Dimensões éticas da Educação

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DIMENSÕES ÉTICAS DA EDUCAÇÃO: BREVES CONSIDERAÇÕES A PARTIR DA OBRA
PEDADOGIA DA AUTONOMIA, DE PAULO FREIRE
ETHICAL DIMENSIONS OF EDUCATION: SHORT CONSIDERATIONS THROUGH PEDAGOGY OF
AUTONOMY, BY PAULO FREIRE
Selma Aparecida Cesarin[1]

"A ética de que falo é a que se sabe traída e
negada nos comportamentos grosseiramente imorais
como na perversão hipócrita da pureza em
puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe
afrontada na manifestação discriminatória de
raça, de gênero, de classe. É por esta ética
inseparável da prática educativa, não importa se
trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos,
que devemos lutar."

Paulo Freire




RESUMO: Neste artigo, procurou-se refletir sobre as dimensões éticas da
Educação. A rigor, a Educação só tem sentido se for absolutamente ética,
ética essa que só se atinge por meio da reflexão. Os tempos atuais não
permitem mais que a Educação seja entendida somente como o espaço físico da
escola, nem o aluno, reduzido a mero receptáculo de informações técnicas. A
Educação abrange ações coletivas e exige que as posturas éticas sejam
defendidas e disseminadas, já que o processo educativo está em todas as
realidades em que a ação humana se manifesta. Como afirma Paulo Freire, por
ser especificamente humana, a prática docente é profundamente formadora e,
em consequência, tem de ser ética. E, como já defendia Kant, o progresso
moral só pode ser entendido como "progresso da razão". Este progresso é
infinito e necessita que cada geração o cultive.

Descritores: Ética e educação. Pedagogia da Autonomia. Educação e bioética.
Moral e Ética.

ABSTRACT: This article tries to show reflections about ethical dimensions
of Education. In reality, Education only has meaning if it is an ethical
one, and this Ethics can only be achieved through reflection. The present
time does not allow that Education is comprehended only as school plant,
nor student as a simple box to receive technical information. Education
involves actions in group and demands that ethical attitudes are defended
and disseminated, since educational process is present in all human action
realities. As Paulo Freire asserts, since teaching practice is deeply a
formation practice, consequently it must be ethical. And as defended Kant,
Morals progress can only be understood as a "rational progress". This
progress is infinite and it needs each human generation keeps it up.

Keywords: Ethic and Education. Pedagogy of Autonomy. Education and
Bioethic. Morals and Ethics.
INTRODUÇÃO
Para Aristóteles, Ética é a filosofia das coisas humanas; um saber que
visa a orientar racionalmente o agir humano.
A partir da certeza de que Educação é um fazer essencialmente humano
(a rigor, "educar a ação") ela tem de ser ética, principalmente
considerando-se que a formação do sujeito ético depende da Educação que ele
receber em seu meio acadêmico, familiar e cultural, e no constante processo
de interação com esse meio.
Ao se falar em educar para a vida moral, fala-se em criar condições
para que os educandos venham a se tornar sujeitos autônomos, com capacidade
de (re)pensar e decidir por si próprios.
Entretanto, não se trata aqui de simples "autonomia". A autonomia que
a Educação deve incentivar e buscar tem de ser aquela em que haja a vontade
do educando de respeitar e reconhecer a importância do outro, de fazer
escolhas éticas, buscando seu bem estar e o da coletividade, de ser capaz
de não prejudicar e de realizar processos de alteridade com os outros.
Assim, a sala de aula (e todo o ambiente educacional) deve ser espaço para
estimular a reflexão, a cooperação e o diálogo.
Paulo Freire (2007) esclarece que, sejam os docentes formados ou
estejam em formação, devem ter plena consciência de que formar um aluno é
muito mais que treinar e depositar conhecimentos simplesmente; é mais do
que ensinar técnicas de desenvolvimento e, para essa formação, necessita-se
de ética e harmonia.
Ele complementa, ainda, que ambas – ética e harmonia – precisam estar
vivas e presentes na prática educativa, sendo esta a responsabilidade do
professor.

