Dinâmicas complexas: o entendimento de uma realidade sistêmica no bairro da Serrinha

May 30, 2017 | Autor: Eugênio Moreira | Categoria: Irregular/Informal Settlements Studies, Teoria Geral dos Sistemas, assentamentos informais
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Dinâmicas complexas: o entendimento de uma realidade sistêmica no bairro da Serrinha Carlos Eugênio Moreira de Sousa (1) Anna Lúcia dos Santos (2) Lívia Perdigão Barreto (3) NaggilaTaissa Silva Frota (4) (1) Dep. de Arquitetura e Urbanismo, UFC, Brasil. E-mail: [email protected] (2) Dep. de Arquitetura e Urbanismo, UFC, Brasil. E-mail: [email protected] (3) Dep. de Arquitetura e Urbanismo, UFC, Brasil. E-mail: [email protected] (4) Dep. de Arquitetura e Urbanismo, UFC, Brasil. E-mail: [email protected] Resumo: Buscamos sedimentar no presente trabalho o entendimento de realidades urbanas como sistemas complexos e dinâmicos. Para tanto, adotamos como modelo a Teoria Geral dos Sistemas (BUNGE, 1977, apud VIEIRA, 2008), na qual trazemos alguns conceitos mais importantes à investigação, baseando-nos nas análises de VIEIRA (2008a). A partir disso, analisamos, o contexto urbano de um assentamento informal no bairro Serrinha, em Fortaleza. Diversas camadas de complexidade definem a situação: problemas físico-espaciais como o esgoto a céu aberto, alagamentos na época da quadra chuvosa (fevereiro a maio), uma área ambientalmente frágil, falta de iluminação pública, de pavimentação, e um depósito de resíduos domésticos; problemas sociais em uma área de habitações subnormais e o hábito comunitário de uso do espaço como um “lixão”; problemas de caracterização do espaço, com sobreposições formais e informais que fazem dele ao mesmo tempo público e privado, tudo isso às margens de um recurso hídrico. Assim, nesse estudo de caso, observamos o desenvolvimento de espaços colaterais criados à revelia de qualquer planejamento oficial, com potencial regenerativo para integrar a vida pública da comunidade. Por fim, analisamos como esse modo de ler uma situação de tal complexidade pode propiciar abordagens de intervenção com maiores possibilidades de êxito. Palavras-chave: complexidade; sistemas; dinâmica, espaços colaterais, assentamentos informais. Abstract: We seek to settle in this study the understanding of urban realities as complex and dynamic systems. To this end, we have adopted as a model the General System Theory (BUNGE, 1977 apud VIEIRA, 2008), where we bring some major concepts, based on the analysis of VIEIRA (2008a). From this, we analyze the urban context of an informal settlement in Serrinha district of Fortaleza. Several layers of complexity define the situation: physical-spatial problems like open sewers, flooding at the time of the rainy season (February to May), an environmentally fragile area, lack of street lighting, paving, and a deposit of household waste; social problems in an area of slums and community habit of using space as a "dump"; problems of characterization of space, with formal and informal overlays that make it both public and private, all on the banks of a waterresource. Thus, in this case study, we observe the development of collateral spaces created against any official planning with regenerative potential to integrate public life of the community. Finally, we analyze how this way of reading a situation of such complexity can provide intervention approaches with greater chance of success. Key-words: complexity, systems, dynamics, collateral spaces, informal settlement. 1. INTRODUÇÃO A realidade é complexa. Por mais tola e óbvia que esta afirmação possa parecer, a verdade é que a prática científica por muito tempo deixou de lado diversos aspectos “inconvenientes” no momento em que precisou lidar com eles. Via de regra, a culpa recai em Descartes e Newton, cujas teorias legitimaram e validaram o marco teórico dessa visão da realidade (o racionalismo científico) e suas implicações (linearidade, monocausalidade, determinismo, reducionismo e imediatismo). A verdade é que o contexto econômico-social foi o grande responsável pela sedimentação deste tipo de 1 | 10

