinar “em cruz” um documento, ou seja, sem o examinar. O barão diz: “– Assine em cruz para arrematar”; e o presidente, coagido, responde: “– Arre! Matar o quê?!” Rio Branco é retratado em uma tentativa de impor sua negociação aproveitando-se da confiança do presidente, em contraste com a atitude cautelosa e patriota de Ruy Barbosa. Depois de consumada a renúncia, em 24 de outubro, no mesmo O Malho, o cartunista K. Lixto apresenta um Ruy altissonante que apresenta sua renúncia ao barão, ao presidente e a outros ministros com palavras duras: “– Não quero, senhores, criar-lhes embaraços: exonero-me. Mas, na verdade vos digo, maldito seja aquele que cede ao estrangeiro um palmo do território nacional!”

Figura 10: Um altivo Ruy Barbosa apresentando sua renúncia ao presidente e aos ministros. Fonte: O Malho, 24 de outubro de 1903.

176 |

luís cláudio villafañe g. santos

Desaba a tempestade A reticência em aceitar a compra do Acre, disfarçada em uma troca de terrenos altamente desigual e outras compensações não territoriais, só se explica em face das imensas expectativas criadas pelos precedentes das arbitragens de Palmas e do Amapá, em que os territórios em litígio foram integralmente outorgados ao Brasil, sem contrapartida ou compensação de qualquer espécie. A resolução desfavorável para as pretensões brasileiras da arbitragem sobre a questão da fronteira com a Guiana Inglesa, no ano seguinte, 1904, mostraria cabalmente que a solução arbitral nem sempre seria vantajosa. No caso da questão do Acre, as bases jurídicas dos argumentos brasileiros eram muito frágeis e, a prevalecer a tese de Ruy Barbosa, provavelmente a região teria sido devolvida integralmente ao governo boliviano. Ainda assim, ao fim de 1903 e no início de 1904, até sua aprovação por ampla maioria nas duas Casas do Congresso, o Tratado de Petrópolis e Rio Branco estiveram sob severo ataque nas páginas dos jornais. Se o tratado chegou a ser chamado de “mancha negra em nossa história” e “vergonha de dois povos”, entre outros qualificativos (apud Ricupero, 2012:146), o próprio Rio Branco não foi menos vilipendiado. Em face das expectativas irrealistas, a decepção com a solução proposta por Rio Branco traduziu-se rapidamente em desapontamento em relação ao próprio negociador. Exemplo significativo está ilustrado pela charge de Alfredo Cândido publicada no jornal A Larva: um personagem representando o “zé-povinho” mantinha um busto do barão sustentado em um castelo de cartas que se desfaz com um dragão (de papel?) assinalado como o “Tratado”; lá se vão as cartas e a estátua erguida a Rio Branco para o chão. Para não deixar dúvidas, a caricatura tem como título “A Desilusão” e a legenda explica: “Os castelos que erguia o pensamento...”.

|  177

a questão do acre nas caricaturas...

Figura 11: “A Desilusão” e a legenda explica: “Os castelos que erguia o pensamento...”. Fonte: A Larva, 25 de outubro de 1903.

O mesmo Alfredo Cândido publicou outra caricatura do mesmo dia, também no A Larva, intitulada “Mons Parturiens (O parto da montanha)”, em que Rio Branco é comparado a uma montanha que geme e produz um pequeno rato. “De um grande esforço diplomático, o danado do rato viu a luz!”, Cândido arrematou. A acusação principal contra o tratado ficava por conta da entrega de territórios. O cartunista Crispim do Amaral chegou a dedicar uma caricatura ao Exército em que Rio Branco aparece como um açougueiro retalhando com um facão marcado como Ministério do Exterior o corpo, já decapitado, de um índio gigantesco, representando o Brasil. No cadáver está estampada a frase “Presente à Bolívia de F. P. R. A.”, as iniciais do presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves. A solicitação de uma intervenção das forças armadas contra o tratado é óbvia, bem como a insinuação de traição à pátria, por parte do ministro e do presidente.

178 |

luís cláudio villafañe g. santos

Figura 12: “A cabeça já está no prego... Agora toca a retalhar o resto!”. Fonte: A Avenida, 31 de outubro de 1903.