ÉTICA E MORAL: DISTINÇÃO E DEFINIÇÕES
Questão sempre suscitada quando se fala em Ética e Moral é se há ou
não distinção entre elas. Autores e filósofos há que defendem a mesma
definição para ambas. Outros defendem haver diferenças cruciais entre uma e
outra, posição que aqui se defende.
Segundo Russ (1999, p. 8-9), a etimologia em nada ajuda na tarefa de
resolver este impasse: ta êthé (em grego, os costumes) e mores (em latim,
hábitos; costumes) possuem, com efeito, acepções muito próximas uma da
outra e, mesmo sendo o termo "ética" de origem grega e o termo "moral", de
origem latina, ambos remetem a conteúdos vizinhos: à ideia de costumes, de
hábitos, de modos de agir, determinados pelos usos e costumes.
Contudo, apesar da semelhança – quase paridade – que a análise
etimológica indica, há de se fazer a distinção entre Ética e Moral.
O que a ética designa, então? Não uma moral, a saber, um conjunto de
regras próprias de uma cultura, mas sim uma doutrina que se situa além da
moral, racionada sobre o bem e o mal, os valores e os juízos morais. Em
suma, a ética desconstrói as regras de conduta, desfaz suas estruturas e
desmonta sua edificação, para se esforçar em descer até os fundamentos
ocultos da obrigação (RUSS, 1999, p. 9).
Assim, a diferença básica entre Ética e Moral consiste em que na
primeira há reflexão crítica e escolha individual.
Ainda, segundo Boff (2003, p. 58), a Ética é parte da Filosofia; a
Moral é parte da vida concreta; a ética é da ordem prática e não da teoria,
a qual pertence a Moral; a Ética examina a ação; a Moral, o conhecimento.
Assim, é possível traçar o seguinte quadro quanto à distinção entre
ética e moral:
"MORAL "ÉTICA "
"- Valores humanos (não tem preço);"- Valores humanos (não tem preço);"
"- Latim more = costume humano; "- Grego ethos = costume/conduta; "
"- Valores morais – efeito pelos "- Valores éticos – juízo crítico "
"usos e costumes de determinada "sobre valores que frequentemente "
"sociedade; "estão em "
" "conflito; "
"- Não há conflito; "- Há conflito/dilema (di = "
" "dois/lema = caminho); "
"- Varia de sociedade para "- Varia de indivíduo para "
"sociedade ou de época para época "indivíduo; "
"(na mesma sociedade); " "
"- De fora para dentro; "- De dentro para fora; "
"- Todo cidadão tem de respeitar "- Não é a sociedade que escolhe, é"
"porque pertence à sociedade; "o indivíduo; "
"- Não há reflexão crítica: há "- Pressupõe reflexão crítica e "
"aceitação – é social. "pessoal. "


Fonte: desenvolvido pela autora, com base em notas de aula (anotações
manuscritas). Mestrado em Bioética, Centro Universitário São Camilo.
Disciplina: Fundamentos de Bioética (professor William Saad Hossne, 2007).
De acordo com Russ (1999, p. 11), uma pessoa é moral quando age em
conformidade com os costumes e valores consagrados na sociedade na qual
vive; valores esses que podem até vir a ser questionados pela Ética; e é
uma pessoa ética quando se orienta por princípios e convicções, assumidos
mediante reflexão crítica pessoal. Portanto, uma pessoa pode ser moral
(segue os costumes, mesmo que só por conveniência), mas não necessariamente
ética (não obedece a convicções e princípios).