pensamento.Em uma economia industrial,na qual o sistema de produção se baseia na produção em série e em larga escala, é fácil cair na tentação de reduzir o mundo a fórmulas. Não estando excluídos desse processo, arquitetos, urbanistas e designers criaram um modelo teórico apoiado no pensamento mecanicista e cartesiano, trazendo à luz ideias como o homem-tipo e a equiparação das estruturas estudadas e projetadas a máquinas, pautando seu sucesso em termos de uma eficiência manipulada. O enunciado “a forma segue a função” conduziu a produção e o pensamento do Movimento Modernista e seus seguidores, chegando a se transformar em uma afirmação estética. Longe de querer desmerecer os imensos avanços tecnológicos propiciados por esse período, o mundo e a sociedade atuais são outros, com outros propósitos e outras dinâmicas. O “mundo real” pede que o projetista entenda o problema não mais a partir de uma visão segmentada, baseada unicamente na sua expertise individual e na escolha dos propósitos “certos”. O homem-tipo não existe. O que existem são seres humanos que possuem diferentes culturas, diferentes idades, diferentes gêneros, diferentes poderes aquisitivos, pertencem a diferentes percentis... E cada um deles possui problemas específicos que dependem de toda essa conjunção de fatores. Não existem vastas planícies onde cidades inteiras podem nascer de forma ordenada, com setores específicos para cada função, muito menos estes espaços podem ser criados. Mesmo cidades que tiveram essa condição inicial de existência e foram planejadas por especialistas falharam em funcionar como se pretendia. O que existe é um tecido urbano que se expande e se modifica de forma dinâmica e complexa, fora de qualquer controle e à revelia das tentativas de planejamento. Habitações sub-normais, realizadas fora de qualquer norma técnica ou conceito de salubridade, sem qualquer infraestrutura básica, habitadas por pessoas reais, com problemas complexos a serem resolvidos. Uma das consequências desse embate entre o plano e a realidade é a emergência de espaços residuais, porções peculiares do território que surgem à margem e apesar da cidade formal. Nestes, muitas vezes o limite entre o público e o privado é indiscernível e sobre ele acumulam-se tantas camadas de complexidade que se torna impossível aplicar os modelos vigentes de projeto, o que acaba por relegálos ao abandono pela administração municipal. Apesar disso, estes fragmentos fazem parte da vida urbana de sistemas psicossociais dinâmicos, comunidades também marginais que elaboram o ambiente na busca por sua permanência, criando um “[...] corpo complexo de ligações várias e sempre possíveis, que mudam a cada instante e, por isso, alteram sem previsibilidade o arranjo do conjunto.”(GONÇALVES, 2001, p.21) É sobre essa realidade, complexa, sistêmica e legaliforme (VIEIRA, 2008a) que vamos tratar. 2. REALIDADE SISTÊMICA 2.1. Uma ontologia científica Antes de mais nada, parece pertinente pensarmos em como seria possível compreender a complexidade de sistemas urbanos, sobretudo estes emergentes de dinâmicas não previstas e aos quais os modelos convencionais não se aplicam. Entendemos que uma boa proposta seria nos basearmos em um estudo ontológico, por sua busca do geral e do completo (VIEIRA, 2008a, p.25). Assim sendo, nos guiaremos por uma Ontologia Científica em particular, a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), com base nas considerações trazidas por Vieira (2008a) acerca dos estudos de Bunge (1977). Aqui faremos um pequeno apanhado dos conceitos que permeiam tal teoria, que serão melhor relacionados com o tema nos itens seguintes. A TGS nos explica que qualquer agregado de coisas (coisa tomada aqui no sentido ontológico) é um sistema quando partilham um conjunto de relações e desta interação surge uma propriedade ou um conjunto destas. Como ontologia que é, podemos entender que esta definição pode ser aplicada a sistemas de qualquer natureza, de galáxias a uma sinfonia (VIEIRA, 2008a, p.31). Sistemas possuem diversas características, chamadas de parâmetros, que podem ser divididas em duas categorias: parâmetros básicos (existentes desde o momento de criação de um sistema até o momento de seu desaparecimento) e parâmetros evolutivos (que podem vir a surgir ao longo do processo evolutivo). 2 | 10