Nesse mesmo dia 31 de outubro, O Malho trazia uma caricatura, “Precauções”, com um personagem não identificado comentando que iria cortar seu cavanhaque para evitar ser confundido com Rio Branco. Dava-se a entender que o antes tão popular barão corria o risco de ser agredido fisicamente nas ruas. Os caricaturistas projetavam, ainda, a existência – na verdade, muito duvidosa – de uma imensa satisfação na Bolívia pelo resultado da negociação. Em O Coió de 2 de novembro, uma ilustração intitulada “Na Bolívia” traz dois personagens que mantinham o seguinte diálogo, pretensamente em espanhol: “ – Entonces, Lola, El Brazil és nuestro? – No, señor Generale, inda no. El adoreble Baron no lhego a la presidencia”. Ainda que a contrapartida territorial tenha sido o principal foco das críticas ao tratado e a Rio Branco, não faltaram também queixas contra a compensação financeira. O Tagarela de 19 de novembro traz uma caricatura de Falstaff em que Rio Branco está jogando um saco de dinheiro, assinalado como sendo no valor de dois milhões de libras esterlinas, na boca de um vulcão que exala uma fumaça com os dizeres “Questão do Acre”. A legenda explica: “Como se procura |  179

a questão do acre nas caricaturas...

abafar um vulcão”. Já no Correio da Manhã de 21 de novembro, o cartunista K. Lixto mostrava Rio Branco, com o presidente e seu ministério por trás, com um par de botas com a palavra “Acre”, já no piso, entre ele e uma figura feminina representando a Bolívia. Em uma alusão à ideia de descalçar as botas como imagem para se desembaraçar de um problema. O texto da caricatura “Resultado Final” decreta: “Descalçou o par de botas mas nos custou muito caro”.

Figura 13: “Resultado Final” decreta: “Descalçou o par de botas mas nos custou muito caro”. Fonte: Correio da Manhã, 21 de novembro de 1903.

A polêmica estava, portanto, instalada e em fins de 1903 era difícil prever o futuro do convênio assinado com a Bolívia, ao qual estava atado o futuro político de Rio Branco. A revista A Avenida, em 28 de novembro, traz um Rio Branco com ar desesperado, exclamando: “Arre! Fechei o Tratado! Mas agora quem precisa ser tratado sou eu!”. No Tagarela, em 3 de dezembro, caricatura de Falstaff, intitulada “A Célebre Questão”, que mostra Rio Branco montando um cavalo em direção a um precipício marcado com a palavra “descrédito”. Para o lado oposto há uma placa indicando “Questão do Acre – bom caminho”. Ainda que o cavalo se mostre apavorado com a queda iminente, Rio Branco comenta: “Parece que vou errado... Vejo aqui um precipício. Não faz mal! Prossigamos: alea jacta est.” 180 |

luís cláudio villafañe g. santos

Temeu-se pela aprovação do Tratado no Congresso. O Malho, em 26 de dezembro, traz uma caricatura de K. Lixto que resume esse sentimento. Mostra Rio Branco entrando em uma sala assinalada como “Câmara” (dos Deputados) com uma grande bomba nas mãos marcada como “Acre”, um pouco atrás aparece Ruy Barbosa acendendo a mecha da bomba. O título da charge indica as expectativas do caricaturista: “Pum!”.

Figura 14: “- Cuidado, barão! Com esta bomba nem S. Pedro com seus tiros o salvará”. Fonte: O Malho, 26 de dezembro de 1903.

Ruy Barbosa, um dos senadores mais influentes do Congresso, alinhava-se claramente contra a aprovação do Tratado de Petrópolis. Depois de abandonar a equipe de negociadores brasileiros, divulgou sua Exposição de Motivos do Plenipotenciário Vencido em que atacou o resultado alcançado e se posicionou pela hipótese de levar a questão a uma arbitragem. A possibilidade de conseguir a cessão do território sem contrapartidas ou compensações, como havia sido o caso nas questões de Palmas e do Amapá, seduzia parte do público e da imprensa. O Tagarela, na edição de 9 de janeiro de 1904, estampa uma caricatura sobre o Acre com um gigantesco Ruy encurralando um assustado (e minúsculo) oponente em um canto com uma longa espada. |  181

a Questão do acre nas caricaturas...

Figura 15: “Mestre Ruy na estacada prepara a estocada...” Fonte: O Tagarela, 9 de janeiro de 1904.