EDUCAÇÃO: DIMENSÕES ÉTICAS E PROCESSO REFLEXIVO
Considerando-se que o ser humano não nasce ético, torna-se ético, o
papel da Educação nesta formação é crucial. E considerando-se, ainda, que o
cotidiano mundial é hoje marcado por conflitos de toda ordem, que cada vez
mais oprimem os educadores e os educandos em formação, é preciso que esses
educadores e as entidades educativas, apesar das dificuldades, pautem suas
ações por princípios éticos e vejam a sala de aula como espaço privilegiado
para aprofundar e vivenciar o agir ético (PAVIANI, 2005), já que a dimensão
ética da educação é inegável.
As condições atuais de vida, a velocidade das informações, a
efemeridade das relações, e o aparente descaso com valores e virtudes,
entre eles, o próprio desvalor dado à vida humana, que é tida como se nada
fosse, parecem fazer com que tudo caminhe para um retorno à filosofia
ética, devido à própria necessidade de sobrevivência do ser humano num
mundo muito mais que possível: num mundo desejável.
Esse retorno e o resgate do ser humano ético deve se dar pelos
instrumentos da Educação e, no Brasil, como no resto do mundo, nas últimas
décadas, tem havido intensa preocupação com a educação em e para valores,
que surge como inspiração para muitas iniciativas, seja na esfera da
produção acadêmica, seja no âmbito das práticas pedagógicas.
A necessidade da ética nas relações cotidianas não permite mais uma
atitude que privilegia o indivíduo em detrimento à coletividade: os
problemas de ordem ética se iniciam muito cedo e percorrem os caminhos do
processo ensino-aprendizagem, com ênfase na forma como o educando vivencia
esse processo, com orientação do professor/formador que, segundo Paulo
Freire, precisa conhecer um saber necessário ao professor: que ensinar não
é somente transferir conhecimento, mas precisa ser um processo apreendido
por ele e pelos educandos nas suas razões ontológicas, políticas, éticas,
epistemológicas, pedagógicas, que precisa ser constantemente testemunhado,
vivido.
A educação encontra-se hoje em profunda crise, que provém dos
questionamentos lançados à própria Educação e seu papel na formação do
indivíduo/cidadão e da sociedade.
Nesse momento de crise, a reflexão crítica é o caminho para que se
façam as escolhas certas, norteadas pela Ética e, nesse patamar, os
princípios e Referenciais da Bioética são instrumento primordial.
Ao se preocupar com a justiça, a beneficência, a não maleficência, a
autonomia, a afetividade, a dignidade, a solidariedade, a vulnerabilidade,
a responsabilidade, a qualidade de vida, a confidencialidade... educador e
educando exercem, enquanto se relacionam, o poder de escolha em prol do bem
estar da coletividade e da sua melhor formação.
Um dos alicerces da Bioética é, sem dúvida, as relações: relações
entre pessoas, entre organismos, entre entidades, entre vidas... e a
necessidade da ética nas relações cotidianas e no processo ensino
aprendizagem não permite mais uma atitude que privilegia o indivíduo em
detrimento da coletividade.
A Educação não tem apenas a dimensão instrumental e técnica que
muitos lhe atribuem. Em sua dimensão (bio)ética, ela é fundamentalmente
criadora de valores que podem tornar os seres humanos melhores e, assim,
mais capazes de ser e de fazer os outros felizes. Portanto, deve-se
estimular a solidariedade, o respeito à liberdade e à autonomia, o sentido
de justiça, o bom senso e a afetividade.


NATUREZA ÉTICA DA PRÁTICA EDUCATIVA
De acordo com Freire (2007, p. 72): "A prática docente,
especificamente humana, é profundamente formadora, por isso, ética".
Não há como negar que à Educação cabe sensibilizar as atuais e as
novas gerações para o problema da ética como fundamento da vida humana e
ajudá-las a formar competências para que possam participar ativamente desse
processo de formação. Entendido aqui que esta não é só uma tarefa da
Escola, mas de toda a sociedade.
Para Goergen (1979):


[...] encontramo-nos no limiar do surgimento de uma nova
consciência, principalmente face às perspectivas que a
ciência e a tecnologia abrem à intervenção nos segredos da
vida. O projeto moderno pode tomar novos rumos e a
discussão do tema da ética é de imensa atualidade. A
educação, por sua vez, estaria relacionada a este contexto
como estimuladora desta nova consciência.