Os parâmetros básicos são três: permanência, ambiente e autonomia. A permanência é descrita como uma tendência, uma busca dos sistemas em permanecer no tempo. Em biologia utiliza-se o termo “instinto de sobrevivência” para designar este parâmetro nos seres vivos, termo que não é normalmente utilizado no estudo de estruturas não-biológicas. O ambiente é um sistema envoltório, aberto, com o qual o sistema em estudo troca energia, matéria e informação na busca pela permanência. A autonomia fala dos “estoques” gerados a partir dessas trocas com o ambiente, possuindo um caráter histórico, o que foi descrito por Bunge (1977, apud VIEIRA, 2008, p.247) como função memória. Os parâmetros evolutivos são sete: composição, conectividade, integralidade, estrutura, funcionalidade, organização e o parâmetro livre da complexidade. A composição trata daquilo de que é formado o sistema. Possui aspectos como quantidade (diz respeito ao número de elementos), qualidade (que diz respeito à natureza dos elementos), diversidade (diz respeito a quanto os elementos se diversificam em classes), informação (ou as diferenças no meio que favorecem a permanência) e entropia (medida da informação média, uma homogeneidade na diversidade propicia uma alta entropia, uma heterogeneidade, o oposto). Todos estes aspectos possuem impacto direto na complexidade de um sistema. A conectividade diz respeito à capacidade dos elementos em estabelecer conexões com outros elementos. Em sistemas complexos (como os psicossociais), a conectividade pode adquirir caráter seletivo, quando um sistema aceita ou nega estabelecer conexões na medida que avalia o impacto disto na sua permanência. Quando as conexões são fortes o suficiente para assegurar a permanência de um sistema, diz-se do mesmo que alcançou uma coesão. Esta não poderá ser total, sob a pena de tornar o sistema rígido demais para adaptar-se a mudanças. Também não poderá tender à inexistência, uma vez que isso levaria o sistema à decomposição. Assim, uma estratégia observada em sistemas mais complexos é a formação de subsistemas que se conectam entre si, mantendo um equilíbrio entre a “rigidez total e a flexibilidade amorfa” (VIEIRA, 2008a, p.39). Essa configuração por meio de subsistemas é expressa pelo parâmetro da integralidade. A estrutura é a quantidade de conexões em um determinado instante de tempo. Funcionalidade é a possibilidade da emergência de propriedades específicas em subsistemas que participam da integralidade de um todo maior. Os dois últimos parâmetros, organização e complexidade, são os mais difíceis de definir, entretanto de extrema importância para o que se pretende dizer em seguida. Organização é, em muitos contextos, confundido com ordem, engano este que deve ser dirimido. Dentre as várias definições possíveis, ficaremos com a de Vieira (2008a) que, se apoiando nos conceitos trazidos por Denbigh (1975) diz que [...] um sistema será dito organizado quando for composto por subsistemas conectados por relações efetivas [...] com graus variados de importância tanto dos subsistemas quanto das conexões, gerando uma totalidade dotada de propriedades irredutíveis aos subsistemas ou elementos. (idem, p.43)

Assim, temos a organização ligada diretamente à integralidade de um sistema, o que lhe dá um caráter orgânico, diverso da ideia de ordem, que mais se relaciona a um conceito de padrão. Já a complexidade, como parâmetro livre, está presente durante todo o surgimento e desenvolvimento de um sistema, crescendo à medida que o mesmo evolui e permanece. Possui uma estreita ligação com a organização, onde nos valemos novamente de Vieira (2008a, p.40) que diz que a “organização é uma forma elaborada de complexidade, sendo que no momento é a mais elevada que conhecemos.” 2.2. Urbanismo Sistêmico Todos os conceitos explorados até aqui parecem de grande valia para tentarmos compreender situações urbanas de alta complexidade. Em primeiro lugar, quando falamos de sociedade, ou ainda de comunidades, é um pressuposto que saibamos que se trata de um sistema psicossocial (VIEIRA, 2008c) dotado de materialidade construída, ou seja, de dimensão espacial. Em outras palavras, é “um exemplo de hipercomplexidade em seu todo e em seus subsistemas” (VIEIRA, 2008b, p.17). Quando olhamos para os problemas urbanos no Brasil, sobretudo os ligados aos assentamentos precários, podemos perceber que a questão vem de longa data. Esse tipo de ocupação começa a surgir no país a partir do século XIX, quando os primeiros conflitos em torno da busca pela casa própria, 3 | 10