A despeito desses agouros, o Tratado de Petrópolis acabou aprovado com facilidade nas duas Casas do Congresso: 118 votos a favor e 13 contra na Câmara, e 27 a favor e 4 contra no Senado. Ruy Barbosa, aliás, ausentou-se da votação no Senado, de 12 de fevereiro de 1904, que ratificou a negociação concluída pelo chanceler brasileiro. Quando das votações no Congresso, a maré da opinião pública já tinha mudado e passado a favorecer o convênio.

Amende Honorable Na verdade, certamente como resultado de uma campanha ativa, já antes da aprovação do tratado no Congresso o clima político vinha modificando-se a favor de Rio Branco. Um exemplo marcante dessa tendência é a caricatura de Alfredo Cândido publicada na revista A Larva, em 11 de janeiro. O título, “Amende Honorable”, já deixa claro do que se trata – uma retratação pública do cartunista, que pede desculpas a Rio Branco pelo tratamento severo que recebeu em suas caricaturas anteriores sobre a questão do Acre. Alegorias representando a História, o Acre, o Amapá e Palmas (Missões) homenageiam um busto de Rio Branco colocado sobre uma coluna.

182 |

luís cláudio villafañe g. santos

Figura 16: “Atravessaste as opiniões mais desencontradas e a todas nós procuramos interpretar nas colunas deste semanário. Hoje limitamo-nos a transportar para aqui uma das páginas da História.” Fonte: A Larva, 11 de janeiro de 1904.

No Tagarela de 14 de janeiro, em um simpático desenho do barão feito pela pena de J. Carlos, sob o título “O Acre”, um orgulhoso Rio Branco comenta: “– Dizem que estou muito inchado com o tratado... Engano, eu sempre fui assim... gorducho”. A Larva, em sua edição de 23 de janeiro, insiste na ideia de retração aos ataques sofridos por Rio Branco. Este, como um professor com uma palmatória nas mãos e o tratado embaixo do braço, aparece frente a um quadro negro em que está escrito “3 + 3 = 7” e “Acre” e admoesta três alunos: “Andem lá meninos! Deem a mão à palmatória!”. |  183

a questão do acre nas caricaturas...

Figura 17: “O Acre”. Fonte: A Larva, 23 de janeiro de 1904.

Nesse mesmo 23 de janeiro, dois dias antes da aprovação do tratado pela Câmara dos Deputados, também a revista A Avenida já refletia a mudança de ânimo da opinião pública.

Figura 18: Antes do Tratado: “- Infâmia! Vender o território da Pátria!”. Fonte: A Avenida, 23 de janeiro de 1904.

184 |

luís cláudio villafañe g. santos

Figura 19: Agora: “Mesmo por ser contra, sempre fui a favor do Rio Branco”. Fonte: A Avenida, 23 de janeiro de 1904.

A aprovação do Tratado de Petrópolis no Congresso traduziu-se em uma avalanche de homenagens a Rio Branco. A imprensa, de modo geral, adotou um tom laudatório, ainda que tenham permanecido vozes críticas, mas cada vez mais esparsas. Nem por isso, as sátiras dos adversários de Rio Branco deixavam de ser mordazes e muitas vezes violentas. Um bom exemplo é a caricatura de Taninho, publicada no jornal O Brasil em 20 de fevereiro. Nela, Rio Branco atravessa com uma lança um indígena que traz uma faixa revelando que se trata do Brasil ao mesmo tempo que, com a mão marcada por um cifrão, fecha a boca de uma figura feminina que ostenta uma faixa para deixar claro que se trata da imprensa. O texto arremata: “Como se consegue um triunfo diplomático”. Naquele mesmo 20 de fevereiro de 1904, no entanto, uma multidão reuniu-se no Palácio Itamaraty para festejar o Tratado e homenagear o barão do Rio Branco. O Jornal do Brasil da segunda-feira dia 22, para ilustrar a manifestação, traz uma caricatura em que Rio Branco é carregado em triunfo pelo povo. As vozes críticas contestaram o caráter espontâneo da homenagem e indicaram sua preparação prévia e, mesmo, com ameaças (possivelmente reais) contra os funcionários públicos que não comparecessem ao evento. A Tribuna de 20 de fevereiro, por exemplo, mostra uma caricatura em que um personagem se queixa: “E esta! Já nem me lembrava que tenho que comparecer ao Carnaval do Rio Branco! E se não comparecer... perco o emprego!”

|  185

a questão do acre nas caricaturas...