A assertiva de Lepargneur (2005, p. 387), de que "o futuro de um país
se prepara na Educação", é inquestionável. E é nessa preparação que o papel
da (bio)ética é fundamental, já que a noção de ética remete a alternativas
e escolhas que decidem o destino do ser humano.
Considerando-se a importância da formação para a construção de um
destino individual e coletivo de qualidade e com base nas ações e decisões
éticas, a educação atual não pode ser reduzida à informação factual: ela,
por si só, já envolve capacitação de escolha e juízos e assim deve se
apresentar para o educando: como um caminho que leve à reflexão e indique –
mas não imponha, as escolhas éticas possíveis e desejáveis.
Assim, Educação e (bio)ética constituem hoje dois fatores
insubstituíveis e obrigatórios para a universalização da cultura e do
humanismo.
Freire (2007, p. 17) deixa claro que a ética a qual se refere é a
ética universal e diz que "a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em
nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com
eles".
É necessário que educadores e educandos se conscientizem de sua
presença no mundo, como seres formadores desse mundo. Essa consciência leva
a refletir e pensar a vida como possibilidade "de ser mais e melhor" e
Paulo Freire anuncia a solidariedade como forma de luta capaz de promover e
instaurar a "ética universal do ser humano", o que vai permear, também, o
processo educativo (Ibidem, mesma página).
Os inúmeros desafios do futuro tornam a educação verdadeiro trunfo
para a construção dos ideais de paz, de liberdade, de justiça e de
preservação do mundo no qual se vive.
Assim se posicionou Paulo Freire, em sua Pedagogia da Autonomia, ao
defender que a luta dos professores pela dignidade de sua função não só é
democraticamente importante, bem como pode ser interpretada como prática
ética (2007).
Trata-se, acima de tudo, de aprender a conviver, conhecendo aqueles
com quem se convive, respeitando-os em todas as escolhas de suas vidas sem
"manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe" (FREIRE, 2007,
p.16), praticando a afetividade e a empatia.
Assim, conforme redação do Relatório da UNESCO: Educação – um Tesouro
a descobrir: "ajudar a transformar a interdependência real em
solidariedade desejada, corresponde a uma das tarefas essenciais da
educação. Deve-se, para isso, preparar cada indivíduo para compreender a
si mesmo e ao outro, através dum melhor conhecimento do mundo".
Desta forma, para servir como agente instigador dessa transformação,
os educadores devem ter postura ética na vida, no pensar, falar, agir,
ensinar e aprender.
Mas o papel do educador é complexo e delicado, e deve estar revestido
de características essenciais. Para Freire, ensinar exige rigor metódico;
pesquisa; respeito pelos saberes dos educandos; criticidade; estética e
ética; corporificação das palavras pelo exemplo; risco, aceitação do novo e
rejeição de qualquer forma de discriminação; reflexão crítica sobre a
prática; reconhecimento e assunção da identidade cultural; consciência do
inacabado; respeito pela autonomia do educando; bom senso; humildade,
tolerância e luta na defesa dos direitos dos educadores; apreensão da
realidade; alegria e esperança; convicção de que a mudança é possível;
curiosidade; segurança, competência profissional e generosidade;
comprometimento; compreensão de que a educação é uma forma de intervenção
no mundo; liberdade e autoridade; tomada consciente de decisões; saber
escutar; reconhecimento de que a educação é ideológica; disponibilidade
para o diálogo e querer bem aos educandos.
Portanto, é primordial o cuidado amoroso, afetivo e solidário do
educando. Assim, não é possível que o educador não se posicione.
Segundo Freire (2007):


Em tempo algum pude ser um observador "acinzentadamente"
imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posição
rigorosamente ética. Quem observa o faz de certo ponto de
vista, o que não situa o observador em erro. O erro na
verdade não é ter certo ponto de vista, mas absolutizá-lo
e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é
possível que a razão ética nem sempre esteja com ele.

Fica claro, portanto, que se como educadores e formadores o que se
quer é transmitir valores às novas gerações, não é mais possível limitar o
processo ensino-aprendizagem à dimensão dos conteúdos intelectuais,
transmitidos por intermédio da docência.
É necessário que se vá muito mais além: lidar verdadeiramente com a
dimensão (bio)ética desse processo é ação profunda e transformadora, já que
se faz necessário que os valores e as virtudes sejam muito mais do que só
transmitidos: eles precisam ser vividos, por meio das práticas educativas e
no decorrer dos acontecimentos.
Os educadores/formadores necessitam viver os Referenciais (bio)éticos
com os alunos, fazendo-se presentes na vida dos educandos, de forma
construtiva, emancipadora, solidária, afetiva – repleta de bem querer a
esse educando, já que educar não é depositar conteúdo técnico num ser em
formação é, antes, criar espaços para que o educando possa empreender ele
próprio a construção do seu ser, ou seja, a realização de suas
potencialidades em termos pessoais e sociais.
Nesse sentido, é esclarecedora a posição de Nascimento (1984, p. 16),
quando afirma:


A questão ética não se restringe ao plano da aceitação das
normas socialmente estabelecidas nem se reduz ao problema
da criação dos valores por uma liberdade solitária. Nasce
na existência concreta de cada um, da consciência dos
valores envolvidos no reconhecimento da inalienável
dignidade da pessoa e do sentido da responsabilidade
pessoal diante do outro, cujo rosto é um apelo constante a
ser respeitado e promovido.