inicialmente com os escravos libertos, posteriormente com os imigrantes. Estes embates se agravam com o surto de urbanização entre as décadas de 1940 e 1970, fazendo com que as cidades alcançassem picos populacionais com os quais não estavam preparadas para lidar. Em um primeiro momento, a solução adotada foi a construção de grandes conjuntos habitacionais às margens da cidade, adensando as periferias. Esse modelo acabava por destruir comunidades inteiras uma vez que não levavam em consideração a conectividade e a estrutura das mesmas enquanto sistemas em si e subsistemas da cidade. Podemos fazer uma analogia com sistemas psicossociais de menor complexidade, como núcleos familiares. Conhecemos razoavelmente bem o que ocorre em uma família típica: os indivíduos emergem na mesma com suas características específicas, mas ao longo de seus desenvolvimentos e de suas histórias, desenvolvem funções que os tornam adaptados e coerentes com o todo familiar. Se tal não ocorre, a pertinência e o significado ficam comprometidos e surge a dimensão da marginalidade. E muitas vezes, para que possa ocorrer, o indivíduo aceita ou é obrigado a aceitar uma função que interessa ao sistema familiar, mas não é aquela que lhe é típica ou necessária. A emergência de patologias psicanalíticas tem como origem essa característica sistêmica [...] (VIEIRA, 2008c, p. 114-115)

Hoje temos um modelo que entende o direito à cidade de comunidades consolidadas, o que adveio de uma série de lutas dos movimentos sociais organizados e tem como marco no Brasil a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001. O atual modelo de política habitacional consiste em aceitar os assentamentos ilegais já consolidados e provê-los de infraestrutura urbana. O número de famílias removidas é minimizado ao máximo, o que representa imenso ganho social. A adoção deste novo modelo é descrita pela literatura nacional e internacional como medida positiva, fruto de históricas lutas de movimentos sociais urbanos. O modelo reconhece os direitos dos favelados pela boa localização no contexto intra-urbano. Hoje em dia, grande parte da opinião pública está mais sensibilizada pela causa dos sem-terra urbanos do que há 30 anos. (FREITAS, 2006, p.4-5)

Esse tipo de política estabelece conexões entre sistemas informais e formais (em um sentido jurídico), dando-lhes o direito de ocupar o mesmo território já é um grande avanço no sentido de promover uma maior integralidade sistêmica, uma maior organização e, consequentemente, uma maior coerência do sistema sociedade. 2.3. Espaços colaterais e seus subprodutos Podemos falar de uma congruência geográfica na emergência de assentamentos informais. Os mesmos costumam surgir em áreas sobre aterros sanitários, sob vias de alta tensão, ambientalmente frágeis e sobras espaciais em grandes projetos de mobilidade, entre outros. E porquê isso ocorre? Do ponto de vista sistêmico, podemos falar que essas ocupações ocorrem para satisfazer a permanência de sistemas em condição de fragilidade social. Estas áreas podem ser consideradas como espaços colaterais dentro da cidade formal, uma vez que a mesma é muitas vezes pensada dentro de uma lógica reducionista, quando os grandes planos desconsideram a realidade complexa que abarca a existência de tais sistemas. Necessitando estabelecer conexões com os centros produtores urbanos e não tendo autonomia (neste caso monetária) para estabelecer conexões com o sistema imobiliário formal, optam por ocupar porções de território não reguladas por este. Então, estas comunidades elaboram o ambiente à sua própria maneira, criando toda uma lógica tácita de auto-organização, sempre buscando a permanência sistêmica. Essa capacidade é resultado de uma cadeia de conexões internas, uma integralidade muito elaborada (ainda que de maneira não consciente). Essa característica auto-organizacional resulta, via de regra, em situações de improviso técnico que muitas vezes quedam insalubres. Atendem a uma necessidade imediata do sistema de permanecer no tempo, mas não são nem de longe as soluções que propiciariam a maior permanência sistêmica. Isso depende diretamente do quão especializados são os elementos desse sistema, o que nada tem a ver com 4 | 10