Figura 20: Um exultante Rio Branco, nos ombros do povo, agradece o reconhecimento de seu trabalho: “- Obrigado, meu povo, obrigado...” Fonte: Jornal do Brasil, 22 de fevereiro de 1904.

O episódio do Acre foi um momento decisivo para a carreira política de Rio Branco. O fracasso, ou a percepção de uma derrota, no tratamento da questão teria, possivelmente, posto em risco o patrimônio de credibilidade e popularidade alcançado com os laudos favoráveis obtidos nas arbitragens de Palmas e do Amapá. Em uma análise fria, o Tratado de Petrópolis resume-se a uma compra de território, disfarçada em uma troca desigual de terrenos e outras contrapartidas. Em uma região que se caracterizava por conter, naquele momento, um recurso natural de enorme demanda no mercado internacional e que estava habitada, praticamente, só por brasileiros, indiscutivelmente, o resultado da negociação foi amplamente favorável. Mas, ainda assim, no plano da política interna, a aprovação do tratado foi objeto de uma verdadeira batalha pela imprensa. Pelas caricaturas 186 |

luís cláudio villafañe g. santos

dos jornais e revistas cariocas nos anos de 1903 e 1904, pode-se ter uma visão clara da evolução e reviravoltas do clima político em que as negociações com a Bolívia transcorreram (e também com o Peru, mas estas com um desenlace posterior). Como o episódio demonstra, as negociações diplomáticas não se resumem ao plano externo, e os humores do Congresso, da opinião pública e da imprensa constituíram-se em uma variável incontornável, mas com a qual também soube Rio Branco lidar. A partir de 1904, a situação de Rio Branco na política interna consolidou-se como também suas relações com a imprensa no manejo de sua imagem pessoal e da política externa por ele dirigida. Por outro lado, as preocupações e os problemas, naturalmente, não se extinguiram. No que tange à questão das fronteiras do Acre e do Amazonas, seguiu pendente ainda por alguns anos a negociação com o Peru, cujos direitos tinham sido ressalvados no encaminhamento bilateral entre Brasil e Bolívia. Os cartunistas tampouco deixariam de se aproveitar dessa circunstância, como mostra a charge de K. Lixto, agora já menos claramente crítico ao barão. Esse novo debate, no entanto, já escapa ao foco deste artigo.

Figura 21: O Pesadelo do Barão: “- Safa! É Peru por todos os lados, agora!” Fonte: A Avenida, 23 de abril de 1904.

|  187

a questão do acre nas caricaturas... NOTA: A “Coleção de Recortes de Jornais” encontra-se no Acervo do Barão do Rio Branco, no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro. O original do “Mapa da Linha Verde” está guardado na Mapoteca do Itamaraty, na mesma cidade. O autor agradece ao Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD), em especial à senhora Maria do Carmo Strozzi Coutinho, pelo inestimável apoio recebido.

Referências ALEXEI, Bueno e ERMAKOFF, George (org.). Duelos no Serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005. PORTO, Ângela. Barão do Rio Branco e a caricatura: coleção e memória. Rio de Janeiro: FUNAG, 2012. RICUPERO, Rubens. “Acre: o momento decisivo de Rio Branco”. In: GOMES PEREIRA, Manoel. Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória. Brasília: FUNAG, 2012, pp. 119-161. SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. “O Barão do Rio Branco e a Imprensa”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, jul.-ago.-set., 2012, Ano I, Fase VIII, nº 72, págs. 135-168. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/media/Revista%20 Brasileira%2072%20-%20PROSA.pdf

188 |

Sobre os autores Rui Cunha Martins Professor da Universidade de Coimbra (Instituto de História e Teoria das Ideias) e membro do corpo docente do Programa de Doutoramento em Altos Estudos Contemporâneos dessa mesma universidade, é investigador integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX/CEIS20, bem como investigador associado do CITCEM. As suas áreas de investigação, genericamente reportadas à História Contemporânea (problemática da mudança política e da transição, problemática da fronteira e da estatalidade, regimes da prova e da verdade), situam-se na confluência da Teoria da História, da Teoria do Direito e da Teoria Política. É autor, entre outros trabalhos, de O método da fronteira: radiografia histórica de um dispositivo contemporâneo (matrizes ibéricas e americanas) (Coimbra: Almedina, 2008) e de O ponto cego do Direito. The brazilian lessons (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).