É inegável, portanto, que a busca de uma Educação e de educadores que
realmente trabalhem para a construção de uma sociedade mais digna, mais
feliz, mais respeitável, e que contribuam para que os educandos consigam
ter uma vida melhor, que leve ao sucesso, com qualidade, criando
sensibilidades que se impõem como novas temáticas para a Educação é o
caminho essencial quando se fala na dimensão (bio)ética da educação.
Na verdade, a educação só tem sentido se for intrinsecamente ética,
repleta de atitudes éticas, cuja concretização deve se dar no indivíduo e,
por extensão, na coletividade.
A educação nasce de um projeto social na medida em que este está
impregnado de ideias, valores e reflexões sobre as perspectivas futuras.
Portanto, é evidente que a Ética é expressão autêntica de um projeto de
homem e de sociedade.
Neste projeto, em momento algum o professor pode desprezar sua
formação científica, mas esta também tem de ser pautada na Ética.
Freire (2007) faz questão de deixar claro que:


O preparo científico do professor ou da professora deve
coincidir com sua retidão ética. É uma lástima qualquer
descompasso entre aquela e esta. Formação científica,
correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade
de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o
nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação
ao outro nos façam acusá-lo do que não fez, são obrigações
a cujo cumprimento devemos humilde mas perseverantemente
nos dedicar.

A situação atual, o repensar do papel de cada um na sociedade e na
(trans)formação de um mundo possível e desejável tem conduzido "os homens
de bem" (MATTOS, 2007) a questionamentos profundos, difíceis e, muitas
vezes, doloridos.
A reflexão ética é basilar neste momento crucial e um dos objetivos
da Bioética é fazer reflexões e levar a reflexões, a fim de tornar possível
o princípio da dignidade da vida, pois a ética é condição essencial para a
cidadania. Assim, a Bioética é valioso instrumento de reflexão e ação para
auxiliar o homem a enfrentar os questionamentos sobre o que o angustia.
O estudo e a concretização da dimensão (bio)ética da educação,
apesar de parecer limitada somente às atitudes no processo ensino-
aprendizagem, trata-se de muito mais, pois dessa dimensão micro deve-se
caminhar e se expandir cada vez mais para a macro, norteando o educando em
todos os momentos e diretrizes de suas escolhas.
Segundo Sime (1999, p. 272), uma proposta educativa que tenha como
eixo central a vida cotidiana e que queira recuperar o valor da vida, no
sentido radical, tem de desenvolver de forma criativa certos aspectos
básicos.
Para ele:


Deve haver pedagogia de indignação e que diga não à
resignação. Não queremos formar seres insensíveis, e sim
capazes de indignar-se, de escandalizar-se diante de todas
as formas de violência. A atividade educativa deve ser
espaço onde expressamos e compartilhamos a indignação
através dos sentimentos de rebeldia contra o que está
acontecendo.
Segundo análise de Sime, muitas vezes os processos educativos atuais
se mostram impermeáveis à realidade do contexto social nos quais se inserem
e o cotidiano educacional transforma-se em mundo à parte, que simplesmente
ignora o cotidiano social. Mais do que isso: em muitas ocasiões, sequer há
espaço para que os diferentes sujeitos possam expressar e refletir sobre a
estruturação do seu dia a dia, de suas famílias e comunidades.
A rigor, as práticas educativas e a vida parecem ser dois mundos que
se ignoram. Romper com essa desarticulação tem de ser inquietude básica da
educação ética.
Deve-se deixar claro, aqui, que a indignação e a rebeldia não
significam estímulo à violência, à confusão ou ao início de conflitos
materiais. Trata-se, isto sim, de superar toda a indiferença diante das
violações dos direitos humanos que se multiplicam em nossas sociedades e
que também estão presentes nas práticas educativas, por meio de
questionamentos e de resolução de conflitos que conduzam cada vez mais à
defesa e aplicação dos Referenciais da (bio)ética.

DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO VINCULADA AO SOCIAL
A dimensão ética da educação tem implicações sociais na cidadania e o
componente ético é fator chave nos processos educacionais. É necessário que
se lute para que a educação suscite valores de responsabilidade pessoal,
consideração pelos outros e respeito mútuo face às diferenças e
divergências.
A capacidade e a vontade de estabelecer princípios que orientem o agir
cotidiano, seja no âmbito individual, seja no âmbito coletivo, podem ser
designadas como disposição ética. A educação tem caráter ético na medida em
que orienta a ação dos diferentes sujeitos numa instituição educacional,
pois por meio dela buscam-se soluções e alternativas para os problemas da
existência humana.
A dimensão ética da educação está vinculada ao social, significando os
costumes culturais, valores, tradições e tudo aquilo que se refere a
determinado modo de viver em coletividade, de viver o nós. Ela é a
expressão do querer-viver global e irreprimível porque expressa o desejo de
continuidade de um conjunto social e a responsabilidade que se assume em
relação a essa continuidade. A ética remete ao equilíbrio e à relativização
dos diferentes valores que formam um conjunto social. Esse conjunto social
necessita ser, literalmente, "cuidado" e Boff (2003, p. 50) defende que "a
ética que cuida e ama é terapêutica libertadora".
Segundo Chauí (2005):