inteligência. Esta há de sobra para engenhosamente sobreviver com recursos escassos e em um ambiente hostil. Essa lógica interna cria, em alguns casos, subprodutos espaciais que nada tem a ver com os planos da cidade formal. Temos, então, a produção de outro tipo de espaço colateral, resíduos desse tecido urbano informal que, por sua localização estratégica, possuem o potencial para tornar-se espaços para a coletividade. Esse tipo especial de espaço será descrito a seguir, em um exemplo prático. 3. DINÂMICAS COMPLEXAS DE UM ESPAÇO COLATERAL 3.1. Um assentamento informal no bairro Serrinha O setor estudado encontra-se no bairro Serrinha, em Fortaleza, Ceará. Nele temos a presença de assentamentos informais, sobretudo em áreas ambientalmente frágeis. Em 2014 a Universidade Federal do Ceará iniciou um estudo sobre um destes assentamentos, a comunidade Guaribal, a fim de executar uma intervenção para que uma das únicas áreas ainda não ocupadas, um largo na frente de uma escola pública e nas proximidades de uma importante lagoa, fosse transformada em uma praça. A ocupação é fruto de uma auto-organização de uma comunidade que em nada respeitou os planos oficiais para a área (ver FIGURA 1).

FIGURA 1 – Diferenças entre o plano e a realidade. Fonte: acervo do projeto (2015).

Na área de intervenção, o esgoto a céu aberto, os alagamentos ocorridos nos períodos de chuva da cidade, o acúmulo de lixo no espaço e a existência de habitações subnormais compõem as camadas do problema físico-espacial do local (ver FIGURA 2). Já o uso do terreno, a ausência de vínculo dos moradores com o local e a participação da população da própria comunidade no processo de mudança 5 | 10