Fabio Wasserman Doutor em História pela Facultad de Filosofía y Letras de la UBA, onde é docente. Investigador do Conicet, sua área de interesse é a história política e cultura argentina e ibero-americana dos séculos XVIII e XIX. Atualmente desenvolve investigações na imprensa e vida pública de Buenos Aires na década de 1850. Autor, entre outras obras, de Entre Clio y la Polis. Conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-1860) e Juan José Castelli. De súbdito de la corona a líder revolucionário.

|  189

sobre os autores

Paula Borges Santos Doutora em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). É investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da FCSH-UNL, onde coordena o Grupo de Investigação Justiça, Regulação e Sociedade. É também investigadora do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (CEHR-UCP). Desenvolve atualmente, no âmbito do Instituto de História Contemporânea (IHC) da FCSH-UNL e do Centro Studi sull’Europa Mediterranea (CSSEM) da Università di Viterbo (UV-Itália), com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, o seu projeto de pós-doutoramento, designado: “As câmaras de representação política nos Estados autoritários e fascistas: Portugal, Espanha e Itália (1922-1976)”.

José Pedro Zúquete Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/ UL). Tem experiência na área de Ciência Política e História Contemporânea, atuando principalmente nas pesquisas sobre nacionalismo, assim como nos estudos sobre antiglobalização e geopolítica. Doutor em Política Comparada pela University of Bath, possui pós-doutoramento na Harvard University. Faz parte da rede europeia COST sobre populismo. Autor de vários artigos científicos, publicou os livros Missionary politics in contemporary Europe (Syracuse University Press) e The struggle for the world (Stanford University Press). Coeditou também A vida como um filme (Leya) e Grandes chefes na história de Portugal (Leya).

João Fábio Bertonha Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pesquisador do CNPq. Doutor em História pela Unicamp, com estágio na Itália e na Inglaterra. É livre-docente em História pela Universidade de São Paulo (USP) e realizou estágios de pós-doutorado na USP e na Università La Sapienza, Roma. Atualmente é visiting fellow na European University Institute, Firenze. É também especialista em assuntos estratégicos internacionais pela National Defense University (USA) e foi pesquisador visitante em inúmeras universidades na Europa e nas Américas. Autor de vários artigos e vários livros publicados no Brasil e no exterior. Destaque para Os Italianos (Contexto, 2005), O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil (EdiPUCRS, 2001) e Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1943 (Annablume, 1999) 190 |

sobre os autores

Cláudia Maria Ribeiro Viscardi Professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora e professora do Programa de Pós-Graduação em História. É bolsista de produtividade do CNPq e pesquisadora da Fapemig. É doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e realizou Pós-Doutorado na Manchester Metropolitan University (Manchester, Reino Unido), onde foi também professora visitante. Tem experiência nas áreas de História Política e Social, com ênfase na Primeira República. Autora do livro O teatro das Oligarquias: uma revisão da política do café com leite (Fino Traço), entre outros trabalhos.

Paulo Roberto de Almeida Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, Mestre em Planejamento Econômico e Economia Internacional pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade de Estado de Antuérpia e formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Defendeu tese de história diplomática no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. É Diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (UnB). Diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia no Programa de Pós-Graduação em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional; livros mais recentes: Nunca Antes na Diplomacia (Appris, 2014); Integração Regional (Appris, 2013); Relações internacionais e política externa do Brasil (LTC, 2012); Globalizando (Lumen Juris, 2011); O Moderno Príncipe (Senado Federal, 2010).

Luís Cláudio Villafañe G. Santos Graduado em Geografia pela Universidade de Brasília e em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Doutor e mestre em História pela Universidade de Brasília. Atualmente é pesquisador associado ao Observatório das Nacionalidades (Fortaleza) e diplomata do Ministério das Relações Exteriores. Tem experiência na área de história latino-americana. É autor, entre outros trabalhos, dos livros O Dia em que Adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil (UNESP, 2010) e O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira (UNESP, 2012). Foi curador da mostra oficial, patrocinada pelo MRE/FUNAG, sobre o centenário da morte do patrono da diplomacia brasileira: Rio Branco: 100 Anos de Memória (Brasília, Rio de Janeiro). Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro desde 2012. |  191

tipografia número de páginas ano

Gandhi Serif 196 2015

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.