A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade
subjetiva individual e a vontade objetiva cultural.
Realiza-se plenamente quando interiorizamos nossa Cultura,
de tal maneira que praticamos espontânea e livremente seus
costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os
discutirmos, sem deles duvidarmos, porque são como nossa
própria vontade os deseja.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conjunto das reflexões conduz à inquestionável assertiva de que a
educação, em sua dimensão ética, é instrumento transformador e norteador
para que educadores e educandos (re)pensem e (trans)formem não só o
ambiente educacional, mas toda a coletividade, para que se atinja o mundo
desejável, com qualidade de vida e cidadania pautadas na ética.
E na construção de uma educação engajada, politizada, ética e,
portanto, crítica, por meio do processo ensino-aprendizagem, a afetividade
ocupa papel de destaque.
Nesse caminho, Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, é uma obra que
condensa os saberes necessários e indispensáveis à uma prática educativa
coerente com os padrões éticos que regem a sociedade.
Para que se conheça uma sociedade melhor, os educadores precisam se
posicionar criticamente, questionando, orientando e incentivando os
educandos a refletir criticamente.
Entretanto, para assumir este compromisso, é primordial que o
educador/formador o faça com ética, amor e alegria por ensinar.
Além disso, a educação deve inspirar-se nos fundamentos da Ética e se
pautar com a concretização dos Referenciais da Bioética nas relações, já
que a Bioética aspira aos grandes desafios que historicamente a Humanidade
sempre almejou: a dignidade humana, a qualidade de vida, a justiça, a
autonomia.
Educar para a autonomia é ensinar a buscar a realização e não a
destruição. Este é o verdadeiro significado de uma educação voltada para a
Bioética e cada geração necessita fazer esse esforço.
A Bioética é eminentemente atual. Perdida a inocência da Ciência,
ocupa hoje importantíssimo lugar e se torna referência indispensável para
diferentes áreas do saber, "avassaladora", lhe chamou Luís Archer, "uma
generosa utopia para o século XXI", definiu Daniel Serrão (CARVALHO;
OSSWALD, p. 68)
A defesa de seus princípios e Referenciais, por meio da Educação, tem
o poder de conduzir à "felicidade", desejo último de qualquer ser humano e
defendido, através dos séculos, por filósofos, poetas, escritores,
políticos, psicólogos, sociólogos...
Assim como Kant, é preciso que professemos uma fé incondicional no
progresso da Humanidade em direção à perfeição moral: pois cultivar o que é
racionalmente correto e moralmente útil necessita ser repetido de geração a
geração.
Na Educação, a Ética representa importante tema de estudo, vez que na
atualidade o grande problema das sociedades é o agir humano. A competição,
a violência, a solidão, os preconceitos, o valor da vida e a cidadania
requerem reflexão orientada para a Ética.
E apesar de todos nós vivermos os efeitos do sistema de vida atual,
que parece desconhecer os princípios da Ética, é necessário que não se
perca de vista o que salientou brilhantemente Paulo Freire: "Não podemos
nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção,
como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como
sujeitos éticos", nem esquecer "de sublinhar a nós mesmos, professores e
professoras, a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa
docente".
Mesmo com todos os empecilhos para se educar, ainda existem muitos
professores cumprindo com excelência o seu papel, com vocação, o que
significa ter afetividade, gostar do que faz, ter compromisso, competência
e, primordialmente, acreditar que mesmo não podendo transformar o mundo
inteiro, a semente, a prática educativa crítica e construtiva, poderá
germinar, desde que plantada em bons solos, nossos corações,
verdadeiramente.
Assim, a educação, entendida como possibilidade de ação conjunta para
melhorar a sociedade em que se vive, não pode se eximir de refletir sobre
seu papel de empreender esforços para tudo que puder contribuir para
melhorar o entendimento e a aplicabilidade dos conceitos e reflexões
possíveis a partir da Ética.


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[1] Professora de Direito (FAENAC – Faculdade Editora Nacional); mestranda
em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo (2007).
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