do espaço dizem respeito às camadas do contexto social da área em questão. Além disso, o local inclui sobreposições que o tornam tanto espaço público quanto privado, já que o terreno é composto por uma porção de sistema viário e outra de lote privado,tornando-o ainda mais complexo. A análise e o entendimento destes fatores é, então, fundamental para gerar maiores possibilidades de sucesso em qualquer intervenção a ser feita. A questão do esgotamento sanitário é uma camada de complexidade formada por três principais subcamadas: o sangradouro da lagoa de Itaperaoba, que possui um trecho a céu aberto e outro canalizado, as valas de esgoto subterrâneas e as valas de esgoto a céu aberto. Poucas são as casas do bairro a serem atendidas pela rede de esgoto, o que gera, consequentemente, fluxos informais direcionados ao córrego presente na área. Esse córrego é, portanto, um trecho do sangradouro da lagoa de Itaperaoba que passa pela área de intervenção enquanto recebe volumes de esgoto de, pelo menos, sete valas subterrâneas e duas a céu aberto. Isso significa que a população que habita o entorno da área, bem como as crianças que estudam na escola situada em frente ao local, são afetadas diretamente pela presença do esgoto exposto e, ao mesmo tempo, contribuem para que ele exista. O alagamento é um problema que surge principalmente como consequência das condições de esgotamento sanitário. O córrego, trecho a céu aberto do sangradouro da lagoa de Itapearaoba, contaminado pelo esgoto da região perimetral, sangra durante os períodos de chuva. A Rua Antônio Botelho apresenta-se também como fonte de inundação no local em questão. Portanto, durante os meses que compõem a quadra chuvosa, a área de intervenção, bem como as casas dos moradores do perímetro e a escola, sofrem alagamento, apresentando sérios riscos à saúde da população afetada e aumentando grau de complexidade para a realização de ações no local. Outra camada-problema que faz parte do contexto da área é o acúmulo de lixo a céu aberto. Os moradores do perímetro e, principalmente, do entorno do local frequentemente utilizam parte do espaço para despejar lixo doméstico e entulho, colocando em risco a saúde de todos os indivíduos que circulam pelo local. Essa prática também agrava o quadro de alagamento do terreno e das residências próximas. A existência de habitações subnormais no bairro e, consequentemente, ao redor do terreno em questão também constitui uma camada do problema físico-espacial e está diretamente ligada às três camadas citadas anteriormente. O uso do espaço é tomado aqui como uma camada pertencente ao contexto social. Nela estão inclusas diversas subcamadas, tais como: o acúmulo de lixo por parte da população local, ao fluxo de pessoas na região, a utilização da área para atividades recreativas pelas crianças que estudam na escola ou moram no entorno, a construção de encanamentos irregulares e a dispersão de lixo por catadores em busca de objetos recicláveis Todos esses fatores contribuem para o cenário-chave da camada em questão. Mais um fato importante que diz respeito ao âmbito social é a ausência de vínculo entre os moradores do bairro e a área estudada. Isso acarreta na necessidade de construção de lugar, que implica em gerar uma identidade da comunidade associada ao local. Ao se sentir pertencente a um espaço, a população deixa de degradá-lo. O lugar é uma porção do espaço significada, ou seja, a cujos fixos e fluxos são atribuídos signos e valores que refletem a cultura de uma pessoa ou grupo. Essa significação é menos uma forma de se apossar desses elementos, e mais de impregná-los culturalmente para que sirvam à identificação da pessoa ou do grupo no espaço para que encontrem a si mesmos refletidos em determinados objetos e ações e possam, assim, guiar-se, encontrar-se e constituir sua medida cultural no espaço. (DUARTE, 2002, p.65)

A participação da própria comunidade no processo de mudança do espaço é outro aspecto social a ser abordado como camada. Esta se deu tanto por meio de respostas fornecidas através de um questionário, quanto por meio da colaboração em mutirões mensais ocorridos no local. Pessoas de todas as idades que são afetadas pela mudança no espaço nos ajudaram a apontar os principais pontos críticos da região, bem como suas preferências relativas à futura praça. 6 | 10

FIGURA 2 – Camadas de complexidade. Fonte: acervo do projeto (2015).

3.2. Uma não-nova proposta metodológica Há diversos escritos e propostas metodológicas para intervenções em espaços como o que foi descrito no ponto anterior. Entre elas, as mais presentes referem-se à necessidade do envolvimento da comunidade no processo de decisão e elaboração das soluções e à importância de um trabalho interdisciplinar. No caso em questão, tivemos uma aproximação por várias frentes, desde a ocorrência de mutirões mensais até a construção de maquetes físicas de propostas de intervenção. Descreveremos algumas que consideramos mais pertinentes para essa investigação, para depois analisá-las do ponto de vista sistêmico. 3.2.1. Mutirões Foi estabelecido um ritmo de encontros entre os envolvidos no projeto (que congrega sociedade civil organizada, ONG’s e universidades) de frequência mensal no espaço a ser trabalhado, o que criou uma dinâmica de encontros dos profissionais entre si (sedimentando o caráter interdisciplinar) e com a comunidade envolvida. 3.2.2. Calendários Para todos os encontros é elaborada uma peça gráfica que consiste em uma imagem (a foto de algum momento do mutirão do mês anterior) a informação dos dias em que é realizada a coleta de lixo e a marcação do dia do próximo mutirão (ver FIGURA 3). A entrega dos mesmos é feita pelos diversos envolvidos no projeto, de porta-em-porta.

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FIGURA 3 – Exemplos dos calendários. Fonte: acervo do projeto (2015).

3.2.3. Apresentações de projeto Nos primeiros mutirões realizamos algumas apresentações que buscavam informar sobre os problemas estudados para a área e tentávamos incitar a participação da comunidade no processo. O desenvolvimento disto culminou na elaboração de uma maquete física que apresentava uma proposta de possível intervenção elaborada pelos profissionais e estudantes envolvidos no projeto.

FIGURA 4 – Apresentações de projeto. Fonte: acervo do projeto (2015).

3.2.4. Resultados e análise sistêmica Os resultados alcançados mostram questões interessantes do ponto de vista metodológico. Depois de seis meses de trabalho contínuo, o lixo foi retirado e o espaço é mantido limpo por iniciativa e imposição dos próprios moradores, sobretudo os que residem nas bordas do espaço de intervenção. Como estratégia para que o acúmulo de resíduos não mais aconteça, os mesmos também implantaram um mini-campo de futebol, orientado no sentido leste-oeste, que ganha estruturas mais permanentes a cada novo mutirão e que nunca esteve presente nas versões de projeto apresentadas. Todo o lixo antes depositado na futura praça é hoje colocado em sacos plásticos fechados na frente das residências, nos dias marcados para a coleta. O que isso quer dizer? Em um primeiro lugar, cabe analisar a primeira grande modificação espacial: a retirada do lixo. Segundo relatos, o acúmulo chegou a um nível de mal cheiro (pela deposição, sobretudo, de animais mortos) que tornou-se insuportável, levando um dos moradores a levantar-se contra a prática e convocar seus vizinhos e os demais responsáveis a retirar todo o resíduo da área e assim o manter. Do ponto de vista sistêmico, podemos dizer que uma irritação no sistema (depósito de carcaças de animais) foi responsável por causar uma reorganização das conexões internas. É bem verdade que, de um ponto de vista prático, os projetistas envolvidos não tiveram a menor responsabilidade nessa “irritação”. No entanto, podemos (e gostamos de) pensar que o trabalho feito anteriormente, elaborando o conhecimento nesse sistema psicossocial de que há uma coleta de lixo periódica (explícita nos calendários entregues aos moradores) e de que há a possibilidade da criação de um espaço público qualificado (com as apresentações de projeto) foi a responsável por direcionar a reorganização sistêmica.

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FIGURA 5 – Aspectos do espaço antes e depois da limpeza promovida pelos moradores. Fonte: acervo do projeto (2015).

A implantação do mini-campo de futebol foge à toda e qualquer orientação técnica, tanto nas dimensões (são muito diminutas) quanto na orientação (campos e quadras a céu aberto seguem uma orientação norte-sul, para que nenhuma das equipes seja prejudicada pelo sol). No entanto, o mesmo foi imediatamente incorporado ao projeto. Essa decisão tem razões sistêmicas. A implantação do equipamento, qualquer que seja ele, pela comunidade é algo para ser considerado por si só. Ela representa a elaboração do ambiente pelo sistema nele imerso. É a criação de conexões profundas que importam mais para a permanência da comunidade do que qualquer decisão técnica de projeto. Bunge (1979:6) define conexões (para o caso de sistemas concretos) como relações físicas, eficientes de tal forma que um elemento (agente) possa efetivamente agir sobre outro (paciente), com a possibilidade da mudança de história dos envolvidos (VIEIRA, 2008a, p. 37)

Faz todo sentido enquanto solução espacial e prova-se por si própria: o uso é intenso e é fato que sua existência é fator mantenedor da ordem estabelecida. A orientação também tem uma razão lógica que somente alguém imerso no contexto seria capaz de elaborar: causa menos ocorrências de “boladas” nos portões das casas (vira as “metas” para um muro cego e para o interior da futura praça), o que é uma relação muito mais coerente e de muito mais valor. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Qual seria, então, o papel do arquiteto, do urbanista e do designer dentro de um sistema que elabora tais níveis de complexidade? Podemos dizer que, entendendo a realidade de uma maneira sistêmica conforme abordamos, o grande papel do projeto e do projetista não é o da criação de uma resposta “certa”, mas de uma interface entre os sistemas humanos e seu ambiente, no sentido de qualificar o entendimento da realidade circundante e conduzir as reorganizações das relações com o objetivo de uma maior permanência. A inclusão da comunidade no processo decisório, para além de uma justiça social, faz com que a mesma elabore níveis ainda mais altos de complexidade, produzindo conhecimento. Conhecimento é função vital, uma característica de sistemas abertos sofrendo crises não lineares, como é o caso dos sistemas vivos. É na classe dos sistemas vivos que a função conhecimento apresenta seu ápice de complexidade, função essa que depende diretamente dos embates evolutivos entre sistema e seus ambientes imediato e mediato. A evolução desenvolve uma interface entre sistema vivo e meio ambiente, de forma que a interação entre os dois sistemas permita a viabilidade da permanência ou sobrevivência dos mesmos. A história de um sistema vivo é a história dos ambientes por ele elaborados. (VIEIRA, 2008b, p.112)

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Então, esta é a questão chave. Intervenções de sucesso entendem comunidades em assentamentos informais como estas o são: sistemas psicossociais de hipercomplexidade com características autoorganizacionais assentadas em materialidades construídas. Ao inserir-se nesse sistema e utilizar as inteligências locais, o projetista lança mão de uma estratégia que garante a própria permanência: ao invés de tentar resolver sozinho, ou mesmo em uma rede interdisciplinar de profissionais, estabelece conexões com uma série de saberes diversos e especializados, subsistemas imersos na problemática a ser trabalhada, aumentando a complexidade do sistema solucionador (projetistas e projeto) ao passo que faz o mesmo com o sistema social. Na verdade, o papel do arquitecto, é relativamente pequeno. Ele apenas aproveita as potencialidades do lugar e tenta fazer com que a sociedade supere o ‘trauma’ referente a este tipo de espaços, sem que este perca o seu carácter de liberdade. O que realmente é importante, é o entendimento do processo de formação dos residuais e a interrelação que estes devem ter com a envolvente para que possam deixar de ficar à margem da malha da cidade e se constituam, sem preconceitos, como parte integrante da paisagem urbana. (PEREIRA, 2011, p.204)

Em se tratando de um processo ainda em andamento, consideramos estas conclusões como um pensamento também em processo, mas não por isso menos importante. Serve de subsídio para uma reavaliação do percurso e para a sedimentação deste tipo de metodologia que não possui fórmulas, mas antes depende de toda uma cadeia de elaboração de conhecimentos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUARTE, Fábio. Crise das Matrizes Espaciais: arquitetura, cidades, geopolítica e tecnocultura. São Paulo: Perspectiva, 2002. FREITAS, C. F. S. O novo modelo de gestão urbana estratégica em Fortaleza: aumento das desigualdades socioambientais. Universitas FACE, v. 3, n. 2, 2006. GONÇALVES, Ana. Open-ended-ness. Trajectos na Holanda. 2001. 185f. Prova Final de Licenciatura Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2001. PEREIRA, Joana Isabel da Cruz. Espaços Residuais Urbanos: os ‘baixios’ de viadutos. 2011. 274f. Dissertação (Mestrado Integrado em Arquitectura) - Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia - Universidade de Coimbra, 2011. VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ontologia Sistêmica e Complexidade. Formas de conhecimento e arte: arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008a. 108p. _____. Teoria do Conhecimento e Arte. Formas de conhecimento e arte: arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008b. 136p. _____. Ciência. Formas de conhecimento e arte: arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008c. 142p. BUNGE, M. Treatise on Basic Philosophy. Onthology I: The Furniture of the World. Dordrecht: D. Reidel Publ. Co., 1977. Vol. 3, 111p. apud VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ontologia Sistêmica e Complexidade. Formas de conhecimento e arte: arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008a. 108p. BUNGE, M. Treatise on Basic Philosophy. Ontology II. A World of Systems. Dordrecht: D. Reidel Publ. Co., 1979. Vol. 4, 314p. apud VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ontologia Sistêmica e Complexidade. Formas de conhecimento e arte: arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008a. 108p. DENBIGH, K. G. A non-conserved function for organized systems. In: Entropy and Information in Science an Philosophy. KUBAT, L.; ZEMAN, J. (eds). Praga: Elsevier Scient. Publ., 1975. 10 | 10

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